CENTRO UNIVERSITÁRIO FILADÉLFIA ENTIDADE MANTENEDORA: INSTITUTO FILADÉLFIA DE LONDRINA Diretoria: Sra. Ana Maria Moraes Gomes ...................... Presidente Sr. Edson Aparecido Moreti .......................... Vice-Presidente Dr. Claudinei João Pelisson ......................... 1º Secretário Sra. Edna Virgínia C. Monteiro de Melo ....... 2ºVice-Secretário Sr. Alberto Luiz Candido Wust .................... 1º Tesoureiro Sr. José Severino ......................................... 2º Vice-Tesoureiro Dr. Osni Ferreira (Rev.) ................................ Chanceler Dr. Eleazar Ferreira ...................................... Reitor indice.p65 1 29/10/2007, 21:43 REVISTA JURÍDICA da UniFil Ano IV – nº 4 – 2007 Órgão de Divulgação Científica do Curso de Direito da UniFil - Centro Universitário Filadélfia COORDENADOR DO COLEGIADO DO CURSO DE DIREITO: Prof. Dr. Osmar Vieira da Silva COORDENADOR DO NÚCLEO DE PRÁTICAS JURÍDICAS: Prof. Ms. José Valdemar Jaschke PRESIDENTE DO CONSELHO EDITORIAL: Prof. Dr. Marcos Antônio Striquer Soares SUPERVISORA EDITORIAL: Profª. Ms.Érika Juliana Dmitruk REVISORA: Profª. Dra. Maria Cristina Viecili BIBLIOTECÁRIA Neiva Correa França Nakai CONSELHO EDITORIAL Prof. Dr. Marcos Antonio Striquer Soares Prof. Dr. Osmar Vieira da Silva Prof. Dr. Cézar Bueno de Lima Prof. Dr. Everaldo Pinto Conceição Profª. Dra. Maria Cristina Viecili Prof. Ms. Antonio Carlos Lovato Profª. Ms. Sandra Cristina M. N. G. de Paula Profª. Ms. Luciana Mendes P. Roberto Profª. Ms. Deborah Lídia Lobo Muniz Profª. Ms. Ana Claudia Duarte Pinheiro Profª. Ms. Maria Eduvirge Marandola Profª. Ms. Érika Juliana Dmitruk Prof. Ms. José Valdemar Jaschke Profª. Dra. Rozane da Rosa Cachapuz Prof. Ms. Ademir Simões Profª. Ms. Renata Cristina O. A. Silva Profª. Ms. Maria de Fátima G. Rossetto Prof. Ms. Mario Sergio Lepre Prof. Ms. João Luiz Martins Esteves Profª. Drª. Martha Asuncion E. Prado Prof. Ms. Henrique Afonso Pipolo CONSELHO CONSULTIVO Min. José Augusto Delgado (UFRN) Prof. Dr. Luiz F. Bellinetti (UEL) Profª. Drª. Giselda Hironaka (USP) Prof. Dr. Arnaldo de M. Godoy (UEL) Prof. Dr. Gilberto Giacóia (FANORPI) Profª. Drª. Maria de Fátima Ribeiro (UEL) Prof. Dr. Antonio Carlos Wolkmer (UFSC) Profª. Drª. Jussara S. A. B. N. Ferreira (UEL) REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 indice.p65 3 29/10/2007, 21:43 3 CENTRO UNIVERSITÁRIO FILADÉLFIA REITOR: Dr. Eleazar Ferreira PRÓ-REITOR DE ENSINO DE GRADUAÇÃO: Prof. MSc. Reynaldo Camargo Neves COORDENADORA DE CONTROLE ACADÊMICO: Profª. Esp. Helena Fumiko Morioka COORDENADORA DE AÇÃO ACADÊMICA: Laura Maria dos Santos Maurano PRÓ-REITOR DE PESQUISA, PÓS-GRADUAÇÃO E EXTENSÃO: Profª. Dra. Damares Tomasin Diazin COORDENADOR DE PROJETOS ESPECIAIS E ASSESSOR DO REITOR: Prof. MSc. Reynaldo Camargo Neves COORDENADOR DE PUBLICAÇÕES CIENTÍFICAS: Prof. Dr. Leandro Henrique Magalhães COORDENADORES DE CURSOS DE GRADUAÇÃO: Administração Arquitetura e Urbanismo Biomedicina Ciências Biológicas Ciências Contábeis Ciência da Computação Direito Educação Física Enfermagem Farmácia Fisioterapia Nutrição Pedagogia Psicologia Secretariado Executivo Sistema de Informação Teologia Turismo Prof. Luís Marcelo Martins Prof. Ivan Prado Junior Prof. Eduardo Carlos Ferreira Tonani Prof. João Antônio Cyrino Zequi Prof. Eduardo Nascimento da Costa Prof. Sérgio Akio Tanaka Prof. Osmar Vieira da Silva Prof. Pedro Lanaro Filho Profª.Rosângela Galindo de Campos Profª.Lenita Brunetto Bruniera Profª.Suhaila Mahmoud Smaili Santos Profª.Ivoneti Barros Nunes de Oliveira Profª.Marta Regina Furlan de Oliveira Profª.Denise Hernandes Tinoco Profª.Izabel Fernandes Garcia Souza Prof. Sérgio Akio Tanaka Prof. Joaquim José de Moraes Neto Profª.Michelle Ariane Novaki Rua Alagoas, nº 2.050 - CEP 86.020-430 Fone: (0xx43) 3375-7400 - Londrina - Paraná www.unifil.br indice.p65 5 29/10/2007, 21:43 SUMÁRIO Linha de Pesquisa “Dogmática Jurídica, Desenvolvimento e Responsabilidade Social” TRABALHO, MEDO E SOFRIMENTO: CONSIDERAÇÕES ACERCA DO ASSÉDIO MORAL ...... 1 3 Ana Paula Sefrin Saladini DEVER DE DOCUMENTAÇÃO, ACESSO AO PROCESSO CLÍNICO E SUA PROPRIEDADE. UMA PERSPECTIVA EUROPÉIA ...................................................................................................................... 2 5 André Gonçalo Dias Pereira COMPROMISSO DE AJUSTAMENTO DE CONDUTA ........................................................................ 3 6 Demétrius Coelho Souza Vera Cecília Gonçalves Fontes A TUTELAANTECIPADA EM SEDE DE JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS .......................................... 5 1 Hylea Maria Ferreira O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA PUBLICIDADE E PROPAGANDA DO GOVERNO ........... 6 4 Marcos Antônio Striquer Soares O PRINCÍPIO DO NÃO-CONFISCO NO DIREITO TRIBUTÁRIO .................................................... 7 7 Mary Silvea Santana Vieira O CONTEMPT OF COURT (desacato à ordem judicial) NO BRASIL ................................................ 9 1 Osmar Vieira da Silva CONTRATO: DO TRADICIONAL A CELEBRAÇÃO ELETRÔNICA – ASPECTOS FORMAIS .. 112 Simone Vinhas de Oliveira Valkíria A. Lopes Ferraro Vinicius Franco da Silva Wesley Tomaszweski Linha de Pesquisa “Teorias do Direito do Estado e Cidadania” CONSIDERAÇÕES SOBRE O PODER CONSTITUINTE .................................................................. 127 Ana Carolina Miiller Lopes Ana Karina Ticianelli Möller A INFLUÊNCIA DA TÓPICA NO PENSAMENTO DE PETER HÄBERLE E O SEU CONCEITO DE INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL ............................................................................................ 134 Carolina V. Ribeiro de A. Bastos Eder Fernandes Mônica Samia Moda Cirino O PRINCÍPIO DA INTEGRIDADE COMO MODELO DE INTERPRETAÇÃO CONSTRUTIVA DO DIREITO EM RONALD DWORKIN ......................................................................................................... 144 Erika Juliana Dmitruk REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 indice.p65 7 29/10/2007, 21:43 7 Estudos de Casos PROTEÇÃO DA CRIANÇA EM FACE DA PUBLICIDADE DE MEDICAMENTOS INFANTIS1 .... 159 Ester Okamoto Della Costa Raquel Sanchez de Lima O PROCESSO DE ELABORAÇÃO E A PARTICIPAÇÃO POPULAR NOS PLANOS DIRETORES DE ASSAÍ/PR E DE BELA VISTA DO PARAÍSO/PR ............................................................................... 176 Miguel Etinger de Araujo Junior Resenha RESENHA - DINIZ, Maria Helena. Lei de Introdução ao Código Civil brasileiro interpretada ... 187 Luciana Mendes Pereira Roberto RESENHA - Resenha da obra “Ética e Direito”, de Chaim Perelman ................................................ 192 Osmar Vieira da Silva 8 REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 indice.p65 8 29/10/2007, 21:43 EDITORIAL O instante de dar ao público um novo número da Revista Jurídica da UniFil é sempre um momento de reflexão e revisão dos trabalhos desenvolvidos pelo Conselho Editorial na publicação de cada número. É sempre uma satisfação reunir textos sobre assuntos de relevante interesse para o Curso de Direito da UniFil, assim como aceitar o convite de debate que cada texto provoca. Essa alegria de elaboração e conclusão de cada número, entretanto, vem conjugada com a responsabilidade de se produzir um novo número a ser publicado em um futuro próximo. A Revista Jurídica da UniFil , agora, já no quarto ano de publicação, provoca a renova do ânimo para a produção de um novo número, com novos textos, novos assuntos, novos debates. É a alegria pela continuidade dos trabalhos acadêmicos, no intuito de aperfeiçoamento do Curso de Direito, da Instituição onde ele se realiza, da sociedade. No presente número da Revista, foi estabelecida uma divisão nova dos trabalhos apresentados. Os artigos científicos foram divididos entre as duas linhas de pesquisa do Curso de Direito da UniFil: 1.- Dogmática Jurídica, Desenvolvimento e Responsabilidade Social; e 2.- Teorias do Direito do Estado e Cidadania. Entre os artigos encontram-se trabalhos de ex-alunos do Curso de Direito da UniFil, o que muito honra a todos. Como terceira parte, dessa nova divisão, foram incluídos estudos de caso, apropriados para uma área do conhecimento alocada entre as chamadas Ciências Sociais Aplicadas. E uma quarta parte foi reservada a resenha. Fica mais uma vez o convite a toda a comunidade acadêmica voltada ao conhecimento jurídico para participar não só dos debates e questionamentos, como também do próximo número da Revista Jurídica da UniFil Conselho Editorial REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 indice.p65 9 29/10/2007, 21:43 9 Linha de Pesquisa “Dogmática Jurídica, Desenvolvimento e Responsabilidade Social” 01-revista_07.p65 11 29/10/2007, 21:43 Ana Paula Sefrin Saladini TRABALHO, MEDO E SOFRIMENTO: CONSIDERAÇÕES ACERCA DO ASSÉDIO MORAL Ana Paula Sefrin Saladini* O medo destrói a saúde mental dos trabalhadores de modo progressivo e inelutável, como o carvão que asfixia os pulmões do mineiro com silicose. (Dejours). RESUMO O presente trabalho aborda o problema do assédio moral no ambiente de trabalho. Partindo-se da definição do tema, é feita uma análise do panorama nacional da questão, abordando, ainda, as perspectivas legislativas. Na seqüência, analisa-se a responsabilidade do empregador. Discutemse questões pertinentes ao medo e ao sofrimento inerentes ao trabalho, e do medo utilizado como instrumento pelo empregador, ora visando o incremento da produtividade, ora como mero exercício arbitrário de poder. Por fim, verificam-se as conseqüências do medo e do sofrimento na saúde do trabalhador. Palavras-chave: Assédio Moral. Medo. Sofrimento. Abuso de Poder. Saúde. WORK, FEAR AND SUFFERING: CONSIDERINGS CONCERNING THE MORAL SIEGE 13 ABSTRACT The present work approaches the problem of the moral siege in the work environment. Breaking itself of the definition of the subject, an analysis of the national panorama of the question is made, approaching, still, the legislative perspectives. In the sequence, it is analyzed responsibility of the employer. Pertinent questions to the inherent fear and the suffering to the work, and of the used fear are argued as instrument for the employer, however aiming at the increment of the productivity, however as mere arbitrary exercise of being able. Finally, the consequences of the fear and the suffering in the health of the worker are verified. Keywords: Moral Siege. Fear. Suffering. Abuse of Being Able. Health. 1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS O presente estudo visa distinguir duas situações específicas que podem desencadear transtornos mentais e de comportamento relacionados com o trabalho: o medo e o sofrimento psíquico no ambiente de trabalho. Ainda que, em algumas profissões, essas circunstâncias sejam inerentes ao trabalho, as práticas empresariais modernas, muitas vezes, têm incrementado a cultura do medo e sofrimento nas relações de trabalho, ora como meio de incremento de produtividade, ora como mero exercício arbitrário de poder. * Juíza do Trabalho Titular da Vara do Trabalho de Jacarezinho-Paraná. Especialista em Direito do Trabalho. Especialista em Direito Civil e Processo Civil. Professora de Graduação e Pós-Graduação. REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 01-revista_07.p65 13 29/10/2007, 21:43 Trabalho, Medo e Sofrimento: Considerações Acerca do Assédio Moral Esse panorama leva ao desenvolvimento de doenças mentais relacionadas com o trabalho, causando, a médio e longo prazo, perda de capacidade produtiva. Além disso, as situações de medo e sofrimento criados pelo empregador têm sido qualificadas pela doutrina e jurisprudência como práticas de assédio moral, capazes de gerar dever de indenizar. 2 ASSÉDIO MORAL 2.1 Definição O assédio moral também é conhecido como mobbing (GUEDES, 2003, p. 162) ou psicoterror. Uma das maiores autoridades internacionais no assunto é a psicanalista francesa Marie-France Hirigoyen, que assim define assédio moral (HIRIGOYEN, 2003, p. 65): 1 Por assédio em um local de trabalho temos que entender toda e qualquer conduta abusiva manifestando-se sobretudo por comportamentos, palavras, atos, gestos, escritos que possam trazer danos à personalidade, à dignidade ou à integridade física ou psíquica de uma pessoa, pôr em perigo seu emprego ou degradar o ambiente de trabalho. Heinz Leymann (apud MENEZES, 2003, p. 291), considerado pioneiro no assunto, identificou como doença profissional enfermidades de natureza psicossomática, derivadas do mobbing, e definiu a figura do assédio moral nos seguintes moldes: ...a deliberada degradação das condições de trabalho através do estabelecimento de comunicações não éticas (abusivas), que se caracterizam pela repetição, por um longo tempo, de um comportamento hostil de um superior ou colega(s) contra um indivíduo que apresenta, como reação, um quadro de miséria física, psicológica e social duradoura. 14 Destaca-se, de tais conceitos, a necessidade de a conduta ofensiva ser reiterada: fatos isolados, ainda que ofensivos à integridade moral do empregado, não configuram o assédio moral. Isso porque o próprio termo assédio tem a conotação de insistência impertinente, perseguição constante, estabelecimento de um cerco com a finalidade de exercer o domínio sobre a pessoa assediada. A prática tem propagação insidiosa, normalmente agregando abuso de poder e manipulação. Existe tanto na modalidade horizontal (entre colegas do mesmo nível hierárquico) quanto na vertical ascendente (assédio do subordinado ao superior hierárquico) e na vertical descendente (cerco do superior em relação ao subordinado). A situação mais comum é essa última, quando o superior agride ao subordinado, que, com medo de perder o emprego, acaba submetendose ao assédio, e termina por imputar a si mesmo a causa do cerco, acreditando na desqualificação promovida pelo empregador, e atribuindo a si mesmo rótulo de incompetente, incapaz, despreparado, etc. 1 Segundo Márcia Guedes, o termo mobbing foi empregado pela primeira vez pelo etiologista Heinz Lorenz, ao definir o comportamento de certos animais que, circundando ameaçadoramente outro membro do grupo, provocam sua fuga por medo de ataque. REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 01-revista_07.p65 14 29/10/2007, 21:43 Ana Paula Sefrin Saladini 2.2 Panorama Nacional Não obstante a doutrina indique que as práticas de assédio moral são tão antigas quanto o próprio trabalho organizado. No Brasil, até recentemente, a questão era pouco debatida, sendo, muitas vezes, confundida com situações gerais de estresse e conflitos naturais entre empregados (SALVADOR, 2002, p. 66)2 . Após a promulgação da Carta Constitucional de 1988, que assegurou de forma expressa a indenização decorrente de danos morais (art. 5º, X), o assunto passou a ser objeto de estudos que começam a dar a real dimensão do problema. Atualmente, a figura do assédio moral já se tornou conhecida dos trabalhadores brasileiros, em razão de políticas agressivas e cruéis de gerenciamento, podendo ser vista como sintomática desta época. Conforme Hádassa Dolores Bonilha Ferreira, o assédio moral (apud FERRARI, 2005, p. 82). ...é fruto de um conjunto de fatores, tais como a globalização econômica predatória, vislumbradora somente da produção e do lucro, e a atual organização do trabalho, marcada pela competição agressiva e pela opressão dos trabalhadores através do medo e da ameaça. Esse constante clima de terror psicológico gera, na vítima assediada moralmente, um sofrimento capaz de atingir diretamente sua saúde física e psicológica, criando uma predisposição ao desenvolvimento de doenças crônicas, cujos resultados a acompanharão por toda a vida. Em início de 2002, a médica do trabalho Margarida Barreto divulgou o resultado de uma pesquisa nacional sobre o assunto, desenvolvida para sustentar sua tese de doutorado na PUC-SP, que foi publicada no Jornal Folha de São Paulo, suplemento especial Folha Equilíbrio, em 21.02.02, recebendo, ainda, intensa divulgação em outros órgãos de informação e na rede mundial de computadores. No estudo, que serve como referência a diversos trabalhos posteriores sobre o tema, foram ouvidos 4.718 trabalhadores, dos quais 68% declararam que sofriam assédio no ambiente de trabalho várias vezes por semana 20% relataram que o assédio ocorria em média uma vez por semana, e 12% afirmou que a prática era sofrida uma vez por mês. Esses números indicam que o assédio vem fazendo parte da rotina de trabalho do brasileiro. Dentre as principais ações de assédio apresentadas na pesquisa, destacaram-se: dar instruções confusas e imprecisas, atribuir erros imaginários, ignorar a presença do empregado em frente a outras pessoas, não cumprimentálo e não dirigir a palavra a ele, insinuar que o empregado tem problema mental ou familiar. Segundo a pesquisa, 89% das agressões partem do superior hierárquico. No campo da prática cotidiana, o aumento do número de queixas é evidente: em 2002 foram registrados, nas delegacias regionais do trabalho brasileiras, 231 atendimentos em razão de queixas de assédio moral; o ano de 2004 apontou um aumento de cerca de 110%, com registro de 484 queixas (ANCHISES, 2006, p. 47). Os trabalhadores trazem aos tribunais variado número de casos de abuso psicológico, através das reclamações judiciais. Destacam-se das notícias relatadas pela mídia algumas situações revoltantes: ridicularização pelo chefe em decorrência de características do empregado (tique nervoso, opção sexual, peso, altura, etc.); gerente que instala, por conta própria, câmara filmadora no banheiro reservado às empregadas, pretensamente para evitar furtos; insinuações sobre a manutenção do emprego depender de um “teste íntimo sobre as habilidades com sexo oral”; submissão de empregados a detector de mentiras. 2 Luiz Salvador ressalta que essa perspectiva impedia práticas de diagnóstico e prevenção das situações de assédio moral. REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 01-revista_07.p65 15 29/10/2007, 21:43 15 Trabalho, Medo e Sofrimento: Considerações Acerca do Assédio Moral Outras situações relatadas por empregados: o chefe que, chegando ao setor com a garrafa de café fresco, indaga se os subordinados desejam tomar café; com a resposta afirmativa, em frente a todos, despeja o café quente no ralo da pia; o superior hierárquico que, a pretexto de aumento de produtividade, faz o empregado vendedor que menos se destacou durante o expediente usar, por ocasião da reunião diária com a equipe de vendas, um “chapéu de burro”, do tipo cônico, permanecendo sentado em um banco alto; o coordenador de equipe que manda “pagar prendas” como dançar uma música ridícula e com conotação sexual, fazer flexões ao estilo do exército, e uma gama de atividades criadas ora por uma mente perversa e arbitrária que busca apenas se divertir à custa do sofrimento alheio, e que justifica sua conduta como técnica de “implemento de produção, técnica de venda ou treinamento de recursos humanos”.3 O problema não nasceu aqui, e nem é limitado ao Brasil. Num mundo globalizado, as práticas de gestão também são generalizadas. Assim, nem mesmo a Organização Internacional do Trabalho escapa de críticas: a revista semanal Época, edição de 27.09.2004, noticiou que a ONU acolheu queixa de assédio moral feita por empregado em face da OIT, sua empregadora. Como forma de cientificar os trabalhadores, criando mecanismos de identificação do problema e estratégias de defesa, diversos sindicatos, a exemplos dos sindicatos dos bancários e dos sindicatos dos servidores públicos federais, vêm elaborando e distribuindo aos integrantes da categoria profissional cartilhas alertando quanto às práticas de assédio. 2.3 Perspectivas Legislativa 16 Embora endêmica, a questão relativa ao assédio moral ainda carece de regulamentação legal, no Brasil. Três importantes projetos de lei estão em trâmite na Câmara dos Deputados, para regulamentação e punição do assédio moral. O Projeto de Lei 5.970/01 altera dispositivos da CLT, e os Projetos de Lei 4.591/01 e 5.972/01 modificam dispositivos da Lei 8.112/90 (Regime Jurídico dos Servidores Públicos Civis da União, das Autarquias e das Fundações Públicas Federais). O Projeto de Lei 4.591/01 dispõe sobre a aplicação de penalidades à prática de assédio moral por parte de servidores públicos da União, das autarquias e das fundações públicas federais a seus subordinados, vedando aos servidores públicos praticarem atitudes de cerco contra seus subordinados, e estabelecendo penalidades disciplinares que se estendem de advertência até demissão, progressivamente, considerada a reincidência e a gravidade da ação. O projeto conceitua como assédio moral todo tipo de ação, gesto ou palavra que atinja, pela repetição, a auto-estima e a segurança de um indivíduo, fazendo-o duvidar de si e de sua competência, implicando em dano ao ambiente de trabalho, à evolução profissional ou à estabilidade física, emocional e funcional do servidor, incluindo, dentre outras: marcar tarefas com prazos impossíveis; passar alguém de uma área de responsabilidade para funções triviais; tomar crédito de idéias de outros; ignorar ou excluir um servidor só se dirigindo a ele através de terceiros; sonegar informações necessárias à elaboração de trabalhos de forma insistente; espalhar rumores maliciosos; criticar com persistência; segregar fisicamente o servidor, confinando-o em local inadequado, isolado ou insalubre; subestimar esforços. Dentre as justificativas apresentadas no projeto quanto à necessidade de regulação da questão, destaca-se o seguinte: 3 Essas situações foram relatadas por testemunhas à autora, em casos diversos, em sua experiência como Juíza do Trabalho. REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 01-revista_07.p65 16 29/10/2007, 21:43 Ana Paula Sefrin Saladini Sabe-se que o mundo do trabalho vem mudando constantemente nos últimos anos. Novas formas de administração, reengenharia, reorganização administrativa, entre outras, são palavras que aos poucos tornaram-se freqüentes em nosso meio. No entanto, pouco se fala sobre as formas de relação no trabalho. O problema do ‘assédio moral’ (ou tirania nas relações do trabalho, como é chamado nos Estados Unidos) atinge milhares de trabalhadores no mundo inteiro. Pesquisa pioneira da Organização Mundial do Trabalho, realizada em 1996, constatou que pelo menos 12 milhões de europeus já sofriam desse drama. Em nossa cultura competitiva, onde todos procuram vencer a qualquer custo, urge adotarmos limites legais que preservem a integridade física e mental dos indivíduos, sob pena de perpetuarmos essa ‘guerra invisível’ nas relações de trabalho. E para combatermos de frente o problema do “assédio moral” nas relações de trabalho, faz-se necessário tirarmos essa discussão dos consultórios de psicólogos e tratá-lo no universo do trabalho. O Projeto de Lei 5.972/01 também visa alterar dispositivos do Estatuto dos Servidores Públicos Civis da União, a fim de estabelecer proibição expressa ao servidor público de coagir moralmente subordinado através de atos ou expressões reiteradas que tenham por objetivo atingir a sua dignidade ou criar condições de trabalho humilhantes ou degradantes, abusando da autoridade conferida pela posição hierárquica. Especificamente quanto ao empregado submetido ao regime da CLT, o projeto de lei visa estabelecer, como motivo para a rescisão indireta do contrato de trabalho, a prática, pelo empregador ou seus prepostos, de coação moral, através de atos ou expressões que tenham por objetivo ou efeito atingir sua dignidade e/ou criar condições de trabalho humilhantes ou degradantes, abusando da autoridade que lhe conferem suas funções, autorizando que o empregado permaneça ou não no serviço até final da decisão do processo. O projeto também prevê uma indenização pré-tarifada, quando demonstrada a coação moral, acrescentado à CLT o art. 484-A, que tem prevista a seguinte redação: “se a rescisão do contrato de trabalho foi motivada pela prática de coação moral do empregador ou de seus prepostos contra o trabalhador, o juiz aumentará, pelo dobro, a indenização devida em caso de culpa exclusiva do empregador”. Destacam-se, das justificativas do projeto, os seguintes argumentos: O art. 7º, I, da Constituição Federal, assevera que é direito do trabalhador uma ‘relação de trabalho protegida contra despedida arbitrária ou sem justa causa’, prevendo a estipulação legal de indenização compensatória, com essa finalidade. Nenhuma despedida é mais arbitrária e injusta do que aquela que força o trabalhador a pedir, ele mesmo, a sua demissão, por lhe ter sido tornado insuportável o ambiente de trabalho, pela perseguição sistemática e pela sua submissão a comportamentos vexatórios, humilhantes e degradantes, pelo que estamos convencidos da necessidade de aprovação, neste Parlamento, de normas que protejam o trabalhador dos efeitos deletérios desses atos dos patrões ou de seus prepostos. As justificativas apresentadas pelos autores dos projetos de lei bem indicam a gravidade do problema e a urgência de adoção de medidas de contenção e prevenção de danos. 2.4 Responsabilidade Patronal A falta de dispositivo legal específico não impediu o desenvolvimento da doutrina e da jurisprudência em torno da questão do assédio moral, nem tem servido como barreira para a aplicação de penalidades aos empregadores que assim procedem ou que permitem esses proce- REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 01-revista_07.p65 17 29/10/2007, 21:43 17 Trabalho, Medo e Sofrimento: Considerações Acerca do Assédio Moral dimentos por parte de seus prepostos, principalmente no âmbito da fixação de indenização ao empregado lesionado. O assédio moral é ato cuja responsabilidade deve ser imputada ao empregador, que, como detentor do poder disciplinar, tem a obrigação de administrar tanto o conflito existente entre empregados do mesmo grau hierárquico quanto o decorrente das próprias relações hierárquicas. Conforme Márcia Guedes (GUEDES, 2003, p. 162): ...tanto a administração rigidamente hierarquizada, dominada pelo medo e pelo silêncio, quanto a administração frouxa, onde reina a total insensibilidade para com valores éticos, permitem o desenvolvimento de comportamentos psicológicos doentes, que dão azo à emulação e à criação de bodes expiatórios. No âmbito internacional, têm sido deferidas indenizações de grande monta. Relata o advogado Luiz Salvador (SALVADOR, 2002, p. 68) que o assédio moral, no ambiente de trabalho, tem gerado, nos EUA, indenizações milionárias em favor dos assediados, transformandose em um dos principais riscos financeiros das empresas. Cita os seguintes exemplos: a rede WalMart foi condenada a pagar 50 milhões de dólares a uma empregada assediada moralmente, em decorrência de observações chocantes quanto a seus dotes físicos; a Chevron foi condenada a uma indenização superior a dois milhões de dólares a empregados por agressões ocorridas no ambiente de trabalho; no Estado da Flórida uma empresa foi condenada a pagar indenização de 237 mil dólares a um gerente que foi assediado por seu chefe.4 Embora seja tradição do direito brasileiro o deferimento de indenizações em valores muito mais modestos, o cotidiano demonstra o crescimento do número de ações trabalhistas que denunciam a utilização de práticas de assédio como ferramentas de gestão e controle empresarial. 18 3 MEDO, SOFRIMENTO E TRABALHO 3.1 Medo e Sofrimento Inerentes ao Trabalho O medo está presente em todos os tipos de ocupação profissional. Em algumas atividades, o risco à integridade física é inerente ao próprio trabalho desenvolvido, como nos casos de trabalhadores da área de segurança (policiais, agentes penitenciários, vigilantes, transportadores de valores), trabalhadores da construção civil, bombeiros, etc. Em outras funções, o medo é mais personalizado pelas condições a que está exposto o trabalhador. Os riscos profissionais típicos são causa de insegurança e medo no trabalho. Esse medo, implícito e impossível de deixar de existir, quando se trata de trabalho perigoso ou insalubre, implica desequilíbrio na carga psíquica do trabalho. As más condições de trabalho trazem prejuízos ao corpo e ao espírito, citando-se, como exemplo, a ansiedade resultante das ameaças à integridade física, classificada como “seqüela psíquica” do risco que a nocividade das condições de trabalho impõe ao corpo (DEJOURS,1991, p. 78). Paralelamente ao medo, encontra-se o sofrimento psíquico experimentado pelo trabalhador em razão de dificuldades características da atividade profissional exercida. Essa atividade profissional pode ser estressante por si própria, ou ter como fator gerador do estresse e sofrimento a frustração causada pelo trabalho monótono, repetitivo ou desgastante. Exemplo da primeira modalidade é o caso dos controladores de vôo, que demonstraram à nação o grau de desgaste dos integrantes da carreira depois do acidente aéreo fatal ocorrido em setembro de 2006 4 Ressalte-se que no Brasil as indenizações são de montante tímido, quando comparadas com a máquina judiciária americana, célebre por suas condenações milionárias em razão da teoria dos danos punitivos. REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 01-revista_07.p65 18 29/10/2007, 21:43 Ana Paula Sefrin Saladini e que vitimou 154 pessoas. Exemplo de trabalho desgastante e que gera frustração é relatado por Dejours, quando se refere à categoria profissional de telefonista, que tem a frustração do profissional explorado pela organização do trabalho, com canalização para a produtividade: a frustração se transforma em agressividade; a agressividade é canalizada para o atendimento rápido do interlocutor, empurrando-o a desligar mais depressa; esse procedimento leva a aumentar a produtividade, o que deixa o profissional ainda mais exasperado, e, assim sucessivamente, num círculo vicioso que, à custa de prejudicar a saúde mental do trabalhador, faz aumentar a produtividade em prol da empresa de telefonia (DEJOURS, 1991, p. 96-115). A sociologia do trabalho indica que o processo de modernidade vem acarretando a piora do meio ambiente de trabalho. A automação, a adoção de sistemas de trabalho taylorista, mecanizado, dividido, submisso, controlado, repetitivo e vazio aumenta a angústia do trabalhador, que não vê coerência nem resultado no trabalho desenvolvido, trazendo repercussões negativas a seu equilíbrio mental, e, por conseqüência, à sua saúde como um todo. Saindo de um panorama taylorista, na pós-modernidade são adotados novos sistemas gerenciais que continuam a produzir estresse ocupacional. Sidnei Machado observa, com propriedade, que (MACHADO, 2001, p. 46): ...O modo de produção capitalista, paradoxalmente, ao mesmo tempo que faz exaltação do trabalho, por meio da organização de seu processo, controla a atividade produtiva inibindo o enriquecimento das tarefas. A mecanização, inicialmente, e depois a automação impostas pela organização do trabalho, delimitando ritmos, cadências e tempo, vão revelar uma falta de adaptação do homem às modernas condições de trabalho e produção. Esse ambiente de produção tornou-se um fator de risco à saúde física e mental dos trabalhadores. As novas formas de organização do trabalho e a introdução de novas tecnologias tendem a intensificar ainda mais os fatores de risco no trabalho em todo o mundo... 19 Essa realidade de medo e sofrimento não pode ser negada. Apesar do implemento de novas técnicas de recursos humanos, não se têm desenvolvido práticas para melhorar as condições de trabalho. Ao contrário, a assustadora realidade tem sido negada, ou, muitas vezes, as situações de medo e sofrimento são detectadas e têm sua energia canalizada para melhorar os índices de produtividade empresarial, através de condutas que geram ainda mais sofrimento. 3.2 O Medo como Meio de Incremento de Produtividade Embora o medo e o sofrimento sejam inerentes a alguns tipos de trabalho, existem situações em que são condições de trabalho criadas pelo empregador, visando, com sua exploração, o incremento da produtividade individual e o aumento dos ganhos do capital. Conforme Dejours, a erosão da vida mental individual do trabalhador é útil para a implantação de um comportamento condicionado favorável à produção, e o sofrimento mental aparece como intermediário necessário à submissão do corpo (DEJOURS, 1994, p. 96). No mundo atual, infligir injustiça a outrem já é forma banalizada de gestão; a questão do mal hoje se coloca de maneira totalmente nova, com o surgimento de condutas iníquas generalizadas, em contextos organizacionais diferentes do sistema fordiano, notadamente no quadro dos novos métodos de administração de empresas e gerenciamento (DEJOURS, 1999, p. 98): Júlio Rocha adverte, no que diz respeito às relações humanas no meio ambiente de trabalho, que são cada vez mais importantes as análises acerca de elementos psicológicos como a pressão para o desempenho da atividade, que desencadeia a depressão e distúrbios emocionais (apud MELO, 2004, p. 278). REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 01-revista_07.p65 19 29/10/2007, 21:43 Trabalho, Medo e Sofrimento: Considerações Acerca do Assédio Moral Analisando a obra de Dejours, Leonardo Wandelli (2004, p. 99) diagnostica a manipulação do medo e do sofrimento do trabalhador como instrumentos úteis aos fins empresariais: Manipulação do medo e do sofrimento: este é um processo que envolve a ampliação da vulnerabilidade social, já mencionada, mas articulada no interior da empresa de maneira que ela sirva de instrumento à consecução dos objetivos pretendidos pela organização. A ameaça velada ou expressa como base de política de pessoal. O medo, assim, não é só o resultado da ameaça ou da vulnerabilidade, mas o ponto de partida da banalização do mal. (...) Enquanto se trabalha, além da ameaça de precarização, há o medo diante dos riscos de acidente ou doença do trabalho; o medo de não corresponder às expectativas dos superiores e consumidores; de ser descartado como inapto. A pressão por resultados aumenta... 20 Essa manipulação do medo e do sofrimento inicialmente serve ao fim empresarial de incremento de produtividade: o empregado amedrontado e abalado psicologicamente acaba por acatar qualquer ordem, ainda que contrária ao seu próprio senso de ética; o abalo em seu sistema nervoso pode acarretar um estado de confusão mental que chega a impedir o empregado de discernir o certo do errado. Dejours, depois de afirmar que não encontra diferenças entre a banalização do mal no sistema neoliberal e no sistema nazista, identifica entre ambos os sistemas “as etapas de um processo capaz de atenuar a consciência moral em face do sofrimento infligido a outrem e de criar um estado de tolerância ao mal” (DEJOURS, 1999, p. 139). Com a criação de um ambiente de trabalho hostil e a desestabilização emocional do trabalhador, este se torna dócil e menos reivindicativo, moldado aos desejos do capital. Segundo estudo promovido pela Sociedade Cubana de Direito do Trabalho e Seguridade Social (SALVADOR, 2002, p. 67), isso acontece porque, em uma empresa orientada para o mercado, requer-se uma competitividade empresarial superior para poder sobreviver à pressão da economia, o que faz o empregador buscar os melhores talentos, assim como o pessoal mais dócil, manejável, capaz de assumir funções sem protestar. Na jurisprudência, cada dia são mais freqüentes os casos de condenação de empregadores em razão de atos decorrentes da utilização do medo e do sofrimento como meios de incremento de produtividade. A título ilustrativo são citados dois exemplos: 1. O TRT Capixaba condenou uma empresa de comunicação por se utilizar de “dinâmicas de grupo”, em treinamentos e no dia-a-dia de trabalho, que eram consideradas vexatórias, como “dançar a dança da boquinha da garrafa e o bonde do tigrão”. Nessa ocasião o Regional entendeu que: ...o empregador é responsável pela saúde emocional de seus empregados e não pode permitir que meros instrutores utilizem, de modo absolutamente temerário, uma ferramenta científica própria da psicologia, cuja conseqüência é tão-somente a humilhação e o constrangimento do trabalhador. (...) Os atos praticados pela recorrida ultrapassam os limites profissionais, porque minam a saúde física e mental da vítima e nada têm de modernos (TRT, 17a Região, RO 01294.2002.007.17.00.9 – Ac. 23.10.03 – Relatora Juíza Sônia das Dores Dionísio – LTr 68-03, março de 2004, p. 356-359). 2. O TRT do Rio Grande do Sul apurou a utilização, como política de incremento de produtividade, de humilhações e constrangimentos impostos a trabalhador que não cumpria metas estabelecidas. As alegações do empregado incluíam o relato de práticas como ser obrigado “vestir uma saia e desfilar em cima de uma mesa, enquanto os colegas gritavam ‘veado’”. Na análise da prova, o Regional constatou o seguinte: REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 01-revista_07.p65 20 29/10/2007, 21:43 Ana Paula Sefrin Saladini ...a segunda testemunha informou que quando os vendedores chegavam atrasados, esqueciam uniformes, não atingiam as metas, pagavam prendas; que eram chamados de ‘filhos da p...’, ‘merda’; que tinham apertado suas nádegas em corredor polonês, que isso acontecia quando o empregado não sabia responder ao ‘pinga fogo’...(TRT, 04a Região, RO 00887.2003.015.04.00.4 – Ac. 8a Turma – Relator Juiz Carlos Alberto Robinson – DJRS 16.07.04.) Embora tais práticas sejam utilizadas a pretexto de aumento de produtividade, é fato constatado pela psicologia que em médio e longo prazo produzem efeito contrário ao pretendido. O empregado, desgastado psicologicamente, vê diminuir sua capacidade de trabalho e produtividade; o cansaço emocional favorece o desenvolvimento de doenças, algumas decorrentes de um processo de somatização, o que acarreta ausências ao serviço, inclusive afastamentos com autorização médica (HIRIGOYEN, 2003, p. 66).5 Algumas doenças, como estresse agudo, alcoolismo e síndrome de bournout, podem ser decorrentes da exposição reiterada ao medo e sofrimento no ambiente de trabalho. 3.3 O Medo Criado como Mero Exercício Arbitrário de Poder Além do medo e do sofrimento utilizados como meio de incremento de produtividade não é raro depararmos com indivíduos perversos que, identificados como “empreendedores e pró-ativos”, são alçados a cargos de chefia e utilizam dessa posição para dar vazão à crueldade. De acordo com levantamentos da OIT, a cada dia cresce a violência no ambiente de trabalho, com destaque para a pressão psicológica, consistente em atitudes como observações e críticas destrutivas, segregação de pessoas do convívio social, difusão de rumores ou informações falsas. Práticas perversas e reiteradas de gestão abusiva são identificadas como assédio moral. Hirigoyen qualifica o indivíduo maldoso como “perverso”, vez que utiliza procedimentos semelhantes aos que eram usados nos campos de concentração, “atando” psicologicamente a vítima, que fica impedida de reagir. O agressor criva a vítima de críticas e censuras, vigia, cronometra, deixando-a sem saber como agir e sem compreender o que acontece. Os instrumentos utilizados de forma mais freqüente são a recusa à comunicação direta, a desqualificação através de comunicação não verbal (suspiros, levantar de ombros, olhares, silêncios) e “brincadeiras” perversas (ironias, zombaria, sarcasmo). O indivíduo que assedia leva a pessoa a desacreditar de si; provoca o isolamento do empregado, não o convocando para reuniões, privando-o de informações, “arquivando” a pessoa sem lhe dar o que fazer (DEJOURS, 1991, p. 77),6 condutas que geram mais estresse que a mera sobrecarga física de trabalho. Também é prática usual a utilização de procedimentos vexatórios, como confiar à vítima tarefas inúteis ou humilhantes ou induzir o empregado ao erro. Não se descartam, ainda, as situações de assédio de caráter sexual, que também imprimem sofrimento à vítima (HIRIGOYEN, 2003, p. 76-81). Outra forma bem disseminada de assédio, e particularmente bem aceita por parte dos comandados, em razão de questões sociológicas, constitui na escolha dos empregados “favoritos” do chefe, que levam pequenas e reiteradas vantagens no dia a dia empresarial: são beneficiados na distribuição das tarefas, na opção de períodos de férias, na concessão de folgas e opção por compensação de horas de trabalho, o que provoca uma divisão desigual do trabalho. Conforme Dejours, a desigualdade na divisão do trabalho é uma arma de que se servem os chefes 5 Não se morre diretamente de todas essas agressões, mas perde-se uma parte de si mesmo. Volta-se para casa, a cada noite, exausto, humilhado, deprimido. E é difícil recuperar-se. 6 DEJOURS relata o caso de fábricas de automóveis, na França, que para isolar os empregados organizavam as linhas de montagem intercalando empregados de diversas nacionalidades diferentes (um árabe, um iugoslavo, um francês, um turco, um espanhol, um italiano, um português, etc.), de modo a, com o obstáculo da língua, impedir toda a comunicação durante o horário de trabalho. REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 01-revista_07.p65 21 29/10/2007, 21:43 21 Trabalho, Medo e Sofrimento: Considerações Acerca do Assédio Moral a bel-prazer da própria agressividade, hostilidade ou perversidade. Essa discriminação da hierarquia com relação aos trabalhadores faz parte integrante das táticas “guerrilheiras” de comando, uma vez que a criação de rivalidades e a discriminação asseguram um grande poder à supervisão (DEJOURS, 1991, p. 75-76). 3.4 Efeitos do Medo e do Sofrimento na Saúde do Trabalhador Medo e sofrimento no trabalho são agentes desencadeadores de doenças psíquicas, como estresse e depressão. O resultado da soma de sofrimentos psíquicos, muitas vezes, vem a ser a ruptura do equilíbrio psíquico, o que vai desencadear a psicopatologia. Fiorelli e Malhadas (2003, p. 38), no estudo conjunto da psicologia e do direito do trabalho, indicam os seguintes efeitos dessa ruptura do equilíbrio psíquico: Aqueles empregados que (...) não conseguem superar as situações de risco, real ou imaginário, por eles percebidas, mostram-se potencialmente capazes de desenvolver estados continuados de tensão, predispondo-se a diversos tipos de patologias ou psicopatologias. Daí resultam hipertensões, crises de gastrite, úlceras, taquicardias e outras complicações; no campo psíquico, encontram-se a ansiedade, a depressão, a propensão à drogadição, etc. A tensão continuada contribui para a redução das defesas do organismo, facilitando as ações de vírus e bactérias. 22 Wandelli (2004, p. 101) adverte que a prática da exploração tem como conseqüência uma soma de sofrimentos: ao sofrimento psíquico decorrente de um mal padecido pelo sujeito soma-se o sofrimento ético, “aquele experimentado pelo sujeito ao cometer atos que ele próprio condena moralmente”. Há estudos demonstrando que o processo do assédio moral pode levar “à total alienação do indivíduo do mundo social que o cerca, julgando-se inútil e sem forças e levando, muitas vezes, ao suicídio” (NASCIMENTO, 2004, p. 922). Na Suécia, estima-se que esse tipo de pressão é causa de 10 a 15% dos suicídios (OLIVEIRA, 2002, p. 189). No Japão, já se criou um vocábulo próprio, karoshi, para designar a morte pelo excesso de trabalho. Esse trabalhar até a exaustão e morte pode ser decorrente, também, de práticas de assédio moral, utilizadas como forma de pressão por melhores resultados no trabalho. A vítima fica indefesa: se tenta reagir, provoca a contra-reação do agressor, através de uma hostilidade declarada, visando sua destruição moral, o que pode levar a seu total aniquilamento psíquico, ou, em casos extremos, até mesmo ao suicídio. Se não reage, paulatinamente tem destruído seu amor próprio e segurança para desenvolver até mesmo trabalhos rotineiros. 4 CONCLUSÃO O assédio moral tem sido objeto de diversos estudos em relação às suas hipóteses e sintomatologia. Muitas vezes, entretanto, falta questionar o que leva o empregador a admitir ou até incentivar tais práticas, bem como analisar os efeitos disso na vida privada do empregado. Na atual cultura empresarial, o medo e o sofrimento do trabalhador têm sido utilizados ora como meios de incremento da produção, sob o rótulo de sistema de gestão, ora como mera demonstração arbitrária de poder por parte de chefias despreparadas e que utilizam tais práticas como válvula de escape da própria perversidade e agressividade. A rotina de causar medo e sofrimento pode configurar assédio moral. Diversos projetos de lei estão em tramitação, buscando regular o assunto. Não obstante, a falta de legislação específica não serviu de empecilho ao desenvolvimento de ampla doutrina e jurisprudência a respeito da questão. REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 01-revista_07.p65 22 29/10/2007, 21:43 Ana Paula Sefrin Saladini Caso demonstrada a conduta de cerco por parte do empregador ou seus prepostos, seja pelo incentivo, seja pela tolerância, estará caracterizada a culpa empresarial. Em havendo nexo de causalidade entre a conduta do empregador e o sofrimento causado no empregado, este terá direito à percepção de indenização. Os tribunais trabalhistas pátrios têm reconhecido, reiteradamente, a existência do problema, inclusive com condenação de empregadores ao pagamento de indenizações. O prejuízo social é ainda maior, uma vez que o trabalhador submetido à tortura no trabalho pode perder sua capacidade laboral de forma temporária ou permanente. A sociedade não pode permanecer inerte diante dessas situações, assistindo ao desmonte da saúde do trabalhador que busca ganhar seu pão. E não basta que o Poder Judiciário defira o pagamento de indenizações às vítimas. Urge sejam tomadas medidas visando suprimir esse círculo vicioso de maldade e sofrimento. REFERÊNCIAS ANCHISES, Nara. À flor da pele: meu trabalho é um estresse! Revista Anamatra. ano XVII, no. 51, 2º semestre de 2006, p. 47-49. CANÇADO, Patrícia, e NEVES, Maria Laura. Quando o chefe vira réu. Revista Época. São Paulo: no. 332, 27.09.2004, p. 08-11. DEJOURS, Christophe. A Banalização da Injustiça Social. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1999. ______. A carga psíquica do trabalho. In: DEJOURS, Christophe; ABDOUCHELI, Elisabeth; JAYET, Christian. Psicodinâmica do trabalho: contribuições da Escola Dejouriana à análise da relação prazer, sofrimento e trabalho. São Paulo: Atlas, 1994, p. 21/32. ______. A loucura do trabalho. 4. ed. São Paulo: Cortez-Oboré, 1991. FIORELLI, José Osmir; MALHADAS JÚNIOR, Marcos Júlio Olivé. Psicologia nas relações de trabalho: uma nova visão para advogados, juízes do trabalho, administradores e psicólogos. São Paulo: LTr, 2003. FERRARI, Irany; MARTINS, Melchíades Rodrigues. Dano Moral – Múltiplos Aspectos nas Relações de Trabalho. São Paulo: LTr, 2005. GUEDES, Márcia Novaes. Mobbing – violência psicológica no trabalho. Revista LTr. São Paulo: v. 2, fev. 2003, ano 67, p. 162/165. HIRIGOYEN, Marie-France, (Trad.) KÜHNER, Maria Helena. Assédio Moral: a violência perversa no cotidiano. 6. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. MACHADO, Sidnei. O Direito à Proteção ao Meio Ambiente de Trabalho no Brasil. São Paulo: LTr, 2001. MELO, Raimundo Simão. Direito Ambiental do Trabalho e a Saúde do Trabalhador. São Paulo: LTr, 2004. MENEZES, Cláudio Armando Couto de. Assédio Moral e seus efeitos jurídicos. Revista LTr. São Paulo: v. 3, mar. 2003, ano 67, p. 291/294. NASCIMENTO, Sônia A. C. Mascaro. O assédio moral no ambiente do trabalho. Revista LTr. São Paulo: v. 8, ago. 2004, ano 68, p. 922/930. REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 01-revista_07.p65 23 29/10/2007, 21:43 23 Trabalho, Medo e Sofrimento: Considerações Acerca do Assédio Moral OLIVEIRA, Sebastião Geraldo de. Proteção Jurídica à Saúde do Trabalhador. 4. ed. São Paulo: LTr, 2002. SALVADOR, Luiz. O Assédio Moral e a Saúde do Trabalhador. Genesis Revista de Direito do Trabalho. Curitiba: v. 115, jul. 2002, p. 66-74. VILAS BOAS, Sérgio. Perseguição no Trabalho é Assédio Moral. Jornal Folha de São Paulo. Suplemento Folha Equilíbrio. São Paulo: 21.02.2002, p. 08-11. WANDELLI, Leonardo Vieira. Despedida Abusiva: o direito (do trabalho) em busca de uma nova racionalidade. São Paulo: LTr, 2004. 24 REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 01-revista_07.p65 24 29/10/2007, 21:43 André Gonçalo Dias Pereira DEVER DE DOCUMENTAÇÃO, ACESSO AO PROCESSO CLÍNICO E SUA PROPRIEDADE. UMA PERSPECTIVA EUROPÉIA André Gonçalo Dias Pereira* RESUMO Neste texto apresentam-se os fundamentos, as finalidades e os objectivos que presidem ao dever de documentação dos médicos. Estuda-se o regime de vários ordenamentos jurídicos europeus de acesso ao processo clínico, verificando-se que a maioria das legislações admite o acesso directo do doente ao processo. Relativamente à questão da propriedade do processo clínico, observa-se hoje uma nova compreensão da questão, na medida em que a informação de saúde carece de cautelas suplementares de protecção face aos avanços da genómica, pelo que, em Portugal, a Lei 12/2005, de 26 de janeiro, outorgou a propriedade da informação de saúde ao paciente, sendo as unidades do sistema de saúde meras depositárias do processo clínico. Palavras-chave: Processo Clínico. Acesso à Ficha Clínica. Propriedade do Processo Clínico. DOCUMENTATION DUTY, ACCESS TO MEDICAL FILE AND ITS OWNERSHIP. A EUROPEAN OUTLOOK ABSTRACT This paper discusses the reasons, goals and objectives of the doctor’s duty to register. Secondly, the system of access to medical records in different European countries is analysed. Increasingly the patient has the right to access directly to his/her medical file. Finally, taking into consideration the challenges of genomics, a new perspective of the ownership of medical files is discussed. In that respect, recent Portuguese law (Law 12/2005, 26 January) states that medical information is owned by the patient. Keywords: Medical data. Access to Medical File. Ownership of Medical Records. 1 FUNDAMENTOS E FINALIDADES DO PROCESSO CLÍNICO É doutrina e jurisprudência segura por toda a Europa que os médicos e os hospitais estão obrigados a proceder à documentação e registo da actividade clínica.1 Os fundamentos desta obrigação podem ser encontrados quer no plano do direito contratual, quer delitual, nomeadamente através dos direitos de personalidade (LAUFS; UHLENBRUCK, 2002, p. 481-482).2 No plano contratual, entende-se que há um dever lateral (Nebenpflicht) resultante do contrato médico de realizar uma documentação minuciosa, pormenorizada, cuidadosa e completa da actividade médica, cirúrgica e dos cuidados de enfermagem. * Assistente da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Pós-graduado em Direito Civil e em Direito da Medicina pela Universidade de Coimbra; Mestre e Doutorando em Ciências Jurídico-civilísticas pela Universidade de Coimbra. Secretário Científico do Centro de Direito Biomédico; Membro do Conselho Nacional de Medicina Legal. 1 Numa análise muito resumida, podemos afirmar que os principais deveres dos médicos face aos doentes são: (1) respeitar as leges artis e assegurar cuidados de saúde de qualidade; (2) informar o paciente e obter o seu consentimento livre e esclarecido; (3) guardar sigilo e salvaguardar a protecção de dados pessoais e (4) fazer uma boa documentação clínica. 2 Na formulação do BGH (Supremo Tribunal Federal alemão), o dever de documentação tem origem delitual e contratual e é um requisito fundamental para a segurança do paciente no tratamento. Destarte, o dever de documentar impõe-se mesmo que entre o médico e o paciente não se tenha estabelecido uma relação contratual. REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 02-revista_07.p65 25 29/10/2007, 21:43 25 Dever da Documentação, Acesso ao Processo Clínico e sua Propriedade. Uma Perspectiva Européia 26 A obrigação de levar a cabo um perfeito registo da história clínica resulta também de um dever de cuidado do médico, de uma obrigação inserta nas leges artis (Therapiepflicht). Para que os cuidados de saúde sejam zelosos e organizados, impõe-se que o médico proceda ao registo e à documentação das consultas, exames, diagnósticos e tratamentos efectuados, sob pena de incorrer em responsabilidade civil. As principais finalidades do dever de documentação consistem em garantir a segurança do tratamento, a obtenção da prova, o controlo dos custos de saúde e a facilidade de fundamentação dos honorários (LAUFS; UHLENBRUCK, 2002, p.481). Relativamente à segurança do tratamento, deve-se ter em conta que hoje se pratica uma medicina de equipa, com elevada tecnologia, pelo que o adequado registo das informações médicas permite evitar acidentes graves. Pense-se no caso dramático da amputação de um membro saudável devido a má comunicação entre o médico e o cirurgião. O direito a uma segunda consulta ou a uma segunda opinião também contribui para a maior exigência relativamente ao dever de documentação. A importância do processo clínico ou prontuário como meio de prova vem-se afirmando cada vez mais, seja nas acções de negligência médica, seja nas acções de consentimento informado. Nas primeiras, é sabido que só a reconstituição do iter do tratamento permite averiguar da culpa do médico; quanto às segundas, cada vez mais a doutrina apela a uma boa documentação da informação e do consentimento em detrimento do burocratizado e estandardizado formulário para consentimento (PEREIRA DIAS, 2004, p. 187, s. E 525 e s.). Quanto ao controlo dos custos de saúde, um adequado registo da história clínica pode permitir grandes poupanças. Na verdade, uma das principais causas do exponencial aumento dos custos de saúde é a multiplicação de exames supérfluos e repetidos sobre o mesmo paciente. Finalmente, a existência de uma boa documentação clínica facilita a fundamentação dos honorários (Rechenschaftslegung). A facilidade probatória e o facto de a documentação constituir um instrumento para cobrança de honorários são finalidades criticadas por alguma doutrina neste contexto; todavia, parece que é razoável e pragmático aceitar que estas são efectivamente finalidades importantes e legítimas do dever de documentação. Este dever tanto favorece o médico como o paciente e permite uma melhor execução do contrato (LAUFS; UHLENBRUCK, 2002, p.485). Finalmente, pode-se sintetizar os grandes objectivos da existência do processo clínico: (1) melhorar os cuidados de saúde prestados ao doente; (2) partilhar informação clínica entre os profissionais de saúde; (3) diminuir o erro; (4) melhorar a forma como a informação é obtida, registada e disponibilizada; (5) garantir a mobilidade e acesso remoto; (6) melhorar o suporte à decisão clínica; (7) acesso fácil a standards terapêuticos; e, por último, (8) a racionalização de recursos. 2 O DEVER DE DOCUMENTAÇÃO NO DIREITO PORTUGUÊS No direito português, Guilherme de Oliveira defende que está previsto o dever jurídico de documentação. Este dever encontra-se vertido no art. 77º, n.º 1 Código Deontológico da Ordem dos Médicos, que tem a seguinte redacção: O médico, seja qual for o Estatuto a que submeta a sua acção profissional, tem o direito e o dever de registar cuidadosamente os resultados que considere relevantes das observações clínicas dos doentes a seu cargo, conservando-as ao abrigo de qualquer indiscrição, de acordo com as normas do segredo profissional. REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 02-revista_07.p65 26 29/10/2007, 21:43 André Gonçalo Dias Pereira Essa norma deontológica tem a virtualidade heurística de densificar o conteúdo normativo do art. 7º, al. e) do Decreto-Lei n.º 373/79, de 8 de Setembro (Estatuto do Médico), segundo o qual o médico tem o dever de “contribuir com a criação e manutenção de boas condições técnicas e humanas de trabalho para a eficácia dos serviços” (OLIVEIRA, Guilherme de. SD, p. 36). Outra base legal encontra-se nos artigos 573º e 575º CC, que regulam a obrigação de “informação” e de “apresentação de documentos” (FIGUEIREDO DIAS; SINDE MONTEIRO, 1984, p.42). A afirmação desse dever de documentação tem também influência na distribuição da carga probatória (VÁZQUEZ FERREYRA; TALLONE. 2000).3 O médico fica prejudicado no plano probatório não apenas se subtrair ou alterar documentos que têm importância para esclarecer a controvérsia (art. 344.º, n.º2 do Código Civil), mas também se a redacção dos actos médicos for inexacta ou incompleta. De qualquer modo, convém reiterar que o processo clínico não constitui sempre uma verdade irrefutável e absoluta, pelo que deve ser avaliada conjuntamente com os restantes elementos probatórios presentes no processo (GALÁN CORTÉS, 2001, p. 152). Efectivamente, entende-se que o processo clínico pode ter uma importância decisiva num processo de responsabilidade médica. Entre nós, o art. 344º, n.º 2, CC estabelece a inversão do ónus da prova quando a parte contrária tiver culposamente tornado impossível a prova à parte onerada.4 O médico deve ser o primeiro a ter interesse em ser zeloso na conservação e no adequado registo da ficha clínica (TEIXEIRA DE SOUSA, 1996, p. 131). Em suma, o processo ou ficha clínica é de grande importância na boa relação médico–paciente e, simultaneamente, pode ajudar a controlar os ‘galopantes’ custos de saúde. Nesse sentido, as legislações modernas5 exigem que o médico registe as consultas e organize um processo onde deve incluir, entre outros, os exames, as análises, os apontamentos das consultas, formulários do consentimento, etc (DUPUY, 2002, p. 15 s.). 3 O CONTEÚDO DO DEVER DE DOCUMENTAÇÃO 27 O adequado cumprimento dever de documentação pressupõe o registo de vários itens, como, por exemplo: a anamnese, o diagnóstico, a terapia, os métodos de diagnóstico utilizados, o doseamento da medicação, o dever de informar para o consentimento, o relatório das operações; os acontecimentos inesperados, a mudança de médico ou de cirurgião, a passagem pelos cuidados intensivos, o abandono do hospital contra a indicação médica, etc.. A forma da documentação também deve ser objecto do maior cuidado. Os hospitais vão uniformizando e sistematizando os prontuários, o que é salutar enquanto demonstra o rigor e o cuidado nesta tarefa; por outro lado, nos tempos modernos, assume especial atenção a documentação electrónica. 3 A Cámara Civil y Comercial de Junín (Argentina), na decisão de 15-12-1994, decidiu que “constitui uma presunção contra o profissional a inexistência da história clínica ou a existência de irregularidades na mesma”. A falta do processo clínico priva de um elemento valioso para a prova da responsabilidade médica e deve prejudicar a quem era exigível como dever de colaboração na difícil actividade probatória e esclarecimento dos factos. Através da prova por presunções, uma história clínica insuficiente constitui mais um indício que deverá ser tomado em consideração pelo tribunal na hora de analisar a conduta dos profissionais. Mas a necessária relação causal não pode deduzir-se apenas da existência de uma história clínica irregular.. 4 Artigo 344.º, n.º2 do Código Civil – (Inversão do ónus da prova): “Há também inversão do ónus da prova, quando a parte contrária tiver culposamente tornado impossível a prova ao onerado, sem prejuízo das sanções que a lei de processo mande especialmente aplicar à desobediência ou às falsas declarações.” 5 No plano histórico, encontram-se os primeiros documentos, com informações relativas aos pacientes, nos hospitais de Bagdad nos séculos IX, X e XI da nossa era. REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 02-revista_07.p65 27 29/10/2007, 21:43 Dever da Documentação, Acesso ao Processo Clínico e sua Propriedade. Uma Perspectiva Européia O registo da história clínica deve ser feito em devido tempo. Deve verificar-se uma relação imediata com o tratamento ou com a intervenção médica. Com efeito, se a documentação for realizada semanas ou meses depois da intervenção, pode-se defender, no caso de um processo de responsabilidade médica, uma inversão do ónus da prova, tal como nos casos de ausência ou insuficiente documentação. A jurisprudência alemã entende que há uma relação de proporcionalidade entre a gravidade da intervenção e a exigência de documentar com brevidade. Assim, por exemplo, uma cirurgia de alto risco deve ser objecto de um registo minucioso e imediato; intervenções de rotina podem ser registadas passado algum tempo (LAUFS; UHLENBRUCK, 2002, p. 487). 4 O ACESSO AO PROCESSO CLÍNICO 28 O processo clínico pode ser um instrumento importante na relação médico– paciente e também como meio de prova da informação fornecida e do consentimento obtido.6 É mister considerar apenas a comunicação do processo clínico ao paciente (MONIZ, 1997). O acesso à ficha clínica, por parte do paciente, pode ter um regime diferente consoante se esteja numa fase extra-processual, pré-processual ou já em fase processual. A doutrina alemã distingue: a) a fase extra-processual, em que a consulta pode estar sujeita a algumas limitações temporais e objectivas (para protecção do interesse do médico em não ver devassadas as suas anotações pessoais e de terceiras pessoas); b) a fase préprocessual, em que o paciente pretende preparar uma acção de honorários ou de responsabilidade civil (havendo também limitações para protecção do médico e de terceiros, bem como por razões terapêuticas, sendo admissível limitar o aceso a paciente com problemas psiquiátricos que seriam gravemente prejudicados com o conhecimento integral do seu ficheiro clínico, devendo este ser acompanhado e aconselhado por um médico); c) o direito de consulta durante um litígio em tribunal, em que a ficha clínica assume uma importância decisiva na clarificação dos factos, podendo mesmo ser requerida ex officio pelo próprio tribunal. Quando seja entregue,7 a ficha clínica passa a ser considerada como documento integrante do processo (Teil der Prozessakte) e não há razões de índole terapêutica que justifiquem uma limitação ao direito de consulta do processo (LAUFS; UHLENBRUCK, 2002, p. 491). Podemos acrescentar, à face do direito português, que, em caso de litígio, o médico tem o dever de cooperação para a descoberta da verdade (art. 519º, n.º1 CPC), “o qual impõe a obrigação de facultar à contraparte e ao tribunal os documentos que estão em seu poder. Quando pretenda fazer uso desses documentos, o paciente requererá que o médico demandado seja notificado para os apresentar dentro do prazo que o tribunal designar (art. 528º, n.º1 CPC); se o médico se recusar a fazê-lo, o tribunal apreciará livremente a sua conduta para efeitos probatórios (art. 529º CPC), isto é, poderá, se assim o entender, dar como provados os factos que o paciente se propunha demonstrar através desses documentos” (TEIXEIRA DE SOUSA , SD, p. 134 e FIGUEIREDO DIAS/ SINDE MONTEIRO, SD, p. 28 e 32). Porém, terceiros (mesmo com interesses patrimoniais directos) têm direito de acesso ao processo apenas na medida em que os seus interesses tenham um valor superior ao direito de autodeterminação informativa do paciente. Neste trabalho será apresentado apenas um breve quadro da legislação de alguns países europeus no que respeita ao acesso ao dossier médico numa situação extra-judicial. 6 A Declaração dos Direitos dos Pacientes prescreve que “à saída de um estabelecimento de tratamento, os pacientes deveriam poder, a seu pedido, obter um resumo escrito do diagnóstico, tratamento e cuidados que a ele dizem respeito” (2.9.) 7 Contudo, este é um processo complexo em que deve ser ouvida a Ordem dos Médicos, nos termos do art. 69.º e 73.º do Código Deontológico. REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 02-revista_07.p65 28 29/10/2007, 21:43 André Gonçalo Dias Pereira 4.1 O Direito de Consulta do Processo Clínico Nesta fase o paciente não está em litígio nem pretende intentar uma acção contra o facultativo. Os fundamentos do direito de consulta encontram-se no contrato médico e na protecção dos direitos de personalidade. O doente deve apresentar uma justificação para consultar o processo, porém essa justificativa não carece de revestir um especial interesse de protecção. 4.1.1 Posição Tradicional: O Acesso Indirecto A maior parte das ordens jurídicas nos países latinos admitiam o acesso à história clínica, mas apenas através de um médico nomeado pelo paciente. Era o chamado sistema do acesso indirecto. Em Portugal, mantém-se o acesso limitado, na medida em que só pode ser efectuado por intermédio de um médico. Consagra-se assim o acesso mediato ou indirecto à ficha clínica. Esse direito de acesso indirecto à informação clínica, encontra-se previsto no art. 11º, n.º 5 da Lei n.º 67/98, de 26 de Outubro (Lei de Protecção dos Dados Pessoais) e na Lei n.º 94/99, de 16 de Julho (Lei de Acesso aos Documentos Administrativos [LADA]). A Lei n.º 12/2005, de 26 de Janeiro, Informação genética pessoal e informação de saúde) mantém esse regime, prescrevendo o artigo 3.º, n.º3: “O acesso à informação de saúde por parte do seu titular, ou de terceiros com o seu consentimento, é feito através de médico, com habilitação própria, escolhido pelo titular da informação.” Esse sistema não é contrário ao art. 10º, n.º 3, da Convenção dos Direitos do Homem e a Biomedicina (DIÁRIO DA REPUBLICA, 2001), já que esta Convenção confere a possibilidade de os Estados parte adoptarem este modelo mais paternalista, “a título excepcional e no interesse do paciente.” Essa mediação tem em vista proteger o paciente de informações que poderiam afectar gravemente a sua saúde. Este regime encontra evidente paralelismo com o privilégio terapêutico, pelo que, após a Reforma do Código Penal de 1995 deveremos ser muito restritivos na limitação da informação ao doente. Assim, esta limitação só se justifica “se isso implicar a comunicação de circunstâncias que, a serem conhecidas pelo paciente, poriam em perigo a sua vida ou seriam susceptíveis de lhe causar grave dano à saúde, física o psíquica.” Com efeito, o art. 3.º, n.º 2 da Lei 12/2005, prevê que: “O titular da informação de saúde tem o direito de, querendo, tomar conhecimento de todo o processo clínico que lhe diga respeito, salvo circunstâncias excepcionais devidamente justificadas e em que seja inequivocamente demonstrado que isso lhe possa ser prejudicial, ou de o fazer comunicar a quem seja por si indicado.” Na esteira do direito alemão, porém, no acesso à documentação deve distinguir-se entre “os elementos que contêm dados objectivos e aqueles que implicam valorações subjectivas, bem como a notícia de dados fornecidos por terceiros (cônjuge ou parentes), em relação aos quais não existe o direito de apresentação” (SINDE MONTEIRO, 1990, p. 427).8 Pelo que o médico que proceda à transmissão da informação ao paciente deve ter em conta os interesses do médico e de terceiros.9 8 No mesmo sentido, cfr. as leis de Espanha e da Bélgica. 9 Adiante este ponto será desenvolvido. REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 02-revista_07.p65 29 29/10/2007, 21:43 29 Dever da Documentação, Acesso ao Processo Clínico e sua Propriedade. Uma Perspectiva Européia 4.1.2 Nova Orientação: O Acesso Directo 30 As recentes leis de direitos dos pacientes, nos países latinos, têm vindo a admitir o acesso de forma mais liberal. Em Espanha, a Ley 41/2002, de 14 de Novembro,10 regula o acesso à história clínica, consagrando o direito de acesso livre e directo e o direito de obter cópia destes dados. Salvaguardando, porém, os direitos de terceiras pessoas à confidencialidade dos dados, o interesse terapêutico do paciente e o direito dos profissionais à reserva das suas anotações subjectivas. 11 A lei francesa de 4 de Março de 200212 confere aos pacientes o direito de aceder às informações médicas contidas no seu processo clínico. Mais concretamente, essa lei – quebrando a tradição gaulesa – consagra a possibilidade para o paciente de aceder directamente à ficha clínica que lhe diz respeito. Anteriormente, o doente só podia tomar conhecimento dessas informações através do intermédio de um médico. A consagração do direito de acesso directo ao processo clínico é a resposta do legislador às reivindicações das associações de utentes. Contudo, certamente assistiremos a alguma resistência por parte de alguns médicos. Para além de verem a sua ‘privacidade’ profissional devassada por esta lei, os médicos temem que o paciente fique mais exposto aos riscos de pressão dos empregadores e seguradores no sentido de conhecerem os seus prontuários (DUPUY, 2002, p.6).13 O legislador salvaguardou, porém, certas hipóteses para as quais este direito de acesso será indirecto. Assim acontece no caso de uma hospitalização compulsiva. Esta limitação justifica-se pela necessidade para o médico de dispor de um poder de controlo da difusão de informação sobre a patologia ao seu paciente. Por outro lado, o direito de consulta do processo relativo a um menor não emancipado é exercido pelos titulares da autoridade parental. Contudo, também pode ter lugar a pedido do menor por intermédio do médico. O menor que quiser manter segredo de determinado tratamento pode-se opor a que o médico comunique ao titular da autoridade parental as informações relativas a essa intervenção. O médico deve fazer menção escrita dessa oposição (DUPUY, 2002, p. 8). Também na Bélgica se aceita, actualmente, o acesso directo ao seu processo. O art. 9, §2 da Lei Belga sobre Direitos dos Pacientes de 2002,14 reconhece o direito de consultar a história clínica, mas considera que as anotações pessoais do profissional de saúde e os dados relativos a terceiros não são abrangidos por esse direito de consulta. 10 Ley 41/2002, de 14 de noviembre, básica reguladora de la autonomía del paciente y de derechos y obligaciones en materia de información y documentación clínica. 11 Artículo 18. Derechos de acceso a la historia clínica.: “1. El paciente tiene el derecho de acceso, con las reservas señaladas en el apartado 3 de este artículo, a la documentación de la historia clínica y a obtener copia de los datos que figuran en ella. Los centros sanitarios regularán el procedimiento que garantice la observancia de estos derechos. 2. El derecho de acceso del paciente a la historia clínica puede ejercerse también por representación debidamente acreditada. 3. El derecho al acceso del paciente a la documentación de la historia clínica no puede ejercitarse en perjuicio del derecho de terceras personas a la confidencialidad de los datos que constan en ella recogidos en interés terapéutico del paciente, ni en perjuicio del derecho de los profesionales participantes en su elaboración, los cuales pueden oponer al derecho de acceso la reserva de sus anotaciones subjetivas. 4. clínica de los pacientes fallecidos a las personas vinculadas a él, por razones familiares o de hecho, salvo que el fallecido lo hubiese prohibido expresamente y así se acredite. En cualquier caso el acceso de un tercero a la historia clínica motivado por un riesgo para su salud se limitará a los datos pertinentes. No se facilitará información que afecte a la intimidad del fallecido ni a las anotaciones subjetivas de los profesionales, ni que perjudique a terceros.” 12 Loi no 2002-303 du 4 mars 2002 relative aux droits des malades et à la qualité du système de santé. 13 Todavia, o art. 45 do Code de Déontologie médicale dispõe que “independentemente do dossier clínico previsto na lei, o médico deve ter para cada paciente uma parte de observações que lhe é pessoal; essa ficha é confidencial e inclui os elementos actualizados, necessários às decisões diagnósticas e terapêuticas”. Alguns autores entendem que essas fichas também são comunicáveis se o paciente o solicitar. Outros entendem que tal medida apenas iria sobrecarregar o processo de informação médica. Que o doente possa, se quiser, aceder à informação médica que lhe diz respeito, parece adequado, mas seria mais judicioso ater-se ao espírito da norma do Código Deontológico, isto é à sagacidade do médico.Jean-Marie Clément, receia que se caminhe para uma formalização excessiva das relações médico–paciente quando nesta relação deveria presidir a confiança. “Le droit des usagers devient un droit des consommateurs de soins et à ce titre, on verse d’une confiance à une défiance, avec toutes les conséquences d’une telle modification”. 14 Loi relative aux droits du patient du 22 août 2002. REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 02-revista_07.p65 30 29/10/2007, 21:43 André Gonçalo Dias Pereira Nos países do norte da Europa, o acesso directo ao processo clínico é já tradicional. Nos Países Baixos (segundo o art. 456 BWB – Código Civil holandês),15 odireito de acesso à totalidade do processo é reconhecido ao paciente, exceptuando as informações susceptíveis de lesar a vida privada de terceiras pessoas (CLÉMENT, JM. 2002, p. 16). Na Dinamarca, o direito de acesso ao processo clínico abrange todas as informações, incluindo as notas pessoais ou, por exemplo, os comentários a uma radiografia, mas cada pedido é examinado e a consulta pode ser directa ou com a ajuda de um médico. Na Alemanha, a lei autoriza o acesso directo aos “dados objectivos” do processo (resultados de exames, radiografias, troca de correspondência entre médicos) mas restringe à autorização dos médicos o acesso aos elementos subjectivos (anotações pessoais, por exemplo). Assim, o acesso ao “dossier” pode estar sujeita a algumas limitações temporais e objectivas (para protecção do interesse do médico em não ver davassadas as suas anotações pessoais e de terceiras pessoas). O BGH (Bundesgerischtshof) – Tribunal Federal alemão – limita o direito de acesso aos resultados de índole objectiva, científica e às referências a tratamentos, especialmente no domínio da medicação e relatórios sobre cirurgias. Está vedado o direito de acesso a valorações subjectivas do médico, como a reprodução de impressões pessoais sobre o paciente ou sobre os seus familiares. O médico e/ou o hospital/ clínica têm o direito de esconder essas observações, desde que seja notório que isso se verificou (LAUFS; UHLENBRUCK, 2002, p.489). Também no Reino Unido se consagra o direito de acesso do paciente à informação de saúde. Todavia, a lei mantém uma excepção, na medida em que o acesso pode ser condicionado caso a informação possa causar um grave dano ao paciente (‘likely to cause serious harm’) (MASON & Mc CALL SMITH, 1999, p. 210). Podemos concluir que a evolução no direito comparado vai no sentido de conceder ao paciente o direito de acesso directo ou imediato ao processo clínico (Luis MARTINÉZCALCERRADA; LORENZO, 2001).16 Vejamos o seguinte quadro comparativo: 31 15 Nos Países Baixos, o contrato médico está regulado no Código Civil de 1992, no livro 7 referente aos contratos em especial. Veja-se Ewoud HONDIUS/ Annet van HOOFT, “The New Dutch Law on Medical Services”, Netherlands International Law Review, XLIII, 1-17, 1996. Sobre o direito holandês, cfr., tb., Loes MARKENSTEIN, “Country Report The Netherlands”, in Jochen TAUPITZ (Ed.), Regulations of Civil Law to Safeguard the Autonomy of The Patient…, pp. 741 e ss. 16 Sobre esta matéria, na jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, cfr. Decisões de 28-1-2000; 7-12-99; 96-1998; 27-8-1997; 25-2-1997. REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 02-revista_07.p65 31 29/10/2007, 21:43 Dever da Documentação, Acesso ao Processo Clínico e sua Propriedade. Uma Perspectiva Européia 5 A QUESTÃO DA PROPRIEDADE DO PROCESSO CLÍNICO 32 A questão da propriedade da ficha clínica dá origem a freqüentes dificuldades terminológicas e confusões conceptuais. O termo “propriedade” é aqui usado em sentido amplo, querendo significar titularidade ou domínio sobre a informação contida no processo. Normalmente a lei não se pronuncia claramente sobre essa questão. Por isso, a doutrina costuma analisar este problema tendo em conta os seguintes aspectos: a quem incumbe a conservação do “dossier”? Tem o doente direito de acesso directo ao processo clínico (DUPUY, 2002, p. 192)? Tem o médico direito de propriedade intelectual sobre os registos clínicos (MASON & Mc CALL SMITH, 1999, p. 211)? No direito francês, a questão da propriedade do dossier é muito controversa. Para Dupuy, (2002, p. 9) a unidade de saúde está obrigada ao dever de conservação, o que lhe confere uma responsabilidade ligada à sua obrigação de arquivamento em boas condições e de comunicação ao paciente quando este o desejar. Mas este dever não é assimilável às prerrogativas (próprias do direito de propriedade) de fructus, de usus e de abusus sobre o “dossier”. O médico, por seu turno, tem o direito de propriedade intelectual de uma parte variável do seu conteúdo e nomeadamente das suas notas pessoais; contudo não é considerado depositário do “dossier”. Por outro lado, o paciente não tinha, tradicionalmente direito de acesso directo ao “dossier”, o que constituía uma limitação importante. Actualmente, segundo Olivier Dupuy, (2002) e à luz da Lei francesa de 4 de Março de 2002, que cria a regra de acesso livre e directo do paciente ao “dossier médical”, o paciente deve ser considerado o proprietário do processo clínico. Em sentido contrário, a Lei da Galiza,17 que admite o acesso directo ao processo clínico, diz claramente que a Administração de Saúde é proprietária da “história clínica”18 . Assim, ao contrário do que defende Dupuy, não parece que se possa extrapolar do regime de acesso à história clínica a resposta para a questão da propriedade.19 Em Portugal, onde o acesso é indirecto, este argumento serviria para afirmar que o médico ou o Hospital são os proprietários. Neste sentido, aliás, o art. 77º, n.º 2 do Código Deontológico da Ordem dos Médicos afirma que “a memória escrita do médico pertence-lhe”.20 Na opinião do Conselho Regional do Sul da Ordem dos Médicos, “a informação constante do ficheiro clínico é um direito do doente que em qualquer momento pode solicitar que lhe seja fornecida ou enviada a médico à sua escolha. O ficheiro, em si, é propriedade do médico sendo a única 17 A Comunidade Autónoma da Galiza regula esta matéria na Ley 3/2001, de 28 de mayo, com as modificações introducidas pela Ley 3/2005, de 7 de marzo, de modificación de la Ley 3/2001, de 28 de mayo, reguladora del consentimiento informado y de la historia clínica de los pacientes. Estas modificações visam adaptar a lei da Comunidade Autónoma à legislação nacional do Reino de Espanha: Ley 41/2002, de 14 de noviembre, básica reguladora de la autonomía del paciente y de derechos y obligaciones en materia de información y documentación clínica. 18 O artigo 19 prescreve: “1. El paciente tiene el derecho de acceso a la documentación de la historia clínica y a obtener copia de los datos que figuran en la misma. Los centros sanitarios regularán el procedimiento que garantice la observancia de estos derechos. Este derecho de acceso podrá ejercitarse por representación debidamente acreditada. 2. En los supuestos de procedimientos administrativos de exigencia de responsabilidad patrimonial o en las denuncias previas a la formalización de un litigio sobre la asistencia sanitaria se permitirá que el paciente tenga acceso directo a la historia clínica, en la forma y con los requisitos que se regulen legal o reglamentariamente. (…) 4. El derecho al acceso del paciente a la documentación de la historia clínica no puede ejercitarse en perjuicio del derecho de terceras personas a la confidencialidad de los datos que constan en ella recogidos en interés terapéutico del paciente, ni en perjuicio del derecho de los profesionales participantes en su elaboración, los cuales pueden oponer al derecho de acceso la reserva de sus anotaciones subjetivas. 19 Afirma o artigo 15 relativo à “Propiedad y Custodia:” “1. Las historias clínicas son documentos confidenciales propiedad de la Administración sanitaria o entidad titular del centro sanitario, cuando el medico trabaje por cuenta e bajo la dependencia de una institución sanitaria. En caso contrario, la propiedad corresponde al medico que realiza la atención sanitaria.” 2. La entidad o el facultativo propietario es responsable de la custodia de las historias clínicas y deberá adoptar todas las medidas precisas para garantizar la confidencialidad de los datos o de la información contenida en ellas. (…) 20 Artigo 77.º (Processo ou Ficha clínica e exames complementares): “1. O Médico, seja qual for o Estatuto a que se submeta a sua acção profissional, tem o direito e o dever de registar cuidadosamente os resultados que considere relevantes das observações clínicas dos doentes a seu cargo, conservando-as ao abrigo de qualquer indiscrição, de acordo com as normas do segredo profissional. 2. A ficha clínica do doente, que constitui a memória escrita do Médico, pertence a este e não àquele, sem prejuízo do disposto nos Artigos 69.º e 80.º 3. Os exames complementares de diagnóstico e terapêutica, que constituem a parte objectiva do processo do doente, poderão ser-lhe facultados quando este os solicite, aceitando-se no entanto que o material a fornecer seja constituído por cópias correspondentes aos elementos constantes do Processo Clínico.” REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 02-revista_07.p65 32 29/10/2007, 21:43 André Gonçalo Dias Pereira forma de preservar a liberdade de transcrição e o registo de elementos de uso pessoal, e que o médico pretende salvaguardar de qualquer exposição de outra pessoa./ Nas organizações complexas, públicas ou privadas, em que vários médicos registam no mesmo processo clínico, este é da responsabilidade do Director Clínico da instituição nos termos do Código Deontológico em vigor.” Todavia, os novos ventos que sopram na medicina poderão vir a impor um reequacionamento do problema. A informação genética poderá conduzir a uma nova perspectiva da propriedade da informação de saúde e do processo clínico. Com efeito, um novo argumento para a discussão prende-se com o facto de, actualmente, a nova medicina preditiva ou predizente impor a necessidade de tutela reforçada dos dados de saúde, em especial a informação genética, já que a informação de saúde se afirma como um objecto de exploração comercial. Essa nova perspectiva pode justificar o regime inovador previsto na Lei n.º12/2005, de 26 de Janeiro (Informação genética pessoal e informação de saúde), que no seu artigo 3º, n.º 1 dispõe: A informação de saúde, incluindo os dados clínicos registados, resultados de análises e outros exames de subsidiários, intervenções e diagnósticos, é propriedade da pessoa, sendo as unidades do sistema de saúde os depositários da informação, a qual não pode ser utilizada para outros fins que não os da prestação de cuidados e investigação em saúde e outros estabelecidos em lei. Parece paradoxal que uma lei que mantém, como vimos, o regime conservador de acesso indirecto ao processo clínico afirme peremptoriamente que o utente é proprietário da informação. Assim, a ligação que DUPUY faz entre acesso directo e propriedade também não se verifica aqui. Ademais, importa ter em conta a subtileza da Lei 12/2005: não se afirma que o paciente é proprietário do dossier, qua tale, mas sim da informação de saúde. Na Sociedade da Informação em que se vive, a informação de saúde, em especial a informação genética são um valor mercantil importante, pelo que as ameaças à autodeterminação informacional se fazem sentir com particular importância. Na nova economia – dominada pelo investimento na genética, na genómica, na seqüenciação do genoma humano e suas aplicações médicas – as informações de saúde podem converter-se num “produto” apetecível (FUKUYAMA, 2002). Basta pensar nas bases de dados genéticos da Islândia, da Estónia ou de Taiwan, ou nos problemas levantados pelo já clássico caso Moore, decidido pelo Supremo Tribunal da Califórnia.21 Assim sendo, compreende-se que, partindo da distinção entre processo clínico e informação de saúde, se defenda que esta última é propriedade do paciente(MASON & Mc CALL SMITH, p. 211).22 Trata-se de uma opção legislativa controversa.23 Por outro lado, o legislador parece não ter tomado em consideração a necessidade de conciliar os interesses do paciente com os interesses do médico e de terceiros. Com efeito, a lei apenas admite que se não apresente todo o processo clínico em “circunstâncias excepcionais devidamente justificadas e em que seja inequivocamente demonstrado que isso lhe possa ser prejudicial.”24 21 Moore v. Regents of the University of California, 793 P.2d 479 (Cal. 1990). 22 Fica assim comprometido o entendimento tradicional segundo o qual o médico seria titular do direito de propriedade intelectual sobre as informações registadas. “…the ownership of the contained intellectual property – ie the copyright – is held by the person who has created the notes or his employer, an not by the subject of those notes.” 23 O Código Deontológico, no art. 77.º, n.º 3 já distinguia a informação objectiva relativa ao paciente, prevendo que: “Os exames complementares de diagnóstico e terapêutica, que constituem a parte objectiva do processo do doente, poderão serIhe facultados quando este os solicite, aceitando-se no entanto que o material a fornecer seja constituído por cópias correspondentes aos elementos constantes do Processo Clínico.” 24 Segundo o art. 3.º, n.º2: “O titular da informação de saúde tem o direito de, querendo, tomar conhecimento de todo o processo clínico que lhe diga respeito, salvo circunstâncias excepcionais devidamente justificadas e em que seja inequivocamente demonstrado que isso lhe possa ser prejudicial, ou de o fazer comunicar a quem seja por si indicado. REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 02-revista_07.p65 33 29/10/2007, 21:43 33 Dever da Documentação, Acesso ao Processo Clínico e sua Propriedade. Uma Perspectiva Européia Não parece, pois, ter em conta os interesses do médico e de terceiros, tal como acontece, por exemplo, na lei belga, que prescreve (art. 9, §2): “as anotações pessoais do profissional de saúde e os danos relativos a terceiros não entram no quadro do direito de consulta.” 25 Poderemos interpretar extensivamente essa excepção de forma a respeitar os interesses do médico de manter reserva sobre as suas anotações pessoais e a confidencialidade de informações de saúde de terceiras pessoas? Se considerarmos que a pessoa tem o “direito de propriedade” sobre a sua informação de saúde – “incluindo os dados clínicos registados, resultados de análises e outros exames subsidiários, intervenções e diagnósticos” – como prescreve o n.º1 do art. 3.º, parece razoável afirmar que neste conceito não se incluem informações de saúde relativas a terceiros, nem as anotações pessoais do médico. Esta interpretação faz jus à necessidade de “concordância prática” entre valores constitucionais conflituantes26 e pode ser defendida à luz do art. 18.º, n.º2 da Constituição da República,27 na medida em que só assim se respeita o princípio da proporcionalidade e o respeito pelo “núcleo essencial” (CANOTILHO, 192, p. 628) do direito à intimidade da vida privada e familiar de terceiros (art. 26.º, nº1 CRP) e do próprio médico (LAUFS/ UHLENBRUCK, 2002, p. 491). 6 CONCLUSÃO 34 O cabal cumprimento dever de documentação constitui um dos pilares essenciais nos quais assenta a relação médico-paciente e encontra-se consagrado no direito português, nomeadamente no art. 77.º, n.º1, do Código Deontológico da Ordem dos Médicos. Por toda a Europa, incluindo nos países latinos, vem-se confirmando o direito de acesso directo do paciente ao processo clínico, abandonando-se um certo paternalismo médico que ainda vigora em Portugal. A questão da propriedade tem vindo a ser evitada pela maioria dos legisladores, mas alguns vão-se pronunciando (por exemplo, na Galiza e em Portugal) em sentidos divergentes. A doutrina deve tomar em consideração os dados da nova economia e da nova medicina, intimamente influenciados pelos avanços na genética, na genómica e na farmacogenética e compreender que a tese da propriedade do paciente sobre a informação médica talvez seja a que melhor protege o cidadão perante as ameaças que se vão fazendo sentir ao seu direito à autodeterminação informacional. Finalmente, há que se a avançar com uma interpretação do n.º 2 do art. 3.º da Lei 12/2005, de 26 de Janeiro, que visa conciliar os interesses e valores constitucionais em conflito, garantindo a protecção do direito à intimidade da vida privada e familiar de terceiros e do próprio médico. REFERÊNCIAS ALMEIDA, Carlos Ferreira de. “Os Contratos Civis de Prestação de Serviço Médico”. In: Direito da Saúde e da Bioética. Lisboa: AAFDL, 1996. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. Coimbra: Almedina, 1992. 25 Cfr. também o art. 18.3 lei espanhola de direitos dos pacientes (Ley 41/2002, de 14 de Novembro). 26 Ou, numa perspectiva juscivilística, a colisão de direitos que é regulada no art. 335.º do Código Civil: “1. Havendo colisão de direitos iguais ou da mesma espécie, devem os titulares ceder na medida do necessário para que todos produzam igualmente o seu efeito, sem maior detrimento para qualquer das partes.” 27 A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos. REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 02-revista_07.p65 34 29/10/2007, 21:43 André Gonçalo Dias Pereira CLÉMENT, Jean-Marie Droits des Malades, Bordeaux: Les Études Hospitalières, 2002. COMISSÃO NACIONAL DE PROTECÇÃO DE DADOS, Deliberação n. 51/2001: <http:// www.cnpd.pt/bin/decisoes/2001/htm/del/del051-01.htm>. DIAS, Jorge Figueiredo; MONTEIRO, Jorge Sinde. Responsabilidade Médica em Portugal, Lisboa: Ministério da Justiça, 1984. DUPUY, Olivier. Le dossier Médical. Bordeaux:Les Études Hospitalières, 2002. ______ . L’information médicale, information du patient et information sur le patient. Bordeaux: Les Études Hospitalières, 2002. FUKUYAMA, Francis. Our Post-Human Future. 2002. GALÁN CORTÉS, Júlio César. Responsabilidad Médica y Consentimiento Informado. Madrid: Civitas, 2001. HONDIUS, Ewoud; HOOFT, Annet van. «The New Dutch Law on Medical Services». Netherlands International Law Review. XLIII, 1996, 1-17. LAUFS, Adolf; UHLENBRUCK, Wilhelm. Handbuch des Arztrechts, München: Beck. 2002. MARKENSTEIN, Loes. “Country Report The Netherlands”. In: TAUPITZ, Jochen (Ed.). Regulations of Civil Law to Safeguard the Autonomy of The Patient at the end of their life an international documentation. Berlin [etc.]: Springer, 2000. MARTINÉZ-CALCERRADA, Luís; LORENZO, Ricardo de. Tratado de Derecho Sanitário. Tomo II, Madrid: Colex, 2001. MASON & Mc CALL SMITH. Law and Medical Ethics. 5t. ed. London: Edimburgh: Dublin: Butterworths, 1999. MONIZ, Helena. “Notas sobre a Protecção de Dados pessoais Perante a Informática (O Caso Especial dos dados Pessoais Relativos à Saúde)”. Revista Portuguesa de Ciência Criminal. 7, 1997. MONTEIRO, Jorge Sinde. Responsabilidade Civil por Conselhos, Informações ou Recomendações. Coimbra: Almedina, 1990. OLIVEIRA, Guilherme de. “Auto-regulação profissional dos médicos”. Temas de Direito da Medicina. 2. ed.Coimbra: Coimbra Editora, 2005. PEREIRA, André Gonçalo Dias. “Formulários para prestação do Consentimento: uma proposta para o seu controlo jurídico”. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Católica de Petrópolis. 2001, p. 65-90. ______ . O Consentimento Informado na Relação Médico-Paciente. Estudo de Direito Civil. Coimbra: Coimbra Editora, 2004. SOUSA, Miguel Teixeira de. “Sobre o ónus da Prova nas Acções de Responsabilidade Civil Médica”. Direito da Saúde e Bioética. Lisboa: AAFDL, 1996. VÁZQUEZ FERREYRA, Roberto; TALLONE, Federico. Derecho Médico y mala praxis, Rosário: Juris, 2000. REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 02-revista_07.p65 35 29/10/2007, 21:43 35 Compromisso de Ajustamento de Conduta COMPROMISSO DE AJUSTAMENTO DE CONDUTA Demétrius Coelho Souza* Vera Cecília Gonçalves Fontes* RESUMO O presente texto visa destacar alguns aspectos mais importantes em torno do chamado termo de ajustamento de conduta, que é um dos métodos alternativos para a solução de conflitos, notadamente na área ambiental, visando, por conseguinte, a fazer com que o causador do dano assuma obrigação de dar, fazer ou não-fazer, sempre objetivando a evitar mal maior, ou seja, a lesão a bem jurídico. Palavras-chave: Termo. Ajustamento. Conduta. Solução. Conflitos. Proteção. Bem Jurídico. COMMITMENT OF BEHAVIOR ADJUSTMENT ABSTRACT The present text aims to point some of the relevant aspects involving the institute known as conduct adjustment term, that is one of the methods of solving legal issues, mainly in the environmental area. Through this institute, the damage author must assume an obligation to repare the damage in order to avoid a higher prejudice, that is, the lesion of a legal good. 36 Keywords: Term. Adjustment. Conduct. Solution. Conflicts. Protection. Legal Good. 1 INTRODUÇÃO O presente estudo pretende abordar e fazer algumas considerações em torno do instituto conhecido como compromisso ou termo de ajustamento de conduta, justamente por se constituir em um método alternativo à solução de conflitos nos quais estejam inseridos interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos, quer na fase pré-processual (inquérito civil), quer na processual, ou seja, quando já há ação civil pública em andamento. Não se pretende, pois, esgotar o assunto em sua plenitude, mas tão somente trazer à tona alguns tópicos para reflexão. Assim, cabe inicialmente destacar que o compromisso ou termo de ajusta-mento de conduta foi introduzido no ordenamento jurídico brasileiro pelo art. 211 do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90) ao afirmar que “os órgãos públicos legitimados poderão tomar dos interessados compromisso de ajustamento de sua conduta às exigências legais, o qual terá eficácia de título executivo extrajudicial”, segundo magistério de Luis Roberto Proença (2001, p. 120-1). * Especialista em Direito Empresarial (UEL) e em Filosofia Jurídica e Política (UEL). Mestrando em Direito pela UEM. Professor de Direito Civil na PUCPR, Campus Londrina e na UniFil. Advogado. * Bacharel em Direito. Especialista em Direito Ambiental (UEM). Mestranda em Direito pela UEM. REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 03-revista_07.p65 36 29/10/2007, 21:43 Demétrius Coelho Souza e Vera Cecília Gonçalves Fontes Logo em seguida, aproveitando-se desse mesmo dispositivo, o art. 113 do Código de Defesa do Consumidor1 (Lei nº 8.078/90) introduziu um parágrafo, o sexto, ao art. 5º da Lei da Ação Civil Pública (Lei nº 7.347/85), passando a viger com a seguinte redação: “Os órgãos públicos legitimados poderão tomar dos interessados compromisso de ajustamento de sua conduta às exigências legais, mediante cominações, que terá eficácia de título executivo extrajudicial”. Comparando-se ambos os textos legais, percebe-se que houve, com a alteração introduzida pelo art. 113 do CDC, o acréscimo do termo “cominações”, justamente para viabilizar a previsão de sanções para os casos de descumprimento das obrigações assumidas no instrumento, compromisso ou termo de conduta.2 Aliás, ensina José dos Santos Carvalho Filho (2001, p. 208) que “para haver efetividade jurídica, é obrigatório (e nunca facultativo!) que no instrumento de formalização esteja prevista a sanção para o caso de não cumprimento da obrigação”. O compromisso ou termo de ajustamento de conduta (TAC) se fez presente, ainda, em alguns outros textos legais, mencionando, a título exemplificativo, a Lei nº 8.884/94, que dispôs sobre a prevenção e a repressão às infrações contra a ordem econômica e a Lei nº 9.605/98, que dispôs sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente.3 De qualquer sorte, o compromisso de ajustamento de conduta consagra a “hipótese de transação, pois destina-se a prevenir o litígio (propositura de ação civil pública) ou a pôrlhe fim (ação em andamento), e ainda dotar os legitimados ativos de título executivo extrajudicial ou judicial, respectivamente, tornando líquida e certa a obrigação” (MILARÉ, 2004, p. 819). Essa transação, porém, não deve ser analisada à luz das normas de direito civil (CC, arts. 1025-1035), justamente por não versar sobre direitos patrimoniais disponíveis. Alguns autores, nesse particular, chegam até mesmo a afirmar não ser correta a utilização do termo “transação”, nem dizer tratar-se de uma revisitação ao instituto, sob pena de restar alterada a natureza da transação. Trata o instituto, portanto, “de um comprometimento ao ajuste de conduta às exigências legais, instituto novo, que existe per se, com suas próprias características” (FIORILLO, RODRIGUES e NERY, 1996, p. 177). Como justificar, então, a possibilidade de se transacionar direitos indisponíveis? Realmente, em um primeiro momento não há que se falar em disponibilidade dos direitos ou interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos quando objeto de defesa coletiva. No entanto, a realidade demonstrou ser mais interessante, em alguns casos, a celebração de um acordo entre o ente legitimado e aquele que está violando o interesse protegido pela norma do que o enfrentamento de um processo judicial, o que é sabidamente moroso e custoso para ambas as partes. Daí o surgimento do compromisso de ajustamento de conduta como uma verdadeira opção no sentido de se buscar uma solução mais rápida e eficaz para os problemas apresentados, constituindo o termo ou compromisso, ainda, verdadeira tentativa de desafogar o Poder Judiciário. Diante desse quadro, 1 Neste particular, observa Édis Milaré que “quando da edição do Código de Defesa do Consumidor, vetou-se o § 3º do art. 82 (que introduzia o compromisso de ajustamento em matéria de relações de consumo) e promulgou-se o art. 113 (que introduziu o mesmo compromisso em matéria de quaisquer interesses individuais), o que acabou por suscitar dúvida quanto à vigência do atual § 6º do art. 5º da Lei 7.347/85. Segundo Hugo Nigro Mazzilli, o argumento usado pelos que sustentavam o veto a tal parágrafo fundou-se no fato de que teria havido equívoco na promulgação do art. 113 em sua íntegra, pois era manifesta a vontade do Presidente da República de vetar o compromisso de ajustamento, intento este exteriorizado por expresso nas razões do veto a outro dispositivo da mesma lei (o parágrafo único do art. 92). Esse argumento, ainda que verdadeiro no tocante à mens legislatoris, não é, porém, suficiente para induzir à existência do veto do instituto constante no art. 113, pois este dispositivo foi regularmente sancionado e promulgado, em sua íntegra, como se pode aferir do exame da publicação oficial da Lei 8.078, de 11.09.1990, publicado no Diário Oficial da União do dia imediato, em edição extraordinária” (Notas sobre o compromisso de ajustamento de conduta. In: Antônio Herman Benjamin (Org.). Direito, água e vida. São Paulo: Imprensa Oficial, 2003, p. 571 e 572). In: Direito do Ambiente: doutrina, jurisprudência, glossário. 3. ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 818-819. 2 Explica Hugo Nigro Mazzilli que o compromisso de ajustamento de conduta é também conhecido por “termo de ajustamento de conduta” justamente por ser tomado a termo. In: A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo: meio ambiente, consumidor, patrimônio cultural, patrimônio público e outros interesses. 19 ed., São Paulo: Saraiva, 2006, p. 367. 3 Dispõe o art. 79-A da Lei nº 9.605/98 que “os órgãos ambientais integrantes do SISNAMA [...] ficam autori-zados a celebrar, com força de título executivo extrajudicial, termo de compromisso com pessoas físicas ou jurídicas responsáveis pela construção, instalação, ampliação e funcionamento de estabelecimentos e atividades utilizadores de recursos ambientais, considerados efetiva ou potencialmente poluidores”. REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 03-revista_07.p65 37 29/10/2007, 21:43 37 Compromisso de Ajustamento de Conduta José dos Santos Carvalho Filho (2001, p. 202) elabora um conceito em torno do termo ou compromisso de ajustamento de conduta: “é o ato jurídico pelo qual a pessoa, reconhecendo implicitamente que sua conduta ofende interesse difuso ou coletivo, assume o compromisso de eliminar a ofensa através da adequação de seu comportamento às exigências legais”. A título elucidativo, menciona-se o seguinte exemplo: determinada empresa, ao celebrar um compromisso de ajustamento de conduta, compromete-se a não mais depositar resíduos sólidos (lixo) em local não apropriado e sem as mínimas condições de higiene, evitando, com isso, a possibilidade de poluir manancial de água e contribuir para a má qualidade de vida da população local. Um outro exemplo pode igualmente servir para o esclarecimento do assunto: o Ministério Público do Trabalho celebra compromisso de ajusta-mento de conduta com determinado município com vistas a fazer com que o ente público adote medidas para evitar o trabalho infantil em determinada localidade, protegendo, assim, a criança e o adolescente em todas as suas possíveis formas. Deste modo, com a celebração do ajuste de conduta (e com alusão ao primeiro exemplo acima dado), o ente legitimado não mais promoverá ação civil pública em desfavor da empresa (muito embora os demais co-legitimados ainda possam fazê-lo). Esse fato, por si só, pode ser benéfico para o causador do dano à medida que evitará gastos e naturais preocupações advindas de um processo judicial. Em contrapartida, caso o acordo não seja cumprido, valerá o mesmo como título executivo extrajudicial (§ 6º, art. 5º da LACP), podendo o ente legitimado executá-lo com base nas normas previstas no Código de Processo Civil, ocasião em que se farão incidir as “cominações” previamente estabelecidas. 2 INTERESSES DIFUSOS, COLETIVOS E INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS 38 Como já mencionado, o termo ou ajustamento de conduta é utilizado no sentido de buscar soluções para questões envolvendo diretos difusos, coletivos e individuais homogêneos. Daí a importância, antes de se seguir adiante, de algum delineamento em torno desses direitos ou interesses.4 Segundo se depreende do art. 81 do Código de Defesa do Consumidor, a defesa dos interesses ou direitos difusos dos consumidores e vítimas poderá ser exercida individualmente ou a título coletivo. E seu parágrafo único determina que a defesa coletiva será exercida quando se tratar de: I – interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste Código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeter-minadas e ligadas por circunstâncias de fato. II – interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste Código, os transindividuais de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base. III – interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem comum. 4 Muito embora possa haver alguma distinção entre os termos “interesse” e “direito”, serão aqui utilizados como sinônimos. Em relação ao conceito de interesse, aliás, observa Marcelo Abelha Rodrigues que o “interesse é uma relação entre um sujeito e um objeto. Relação essa que tem por pontos de contato a aspiração do homem acerca de determinados bens que sejam aptos à satisfação de uma exigência sua. Feita essa dissecação do conceito de interesse, fica claro que no seu esqueleto estão presentes: um sujeito com necessidade e um objeto idôneo para satisfazer essa mesma necessidade”. In: Instituições de Direito Ambiental: parte geral. São Paulo: Max Limonad, 2002, p. 20-21. Rodolfo de Camargo Mancuso, de sua parte, observa que “o interesse interliga uma pessoa a um bem da vida, em virtude de um determinado valor que esse bem possa representar para aquela pessoa. A nota comum é sempre a busca de uma situação de vantagem, que faz exsurgir um interesse na posse ou fruição daquela situação”. In: Interesses Difusos: conceito e legitimação para agir. 6. ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 19-20. REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 03-revista_07.p65 38 29/10/2007, 21:43 Demétrius Coelho Souza e Vera Cecília Gonçalves Fontes Percebe-se da simples leitura desses incisos, portanto, que os direitos difusos são metaindividuais (ou transindividuais), isto é, transcendem à pessoa, com indeterminação absoluta de titulares, sendo o objeto indivisível e estando as pessoas ligadas entre si por uma situação de fato. É o que ocorre, por exemplo, em relação ao meio ambiente (CF/88, art. 225)5 , exemplo clássico de interesse ou direito difuso, até porque todos temos o direito de viver em um meio ambiente sadio e ecologicamente equilibrado, alheio às mais diversas degradações humanas. Nos direitos ou interesses coletivos, o objeto é também indivisível (tal como nos direitos difusos), mas a origem encontra fundamento em uma relação jurídica base comum, sendo o grupo determinável. É o que ocorre, por exemplo, com o “direito de classe dos advogados de ter representante na composição dos Tribunais (CF, art. 94)”, como bem aponta Teori Albino Zavascki (2006, p. 45). Aliás, a redação do inc. II (interesses coletivos), supra transcrito, faz crer que o titular é um grupo, categoria ou classe de pessoas. O vínculo que permite identificar (rectius = determinar) vem descrito da seguinte maneira na norma em comento: ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base. Significa dizer que o grupo, a categoria ou a classe de pessoas estão ligados entre si (relação institucional como uma associação, um sindicato, uma federação etc.) ou, alternativamente, é possível que esse vínculo jurídico emane da própria relação jurídica existente com a parte contrária. Imagine-se, nesse sentido, o seguinte exemplo: o sindicato de determinada classe de trabalhadores propõe ação judicial visando compelir o dono de uma empresa a fornecer aparelhos auriculares a seus funcionários por conta do barulho excessivo provocado pelas máquinas ali existentes. A ação é julgada procedente e o dono da empresa, então, passa fornecer tais aparelhos, não apenas, porém, àqueles trabalhadores sindicalizados, mas sim a todos que necessitam dos aparelhos, justa-mente por versar a questão sobre direitos coletivos, abrangendo a decisão judicial toda a classe, categoria ou grupo de pessoas ligadas entre si. Por fim, os direitos individuais homogêneos, onde o grupo é determinável, o objeto divisível e a origem é comum. É o que ocorre em relação ao direito dos adquirentes a abatimento proporcional do preço pago na aquisição de mercadoria viciada (CDC, art. 18, §1º, inc. III). No entanto, não se pode perder de vista que o direito individual homogêneo, embora admita uma defesa coletiva, que se justifica por sua origem comum, permanece sempre um direito individual, podendo a pessoa, se assim o desejar, manejar ação individual na defesa de seus interesses. Todavia, como bem observa Teori Albino Zavascki (2006, p. 46), “nem sempre são perceptíveis com clareza as diferenças entre os direitos difusos e os direitos coletivos, ambos transindividuais e indivisíveis [...]”. Nesse particular, não se poderia deixar de reproduzir a precisa lição de Hugo Nigro Mazzilli (2006, p. 55-6): Para identificar corretamente a natureza de interesses transindividuais ou de grupos, devemos, pois, responder a essas questões: a) O dano provocou lesões divisíveis, individualmente variáveis e quantificáveis? Se sim, estaremos diante de interesses individuais homogêneos; b) O grupo lesado é indeterminável e o proveito repara-tório, em decorrência das lesões, é indivisível? Se sim, estaremos diante de interesses difusos; c) O proveito pretendido em decorrência das lesões é indivisível, mas o grupo é determinável, e o que une o grupo é apenas uma relação jurídica básica comum, que deve ser resolvida de maneira uniforme para todo o grupo? Se sim, então estaremos diante de interesses coletivos. Nesse mesmo sentido, leciona Marcelo Abelha Rodrigues (2004, p. 36): 5 O art. 225 da Constituição Federal de 1988 está redigido nos seguintes termos: “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”. REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 03-revista_07.p65 39 29/10/2007, 21:43 39 Compromisso de Ajustamento de Conduta O legislador brasileiro optou por conceituar os interesses coletivos lato sensu, distinguindo-os em difusos, coletivos propriamente ditos e individuais homogêneos. Essa conceituação se deu no art. 81, parágrafo único, incs. I, II e III do Título III do CDC. No caso da alínea a, temos que uma soma de necessidades individuais sobre objetos vários ou divisíveis configura a soma de interesses individuais que podem alcançar, dependendo da situação, uma feição coletiva (entre nós é o interesse individual homogêneo). Portanto, não é na sua essência um direito coletivo, porque resulta da soma de interesses individuais. O seu tratamento jurídico é que pode vir a ser coletivo, dependendo das razões políticas do legislador. No caso da alínea b, temos que os sujeitos possuem as necessidades individuais comuns por causa da indivisibilidade do bem que os irá satisfazer. Neste caso estaremos diante dos interesses essencialmente coletivos, que, por sua vez, se esgalham em difusos e coletivos. [...] Pode-se concluir, pela rasa leitura dos incs. I e II do art. 81, parágrafo único do CDC, que o divisor de águas entre o interesse difuso e o interesse coletivo é o aspecto subjetivo. Assim, se o critério objetivo foi o determinante para colocá-los na vala comum dos interesses essencialmente coletivos, foi o critério subjetivo que o legislador adotou para diferenciar um de outro. 40 Cabe por fim destacar, consoante os ensinamentos de Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery (1995, p. 112), que “o que determina a classificação de um direito como difuso, coletivo, individual puro ou individual homogêneo é o tipo de tutela jurisdicional que se pretende quando se propõe a competente ação judicial”, o que leva a crer que o mesmo fato pode dar ensejo à pretensão difusa, coletiva ou individual. Esse pensamento, porém, não é compartilhado por toda a doutrina. Feitas essas breves considerações em torno dos chamados direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos, volta-se ao tema anteriormente proposto, sem perder de vista que o termo ou ajustamento de conduta é um meio previsto em lei para que as partes cheguem a um acordo, obrigando-se uma a respeitar ou não mais violar direitos ou interesses dessa natureza e outra a não propor ação judicial, justamente por conta da celebração desse acordo, o que evitaria dissabores naturais advindos de um processo judicial. 3 NATUREZA JURÍDICA Qual a natureza jurídica do termo ou compromisso de ajustamento de conduta? A doutrina pátria ainda não é pacífica em torno do assunto. Para alguns, como é o caso de Fernando Grella Vieira (2002, p. 270), o compromisso de ajustamento de conduta seria uma espécie de transação, com peculiaridades próprias e distintas da figura comum aplicável às obrigações meramente patrimoniais, de natureza privada. Para outros, como é o caso de Hugo Nigro Mazzilli (2006, p. 366), o compromisso de ajustamento seria “um título executivo extrajudicial, por meio do qual um órgão público legitimado toma do causador do dano o compromisso de adequar sua conduta às exigências da lei”. E continua o autor: Como tem natureza bilateral e consensual, poderíamos ser tentados a identificá-lo como uma transação do direito civil. Não seria correto, porém, esse raciocínio. Se tivesse mesmo a natureza de transação verdadeira e própria, seria um contrato, porque suporia o poder de disposição dos contraentes, que, por meio de concessões mútuas, preveniriam ou terminariam o litígio (CC, art. 840). Entretanto, o compromisso de ajustamento de conduta não é um contrato; nele o órgão público legitimado não é o titular do direito transindividual, e, como não pode dispor do direito material, não pode fazer concessões quanto ao conteúdo material da lide. Nem se diga que o REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 03-revista_07.p65 40 29/10/2007, 21:43 Demétrius Coelho Souza e Vera Cecília Gonçalves Fontes compromisso teria natureza contratual porque o órgão público nele também assumiria uma obrigação, qual seja a de fiscalizar o seu cumprimento. Essa obrigação decorre do poder de polícia da Administração, não tendo caráter contratual, tanto que, posto omitida qualquer cláusula a respeito no instrumento, mesmo assim subsistiria por inteiro o poder de fiscalizar. É, pois, o compromisso de ajustamento de conduta um ato administrativo negocial por meio do qual só o causador do dano se compromete; o órgão público que o toma, a nada se compromete, exceto, implicitamente, a não propor ação de conhecimento para pedir aquilo que já está reconhecido no título. Há, porém, aqueles que entendem ser o compromisso de ajustamento uma figura jurídica própria que não se confundiria com a transação. Nessa linha (e parece-nos mais acertadamente), encontram-se Celso Antônio Pacheco Fiorillo, Marcelo Abelha Rodrigues, Rosa Maria de Andrade Nery e Luis Roberto Proença. Por fim, e de forma bem singela, afirma José dos Santos Carvalho Filho (2001, p. 202) que “a natureza jurídica do instituto é, pois, a de ato jurídico unilateral quanto à manifestação volitiva, e bilateral somente quanto à formalização, eis que nele intervêm o órgão público e o promitente”. 4 CARACTERÍSTICAS Hugo Nigro Mazzilli (2006, p. 366-7) aponta as principais características do compromisso ou termo de ajustamento de conduta: a) é tomado por termo por um dos órgãos públicos legitimados à ação civil pública; b) não há concessões de direito material por parte do órgão público legitimado, mas sim a assunção de obrigações por parte do agente causador do dano (obrigações de fazer ou não fazer); c) dispensam-se testemunhas instrumentárias e participação de advogados; d) o compromisso constitui título executivo extrajudicial; e) não é colhido nem homologado em juízo; f) o órgão público legitimado pode tomar o compromisso de qualquer causador do dano, mesmo que este seja outro ente público (só não pode tomar compromisso de si mesmo); g) é preciso haver no próprio título as cominações cabíveis, embora não necessariamente a imposição de multa. Realmente, em que pese nada dispor a lei sobre o assunto, o compromisso de ajustamento não pode ser celebrado de forma verbal ou tácita, até por conta do princípio da publicidade (CF, art. 37), que tem como uma de suas manifestações a instrumentalização formal das manifestações de vontade. O compromisso, por conseguinte, deve ser escrito e devidamente formalizado. Em relação às obrigações de fazer e não fazer, Luis Roberto Proença (2001, p. 127) chama atenção para o também possível acordo em relação às obrigações de dar, justamente por não existir óbice legal algum. Em relação às testemunhas, afigura-se possível a celebração do ajuste sem sua participação, até por conta do teor do próprio § 6º do art. 5º da Lei da Ação Civil Pública. Todavia, questão interessante é trazida a lume pelo trecho do acórdão abaixo reproduzido, o qual informa que um município, ao celebrar um termo ou ajustamento de conduta, por exemplo, não pode ao depois alegar eventual dificuldade financeira para justificar seu eventual descumprimento. Essa alegação, como sói esclarecer, não tem o condão de afastar a exigibilidade do título, veja-se: O termo de compromisso de ajustamento firmado entre o Ministério Público e a Municipalidade, com o fim de solucionar problemas constatados no sistema de drenagem urbana do Município, é título executivo, consoante dispõe o art. 5º, § 6º, da Lei nº 7.347/85 (ação civil pública), incluído pela Lei nº 8.078/90 (Código do Consumidor). Precedentes do TJRGS e do STJ. Descumprimento das obrigações constantes no termo. Dificuldades financeiras do município. A alegação de dificul-dades financeiras do Município REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 03-revista_07.p65 41 29/10/2007, 21:43 41 Compromisso de Ajustamento de Conduta para justificar o descumprimento do termo não tem o condão de afastar a executividade do título, firmado espontaneamente pelo Prefeito Municipal, que detinha competência para tal. Obras e estudos de sanea-mento básico, medidas de interesse da saúde pública, somado à circunstância de que a sua não-realização pode comprometer o patrimônio histórico daquele Município. Apelação desprovida, por maioria (Apelação Cível nº 70013257944, 22ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, relator Desembargador Eduardo Zietlow Duro, julgado em 15.12.05). Em relação à participação dos advogados, com todo o respeito à lição do Prof. Hugo Nigro Mazzilli, sua ausência pode ser temerária aos fins objetivados pelo TAC. Ora, se é certo que compromisso de ajuste de conduta é pactuado para a prevenção ou reparação do dano a interesses e direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos, é igualmente certo que o compromitente (aquele que se obriga a adequar sua conduta às exigências da lei) necessita de uma boa assessoria jurídica até mesmo para saber se as medidas necessárias à adequação não infringem outra lei. Em outros termos, de nada adiantará ao compromitente celebrar um compromisso de ajustamento de conduta se, para honrar seu cumprimento, violar outras tantas disposições legais. Portanto, a assessoria jurídica se revela extremamente importante, justificando-a a própria importância dos interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos. Há, também, a hipótese de o compromisso ser colhido e homologado em juízo. Realmente, observa Édis Milaré (2004, p. 819) que apesar de a norma referir-se a ajuste extrajudicial (realizado no inquérito civil ou em procedimento avulso, sem homologação judicial), nada obsta seja efetivada também em juízo (realizado no processo ou levado em procedimento avulso à homologação judicial). Na primeira hipótese, o compromisso implica o arquivamento implícito do inquérito, com sua homologação pelo Conselho Superior do Ministério Público, qualificando-se como título executivo extrajudicial. Na segunda hipótese, a homolo-gação da transação é feita pelo juiz e obtém-se título executivo judicial. 42 Digno de nota, ainda, a possibilidade de se prever, no próprio corpo do compromisso de ajuste de conduta, a cominação cabível em caso de descumprimento da obrigação assumida, sendo a mais comum a imposição de multa diária, denominada pela doutrina francesa de “astreintes”. Assim é que o compromisso de ajustamento, por ter eficácia de título executivo extrajudicial, substitui a fase processual de conhecimento, restando daí a possibilidade de prever pena pecuniária diária em caso de descumprimento da obrigação assumida. Nesse sentido, observa Luis Roberto Proença (2001, p. 132) que Dentre os novos poderes assegurados ao juiz da execução, previu o art. 645 do Código de Processo Civil, possa ele fixar, ao despachar a inicial de execução fundada em título extrajudicial, multa diária pelo atraso no cumprimento de obrigação de fazer ou de não fazer. Assim, não se exige a fixação desta multa no compromisso, para que este tenha eficácia. Por outro lado, se não é necessária, é sempre útil prevê-la expressamente no termo do ajuste, como meio psicológico de obtenção voluntária dos compromissos assumidos. Um cuidado, porém, se impõe: o de imposição de cominações elevadas ou excessivas. De fato, a multa tem caráter pedagógico e preventivo, prestando-se não apenas a fazer com que a obrigação assumida seja cumprida, mas também a dissuadir o compromitente de outras práticas irregulares ou ilícitas no futuro. E, revelando-se excessiva, pode o magistrado reduzir seu valor. É o que restou decidido no seguinte acórdão: REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 03-revista_07.p65 42 29/10/2007, 21:43 Demétrius Coelho Souza e Vera Cecília Gonçalves Fontes A multa diária acordada em termo de ajustamento firmado perante o Ministério Público, em caso de inadimplemento de obrigação de fazer decorrente de dano ambiental, pode ser reduzida pelo juiz se excessiva. Art. 645 do CPC. Hipótese em que a multa diária correspondente a dois salários mínimos se mostra desproporcional à renda do compromitente. As normas do Código de Defesa do Consumidor não se aplicam ao termo de ajustamento de conduta em matéria ambiental. Recurso provido. Voto vencido (Apelação Cível nº 70007750243, 22ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, relatora Desembargadora Maria Isabel de Azevedo Souza, julgado em 11.05.04). Assim, em sendo excessiva a multa constante no TAC, revela-se possível sua diminuição pelo magistrado. Tal redução, porém, “deve ser prudentemente estabelecida pelo juiz em face das peculiaridades do caso” (DINAMARCO, 1998, p. 294), justamente para que não motive o devedor a continuar inadimplente com sua obrigação. Nesta perspectiva, não haveria justificativa para reduzir o juiz a multa fixada no compromisso de ajustamento, se mesmo ela não se mostre suficiente para fazer o devedor realizar aquilo a que se comprometeu. Assim, deve aquela possibilidade de redução de multa ser utilizada com ponderação pelo juiz, tendo em vista as circunstâncias do caso concreto e, sempre, o objetivo de dar efetividade ao ordenamento jurídico (PROENÇA, 2001, p. 136). Luis Roberto Proença (2001, p. 136-7) sustenta, ainda, a possibilidade de o magistrado aumentar o valor da multa caso entenda ser insuficiente o valor constante no compromisso de ajustamento de conduta. Para tanto, justifica seu entendimento com base na efetividade do processo, ou seja, se é do propósito das reformas realizadas em nossa sistemática processual obter a efetividade da jurisdição, conferindo ao juiz poderes para garanti-la, dentre os quais o de suprir, ex officio, o omissão da previsão de multa nos casos de títulos extra-judiciais (art. 645 do CPC), e o de aumentá-la, se considerar insuficiente aquela fixada nos títulos judiciais (art. 644 do CPC), não há razão para que se entenda não poder fazê-lo no caso de execução baseada em títulos extrajudiciais. Por derradeiro, em que pese não terem sido mencionadas por Hugo Nigro Mazzilli, aponta Luis Roberto Proença duas outras características em relação ao assunto em apreço: a primeira relacionada a um princípio de congruência e a segunda relacionada ao objeto do compromisso de ajustamento de conduta, podendo ser parcial ou total. Em relação a um princípio de congruência, diz o autor que a atuação dos órgãos públicos em geral deve obedecer a um princípio de congruência entre as suas competências ou atribuições e o objeto do compromisso de ajustamento. Assim, por exemplo, parece claro que a intenção das normas ora comentadas é a de que um município possa firmar a avença com um infrator, nos assuntos que lhe toca. Não haveria sentido, e, deste modo, mostrar-se-ia inválido tal instrumento, se, por exemplo, um determinado município pactuasse com infrator de normas urbanísticas de outro município (PROENÇA, 2001, p. 123). REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 03-revista_07.p65 43 29/10/2007, 21:43 43 Compromisso de Ajustamento de Conduta O próprio autor, porém, vislumbra a possibilidade de, em casos de suma importância, como a preservação do meio ambiente, por exemplo, um município celebrar um compromisso de ajustamento de conduta com empresa situada em outro município, o que seria plenamente justificável pelo interesse maior a ser protegido e resguardado. Por fim, deve-se registrar que o compromisso de ajustamento pode ser integral ou parcial. Integral será quando esgotar todas as conseqüências jurídicas de um conjunto de fatos. Parcial, ao contrário, será o compromisso referente a apenas alguns dos fatos ou conseqüências advindas desses fatos, relegando-se o restante para o prosseguimento das investigações no inquérito civil ou para a propositura da ação civil pública. A esta última hipótese, Hugo Nigro Mazzilli (2006, p. 369) também atribui o nome de “compromissos preliminares”, fazendo menção, inclusive, à Súmula nº 20 do Conselho Superior do Ministério Público do Estado de São Paulo, redigida nos seguintes termos: Quando o compromisso de ajustamento tiver a característica de ajuste preliminar, que não dispense o prosseguimento de diligências para uma solução definitiva, salientado pelo órgão do Ministério Público que o celebrou, o Conselho Superior homologará somente o compromisso, autorizando o prosseguimento das investigações. 5 OS LEGITIMADOS À CONFECÇÃO DO AJUSTAMENTO 44 O rol dos legitimados ativos à ação civil pública ou coletiva encontra-se previsto no artigo 5º, § 6º da Lei 7.347/85 (LACP), combinado com o artigo 82 da Lei 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor). Todavia, nem todos os legitimados podem firmar compromisso de ajustamento de conduta do agente causador do dano a interesses meta-individuais. Nesse particular, observa Hugo Nigro Mazzilli (2006, p. 363) que só podem tomar o compromisso de ajustamento de conduta os órgãos públicos legitimados à ação civil pública ou coletiva .Quais são esses órgãos públicos legitimados? Para alguns, são todos os legitimados à ação civil pública, excetuada apenas a associação civil. Numa outra interpretação, grosso modo, poderíamos dizer que estão autorizadas a celebrar compromissos de ajustamento as pessoas jurídicas de direito público interno e seus órgãos, não as sociedades civis , nem as fundações privadas, nem os sindicatos, nem as entidades da administração indireta, nem as pessoas jurídicas que, posto com participação acionária do Estado, tenham regime jurídico próprio de empresas privadas. Assim, a rigor, não estariam incluídos na condição de “órgãos públicos legitimados”: a) as associações civis; b) os sindicatos; c) as sociedades de economia mista; d) as fundações privadas; e) as empresas públicas. Tem-se, assim, que com relação à legitimação dos órgãos públicos para celebrar termo ou compromisso de ajustamento de conduta, há que se analisar se agem na qualidade de prestadores ou de exploradores de serviço público com finalidade lucrativa, em condições de empresas de mercado. Nesse passo, na tentativa de apontar uma solução para a controvérsia, Hugo Nigro Mazzilli (2006, p. 363) relaciona três categorias de legitimados, a partir do exame do rol acima mencionado, veja-se: a) a daqueles legitimados que, incontroversamente podem tomar compromisso de ajustamento: Ministério Público, União, Estados, Municípios, Distrito Federal e Órgãos Públicos, ainda que sem personalidade jurídica, especificamente destinados à defesa de interesses difusos, coletivos e individu- REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 03-revista_07.p65 44 29/10/2007, 21:43 Demétrius Coelho Souza e Vera Cecília Gonçalves Fontes ais homogêneos. São os órgãos pelos quais o Estado administra o interesse público, ainda que integrem a chamada administração indireta (como autarquias, fundações públicas ou empresas públicas), nada obsta a que tomem compromissos de ajustamento quando ajam na qualidade de entes estatais. b) a dos legitimados que, incontroversamente não podem tomar o compromisso: as associações civis, os sindicatos e as fundações privadas; c) a dos legitimados em relação aos quais cabe discutir à parte se podem ou não tomar compromisso de ajustamento de conduta, como as fundações publicas e as autarquias, ou até as empresas públicas e as sociedades de economia mista. Ainda com relação aos legitimados para celebrar o TAC vale registrar a crítica feita por José Emmanuel Burle Filho e Wallace Paiva Martins Júnior, que, sendo citados por Édis Milaré (2005, p. 902), assim se manifestam: [...] a melhor interpretação, que se ajusta ao sistema jurídico vigente, é a que encontra na expressão órgãos públicos (mercê da má técnica legislativa) a indicação de todas as entidades que compõem a Administração Pública direta, indireta ou fundacional, e que, independentemente da personalidade jurídica de cada uma, desenvolvam precipuamente atividades de interesse público, o que permite incluir as sociedades de economia mista e as empresas públicas como detentoras da prerrogativa de firmar compromisso de ajustamento de conduta desde (é claro) que esta esteja inserida entre os objetivos legais e estatutários do ente, de modo a prevenir litígio para o qual estava legitimada. Excluir-se, tout court , as entidades paraestatais da possibilidade de firmarem compromissos de ajustamento de conduta é equipará-las à [sic] entidades genuinamente privadas (como as associações co-legitimadas), o que não se adequa ao ordenamento jurídico. Daniel Roberto Fink (2002, p. 128), de sua parte e com relação ao especial enfoque dos órgãos públicos legitimados (especificamente as empresas públicas e as sociedades de economia mista) igualmente assevera que: Burle e Martins admitem que essas pessoas jurídicas possam celebrar ajustamento de conduta baseados no argumento de que, se é verdade que têm regime jurídico de empresas privadas, não é menos certo que o Estado participa de sua criação e gerenciamento, marcando-lhes com o signo público. É certo, ainda, que prestam serviços de utilidade pública e realizam atividades que envolvem o interesse público, ainda que seja uma atividade econômica, mas sempre de interesse coletivo. Em abono a seu argumento, ajuntam uma série de restrições impostas a seu funciona-mento, exatamente tendo em vista a participação do Estado na realização da atividade (por exemplo, restrições a privilégios fiscais; submissão a licitação pública; investidura em empregos mediante concurso, entre outros ). A seguir, o posicionamento de Hugo Nigro Mazzilli (2006, p. 103): Parece-nos que, quando se tratar de órgãos pelos quais o Estado administra o interesse público, ainda que da chamada administração indireta (como autarquias, fundações públicas ou empresas públicas), nada obsta a que tomem compromissos de ajustamento de conduta quando ajam na qualidade REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 03-revista_07.p65 45 29/10/2007, 21:43 45 Compromisso de Ajustamento de Conduta de entes estatais (quando prestem serviço público). Contudo, para aqueles órgãos dos quais o Estado participe, quando concorram na atividade econômica em condições empresariais, não se lhe pode conceder essa prerrogativa de tomar compromissos de ajustamento de conduta, sob pena de estimular desigualdades afrontosas à ordem jurídica, como é o caso das sociedades de economia mista ou das empresas públicas, quando ajam em condições de empresas de mercado. Todavia, há na doutrina quem reconheça legitimidade também às associações: é o caso do posicionamento adotado por Fernando Grella Vieira (2002, p. 271), para quem A associação terá legitimidade se a questão lhe for pertinente. Não é possível que uma entidade associativa que tenha por finalidade, segundo seus estatutos, por exemplo, a proteção do meio ambiente ponha-se a tutelar interesse atinente à esfera do consumidor, de deficientes, etc. Da mesma forma, a pertinência e os limites da ofensa é que nortearão a legitimidade das fundações, empresas públicas e sociedades de economia mista, em cada caso, diante do que dispuser seus atos constitutivos quanto à finalidade institucional ou objeto social. 46 Afirma ainda Fernando Grella Vieira (2002, p. 272) que em razão de a Lei 7.347/85 (LACP) permitir a assistência (art. 5º, § 2º), “a mesma colaboração pode formalizar-se na tomada de compromisso extrajudicial”, o que somente corrobora a afirmação anterior-mente feita no sentido de se permitir a participação de advogados quando da confecção do TAC. E, em relação à legitimação do Ministério Público, menciona ainda o mesmo Fernando Grella Vieira (2002, p. 272-3) duas limitações decorrentes de sua qualidade de legitimado, a primeira decorrente do federalismo e a segunda da destinação institucional do próprio Ministério Público, veja-se: Há duas limitações, entretanto, ao exercício dessa competência pelo Ministério Público: A primeira decorre do federalismo. Os Ministérios Públicos estaduais têm a competência limitada à esfera da respectiva Unidade Federada. Bem por isso a Lei 7.347/85, quando trata da legitimidade ativa, expressa que será admitido o “litisconsórcio facultativo entre os Ministérios Públicos da União, do Distrito Federal e dos Estados na defesa dos interesses e direitos de que cuida esta Lei”. Se os interesses ofendidos são de âmbito regional, dizendo respeito a mais de um Estado, ou se são de âmbito nacional, não pode determinado Ministério Público estadual, ainda que também interessado, com exclusividade, promover isoladamente a tutela. A segunda restrição prende-se à destinação institucional do Ministério Público, definida na Constituição Federal, de órgão defensor de interesses sociais e individuais indisponíveis, o que vale dizer que nem sempre os interesses coletivos ou os chamados interesses individuais homogêneos poderão ser tutelados pela Instituição, se deles não despontar a presença de interesse público primário (art. 127, caput, c/c o art. 129, IX, da CF). A defesa de interesses de grupos determinados de pessoas só pode ser feita pelo Ministério Público quando restar evidenciado o interesse de toda a coletividade. É o que ocorre, por exemplo, quando o Ministério Público ajuíza ação civil pública na defesa de alguns idosos pleiteando vaga em determinado hospital público. E, com base em Hugo Nigro Mazzilli, conclui Fernando Grella Vieira que, se não houver interesse da coletividade, a defesa dos interesses individuais deveria ser feita através da própria legitimação ordinária (que é, aliás, a regra no direito processual civil brasileiro), devendo cada qual ajuizar ação autônoma, sob pena de ferir-se a destinação institucional do Ministério Público. Ao apontar o outro aspecto limitador da atuação do Ministério Público, prossegue o autor (2002, p. 273): REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 03-revista_07.p65 46 29/10/2007, 21:43 Demétrius Coelho Souza e Vera Cecília Gonçalves Fontes De outro lado, sob o ponto de vista da natureza do interesse difuso, há limitação material absoluta quanto à possibilidade de transação quando se trata de patrimônio público e da moralidade administrativa, na forma da Lei 8.429, de 02.06.1992, que dispõe “sobre as sanções aplicáveis aos agentes públicos nos casos de enriqueci-mento ilícito no exercício de mandato, cargo, emprego, função na Administração Pública direta, indireta e fundacional. A última limitação apontada esclarece, assim, que os atos passíveis de serem tipificados como atos de improbidade, nos termos da Lei 8.429/92 com penas que vão desde a multa até a perda do cargo, mandato ou função, suspensão dos direitos políticos e proibição de contratar com o Poder Público etc., são atos cuja punição constitui-se em atividade privativa da jurisdição. Todavia alguns autores chegam a sustentar a tese de que o ajustamento de conduta deve ser aceito em casos envolvendo certos atos de improbidade administrativa. É o caso, por exemplo, do agente político que se arrepende de ter auferido determinada vantagem ilícita e, de livre e espontânea vontade, resolver devolver o numerário recebido aos cofres públicos. O entendimento, porém, é rechaçado por vários outros doutrinadores pátrios. 5.1 O Artigo 79-A da Lei 9.605/98 Por força da Medida Provisória nº 1.949-22, de 30.03.2000, foi inserido na Lei 9.605/98 o artigo 79-A, informando ser possível aos órgãos ambientais integrantes do Sisnama, responsáveis pela execução de programas e projetos e pelo controle e fiscalização dos estabelecimentos e atividades suscetíveis de degradarem a qualidade ambiental, celebrar, com força de titulo executivo extrajudicial, termo de compromisso com pessoas físicas ou jurídicas responsáveis pela construção, instalação, ampliação e funcionamento de estabeleci-mentos e atividades utilizadoras de recursos ambientais, considerados efetiva ou potencialmente poluidoras. Nesse particular, entende o Promotor de Justiça do Meio Ambiente em São Paulo, Daniel Roberto Fink, tratar-se de nova modalidade de termo de ajustamento de conduta, para o qual estão legitimados os órgãos integrantes do SISNAMA (Sistema Nacional do Meio Ambiente – lei 6938/81). Sustenta o autor (FINK, 2002, p. 129): “Evidentemente estamos diante de uma nova modalidade de termos de ajustamento de conduta, que, se é o mesmo na natureza jurídica transacional, guarda muita dessemelhança em outros aspectos”. Aliás, entende o referido doutrinador que a expressão “entidades” abriga as entidades paraestatais (sociedades de economia mista, empresas públicas, fundações e autarquias), desde que destinadas à execução de programas e projetos e ao controle e fiscalização dos estabelecimentos e atividades suscetíveis de degradarem a qualidade ambiental. Conclui, pois, o autor (FINK, 2002, p. 130): “o dispositivo novo ampliou o rol de partes capaz de celebrar o ajustamento de conduta em defesa do interesse público transindividual penal”. Com a devida vênia, o dispositivo acrescentado à Lei nº 9605/98 apenas e tão somente explicitou os entes que já possuíam legitimidade ativa para a celebração do ajustamento de conduta, não tendo o condão de acrescentar novidade no que diz respeito à legitimidade ativa para a celebração de um TAC. 6 PUBLICIDADE DO COMPROMISSO DE AJUSTAMENTO DE CONDUTA Em relação à publicidade, posiciona-se Paulo Affonso Leme Machado (2005, p. 364) no sentido de que o acordo deverá tornar-se público antes de ser assinado. Eis suas palavras: “um dos pilares fundamentais do Direito Ambiental é a informação ampla, veraz, rápida e REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 03-revista_07.p65 47 29/10/2007, 21:43 47 Compromisso de Ajustamento de Conduta institucionalizada. Havendo transparência, os interessados poderão trazer para os órgãos públicos envolvidos outros subsídios ou a opinião de segmentos sociais diversos.” Na seqüência, prossegue o autor: não se conseguiu ainda a publicação prévia do termo de ajustamento de conduta. Mas já se caminhou, de forma expressiva, para o acesso ao conteúdo do termo de ajustamento de conduta – TAC. A Lei 10.650, de 16.04.2003, determina que a lavratura de termos de compromisso de ajustamento de conduta seja publicada no Diário Oficial (art. 4º, IV). Não se trata de publicar um resumo do termo, mas sua integralidade. A divergência de pontos de vista não impedirá o acordo em primeira instância administrativa. A via do recurso à instância administrativa – como o Conselho Superior do Ministério Público –, contudo, não ficará fechada aos discordantes. Há, ainda, o posicionamento de Geisa de Assis Rodrigues (2006) que, em artigo intitulado “A Participação da Sociedade Civil na Celebração do Termo de Ajustamento de Conduta”, afirma que a transparência revela a face democrática do ajuste, manifestando-se nos seguintes termos: A publicidade é fundamental para garantir o controle de seus termos pela sociedade e permitir que se averigúe se ele não representou nenhum tipo de limitação ao direito protegido, bem como para garantir sua eficácia, porque todos da sociedade podem contribuir na fiscalização do cumprimento das cláusulas avençadas. 48 Frise-se que não há previsão legal no sentido de se impor a obrigatoriedade de instrumentos de participação para elaboração e celebração do ajuste. Porém, tal como se afirmou, a observância da publicidade pode ser justificada ante a necessidade de se observar o Princípio Democrático. Também de se salientar que a decisão definida acerca do ajuste será sempre do órgão legitimado, vez que a norma não prevê qualquer espécie de submissão desta decisão à deliberação – quando e se houver – da sociedade, até por uma questão de se evitar a possibilidade de manipulação. Em síntese, pode-se dizer que o que se defende é a participação da sociedade civil – à qual se dará publicidade – na elaboração do ajustamento, não se deixando de lado ainda a participação de grupos cujos interesses coletivos estejam envolvidos no ajuste. 7 A (DES)NECESSIDADE DE SER O COMPROMISSO DE AJUSTAMENTO HOMO-LOGADO PELO CONSELHO SUPERIOR DO MINISTÉRIO PÚBLICO É controversa na doutrina a exigibilidade ou não de homologação do compromisso de ajustamento de conduta pelo Conselho Superior do Ministério Público. O que é de todo recomendável, porém, é que o órgão que celebrou o ajuste fiscalize seu cumprimento, justamente para que o teor do acordo seja efetivamente observado e cumprido. Nesse sentido, a lição de Édis Milaré (2005, p. 904): De qualquer forma, havendo ou não previsão na lei local quanto à necessidade de homologação do compromisso pelo Conselho superior, é recomendável, sempre, que o órgão que o celebrou fiscalize o seu efetivo cumprimento, para que não se protele, em nome do controle interno, a defesa do bem jurídico de interesse coletivo. REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 03-revista_07.p65 48 29/10/2007, 21:43 Demétrius Coelho Souza e Vera Cecília Gonçalves Fontes Aqui, não se deve olvidar as questões de ordem prática, ou seja, será que todos os termos de ajustamento devem ser levados, necessariamente, ao conhecimento do Conselho Superior do Ministério Público? Parece que não. Isto não quer dizer, porém, que aquele que celebrou o TAC não fique atento ao seu fiel cumprimento e faça cumprir, via tutela jurisdicional, as determinações nele contidas. Assim, parece não haver a necessidade de ser o compromisso homologado, mas, em contrapartida, é imperioso que o órgão legitimado fique atento ao seu fiel cumprimento, sob pena de o ajuste perder suas próprias características e finalidades. Nesse sentido, a lição de Luis Roberto Proença (2001, p. 130-1), para quem Se não houver a previsão na respectiva Lei Orgânica do Ministério Público da homologação do compromisso de ajustamento pelo Conselho Superior, como condição de sua eficácia, então bastará a sua pactuação pelo órgão de execução, para que tenha eficácia imediata, restando ao Conselho Superior apreciar, em reexame, eventual ocorrência de ‘arquivamento implícito’. No mesmo sentido, ensina Fernando Grella Vieira (2002, p. 284-5) que “o controle pelo Conselho Superior é dispensável, seja sob o enfoque de que o inquérito – por ter atingido sua finalidade – reclamaria formal arquivamento, seja quanto à eficácia e à exeqüibilidade do compromisso firmado”. O tema, todavia, pode ser objeto de regula-mentação pelas normas que disciplinam a forma de atuação e as atribuições dos órgãos do Ministério Público. Assim, não é indispensável que o compromisso seja remetido, sempre, ao Conselho Superior do Ministério Público, nada impedindo, porém, que haja determinação expressa nesse sentido, o que deverá constar na Lei Orgânica do Ministério Público. 8 CONCLUSÕES 49 Como se viu no primeiro tópico deste trabalho, o termo ou ajustamento de conduta é um modo pelo qual é dada ao autor do dano a oportunidade de cumprir as obrigações estabelecidas, comprometendo-se o ente legitimado, de sua parte, a não propor ação civil pública ou a pôr-lhe fim, caso esta já esteja em andamento. Com isto, busca-se evitar processos extremamente custosos, desgastantes e morosos para ambas as partes, fazendo com que o autor do dano pratique ou se abstenha de praticar o ato inquinado de lesivo, sempre com vistas a atender o bem maior objeto do acordo. Assim, desde que cumprido o ajuste, terá o compromisso alcançado seu objetivo, sem a necessidade de se movimentar toda a máquina judiciária. É, portanto, um meio rápido e eficaz para a solução de problemas. E, na hipótese de não ser cumprido o TAC, poderá o mesmo ser executado desde logo, eis que constitui título executivo extrajudicial, revelando-se desnecessária qualquer outra discussão em torno dos comportamentos que o instituíram. REFERÊNCIAS CARVALHO FILHO, José dos Santos. Ação Civil Pública: comentários por artigo. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001. DINAMARCO, Cândido Rangel. Execução Civil. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 1998. FINK, Daniel Roberto. Alternativa à Ação Civil Pública Ambiental (reflexões sobre as vantagens do termo de ajustamento de conduta). Ação Civil Pública: lei 7.347/1985 – 15 anos. MILARÉ, Édis (Coord.). 2. ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 03-revista_07.p65 49 29/10/2007, 21:43 Compromisso de Ajustamento de Conduta FIORILLO, Celso Antônio Pacheco. Curso de Direito Ambiental Brasileiro. 6 ed. São Paulo: Saraiva, 2006. FIORILLO, Celso Antônio; RODRIGUES, Marcelo Abelha; NERY, Rosa Maria Andrade. Direito Processual Ambiental Brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 1996. MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. 13. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Interesses Difusos: conceito e legitimação para agir. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. MAZZILLI, Hugo Nigri. A Defesa dos Interesses Difusos em juízo: meio ambiente, consumidor, patrimônio cultural, patrimônio público e outros interesses. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 2006. ______. Revista de Direito Ambiental, ano 11, nº 41. São Paulo: Revista dos Tribunais. janeiromarço de 2006. MILARÉ, Édis. Direito do Ambiente: doutrina, jurisprudência, glossário. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. ______. Direito do Ambiente: doutrina, jurisprudência, glossário. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 902. NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Princípios do processo civil na Constituição Federal. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. 50 PROENÇA, Luis Roberto. Inquérito Civil: atuação investigativa do Ministério Público a serviço da ampliação do acesso à Justiça. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. RODRIGUES, Geisa de Assis. A Participação da Sociedade Civil na Celebração do Termo de Ajustamento de Conduta. Disponível em: <http://www.esmpu.gov.br/publicacoes/ meioambiente/pdf/Geisa_de_A.pdf>. Acesso em: 30 jul. 2006. RODRIGUES, Marcelo Abelha. Instituições de Direito Ambiental: parte geral. São Paulo: Max Limonad, 2002. ______. Ação Civil Pública e Meio Ambiente. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004. SILVA, José Afonso. Direito Ambiental Constitucional. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 1998. VIEIRA, Fernando Grella. A Transação na Esfera da Tutela dos Interesses Difusos e Coletivos: Compromisso de Ajustamento de Conduta. Ação Civil Pública: lei 7.347/1985 – 15 anos. MILARÉ, Édis (Coord.). 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. ZAVASCKI, Teoria Albino. Processo Coletivo: tutela de direitos coletivos e tutela coletiva de direitos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 03-revista_07.p65 50 29/10/2007, 21:43 Hylea Maria Ferreira A TUTELA ANTECIPADA EM SEDE DE JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS* Hylea Maria Ferreira** RESUMO Análise do instituto da antecipação de tutela no ordenamento jurídico brasileiro com ênfase na sua aplicabilidade, face aos juizados especiais cíveis – estaduais e federais – apresentando os requisitos essenciais para sua concessão e abordando as principais divergências doutrinárias a fim de contribuir com uma possível solução para os conflitos da aplicação da lei especial. Palavras-chave: Tutela Antecipada. Juizados Especiais Cíveis Federais. Juizados Especiais Cíveis Estaduais. THE ANTICIPATED GUARDIANSHIP IN HEADQUARTERS OF SPECIAL COURTS CIVIL COURT JURISDICTION ABSTRACT Analysis about the institute of anticipated judicial protection in brazilian juridical order tiring its aplicability face to the Small-Claim Civil Courts – statual and federal – introducing the essencial requirements for its judicial concession and approaching the principal doutrinaries divergences in order to contribute with a possible resolution for the existents disagreement of especial law’s aplication. Keywords: Anticipated Judicial Protection. Small-Claim Federal Civil Courts. Small-Claim State Civil Courts. 1 INTRODUÇÃO A evolução social aproximou as relações entre as pessoas. Conseqüentemente, de algumas dessas relações restaram litígios, os quais, não sendo resolvidos de modo pacífico, levam os litigantes a invocar o Poder Judiciário. Com o número crescente dessas relações, tornouse crescente também o número das demandas judiciais, fator contribuinte para a morosidade processual. O reclamante, que visa ao reconhecimento de seu direito, resta prejudicado com a demora do desenrolar dos procedimentos, enquanto para o reclamado, a lentidão torna-se cômoda. Com o advento da Lei 8.952/94, surge a possibilidade da antecipação de tutela nas diferentes sortes de processos, a exemplo de outros países que lograram sucesso com a adoção do instituto. O objetivo maior era não só o de atualizar o Código de Processo Civil vigente, mas também de garantir maior efetividade à prestação jurisdicional. Assim, o novo instituto inserido no Código de Processo Civil, em seu art. 273, deu legalidade à antecipação dos efeitos da sentença, obedecendo aos requisitos (i) da existência de prova inequívoca, (ii) da verossimilhança das alegações, (iii) do fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação, (iv) do abuso de direito de defesa ou do manifesto propósito protelatório do réu. *O presente artigo é resultado de monografia de conclusão do curso de graduação em Direito, escrita sob a orientação do prof. Ms. Henrique Afonso Pipolo. **Bacharela em Direito pelo Centro Universitário Filadélfia – UniFil – e pós-graduanda em Filosofia Moderna e Contemporânea: Aspectos Éticos e Políticos pela Universidade Estadual de Londrina – UEL. E-mail: [email protected] REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 04-revista_07.p65 51 29/10/2007, 21:43 51 A Tutela Antecipada em Sede de Juizados Especiais Cíveis Com efeito, objetivando semelhante efetividade aos trâmites processuais, foi promulgada a Lei 9.099/95 que rege os Juizados Especiais Cíveis e Criminais. Essa lei inovadora traz em seu conteúdo a possibilidade das ações menos complexas e de menor valor serem processadas de uma maneira mais célere e informal, sem a necessidade do cumprimento das formalidades do rito ordinário. Ao entender que grande parte das ações cíveis, ajuizadas atualmente, são justamente aquelas de caráter menos complexo e cujos valores discutidos não ultrapassam a alçada legal, então, é de se entender também que, apesar de regidos por todos os princípios norteadores, os Juizados Especiais Cíveis são passíveis da morosidade processual. A Lei 9.099/95 silenciou a possibilidade da antecipação da tutela em sede de Juizados Especiais. Ainda, quedou-se silente quanto à aplicação subsidiária do CPC quando aquela for omissa. Assim, provoca-se a indagação quanto à possibilidade da antecipação da tutela junto aos Juizados. A doutrina tem se mostrado positiva, bem como os juízes têm aplicado positivamente a tutela antecipada nos Juizados Especiais. Em 2001 foi promulgada a Lei 10.259 que dispõe sobre a instituição dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais no âmbito da Justiça Federal. A nova lei aproveitou as disposições da Lei 9.099/95 e traz, no seu texto, as adequações do procedimento já existente ao âmbito da Justiça Federal. 2 DOS REQUISITOS 52 Para que seja admissível a concessão do tutela antecipada, a lei versou sobre cinco requisitos que devem estar presentes na causa – (i) da existência de prova inequívoca, (ii) da verossimilhança das alegações (iii) do fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação, (iv) do abuso de direito de defesa ou (v) do manifesto propósito protelatório do réu. Não é necessário que todos estejam presentes para que seja possível a aplicação do instituto, mas como fundamento do pedido da tutela, devem estar expostos no processo, concorrentes entre si ou não. Primeiramente, analisa-se a prova inequívoca, que pode ser entendida como o resultado produzido por iniciativa do réu, que exprime condições claras e irrefutáveis, não sendo possível admitir-se erro ou engano quanto à sua apreciação. Carreira Alvim ensina que prova inequívoca será aquela que apresente alto grau de convencimento, afastando de si qualquer dúvida razoável ou, em outros termos, cuja autenticidade ou veracidade seja provável (apud CARNEIRO, 2002, p. 21). Importante salientar que a prova inequívoca tampouco se confunde com o fumus boni iuris do processo cautelar. Na lição de Kazue Watanabe (apud CARNEIRO, 2002, p. 22), o juízo fundado em prova inequívoca, em prova que convença bastante, que não apresente dubiedade, é seguramente mais intenso que o juízo assentado em simples ‘fumaça’, que somente permite a visualização de mera silhueta ou contorno sombreado de um direito. A rigor, deve-se entender que não existe prova perfeitamente inequívoca, no aspecto de ser irrefragável, pois com o decorrer do processo a prova pode recair em dúvida, com o advento de novas provas ou fatos que comprovem com mais severidade aspectos contrários à prova anteriormente oferecida. Também, não há que falar da prova inequívoca sem associá-la à verossimilhança dos fatos alegados, uma vez que as provas oferecidas têm por finalidade a demonstração da veracidade dos fatos apresentados. A verossimilhança consiste então na plausibilidade, na perspectiva de que os fatos são possíveis ou reais, ainda quando descabidos de provas específicas (SANTORO, 2000, p. 11). Trata-se este de um elemento subjetivo que complementa a prova apresentada para convencer o magistrado da necessidade da concessão da tutela antecipada. O Juiz deve analisar não somente se a prova é inequívoca, de onde não se resta dúvidas, mas deve considerar REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 04-revista_07.p65 52 29/10/2007, 21:43 Hylea Maria Ferreira também se a prova tem nexo com as alegações e que estas sejam cabíveis e possam ser tomadas como verdadeiras (SANTORO, 2000, p. 11). Assim sendo, pode-se dizer que o processo requer uma verdade formal, que deve ser alcançada com a verossimilhança das alegações e a prova inequívoca, ao passo que a verdade real é quase sempre inatingível, posto que um só fato pode comportar várias interpretações. Quanto ao terceiro requisito - o receio de dano irreparável ou de difícil reparação – tem-se que não se confundi-lo com a ameaça, propriamente dita. A primeira impressão que se tem sobre o conceito de ameaça é que esta é ocasionada por ação do réu, que visa prejudicar o ameaçado, através de coação física ou moral, direta ou indireta. Eis então por que aqui não se fala em ameaça de dano, mas tão somente em receio, pois este pode vir a ser conseqüência de culpa do réu, quando este age sem o animus (MIRABETE, 2000, p. 139-140)1 de provocar a situação, mas acaba por dar ensejo à situação que, conseqüentemente, gera a insatisfação do autor. Mesmo que o desprazer do autor seja ocasionado pela má-fé do réu, o receio é mais como um temor subjetivo da parte, que advém de atos concretos que o colocam em situação de desconforto na iminência de que lhe seja causado prejuízo (THEODORO JR., 2000, p. 415). Cumpre ressaltar que o receio de dano experimentado pelo autor não parte somente em face de ação ou omissão do requerido, mas também dos inconvenientes da demora que toma o impulso processual, que, a seu turno, também poderia gerar danos que comprometam substancialmente os direitos da parte autora. Já o abuso do direito de defesa vislumbra-se quando o réu deduz pretensão contra fato incontroverso ou opõe resistência infundada contra direito expresso e indubitável do autor (SANTORO, 2000, p. 15), ou ainda, empregando meios ilícitos ou escusos para urdir situação de defesa e protelar o deslinde da demanda, se beneficiando com a manutenção do status quo (CARNEIRO, 2002, p. 33). Aqui, o réu está mais próximo da postura de litigante de má-fé, assumindo comportamento que corrobora com a sua intenção de retardar o pleito, evitando a solução do conflito. Como dito anteriormente, enquanto este conflito gera irrefragável condição de desconforto ao autor, para o réu traz uma situação de extrema comodidade. Este quarto requisito ainda apresenta um desdobramento – o abuso do direito de recorrer – resultante da interposição de recursos com intuitos protelatórios. Mesmo que ao réu seja garantido seu direito de recorrer da sentença, o recurso, por motivos legais, há de prosperar ante à apresentação de fundamentos compatíveis com a causa, caso diverso do que se verifica na grande parte dos recursos existentes, onde implicitamente, identifica-se seu objetivo protelatório. Diante dessas possibilidades, a tutela antecipada também pode ser considerada uma mantenedora da ética e dos bons costumes, posto que sana a má-fé do réu que pretende retirar o impulso natural do processo, trazendo o autor mais próximo do seu direito (CARNEIRO, 2002, p. 34). Há quem defenda a tese de que o manifesto propósito protelatório e o abuso de defesa do réu são situações homônimas. Não obstante, entre ambos os requisitos paira uma tênue diferenciação. O abuso de direito de defesa pode ser caracterizado pela resistência infundada que se contrapõe ao direito do autor, ou pelo emprego de meios ilícitos ou dispensáveis para forjar situação de defesa com o intuito de protelar a pretensão do autor (THEODORO JR., 2000, p. 414). Já o manifesto propósito protelatório do réu abrange os atos do réu com maior amplitude. Não é caracterizado pelo abuso, posto que o réu utiliza ao seu favor direitos previstos em lei. O manifesto propósito protelatório do réu se caracteriza então pela utilização de direito próprio com o objetivo de retardar o andamento processual, inclusive quando ciente de que o ato por si praticado não é passível de reconhecimento, ante à jurisprudência, súmulas e texto de leis existentes (ALVIM apud CARNEIRO, 2002, p. 35). Tem-se então uma conduta temerária, que se exprime além da via processual, materializada pelos atos de direito que não atingem diretamente o processo. 1 Em sua obra Manual de Direito Penal, Mirabete, ao tratar das teorias sobre o dolo, traz uma análise crítica em relação à concepção psicodinâmica, inspirada em Freud, que vem a definir o dolo como uma atitude interior de adesão aos próprios impulsos intrapsíquicos anti-sociais, onde predomina a idéia do animus, que vem a ser, neste caso, a má-fé criminosa do agente. REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 04-revista_07.p65 53 29/10/2007, 21:43 53 A Tutela Antecipada em Sede de Juizados Especiais Cíveis 3 DA REVOGAÇÃO E MODIFICAÇÃO DA TUTELA ANTECIPADA A tutela antecipada tem caráter provisório, conforme § 3º. do art. 273 do CPC. Esse caráter é também evidenciando ante à possibilidade de revogação ou modificação do provimento antecipado a qualquer tempo, disposto no § 4º. do referido codex. A sentença de mérito não está condicionada à decisão interlocutória que concedeu a antecipação da tutela, de modo que, após instrução, é permitido ao juiz outro convencimento, de forma que o pleito possa ser improcedente ou procedente somente em parte. (MARINONI, 1997, p. 158). Se improcedente, revogam-se os efeitos concedidos em sede de antecipação, restabelecendo o status quo ante, com a decorrente responsabilidade objetiva do autor pelos prejuízos que a providência tenha eventualmente causado ao demandado. Caso a sentença seja parcialmente procedente, esta pode modificar a abrangência do provimento antecipado, seja diminuindo ou aumentando os direitos antecipados ao autor. 4 OS JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS 54 Além de estabelecerem toda uma estrutura principiológica singular, os Juizados especiais também contemplam rito e procedimento diversos daqueles apresentados pelo CPC (MARINONI; ARENHART, 2003, p. 714). Houve quem discutisse que a lei dos Juizados, na verdade, estaria a criar um novo órgão do Poder Judiciário, uma espécie de tribunal inferior, de forma que a Lei 9.099/95 deveria ser considerada inconstitucional. Todavia, não se observa qualquer criação, tampouco mudanças na estrutura judiciária existente. O legislador apenas observou a necessidade de criação de um novo órgão integrante da Justiça Ordinária, sem o vício de qualquer inconstitucionalidade (ROCHA, 2002, p. 11-12). Em 2001 foi promulgada a Lei 10.259, para regular a matéria no âmbito da Justiça Federal, observando-se suas peculiaridades. A nova norma veio a complementar a Lei 9.099/95, sendo a este submetida, quando o objeto assim permitir. Atualmente, entende-se que a Lei dos Juizados criou, em verdade, um microsistema judiciário, adequado às causas cíveis de menor complexidade e com valores limitados, detentor de princípios e regras próprias, com a incumbência de ampliar o acesso à justiça e descarregar os demais órgãos jurisdicionais. 5 OS JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS ESTADUAIS O procedimento adotado nos Juizados é hialinamente diverso daquele adotado pelo Código de Processo Civil, pois tem como escopo fundamental atender aos critérios informativos da Lei 9.099/95, bem como oferecer mecanismos adequados aos interesses pleiteados nestes órgãos (MARINONI; ARENHART, 2003, p. 722-723). A lei autoriza a comunicação dos atos através de qualquer meio idôneo de comunicação, o que contribui com os princípios que regem os Juizados. As partes podem ser intimadas de um despacho via fax, as testemunhas arroladas poderão ser notificadas através de um telefonema, a citação pode ocorrer por carta registrada, mediante aviso de recebimento em mãos próprias... Quanto ao tempo, os Juizados possuem a prerrogativa do art. 12, que permite a realização de atos processuais no período noturno, devidamente regulado pela organização judiciária competente de cada região. Quanto ao lugar, a prática dos atos prefere o foro do órgão, porém nada impede que possam ser praticados além da sede dos Juizados, quando assim aprouver: vistorias de imóveis, colheita de depoimento das pessoas enumeradas no art. 144 do CPC. Ainda, só são reduzidos a termo escrito os atos que se demonstrarem essenciais, afastando o formalismo que reveste o procedimento da Justiça Comum. Aliás, todo ato produzido nos autos, mesmo que revestido de vícios formais ou materiais, uma vez que atinja sua finali- REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 04-revista_07.p65 54 29/10/2007, 21:43 Hylea Maria Ferreira dade no processo, sem causar prejuízo para nenhuma das partes, há de ser considerado um ato válido e legítimo. Inexistem, ainda, nos Juizados causas que tramitem em segredo de justiça, de maneira que todo e qualquer ato processual é, por força de lei, um ato público, contrariamente ao procedimento comum, onde muitas vezes, em razão da matéria, o segredo de justiça é essencial para não submergir a efetividade da prestação jurisdicional. As audiências também possuem procedimento especial, pois são presididas pela pessoa do conciliador, quando da audiência preliminar de conciliação, e pelo juiz leigo, quando da audiência de instrução e julgamento. Ainda que estes profissionais sejam assistidos a todo o momento pelo magistrado togado, são considerados auxiliares da justiça e possuem a autonomia necessária para efetividade dos atos aos quais foram designados. A inexistência de cobrança do pagamento de custas, taxas e emolumentos, em primeiro grau de jurisdição, também é prerrogativa dos Juizados. Em que pese no procedimento comum as partes possam requerer o benefício da justiça gratuita, salvaguardado pela Lei 1060/50, nos Juizados o benefício independe de requerimento, ou seja, ainda que a parte tenha condições de arcar com as sucumbências, dela nada será cobrado, salvo as exceções legais, pela interposição de recurso após a sentença de primeira instância transitada em julgado, ou ainda quando condenada por litigância de má-fé (MARINONI; ARENHART, 2003, p. 723-724). A representação técnica através de advogado também não é exigida em primeira instância, até o limite de vinte salários mínimos. Neste ponto a doutrina diverge quanto à capacidade postulatória das partes, entendendo, de um lado, que a parte poderá atuar no processo até a sentença final, enquanto outra corrente entende necessária a presença do causídico depois de frustrada a audiência conciliatória, quando passaria o processo a exigir do demandante conhecimento técnico inerente do profissional advogado, sem o qual poderia restar a parte em prejuízo irreparável. 6 OS JUIZADOS ESPECIAIS FEDERAIS 55 Quase tudo que fora dito quanto aos Juizados Especiais Estaduais, também se aplicara aos Juizados Especiais Federais. Porém impende destacar as características exclusivas presentes no âmbito da Justiça Federal. Ao contrário do que se observa no procedimento comum no âmbito da Justiça Federal, nos Juizados Federais a Fazenda Pública não conta com privilégios processuais, como prazos estendidos, diante de seu caráter público (art. 9º). Também, a Lei 10.259/01 outorgou ao autor o direito de eleger um representante legal judicial, ainda que não seja necessário (art. 10). Em parte, esta permissão pode ser justificada por algumas situações costumeiras nas causas de matéria previdenciária. Primeiramente, é cediço que uma subseção judiciária federal é responsável por vários municípios. É inequívoco concluir que quase a totalidade das ações previdenciárias são pleiteadas por pessoas idosas ou inválidas, que objetivam o benefício da aposentadoria, auxílios ou pensão. Unindo ambas as situações é fácil perceber que uma ampla quantidade de requerentes teria dificuldades de se locomover até a sede do juizado, o que contrariaria aquele fim de garantir o acesso à justiça, de modo que se faz legítimo e eficaz a representação judicial de pessoa física que não possua a mesma investidura que a figura do causídico. Ainda na esfera federal, pode-se observar a possibilidade de realização de perícia técnica, quando o laudo pericial for essencial ao deslinde da causa. Talvez o ponto mais importante que possa ser inserido singelamente neste ponto do artigo é o permissivo do art. 8º, § 2º, que prevê a possibilidade de recebimento de petições e realização de demais atos processuais através da via eletrônica. Esta regra deu origem ao E-proc2 , já utilizado em todos os Juizados da 4ª região, com resultados bastante agradáveis. 2 O E-proc é o Sistema de Processo Eletrônico dos Juizados Especiais Federais da 4º Região. Sua utilização tem trazido resultados excelentes, principalmente por diminuir custos, facilitar o acesso aos autos para ambas as partes e ensejar maior celeridade nas ações abrangidas pelos juizados. Atualmente está sendo desenvolvido um projeto em Brasília, sob o gestão de seu criador, Giscard Stephanou, que visa a implantação do E-proc em todos os JEFs do Brasil. Existem nas outras regiões da Justiça Federal processos eletrônicos com funcionamento semelhante ao E-proc, mas nenhum alcançou o mesmo nível de eficiência. REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 04-revista_07.p65 55 29/10/2007, 21:43 A Tutela Antecipada em Sede de Juizados Especiais Cíveis Todas as pessoas envolvidas no processo demandado nos Juizados Federais – advogados, servidores da justiça federal, funcionários e procuradores das autarquias, fundações e empresas públicas federais – são habilitados no E-proc através da assinatura de um termo de compromisso e recebem um senha pessoal e intransferível, que deverá ser utilizada para o acompanhamento do processo judicial. Conhecido também como juizado virtual, o procedimento do E-proc vem se demonstrando uma verdadeira “mão-na-roda” na garantia do acesso à justiça e no cumprimento dos preceitos fundamentais dos Juizados. O processo se torna mais célere, e, conseqüentemente, mais eficaz, diminui as despesas do cartório, pois quase extingue a utilização do papel3 e ainda facilita a vida dos procuradores que atuam perante o órgão, que podem acompanhar os atos simultaneamente, sem ter que se deslocarem de seus escritórios e gabinetes até a sede da Justiça Federal. Nos Juizados Federais, o cumprimento pecuniário da sentença não dependerá de expedição de precatórios. Os pagamentos poderão ser feitos através de Requisição de Pagamento de Valor – RPV, no prazo máximo de sessenta dias, a contar da requisição feita pelo juiz, por ofício, sendo que este também poderá seqüestrar numerário das contas dos entes públicos, nos casos de descumprimento (BOCHENEK. 2004. p. 172). Por fim, destaca-se o texto do art. 4º da Lei 10.259/01 que, ainda hoje, suscita grande polêmica acerca da hipótese de apreciação de medidas cautelares em sede de Juizados, porém, tratar-se-á do tema com mais afinco, a seguir. 6.1 O art. 4º da Lei 10259/01 56 Prescreve o dispositivo: “Art. 4o. O Juiz poderá, de ofício ou a requerimento das partes, deferir medidas cautelares no curso do processo, para evitar dano de difícil reparação”. Resta entender: qual foi a verdadeira pretensão do legislador ao dispor sobre medidas cautelares, inclusive quando é sabido que o projeto original da lei 10.259 continha a expressão “medidas urgentes” no texto do art. 4º? As tutelas cautelares não se confundem com a tutela antecipatória. Apresentam requisitos distintos e cada qual busca objetivos diversos. A dificuldade, porém, se encontra-se em diferenciar medida cautelar de tutela cautelar e processo cautelar. Marília Lourido dos Santos, citando Humberto Theodoro Junior (1998)nensina que a tutela cautelar se realiza através do processo cautelar, e constitui uma nova face da jurisdição, um tertium genus que contém a um só tempo as funções do processo de conhecimento e de execução, e tem por elemento específico a prevenção. Já a medida cautelar é mais ampla, tem a finalidade de prevenção ou precaução de outro direito, a ser invocado posteriormente. Seja qual for a nomenclatura, é certo que a doutrina é pacífica ao pronunciar que, em sendo cautelar, via de regra, será acessória e se sujeitará a um processo principal. Porém, em se tratando de Juizados, a face de seus princípios, dentre eles o da informalidade e da celeridade, “não há necessidade de autuação própria do pedido cautelar, podendo ele ser formulado por simples petição” (BOLLMAN, 2004, p. 36). Portanto, não há que se confundir a tutela cautelar com a tutela antecipatória. A primeira é prevista na lei especial e pelos fundamentos dela deve ser procedida, e não pelos preceitos da norma geral do CPC, que certamente exigiria a formalidade da autuação apartada da ação principal. Outrossim, não se deve generalizar o termo “medidas cautelares” e inserir a tutela antecipada como sua espécie. Esta também será possível nos Juizados, como a frente se verá, mas não pelos fundamentos no art. 4º, e sim pelos defendidos motivos da possibilidade da aplicação subsidiária do CPC em sede do órgão especial. 3 Informações no site do Tribunal Regional da 4ª Região dão conta que já foram distribuídos aproximadamente 140 mil processos virtuais, o que significa uma economia de cerca de R$ 2.800.000,00 com papel e outros insumos de cartório. Disponível em: <www.trf4.gov.br/trf4/upload/arquivos/emagis_prog_cursos/jef_eproc.ppt>. Acessado em: set. 2006 REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 04-revista_07.p65 56 29/10/2007, 21:43 Hylea Maria Ferreira 7 A APLICABILIDADE SUBSIDIÁRIA DO CPC NOS JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS É legítima a aplicação do CPC às lacunas da Lei 9099/95, por meio de analogia, observando a não contrariedade com a norma específica. Neste sentido, defende Misael Montenegro Filho (2005, p. 68): A Lei Maior garantiu o direito de ação, abrindo as portas do judiciário para que as pessoas que se sentem lesadas apresentem ações formais perante o representante do poder em análise, impondo a formação de um processo. Porém, evidente que o direito de ação não se limita a assegurar o acesso ao representante do Poder Judiciário. No momento em que o processo é formado, o Estado se torna devedor de uma resposta jurisdicional, não necessariamente de mérito, segundo a teoria eclética desenvolvida por Liebman, exigindo-se do autor que preencha as condições da ação (...). Percebendo que a lei especial prega a celeridade do processo (...) não nos parece lógico negar a antecipação da tutela no âmbito dos órgãos especiais, já que o seu deferimento estará sempre apoiado no princípio em estudo. A presente situação elucida a necessidade de se estudar e praticar os métodos hermenêuticos na interpretação da lei. A análise exclusiva da letra fria da lei, tão somente quanto à sua sintática, não expressa a mens legislatoris, tendo em vista que, em se aplicando somente este método restritivo de interpretação, não seria possível buscar solução para os casos que a lei deixou de prescrever. Hans Kelsen já ensinava, em sua obra Teoria Pura do Direito, que o direito é um sistema que é, em si mesmo, bastante, pois as normas que o compõem contém em si a possibilidade de solucionar todos os conflitos levados à apreciação dos magistrados ou órgãos jurisdicionais competentes. Leciona o jurisfilósofo (1998, p. 273): (...) uma ordem jurídica pode sempre ser aplicada por um tribunal a um caso concreto, mesmo na hipótese dessa norma jurídica, no entender do Tribunal, não conter qualquer norma geral através da qual a conduta do demandante ou acusado seja regulada de modo positivo. (...) quando não houver a norma jurídica singular, que expresse qual postura deverá ser adotada no caso concreto, sempre será possível a aplicação da ordem jurídica, o que é, também, a aplicação do direito. Norberto Bobbio (1999, p. 114-116), por sua vez, aperfeiçoou esse raciocínio e discorreu sobre a Completude do Ordenamento Jurídico: não existe caso que não possa ser regulado por uma norma extraída do sistema, excluindo-se a possibilidade de haver lacunas, ou seja, falta de normas que regulem os fatos. Desta sorte, é imprescindível que se admita a hipótese de aplicação secundária do CPC ante aos Juizados Especiais Cíveis – Estaduais ou Federais - pois o que se pretende é alcançar a justiça e não impor obstáculos à sua perpetuação, diante da omissão equivocada do legislador. REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 04-revista_07.p65 57 29/10/2007, 21:43 57 A Tutela Antecipada em Sede de Juizados Especiais Cíveis 8 CABIMENTO DA TUTELA ANTECIPADA EM SEDE DE JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS ESTADUAIS O motivo que talvez possa justificar mais adequadamente a antecipação dos efeitos da sentença nos Juizados é a dinâmica do princípio da celeridade. Esse princípio relacionase intrinsecamente com a tutela antecipada nos Juizados, como pressuposto fundamental. Ora, se os Juizados são competentes para processar determinada ação, mister também ousar dizer que ao juízo cumpre tomar todas as providências devidas para o cumprimento da função jurisdicional. Outrossim, a regra do art. 273 do CPC pode ser muito bem aplicada, com resultados satisfatórios ao que se pretende, pois não apresenta conflitos com a lei especial. Senão, veja-se a decisão: EMENTA: MANDADO DE SEGURANÇA - ANTECIPAÇÃO DA TUTELA POSSIBILIDADE NOS JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS - DECISÃO QUE NÃO SE REVELA TERATOLÓGICA - DENEGAÇÃO DA ORDEM. A antecipação da tutela é cabível nos Juizados Especiais Cíveis, tratando-se de medida que se coaduna perfeitamente com os modernos princípios de celeridade da prestação jurisdicional com justa distribuição do ônus da demora processual entre as partes. São cabíveis a tutela acautelatória e a antecipatória em sede dos Juizados Especiais Cíveis, em caráter incidental. (II Encontro Nacional dos Coordenadores de Juizados Especiais, Cuiabá, dezembro de 1997) É compatível com o rito estabelecido pela Lei nº 9.099/95 a tutela antecipatória a que alude o art. 273 do Código de Processo Civil. (Enunciado nº 06, do 1o EMJERJ) Decisão que, em antecipação de tutela determinou o bloqueio da transferência de veículo perante o Detran em razão de garantia da satisfação de obrigação pelo Impetrante, é medida acautelatória facultada ao Juízo, que não se revela teratológica. Denegada a ordem. (TJPR. 2006.0003477-7. Rel. Jose Sebastião Fagundes Cunha. 28/07/2006). 58 Seja sob qual posicionamento for, importa é que é hialino o entendimento de que a tutela não só é cabível nos Juizados Especiais Cíveis, como também se demonstra necessária, com o escopo de atingir a finalidade da prestação jurisdicional, ainda que no contexto das pequenas causas. 9 CABIMENTO DA TUTELA ANTECIPADA EM SEDE DE JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS FEDERAIS Ao tratar da tutela antecipada no âmbito dos Juizados Especiais Federais não se deve concluir que ela encontra-se prevista na lei, diante do exposto no art. 4º da Lei 10.259/01 (ver item 6.1). Aquele dispositivo trata das medidas cautelares e não da medida satisfativa que se perfaz na tutela antecipada. Esta é igualmente possível de ser concedida na sede do órgão especial, porém, pelos seus próprios fundamentos. Vilian Bollmann (2004, p. 38) defende que a tutela é possível nos Juizados pelos motivos da possibilidade da aplicação supletiva do Código de Processo Civil face à lei especial, assim como ante ao princípio da celeridade e da efetividade da jurisdição, pois condiz com o “espírito” dos Juizados Especiais. Assim, inexiste incompatibilidade entre os Juizados Especiais Federais e a tutela antecipada, pois “ambos constituem mecanismos de salvaguarda da efetividade do direito material, seja pela adoção de procedimento mais célere, seja pela produção, em tempo presente dos efeitos de uma futura sentença”. Observe também a decisão proferida pela Turma Recursal do Estado da Bahia: REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 04-revista_07.p65 58 29/10/2007, 21:43 Hylea Maria Ferreira PROCESSUAL CIVIL. RECURSO CONTRA DECISAO. FORNECIMENTO GRATUITO DE MEDICAÇÕES A PACIENTE PORTADOR DE HTLV-I. LEGITIMIDADE PASSIVA DA UNIÃO. LITISCONSÓRCIO PASSIVO NECESSÁRIO COM O ESTADO E MUNICÍPIO. INCOMPETÊNCIA DO JUIZADO ESPECIAL FEDERAL. NÃO CONFIGURAÇÃO. ANTECIPAÇÃO DE TUTELA NOS JUIZADOS ESPECIAIS. POSSIBILIDADE. REQUISITOS AUTORIZADORES DA ANTECIPAÇÃO DE TUTELA CONCEDIDA PRESENTES. RECURSO DESPROVIDO. 1. Inexiste ilegitimidade passiva da União para o fornecimento de medicamento, pois a Constituição Federal e a Lei nº 8.080, de 19.09.90, que dispõe sobre o Sistema Único de Saúde, estabelece a responsabilidade solidária da União, Estados, Distrito Federal e Municípios de prover as condições indispensáveis ao pleno exercício do direito à saúde. 2. Considerando-se a obrigação concorrente da União, Estado e Município de prover a atenção à saúde, nada obsta que a decisão antecipatória da tutela se volte apenas contra a União, se os outros entes políticos não dispõem da medicação pleiteada. 3. Não ocorrendo nenhuma das situações de exclusão legalmente previstas, não há que se falar em incompetência do Juizado Especial Federal. 4. Cabível a antecipação dos efeitos da tutela nos Juizados Especiais Federais como medida de urgência prevista no art. 273, inciso I, do CPC, efetuando-se uma interpretação não literal do art. 4º da Lei nº 10.259/2001, conforme exige o art. 5º, da Lei de Introdução ao Código Civil, como também considerando a aplicação supletiva do Código de Processo Civil. 5. Comprovada a existência nos autos de prova inequívoca da doença da Recorrida (Paraparesia Espástica Tropical, causada pelo vírus HTLV-I), bem como o fundado receio de dano irreparável à saúde, sem o fornecimento do medicamento necessário, deve ser mantida a decisão que antecipou os efeitos da tutela. 6. Recurso desprovido (Turma Recursal dos Juizados Especiais Federais da Seção Judiciária do Estado da Bahia. Recurso Inominado. 2004.33.00.762691-0. Rel. Rosana Noya Weibel Kaufmann. 16/ 12/2005) (grifo nosso). O subsistema dos Juizados Federais possui, ainda, uma característica peculiar: a de tratar de causas de natureza alimentar ou salarial, quando das ações de direito previdenciário. Portanto, a antecipação dos efeitos do mérito se faz mais que necessária, pois o direito em questão pode estar a retirar do requerente verbas de caráter alimentar, ou seja, essenciais à própria subsistência. Nesse sentido se manifestou também J. E. Carreira Alvim (2005): A antecipação da tutela, como se vê, é realmente necessária (...) nas causas previdenciárias, em que o INSS, muitas vezes, suspende, manu militari, benefícios previdenciários regularmente concedidos ao segurado, sob mera suspeita de fraude. Certa vez, reformei uma decisão de um juiz de primeiro grau, dando efeito ativo a um agravo de instrumento, num caso em que fora cancelado o benefício previdenciário, e esse juiz denegara a tutela antecipada porque não vira “fumus boni juris” e o “periculum in mora”, a darem suporte ao provimento antecipatório, como se o beneficiário não tivesse o direito de alimentar-se até que se resolvesse o mérito da causa. Com relação à sua concessão ex oficio, adota-se o entendimento de que é possível e necessário. Negar que a antecipação da tutela possa ocorrer de ofício por ato do juiz é negar, do mesmo modo, as garantias que à lei outorga ao requerente, leigo, de propor ação sem a representação judicial. Ora, não se pode exigir que a parte autora possua conhecimento técnico para apontar ao remédio legal do seu litígio, tampouco prosperará a idéia de que o magistrado não possa vir a reconhecer este remédio pelo seu próprio impulso (SANTOS, 2005). REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 04-revista_07.p65 59 29/10/2007, 21:43 59 A Tutela Antecipada em Sede de Juizados Especiais Cíveis 10 A TUTELA ANTECIPADA NO ÂMBITO RECURSAL DOS JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS 60 Conforme preceitua a regra do art. 43 da Lei 9099/95, os recursos serão recebidos apenas do efeito devolutivo, sendo outorgado ao juiz a possibilidade de utilizar-se do efeito suspensivo somente para evitar o dano irreparável para a parte. Assim sendo, a lei dos Juizados preceitua a regra de que sempre será possível a execução provisória da sentença, salvo aqueles casos em que, mesmo em caráter provisório, a execução possa vir a acarretar prejuízos para a parte executada. A tutela antecipada poderá ser concedida no âmbito recursal, face aos juizados especiais cíveis, nos casos em que, sendo julgada improcedente a ação em primeiro grau, o requerente continue a apresentar os requisitos exigidos pelo art. 273 do CPC, não apreciados às vistas do julgador da primeira instância. Portanto, uma vez observados presentes os requisitos autorizadores da concessão da tutela antecipada, poderá ser concedida no âmbito recursal, respeitando os limites da execução provisória. William Santos Ferreira (2000, p. 244) aduz suas justificativas para a admissão da tutela antecipada no âmbito recursal. Entre tais fundamentos, ensina que, no âmbito recursal, o processo é dotado de mais elementos, portanto, é mais maduro, o que traz maior segurança na verificação dos requisitos do art. 273 do CPC. Em consonância, cumpre ressaltar que, no procedimento comum, uma vez recebido o recurso somente no efeito suspensivo, contra esta decisão caberá o agravo de instrumento, requerendo o efeito ativo da tutela antecipatória. Porém, tratando a lei dos juizados de um procedimento especial, um subsistema judiciário, não é possível a interposição de agravo de instrumento, posto que a Lei 9099/95, nos arts. 41 e 42, versou sobre os recursos passíveis na sede do órgão especial, excluindo-se a referida modalidade. Para dirimir tal questão, a Turma Recursal Única do Paraná já se consolidou a respeito: MANDADO DE SEGURANÇA. RECURSO INOMINADO PARAA TURMA RECURSAL. JUÍZO DEADMISSIBILIDADE. INVIABILIDADE DE SER EXERCIDO PELO ÓRGÃO A QUO. É cabível, excepcionalmente, a impetração de Mandado de Segurança para a Turma Recursal quando o ato judicial atacado subtraiu da sua competência o exame do recurso inominado previsto na Lei 9.099/95 contra a sentença. Não é lícito ao Juízo a quo exercer o juízo de admissibilidade recursal nos Juizados Especiais Cíveis. Esse controle de admissibilidade recursal somente poderá ser exercido pelo Juízo a quo nas hipóteses de recursos manifestamente incabíveis e em processos com certidão do trânsito em julgado da sentença que se pretende revisar. SEGURANÇA CONCEDIDA. (TJDF, Classe do Processo: DIVERSOS NO JUIZADO ESPECIAL ; Registro do Acórdão Número: 105833. Órgão Julgador: Turma Recursal dos Juizados Especiais; Rel. Angelo Canducci Passareli. DJ: 15/06/1998) . Portanto, não sendo possível a interposição de agravo de instrumento, a sua ferramenta mais próxima será o mandado de segurança, pois se trata da garantia constitucional aos atos ilegais praticados pela autoridade pública. Outra questão pertinente é quanto à competência para julgar o mandado de segurança interpelado em face da decisão do magistrado atuante nos Juizados Especiais. Com o intuito de pacificar o entendimento, o STJ proferiu a seguinte decisão: JUIZADOS ESPECIAIS. MANDADO DE SEGURANÇA CONTRAATO DE AUTORIDADE DE PRIMEIRO GRAU. Competência do órgão que, em segundo, se constitui em instancia revisora de seus atos. decisão por unanimidade, negar provimento ao recurso ordinário. (STJ, Órgão Julgador - TER- REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 04-revista_07.p65 60 29/10/2007, 21:43 Hylea Maria Ferreira CEIRA TURMA Relator Ministro EDUARDO RIBEIRO ROMS 6710/SC; (96/ 0005778-8) Data da Decisão 08/10/1996 Fonte DJ DATA: 25/11/1996 PG: 46201). Assim, não obstante as diversas polêmicas que permeiam a questão dos recursos contra decisões interlocutórias nos Juizados, o direito existente não poderá deixar de ser apreciado por falta da previsão legal, de forma que, ainda que não seja o instrumento totalmente adequado, o mandado de segurança é a ferramenta que tem a possibilidade de garantir o direito de recurso. 11 CONCLUSÃO A tutela antecipada foi inserida no ordenamento brasileiro ante à necessidade de um instrumento adequado para suprir os casos práticos que demonstravam a necessidade de um reconhecimento mais amplo e concreto do que aqueles possíveis mediante às ações cautelares, utilizadas erroneamente nestes casos, antes da vinda a lume deste badalado instituto. Com o seu reconhecimento, o ordenamento jurídico brasileiro viu-se diante da satisfação proporcionada por um remédio há muito necessitado, utilizado perante a comprovação hábil de seus requisitos autorizadores. Não obstante, com o surgimento da Lei 9.099/95, originou-se também um novo procedimento. A nova lei criara os Juizados Especiais Cíveis e Criminais, um microsistema que se apresentou para aprimorar a garantia do direito de ação e da satisfação da função jurisdicional. Os Juizados Especiais se mostraram como uma ferramenta jurisdicional acessível a toda a população, antes limitada pela simplicidade de suas demandas ou pelas burocracias e formalidades jurisdicionais. Em que pese seu amplo acesso, a morosidade também se revelou nestes órgãos. A Lei 9099/95 omitiu-se quanto à aplicação subsidiária do CPC. Uma explicação plausível para tanto é a de que existiria certa contrariedade entre a previsão supletiva do CPC, face aos objetivos pretendidos com a criação do órgão especial. Prever a necessidade da aplicação do CPC antes mesmo das instalações dos Juizados, seria considerar o sistema especial falido, antes mesmo do início de suas atividades. Os Juizados nasceram como um órgão autônomo, porém, a estrutura jurisdicional apresentada não fora suficiente para conter os anseios sociais. Defende-se a tese de que é possível a aplicação da tutela antecipada em sede dos Juizados Especiais Cíveis – Estaduais ou Federais – porquanto o instituto apresentado pela norma geral não conflita com a lei especial. Pelo contrário, contribui com a eficácia da celeridade motivadora daqueles órgãos, aproximando a parte do seu direito material. Também, defende-se a tese da possibilidade da aplicação da antecipação dos provimentos do mérito ex officio pela pessoa do magistrado. Como dito, os Juizados são norteados pelo seu próprio sistema principiológico, dentro os quais o da informalidade, que, inclusive, veio a permitir que as partes possam pleitear ação judicial desacompanhadas de advogado. Assim, permitiu a lei, em outras palavras, que aquele que não detenha conhecimento técnico jurídico possa atuar em causa própria, destarte, sem que isso lhe cause conseqüências aquém dos seus direitos. REFERÊNCIAS CARREIRA ALVIM, J.E. Juizados Especiais Federais. Revista Júdice. Mato Grosso, ano IV, n. 11, abril. 2002. Disponível em: <http://www.mt.trf1.gov.br/judice/jud11/Juizados_Especiais_Civeis_Federais.htm> Acesso em: 03 mai. 2005. REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 04-revista_07.p65 61 29/10/2007, 21:43 61 A Tutela Antecipada em Sede de Juizados Especiais Cíveis ARENHART, Sérgio Cruz; MARINONI, Luiz Guilherme. Manual do Processo de Conhecimento. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. 10. ed. Brasília: UnB, 1999. BOCHENEK, Antonio César. Competência Cível. Da Justiça Federal e dos Juizados Especiais Cíveis. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. BOLLMAN, Vilian. Juizados Especiais Federais. Comentários à Legislação de Regência. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2004. CÂMARA, Alexandre Freitas. Juizados Especiais Cíveis Estaduais e Federais. 2. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2005. CARNEIRO, Athos Gusmão. Da Antecipação da tutela. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002. DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. v. 3. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. FRIGINI, Ronaldo. Comentários à Lei dos Juizados Especiais Cíveis. 2. ed. São Paulo: JH Mizimo, 2004. KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. LOPES, João Batista. Tutela Antecipada no Processo Civil Brasileiro. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. 62 MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela Antecipatória, Julgamento Antecipado e Execução Imediata da Sentença. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. ______ . A Antecipação da tutela. 3. ed. São Paulo: Malheiro, 1997. MIRABETE, Julio Fabrini. Juizados Especiais Criminais. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2000. ______. Manual de Direito Penal. v. 1. 16. ed. São Paulo: Atlas, 2000. MONTENEGRO FILHO, Misael. Curso de Direito Processual Civil. Medidas de Urgência, tutela antecipada e Ação Cautelar, Procedimentos Especiais. v. 3. São Paulo: Atlas, 2005. MORAES, Silvana Campos. Juizado Especial Cível. Rio de Janeiro: Forense, 1998. ROCHA, Felipe Borring. Juizados Especiais Cíveis. Aspectos Polêmicos da Lei 9009/95. Rio da Janeiro: Lúmen Júris, 2002. SANTORO, Gláucia Carvalho. Tutela Antecipada: A Solução. Rio de Janeiro: Forense, 2000. SILVA JUNIOR, Valdecy José Gusmão da. A antecipação de Tutela nos Juizados Especiais. Jus Navigandi, Teresina, a. 6, n. 59, out. 2002. Disponível em: <http://www1.jus.com.br/doutrina/ texto.asp?id=3293>. Acesso em: 04 mai. 2005. SANTOS, Marília Lourido dos. Tutela Cautelar e Tutela Antecipatória (âmbito e diferenças dos institutos). Jus Navigandi, Teresina, ano 3, n. 27, dez. 1998. Disponível em: <http:// jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=871>. Acesso em: 06 out. 2006. REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 04-revista_07.p65 62 29/10/2007, 21:43 Hylea Maria Ferreira SANTOS, Raimundo Nonato Silva. A Tutela Antecipada em Sede de Juizados Especiais. Associação Cearense de Magistrados. Disponível em: <http://www.acmag.com.br/HTML/ tutela_ant_je.htm>. Acesso em: 16 fev. 2005. THEODORO JR., Humberto. Processo Cautelar. São Paulo: Livraria e Editora Universitária de Direito, 2000. ______ . Curso de Processo Civil. v. 3. 25. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001. TUCCI, José Rogério Cruz e. Tempo e Processo: uma análise empírica das repercussões do tempo na fenomenologia processual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. WAMBIER, Luiz Rodrigues; ALMEIDA, Flávio Renato Correira de; TALAMINI, Eduardo. Curso Avançado de Processo Civil. v. 1. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. ZAVASCKI. Teori Albino. Antecipação da tutela. São Paulo: Saraiva. 1997. 63 REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 04-revista_07.p65 63 29/10/2007, 21:43 O Princípio Constitucional da Publicidade e Propaganda do Governo O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA PUBLICIDADE E PROPAGANDA DO GOVERNO Marcos Antônio Striquer Soares* RESUMO Analisa a dimensão constitucional do princípio da publicidade, como publicidade obrigatória e necessidade de publicação ou comunicação, como publicidade obrigatória sem necessidade de publicação ou comunicação, havendo aí a possibilidade de publicidade resumida. Constata-se a possibilidade da proibição de publicidade, bem como a publicidade desnecessária ou impossível. Por fim, analisa o art. 37, § 1º da Constituição onde é encontrada a publicidade autorizada ou propaganda dos órgãos públicos. Palavras-chave: Princípio da Publicidade. Propaganda. Princípio Republicano. Princípio Democrático. THE CONSTITUTIONAL PRINCIPLE OF THE ADVERTISING AND PROPAGANDA OF THE GOVERNMENT ABSTRACT 64 It analyzes the constitutional dimension of the principle of the advertising, as obligator advertising and publication necessity or communication, as obligator advertising without publication necessity or communication, having there the possibility of summarized advertising. It is evidenced possibility of the prohibition of advertising, as well as the unnecessary or impossible advertising. Finally, it analyzes art. 37, § 1º of the Constitution where the advertising authorized or propaganda of the public agencies is found. Keywords: Principle of the Advertising. Propaganda. Republican Principle. Democratic Principle. 1 PUBLICIDADE DOS ÓRGÃOS PÚBLICOS: A PUBLICIDADE COMO ATO DE DIVULGAR, DE TORNAR PÚBLICO Por estranho que pareça às gerações mais novas, a publicidade referente a bens e interesses públicos, no Brasil, somente nos últimos anos, vem ganhando a importância exigida pelo princípio republicano. Antes da Constituição de 1988, embora a publicidade fosse exigida, ela não tinha a dimensão atual. Conferir a este princípio expressão constitucional, como ocorre no sistema jurídico brasileiro, tem explicação histórica. A marcha dos fatos da história nacional deixou marcas de uma administração privada praticada no Estado com os recursos do povo e, pior ainda, com a esperança do povo em que o * Mestre e doutor em Direito do Estado/Direito Constitucional pela PUC/SP; professor de Direito Constitucional na UniFil; professor de Direito Constitucional na graduação, na especialização e no mestrado em Direito Negocial da UEL. REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 05-revista_07.p65 64 29/10/2007, 21:43 Marcos Antônio Striquer Soares quanto praticado era feito para atendimento de suas necessidades mais primárias. (...) Por isso, a falta de limites bem definidos ou bem respeitados entre o público e o privado, no desempenho estatal das atividades administrativas, justifica a inclusão expressa da publicidade como princípio constitucional da Administração (ROCHA, 1994, p. 239). A partir da década de 50, acentuando-se nos anos setenta, surge o empenho em alterar a tradição de ‘secreto’ predominante na atividade administrativa. A prevalência do ‘secreto’ na atividade administrativa mostra-se contrária ao caráter democrático do Estado. A Constituição de 1988 alinha-se a essa tendência de publicidade ampla a reger as atividades da Administração, invertendo a regra do segredo e do oculto que predominava. O princípio da publicidade vigora para todos os setores e todos os âmbitos da atividade administrativa (MEDAUAR, 2004, p. 149-150). Na pesquisa bibliográfica, realizada para este trabalho, foram encontradas poucas linhas sobre o tema em textos mais antigos, vindo a figurar com mais freqüência em textos posteriores a 1988. A origem da palavra “publicidade” é encontrada no Dicionário de Comunicação de Carlos Alberto Rabaça e Gustavo Barbosa (1998, p. 481), com sentido jurídico, e designa, a princípio, o “ato de divulgar, de tornar público”, vindo a adquirir, no século 19, também um significado comercial: qualquer forma de divulgação de produtos ou serviços, através de responsabilidade de um anunciante identificado. Portanto, na origem, a expressão tem um sentido jurídico e significa ato de divulgar, de tornar público. Somente depois é que veio a adquirir o sentido comercial utilizado como sinônimo de propaganda. O significado original do termo, registrado com sentido jurídico, permanece até hoje no campo da Ciência do Direito. Quando se fala em “publicidade”, nesta seara do conhecimento, esta-se referindo ao “ato de divulgar, de tornar público”. Este fato é de fundamental importância para este estudo, pois quando a lei impõe ao administrador público o dever de publicar algo, não lhe impõe o dever de fazer propaganda, mas, simplesmente, de divulgar algo. A publicidade, no âmbito dos órgãos públicos, é exigência expressa da Constituição brasileira, em diversos dispositivos. Contudo, conforme já se pode detectar pelos textos acima citados, o termo tem mais de um significado. No caput do art. 37, ela aparece como “princípio”. No art. 84, IV, onde se encontra a competência do presidente da República para “fazer publicar as leis”, a publicidade é exigida como condição de aperfeiçoamento da lei produzida pelo Estado. Já no art. 93, IX, o qual determina que “todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos”, excetuado o interesse público, a publicidade não tem nenhuma das características anteriores: não é um princípio e, embora seja necessária para não haver nulidade do julgado, não é o tipo de publicidade – ao menos no sentido exposto no dispositivo – que exija publicação (uma das formas de publicidade). O §1º, do art. 37, traz outro tipo de publicidade, muito diferente das examinadas, trata-se de propaganda dos órgãos públicos. “Publicidade” na Constituição de 1988 é, portanto, conceito polissêmico, ou seja, a expressão é utilizada, conforme explicação de Canotilho e Vital Moreira, em sentidos diversos no texto constitucional, cabendo ao intérprete precisar a “intenção” (sentido) com que esses conceitos são utilizados nos vários preceitos da Constituição. “Perante cada utilização de um conceito polissêmico haverá que analisar cuidadosamente qual o sentido que lhe cabe nessa circunstância” (CANOTILHO e MOREIRA, 1984, p. 48). Deve-se, portanto, examinar as possibilidades de significado do termo “publicidade”. REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 05-revista_07.p65 65 29/10/2007, 21:43 65 O Princípio Constitucional da Publicidade e Propaganda do Governo 2 PUBLICIDADE OBRIGATÓRIA: A PUBLICIDADE COMO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL E COMO REGRA CONSTITUCIONAL 66 A Constituição brasileira, conforme visto, traz a exigência de publicidade em diversos dispositivos constitucionais. Em cada um deles, contudo, podem-se encontrar características de princípios ou de regras. Esta bipartição das características da norma jurídica vem sendo afirmada em Direito Constitucional: princípios e regras têm sido apresentados como espécies de norma,1 é a posição aceita por grande parte da doutrina atualizada, encontrada nos estudos mais recentes sobre o assunto. Paulo Bonavides (202, p. 228-266) traz o desenvolvimento das idéias que culminaram nessa teoria (princípios e regras como espécies de normas). Conforme apresente características de “princípio” ou de “regra”, a exigência de publicidade terá efeito diferente no mundo jurídico. O “princípio constitucional” é a norma jurídica caracterizada como base do sistema jurídico, dotada de um alto grau de abstração, contém pouca densidade semântica e maior conteúdo axiológico, dependente da ação do intérprete para sua aplicação, e tem como função expressar valores do povo e do Estado2 , dar unidade e harmonia ao sistema jurídico e orientar a interpretação da Constituição. Para se entender a publicidade dos órgãos públicos, deve-se destacar que o princípio é norma jurídica e, como tal, produz efeitos jurídicos, obrigando a todos; tem alto grau de abstração e pouca densidade semântica, o que indica vários significados e várias possibilidades de interpretação e aplicação, exigindo a intermediação do intérprete, o qual utiliza a lei, a sentença, o ato administrativo, o contrato e, até mesmo, o costume para dar vida ao princípio constitucional. As regras constitucionais são normas jurídicas de maior densidade semântica e de aplicação direta, sem necessidade de qualquer intermediação entre ela e o fato disciplinado, já que são dotadas de conteúdo axiológico, a ser determinado pelo intérprete. De um modo geral, tratar de publicidade, no âmbito de órgãos e funções públicas, é falar de publicidade obrigatória. Em princípio, tudo o que diga respeito aos órgãos públicos e suas respectivas funções deverá ter publicidade, transparência. Duas exceções podem ser apresentadas: a publicidade proibida por determinação da Constituição e a publicidade desnecessária, das quais se tratará adiante. Interessa, neste instante, esclarecer as exigências de publicidade, ou melhor, os casos de “publicidade obrigatória”. As exigências de publicidade obrigatória devem ser divididas em duas possibilidades: publicidade “com divulgação obrigatória” e publicidade “sem divulgação obrigatória”. Ainda que a doutrina trate o assunto de um modo genérico, percebe-se que, em alguns casos, o Poder Público não tem obrigação de proceder à publicação ou comunicação de dados retidos em seus departamentos; outras vezes, pelo contrário, o aperfeiçoamento do dado retido nos órgãos públicos depende de veiculação dele aos interessados. 1 Canotilho explica: “Salienta-se, na moderna constitucionalística, que à riqueza de formas da constituição corresponde a multifuncionalidade das normas constitucionais. Ao mesmo tempo, aponta-se para a necessidade dogmática de uma clarificação tipológica da estrutura normativa. [...]. A teoria da metodologia jurídica tradicional distinguia entre normas e princípios (Norm-Prinzip, Principles-rules, Norm und Grundsatz).” O autor abandona esta distinção, preferindo outra: “(1) – as regras e princípios são duas espécies de normas; (2) – a distinção entre regras e princípios é uma distinção entre duas espécies de normas” (Direito constitucional, 6ª ed., Coimbra, Almedina, 1993, p.154-166). 2 Explicando a titularidade da soberania, Miguel Reale escreve: “A soberania é substancialmente da Nação e só juridicamente é do Estado, o que quer dizer que, socialmente (mais quanto à fonte do poder), a soberania é da Nação, mas juridicamente (mais quanto ao exercício do poder) a soberania é do Estado” (Teoria do Direito e do Estado, 5ª ed., São Paulo, Saraiva, 2000, p. 157). REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 05-revista_07.p65 66 29/10/2007, 21:43 Marcos Antônio Striquer Soares 2.1 A publicidade como princípio constitucional e a desnecessidade de publicação ou comunicação A publicidade como princípio contém a exigência genérica de publicidade (dar a público, veicular, informar, prestar contas). Tudo o que se refere ao Estado exige publicidade e a ausência desta é exceção encontrada na própria Constituição. A publicidade, como princípio constitucional, serve de orientação para todo e qualquer comportamento do Estado. “Comportamento” aqui tem um conteúdo importante, pois significa tudo que o Estado, ou parte dele, faz que envolva ação ou reação.3 Envolve o conjunto de atitudes e reações dos órgãos públicos, do Estado em face do meio social.4 “Comportamento”, aqui, envolve inclusive a omissão, já que a omissão, no Direito, pode caracterizar-se como falta de ação ou uma reação indevida diante de uma imposição de lei. A doutrina tem utilizado os termos “atividade e atos da administração ou atos estatais”, entre outros, para expressar esse conjunto de ações e reações dos órgãos públicos. Sem descartar estes, prefere-se aquele termo, por ser mais abrangente. Da Constituição brasileira podem ser extraídos os seguintes princípios referentes à publicidade: da “publicidade” (art. 37, caput – afeto à função administrativa); da “publicidade e motivação das decisões judiciais e administrativas” (art. 93, IX e X – afetos ao Poder Judiciário e às funções jurisdicional e administrativa); do “direito à informação” (art. 5º, XXXIII, pelo qual todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado – é importante ressaltar que tal direito não se restringe à informação somente de interesse do indivíduo, mas também de interesse coletivo ou geral); e da “publicidade dos atos processuais” (art. 5º, LX, pelo qual a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem). A publicidade como princípio não impõe a divulgação pelo Diário Oficial ou outro meio qualquer de publicidade5 , de tudo o que diga respeito ao Estado a todo e qualquer indivíduo. Exige, sim, a disponibilidade das informações, a possibilidade de acesso às informações a todo e qualquer cidadão. Quando surge uma lei impondo a publicidade de certo comportamento do Estado, de contrato, por exemplo, nasce a regra jurídica. Tratando do processo administrativo, Sérgio Ferraz e Adilson Abreu Dallari (2001, p. 84) asseveram: salvo as ressalvas estabelecidas e as decorrentes de razões de ordem lógica, o processo administrativo deve ser público, acessível ao público – ao público em geral e não apenas às partes diretamente envolvidas. Salvo determinação regular de tramitação sigilosa, nada pode impedir a vista de autos ou mesmo a obtenção de certidões. 3 No Dicionário Houaiss encontra-se: “2. tudo que um organismo, ou parte dele, faz que envolva ação e resposta à estimulação [...]. 3. reação de um indivíduo, de um grupo ou de uma espécie ao complexo de fatores que compõe o seu meio ambiente [...].” (Antônio Houaiss; Mauro de Salles Villar, Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, Rio de Janeiro, Objetiva, 2001, p. 777). 4 No Dicionário Aurélio encontra-se: “conjunto de atitudes e reações do indivíduo em face do meio social” (Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, Novo dicionário da língua portuguesa, p. 441). 5 Geraldo Ataliba esclarece: “Publicar um ato é fazê-lo público. A publicação mais solene que há está em mandá-lo para o Diário Oficial. Entretanto, não seria possível, nem necessário, que todos os atos administrativos fossem publicados. Muitos despachos – por circunstâncias que se ligam aos processos em que se produzem, esfera de interessados, ou outras razões – embora sejam públicos, não vão para o DO. Entretanto, públicos que são, por definição, consideram-se publicados no instante que são praticados.” Na página seguinte, completa o autor: “como todo ato administrativo é público (do conhecimento do povo, por definição) não se requer saia no Diário Oficial. Publicado ele já foi desde que prolatado. [...] O que dá eficácia ao ato é sua prolação e inserção num processo administrativo. Não a publicação no DO. Isto só se requer para atos normativos ou atos externos” (Eficácia de ato administrativo – publicação, Revista de Direito Público, São Paulo, v. 25, n. 99, jul./set. 1991, p. 19 e 20). REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 05-revista_07.p65 67 29/10/2007, 21:43 67 O Princípio Constitucional da Publicidade e Propaganda do Governo Muitas das atividades dos órgãos públicos, portanto, não são publicadas ou comunicadas à sociedade ou aos cidadãos e isto não fere o princípio da publicidade. Pelo contrário, o princípio dá à Administração Pública a orientação de transparência, o que vale dizer disponibilidade dos dados ali retidos à sociedade. No entanto, não impõe a divulgação de tudo o que ocorre no interior dos órgãos públicos. Esses dados, que não são de publicação obrigatória, mas ficam disponíveis à consulta da sociedade, dependem da solicitação de interessado, cabendo ao Estado prestálos nesse instante. O agente público é obrigado a prestar a informação solicitada conforme os dados constantes do órgão público, sem omissão alguma, sob pena de ser responsabilizado criminalmente6 , além da punição administrativa cabível. A possibilidade da legislação infraconstitucional exigir expressamente a publicação ou comunicação de determinados atos (por exemplo, as regras sobre citação e intimação contidas no Código de Processo Civil) nasce dessa exigência genérica de publicidade dos comportamentos dos órgãos públicos, ou, precisamente, do princípio da publicidade. O legislador ordinário pode, portanto, criar as regras jurídicas referentes à publicidade com base no princípio da publicidade contido na Constituição. Se o princípio da publicidade traz a obrigação genérica de disponibilização de dados, de transparência dos órgãos públicos, a criação de regra cobrando publicação ou comunicação será legítima. Enquanto princípio constitucional, a publicidade tem o conteúdo desta espécie de norma jurídica, anteriormente referida como norma jurídica, caracterizada como base do sistema jurídico, dotado de um alto grau de abstração, com pouca densidade semântica e maior conteúdo axiológico, e dependente da ação do intérprete para sua aplicação, tendo como função expressar valores do povo e do Estado, dar unidade e harmonia ao sistema jurídico e orientar a interpretação da Constituição. Além disso, o conceito de princípio dado por Celso Antônio Bandeira de Mello é bastante significativo para a compreensão da publicidade como tal: princípio [...] é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico (2001, p. 771-772). 68 Assim, a publicidade como princípio constitucional não impõe a publicação e a comunicação de todo e qualquer ato dos órgãos públicos, mas exige que estes o tenham como orientação de todo e qualquer comportamento, pois, como princípio, a exigência de publicidade é núcleo do sistema jurídico, a partir do qual surgirão todos os demais comportamentos dos órgãos públicos. Não é a exigência de publicação de um ato tal ou qual, mas a disponibilidade das informações, a possibilidade de acesso às informações às quais todo e qualquer cidadão tem direito. São relevantes, ainda, as explicações de Lucia Valle Figueiredo (2004, p. 62): “decisões secretas, editais ocultos, mesmo a publicidade restrita ao mínimo exigido por lei (e conhecida de pouquíssimos), não atendem, de forma alguma, aos princípios constitucionais e, sobretudo, à transparência da Administração”. Depois de tudo o que foi dito sobre princípios constitucionais, devemos concordar com a autora, visto que estes argumentos são importantes para orientar o aplicador da lei. Significa que o intérprete deve privilegiar sempre a publicidade. Como princípio constitucional, a publicidade tem essa marca indelével. 6 O artigo 299 do Código Penal dispõe: Omitir, em documento público ou particular, declaração que dele devia constar, ou nele inserir ou fazer inserir declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita, com o fim de prejudicar direito, criar obrigação ou alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante: Pena – reclusão, de um a cinco anos, e multa, se o documento é público, e reclusão, de um a três anos, e multa, se o documento é particular. Parágrafo único. Se o agente é funcionário público, e comete o crime prevalecendo-se do cargo, ou se a falsificação ou alteração é de assento de registro civil, aumenta-se a pena de sexta parte. REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 05-revista_07.p65 68 29/10/2007, 21:43 Marcos Antônio Striquer Soares 2.2 A publicidade como regra constitucional e a necessidade de publicação ou comunicação A publicidade terá caráter de “regra jurídica” sempre que houver exigência de publicação ou comunicação do comportamento do órgão público. Isto é, decorre de imposição encontrada em norma jurídica. Esta pode trazer a exigência de publicação ou comunicação7 (formas de publicidade) ou pode falar, também, em publicidade, genericamente, mas impondo a divulgação dessa determinada manifestação do órgão público de modo específico, por exemplo, com divulgação no Diário Oficial. A Constituição, em algumas passagens, apresenta regras exigindo publicidade. Podemos classificar como regra constitucional o art. 5º, XXXIV, letra b (que autoriza o “direito de obtenção de certidões em repartições públicas”), o art. 84, IV (impõe ao presidente da República o dever de “fazer publicar as leis”) e o art. 8º, da lei complementar nº95/98 (que contém a exigência de publicação das leis). Em outros casos, a exigência de publicação ou comunicação (a regra de publicidade) vem fixada em legislação sem status constitucional (nos Códigos de Processo Civil e de Processo Penal, por exemplo). Nestes casos, a regra tem fundamento no princípio da publicidade, com origem constitucional. Note-se que a publicidade como regra jurídica, obrigatória em razão de imposição de norma jurídica, deve cumprir o mínimo do que for determinado na norma. Contudo, para respeitar ao princípio da publicidade, para atender à exigência de transparência implícita no princípio, a publicidade advinda de imposição de regra deve ser o mais amplo possível, podendo os termos estritos da determinação da lei ser insuficiente. O princípio da publicidade exige que a interpretação amplie o máximo possível as possibilidades de divulgação dos comportamentos do Estado. Assim, a interpretação da regra jurídica que impõe determinada publicidade deve ser ampliada no sentido de dar maior efeito a essa regra. 2.3 Publicidade resumida 69 A publicidade dos atos dos órgãos do Estado pode ser resumida. Isto tem sido encontrado em lei (lei 8.666/93, com a redação dada pela lei 8.883/94 – arts. 21 e 61, § 1º) e, inclusive, na Constituição de São Paulo8 . Contudo, tal possibilidade não abrange todos os comportamentos do Estado: “as leis, códigos e outros atos normativos (regulamentos, instruções, regimentos) devem ser publicados integralmente”(GASPARINI, 2001, 119). O enorme número de editais de concursos e licitações a serem publicados determina que se divulgue, nos meios oficiais, apenas resumos daqueles eventos, definindo-se, sempre, onde e quando se poderão obter todos os dados que interessam ao público e que, portanto, têm que ser a ele acessíveis. Não se rompe, por aqui, o princípio da publicidade por meio de publicações em meios oficiais. Apenas não se pode exigir que os custos com aquelas divulgações completas dos atos onerem os cofres públicos (ROCHA, 1994, p. 246). 7 Celso Antônio Bandeira de Mello explica que publicação e comunicação são formas de publicidade (Ato administrativo e direito dos administrados, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1981, p. 47). No mesmo livro, p. 52, o autor apresenta três modalidades de comunicação: a citação, a notificação e a intimação. 8 Constituição do Estado de São Paulo, art. 112: As leis e atos administrativos externos deverão ser publicados no órgão oficial do Estado, para que produzam os seus efeitos regulares. A publicidade dos atos não normativos poderá ser resumida. REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 05-revista_07.p65 69 29/10/2007, 21:43 O Princípio Constitucional da Publicidade e Propaganda do Governo A publicidade resumida não fere o princípio da publicidade (tampouco os princípios republicano e democrático). Ela serve para evitar gastos excessivos, desde que tenha como conteúdo básico – a publicação oficial – o mínimo de informações necessárias para que o povo saiba do que se trata, o local onde o documento pode ser encontrado na íntegra e, ainda, estar, a íntegra do documento, disponível ao cidadão para consulta (respeitando-se a imposição do “direito à informação”, art. 5º, XXXIII da Constituição, pelo qual todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado). Examinando os contratos, Bernardo de Souza (1999, p. 66) explica: [...] só razões práticas e relevantes de economia fizeram com que não se exigisse a publicação dos contratos, em sua íntegra, na imprensa oficial. Esta homenagem à economia pública, entretanto, não pode redundar em franquia ao segredo, em desatenção ao princípio constitucional da publicidade, nem em violação do direito fundamental de acesso à informação. 70 Leon Frejda Szklarowsky, num estudo sobre as diversas peculiaridades que envolvem a publicidade dos contratos administrativos, esclarece que a lei de licitação mandou publicar todos os contratos, exceto aqueles cuja licitação foi dispensada: “quer a lei que se publiquem todos os contratos ou seus aditamentos, qualquer que seja o valor ainda que desonerados; entretanto avisa que há uma ressalva, que não pode ser preterida” (1996, p. 97) – da licitação dispensada9 . Demócrito Ramos Reinaldo (1998) adverte, porém, que constitui prática inconstitucional a publicação, nos órgãos oficiais, de decisões administrativas de tal modo resumidas que impeçam ao povo, em geral, e ao Ministério Público, em particular, cientificar-se de seu conteúdo. “Publicar uma “decisão” ou um ato administrativo sem um mínimo de justificação que possibilite a compreensão [...] equivale a não publicar”. Conforme já salientado por Lucia Valle Figueiredo (2004, p. 62): “mesmo a publicidade restrita ao mínimo exigido por lei”, não atende, de forma alguma, à transparência da Administração. O respeito às exigências de publicidade prescritas em lei responde ao princípio republicano e ao princípio democrático e impõe uma interpretação que dê maior eficácia a estes princípios. Significa que o intérprete deve privilegiar sempre a publicidade, especialmente quando houver dúvida na aplicação da “regra” jurídica. 3 PUBLICIDADE PROIBIDA Conforme se viu, a publicidade nas diversas atividades do Estado brasileiro, desempenhada por seus mais diversos órgãos, é exigência expressa da Constituição. Este é o princípio, esta é a orientação fundamental, é a orientação geral que atinge todas as situações e todas as pessoas. Contudo, “situações existem nas quais a prévia divulgação das ações a serem empreendidas pode torná-las inúteis” (FERRAZ e DALLARI, 2001, p. 83) ou a divulgação de informação pode comprometer direito do responsável por ela ou de terceiros. A Constituição abre, assim, exceções a essa orientação geral, permitindo o sigilo. 9 Maria Garcia assevera: “A publicidade é elemento da essência do processo licitatório: se a lei busca preservar o atendimento ao princípio da isonomia no acesso dos interessados à realização das obras, serviços e todas as modalidades ad negotia dos particulares com a Administração Pública e, por outro lado, garantir a seleção ou escolha da proposta mais vanjajosa ao interesse público – a publicidade dos atos desse processo demonstra-se de fundamental importância.” Depois de analisar o princípio da publicidade, a autora passa a coteja-lo com as diversas passagens da lei de licitação onde consta exigência de publicidade (Censura e comunicação social, Revista de Direito Constitucional e Internacional, São Paulo, n.34, jan./mar. 2001, p. 10 e seguintes). Hely Lopes Meirelles é rigoroso, quando trata da publicidade da licitação: “Não há, nem pode haver, licitação sigilosa. Se seu objeto exigir sigilo em prol da segurança nacional, será contratado com dispensa da licitação. Nunca, porém, haverá licitação secreta, porque é da sua natureza a divulgação de todos os seus atos e a possibilidade de conhecimento de todas as propostas abertas e de seu julgamento” (Licitação e contrato administrativo, 11ª ed., São Paulo, Malheiros, 1997, p. 27). REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 05-revista_07.p65 70 29/10/2007, 21:43 Marcos Antônio Striquer Soares Registram-se os seguintes dispositivos do art. 5º da Constituição Federal que impõem restrições à publicidade – trata-se de regras constitucionais: o inciso XXXIII, na parte final, autoriza o sigilo, como exceção à exigência de publicidade, para os casos em que “seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado”; o inciso LX trata da publicidade dos atos processuais, autoriza restrições à publicidade “quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem”; o inciso XIV, pelo qual é assegurado a todos o acesso à informação, resguarda o “sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional”; o inciso XXXVIII, letra b, reconhece a instituição do júri e assegura “o sigilo das votações”. O art. 93, IX, na parte final também autoriza o sigilo no Judiciário como exceção: “podendo a lei, se o interesse público o exigir, limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes”. Ainda pode ser incluído neste rol o art. 53, § 6º, pelo qual os “deputados e senadores não serão obrigados a testemunhar sobre informações recebidas ou prestadas em razão do exercício do mandato, nem sobre as pessoas que lhes confiaram ou deles receberam informações”. Para Carlos Ari Sundfeld (2003, p. 179) o sigilo, a autorizar a denegação da informação ou da certidão, só se justifica em duas situações, de caráter excepcional: quando for imprescindível à segurança da sociedade e do Estado (ex.: sigilo com relação aos planos militares, em tempo de guerra) ou quando a publicidade violar a intimidade de algum particular (ex.: sigilo, em relação a terceiros, dos dados clínicos de pacientes internados em hospital público). Afora esses casos, quem solicita informação ao Estado tem o direito de obtê-la, o que é mera decorrência da cidadania. De qualquer modo, o cidadão tem direito de receber informações do Estado10 , ou por meio do Diário Oficial, ou nos balcões dos órgãos públicos, quando solicitada. A negação de publicidade somente pode ser aceita quando fundamentada na própria Constituição. As leis infraconstitucionais podem apresentar proibição de publicidade11 , desde que estejam adequadas às exceções previstas na Lei Maior. Tratando das exceções feitas à publicidade, Geraldo Ataliba explica que o princípio republicano não permite, nem tolera a existência de ato administrativo secreto: “as ressalvas que o art. 5º da Constituição faz são as mais estritas e, como exceção, devem merecer interpretação restritiva” (1991, p. 18-19). Enfim, todo e qualquer dispositivo infraconstitucional que excepciona a exigência de publicidade somente pode ser aceito se e na medida em que estiver adequado às exceções permitidas pela própria Constituição12 . 10 Ainda cabem outras passagens da literatura jurídica para corroborar essa lição: Embora voltado para o campo processual, o texto de Antonio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco diz claramente: “Mas o sigilo só pode ser temporário, enquanto estritamente necessário, não podendo sacrificar o contraditório, ainda que diferido” (Teoria geral do processo, 20ª ed., São Paulo, Malheiros, 2004, p. 70). Segundo Maria Sylvia Zanella Di Pietro, “pode ocorrer que, em certas circunstâncias, o interesse público esteja em conflito com o direito à intimidade, hipótese em que aquele deve prevalecer em detrimento deste, pela aplicação do princípio da supremacia do interesse público sobre o individual” (Direito administrativo, 17ª ed., São Paulo, Atlas, 2004, p. 75). 11 Citamos a seguir, apenas como exemplo, alguns dispositivos infraconstitucionais que apresentam exceções à exigência geral de publicidade: Art. 198 do Código Tributário – sigilo de informações com vistas ao melhor desempenho da arrecadação fazendária; Art. 155 do Código de Processo Civil – segredo de justiça; Art. 20 do Código de Processo Penal – sigilo no inquérito policial; Art. 792, § 1º do Código de Processo Penal – restrição a publicidade de audiência, sessão ou ato processual; Art. 8º da lei 9.296, de 24-07-96 – referente a interceptação telefônica. 12 Tratando da publicidade do contrato administrativo, Hely Lopes Meirelles explica: “a publicação do contrato é formalidade exigida pelas normas administrativas, como consectário da natureza pública dos atos da Administração, salvo os que forem previamente considerados sigilosos por razões de segurança nacional. Esclareça-se desde logo que os contratos resultantes de licitação não podem ser sigilosos, porquê, se o fossem, seriam firmados com dispensa de licitação. Mas a licitação e o contrato podem ter anexos classificados como sigilosos em qualquer grau, casos em que esses documentos só serão entregues aos licitantes e contratados mediante compromisso de manutenção de sigilo” (Licitação e contrato administrativo, p. 178). REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 05-revista_07.p65 71 29/10/2007, 21:43 71 O Princípio Constitucional da Publicidade e Propaganda do Governo 4 PUBLICIDADE DESNECESSÁRIA Conquanto a publicidade seja regra indispensável, a partir dos princípios republicano e do Estado democrático de direito, é possível aceitar alguns casos em que não seja necessária, por ser impossível ou absolutamente irrelevante. Para Celso Ribeiro Bastos (1992, p. 45), a publicidade, caracterizada como divulgação das decisões administrativas, não é exigida quando as decisões administrativas têm interesse exclusivamente interno. Explica Celso Antônio Bandeira de Mello (1981, p. 43)13 que, apesar de normalmente a formalização do ato administrativo ser escrita, “pode haver atos administrativos revelados de outra forma: verbal ou mímica. Ocorrerá quando a índole dos atos (ordens para assuntos rotineiros, gestos de um guarda de trânsito) reclame estas formas de expressão. Referem-se normalmente a atos que requerem execução imediata” Régis Fernandes de Oliveira (1980, p. 33-34) traz passagem esclarecedora: Costuma a doutrina falar em atos não produtores de efeitos jurídicos (por exemplo, convites, comunicações etc.). Tais atos, efetivamente, não podem ser tidos como administrativos, uma vez que não produzem qualquer efeito jurídico. Mas, se a lei lhe atribui qualquer relevância (efeito) será tido como ato administrativo. Por exemplo, um parecer, ainda que facultativa sua adoção, quando previsto, é requisito de legitimidade de procedimento, sempre que sua audiência seja obrigatória. [...] Não há, pois, necessidade que o ato interfira em esfera jurídica de terceiro. Mesmo os atos internos são tidos como administrativos, uma vez que produzem efeitos jurídicos. Assim, as ordens dadas de superior a inferior hierárquico constituem-se atos administrativos. [..] O ato pode, pois, ser introverso ou extroverso, alcançando o simples âmbito interno da administração ou repercutindo na esfera jurídica de terceiros. Necessário, no entanto, para ser qualificado como ato administrativo que o sistema normativo lhe atribua alguma relevância. 72 Assim, não terão, portanto, publicidade, atos não-escritos (ordens verbais, sinais ou gestos) quando não realizados em público; trata-se de publicidade impossível. Alguns comunicados internos (com alcance no âmbito interno da administração), não-caracterizados como atos administrativos (e não-incorporados a um processo administrativo), serão, alguns deles, absolutamente irrelevantes fora dos órgãos públicos, mas terão importância tão somente para a tramitação interna das decisões da administração. Também será desnecessária a publicidade quando o indivíduo, antes da publicação ou comunicação, praticar o ato exigido. É o que ocorre, por exemplo, quando a parte se manifesta no processo depois da juntada da sentença, mas antes ainda de sua publicação – desde que não haja direitos indisponíveis em jogo. Em circunstâncias como esta, o gasto público será desnecessário. 13 Celso Antônio Bandeira de Mello também faz referência a atos administrativos produzidos por sinais (como, por exemplo, o sinal de trânsito) e cartazes convencionais (como por exemplo, os indicadores de mão e contramão), mas não têm interesse direto pelo nosso trabalho, no que diz respeito à publicidade desnecessária, por isto não há que citá-los no corpo do texto. REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 05-revista_07.p65 72 29/10/2007, 21:43 Marcos Antônio Striquer Soares 5 PUBLICIDADE AUTORIZADA: PROPAGANDA DOS ÓRGÃOS PÚBLICOS A última espécie de publicidade que ainda precisa ser exposta é a publicidade dos órgãos públicos, prevista no § 1º, do art. 37 da Constituição. Ali se encontra um tipo totalmente diferente de publicidade. Não se trata de princípio da publicidade, uma vez que este está inserido no caput do mesmo art. 37. É uma regra constitucional, mas não impõe ao Estado a publicidade de tais atos, como condição de seu aperfeiçoamento, ou seja, mesmo que a Administração não torne públicas aquelas obras que está realizando, referidas no § 1º, do art. 37, elas existirão e tomarão o devido espaço no mundo real e também poderão gerar conseqüências no mundo jurídico, obviamente. É regra jurídica que não impõe uma publicidade, mas “autoriza” a publicidade dos atos, programas, obras, serviços e campanhas dos órgãos públicos. O dispositivo constitucional em questão não impõe a publicação ou comunicação (formas de publicidade) de todos os atos, programas, obras, serviços e campanhas, porque isto seria inviável economicamente. Por outro lado, esse dispositivo também não obriga a Administração a deixar as informações disponíveis para quem as procure nos balcões dos órgãos públicos, pois esta idéia provém do princípio da publicidade que já consta do caput e não está sendo repetida no § 1º. Consta ali uma permissão para a Administração veicular informações referentes a seus atos, programas, obras, serviços e campanhas sempre que entender necessário levá-las a público, não para divulgar simplesmente, mas cumprindo objetivos específicos. Os objetivos dessa publicidade indicam a necessidade de interação dos órgãos públicos com a sociedade, em vista de um ponto específico, uma obra, por exemplo. O objetivo pode ser educar, informar ou orientar a sociedade. A interação, nesse caso, não é mera transmissão de dados, mas pressupõe a necessidade da comunicação de um interesse do governo, isto é, para o bom andamento dos serviços públicos surge a necessidade da sociedade receber tais informações, caso contrário não será preciso levá-las a público. Essa necessidade de interação indica que a publicidade em questão não é mera divulgação de dados, mas tem por fim incutir na mente das pessoas tais dados seja para educar, seja para informar ou ainda para orientar a sociedade. Nessa condição, pode-se denominá-la de propaganda dos órgãos públicos, posto que ela tem sempre, no fundo, ao menos uma intenção persuasiva. O § 1º, do art. 37 da Constituição também contém uma regra constitucional. Ele possibilita a “publicidade dos atos, programas, obras, serviços e campanhas dos órgãos públicos os quais deverão ter caráter educativo, informativo ou de orientação social”. O dispositivo em questão determina comportamento específico, não é dotado de alto grau de abstração e exige ação determinada, ou seja, a divulgação de atos, programas, obras, serviços e campanhas dos órgãos públicos deverá perseguir uma dentre três finalidades possíveis: educar, informar e/ou propor orientações sociais. Tanto o objeto da publicidade como os objetivos propostos não possuem alto grau de abstração, pelo contrário, são verbetes com conteúdo específico e com significado aferível por interpretação literal. É regra jurídica, portanto, com grau de abstração reduzido e aplicação direta,14 tem “observância imediata, não necessitando para sua aplicação de qualquer regulamentação” (GASPARINI, 2001, p. 129) (tem conteúdo semântico suficiente para incidir diretamente sobre a realidade social). Esta convicção também é encontrada na jurisprudência15 . 14 A regra jurídica inscrita no § 1º, do art. 37 da Constituição é norma jurídica de eficácia plena, nos termos da classificação da aplicabilidade das normas constitucionais proposta por José Afonso da Silva: “são de eficácia plena as normas constitucionais que: a) contenham vedações ou proibições; b) confiram isenções, imunidades e prerrogativas; c) não designem órgãos ou autoridades especiais, a que incumbam especificamente sua execução; d) não indiquem processos especiais de sua execução; e) não exijam a elaboração de novas normas legislativas que lhes completem o alcance e o sentido, ou lhes fixem o conteúdo, porque já se apresentem suficientemente explícitas na definição dos interesses nelas regulados”. Em seguida, o autor completa: estabelecem conduta jurídica positiva ou negativa com comando certo e definido, incrustando-se, predominantemente, entre as regras organizativas e limitativas dos poderes estatais, e podem conceituar-se como sendo aquelas que, desde a entrada em vigor da constituição, produzem, ou têm possibilidade de produzir, todos os efeitos essenciais, relativamente aos interesses, comportamentos e situações, que o legislador constituinte, direta e normativamente, quis regular (Aplicabilidade das normas constitucionais, 6ª ed., São Paulo, Malheiros, 2003, p. 101. 15 “AÇÃO POPULAR – Propaganda e publicidade oficial de município – Artigo 37, § 1º, da Constituição da República – Aplicação – Norma de eficácia plena – Desnecessidade de regulamentação – Recurso não provido” – 17ª Câm. Civ. do Tribunal de Justiça de São Palulo, JTJ/SP, LEX, v. 166, mar. 1995, p. 9. REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 05-revista_07.p65 73 29/10/2007, 21:43 73 O Princípio Constitucional da Publicidade e Propaganda do Governo O § 1º do art. 37 da Constituição também é exemplo de regra jurídica bastante carregada de conteúdo axiológico. Ao indicar a publicidade como meio de divulgação de atos, programas, obras, serviços e campanhas, e ao estabelecer certos objetivos a serem atingidos (educação, informação ou orientação social), essa regra transmite valores protegidos pela sociedade, os quais devem ser protegidos pela via judicial, quando não observados. A publicidade, no caso, enquanto instrumento de condução dos interesses do Estado, é meio para busca de certos objetivos de governo – objetivos do povo, também, portanto - quais sejam: a educação, a informação ou a orientação social, todos surgidos das decisões de governo que afetam diretamente o povo. Por outro lado, Eros Roberto Grau (1997, p. 92) explica que é impossível imaginar, de antemão, todas as circunstâncias possíveis de aplicação de uma regra, por isso é que elas são enunciadas em linguagem de textura aberta, configurando, mercê da abstração e generalidade que as caracterizam, um esquema formal potencialmente idôneo a compreender um número indefinido de casos, sob a única condição de que tais casos sejam redutíveis a tal esquema. Não se pode esquecer, então, que as normas são, por definição, genéricas e abstratas. Princípios e regras seguem essa linha, sendo possível afirmar, no entanto, que aqueles possuem grau de abstração muito elevado e pouca densidade semântica, ao passo que estas têm menor grau de abstração e maior densidade semântica. Especialmente quanto à regra do § 1º, do art. 37, em questão, a situação não é diferente, ela tem textura aberta para incidir sobre um número indefinido de pessoas e abranger inúmeras circunstâncias reais, ela incide imediatamente sobre o fato concreto. Somente se podem aceitar dois tipos de atos intermediários entre tal dispositivo e sua realização no mundo dos fatos: o ato administrativo e/ou uma decisão judicial (quando da correção de ato administrativo irregular). 6 SÍNTESE DAS ESPÉCIES DE PUBLICIDADE 74 Depois de tudo o que foi estudado sobre a publicidade, no âmbito dos órgãos públicos, é possível concluir dizendo que, por vezes, encontra-se na Constituição brasileira a exigência de publicidade como princípio, por vezes como regra. De qualquer modo, quando se fala em publicidade dos órgãos públicos deve-se enquadrá-la em uma das seguintes possibilidades: 1- Como “publicidade obrigatória” (esta espécie contém duas subespécies: a “publicidade obrigatória com necessidade de publicação ou comunicação”, ou seja, com divulgação pelo órgão oficial de imprensa ou por comunicação direta ao interessado – é regra jurídica; e “publicidade obrigatória sem necessidade de publicação ou comunicação”; isto ocorre sempre que a informação ficar à disposição do povo nos órgãos públicos – é princípio constitucional. Quando obrigados a divulgar seus atos, os órgãos públicos poderão fazer “publicidade resumida”); 2- Como “publicidade proibida” – decorre de disposição expressa da Constituição, sendo regra constitucional; 3- Como “publicidade desnecessária ou impossível”; 4- Como “publicidade autorizada”, qualificada como propaganda dos órgãos públicos ou propaganda governamental – também é regra constitucional. REFERÊNCIAS ATALIBA, Geraldo. Eficácia de ato administrativo – publicidade. Revista de Direito Público, São Paulo, v.25, n.99, p.14-21, jul./set. 1991. BASTOS, Celso Ribeiro; MARTINS, Ives Gandra. Comentários à Constituição do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. São Paulo: Saraiva, 1992. t.3, v.3. BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 12. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 05-revista_07.p65 74 29/10/2007, 21:43 Marcos Antônio Striquer Soares CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. 6.ed. Coimbra: Almedina, 1993. CANOTILHO, José Joaquim Gomes; MOREIRA, Vital. Constituição da República Portuguesa anotada. 2. ed. Coimbra: Coimbra Editores, 1984. CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo. 20. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 17. ed. São Paulo: Atlas, 2004. FERRAZ, Sérgio; DALLARI, Adilson Abreu. Processo administrativo. São Paulo: Malheiros, 2001. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário da língua portuguesa. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. FIGUEIREDO, Lucia Valle. Curso de direito administrativo. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. GARCIA, Maria. Censura e comunicação social. Revista de Direito Constitucional e Internacional, São Paulo, n.34, p.99-104, jan./mar. 2001. GASPARINI, Diógenes. Direito administrativo. 6.ed. São Paulo: Saraiva, 2001. GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na constituição de 1988. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 1997. HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. MEDAUAR, Odete. Direito administrativo moderno. 8. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. MEIRELLES, Hely Lopes. Licitação e contrato administrativo. 11. ed. São Paulo: Malheiros, 1997. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Ato administrativo e direito dos administrados. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1981. ______. Curso de direito administrativo. 13. ed. São Paulo: Malheiros, 2001. OLIVEIRA, Régis Fernandes de. Ato administrativo. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1980. REALE, Miguel. Teoria do direito e do Estado. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2000. REINALDO, Demócrito Ramos. A publicidade dos atos e decisões administrativos. Revista dos Tribunais, São Paulo, v.87, n.751, p.91-93, maio 1998. ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. Princípios constitucionais da administração pública. Belo Horizonte: Del Rey, 1994. SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 6.ed. São Paulo: Malheiros, 2003. SOUZA, Bernardo de. A publicidade dos contratos da administração pública. Interesse Público, Sapucaia do Sul, v.1, n.1, p.47, jan./mar. 1999. REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 05-revista_07.p65 75 29/10/2007, 21:43 75 O Princípio Constitucional da Publicidade e Propaganda do Governo SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de direito público. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. SZKLAROWSKY, Leon Frejda. A publicidade e os contratos administrativos. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 204, p.85-102, abr./jun. 1996. 76 REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 05-revista_07.p65 76 29/10/2007, 21:43 Mary Silvea Santana Vieira O PRINCÍPIO DO NÃO-CONFISCO NO DIREITO TRIBUTÁRIO* Mary Silvea Santana Vieira** RESUMO O presente artigo tem como objeto o estudo de não confisco preceituado no artigo 150, IV da Constituição Federal, bem como analisar a sua aplicabilidade, dentro da sistemática tributária brasileira. O Princípio do Não-Confisco é uma limitação ao poder de tributar imposta ao Legislador infra-constitucional, configurando uma proteção ao contribuinte. Sendo assim, este trabalho preocupa-se em delimitar a linha a partir da qual o tributo passa a ter efeito confiscatório. Palavras-chave: Princípio do Não-Confisco. Contribuinte. Tributos. Limitações ao Poder de Tributar. THE PRINCIPLE OF THE NO CONFISCATION IN THE TAX LAW ABSTRACT This article consists in the study of the principle of non-confiscation specified in Article 150, IV of the Federal Constitution, and examine its applicability, in the Brazilian tax system. The principle of non-confiscation is a limitation to the tax imposed by the Federal Constitution to the infra legislator, setting a protection to the taxpayer. So this article focuses on defining the line from which the tribute will take confiscatory effect. Keywords: Principle of the No Confiscation. Taxpayer. Taxes. Limiting the Tax Power. 1 INTRODUÇÃO O objetivo do presente artigo é trazer para reflexão a importância do Direito Tributário ser estudado de forma humanística. É incontestável que não só ele, pois o Direito existe para a proteção dos direitos inerentes à pessoa humana, mas especificamente o Direito Tributário deve ser o instrumento de efetivação dos direitos fundamentais e não de sua violação, como freqüentemente ocorre. É através do tributo, muitas vezes tido por injusto, que o Estado tem condição e obrigação de redistribuir a riqueza, garantir o mínimo existencial e dar condição aos menos favorecidos, de uma vida digna, enfim, para fazer valer plenamente os direitos fundamentais de toda a sociedade. O estudo do tema, ora introduzido, necessita de maior aprofundamento. A pouca doutrina específica sobre o princípio do não-confisco no direito pátrio revela essa dificuldade. Isto posto, é colocada a seguinte indagação: Será possível mensurar, exatamente ou aproximadamente, até onde deve o cidadão contribuir sem estar sendo lesado, ou confiscado pelo Estado? Onde passa a linha tênue entre o confisco e o não-confisco? Qual seria então a carga ideal, pois parece que o Estado é um devorador. Quanto mais aumenta a carga tributária, como se tem visto e sentido nos últimos anos, percebe-se que a contraprestação estatal está cada vez mais caótica e sucateada em se tratando de saúde, educação e segurança. *O presente artigo é resultado de monografia de conclusão do curso de graduação em Direito, escrita sob a orientação do prof. Ms. Antonio Carlos Lovato. **Mary Sílvea Santana Vieira, Bacharel em Direito, formada pela UNIFIL e Administradora de Empresas formada pela UEL. REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 06-revista_07.p65 77 29/10/2007, 21:43 77 O Princípio do Não-Confisco no Direito Tributário 78 De maneira geral, o conceito de confisco é identificável e tem sido tratado como sendo a absorção da propriedade particular pelo Estado, sem justa indenização. Quando isso se dá por meio de tributo, está-se diante do confisco em matéria tributária. A Constituição da República de 1988 (art. 150, inc. IV) preceituou limitações ao poder de tributar, trazendo como um desses limites a vedação aos entes federados de utilizar tributo com efeito de confisco. É certo também que o Estado, por força de seu poder de império, tem o direito de exigir dos cidadãos contribuições compulsórias para a realização de suas finalidades de promoção do bem comum. Entretanto, em um Estado Democrático de Direito, esse poder é limitado pelos diversos princípios, direitos e garantias individuais inseridos na Constituição da República Federativa do Brasil. No intuito de esclarecer esses limites, a doutrina pátria tem-se limitado a afirmar que confiscatório é o tributo que excede a capacidade contributiva, sem, no entanto, fornecer critérios objetivos para sua verificação. A afirmação de que é confiscatório o tributo que aniquila total ou parcialmente propriedade particular também não resolve suficientemente o problema, já que é fácil identificar sua extinção completa, porque representa 100% do bem. Mas, e quanto à mutilação parcial? Qual seria o limite? Como decorrências dessas indagações, surgem outras não menos interessantes: é o tributo, isoladamente considerado, que é confiscatório ou é a carga tributária total suportada pelo contribuinte que atinge as raias do confisco? A vedação constitucional é absoluta ou comporta exceções? A quem é dirigida? Atinge somente os impostos ou aplica-se também às demais espécies tributárias? Para discorrer sobre o tema, serão analisados diversos aspectos jurídicos, até se chegar a conclusão de que só é possível obter o conceito de “não-confisco” mediante o estudo de cada caso concreto que se vislumbre pela frente. É somente pela apreciação de cada situação concreta de instituição de tributo novo ou de aumento de tributo já existente que se poderá verificar se realmente houve respeito ao princípio do “não-confisco”. O tributo com efeito de confisco, destruindo a propriedade privada, aniquila a própria base de sustentação do sistema, pois a existência de propriedade privada é a viga mestra para a própria existência do sistema tributário, pois sem a propriedade privada não há o que se tributar. 2 O TRIBUTO 2.1 Conceito e natureza jurídica O conceito de tributo está explicitado no artigo 3º do Código Tributário Nacional, (CTN), que prescreve de modo adequado as características essenciais e necessárias para a identificação dessa categoria jurídica, diferenciando-a de outras figuras semelhantes. Prescreve o artigo 3º: “Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada”. Segundo o doutrinador Ruy Barbosa Nogueira (1999, p. 155), os tributos são receitas derivadas que o Estado recolhe do patrimônio dos indivíduos, baseado no seu poder fiscal (poder de tributar, às vezes consorciado com seu poder de regular), mas disciplinado por normas de direito público que constituem o Direito Tributário. Na concepção de Geraldo Ataliba (2004, p. 53), tributo é: REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 06-revista_07.p65 78 29/10/2007, 21:43 Mary Silvea Santana Vieira a expressão consagrada para designar a obrigação ex lege, posta a cargo de certa pessoas, de levar dinheiros aos cofres públicos. É o nome que indica a relação jurídica que se constitui no núcleo do direito tributário, já que decorre daquele mandamento legal capital, que impõe o comportamento mencionado. Dessa forma pode-se concluir que o tributo consiste de uma obrigação compulsória, isto é, obrigatória, instituída por lei, representada por um valor em dinheiro e que não constitua penalidade por algum ato ilícito. A natureza jurídica do tributo é definida pelo fato gerador, conforme explícito no artigo 4º do CTN. Alfredo Augusto Becker (1972, p. 399), discorre sobre o tema, nos seguintes termos: ... o único critério científico jurídico que permite aferir a natureza jurídica do tributo é o critério da base de cálculo (núcleo da hipótese de incidência). O núcleo (base de cálculo) confere gênero jurídico do tributo e os elementos adjetivos atribuem a espécie jurídica àquele gênero. O referido autor ainda observa o seguinte na mesma obra (1972, p. 260): A natureza jurídica do tributo (e a do dever jurídico tributário) não depende da destinação financeira ou extrafiscal que o sujeito ativo da relação jurídica vier a dar ao bem que confere a consistência material ao tributo que foi ou deve ser prestado. Nenhuma influência exerce sobre a natureza jurídica do tributo, a circunstância de o tributo ter uma destinação determinada ou indeterminada.... Dessa forma ao se observar o fato gerador de uma obrigação e comparar com as hipóteses autorizadas pela Constituição Federal para a instituição de tributos, é que definirá se aquela obrigação tem caráter tributário ou não. 2.2 Histórico 2.2.1 Histórico dos Tributos no Direito Comparado Os tributos “provinham do chamado Patrimônio Real, eram obtidos, sob a forma de rendimentos, extraídos do patrimônio dominial, cuidados pelos chefes dos clãs, reis ou imperadores, sob as formas várias, dos dízimos, das vintenas, dos quintos, cisas, etc” (FERREIRA, 1986, p. 14). Segundo o autor Benedito Ferreira (1986, p. 14): A origem do imposto fiscal remonta a tempos que se perderam no pretérito da humanidade. Historiadores ilustres, em todas as épocas, invariavelmente, procuraram registrar, ao descreverem usos e costumes das civilizações, os seus sistemas tributários. Heródoto,...escrevendo e informando-nos, a cobrança de impostos em razão do chamado vínculo de Jurisdição Fiscal, aos habitantes dos antigos impérios que povoaram as regiões dos rios Tigre, Orange e Eufrates, há mais de quatro mil anos, anteriores a Era cristã. Segundo Heródoto, tributava-se 10% sobre a produção, que se constituíam na “décima” e a quota de contribuição de cada um às despesas do Estado, devida por todas as camadas sociais. REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 06-revista_07.p65 79 29/10/2007, 21:43 79 O Princípio do Não-Confisco no Direito Tributário Na Índia tributava-se a exportação de especiarias, produtos medicinais e essências, e também a prosperidade da Mesopotâmia teve seu epicentro não só no comércio, mas principalmente aos tributos impostos aos povos conquistados, Salomão explorou de forma sábia a estratégica posição geográfica de sua pátria, situada entre o Egito e a Mesopotâmia e vários países asiáticos, “que lhe pagavam direitos e taxas sobre as mercadorias que por ali transitavam” (FERREIRA, 1986, p. 15). Cita ainda o referido autor onde incidiam os tributos na Grécia Antiga: tributavam as indústrias e profissões, como também, os direitos aduaneiros; aplicavam multas e confiscos, tributos sobre bens e pessoas, rendas ou lucros, que atingiam, mais e especialmente, os mil e duzentos cidadãos mais ricos. Cresciam as alíquotas na medida das necessidades, especialmente nas guerras. Com a organização do ordenamento jurídico do Império Romano, o Direito Tributário desenvolveu-se sobremaneira, pois já eram individualizadas algumas espécies tributárias, como “impostos”. O já citado autor ainda traz a seguinte informação: O desmoronamento do fabuloso Império romano, segundo as anotações de Sêneca, Plínio e mesmo Montesquieu, teve seu fulcro na desagregação dos costumes, especialmente no terrível desajuste familiar do Patriciado, nas orgias promovidas com os recursos públicos, e que foram gerando a desorganização do Estado, e, consequentemente, a desobediência às leis, e, finalmente, a imposição de tributos, com alíquotas cada vez mais insuportáveis, aos contribuintes, aos que trabalhavam e produziam... arbitrariamente, decretavam impostos sobre os pobres, sobre as mulheres separadas ou divorciadas, sobre os celibatários, sobre os escravos, até as portas estavam sujeitas à insânia tributária. A seguir, passaram a cobrar imposto sobre o casamento e, finalmente, Vespasiano, como Imperador, não tendo, talvez, mais o que tributar, instituiu o imposto sobre a urina (FERREIRA, 1986 p. 16) 80 Segundo o jurista Aliomar Baleeiro (1969, p. 26), as Finanças Públicas tiveram desde a Antiguidade, precursores que incidentalmente comentaram aspectos da atividade financeira ou discutiram medidas de política fiscal, muito embora só houvesse logrado a consistência e a posição de disciplina autônoma no século XIX. Nas palavras de Aliomar Baleeiro (1969, p. 27), pode-se constatar que: São Tomás de Aquino (1226-1274) admitia a tributação em caso de escassez das rendas patrimoniais dos príncipes e aconselhava a constituição do tesouro como reserva para os maus dias. Mateo Palmieri (1405-1475) defendeu a proporcionalidade dos tributos contra os critérios progressivos, que a república florentina então ensaiava. Na Renascença e início da idade moderna, surgem os pensadores políticos de maior envergadura acentuando a correlação entre a economia privada e as finanças públicas. REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 06-revista_07.p65 80 29/10/2007, 21:43 Mary Silvea Santana Vieira Saliente-se que Maquiavel, o autor do “Príncipe”, em seus escritos repelia a ilimitação dos tributos impostos pelo Estado. Também é importante registrar que o Direito Constitucional moderno teve sua raiz principal na Carta Magna de 1215, na Inglaterra Medieval e revela a idéia de impor limites ao poder de tributar (COELHO, 1999, p. 54). 2.2.2 Histórico dos Tributos no Direito Brasileiro Segundo Benedito Ferreira (1986, p. 36), um marco importante do histórico dos tributos no Brasil foi a vinda de D. João VI para o Brasil, pois em linhas gerais: Abriram-se os portos ao comércio com todas as nações amigas, promoveuse a construção de novos portos, melhoraram-se os existentes, fomentou-se e protegeu-se a indústria e o comércio interno e externo. Em matéria de tributos e sistema fazendário fiscal, embora tenha sido benéfica para o Brasil como um todo, a vinda de D. João VI não representou nenhum alívio para os contribuintes, sendo mantidos, na sua inteireza, os impostos existentes, e sobrecarregada mais ainda a carga fiscal. (...) Como a receita não conseguia ultrapassar a casa dos 4 mil contos de réis, através do recém criado Banco do Brasil, tivemos o início do endividamento interno e externo em que nos encontramos até os dias atuais. E, também, a origem da nossa inconseqüente “fúria tributária”, que premia os malandros usuários do “jeitinho” e liquida com os contribuintes corretos. Arnaldo Godoy (2003, p.147) disserta, em sua obra Direito e Literatura, o posicionamento de Monteiro Lobato a respeito do Estado, tributo e confisco. 81 Lobato relutava em entender a miséria que se espargia entre nós, país tão rico de recursos. Defendeu ardentemente o domínio de nossos recursos naturais, ponderou acerca da função do Estado, defendendo um Estado mínimo, destinado a garantir as liberdades individuais. Na mesma obra, Arnaldo Godoy cita o livro de Monteiro Lobato, Idéias de Jeca Tatu, que faz uma menção crítica e cínica ao fisco, conforme se pode observar; “ao descrever a chegada da Família Real portuguesa ao Brasil, Lobato chama a atenção para o desembarque de um personagem: O Fisco - um canzarrão tremendo de dentuça arreganhada – é conduzido no açamo por vários meirinhos”. Na seqüência cita também a obra Na Antevéspera, em que Monteiro Lobato faz críticas ao fisco, narrando o seguinte fato histórico: Portugal só organizou uma coisa no Brasil - Colônia: o Fisco, isto é, o sistema de cordas que amarram para que a tromba percevejante siga sem embaraços. Quem lê as cartas régias e mais literatura metropolitana enche-se de assombro diante do maquiavélico engenho luso na criação de cordas. Cordas trançadas de dois, de três, de quatro ramais; cordas de cânhamo, de crina, de tucum, de tripa; cordas estrangulatórias de espremer o sangue amarelo e cordas de enforcar (GODOY, 2003, p. 147). Insurge-se Arnaldo Godoy (2003, p. 148-149), ao comentar sobre a visão de Monteiro Lobato em relação aos tributos. Nesse raciocínio escreve o autor: REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 06-revista_07.p65 81 29/10/2007, 21:43 O Princípio do Não-Confisco no Direito Tributário Lobato era irredutivelmente agressivo para com o Fisco, que qualificava com os mais negativos impropérios. Escreveu: “Que é o fisco senão um ‘sistema de embaraços’ opostos à livre atividade do homem, que deles só se livra por meio de entrega ao Estado de uma certa quantidade de dinheiro. (...) A tributação para Lobato, vislumbra iniqüidades que mudam o rumo da história. A Inconfidência Mineira é um exemplo, e Lobato sugere outro, tomado da história universal, em sua obra Mundo da Lua: “A história da civilização cabe dentro da história do Fisco”. Grandes convulsões sociais, como a Revolução Francesa, tiveram como verdadeira causa as iniqüidades do Fisco. Conclui Arnaldo Godoy que o tributo na concepção de Monteiro Lobato tem que estar diretamente ligado ao significado de justo e razoável: “A concepção tributária de Lobato é muito próxima de suas concepções de justiça. Como homem de negócios, de ação pôde Lobato viver, de experiência própria, os nefastos efeitos de um modelo tributário agressivo e ineficiente”. 3 TRIBUTO NÃO CONFISCATÓRIO 3.1 Conceito de Confisco 82 O termo “confisco” possui o seguinte significado definido por Plácido e Silva (2004, p. 505): “Confisco, ou confiscação, é vocábulo que se deriva do latim confiscatio, de confiscare, tendo o sentido de ato pelo qual se apreendem e se adjudicam ao fisco bens pertencentes a outrem, por ato administrativo ou por sentença judiciária, fundados em lei”. Na concepção de Eduardo Marcial Ferreira Jardim (2000, p. 45), o vocábulo significa: “O ato pelo qual o Fisco adjudica bens do contribuinte.” No entendimento de Paulo César Bária de Castilho (2002, p. 39): O comando normativo constitucional proíbe, na verdade, o efeito de confisco que o tributo, por ser exagerado, desregrado, possa gerar. E isso é assim porque, se tributo é instituto que não constitui sanção de ato ilícito (art. 3. º do CTN), a Constituição só poderia referir-se a efeito de confisco e não a confisco propriamente dito. É de se salientar que o art. 150, inc. IV, da Constituição da República de 1988 não proíbe o confisco em si, mas sim “efeito de confisco”. Nos países capitalistas, é proibido o confisco, como regra geral, sendo somente permitido como forma de sanção, conforme prevê o art. 5º, inc. XLVI, letra b, da Constituição Federal que traz previsão à perda de bens como forma de pena, de acordo com a lei. 3.2 Aspectos Normativos 3.2.1 Aspectos Normativos nas Constituições Anteriores O desenvolvimento desigual em certas regiões do Brasil1 , na Constituição de 1946, levou o constituinte a procurar amenizar esta desigualdade através do aparelho tributário, 1 As regiões brasileiras que estavam se desenvolvendo rapidamente eram as regiões litorâneas e a região sul do país. REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 06-revista_07.p65 82 29/10/2007, 21:43 Mary Silvea Santana Vieira Historicamente, a vedação constitucional aos tributos confiscatórios ou prejudiciais à atividade lícita teve origem no direito brasileiro através do art. 202 da Constituição Federal de 1946, de inspiração liberal, que dispunha do seguinte texto: “os tributos têm caráter pessoal sempre que isso for possível, e serão graduados conforme a capacidade econômica do contribuinte”. A Constituição de 24 de janeiro de 1967 dedica o Cap. V do Tít. I ao sistema tributário nacional em seus artigos 18 a 28. Pode-se concluir que somente a Carta Constitucional da República de 1988 traz, expressamente, a proibição da utilização de tributo com efeito de confisco, em seu art. 150, inc. IV. Até então, a vedação constitucional era apenas implícita. 3.2.2 Aspectos Normativos na Constituição Federal de 1988 Segundo o doutrinador Mariano Junior (1994, p.75): “A Constituição Federal traz os princípios de imperatividade maior para que o poder de tributar, pela competência partilhada de cada uma das entidades de direito público dele titulares, possa ser exercido”. Nas palavras de Mariano Junior (1994, p. 75): Além da observância e cumprimento das determinações superiores da Constituição Federal e precisamente para que não haja conflitos de competência entre as entidades públicas detentoras do poder tributante, cumpram-se as limitações constitucionais ao poder de tributar e sejam seguidas normas gerais em matéria de legislação tributária, terão que ser cumpridos os preceitos da lei complementar tributária (Artigo 146, CF/88) que, atualmente, é o Código Tributário Nacional Lei Federal nº. 5.172 de 25-10-66). Assim, o que está preceituado no título VI da Constituição Federal – da tributação e do orçamento – pelos artigos 145 a 156, deve ser rigorosamente observado pela União, pelo Distrito Federal, pelo Estado-Membro e pelo Município no exercerem sua competência tributária de editar lei ordinária própria para seus tributos e no exigirem efetivamente o pagamento de seus impostos, taxas e contribuições. 3.3 Princípio do Não-Confisco e Direito de propriedade. No entender do doutrinador Estevão Horvath (2002, p. 40), o fato de um princípio estar explícito, positivado é muito importante quando da sua interpretação ou aplicação nos casos concretos. Segundo o autor, cumpre observar preliminarmente o seguinte: A circunstância de um princípio estar previsto expressamente é importante para efeitos interpretativos, ainda que seja para o fim de não se poder afirmar que aquele não está positivado. A evolução histórica dos princípios gerais de direito bem demonstra essa assertiva. Em segundo lugar, consoante também já se demonstrou, a convivência dos princípios é, no máximo, conflitual, ao contrário do que sucede com as regras, em que ela é antinômica: “os princípios coexistem, as regras antinômicas excluem-se” (Canotilho), eles permitem o balanceamento de valores e interesses (não obedecem, como as regras, à “lógica do tudo ou nada”), consoante o seu peso e a ponderação de outros princípios eventualmente conflitantes (idem). Assim, não se trataria de procurar uma interpretação isolada a cada um dos princípios, mas sim, de sopesá-los, atribuir a cada um deles o seu peso e o seu devido valor. Daí que, ainda que se possa extrair a proibição do confisco de outros princípios, mais tradicionais e expressos, a sua formulação no direito positivo pode propiciar-lhe um alcance maior, ou pelo menos diferenciado com relação àqueles dos quais derivaria. REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 06-revista_07.p65 83 29/10/2007, 21:43 83 O Princípio do Não-Confisco no Direito Tributário O confisco é proibido no direito brasileiro, simplesmente pelo fato da propriedade privada estar protegida, ressalvadas certas exceções contidas no Texto Magno. Contudo a Carta Magna, ao preceituar que é vedado utilizar tributo com efeito de confisco, atribui a esta idéia peculiaridades que não estariam presentes com a simples previsão genérica da vedação ao confisco. Nesse diapasão, assevera Estevão Horvath (2002, p. 40-41): O que estamos buscando significar é que, se a vedação genérica do confisco está a proibir que a tributação seja onerosa a ponto de retirar 100% da renda ou do patrimônio de alguém (o que, de per si, é suficientemente óbvio para prescindir de jurisprudência que o diga), ao vedar-se a “utilização de tributo com efeito de confisco” se estaria ampliando o alcance do princípio, na medida em que não seria confiscatório somente quando se priva a pessoa das suas rendas ou bens por meio da tributação, mas também quando restasse comprovado que a imposição de que se cuida produziu esse indesejado efeito. Ainda segundo o presente doutrinador: É mais abrangente dizer que se proíbe a tributação com efeito confiscatório do que simplesmente dizer estar vedado o confisco. Têm-se a sensação que, com a dicção constitucional, o intérprete se sente mais à vontade para extrair que qualquer tentativa, por mais sub-reptícia que seja, de exacerbar a tributação, aproximando-a do confisco, ainda que parcial, tenderá a enquadrar-se na vedação constitucional. 84 No que diz respeito ao princípio da capacidade contributiva, a doutrina em geral entende que este princípio deriva do princípio da igualdade, razão pela qual, não precisaria vir expresso na Constituição. Entretanto, com o art. 145, § 1º da Carta Magna e com a forma pela qual ele está expresso, outros detalhes interpretativos para o seu conhecimento e aplicação são passíveis de serem elucidados. Na pouca doutrina existente acerca da vedação do tributo com efeito de confisco, verifica-se que os autores em geral extraem o princípio tributário da vedação do confisco daquele. No entendimento de Estevão Horvath (2002, p. 41), “não há antinomia entre direito de propriedade e tributos, já que este é o preço que se deva pagar para viver em sociedade, o que exige sufragar os gastos do governo encarregado de cumprir e fazer cumprir a Constituição”. Antes de se falar em “quantum” de tributo que possa ser devido, necessário se faz esclarecer que se estará violando o direito à propriedade e, simultaneamente, o princípio que proíbe o confisco toda vez que se institua um tributo não autorizado pela Constituição Federal. Desta forma assevera Estevão Horvath (2002, p. 43): Com efeito, é evidente que a tributação é uma forma de apropriação da propriedade do contribuinte. Por isso mesmo, num Estado de Direito, depende ela do consentimento dos cidadãos, para que possa existir. Nesse “consentimento” ou “autorização” para tributar repousa o princípio da legalidade e têm origem os próprios parlamentos, como conhecemos hoje em dia. Não basta, porém, que um determinado tributo seja consentido, mediante a sua aprovação pelo Legislativo. Necessário se faz que o poder de representação outorgado pelo povo ao legislador ordinário seja exercido dentro dos limites que o legislador constituinte originário impôs, ao inaugurar o novo Estado. REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 06-revista_07.p65 84 29/10/2007, 21:43 Mary Silvea Santana Vieira O professor Roque Carrazza (1999, p. 268) afirma que o princípio do não confisco potencializa o direto de propriedade: ... estamos notando que a norma que impede que os tributos sejam utilizados com efeito de confisco, além de criar um limite explícito à progressividade – que, de um modo geral, os impostos devem observar ... – reforça o direito de propriedade. Assim por exemplo, em função dela, as alíquotas do imposto sobre a renda não podem ser elevadas a ponto de fazerem desaparecer a propriedade do contribuinte. Estevão Horvath (2002, p. 45) traz a seguinte indagação para posterior reflexão: Se o princípio que veda o confisco já está implícito no Texto Constitucional e que esse confisco já estaria proibido pela simples previsão da proteção à propriedade privada, então qual a razão de ser, qual a importância de se referir o Texto Magno a ele de modo expresso? E o mesmo doutrinador, Horvath (2002, p. 45), responde nos seguintes termos abaixo transcritos: É que ele serve, também, como parâmetro para a elaboração das leis tributárias e não pode deixar de ser tomado em linha de conta pelo legislador à hora de criar ou aumentar tributo. Juntamente com outros princípios, ele deve atuar para compor o quadro do tributo a ser engendrado, não podendo pairar dúvidas acerca da sua existência e operatividade em concreto. Concluindo, pode-se salientar que o confisco é diretamente ligado ao direito de propriedade, mas o fato do princípio estar positivado deu-lhe uma amplitude maior. 3.4 Princípio do Não-Confisco e Capacidade Contributiva Antes de tudo, vale lembrar que se desenhar um gráfico e delimitar dois pontos, sendo um ponto a partir do qual o tributo se torna possível e outro ponto onde a tributação não seja mais razoável quantitativamente, torna-se inconstitucional, é inadmissível, entende-se que, no intervalo entre esses dois pontos, estará delimitada a liberdade de atuação do legislador tributário. Segundo Goldschmidt (2004, p. 160), “esse espaço intermediário representará a capacidade contributiva”. Nesse diapasão, Fábio Brun Goldschmidt (2004, P. 162) faz o seguinte arrazoado: a relação necessária entre vedação de efeitos confiscatórios e capacidade contributiva encontra-se em que os tributos não podem exceder a força econômica do contribuinte”. Deve haver então clara relação de compatibilidade entre as prestações pecuniárias, quantitativamente delimitadas na lei e a espécie de fato signo presuntivo de riqueza, posto na hipótese legal. REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 06-revista_07.p65 85 29/10/2007, 21:43 85 O Princípio do Não-Confisco no Direito Tributário O efeito de confisco pode estar aquém ou além da capacidade contributiva. Quando o tributo estiver aquém da capacidade contributiva ele será confiscatório, pois não estará garantindo o mínimo existencial ao cidadão, comprometendo assim seus direitos básicos, conflitando com o preceito constitucional de dignidade da pessoa humana ou também de uma atividade produtiva. Dessa forma, “acima da capacidade contributiva haverá desde a mutilação da propriedade (onde se inicia o efeito de confisco) até a sua efetiva aniquilação, com a ocorrência do confisco propriamente dito” (GOLDSCHMIDT, 2004, p. 162). 3.5 Princípio do Não-Confisco e Princípio da Isonomia Quando se pensa em tributo com efeito de confisco, vem à mente que se trata de um tributo que seja excessivamente elevado. Mas, como saber se um determinado tributo é de fato excessivamente elevado? Qual seria o parâmetro razoável? É aí que se insere a isonomia, isto é, a igualdade. Para qualificar algo necessita-se de um referencial de comparação. Nesse sentido, argumenta Fábio Brun Goldschmidt (2004, p. 211): De fato, para adjetivarmos alguma coisa, necessitamos de um termo de comparação, de algo que seja diferente daquele objeto que se pretende analisar. Absolutamente toda a adjetivação somente se faz possível pela existência de diferenças, eis que se tudo fosse igual não seria possível a qualificação pelo adjetivo. 86 O conceito de isonomia é bom e também justo, porque oferece ao contribuinte um parâmetro de comparação, que são os demais contribuintes. O muito e o pouco pressupõem um referencial, uma valoração, assim disserta Fabio Brun Goldschmidt (2004, p. 212): “O muito e o pouco são noções cuja apreciação supõe um juízo prévio do que seja “normal”, razoável; e esse juízo prévio só é possível a partir da observação do padrão, para enfim se concluir se uma determinada situação está acima ou abaixo da média”. O princípio do não-confisco proíbe a tributação excessiva dessa forma, pressupõe o conhecimento do que seja um percentual justo e aceitável de tributação. Nesse sentido, comenta Fábio Brun Goldschmidt (2004, p. 213): O sentimento de penalização experimentado pelo contribuinte, quando defrontado com um tributo com efeito confiscatório, deriva em grande parte da noção de igualdade. Assim, o confronto com a realidade alheia (de um indivíduo, de um grupo, de um Estado, etc.), o confronto com o nível de retorno que recebe do Estado pelos tributos que paga (em bens, serviços, assistência, previdência, segurança, educação etc.), o confronto com o custo da atividade ensejadora do pagamento, o confronto, enfim, com aquilo que o próprio contribuinte estaria apto a fazer, caso dispusesse do mesmo montante pago ao Estado, tudo isso, enfim serve para delimitação da medida da Justiça na tributação (e para a caracterização do efeito de confisco, como face reversa dessa Justiça). Assim, pode-se concluir que o impacto e a reação do contribuinte, em face da tributação e seus respectivos reflexos, serão vistos em estatísticas indicativas de evasão, elisão, sonegação, fraude de um modo geral. Trata-se da curva de Laffer 2 (GOLDSCHMIDT, 2004, p. 213). 2 A curva de Laffer, consiste em um gráfico desenhado pelo economista americano Arthur Laffer, desenvolvido durante o governo Reagan, nos EUA, ao qual pretendeu demonstrar que, a partir de certa medida, cada ponto percentual acrescido à carga fiscal representará dois pontos a menos na arrecadação, dados os indefectíveis efeitos da sonegação. REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 06-revista_07.p65 86 29/10/2007, 21:43 Mary Silvea Santana Vieira 4 VEDAÇÃO AO EFEITO DE CONFISCO POR TRIBUT0 INDIVIDUALMENTE OU PELO CONJUNTO DO SISTEMA TRIBUTÁRIO BRASILEIRO É difícil analisar cada tributo isoladamente para saber se tem efeito de confisco ou não. Quanto à confiscatoriedade do sistema como um todo, no entendimento de Estevão Horvath (2002, p. 82) destaca-se o seguinte: difícil saber-se a partir de quando um tributo passa a ter efeito confiscatório da mesma forma que o é detectar a presença da confiscatoriedade no “sistema”. Contudo, outra questão afigura-se-nos especialmente difícil de responder, qual seja: a admitir-se a confiscatoriedade do sistema, a instituição ou a majoração de qual tributo torna aquele confiscatório? Fábio Brun Goldschmidt (2004, p. 281)assevera que o fato do Brasil ser uma República Federativa, dotada de competência tributária, dificulta a identificação da esfera em que estaria ocorrendo o confisco se nos tributos devidos à União, Estado ou ao Município, havendo sempre as excludentes de responsabilidade conforme o autor: O primeiro problema que se coloca a partir dessa premissa (da possibilidade de caracterização do efeito de confisco relativamente à totalidade da carga tributária), contudo, está no fato de vivermos em uma federação, com três esferas de Poder concomitantes e igualmente competentes para instituir e arrecadar tributos. A carga tributária total, assim, seria muitas vezes formada pela soma das exigências dos três entes tributantes, cada um na medida das suas competências, não havendo um único responsável pela inconstitucionalidade. É possível que cada uma das tributações dos três entes federados, individualmente, seja considerada razoável, havendo, contudo, efeito confiscatório quando da aplicação das três cargas simultaneamente. Nos ensinamentos de Fábio Brun Goldschmidt, (2004, p. 282) a tendência doutrinária mais comum é no sentido de declarar inconstitucional o último tributo instituído, que, adicionado aos já existentes, causou o efeito de confisco. de outra parte, há quem sustente que, ultrapassando-se o limite após o qual a tributação tem efeito de confisco, haverá que se abaixar todos e cada um dos tributos que contribuem para esse efeito por sua superposição, em autêntica proporção, até que se alcance o referido limite, de modo que o conjunto não o supere. Fábio Brun Goldschmidt (2004, p. 283) argumenta que toda essa dificuldade não pode ser motivo para que o Poder Judiciário esteja como fiscal da Lei, verificando, analisando e julgando os casos que lhe chegam às mãos: É certo, contudo, que, em que pesem todas as soluções possíveis serem passíveis de crítica, tal dificuldade não pode servir de pretexto para simplesmente excluirmos a possibilidade de apreciação pelo Poder Judiciário dessa questão (o que, de mais a mais feriria o art. 5º, XXXV, da CF). Ora, o Estado é uno, ainda que sua administração seja dividida em mais de uma esfera de Poder. Os direitos fundamentais em jogo são os do cidadão, fonte do poder do Estado, conceito que transcende em muito o de simples contribuinte de REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 06-revista_07.p65 87 29/10/2007, 21:43 87 O Princípio do Não-Confisco no Direito Tributário uma dada e específica exigência tributária. Seria, aliás, uma ironia cruel se a federação pudesse servir de escudo para a perpetração de abusos contra o povo brasileiro, em vez de funcionar como um instrumento para a sua proteção e desenvolvimento. No entender de Paulo César Bária de Castilho (2002, p. 101-102), a carga tributária total é uma questão de política fiscal: em que pese tenha havido um crescimento significativo da quantidade de tributos exigidos no Brasil desde seu descobrimento, em 1500, até a presente data, entendemos que esse volume total é uma questão de política fiscal, utilizada de acordo com circunstâncias próprias do momento histórico vivido. O que dificulta a visualização do efeito de confisco no sistema tributário é que não existe um teto máximo explicitado na Constituição, dando margem para muitas interpretações e discussões, mas o jurista Ives Gandra Martins (1994, p.141) vislumbra essa possibilidade, conforme descreve o autor: na minha especial maneira de ver o confisco, não posso examiná-lo a partir de cada tributo, mas da universalidade de toda a carga tributária incidente sobre um único contribuinte. Se a soma de diversos tributos incidentes representa carga que impeça o pagador de tributos de viver e se desenvolver, estar-se-á perante carga geral confiscatória, razão pela qual todo o sistema terá que ser revisto, mas principalmente aquele tributo que, quando criado, ultrapasse o limite da capacidade contributiva do cidadão. Há, pois, um tributo confiscatório decorrencial. A meu ver a Constituição proibiu a ocorrência dos dois, como proteção ao cidadão. 88 Segundo a lição de Fábio Brun Goldschmidt (2004, p. 279), o Supremo Tribunal Federal já se manifestou favoravelmente ao confisco quando da totalidade da carga tributária, Assevera o autor: A caracterização do efeito de confisco decorrente do total da carga tributária suportada pelo contribuinte foi vencedora no Supremo Tribunal Federal, consoante se lê do voto do Min. Carlos Velloso na ADIn 2010: “Em primeiro lugar, a questão, ao que me parece, deve ser examinada no conjunto de tributos que o servidor pagará, no seu contracheque, dado que se trata de tributos incidentes sobre o vencimento, salário ou provento A capacidade contributiva é uma só, um único patrimônio e uma única renda que respondem pelo pagamento das obrigações tributárias que recaem sobre o sujeito passivo. Para concluir, entende-se que existe a possibilidade de não só o tributo ser confiscatório, mas todo o sistema tributário ser confiscatório, pois o efeito de confisco está diretamente ligado ao tributo exagerado, desregrado. A partir do momento em que a carga tributária ficar tão alta que desrespeite a capacidade contributiva do cidadão, o sistema tributário na sua totalidade estará tendo efeito de confisco. O que diferencia um tributo legítimo de um confiscatório é a diferença de grau em que é exigido. Cabe aqui ressaltar, que essa conclusão está sedimentada também em argumentos econômicos e financeiros e não somente em argumentos advindos do Direito Positivo. REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 06-revista_07.p65 88 29/10/2007, 21:43 Mary Silvea Santana Vieira 5 CONCLUSÃO Ao concluir o presente artigo, é importante salientar que as normas de Direito Tributário devem ser interpretadas em consonância com os direitos fundamentais e não contra o cidadão. Assim o sistema tributário deve ser destinado à construção da plena cidadania. As normas estão vigentes, o que está faltando é uma maior efetividade a elas, tendo o ser humano como centro de todo o sistema. O Estado necessita de recursos financeiros para consecução de seus fins, quais sejam: promover o bem social, a felicidade coletiva. A competência tributária para criar e exigir tributos, portanto, decorre do poder de império do Estado, contudo, é regrada, limitada pela própria Constituição da República. Na linha da história do Brasil, vê-se que a carga tributária aumenta ano a ano, e a contraprestação devida pelo Estado está a cada dia pior. Os limites ao poder de império do Estado são delineados pelos princípios, direitos e garantias individuais preceituados na própria Constituição, entre eles os princípios republicano, da igualdade, da legalidade, da capacidade contributiva, da progressividade, da razoabilidade e o direito de propriedade. Entende-se por confisco a apreensão de bens do particular pelo Estado sem a devida indenização. Quando o confisco se dá por meio de tributo, retirando a totalidade ou parcela considerável da renda ou do patrimônio do contribuinte, está-se diante de um confisco tributário. O confisco em matéria tributária é, em regra geral, indireto. É por isso que a Constituição veda a utilização de tributo com efeito de confisco. A vedação constitucional à utilização de tributo com efeito de confisco é uma das maiores conquistas da sociedade moderna, gerada pela luta incessante em busca da cidadania e da justiça. A natureza jurídica do art. 150, inc. IV, da Constituição da República de 1988 é de limitação constitucional ao Poder de Tributar; é dirigida ao legislador para que ele, ao legislar sobre matéria tributária, tenha como pressuposto o não confisco, é um não fazer, uma regra negativa, limitando a competência tributária dos entes da Federação (União, Estados e Distrito Federal, Municípios). O objetivo principal dessa norma constitucional não é garantir o direito de propriedade, que já está assegurado expressamente pelo art. 5.º, inc. XXII, e pelo art. 170, inc. II, da Carta Política de 1988, mas sim limitar o Poder de Tributar. Existe a possibilidade de não só o tributo isoladamente ser confiscatório, mas todo o sistema tributário ser confiscatório, pois o efeito de confisco está diretamente ligado ao tributo exagerado, desregrado. A partir do momento em que a carga tributária ficar tão alta que desrespeite a capacidade contributiva do cidadão, retirando a totalidade ou parcela considerável da renda ou do patrimônio do contribuinte, o sistema tributário, na sua totalidade, estará tendo efeito de confisco. O que diferencia um tributo legítimo de um confiscatório é a diferença de grau em que é exigido. Notório é, que apesar do artigo 150, inciso IV, da Constituição Federal, vedar a instituição de tributo com efeito conficatório e não estar expressamente incluída no princípio a multa confiscatória, mesmo diante da diversidade da natureza jurídica de ambos, pode-se afirmar que além da multa conficatória ferir o princípio do não-confisco esta fere também o direito de propriedade como também o princípio da proporcionalidade. Este tem sido o entendimento doutrinário e jurisprudencial, inclusive do Supremo Tribunal Federal, mas o tema merece um outro estudo mais aprofundado e específico. Pode-se perceber que longe está de ser pacífica a abrangência do princípio tributário do não confisco. Chega-se mesmo a dizer que ele não passa de um mero enunciado da Constituição, sem muita aplicação concreta, dada a dificuldade desta sua colocação em prática e o grau de subjetivismo que a sua interpretação acarreta. De acordo com as apontadas dificuldades, crê-se que o simples fato de o não confisco ser identificado como princípio constitucional leva à necessidade de ser ele estudado e aplicado, como ocorre com qualquer outro princípio constitucional. REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 06-revista_07.p65 89 29/10/2007, 21:43 89 O Princípio do Não-Confisco no Direito Tributário REFERÊNCIAS ATALIBA, G. Hipótese de incidência tributária. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1973. BALEEIRO, A. Uma introdução a ciência das finanças. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1969. BRASIL. Constituição Federal. 1969. ______. Constituição Federal. 1988. ______. Código Tributário Nacional. São Paulo: Saraiva, 2005. CARRAZZA, R. Curso de Direito Constitucional Tributário. 16. ed. São Paulo: Malheiros, 1999. CASTILHO, P. C. B. Confisco Tributário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. COELHO, S. C. N. Curso de Direito Tributário Brasileiro. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999. FERREIRA, B. A história da tributação no Brasil (causas e efeitos). Brasília: [s.n] 1984. GODOY, A. S. de M., Direito e literatura: anatomia de um desencanto - desilução jurídica em Monteiro Lobato.Curitiba: Juruá, 2003. GOLDSCHIMIDT, F. B. O princípio do não-confisco no direito tributário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. HORVATH, E. O princípio do não-confisco no direito tributário. São Paulo: Dialética, 2002. 90 JARDIM, E. M. F. Dicionário jurídico tributário. 3. ed. São Paulo: Dialética, 2000. MARIANO JUNIOR, J. Lições de Direito tributário. Campinas: Copola Livros. 1994. MARTINS, I. G da S. O Sistema Tributário na Constituição de 1988. 15. ed. rev. atual. São Paulo: Saraiva, 1998. NOGUEIRA, R. B. Curso de Direito Tributário. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 1999. SILVA, P. Vocabulário jurídico. v. 1. 24. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 06-revista_07.p65 90 29/10/2007, 21:43 Osmar Vieira da Silva O CONTEMPT OF COURT (desacato à ordem judicial) NO BRASIL Osmar Vieira da Silva* RESUMO O presente artigo pretende trazer à comunidade jurídica uma reflexão a respeito do instituto do contempt of court (desacato à ordem judicial) nos países da common law e sua introdução ao ordenamento jurídico brasileiro, contendo expressa previsão do dever de cumprir com exatidão os provimentos mandamentais e não criar embaraços à efetivação de provimentos judiciais, de natureza antecipatória ou final, como forma de imprimir maior eficácia às decisões judiciais. Palavras-chave: Contemp of Court. Desacato. Descumprimento. Embaraço. Ato Atentatório. O CONTEMPT OF COURT (disregard to the judicial order) IN BRAZIL ABSTRACT The present article intends to bring to the legal community a reflection regarding the institute of contempt of court (disregard to the judicial order) in the countries of common law and its introduction to the Brazilian legal system, contends express forecast of the duty to fulfill with exactness attorney provisioning and not to create embarrassments to the accomplishment judicial provisioning, of final anticipation nature or, as form to print greater effectiveness to the sentences. 91 Keywords: Contemp of Court. Disregard. Not Accomplishment. Embarrassment. Offensive Act. 1 INTRODUÇÃO Ganha relevância a questão do desacato à ordem judicial, denominada no direito anglo-saxão como contempt of court e introduzida no ordenamento jurídico brasileiro no art. 14, do CPC, através da Lei 10.358/2001 e, também, dos seus pressupostos, como o descumprimento dos provimentos mandamentais e embaraços à efetivação dos provimentos judiciais de natureza antecipatória ou final. A necessidade de aplicação do preceito se dá em face da crise de autoridade pela qual passa o Poder Judiciário que busca, na utilização de meios capazes, tornar eficazes as decisões emanadas Por essa razão, esse trabalho busca uma maior reflexão a respeito de tão importante instituto, desvendando-o na sua origem e analisando os seus pressupostos no ordenamento pátrio para, ao final, tratar da incidência da multa a todos aqueles que de alguma forma atuam no processo, com a absurda exceção dos advogados. * Doutor em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Coordenador do Curso de Direito da UniFil e Advogado. REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 07-revista_07.p65 91 29/10/2007, 21:43 O Contempt of Court (desacato à ordem judicial) no Brasil 2 O CONTEMPT OF COURT 2.1 Breve Histórico do Instituto nos Países do Common Law 92 O instituto do contempt of court1 (ASSIS, 2003, p. 20) tutela o exercício da atividade jurisdicional, nos países da common law, e existe desde os tempos da lei da terra. O poder de contempt of court, reconhecido aos órgãos judiciários do Reino Unido e América do Norte, consiste no meio de coagir à cooperação, ainda que de modo indireto, através da aplicação de sanções às pessoas sujeitas à jurisdição, e a primeira referência à sua aplicação remonta ao ano de 1187, em hipótese de réu que não atendeu à citação (ASSIS, 2003, p. 19). O poder de o juiz exigir e impor acatamento às suas determinações, decorrentes da parcela de soberania que lhe é conferida, parece essencial à subsistência da ordem, nas suas esferas legítimas de governo e da justiça. Segundo James Oswald (apud ASSIS, 2003, p.19), nenhuma corte ou tribunal carece de vindicar sua própria autoridade, dignidade e respeito. Segundo relato de Ada Grinover (2001, p. 222), a origem do contempt of court está associada à idéia de que é inerente à própria existência do Poder Judiciário a utilização de meios capazes de tornar eficazes as decisões emanadas. É inconcebível que o Poder Judiciário, destinado à solução de litígios, não tenha o condão de fazer valer os seus julgados. Nenhuma utilidade teriam as decisões, sem cumprimento ou efetividade. Negar instrumentos de força ao Judiciário é o mesmo que negar sua existência. Na Inglaterra, a configuração básica do instituto emergiu de voto do Juiz Wilmot, publicado depois de sua morte, em 1802. Tratava-se da publicação de libelo por um livreiro chamado Amon contra a Chief Justice Lord Mansfield. Em síntese, o poder de contempt, na concepção do Juiz Wilmot, decorria da possibilidade de qualquer corte vingar sua própria autoridade, prendendo ou multando quem a desafiasse em caráter público. Na América, o Judicial Act de 1789, alterado em 1821 para dirimir incertezas, conferiu a todo tribunal análoga competência. Em todos os casos, sob as mais variadas situações em que examinou o problema, a Suprema Corte sempre preservou a autoridade judicial. Apesar das críticas e da criação, em 1970, de um Comitê para reexaminar o tema e propor reformas, o poder de erradicar a obstrução à Justiça permanece na sua feição original (ASSIS, 2003, p. 19). Para o direito anglo-saxônico, o contempt of court significa a prática de qualquer ato que tenda a ofender um tribunal na administração da justiça ou a diminuir sua autoridade ou dignidade, incluindo a desobediência a uma ordem. O contempt of court se divide em criminal e civil, sendo que o criminal destina-se à punição pela conduta atentatória praticada, enquanto o civil destina-se ao cumprimento da decisão judicial, usando para tanto meios coercitivos. É possível que uma conduta desrespeitosa seja passível, ao mesmo tempo, de contempt civil e criminal, seja no processo civil, seja no processo penal. No contempt criminal (punitivo), o processo, autônomo, sumário, é instaurado de ofício ou por provocação da parte interessada; no civil (coercitivo), a aplicação ocorre nos mesmos autos, mediante provocação do interessado, garantida a ampla defesa. Admite-se transação sobre o contempt civil. As sanções ensejadas pelo contempt, em qualquer de suas modalidades, são a prisão, a multa, a perda de direitos processuais e o seqüestro. No civil, a punição é por tempo indeterminado, até que haja o cumprimento da ordem judicial. Se a decisão se tornar de impossível cumprimento, a sanção também deve cessar, motivando, entretanto, o contempt criminal. A multa pode ser compensatória, ou não. Quando compensatória, reverte ao prejudicado; quando coercitiva, reverte ao Estado, considerado o grande prejudicado pela recalcitrância. A prisão, aplicada com prudência, é considerada medida de grande praticidade para a efetividade do processo (GRINOVER, 2001, p. 104). 1 O contempt of court no direito brasileiro. Não há tradução precisa na língua portuguesa para a palavra contempt, retratando a exata acepção do vocábulo. Às voltas com problema similar, na língua espanhola, a doutrina escudou-se no costume para traduzi-la como “desacato”. REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 07-revista_07.p65 92 29/10/2007, 21:43 Osmar Vieira da Silva O contempt civil, destinado ao cumprimento das ordens judiciárias, pode ser direto ou indireto. O direto autoriza o juiz a prender imediatamente o recalcitrante, concedendo-lhe um prazo para justificar sua conduta. O indireto exige um procedimento incidental que, no contempt anglo-saxão, obedece aos seguintes requisitos: a) prova da ocorrência da ação ou omissão; b) que a ordem judiciária determine com clareza a ação ou omissão imposta à parte; c) que a parte seja adequadamente informada sobre o teor e a existência da ordem judiciária; d) que a ordem judiciária desrespeitada seja de possível cumprimento. A citação e a oportunidade de ser ouvido são atributos essenciais do procedimento. Com a citação, a pessoa deve ser informada das condições dentro das quais o atendimento à ordem judicial resultará na revogação das sanções. Após a apresentação das razões, o juiz decide, apreciando as provas produzidas, considerando ou não a parte em contempt e impondo uma sanção condicionada, a incidir no caso de a parte resistir em não cumprir a ordem desobedecida. Finalmente, a sanção imposta é concretamente aplicada, se o contemptor não cumprir a ordem (GUERRA, 1998, p. 104). Aumenta o interesse da comunidade jurídica nacional pelo estudo dos ordenamentos anglo-saxões, na esperança de que, sob sua influência, sejam introduzidos mecanismos processuais mais ágeis e efetivos no direito processual civil pátrio, capazes de “imprimir maior eficácia ao funcionamento da máquina judiciária e, em termos genéricos, à atividade de composição de litígios” (BARBOSA MOREIRA, 2001, p. 155-156).2 Segundo Patrícia Pizzol, depois de mencionar o “potenciamento” dos poderes do juiz, introduzido também pelo parágrafo único do art. 14, diz que a doutrina brasileira tem posto em relevo como se vem verificando uma aproximação entre os sistemas do common law e do civil law, também porque aquele resguarda os poderes do juiz.3 Nesse contexto insere-se a doutrina do contempt of court. A sua grande importância nos países que a adotam indica a profunda distância – em termos de autoridade e superioridade – entre o papel confiado ao Poder Judiciário no common law, em oposição ao que lhe atribui o civil law. A sua adoção no direito processual civil brasileiro surge, pois, como algo a ser alcançado, como uma possível resposta à “crise de autoridade” do Poder Judiciário. A inobservância de uma ordem (injunction) proferida por um juízo ou tribunal pode se dar em várias circunstâncias. Pode ocorrer um mero equívoco do jurisdicionado em relação ao significado e extensão do que lhe foi imposto, um descuido ou desatenção no seu cumprimento, ou, ainda, intenção deliberada de descumpri-la e confrontá-la. Para todas essas hipóteses, o common law coloca à disposição dos juízos e tribunais uma ampla gama de meios e procedimentos de execução para que a autoridade, o respeito e a dignidade confrontados pelo ato de insubmissão sejam restaurados. Os tais meios e procedimentos de execução podem simplesmente assumir um caráter reparatório e esterilizador, alertando o jurisdicionado de que o ato por ele praticado vai de encontro à decisão judicial legítima proferida, dando-lhe a chance de purgar sua mora e eliminar o estado de insubordinação. Esse alerta destina-se a acelerar a submissão do jurisdicionado e vem normalmente acompanhado de uma sanção temporária, que deve perdurar pelo tempo necessário de seu convencimento e integral subordinação. Por outro lado, os meios e procedimentos de execução podem assumir um caráter punitivo, especialmente diante de atos praticados reiteradas vezes e irreversíveis. Nesses casos, a sanção aplicável não se destina à modificação de um estado de inadequação comportamental do jurisdicionado recalcitrante, mas à sua instrução e a dos demais jurisdicionados, das conseqüências danosas de um ato de insubmissão e afronta à justiça. 2 Tem acusado notável interesse, nos últimos tempos, entre os juristas da família ‘romano-germânica’, o interesse pelos ordenamentos anglo-saxônicos. Na esfera doutrinária, vozes robustas apregoam a conveniência, senão a necessidade, de redesenhar sistemas processuais, com os olhos fitos em modelos ingleses e sobretudo norte-americanos, mesmo ao preço de cancelar ou relegar a nível mais modesto o papel de antigas tradições, cultivadas na Europa continental e transmitidas aos países dela tributários no resto do planeta. Não falta quem deposite na absorção de elementos característicos daquela outra família uma grande esperança de imprimir maior eficácia ao fundamento da máquina judiciária e, em termos genéricos, à atividade de composição de litígios”. 3 La dottrina ha messo in relevo come si stia verificando un‘aprossimazione tra i sitemi del common law e del civil law, anche per quel Che riguarda i poteri del giudice.” (trad. livre) REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 07-revista_07.p65 93 29/10/2007, 21:43 93 O Contempt of Court (desacato à ordem judicial) no Brasil 94 Tal qual no civil law, no common law há toda uma ampla gama de meios e procedimentos distintos de execução de ordens judiciais. Considerando-se que uma série de meios e procedimentos alternativos de execução de ordens se encontram disponíveis para os tribunais, a instauração de um processo de contempt of court por descumprimento não se justifica para todos os casos de inobservância de uma ordem judicial. Processos de contempt of court por descumprimento resultam mais comumente da inobservância de uma ordem que, por suas características, somente possa ser cumprida – ou descumprida – pelo jurisdicionado a quem foi endereçada. Podem ser, ainda, executadas, por meio de processo de contempt of court por descumprimento, ordens que imponham ao jurisdicionado, obrigações de fazer ou não fazer – conteúdo positivo ou negativo (BUENO, 2005, p. 133). A injunction – termo que pode bem ser traduzido por “mandamento judicial” – é a modalidade mais solene de ordem proferida por um tribunal e os jurisdicionados têm o dever de observar estritamente os seus termos, cumprindo-os, na forma e no tempo indicados. Pode acontecer de processos serem suspensos com base em um compromisso assumido por uma das partes de praticar ou abster-se de praticar um ato em benefício da outra parte. Esse compromisso tem a mesma força de uma ordem proferida pelo juízo no tribunal. Conseqüentemente, sua violação importa em contempt of court da mesma forma como uma violação de um mandado judicial (injunction). Importa ressaltar que, para o processamento do contempt of court por descumprimento, é preciso demonstrar que uma ordem judicial, que imponha o cumprimento de obrigação positiva ou negativa “específica”, foi ou está na iminência de ser descumprida. Para tanto, exige-se uma interpretação estrita e precisa de seus termos, e quando a conduta exigida ou proibida não puder ser claramente identificada e delimitada a partir dos termos contidos na ordem judicial, o processo de contempt of court por descumprimento não pode prosperar (BUENO, 2005p. 134). Não é essencial que a conduta passível de caracterizar a inobservância seja, especificamente, a da parte a quem a ordem foi dirigida. Quando, por exemplo, a parte no feito for uma pessoa jurídica, a conduta dos que a representam, na qualidade de diretores ou administradores, deve ser examinada e servirá de base para a caracterização ou não do ato de contempt of court por descumprimento. O princípio da responsabilidade objetiva, portanto, aplica-se em tais casos, de modo que a parte obrigada pela ordem é responsável pelas ações ou omissões de qualquer agente seu que esteja a agir dentro do escopo de suas funções ou encargos. Com relação ao seu papel coercitivo por descumprimento, prossegue Julio César Bueno que os processos de contempt of court por descumprimento podem ter uma ou ambas as funções distintas: (a) execução da ordem judicial; e (b) punição por descumprimento. Quando a pretensão do juízo ou tribunal for compelir o contemnor a executar a ordem, a sanção imposta será coercitiva. Diferentemente da sanção punitiva, a sanção coercitiva é aplicada não como conseqüência de um determinado ato, mas para provocar um determinado ato; não como conseqüência de um comportamento humano, mas como o meio necessário para induzir um determinado comportamento. Segundo Alexander Pekelis, a magnitude de sua pressão é medida não pelo que foi feito (seja a atrocidade do crime ou outros elementos), mas pela resistência a ser vencida. Quando a vontade (de desobedecer) do que foi submetido à sanção esmorece, a coerção deve cessar. O juiz que determina a prisão do contemnor participa de uma luta ativa contra a vontade deste (do contemnor), e assim que este mude a sua atitude deve ser solto (PEKELIS, 1943, p. 673).4 4 Tradução livre: “The magnitude of this pressure is measured not by what has been done (be it the heinousness of the crime or other elements) but the resistance to the overcome. Once the will of the person subject to treatment is spent, coercion ceases. The judge gaoling the reluctant party engages in an active struggle with the will of the latter, and as soon as he changes his attitude he is freed REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 07-revista_07.p65 94 29/10/2007, 21:43 Osmar Vieira da Silva Por fim, considerando-se a variedade de mecanismos de execução disponíveis para o juízo ou tribunal, em especial os de caráter sub-rogatório, tem-se como desnecessária ou inadequada a aplicação da doutrina do contempt of court para obrigar o jurisdicionado ao cumprimento de todo e qualquer caso de descumprimento. É princípio básico da doutrina do contempt of court que a função coerciva da sanção por contempt of court por descumprimento não deve ser empregada para executar decisões judiciais quando existem outros meios disponíveis para tanto, ou o ato de contempt of court por descumprimento, ao mesmo tempo possa ser enquadrado e sancionado por outro meio colocado à disposição do juízo ou tribunal. Para a responsabilização do contemnor e a aplicação de sanção, alguns requisitos são necessários. Primeiramente, é indispensável que haja uma ordem, proferida pela Corte, que seja clara e plenamente inteligível, e que especificamente determine a uma das partes no processo que faça ou se abstenha de fazer alguma coisa. A ordem não pode ser ambígua e também não pode haver dúvida de que o contemnor foi adequadamente cientificado de seus termos. Ademais, deve haver prova inequívoca do descumprimento da ordem pelo contemnor ou demonstração da forte plausibilidade de sua iminência. Isso tudo para que o contemnor não logre êxito ao alegar ampla ignorância ou desconhecimento de todos os termos da ordem proferida (HAZARD JR., 1993, p. 203). As sanções aplicáveis aos contempt of court por descumprimento, como meio executivo impróprio, de modo geral apresentam um espírito orientador e disciplinador, conexo à idéia do pleno respeito às atividade de administração da justiça. Objetivam, assim, induzir ou compelir o contemnor a um determinado comportamento perante a Corte, ativo ou passivo, a fim de que a pretensão à adequada prestação jurisdicional seja, a final, satisfeita ((HAZARD JR., 1993, p. 202-203).5 2.2 O Contempt of Court no Brasil Com o advento da Lei 10358/2001, a reforma do art. 14 do CPC implantou um eficaz mecanismo visando a coibir o contempt of court, genericamente entendido como desacato à ordem judicial. Em profundo artigo, afirma Luiz Rodrigues Wambier que, originariamente, a regra do art. 14 versava apenas os deveres das partes e seus procuradores. Com a reforma, ocorreu a inserção do parágrafo único, em que foi implantada no sistema processual brasileiro figura até então desconhecida. Trata-se da figura do ”responsável” pelo descumprimento de ordem processual. Por outro lado, houve também a inserção de novo inciso (V), no art. 14, contendo expressa previsão do dever de cumprir com exatidão os provimentos mandamentais e não criar embaraços à efetivação de provimentos judiciais, de natureza antecipatória ou final. Em razão da inclusão do referido dispositivo legal, os deveres de boa conduta processual foram estendidos para além das partes e de seus procuradores, alcançando todos aqueles que de qualquer forma participam do processo (WAMBIER, 2005, p. 36). Vai ainda mais além João Batista Lopes, ao asseverar a respeito da questão da desobediência às ordens judiciais, tratando especificamente da regra dos arts. 600 e 601, que já é tempo de se cogitar da introdução, entre nós, de medida semelhante ao contempt of court, para permitir, nesses casos, a prisão civil por atentado à dignidade da justiça. O autor também defende a constitucionalidade da medida e afirma que sua efetiva aplicação depende do atendimento ao princípio do contraditório.6 5 Não cabe contempt of court para a efetivação de ordens de pagamento de valor. Tais ordens criam uma responsabilidade para o obrigado, que deverá ser satisfeita pelos modos próprios de execução. 6 Nem se objete que a prisão estaria inquinada de inconstitucionalidade. É que a Lei Máxima proíbe, tão-somente, a prisão por dívida; não a resultante de atentado à dignidade da Justiça. Claro está que a medida seria precedida de intimação pessoal do devedor para dar explicações ao juiz ou defender-se da imputação formulada pelo credor, com o que se atenderá à garantia do contraditório. REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 07-revista_07.p65 95 29/10/2007, 21:43 95 O Contempt of Court (desacato à ordem judicial) no Brasil O desenvolvimento da sociedade brasileira, todavia, sensivelmente perceptível nas últimas décadas, até mesmo em razão da inserção de novos direitos e da disseminação da informação, fruto próximo da democracia, fez com que a prestação de tutela jurisdicional descompromissada, isto é, prestada pelo Estado sem atributos ou mecanismos capazes de garantir sua real operação no plano dos fatos, seja tida, em nossos dias, como muito próxima de sua inexistência, pois o que se quer garantir é o direito à obtenção de provimentos que sejam capazes de promover, nos planos empírico e do direito, as alterações requeridas pelas partes e garantidas pelo sistema jurídico. Não mais basta – repita-se – a mera tutela formal dos direitos (WAMBIER, 2005, p.38). E o legislador já deu o primeiro passo (a multa - o segundo deverá ser a prisão) na direção de que a partir da edição da Lei 10.358/2001, não mais se admite a ineficácia do provimento judicial, causada por descumprimento de provimentos mandamentais e embaraços à efetivação de provimentos judiciais que se constituam em desacato à ordem judicial (contempt of court). 3 DESCUMPRIMENTO DOS PROVIMENTOS MANDAMENTAIS 96 Ao falar em provimentos mandamentais, o novo inciso reporta-se à disciplina da execução das obrigações específicas, contida nos arts. 461 e 461-A; provimentos de natureza antecipatória, disciplinados pelos art. 273 e; cumprimento da sentença, de acordo com o art. 475. Sendo os arts. 273 e 461 destinados a acelerar os resultados práticos do processo, é natural que todo empenho faça o legislador para que esses próprios dispositivos sejam capazes de produzir tais resultados, independentemente da boa - vontade do obrigado ou de quem quer que seja e até mesmo mediante punição a quem se opuser à sua efetivação. Daí os deveres éticos explicitados no inc. V do art. 14, acompanhados de grave sanção ao seu descumprimento (art 14, par.). Segundo Candido Rangel Dinamarco, o novo texto não fala de sentenças mandamentais, antecipatórias ou finais, mas em provimentos mandamentais antecipatórios ou finais. São provimentos em direito processual, todos os atos portadores de uma vontade do Estado-Juiz, às vezes acompanhado de alguma determinação no sentido de realizar ou omitir uma conduta (DINAMARCO, 2002, p. 488). Dada essa amplitude do gênero próximo em que se incluem as sentenças judiciais (provimentos), o inc. V do art. 14 do Código do Processo Civil abrange não só as sentenças, mas também os demais provimentos que o juiz emitir, e que tenham natureza mandamental (sentenças, decisões interlocutórias ou mesmo despachos) (DINAMARCO, 2002, p. 60). Asseverando o autor, que o dever de não embaraçar se aplica a todos, assim afirma: O dever de cumprir, obviamente, é exclusivo do sujeito que for titular da obrigação de fazer ou de entregar, que haja sido objeto de determinação judicial. O de não embaraçar tem eficácia erga ommes. Infringe o inc. V não apenas aquele que, tendo o dever de dar efetividade ao provimento ou o de contribuir para sua efetivação, deixa de fazê-lo ou cria dificuldades ilegítimas à sua efetivação; infringe-o também quem quer que, mesmo não tendo dever algum relacionado com essa efetivação, interfere no iter de sua produção mediante condutas que a impossibilitem ou dificultem (DINAMARCO, 2002, p. 60). Não cumprir o decisório de uma sentença condenatória comum, como a que impõe um pagamento em dinheiro, significa somente permanecer em situação civil de inadimplemento, sujeitando-se a futura execução e, talvez, a algum agravamento pecuniário da obrigação. Não cumprir um provimento mandamental, no entanto, é “desobedecer” – e REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 07-revista_07.p65 96 29/10/2007, 21:43 Osmar Vieira da Silva toda desobediência a atos estatais comporta a reação da ordem jurídica e dos agentes do poder público (no caso, o Estado-Juiz), seja no sentido de punir o infrator, seja para coagi-lo legitimamente a cumprir. Provimentos finais, no processo de conhecimento, são as sentenças. Provimentos antecipatórios são atos decisórios com os quais o juiz oferece, em caráter provisório, no todo ou em parte, os resultados práticos que a parte espera obter no processo. Nem toda sentença e nem toda decisão interlocutória pode, contudo, ser considerada como de cumprimento obrigatório e coativo por parte da parte vencida, para os fins desse dispositivo e das sanções cominadas à sua transgressão. Nem mesmo toda sentença de mérito é portadora de um comando tão enérgico, como são as mandamentais. É o caso das sentenças que condenam a pagar dinheiro, das constitutivas em geral e das que julgam improcedente a demanda do autor. Quanto às “condenações de conteúdo pecuniário”, o mero descumprimento não passa da continuação de um inadimplemento que já vinha desde antes e, uma vez proferida a condenação, passa a ser sancionado com os atos inerentes à execução por quantia certa – e não mediante repressões ou as pressões psicológicas inerentes ao art. 461 e seus parágrafos. O que se está falando é do dever de cumprir. É claro que, com relação a essas sentenças, existe o dever de não criar embaraços, que hipoteticamente pode ser transgredido mediante a subtração ou ocultação dos autos pelo devedor ou seu patrono, pela retenção em cartório e sonegação ao advogado do credor, pela omissão do empregador do obrigado por pensões alimentícias (não efetuando as retenções determinadas pelo juiz), etc. As condutas desleais e desrespeitosas ao Poder Judiciário, quando cometidas pelo devedor ou seu patrono no curso da execução, incidem nas sanções cominadas pelo Código de Processo Civil aos atos atentatórios à dignidade da Justiça, tipificados em seu art. 600. Ocorre que, embora a primeira parte do § 1º do art. 656 do CPC, inserido pela Lei 11.382/2006, diga que, pelo descumprimento do art. 600, IV, aplica-se a pena do 601, a sua segunda parte faz referência expressa à aplicação do art. 14, § único, na hipótese do executado que cause embaraço à realização da penhora e, quiçá, à efetivação dos provimentos judiciais. Por idêntica razão, defende-se a aplicação da parte final do inciso V do art. 14 no caso do empresário que, de alguma forma, abuse no exercício do direito da personalidade jurídica, escondendo os bens da empresa em seu nome próprio e fazendo incidir o art. 50, do cc – desconsideração. Portanto, o raciocínio de Dinamarco acrescenta que, por força do enunciado na segunda parte do § 1º do art. 656, não se deve criar embaraços apenas às sentenças, sejam elas de qual natureza forem, mas também a quaisquer outros provimentos judiciais (segundo o autor, tratase de gênero onde também se incluem as sentenças). A sentença de condenação não sujeita o devedor a uma ordem do juiz, que como autoridade estatal determina seu adimplemento. A condenação – conforme adverte Montesano – não transforma os deveres privados em sujeição à autoridade estatal, ainda que abra oportunidade à utilização de instrumentos de direito público para a satisfação dos direitos subjetivos; o devedor condenado continua apenas civilmente obrigado perante o credor, e não vinculado a uma ordem do juiz (MARINONI, 2000, p. 354). Marinoni (2000, p. 356) espanca qualquer dúvida que possa existir entre a essência da sentença mandamental e condenatória que meramente declara, ao afirmar que a sentença seria condenatória apenas porque impõe uma prestação. Uma mera “sentença de prestação”, entretanto, não pode ser confundida com a sentença condenatória, que é indissociavelmente ligada à força do Estado. Portanto, a sentença que impõe uma prestação, mas não se liga à “sanção” é meramente declaratória. Note-se que a diferença reside na força que se empresta à obediência da ordem de mando. Para Marinoni, uma sentença não é mandamental apenas porque manda, ou ordena mediante mandado. A sentença que “ordena”, e que pode dar origem a um mandado, mas não pode ser executada mediante meios de coerção suficientes, não pode ser classificada como mandamental. A mandamentalidade não está na ordem, ou no mandado, mas na ordem conjugada à força que se empresta à sentença, admitindo-se o uso de medidas de coerção para forçar o devedor a adimplir. Só há sentido na ordem quando a ela se empresta força coercitiva; caso contrário, a ordem é mera declaração. Da mesma forma que a condenação só é condenação porque REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 07-revista_07.p65 97 29/10/2007, 21:43 97 O Contempt of Court (desacato à ordem judicial) no Brasil 98 aplica a “sanção”, a sentença mandamental somente é mandamental porque há a coerção (MARINONI, 2000, p. 356). Além disso, ao tratar da questão no plano estrutural e sistemático, argumentou Mandrioli que não há execução forçada se não há o superamento de um obstáculo e a invasão coativa da esfera de autonomia do devedor (MARINONI, 2000, p. 357). Para Marinoni (2000, p. 358), a sentença condenatória abre oportunidade para a execução, mas não executa ou manda; a sentença mandamental manda que se cumpra a prestação sob pena de multa. Na condenação há apenas condenação ao adimplemento, criando-se os pressupostos para a execução forçada. Na sentença mandamental há ordem para que se cumpra sob pena de multa; há um “mandado”, que não se confunde com o mandado que será expedido, já que o juiz “manda” que se cumpra e não apenas exorta ao cumprimento, fixando a base para execução forçada. Na sentença mandamental não há, note-se bem, apenas exortação ao cumprimento; e há ordem de adimplemento que não é mera ordem, mas ordem atrelada à coerção. Uma sentença que ordena sob pena de multa já usa a força do Estado, ao passo que a sentença que condena abre oportunidade para o uso dessa força. É de se notar que, da mesma forma que tais conceitos se aplicam à sentença mandamental, o inciso V, do art. 14, se refere aos provimentos mandamentais, aos quais também se deve aplicar os instrumentos de efetivação do direito material contidos no parágrafo único do art. 14, do CPC, bem como e principalmente, à efetivação dos provimentos judiciais. Quem pretende ver inibida a prática de um ilícito pede ordem sob pena de multa e não apenas mandado. O que varia do mandamento para a condenação é a natureza do provimento; o provimento condenatório condena ao adimplemento, criando o pressuposto para a execução forçada, ao passo que o provimento mandamental ordena sob pena de multa. O critério que se permite definir a mandamentalidade é meramente processual. O que define a mandamentalidade é a possibilidade de se requerer ordem sob pena de multa (MARINONI, 2000, p. 359). Na busca de uma definição da decisão pretendida pelo litigante, sempre se observou o pedido imediato, porém, lembram Luiz Rodrigues Wambier e Teresa Arruda Alvim Wambier que a noção de sentença mandamental não se refere à espécie de pedido do autor, mas sim ao “fato de a providência pleiteada prestar-se a proporcionar uma garantia in natura ao impetrante” (WAMBIER, 2005, p. 25).7 A principal característica dessa espécie de sentença é a ordem nela contida. Assim, o juiz não condena simplesmente ao cumprimento de uma obrigação, mas expede um mandado com uma ordem para que seja cumprida sua determinação. Para Ovidio Batista da Silva (2000, p. 336), a ação mandamental tem por fim obter, como eficácia preponderante da respectiva sentença de procedência, que o juiz emita uma ordem a ser observada pelo demandado, em vez de limitar-se a condená-lo a fazer ou não fazer alguma coisa. É da essência, portanto, da ação mandamental que a sentença que lhe reconheça a procedência contenha uma ordem para que se expeça um mandado. Daí a designação de sentença mandamental. Nesse tipo de sentença, o juiz ordena, e não simplesmente condena. Segundo observa Daniel Assumpção Neves (2003, p. 51), em virtude de tal característica, decorrem dois importantes efeitos: O primeiro é a absoluta desnecessidade de ação de execução autônoma para efetivação da decisão. A satisfação do vencedor dá-se de forma imediata já com a expedição do mandado contendo a ordem para o cumprimento da obrigação, sem a necessidade de qualquer formação posterior de nova relação processual, nova citação, nova defesa, etc. O segundo, por ser uma ordem do juiz, e não uma mera condenação, o descumprimento é considerado como desobediência ao ato do juiz, autoridade estatal. Dessa forma, poder-se-ia até tipificar tal conduta penalmente. 7 Breves comentários à 2ª Fase da Reforma do Código de Processo Civil.. REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 07-revista_07.p65 98 29/10/2007, 21:43 Osmar Vieira da Silva Se ordens existem é para serem cumpridas, não necessitando haver norma expressa para demonstrar tal obviedade. O problema é que, embora óbvia a obrigatoriedade de cumprimento das ordens judiciais, verifica-se muito desrespeito por parte daqueles que deveriam cumpri-las no caso concreto. Assim, diz-se o óbvio para prever a tal dever uma sanção, que infelizmente parece ser, nos tempos atuais, o único meio – e nem sempre eficaz – de evitar o absurdo desrespeito às ordens judiciais (NEVES, 2003, p. 52). 4 OS EMBARAÇOS À EFETIVAÇÃO DE PROVIMENTOS JUDICIAIS Nos exatos termos do contido no par. único do art. 14, todo aquele que de algum modo atue no processo poderá ser declarado responsável pela frustração (embaraço) integral ou parcial do resultado da prestação jurisdicional, vale dizer, pelo desacato à decisão judicial (ou, se preferirmos, pelo contempt of court). O texto legal não se refere exclusivamente ao comportamento das partes, de seus advogados, dos auxiliares do juízo, etc., mas, expressamente, faz referência a “todos aqueles que de alguma forma participem do processo”. Segundo Luiz Rodrigues Wambier, estarão causando embaraço à efetivação dos provimentos jurisdicionais todos os atos ou omissões, culposos ou não, que criem dificuldades de qualquer espécie ao alcance do resultado prático a que está vocacionado o provimento jurisdicional. A responsabilidade prevista no art. 14 se assemelha à responsabilidade objetiva, eis que prescinde, para sua declaração, da presença de culpa. Verificando o embaraço à efetivação do provimento, a norma poderá ser aplicada ao responsável, sem a necessidade da verificação da presença de culpa em seu agir (WAMBIER, 2005, p. 4). Recentemente, mais precisamente em 20 de janeiro de 2007, entrou em vigor a Lei 11.382. De acordo com o § 1º do art. 656 do CPC, é dever do executado abster-se de qualquer atitude que dificulte ou embarace a realização da penhora, nos procedimentos de execução de título extrajudicial, sob as penas do art. 14, parágrafo único.8 Tal previsão vem reforçar o comando previsto na parte final no inciso V do art. 14 do CPC, o qual também prescreve que é dever das partes e de todos aqueles que de qualquer forma participam do processo não criar embaraços à efetivação de provimentos judiciais, de natureza antecipatória ou final, sob as penas previstas no parágrafo único do mesmo artigo. Segundo Fredie Didier (2003, p. 08), a distinção entre provimentos antecipatório e final, como é intuitivo, não diz respeito ao conteúdo que encerram, pois aquele visa exatamente antecipar efeitos somente obtidos após este; o provimento antecipatório, portanto, abrevia o tempo para a obtenção de efeitos materiais inicialmente alcançáveis apenas com o provimento final – sentença ou acórdão. Aquele será fundado, no mais das vezes, em cognição sumária; este, em exauriente. Tutela final é aquilo que se pretende do Poder Judiciário – tutela jurisdicional, resultado prático favorável, obtenível pela técnica condenatória, declaratória, constitutiva, mandamental ou executiva, alcançada no sistema brasileiro, em regra, após o trânsito em julgado da sentença. Tutela antecipatória é aquela que concede à parte o resultado prático que ele procura obter da tutela final, antes do momento inicialmente projetado para tanto (JORGE, 2005, p. 08). Segundo Marinoni, a tutela antecipatória contrapõe-se à tutela cautelar, que também não se enquadra no conceito de tutela final, porquanto visa dar a esta segurança – embora se possa construir a idéia de que a tutela cautelar é a tutela final do processo cautelar. A tutela cautelar, ainda que provisória e fundada em cognição sumária – semelhanças que mantém com a tutela antecipatória, dela se diferencia; enquanto a cautelar apenas o garante, a tutela antecipatória atribui o resultado (ou parte dele) útil do processo; uma não é satisfativa, a outra sim (MARINONI, 1998, p. 88-110). 8 § 1º, do art. 656, do CPC (Lei 11.382 de 06/12/2006: É dever do executado (art. 600), no prazo fixado pelo juiz, indicar onde se encontram os bens sujeitos à execução, exibir a prova de sua propriedade e, se for o caso, certidão negativa de ônus, bem como abster-se de qualquer atitude que dificulte ou embarace a realização da penhora (art. 14, parágrafo único). REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 07-revista_07.p65 99 29/10/2007, 21:43 99 O Contempt of Court (desacato à ordem judicial) no Brasil Entende-se, como Fredie Didier (2003, p. 09), que o inciso V do art. 14 também se aplica aos provimentos cautelares, pela identidade manifesta da ratio, sob pena de se afirmar que uma decisão judicial em sede cautelar é menos digna de respeito do que uma decisão em processo de conhecimento ou de execução. A permissão da fungibilidade das medidas antecipatória e cautelar confirma a tese ora defendida. Ressalte-se, ademais, que as providências cautelares são tomadas, geralmente, por meio de provimentos mandamentais ou executivos. Como o inciso V do art. 14 estabelece, na sua segunda parte, o dever de não embaraçar o cumprimento de provimentos judiciais finais e antecipatórios, verifica-se a postura ativa de impedir que os provimentos tenham eficácia, sejam eles finais ou proferidos durante o trâmite processual. Preferiu o legislador, pelo menos à primeira vista, não limitar a natureza dos pronunciamentos e nem seus sujeitos passivos no que se refere à não criação de obstáculos à efetivação dos pronunciamentos do juiz. Por se tratar de dever de caráter negativo, o dever de não embaraçar o cumprimento dos pronunciamentos judiciais é amplo e irrestrito, atingindo a todos, com verdadeiro efeito erga omnes. Fala o inciso V do art. 14 em pronunciamentos judiciais de natureza antecipatória e final. Como se percebe, foge-se da classificação, tão criticada, levada a efeito pelo artigo 162 do Código de Processo Civil. Não menciona o dispositivo de lei se é despacho, decisão interlocutória ou sentença, deixando margem ao operador a constatação de quais espécies de pronunciamentos do juiz seriam esses de natureza antecipatória e final. Parece que quanto ao pronunciamento de natureza final não surge qualquer dúvida, tratando-se de sentença, ou ainda 100 acórdão, decisão colegiada do Tribunal. O legislador ao mencionar os efeitos antecipatórios, estaria limitando-se aos provimentos disciplinados pelos artigos 273 e 461 do Código de Processo Civil, e alguns procedimentos especiais (liminar). Nesses casos, o provimento antecipa faticamente os efeitos do provimento final e definitivo. Segundo Daniel Assumpção Neves (2003, p. 36), sempre que concedida uma liminar ou uma tutela antecipada, tratar-se-a de provimento de natureza antecipatória. No processo cautelar, a única diferença é que a antecipação não é dos efeitos que o reconhecimento do direito material do autor geraria, até mesmo porque esse não se discute nem se decide em sede cautelar. Mas é inegável que a liminar antecipa os efeitos provenientes da sentença cautelar, sendo, portanto, antecipatória da tutela cautelar. Afinal, enquanto as liminares em geral entregam ao autor a fruição de um direito material que só virá de forma definitiva na sentença, a liminar da cautelar entrega ao requerente a proteção cautelar de forma antecipada, garantindo-se assim a eficácia do resultado do processo principal. Assim sendo, a tutela cautelar pode ser concedida de duas formas: provimento de natureza final (sentença cautelar) e provimento de natureza antecipatória (liminar). REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 07-revista_07.p65 100 29/10/2007, 21:43 Osmar Vieira da Silva 5 A MULTA DO PARÁGRAFO ÚNICO DO ARTIGO 14 DO CPC O Código de Processo Civil prevê alguns atos considerados como litigância de má-fé ou atentatórios à dignidade da justiça: deduzir pretensão ou defesa contra texto expresso de lei ou fato incontroverso (art. 17, I); alterar a verdade dos fatos (art. 17, II); usar o processo para conseguir objetivo ilegal (art. 17, III); proceder de modo temerário em qualquer incidente ou ato do processo (art. 17, V); fraudar a execução (art. 600, I); opor-se maliciosamente, à execução, empregando ardis e meios artificiosos (art. 600, II). Tais deveres – das partes e de seus procuradores - sempre tiveram como sanção o pagamento de multa pecuniária, ou então a responsabilização pelos danos causados pela atitude abusiva, conforme determinam os artigos 18 e 601 do CPC. Os valores dessas sanções são todos revertidos em favor da parte contrária, supostamente prejudicada com o ato considerado de má-fé. Esquecia-se que o Estado, como responsável pela entrega de uma prestação jurisdicional de qualidade, também era seriamente prejudicado com tais atos, vendo seu poder enfraquecido perante os jurisdicionados. Com o inciso V do art. 14, o atentado ao exercício da jurisdição permite que a multa reverta para os cofres da União, do Estado ou do Distrito Federal. Ressalte-se que, se a multa não for quitada no prazo dado pelo juiz, será incluída na Dívida Ativa do Estado ou da União, dependendo da demanda ter seu trâmite perante a Justiça Estadual ou Federal, o que caracteriza desde já prejuízo ao infrator, ainda que a Fazenda não ingresse imediatamente com a ação executiva. 5.1 Os Destinatários e a Exclusão dos Advogados Assim preceituam o art. 14, V e seu parágrafo único do Código de Processo Civil: Art. 14 (caput): São deveres das partes e de todos aqueles que de qualquer forma participam do processo: ...omissis V - : cumprir com exatidão os provimentos mandamentais e não criar embaraços à efetivação de provimentos judiciais, de natureza antecipatória ou final. Parágrafo único. Ressalvados os advogados que se sujeitam exclusivamente aos estatutos da OAB, a violação do disposto no inciso V deste artigo constitui ato atentatório ao exercício da jurisdição, podendo o juiz, sem prejuízo das sanções criminais, civis e processuais cabíveis, aplicar ao responsável multa em montante a ser fixado de acordo com a gravidade da conduta e não superior a 20% (vinte por cento) do valor da causa; não sendo paga no prazo estabelecido, contado do trânsito em julgado da decisão final da causa, a multa será inscrita sempre como dívida ativa da União ou do Estado. REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 07-revista_07.p65 101 29/10/2007, 21:43 101 O Contempt of Court (desacato à ordem judicial) no Brasil 102 Do enunciado do caput, verifica-se uma responsabilidade processual que abrange não só as partes, assistentes e intervenientes em geral, como também seus advogados, o próprio juiz, o Ministério Público, a Fazenda Pública, os auxiliares da justiça e as testemunhas – dos quais, sem exceção, exigem-se comportamentos conforme a lealdade e a boa-fé, fiéis à verdade dos fatos, sem abusar de faculdades ou poderes, etc. Mas o enunciado legal que à primeira vista parece depender apenas de uma singela exegese literal, suscita no mínimo três questões polêmicas. A primeira questão que se coloca e que foi profundamente debatida por Luiz Fernando Bellinetti e Elmer da Silva Marques (2006, p. 72) destinatário da multa: esta deverá incidir sobre a própria Fazenda Pública, isto é, sobre a pessoa jurídica de direito público, ou deverá incidir sobre o servidor público, aqui incluídas as autoridades, inclusive as que são titulares de cargos eletivos? Ocorre que o cumprimento da ordem emitida não está, na maioria absoluta dos casos, afeito à discricionariedade de um único servidor público: este pode depender de atos alheios à sua vontade, como a atuação de um superior hierárquico, da aprovação de medidas pelo Poder Legislativo etc. Segundo Luiz Fernando Bellinetti (2006, p. 84) de ser resolvida da seguinte forma: quando se tratar de ordem a ser cumprida por uma única pessoa, ou, em outras palavras, que dependa da atuação de um único servidor público, a multa deve incidir sobre essa pessoa. Isto é mais facilmente detectável no mandado de segurança, que é movido contra autoridade pública específica, que esteja atuando de forma a praticar atos ilícitos. Se a multa recaísse única e exclusivamente sobre a pessoa jurídica de direito público, poderia incutir na autoridade ou servidor público o entendimento de que não seria responsável pelo pagamento da multa. Araken de Assis (2003, p.30) bem demonstrou o caráter psicológico da multa sobre os servidores públicos: [...] no caso de descumprimento à ordem judicial, travestida de provimento mandamental (art. 14, V, do CPC), o servidor e o agente públicos sujeitam-se à pena do art. 14, parágrafo único. A sanção se dirige ao ‘destinatário precípuo da ordem’. Ora, tais pessoas, cujo comportamento se subordina ao princípio da legalidade (art. 37, caput, da CF/88), se revelam suscetíveis à ameaça da multa.É pouco provável que desafiem o órgão judicial, arrostando a conseqüência de se verem apenados. Razões individuais, a exemplo da promoção iminente e o amor próprio, tornam o servidor apegado à rotina inflexível do cumprimento espontâneo. Depois, transitada em julgado a decisão, a inscrição da multa como dívida ativa do Estado ou União, e, em seguida, a execução da respectiva certidão, constituem atos de competência de outros servidores, nada propensos a deixar de praticar atos de ofício para eximir colegas desconhecidos, ainda mais sob fiscalização sempre aterrorizante do Ministério Público. Assim, a ameaça é real e efetiva, atingindo os objetivos da técnica da pressão psicológica. Segundo Luiz Guilherme Marinoni, caso a multa incidir sobre a pessoa jurídica de direito público, apenas o seu patrimônio poderá responder pelo não-cumprimento da decisão. Entretanto, não há cabimento na multa recair sobre o patrimônio da pessoa jurídica, se a vontade responsável pelo não cumprimento da decisão é exteriorizada por determinado agente público. Não há procedência no argumento de que a autoridade pública não pode ser obrigada a pagar a multa derivada de ação em que foi parte apenas a pessoa jurídica. É que essa multa somente poderá ser imposta se a autoridade pública, que exterioriza a vontade da pessoa jurídica, não der atendimento à decisão. Note-se que a multa somente pode ser exigida da própria autoridade que tinha capacidade para atender à decisão e não a cumpriu (MARINONI, 2004, p. 662). REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 07-revista_07.p65 102 29/10/2007, 21:43 Osmar Vieira da Silva A obediência às decisões judiciais é imperativo para a mantença do Estado Democrático de Direito e a ordem pública e, ademais, se a prisão por descumprimento de ordem judicial recai sobre a autoridade pública que descumpriu a ordem, com maior razão a multa pecuniária também deverá recair sobre a autoridade. Vale, aqui, o conhecido adágio de que quem pode mais, pode menos.9 Em sentido semelhante, também proferido em ação de revisão de pensão, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul foi expresso ao determinar que “as penalidades previstas na legislação, na hipótese de descumprimento de ordem, recairá [sic] sobre o servidor público que não lhe der cumprimento: tratando-se de sentença mandamental dirigida contra servidor público, eventual desobediência sujeita-o às penalidades previstas na legislação”.10 Segundo Bellinetti e Elmer Marques, se a prisão por descumprimento de ordem recai sobre a pessoa da autoridade ou servidor público, igualmente a multa deverá incidir sobre a pessoa física que, por culpa sua, não deu cumprimento à ordem judicial. O fato de a autoridade ou servidor público não ser parte do processo não a impede de ser responsabilizada pelo não cumprimento da ordem advinda do processo que não atua como parte. Em primeiro lugar, porque deve a autoridade ou servidor público cumprir a ordem judicial na medida em que atua como agente da pessoa jurídica de direito público. Em segundo lugar, agindo a autoridade ou servidor público com culpa (lato sensu), e causando prejuízo ao Erário, deve ser responsabilizada por seus atos, nos termos do art. 37, § 6º da CF/88. Trata-se de situação análoga à que consta no art. 362 do CPC, que prevê a emissão de ordem a terceiro para que exiba documentos necessários em processo no qual não atua como parte, havendo previsão, inclusive, de responsabilidade criminal (BELLINETTI, 2006, p. 88). A segunda questão advém da polêmica para se saber se a multa pode ser aplicada ao juiz. É interessante a idéia de Tereza Wambier (2002, p. 35), segundo a qual, “estão incluídos nos rigores da nova regra os magistrados que, por qualquer motivo, dificultem, por exemplo, o cumprimento de cartas de ordem ou precatórias, desde que sua conduta seja determinante para o esvaziamento do resultado concreto do provimento judicial”, porém, acredita ser muito difícil, do ponto de vista prático, dar aplicação tão ampla a essa punição, afinal, quem aplicaria a sanção se o autuado preside o processo? A terceira polêmica reside na expressa exclusão dos advogados, pois, enquanto tramitava no Congresso Nacional, foi alterada a proposta de redação do parágrafo único do art. 14. A redação anteriormente sugerida, mais lacônica, permitia que se vislumbrasse a sua incidência também para punir a conduta do advogado. Para Fredie Didier Jr. (2003, p. 02), a redação do parágrafo único do art. 14 do CPC apenas aparentemente exclui os procuradores da incidência do referido dispositivo. Trata-se de falsa impressão. A um, porquanto a menção a tantos quantos participem do processo seja genérica o suficiente para englobar, também, os causídicos; a dois, porque o título do capítulo permanece o mesmo: “Dos deveres das partes e dos seus procuradores”. A referência aos advogados desapareceu porque se tornou desnecessária com a inclusão desta nova parte final do caput. O que o autor quer dizer é que apenas se aplicam os quatro primeiros incisos aos advogados, visto que o parágrafo único apenas os exclui da incidência da multa com relação aos fatos previstos no inciso V. 9 Acórdão ou sentença transitada em julgado. Parcelas posteriores. Pagamento. Caráter mandamental da decisão. Desobediência. Prisão. Possibilidade. A decisão judicial de revisão de pensão é mandamental no que atina com os pagamentos das parcelas posteriores ao transito em julgado. Precedentes do STJ. O não-pagamento importa em desobediência à ordem judicial, pois implantar e não pagar e como não-implantar. Servidor ou agente público é passível de sanção pelo crime de desobediência à ordem judicial. Precedentes do STJ. A obediência às decisões judiciais é imperativo para a mantença do Estado Democrático de Direito e a ordem pública. (TJRS – Ag. Reg. 70002992162 – rel. Des. Adão Sérgio do Nascimento Cassiano – j. 24.04.2002). No mesmo sentido: Direito processual penal. Denúncia contra prefeito municipal. Imputação de crime de responsabilidade. Descumprimento imotivado de ordem judicial. Fatos descritos. Subsunção ao tipo penal indicado. Denúncia formalmente perfeita. Ordem judicial contida em liminar de mandado de segurança. Indicadas as provas documentais comprobatórias da intimação judicial e do teor da ordem nela contida. Inocorrência de qualquer das hipóteses de rejeição da denúncia (art. 43/CPP). Inexistência de qualquer das causas de extinção de punibilidade. Afastadas as justificativas apresentadas na resposta do denunciado. Não demonstrada a entrega direta ao vereador impetrante dos documentos cuja juntada aos autos foi determinada. Denuncia recebida. Ulterior prosseguimento do feito nos termos do art. 7. E segs. Da lei n. 8.038/1990. (TJPR, Ac. 16761, Proc. 0152569-9, rel. Des. Luiz Mateus de Lima, 2ª Câm. Crim., j. 16.09.2004) (nossos grifos) 10 TJRS ApCív e Reex. Nec. 70002763704, 2ª Câm. Cív., rel. Des. Maria Isabel de Azevedo Souza, j. 12.09.2001. REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 07-revista_07.p65 103 29/10/2007, 21:43 103 O Contempt of Court (desacato à ordem judicial) no Brasil 104 Sugere Tereza Wambier (2002, p. 19) que o título do capítulo deveria ser alterado para “Dos deveres dos participantes do processo”. Leciona Tucci (p. 25) que a falta profissional grave, inclusive aquela passível de ser emoldurada nos quadrantes do novo art. 14, quando detectada pelo magistrado, deve ser comunicada à Ordem dos Advogados do Brasil para as devidas providências. Cita como exemplo a regra do art. 196 do CPC, que se apresenta, nesse particular, clara e precisa, ao dispor ser: “... lícito a qualquer interessado cobrar os autos do advogado que exceder o prazo legal. Se, intimado, não os devolver dentro em 24 (vinte e quatro) horas, perderá o direito à vista fora do cartório e incorrerá em multa, correspondente à metade do salário mínimo vigente na sede juízo. Apurada a falta, o juiz comunicará o fato à seção local da Ordem dos Advogados do Brasil, para o procedimento disciplinar e imposição da multa” (TUCCI, 2002, p. 25). O art. 88 do estatuto processual italiano assevera que, diante de atos de má-fé processual, compete ao juiz apenas informar aos órgãos administrativos aos quais estão subordinados os advogados para que a estas instâncias caiba aplicar eventuais sanções disciplinares.11 De acordo com José Rogério Cruz e Tucci (2002, p. 27), inseridos no mesmo plano hierárquico, o advogado e o juiz jamais devem externar, na prática do respectivo ofício, qualquer ressentimento pessoal. Todavia, o advogado e o juiz, que são homens como quaisquer outros, têm sentimentos profundos. Não são raras as ocorrências, em época contemporânea, que revelam as dificuldades que emergem do relacionamento advogado-juiz. É por essa razão que se justifica plenamente a exceção atinente aos advogados, uma vez que, nas mãos de juízes rancorosos, a inovação legislativa, se lhe fosse aplicável, acabaria sendo um instrumento de ameaça e de constrangimento para o livre exercício da advocacia. O ato decisório de índole jurisdicional, como emanação do poder estatal de que se reveste o juiz, constitui, portanto, instrumento deveras perigoso quando conspurcada, por qualquer motivo de ordem material ou espiritual, a imparcialidade que necessariamente deve exornar a administração da justiça. Segundo Dinamarco (2003, p. 68), a emenda que fizeram no texto original, que se associa à expressa imunização dos advogados à sanção cominada no novo parágrafo do art. 14, teve o nítido intuito de deixá-los também a salvo de toda disciplina ética processual, contida no Código de Processo Civil, e do controle judicial de possíveis infrações. Essa é, porém, uma arbitrariedade que só pela lógica do absurdo poderia prevalecer. Chegaria a ser inconstitucional dispensálos de toda carga ética, ou de parte dela, somente em nome de uma independência funcional que deve ter limites. Pelo teor explícito e claro das primeiras palavras do parágrafo do art. 14, o advogado não fica sujeito à multa ali cominada, mas a lógica do razoável manda que ele fique sujeito a todos os deveres elencados no capítulo e à responsabilidade por litigância de má-fé, nos termos dos art. 16 e 18 do código de Processo Civil. Para Fredie Didier Jr. (2003, p. 16-17), a inexistência de vírgula após a palavra “advogados” poderia indicar que se estaria diante de uma oração subordinada restritiva. Para o referido autor, houve apenas um pecadilho gramatical do legislador: os advogados, tout court, estão excluídos da incidência da multa judicial. Isto porque realmente não haveria sentido em estabelecer esta capitis deminutio para os advogados públicos – seria, sem dúvida, desigualação descabida, pois se deve interpretar o dispositivo conforme a Constituição, sem a cogitada discriminação, que se afigura absolutamente irrazoável.12 Em linha de coerência, pelos mesmos argumentos, prossegue o referido autor que não poderá o magistrado aplicar esta multa ao membro do Ministério Público, que possui autonomia/independência funcional garantidas constitucionalmente. Poderá, entretanto, tomar as mesmas providências, mutatis mutandis, no sentido de comunicar ao órgão do Parquet competente, a prática, por um membro seu, de condutas supostamente indevidas (JORGE, 2003, p. 17). 11 Dispõe o art. 88: “Dovere di lealtà e di probità. – Le parti e i loro difensori hanno il dovere di comportarsi in giudizio com leltà e probità. In caso di mancanza dei difensori a tale dovere, il giudice deve riferirne alle autorità che esercitano il potere disciplinares u di esse”. 12 Em decisão de ADIN, o STF já decidiu também pela exclusão dos procuradores públicos. REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 07-revista_07.p65 104 29/10/2007, 21:43 Osmar Vieira da Silva Se restar caracterizado que a conduta do advogado tenha obstado ou dificultado a produção de resultados do provimento jurisdicional, poderá o magistrado afastar a incidência da regra que excepciona o advogado, declarando sua inconstitucionalidade, em razão da violação do princípio da isonomia. Se o juiz e o promotor podem ser alcançados pelos rigores da regra, a exceção feita ao advogado rompe o necessário tratamento isonômico que a lei deve conferir aos operadores do direito no processo (WAMBIER, 2005, 150). Percebe-se que o alvo principal vislumbrado pelo legislador é a autoridade coatora no mandado de segurança, usualmente renitente no cumprimento das decisões judiciais. Perceptível, também, é o aumento significativo dos poderes do magistrado, de modo a abranger sujeitos que não participam do processo tão diretamente. Para Fredie DidieJr. (2003, P. 17), o dispositivo criado funciona como norma geral, aplicável a quaisquer processos e procedimentos, abrangendo outros sujeitos, em diferentes circunstâncias. Shimura e Daniel Assumpção afirmam ser totalmente contrários ao que uns podem chamar de prerrogativas, mas que lhes parecem privilégios. Para os autores parece não restar dúvida de que há uma inconstitucionalidade patente, já que o disposto no parágrafo único fere de forma cabal o princípio da isonomia, tratando de forma injustificada funções que merecem, ao menos nesse tocante, o mesmo tratamento (NEVES, 2003, P. 60). Para os referidos autores a exclusão não se justifica, seja qual for a razão utilizada para defendê-la, já que o advogado é, sem sombra de dúvidas, o sujeito mais atuante no processo, o que mais pratica atos processuais, e conseqüentemente o que mais terá oportunidade para se portar contrariamente aos deveres éticos do processo (WAMBIER, 2002, p. 34-35).13 A multa somente será cobrada, como bem visto anteriormente, após o esgotamento dos recursos, ficando à disposição do advogado todos os meios para impugná-la. Assim, ainda que o juiz da causa aplique a multa somente por vingança, ou desgosto pessoal do advogado, será a esse concedido todo o sistema recursal para reverter o abuso e a extrapolação do dever do juiz. Uma possível reversão da decisão, inclusive, poderá até mesmo ensejar representação do juiz junto a Corregedoria e eventual demanda de reparação de danos promovida pelo advogado lesado – até mesmo moralmente – em face do juiz (STOCO, 2002, p. 112-113).14 O advogado enfrenta a todos se preciso for, com serenidade e firmeza, não se preocupando, inclusive por disposição de seu Estatuto, em desagradar ninguém nessa função. Não nos resta dúvida que a independência funcional do advogado deve ser respeitada, mas isso não pode nunca representar privilégios injustificados como a presente exclusão, já que acaba por maneira reflexa a dispensá-lo de respeitar as decisões judiciais, podendo opor obstáculos de toda a sorte para impedir que elas se efetivem ou ainda, se obrigado a fazer algo, simplesmente se negar a cumprir a decisão judicial. A razão da exclusão provavelmente tenha explicação num forte lobby corporativo perpetrado pela OAB que, embora tenha em seu estatuto a previsão de aplicação de multa (inciso IV do art. 35 da Lei 8906/94), não se tem notícia que ela tenha sido aplicada, em que pese ser muito comum atitudes de menosprezo e desrespeito ao exercício da jurisdição. 13 Luiz Rodrigues Wambier e Teresa Arruda Alvim Wambier, atentando para o possível aumento substancial de representações junto aos Tribunais de Ética da OAB, concluem de forma irretocável: “Aconselhável, até mesmo para a preservação de sua imagem histórica, construída com suas memoráveis lutas em defesa do Estado de Direito, que a própria corporação tomasse a iniciativa de pleitear a eliminação desse privilégio excepcional, mediante proposta legislativa que poderia encaminhar ao Congresso Nacional. Iniciativa desse teor certamente contaria com o aplauso da comunidade jurídica e, muito especialmente, da sociedade ávida por efetividade. A concessão de privilégios corporativos não se coaduna com o anseio de efetividade e democratização do sistema processual”. 14 Afirma ser “a ressalva é frustrante e enfraquece o projeto e o objetivo precípuo de impedir a chicana e a litigância de máfé de alguns profissionais – por certo uma minoria”. “Como, infelizmente, esse comportamento advém de uma minoria, nada justifica que não se responsabilize pessoalmente o advogado inortodoxo pelo seu comportamento antiético e prejudicial ao regular andamento da causa e que compromete os bons e honestos”. REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 07-revista_07.p65 105 29/10/2007, 21:43 105 O Contempt of Court (desacato à ordem judicial) no Brasil 5.2 A Cumulação de Multas 5.2.1 Cumulação do Artigo 14 com o 461 106 Considerando que a multa do art. 461 somente se aplica às partes, poderá ocorrer que a mesma parte (ou interveniente) tenha conduta que importe incidência de ambos os dispositivos, ou seja: é renitente em relação ao cumprimento de uma obrigação de fazer, não fazer ou dar, e ainda cause embaraço à efetivação de provimentos judiciais, nos termos do disposto no art. 14, V (segunda parte), do CPC. Nesse caso, nada impede que haja a condenação cumulativa em razão das duas condutas. Também para Leonardo José Carneiro da Cunha (2001, p.103), em cujo entender podem incidir cumulativamente as multas do art. 461 e do art. 14, eis que seus “pressupostos são diversos”. Na mesma linha também é a sustentação de Hélio do Valle Pereira (2003, p. 218), para quem a multa do art. 14 tem caráter essencialmente punitivo e “não derroga outras possíveis conseqüências criminais, cíveis e processuais. Quer dizer, não se afasta a caracterização, por exemplo, do crime de desobediência, as sanções pela litigância de má-fé (art. 18) ou as medidas do art. 461. Tudo pode ser aplicado concomitantemente”. Segundo a lição de Eduardo Talamini, o art. 461 protege o cumprimento da ordem proferida pelo juiz com medidas de apoio ou de reforço. Dentre estas, o § 4º permite, ex officio, a fixação de multa pelo inadimplemento da decisão antecipatória da tutela ou da própria sentença. Trata-se de meio coercitivo, que “deverá” ser imposto àquele que descumprir o comando judicial, toda vez que o juiz pressentir a sua utilidade para constranger o réu, ou seja, “sempre que a multa revelar-se ‘suficiente e compatível com a obrigação’, segundo a fórmula adotada no art. 461, § 4º. Só ficará descartado o emprego da multa quando esta revelar-se absolutamente inócua ou desnecessária, em virtude de circunstâncias concretas” (TALAMANI 2002, p. 236). Para Teori Zavascki (1997, p. 115), a multa diária constitui mecanismo de coerção apto a induzir o cumprimento de obrigação positiva, vale dizer, a realização de uma atividade a ser desenvolvida: a multa recai imediatamente, acumulando-se dia após dia e somente cessa com o adimplemento. Por outro lado, na hipótese de obrigação negativa, na qual a pretensão tem por escopo a omissão do réu, ou seja, a não atuação, a multa fixa é a apropriada. O caráter da medida coercitiva (imposição de multa de valor fixo) delineia-se aí preventivo, que será exigível em uma única oportunidade, se e quando houver o descumprimento. Fredie Didier Jr (2003, 30). também entende que as multas previstas nos arts. 14 e 461 do CPC podem ser aplicadas cumulativamente, pois possuem natureza e função diversas. 5.2.2 Cumulação do Artigo 14 com o 18 A responsabilidade por litigância de má-fé é patrimonial e sempre em face do adversário, que é a parte inocente. A parte responde sempre por ela, quer o ato antiético tenha sido recomendado ou autorizado ao defensor, quer não o haja sido: o mandante responde sempre pelo ato do mandatário. O advogado só responde se houver participado conscientemente da ilicitude (EOAB, art. 34, inc. VI, X, XIV, XVII). A responsabilidade de todos esses sujeitos consiste em uma indenização e em uma multa, ambas devidas à parte inocente. A indenização deve ser razoavelmente proporcionada ao prejuízo sofrido (art. 16 e 18), mas pode ser arbitrada pelo juiz (em valor não superior a 20% sobre o valor da causa) logo ao impor a penalidade ou, se não for, mediante liquidação por arbitramento. A multa é sujeita ao limite máximo de 1% sobre o valor nominal da causa – e não sobre o da eventual condenação do infrator, na decisão da causa. Segundo Dinamarco, essa multa não se confunde com a que veio a ser instituída pelo novo parágrafo do art. 14 do Código de Processo Civil, que pode chegar a 20% do valor da causa, reverte em favor da União ou Estado (e não do adversário) e só incide nas hipóteses do inc V desse artigo e pode ser cumulada com as disciplinas dos arts. 16 e 18. (DINAMARCO, 2003, p. 66-67). REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 07-revista_07.p65 106 29/10/2007, 21:43 Osmar Vieira da Silva 5.2.3 Cumulação do Artigo 14 com o 601 Segundo Luiz Rodrigues Wambier e outros, o juiz pode eventualmente, de ofício ou por provocação do credor, intimar o devedor para que ele indique quais são os seus bens penhoráveis (art. 652, § 3º) e mesmo onde se encontram (656, § 1º), sob pena de não o fazendo, atentar contra a dignidade da justiça (art. 600, IV) (WAMBIER, 2007, p. 188). Vale ressaltar que a teor do novo inciso IV do art. 600 do CPC, considera-se ato atentatório à dignidade da justiça o ato do executado que: “intimado, não indica ao juiz, em cinco dias, quais são e onde se encontram os bens sujeitos à penhora e seus respectivos valores”. Em seguida, também o novo § 1º, do art. 656, do CPC, prescreve que “é dever do executado (art. 600), no prazo fixado pelo juiz, indicar onde se encontram os bens sujeitos à execução, ..., bem como abster-se de qualquer atitude que dificulte ou embarace a realização da penhora (art. 14, parágrafo único).” É possível concluir que as multas dos arts. 14, parágrafo único e 601 podem ser aplicadas cumulativamente, afinal, se o executado cria embaraço à efetivação de provimentos judiciais através de confusão patrimonial, mantendo até mesmo seus bens de uso pessoal, como carros da família, em nome de sua empresa e, também, intimado, não indica onde se encontram os bens passíveis de penhora, incorre em duas faltas com pressupostos distintos. Esta contra o credor, cuja multa lhe acresce o valor do seu crédito e a outra contra a Justiça, cuja multa se reverte ao Estado, Distrito Federal ou à União. Patrícia Pizzol (2003, p. 631)15 manifesta idêntico entendimento ao afirmar que: [...] em conformidade com o artigo 601 do CPC, na hipótese acima descrita (art. 600), o juiz tem o poder de impor multa ao devedor, em soma não superior a 20% (vinte por cento) do valor do débito em execução, sem prejuízo de outras sanções de natureza processual (por exemplo, a multa deste com o art. 14 do CPC, por haver praticado ato que atenta contra o exercício da jurisdição).... 15 “... in conformità all`art. 601 c.p.c., nelle ipotesi sopra descritte (art. 600), il giudice ha il potere di imporre al debitore multa, in somma non superiore al 20% (venti per cento) del valore del debito in esecuzione, senza pregiudizio di altre sanzioni di natura processuale (per esempio, la multa di cui all`art. 14 c.p.c., per aver praticato atto che attenta all`esercizio della giurisdizione) ...” (trad. livre) REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 07-revista_07.p65 107 29/10/2007, 21:43 107 O Contempt of Court (desacato à ordem judicial) no Brasil 5.2.4 Quadro Comparativo de Multas no Código de Processo Civil 108 Quadro Comparativo de Multas no Código de Processo Civil REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 07-revista_07.p65 108 29/10/2007, 21:43 Osmar Vieira da Silva 6 CONCLUSÕES 01) Para o direito anglo-saxônico, o contempt of court significa a prática de qualquer ato que tenda a ofender um tribunal na administração da justiça ou a diminuir sua autoridade ou dignidade, incluindo a desobediência a uma ordem. 02) As sanções aplicáveis aos contempt of court por descumprimento, como meio executivo impróprio, de modo geral apresentam um espírito orientador e disciplinador, conexo à idéia do pleno respeito às atividade de administração da justiça e objetivam, assim, induzir ou compelir o contemnor a um determinado comportamento perante a Corte, ativo ou passivo, a fim de que a pretensão à adequada prestação jurisdicional seja, afinal, satisfeita. 03) Com o advento da Lei 10358/2001, a inclusão do inciso V e parágrafo único do art. 14, do CPC, implantou um eficaz mecanismo visando a coibir o contempt of court, genericamente entendido como desacato à ordem judicial. 04) Não cumprir um provimento mandamental é desobedecer – e toda desobediência a atos estatais comporta a reação da ordem jurídica e dos agentes do poder público (no caso, o Estado-Juiz), seja no sentido de punir o infrator, seja para coagi-lo legitimamente a cumprir. 05) Se ordens existem é para serem cumpridas, não necessitando haver norma expressa para demonstrar tal obviedade. O problema é que embora óbvia a obrigatoriedade de cumprimento das ordens judiciais, verifica-se muito desrespeito por parte daqueles que deveriam cumpri-las no caso concreto. Assim, diz-se o óbvio para prever a tal dever uma sanção, que infelizmente parece ser, nos tempos atuais, o único meio – e nem sempre eficaz – de evitar o absurdo desrespeito às ordens judiciais. 06) São provimentos em direito processual, todos os atos portadores de uma vontade do Estado-Juiz, às vezes acompanhado de alguma determinação no sentido de realizar ou omitir uma conduta. Dada essa amplitude do gênero próximo em que se incluem as sentenças judiciais (provimentos), o inc. V do art. 14 do Código do Processo Civil abrange não só as sentenças, mas também os demais provimentos que o juiz emitir, e que tenham natureza mandamental (sentenças, decisões interlocutórias ou mesmo despachos). 07) Estarão causando embaraço à efetivação dos provimentos jurisdicionais todos os atos ou omissões, culposos ou não, que criem dificuldades de qualquer espécie ao alcance do resultado prático a que está vocacionado o provimento jurisdicional. 08) Se restar caracterizado que a conduta do advogado tenha obstado ou dificultado a produção de resultados do provimento jurisdicional, poderá o magistrado afastar a incidência da regra que o excepciona, declarando sua inconstitucionalidade, em razão da violação do princípio da isonomia, afinal, se o juiz e o promotor podem ser alcançados pelos rigores da regra, a exceção feita ao advogado rompe o necessário tratamento isonômico que a lei deve conferir aos operadores do direito no processo. 09) A definição do valor da multa, tendo como parâmetro o valor da causa, parece não ter sido a melhor alternativa, eis que deixa ao desabrigo da pressão em favor do cumprimento das decisões judiciais, processos em que o valor da causa é simbólico; 10) Entre dar ao juiz um poder ilimitado no que tange ao valor da multa, e estabelecer um limite, ainda que sacrificando sua utilidade em alguns casos concretos, parece ter preferido o legislador a segunda opção. 11) O percentual da multa está ligado à gravidade do prejuízo que a conduta causou em relação aos resultados que o processo deveria produzir. 12) Pela própria natureza, distinta das demais existentes no ordenamento brasileiro, a qual tem por escopo a atuação protetiva do ordenamento, a multa do art. 14 é cumulável com outros tipos de multas, consoante reza o parágrafo único (“sem prejuízo das sanções criminais, civis e processuais cabíveis”). 13) No Brasil, pode-se considerar que o artigo 14 passa a contemplar o contempt of court civil somente no que tange à aplicação da multa, já que a prisão, embora proposta no projeto original apresentado pela Escola Superior da Magistratura e o Instituto de Direito Processual Brasileiro, não foi adiante, e o parágrafo segundo proposto ao artigo foi retirado de sua redação final. REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 07-revista_07.p65 109 29/10/2007, 21:43 109 O Contempt of Court (desacato à ordem judicial) no Brasil 14) o pressuposto inafastável para que o litigante ou outro integrante do processo possa ser responsabilizado pelo contempt, consiste na existência de uma ordem que imponha especificamente a quem é dirigida uma obrigação de fazer ou abster-se de fazer. REFERÊNCIAS ASSIS, Araken de. O contempt of court no direito brasileiro. Revista de Processo. n. 111, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. BARBOSA MOREIRA, José Carlos. “Notas sobre alguns aspectos do Processo (Civil e Penal) nos Países Anglo-Saxônicos”. Temas de Direito Processual: Sétima Série. São Paulo: Saraiva, 2001. BATISTA DA SILVA, Ovídio. Curso de Direito Processual Civil. v. 2, 4. ed. São Paulo: RT, 2000. BELLINETTI, Luiz Fernando e MARQUES. Elmer da Silva. A antecipação da tutela inibitória em face da Fazenda Pública e o destinatário das medidas coercitivas. São Paulo: Revista de Processo. 141, nov. 2006. BUENO, Julio César. O contempt of court por descumprimento de ordem judicial. Revista do Advogado. AASP, n. 84, dez. 2005. CUNHA, Leonardo José Carneiro da. A Fazenda Pública em juízo. São Paulo: Dialética. 2001. DINAMARCO, Candido Rangel. Instituições de direito processual civil, II, São Paulo: Malheiros, 2002. 110 ______ . A reforma da reforma. São Paulo: Malheiros, 2003. GRINOVER, Ada Pelegrini. Ética, abuso do processo e resistência às ordens judiciárias: o contempt of court. Revista de Processo n. 102, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. GUERRA, Marcelo Lima. Execução indireta. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1998. HAZARD JR.,Geoffrey C. & TARUFFO, Michele. American Civil Procedure: An Introduction. New Haven: Yale University Press, 1993. JORGE, Flavio Cheim; DIDIER JR., Fredie; RODRIGUES, Marcelho Abelha. A nova reforma processual. 2. ed. Rio de Janeiro: Saraiva, 2003. LOPES, João Batista. Efetividade do processo e reforma do Código de Processo Civil: com explicar o paradoxo processo moderno – Justiça morosa? Revista de Processo 105/132. MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela inibitória (individual e coletiva) São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. ______ . Antecipação da tutela. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 1998. ______ . Técnica processual e tutela dos direitos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. NEVES, Daniel Assumpção; SHIMURA, Sergio. Nova reforma processual civil: comentada. São Paulo: Método, 2003. REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 07-revista_07.p65 110 29/10/2007, 21:43 Osmar Vieira da Silva PEKELIS, Alexander H. Legal Techniques and Political Ideologies: A Comparative Study. Michigan Law Review. v. 41, 1943, p. 673. PEREIRA, Helio do Valle. Manual da Fazenda Pública em juízo. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. PIZZOL, Patrícia. I Poteri del giudice nell‘ordinamento brasiliano. In Davanti al giudice: studi sul processo societário (Coord.) Lucio Lanfranchi e Antonio Carrata. Torino: G. Giappichelli Editore, 2003. STOCO, Rui. Abuso de direito e má-fé processual. São Paulo: RT, 2002. TALAMINI, Eduardo. Tutela relativa aos deveres de fazer e de não fazer. São Paulo: RT, 2001. TUCCI, José Rogério Cruz e. Lineamentos da nova reforma do CPC. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. WAMBIER, Luiz Rodrigues; ALMEIDA, Flavio Renato Correia de; TALAMINI, Eduardo. Curso Avançado de Processo Civil. v. 2. 9. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. WAMBIER, Luiz Rodrigues. O contempt of court na recente experiência brasileira. Revista de Processo. n. 119. São Paulo: RT, 2005. WAMBIER, Tereza Arruda Alvim; WAMBIER, Luiz Rodrigues. Breves comentários à 2ª fase da reforma do Código de Processo Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. WAMBIER, Luiz Rodrigues; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; MEDINA, José Miguel Garcia. Breves comentários à nova sistemática processual civil. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. ZAVASCKI, Teori Albino. Antecipação da tutela e obrigações de fazer e não fazer. Gênesis – Revista de Direito Processual Civil, 4, 1997. REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 07-revista_07.p65 111 29/10/2007, 21:43 111 Contrato: Do Tradicional a Celebração Eletrônica - Aspectos Formais CONTRATO: DO TRADICIONAL A CELEBRAÇÃO ELETRÔNICA – ASPECTOS FORMAIS Simone Vinhas de Oliveira* Valkíria A. Lopes Ferraro* Vinicius Franco da Silva* Wesley Tomaszweski* RESUMO Pretende-se expor as principais características formais de um contrato realizado por meio eletrônico na intenção de mostrar as linhas teóricas e científicas nas quais fundamentam-se. Passa-se da base principiológica dos contratos clássicos para as alterações e inovações, não só no âmbito principiológico, mas também, na utilização análoga dos institutos já existentes, quando assim for possível, corroborando-os com as situações fáticas que vieram à tona com o surgimento de uma nova tecnologia de comunicação viabilizando novas formas de contratação. Conclui-se pela viabilidade desse novo instrumento contratual e assegura-se sua proteção jurídica com o que aqui se expõe, argumentando-se favoravelmente e, inclusive, estimulando-se o crescimento do comércio eletrônico (e-commerce), visto que, por força do princípio da equivalência funcional, não se pode negar validade ou eficácia a um contrato simplesmente por este provir de meio eletrônico. Palavras-Chave: Contrato eletrônico. Princípios. Forma. Validade. Legitimidade. 112 CONTRACT: OF THE TRADITIONAL A ELECTRONIC CELEBRATION FORMAL ASPECTS ABSTRACT It is intended to expose the mainly formal characteristics of a contract made through eletronic ways in intention of show the theoric and scientific lines in wich it is based on. Goes throught the principles base of the classic contracts to the alterations and innovations, not only in the principles meaning, but also, when it is possible, in the analogical use of the existing institutes, corroborating them with the in fact situations that came up on the sprouting of a new technology of communication, making possible new ways of do the contracts. It is concluded for the viability of this new instrument of contract and assures your legal protection arguing favorably and also stimulating the growth of the eletronic commerce (e-commerce) because if you see the functional equivalence principel will be not possible deny validity and effectiveness to a contract simply because it cames from the eletronic way. Keywords: Electronic Contract. Principles. Form. Validity. Legitimacy. * Mestranda em Direito Negocial pela Universidade Estadual de Londrina - bolsista pela Capes. * Doutora em Direito Civil pela PUC de São Paulo – Docente do Curso de Mestrado em Direito Negocial da Universidade Estadual de Londrina-PR – Docente do Curso de graduação – UEL -Coordenadora do Curso de Especialização em Direito Empresarial – UEL. Orientadora do Projeto de pesquisa – “ O Direito Empresarial e suas Relações com as Tecnologias da Informação” * Graduando em Direito da Universidade Estadual de Londrina, integrante do Projeto de Pesquisa supra, do qual são também integrantes: João Carlos Leal Júnior, Lucas Franco de Paula, Paola Maria Gallina, Thaís Iglesias Barreira , Rogério Martins de Paula, Wagner Kaba. Bolsista PIBIC/CNPq. * Mestrando em Direito Negocial pela Universidade Estadual de Londrina – Especialista em Direito Civil e Processo Civil pela CESUC/BB&G, bolsista pela Capes. REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 08-revista_07.p65 112 29/10/2007, 21:43 Simone Vinhas de Oliveira, Valkíria A. Lopes Ferraro, Vinicius Franco da Silva e Wesley Tomaszweski 1 INTRODUÇÃO A sociedade atual encontra-se, em virtude do avanço científico, no maior grau de desenvolvimento tecnológico já vivido. Essa condição traz novos conceitos como globalização, digitalização e rede de informação. Convém destacar que as relações intersubjetivas, consagradas no seio social, desde que se tem registro, foram, no sentido de dar segurança e estabelecer de forma ordenada a vida em sociedade, de certo modo, abarcadas pelo Direito (2003). Com base nessas duas premissas, ressalte-se que a cada revolução tecnológica e social, os meios de se garantir essa interação evoluiu de forma igualitária. De fato o Direito está sempre observando os acontecimentos sociais, perseguindo-os, de modo a se fazer presente em seu encalço, pretendendo sua regulamentação. Daqui, deriva-se o brocardo jurídico: ubi societas, ibi ius1 . Sendo que, é no contrato, pelo seu caráter cotidiano, que são reveladas as grandes transformações do ambiente social por funcionar como um “espelho” da relação existente entre os indivíduos. É justamente neste instrumento consagrado pela doutrina como viabilizador da circulação de riquezas, que se desenvolve o presente estudo. O contrato sofre releituras de natureza paradigmática e principiológica e ainda encontra um novo cenário de realização, a saber: o ambiente virtual. Devido a restrição temática, bem como aos limites físicos do estudo analisar-seá a evolução do contrato em sua forma tradicional e as peculiaridades encontradas devido a fatores proporcionados pela sociedade da informação. Parte da doutrina jurídica afirma que, nos dias atuais, não é mais possível a sociedade se desenvolver sem a informática, presente nos mais variados ramos das ciências, da geografia, ciências políticas, humanas e sociais à engenharia, medicina e ciências exatas e biológicas de modo geral, exaltando-se aí a medicina, amplamente coberta por aparelhos e máquinas que de alguma forma interagem com a informática (LAWAND, 2003, p. 3 e ss). A internet (CORRÊA, 2000)2 inovação tecnológica no ramo das telecomunicações, resultante do surgimento da informática, é o resultado de um processo gradativo, que se desenvolveu, primeiramente, no âmbito militar e acadêmico, para, posteriormente, se estabelecer em todo o mundo. Como todo meio de comunicação, o homem passou a utilizá-la como forma de interagir comercialmente, o que, com o passar dos anos, se intensificou e, com sua ampla utilização e desenvolvimento constante, fez nascer o e-commerce3 . Este conceito se tornou o ícone primordial na revolução contratual que se percebe atualmente. Para fins elucidativos, a média de crescimento do setor no Brasil, nos últimos três anos, foi de 35%. Em números, temos para 2005 um movimento de R$ 12,5 bilhões e, para 2006, movimento de 30,9 bilhões (REVISTA GAZETA MERCANTIL, 2006). As características próprias desta rede, comunicação em tempo real e global4 , facilidade na obtenção de dados estatísticos gerais e do consumidor, agilidade na propagação de ofertas, ofertas essas que exibem-se e vendem-se dentro dos limites do lar do consumidor, acabam por criar um ambiente no qual a redução de custos é assombrosa. Existe diminuição de custos na localização da outra parte de uma futura relação contratual, pois se faz possível, por meio da comunicação global e em tempo real, a fácil identificação de clientes potenciais e de usuários no mundo todo, sem que com isso seja necessário alterações na tecnologia ou novos custos. 1 Significa: “onde há sociedade há direito”. 2 “A internet é um sistema global de rede de computadores que possibilita a comunicação e a transferência de arquivos de uma máquina a qualquer outra máquina que pertença à mesma rede, possibilitando, assim, um intercâmbio de informações sem precedentes na história, de maneira rápida, eficiente e sem a limitação de fronteiras, culminando na criação de novos mecanismos de relacionamento.” 3 E-commerce significa o comércio realizado através de meios eletrônicos. É equivalente ao termo comércio eletrônico. Geralmente ocorre por meio de sites ou sítios na rede. 4 Global no sentido de integralidade mundial. Uma mensagem emitida de um local específico, está apta, em tempo real, a se apresentar em qualquer lugar do mundo. Assim como o telefone. REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 08-revista_07.p65 113 29/10/2007, 21:43 113 Contrato: Do Tradicional a Celebração Eletrônica - Aspectos Formais Por chegar aos lares e propiciar a qualquer sujeito o acesso, sem nenhuma distinção ou discriminação, seja com relação a sexo, idade, nacionalidade ou cor, diminui consideravelmente o custo com a divulgação da oferta contratual e aumenta, espantosamente, o público alvo e atingido pela oferta. Ainda, comparando-se a Internet à outras tecnologias de informação, como o telefone, é, a perder de vista, a opção mais barata e vantajosa tanto para o consumidor como para o empresário, reduzindo-se os custos e promovendo uma maior e melhor distribuição de riquezas. Como se percebe, com esse crescimento galopante e com a redução de custos contratuais, não poderia ficar de fora da apreciação jurídica essa nova realidade. Para isso, o comércio eletrônico coloca em cheque todo um complexo doutrinário e jurídico já, há muito tempo, consagrados no direito contratual. O mesmo, em seus institutos e normas, bem como o direito obrigacional vêemse, ao menos em parte, sem uma exata correspondência quando se trata desta nova tecnologia. O que justifica o presente estudo é tentar estabelecer as alterações, as novas concepções, formas e condições de realização, ou seja, seus aspectos formais, por meio de um estudo analógico do direito contratual clássico e do direito contratual derivado das relações no ambiente virtual proposto pela mais atual doutrina e indagações jurídicas, levando-se em consideração que a analogia nem sempre será a solução, visto que novas tecnologias, muitas vezes, demandam novas soluções por não haver utilidade. Em determinadas circunstâncias, nem há possibilidade de subsunção do tradicional ou comum ao novo, situação na qual se opta por uma solução ontológica, baseada nos princípios que deram origem aos institutos contratuais e tomando estes como um ponto fixo para a análise do paradigma digital (LORENZETTI, 2004, p. 49-53 e 68). 2 CONTRATO: ALGUNS ASPECTOS DE SUA EVOLUÇÃO 114 Antes de estabelecer um conceito didático a respeito do contrato eletrônico, é necessário emergir o gênero do qual este se faz espécie. O contrato se traduz, sobretudo, num meio seguro e efetivo de se consagrar transações econômicas, de circulação de riquezas no âmbito social (DIAS, 2004, p. 52-53). O conceito de contrato, sem os acréscimos pertinentes ao ramo do direito eletrônico, é bem definido como o meio pelo qual as partes pactuam a criação de uma obrigação, submetendo-os, pois nasce da relativa autonomia da vontade da qual gozam (DIAS, 2004, p. 52). Já, considerando a atuação estatal na regulação dos acordos de vontades, limitando-os em virtude do Estado Social que preza a submissão às normas de ordem pública, Pablo S. Gagliano e Rodolfo P. Filho (2005, p. 11-12) salientam que: ... o contrato é um negócio jurídico por meio do qual as partes declarantes, limitadas pelo princípio da função social e da boa-fé objetiva, autodisciplinam os efeitos patrimoniais que pretendem atingir, segundo a autonomia das suas próprias vontades. Percebe-se aqui uma modelagem contratual revestida de elementos que, numa visão rápida e superficial, não parecem constituir instituto próprio e descendente de época histórica que o caracteriza. Antes da função castradora do Estado no relacionamento negocial das partes, tínhamos o contrato baseado na liberdade total, fruto dos ideais que consolidaram a Revolução Francesa. Portanto, é necessária uma breve consideração histórica deste instituto. Há que se destacar as principais contribuições que as sociedades que se organizaram no decorrer da história, a partir do Direito Romano, legaram ao contrato. Destaca, Caio Mario (2001, p. 225 e s.), que sobre o contrato atuam diversas forças das quais duas devem ser destacas: “a força obrigatória e a influência de fatores determinantes das injunções sociais”. REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 08-revista_07.p65 114 29/10/2007, 21:43 Simone Vinhas de Oliveira, Valkíria A. Lopes Ferraro, Vinicius Franco da Silva e Wesley Tomaszweski Com relação às influência de fatores sociais, no contrato pode vigorar a liberdade contratual, seja subjetiva (escolha de quem contratar), objetiva (definição da obrigação) ou formal (escolha tipológica das cláusulas). Ou, então, pode, de forma contrária, desaparecer essa autonomia dando lugar a imposição do Estado, por meio de matérias de ordem pública, em caráter transitório ou permanente. No entanto, cabe-nos destacar bem sucintamente a origem da roupagem atual dos contratos. O Direito Romano, contado em todas as suas manifestação ao decorrer do tempo, teve várias posições diferentes com relação ao contrato. A obrigação, no início, não nascia em virtude de uma relação meramente individual, mas sim com base nos relacionamentos, muitas vezes hostis, entre grupos de indivíduos. A Lei das XII Tábuas, quando afunila essa noção geradora de obrigações de grupos para as relações interpessoais, mantém essa hostilidade, como podemos perceber na espécie de concurso de credores que, como o próprio autor supra citado diz é no mínimo macabro. Tal concurso permitia que o próprio corpo do devedor, dividido em quantas partes bastassem, dentro da proporção do crédito de cada credor, fosse utilizado como forma de sanar a dívida do devedor. Em 428 antes de Cristo, a Lex Poetelia Papira, promovendo a maior transformação pela qual passou o Direito Obrigacional, estipulou fosse a responsabilidade pela divida recaída sobre os bens do devedor e não mais sobre sua pessoa, pecuniae creditae bona debitoris, non corpus obnoxium esse. O desenvolvimento econômico e social em virtude do crescimento das possibilidades individuais cria o contrato e seu poder vinculativo e é, ainda na Lei das XII Tábuas, que se encontra o poder vinculativo derivado da palavra e do que foi tratado verbalmente, observado determinados requisitos. Advieram maiores complexidades sociais na vida romana em virtude de seu desenvolvimento e da pluralidade de negócios o que originou uma necessidade de trazer certa materialidade ao contrato. Em virtude disso, surgiram, por meio de Gaius, quatro modalidades contratuais: contratos re, que eram os contratos que se perfectibilizavam através de entrega de coisa; contratos litteris, realizado pela inscrição da obrigação no codex do devedor; contratos verbis, o contrato verbal realizado mediante requisitos; e, mais tarde, o contrato consensu. Finalizando, Gaius, com a afirmativa de que as obrigações ora nascem do contrato, ora do delito. Estabeleceu-se no Baixo Império e espalhou-se por toda a Idade Média a praxe contratual que via o nascimento da obrigação na simples proclamação verbal. Era necessário aos escribas, para satisfazer as necessidade do Direito Romano, que reduzissem a termo as convenções. Porém, e é isso que deu origem aos contratos consensu, a praxe fez com que os escribas observassem na redação da proclamação verbal que todos os rituais imprescindíveis tinham sido observados, embora não o tivessem. Passou-se, portanto, a considerar apenas a declaração das partes no surgimento das obrigações, reduzindo, posteriormente os escribas, a termo como se todos os rituais tivessem sido observados. Bastava-se, então, a declaração de vontades. Conclui-se que as características e a modelagem contratual modificam-se de acordo com a sociedade, tecnologia e costumes a que se submetem. O contrato estabelecido com os ditames libertários da Revolução Francesa é apoiado na autonomia da vontade, por meio da qual duas pessoas, de forma paritária, circulavam riquezas, seja pela compra e venda, locação, entre outros, obedecendo simplesmente os seus interesses e volições está em declínio. Um instrumento contratual que culmina da vontade de duas pessoas em igualdade de condições, no qual se discute preço, prazo, condições, está cada vez mais escasso. A sociedade neocapitalista, mergulhada num caos produtivo, faz emergir novas riquezas importantes, como os valores mobiliários e bens imateriais, enfraquecendo o valor que os bens imóveis representam no domínio econômico. Os bens tornam-se descartáveis, nada mais é duradouro, a contratação sob uma nova roupagem se faz necessária para que não exista uma lesão massificada na sociedade. REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 08-revista_07.p65 115 29/10/2007, 21:43 115 Contrato: Do Tradicional a Celebração Eletrônica - Aspectos Formais Cada vez menos se verifica o contrato característico da autonomia da vontade em igualdade de condições, realizado entre pessoas físicas, mas sim a massificação contratual, evidenciando a padronização, limitada pelo Estado em conceitos como o da função social do contrato e da defesa do consumidor. É nesse ambiente que surge o contrato eletrônico, como um dos novos meios de se realizar a circulação de riquezas num mundo caracterizado pela padronização e agilidade na circulação de riquezas por meio da produção e consumo. O contrato é a convergência das manifestações de vontade das partes, visando a realização de determinada obrigação. O contrato eletrônico, nesse diapasão, é quando a convergência das manifestações de vontade se realiza por intermédio de um meio eletrônico capaz de veicular de forma completa o cerne dessa manifestação. 2.1 Principiologia Contratual e suas Inovações Decorrentes do Comércio Eletrônico 116 Os princípios são a base da construção jurídica, o baluarte de criação, inovação e interpelação do Direito na vida social. De acordo com a explanação sobre princípios de Ricardo L. Lorenzetti, os princípios são utilizados pelo juiz para julgar, pelo legislador para legislar, pelo jurista para raciocinar e embasar seus tratados e pelo operador do Direito como ferramenta de trabalho, trazendo para a especificidade do caso concreto a concepção principiológica já adaptada. Diz, ainda, o supracitado jurista, que o princípio é um enunciado que permite resolver um problema e orientar um comportamento. São normas de sentido abstrato, sem conteúdo pronto e acabado, sendo, portanto, flexíveis, esperando o complemento trazido pelas necessidades casuísticas (LORFENZETTI, 2004, p. 82-83). Como descrito no início do tópico 2, sendo o contrato eletrônico uma espécie de contrato, não se pode olvidar a aplicabilidade dos conceitos principiológicos contratuais tradicionais no âmbito do comércio eletrônico. As contratações eletrônicas só podem desenvolver-se, no Brasil, em virtude do princípio da liberdade de forma para contratação não solene. Graças a um princípio tradicional, pode-se estabelecer essa nova modalidade contratual. Porém, pela especialidade do tema, emergem das condições desta nova tecnologia princípios próprios, característicos e necessários, por não serem suficientes à esgotar as possibilidades do tema, os tradicionais. Princípios estes que derivaram da discussão mundial a respeito do assunto. Em 1996, com a criação da Lei Modelo sobre Comércio Eletrônico (UNCITRAL), pela Comissão de Direito Internacional da Organização das Nações Unidas (FERREIRA; BAPTISTA, 2002, p. 90-91), percebe-se a consolidação de algum deles. Os princípios que norteiam a contratação eletrônica servem aos propósitos de identificação, autenticação, impedimento de rejeição, verificação e privacidade (ORTIZ, 2001, p. 37). Portanto, pode-se delinear os seguintes princípios referentes aos contratos eletrônicos: “princípio da equivalência funcional; princípio da neutralidade tecnológica das disposições reguladoras do comércio eletrônico e princípio da inalterabilidade do direito existente sobre obrigações e contratos”. Tendo em mente que não se pretende esgotar a base principiológica nesta humilde abordagem, mas sim mostrar que com a atual evolução tecnológica pode-se, inclusive, constituir-se novos. 2.1.1 Princípio da Equivalência Funcional Princípio decorrente da UNCITRAL que visa a garantir, aos contratos realizados por meio eletrônico, todas as condições da qual gozam os contratos estabelecidos em papel e registrados em tabelionato. Com isso evita-se qualquer tipo de repugnância ou preconceito à essa nova modalidade (LAWAND, 203, p. 42 e s.). Não se pode negar validade ou eficácia ao contrato argumentando-se, exclusivamente, ter sido ele firmado por meio eletrônico (FERREIRA; BAPTISTA, 2002, p. 91). Têm-se, portanto, em funcionalidade contratual, equivalência entre o tradicional e novo. REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 08-revista_07.p65 116 29/10/2007, 21:43 Simone Vinhas de Oliveira, Valkíria A. Lopes Ferraro, Vinicius Franco da Silva e Wesley Tomaszweski Este princípio busca duas conseqüências jurídicas: a impossibilidade de ser considerado inválido o contrato em base virtual, exclusivamente por sua natureza eletrônica; e o resguardo quanto à possíveis impedimentos legais exclusivos ao contrato eletrônico, quando este restar exclusivamente pela sua natureza eletrônica. 2.1.2 Princípio da Neutralidade Tecnológica das Disposições Reguladoras do Comércio Eletrônico A Lei Modelo, em seu item 8, parte final, afirma: “Cabe assinalar que, em princípio, não se exclui nenhuma técnica de comunicação do âmbito da Lei Modelo, de forma a acolher em seu regime toda eventual inovação técnica neste campo”. Têm-se, aqui, a real preocupação da referida Lei em não restringir sua aplicação à tecnologias hoje existentes e que, porventura, possam vir a ser consideradas, em futuro próximo, obsoletas (LAWAND, 2003, p. 45). Isso faz com que a legislação derivada da UNCITRAL não abarque apenas as tecnologias existentes na época de sua promulgação, mas, também, inovações tecnológicas que derivem do desenvolvimento constante dessa área, sem que com isso se faça necessário reformulações legislativas. É o caso do protocolo Wap, que capacita o acesso à Internet por meio de um telefone celular, sem a necessidade do uso de computadores, ou, ainda, se for descoberto um meio criptográfico ou qualquer outra forma de se garantir a autoria e autenticidade do documento eletrônico, que torne a criptografia assimétrica5 obsoleta. Ana Paula Gambogi Carvalho (CARVALHO, 2001, p. 152), quanto ao projeto nacional sobre comércio eletrônico, diz que: “A lei a ser promulgada deve ser tecnologicamente neutra, ou seja, reconhecer a validade jurídica não apenas do sistema de criptografia assimétrica, mas também de outras tecnologias equiparáveis, que atendam aos mesmos fins”. E a importância desse princípio se faz clara. Não se pode admitir uma norma geral seja promulgada de forma fechada e vinculada aos meios tecnológicos atuais. A própria orientação culturalista de nossa atual legislação civil não aprova tal situação. Toda e qualquer norma geral é promulgada regulando situações, justamente, gerais. Não cabe à norma perder sua eficácia visto a possibilidade de mudanças tecnológicas, tão presentes e rápidas inclusive, ou a evolução comercial e contratual seja tolhida de melhores condições visto a vigência de lei precária sobre o assunto. Portanto, a neutralidade tecnológica, além de importante, é necessária para a própria segurança do sistema. 2.1.3 Princípio da Inalterabilidade do Direito Existente Sobre Obrigações Contratos Para esclarecer tal princípio necessário se faz ter nítido que um contrato eletrônico, firmado por meio da internet, não traz diferenças substancias com relação aos contratos em geral. A função da nova tecnologia é servir de meio para a celebração contratual e não fim. Então, não se trata aqui de novas formulações com relação ao direito obrigacional ou contratual. Estes continuam intactos. Novas adaptações se fazem necessárias para que se possa garantir o valor probante daquilo que resultou do consenso das partes levando em consideração aquilo que foi ofertado e aceito através do meio utilizado, qual seja, a internet. Determina, portanto, o princípio, que a internet, em especial, ou o meio eletrônico, de forma geral, é apenas uma nova forma de transmissão das vontades dos negociantes e não um novo direito regulador das mesmas. Todos os requisitos e pressupostos contratuais já consagrados não se alteram substancialmente (LAWAND, 2003, p. 47 e s.). Não obstando o aparecimento de determinadas inovações e adaptações jurídicas no âmbito da validade, pela especialidade da tecnologia. 5 Melhor explanada no Tópico 3.5, a respeito da Validade dos Contratos Eletrônicos. REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 08-revista_07.p65 117 29/10/2007, 21:43 117 Contrato: Do Tradicional a Celebração Eletrônica - Aspectos Formais 2.2 A terminologia Contrato Eletrônico em Contraposição à Contrato Informático Contratos informáticos são aqueles que tem por objeto bens ou serviços de informática, celebrados por qualquer que seja o meio, eletrônico ou não. Já na contratação eletrônica o objeto é livre, desde que lícito e determinável, tendo como meio de formação contratual o eletrônico (COLARES, 2006, p. 111). Melhor explicando, o contrato eletrônico recebe o nome do meio utilizado para sua celebração, o eletrônico, enquanto o contrato informático recebe o nome do objeto, ou seja, artigos informáticos ou serviços que venham a ser prestados exclusivamente no âmbito da informática. 3 ASPECTOS FORMAIS DO CONTRATO E SUA ADAPTAÇÃO AOS CONTRATOS ELETRÔNICOS Como aqui pretende-se abordar os contornos do contrato eletrônico, nada mais justificável do que mostrar as adaptações contratuais que surgiram em virtude do novo meio de comunicação ao invés de falar-se a respeito de um novo complexo científico que vise abarcar a inovação tecnológica. 3.1 Natureza Jurídica 118 Falar sobre natureza jurídica é o mesmo que tentar encaixar o instituto num gênero jurídico que lhe seja antecessor, superior e consequentemente maior em abrangência. Como ensina Jorge José Lawand (2003, p. 88), o questionamento à respeito da natureza jurídica visa a qualificação, o enquadramento de uma regra dentro de determinada estrutura ou categoria jurídica na qual possa se subsumir. No que toca o instituto jurídico objeto deste estudo, entende-se por sua natureza jurídica, contrato que tenha por objeto bem disponível, seja formado pelo consentimento gerado por manifestações de vontade ora entre presentes, ora entre ausentes, conforme a instantaneidade da formação do vínculo, atrelado à modalidade de negócio jurídico formado fora do estabelecimento comercial. 3.2 Momento de Formação Importante se faz a especificação do momento de formação do contrato eletrônico para que as consequências jurídicas, decorrentes de tal vínculo, possam surtir seus efeitos. Assim como na formação do vínculo contratual fora do meio eletrônico, têm-se, para esta modalidade específica, contratos entre “presentes” e entre “ausentes”. Nos moldes da contratação clássica, temos, nos contratos entre ausentes, uma distância geográfica que demanda um tempo juridicamente relevante para que se efetue a comunicação. Entretanto, a tecnologia vem a neutralizar a geografia e, apesar de se ter pessoas fisicamente distantes, a mensagem passa a ser instantânea. O telefone é um exemplo inicial a respeito da neutralização geográfica entre pessoas fisicamente distantes para a celebração de um contrato por meio de um sistema de comunicação instantâneo (LORENZETTI, 2004, p. 313-314). Assim como no exemplo, o contrato eletrônico pode ganhar status de celebrado entre presentes, interpretando-se analogicamente a Lei 10.406 de 2002 (Novo Código Civil), em seu artigo 428, I, considera-se também como presentes os que contratam por telefone ou “meio de comunicação análogo”. REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 08-revista_07.p65 118 29/10/2007, 21:43 Simone Vinhas de Oliveira, Valkíria A. Lopes Ferraro, Vinicius Franco da Silva e Wesley Tomaszweski Portanto, basta que o contrato eletrônico seja firmado através de comunicação instantânea6 para que se estabeleça vínculo entre presentes, visto que se trata de meio de comunicação semelhante e há perfeita subsunção da realidade fática à norma vigente. Vale ressalvar que a partir do momento em que o ofertante se faz sentir da aceitação do oblato, têm-se firmado o certame obrigacional. Apesar do meio de comunicação eletrônico propiciar a instantaneidade de mensagens, casos há em que se tem a formação contratual “não instantânea”(LORENZETTI, 2004, p. 323), ou entre “ausentes”, levando-se em conta um maior lapso temporal decorrido do intercâmbio das mensagens, como no caso de formação por intermédio de correio eletrônico, e-commerce, entre outros. Para explicar a perfectibilização de um vínculo contratual entre ausentes, têm-se duas principais teorias, a da cognição, que exige que a resposta do aceitante chegasse ao conhecimento do proponente, e a da agnição que dispensa o conhecimento da resposta. No Brasil, com o Código de 1916, em seu artigo 1086, era considerada como válida a teoria da agnição através de sua subteoria, a da expedição, ou seja, considera-se formado o contrato com o envio da aceitação ao proponente. Entrementes, o atual código estabelece, em seu artigo 434, que a formação contratual acontece quando a aceitação é expedida, porém ressalva exceções em seus incisos o que nos levar a perceber a alteração da tendência do código para outra subteoria da agnição, qual seja, a da recepção (GAGLIANO, 2005, p. 105 e s.). Nos dizeres de Carlos Roberto Gonçalves (2002, p. 20), o atual código: estabeleceu três exceções: a) no caso de haver retratação do aceitante; b) se o proponente se houver comprometido a esperar resposta; e c) se ela não chegar no prazo convencionado. Ora, se sempre é permitida a retratação antes de a resposta chegar às mãos do proponente, e se, ainda, não se reputa concluído o contrato na hipótese de a resposta não chegar no prazo convencionado, na realidade o referido diploma filiou-se à teoria da recepção, e não à da expedição. Além disso, considerando a segurança na formação do negócio jurídico em virtude do meio eletrônico, estabeleceu-se, também, na prática, considerar formado quando a confirmação chegue à esfera de conhecimento do proponente, não sendo necessário que este tome conhecimento efetivo da resposta, mas, apenas, que esta esteja disponível no seu âmbito de conhecimento. É, portanto, o proponente, responsável, no caso de contrato formado via correio eletrônico, pela manutenção de seu equipamento em estado que possibilite a recepção da resposta, como no caso de não recebimento de e-mail por estar a caixa de correio sem espaço suficiente. Têm-se, concluindo-se, que a formação dos contratos eletrônicos entre ausentes se perfectibiliza com a recepção, pelo policitante, da aceitação do oblato. 3.3 Lugar de Formação O Direito Brasileiro abarca a teoria que determina a formação contratual no lugar em que este é proposto. Nos termos do artigo 435 do Código Civil, “o contrato reputa-se celebrado no lugar onde foi proposto”. Tal determinação, longe de ser desnecessária, reveste-se de extrema utilidade quando, por exemplo, o juiz tiver de analisar questões de cunho axiológico e costumeiro do lugar onde o negócio fora pactuado, ou, ainda, quando surgirem questões de competência (GAGLIANO, 2005, p. 110 e 111). 6 Diálogo interativo que implica atos instantâneos, como se percebe no IRC – Internet Relay Chat, Msn, ICQ, entre outros. REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 08-revista_07.p65 119 29/10/2007, 21:43 119 Contrato: Do Tradicional a Celebração Eletrônica - Aspectos Formais Entretanto, no tocante aos contratos eletrônicos, como definir o local de formação, visto que há duas possibilidades, quais sejam: a) o local onde encontra-se o equipamento por meio do qual fora realizada a proposta, ou seu endereço lógico; e b) o local da residência do policitante. Seguindo os passos de Álvaro Marcos Cordeiro Maia, independentemente da posição geográfica do equipamento utilizado, reputa-se celebrado o contrato eletrônico no lugar da residência do proponente, ou seja, opta-se pela segunda alternativa. Isso se dá, principalmente, por questões de segurança. Se assim não fosse, haveria abertura para fraude ou prejuízo à contratante de boa-fé. Ilustrando, há que se imaginar um proponente, residente num país cujas leis consumeiristas sejam rígidas, realizando seus negócios por meio de equipamento ou endereço lógico localizado em país diverso, preferencialmente com leis consumeiristas escassas, inexistentes ou, ao menos, mais relaxadas em relação ao local de sua residência, com o intuito de furtar-se de responsabilidades. Neste sentido, a Lei Modelo da UNCITRAL, estabelece em seu art. 15, § 4º, que uma declaração eletrônica se considerará expedida e recebida no lugar onde remetente e destinatário, respectivamente, tenham seu estabelecimento, no caso de mais de um, onde tenham o principal. Portanto, têm-se como principal norte que se reputa celebrado o contrato eletrônico no lugar onde reside o proponente ou onde esteja afixado seu estabelecimento principal. De qualquer sorte, em hipótese que se admite apenas para argumentar, destaca-se que as considerações são tecidas à luz do Direito comparado e magistério da doutrina, uma vez que em solo brasileiro inexiste qualquer tipo de legislação específica acerca da contratação internacional e da tutela das ações que nasçam com base no meio eletrônico, principalmente, do consumidor por suas características de hipossuficiência e vulnerabilidade. Ademais, o julgador conta com o ordenamento jurídico posto, e este lhe remete as disposições da Lei de Introdução ao Código Civil – LICC, a qual condiciona a existência de tratado e relacionamento com o outro país envolvido na celebração. 120 3.4 Validade Quando se fala a respeito dos pressupostos de validade contratual, tem-se, como forma resumida, que o contrato deve nascer de uma manifestação de vontade emanada de maneira livre e de boa-fé. Só pode ser manifestada de forma livre se o agente for capaz na realização do ato. Com relação a esta capacidade não se remete, o leitor, à idéia de capacidade genérica da personalidade, mas sim à específica condição de ser pólo de determinado contrato, que tem como “legitimidade”. É de boa-fé o contrato que tenha por objeto bem da vida “idôneo”, ou seja, “lícito”, que este possa ser “possível” (física e juridicamente), de figurar como objeto contratual e que tal seja “determinado” ou “determinável”, aquele que seja individualizado ou com elementos mínimos capazes de individualizá-lo. Como elucidação é válido citar o artigo 426 do atual Código Civil que determina a proibição de figurar como objeto contratual a herança de pessoa viva. A forma também possui o seu lugar na averiguação da qualidade do vínculo formado, portanto deve ser a adequada para cada caso, ou seja, a “prescrita” ou “não defesa em lei” (GAGLIANO, 2005, p. 22-23). Caso, em um contrato, não se perceba algum desses elementos, aquele nascerá nulo. Trata-se de pressupostos de validade cuja falta, seja de um ou mais, reputa a nulidade do negócio celebrado. REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 08-revista_07.p65 120 29/10/2007, 21:43 Simone Vinhas de Oliveira, Valkíria A. Lopes Ferraro, Vinicius Franco da Silva e Wesley Tomaszweski 3.4.1 Forma Há que se dar mais uma palavra a respeito da forma. Tem-se, no artigo 107, do atual Código, a positivação do “princípio da liberdade da forma” para os negócios jurídicos. Assim, estabelece-se, como regra geral, que os negócios jurídicos sejam firmados sem a observância de forma determinada7 . Aqui é que se percebe o grande fundamento positivo para a contratação eletrônica, visto que esta, por excelência, está baseada no princípio da livre forma, pois o que caracteriza o comércio eletrônico é justamente o meio de comunicação veiculador de vontades e seu registro em suporte diverso da cártula habitual. 3.4.2 Legitimação e a determinação da autoria O documento eletrônico é o meio físico, geralmente magnético ou óptico, capaz de armazenar, para a posterioridade, aquilo estabelecido no contrato eletrônico, e, apesar de registrado em uma base não física, possui idoneidade para veicular o interesses das partes (DIAS, 2004, p. 82). Porém, por não estarem, as partes, fisicamente presentes, é necessário que se estabeleça meios de se auferir a autoria, a autenticidade dos sujeitos envolvidos na relação jurídica. É este o grande problema do meio eletrônico. É aqui a base de situações capazes de gerar insegurança jurídica na contratação. Como determinar quem, exatamente, está do outro lado de um computador aceitando ou fazendo proposta negocial? Sabe-se que a legitimidade para a contratação é pressuposto de validade do negócio, assim como a licitude e a determinação do objeto, sendo, portanto, nulo o negócio jurídico realizado por incapaz. Qual a responsabilidade envolvida nessa situação? Uma forma simples e barata de resolver a questão é a adoção de webcams8 , no momento da manifestação da vontade, que nos dá a certeza da pessoalidade e autoria do sujeito contratante. Porém, torna-se inviável, tal medida, por aumentar os custos do processo. Ricardo L. Lorenzetti (2004, p. 293), ensina que, como regra geral tem-se “aquele que utiliza meio eletrônico e cria uma aparência de que este pertence à sua esfera de interesse, arca com os riscos e com os ônus de demonstrar o contrário”. Esta regra se dá com base na necessidade de comportamentos de cooperação eficientes, sendo que quem opta pela contratação eletrônica deve estar orientado em realizar os atos nos meios mais seguros e prevenir-se contra terceiros mal-intencionados. Não é admissível que este pretenda que o ônus seja suportado pelo destinatário, o que se tornaria muito mais oneroso. Entende o autor supra-citado, que se trata da atribuição dos riscos que derivam do meio utilizado (LORENZETTI, 2004, p.293 e s.). O que se tem como solução para o problema, maior objeto de pesquisa no âmbito da contratação eletrônica, é a adoção da certificação, uso de senhas, assinaturas eletrônicas ou digitais, ou, mesmo, um contrato prévio, onde as partes estão presentes, estabelecendo que se reputa a determinado sujeito toda e qualquer contratação, realizada por meio daquele equipamento (LORENZETTI, 2004, 291). 7 A não ser quando esta é estabelecida em lei, como visto acima. 8 Pequenas câmeras de vídeo, de baixa resolução, utilizadas para a transmissão em tempo real da imagem da pessoa que está operando o computador naquele momento. REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 08-revista_07.p65 121 29/10/2007, 21:43 121 Contrato: Do Tradicional a Celebração Eletrônica - Aspectos Formais 4 CONCLUSÃO Como exposto, desde o intróito, o crescimento da contratação eletrônica é galopante e inevitável, assim como a rede mundial de computadores. A natureza humana revela-se, no sentido de receio e temor pelo desconhecido, entretanto alguns indivíduos são investigadores e desbravadores (uns mais outros menos) e aceitam o desafio de adentrar ao admirável mundo novo, a vida virtual. Nesse sentido, centrou o presente estudo na doutrina pátria e internacional, já que esta investiga e proporciona suporte teórico para o legislador e aplicador do direito. Em sede de conclusões e em apertada síntese, é possível destacar ser perfeitamente possível a contratação eletrônica sendo, inclusive, esta, abarcada pelo Direito pátrio, por meio o Código Civil brasileiro baseado em uma filosofia culturalista que abre a lei para o que se tem de novo no campo social, interpretando essas novas insurgências do meio, muitas vezes, analogicamente. A abertura do sistema e a aplicação principiológica revelam-se como um suporte normativo, à disposição do operador do direito. Cabe à doutrina e à jurisprudência delinear e localizar as deficiências e peculiaridades do cenário eletrônico para que este disponha de meios que proporcione maior segurança aos contratantes. Nesse sentido, localiza-se a primeira problemática. Definir a natureza jurídica do contrato eletrônico. A doutrina ainda não chegou a um entendimento uníssono. Se não fosse suficiente, restam dúvidas quanto à legitimação das partes envolvidas, o que requer um uso supervalorizado da boa-fé dos contratantes. Enfim, a sociedade hodierna caracteriza-se pela globalização, digitalização e velocidade da informação. Resta ao direito buscar tutelar as relações nesta desenvolvidas, uma vez que negar a evolução constante das instituições jurídicas, principalmente das relações privadas, pelo aspecto cotidiano, seria omitir-se quanto a evolução do próprio homem e do meio em que ele está inserido. 122 REFERÊNCIAS CAIO MARIO, da Silva Pereira. Direito Civil: alguns aspectos de sua evolução. Rio de Janeiro: Forense, 2001. CARVALHO, Ana Paula Gabogi. Contratos Via Internet. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. COLARES, Rodrigo Guimarães. Internet Legal: O Direito na Tecnologia da Informação. Artigo: Contratos Eletrônicos x Informáticos. Modalidades Contratuais ganharam novas terminologias. 4. tiragem. Curitiba: Juruá, 2006. CORRÊA, Gustavo Testa. Aspectos Jurídicos da Internet. São Paulo: Saraiva, 2000. DIAS, Jean Carlos, Direito Contratual no Ambiente Virtual, 2. ed. rev. e atu. Curitiba: Juruá, 2004. FERREIRA, Ivette Senise; BAPTISTA, Luiz Olavo. Novas Fronteiras do Direito na Era Digital. São Paulo: Saraiva, 2002. GAGLIANO, Pablo Stolze; PANPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil: Contratos. v. 4. Tomo I. São Paulo: Saraiva, 2005. GONÇALVES, Carlos Roberto, Direito das Obrigações – Parte Especial – Contratos (Sinopse Jurídicas), Tomo I. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. LAWAND, Jorge José. Teoria geral dos Contratos Eletrônicos. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2003. REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 08-revista_07.p65 122 29/10/2007, 21:43 Simone Vinhas de Oliveira, Valkíria A. Lopes Ferraro, Vinicius Franco da Silva e Wesley Tomaszweski LORENZETTI, Ricardo L. Comércio Eletrônico. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. ORTIZ, Rafael IIIescas. Derecho de la contratación eletrônica. Madrid: Civitas Ediciones, 2001. REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. REVISTA GAZETA MERCANTIL: E-commerce - Comércio varejista virtual. 04.01.2006. 123 REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 08-revista_07.p65 123 29/10/2007, 21:43 Linha de Pesquisa “Teorias do Direito do Estado e Cidadania” 09-revista_07.p65 125 29/10/2007, 21:43 Ana Carolina Miiller Lopes e Ana Karina Ticianelli Möller CONSIDERAÇÕES SOBRE O PODER CONSTITUINTE Ana Carolina Miiller Lopes* Ana Karina Ticianelli Möller* RESUMO O artigo trata do Poder Constituinte Originário, analisado como um fato não jurídico, que ocorre no plano das relações político-sociais, e constrói, a partir de si, a lei suprema. Expõe em situação diversa o Poder Constituinte Derivado, como um segundo poder, jurídico, calcado em uma regra constitucional do Direito e seus limites. Palavras-chave: Poder Constituinte Originário. Poder Constituinte Derivado. CONSIDERINGS ON THE CONSTITUENT POWER ABSTRACT The article deals with the Originary Constituent Power, analyzed as a not legal fact, that occurs in the plan of the social politician relations, and constructs, from itself, the supreme law. Derivative displays in diverse situation the Constituent, as as to be able, legal, treaded Power in a constitutional rule of the Right and its limits. Keywords: To be Able Constituent Originary. To be Able Constituent Derivative. 1 INTRODUÇÃO O texto pretende a análise do Poder Constituinte Originário como um fato não jurídico, que ocorre no plano das relações político-sociais, não encontra como referencial nenhuma norma jurídica, e constrói, a partir de si, a lei suprema, afirmado como o momento de passagem do poder ao direito. Situação diversa encontra-se o Poder Constituinte Derivado, calcado em uma regra de Direito, constitucional, que permite a Emenda Constitucional. Compreender a origem, a força e a atuação do Poderes Constituintes Originário e Derivado, este com todos seus limites, aquele de poder ilimitado, torna-se necessário para compreensão da própria história da Constituição, bem como de seu significado para toda a sociedade. 2 O PODER CONSTITUINTE Poder Constituinte é aquele entendido como o Poder de se elaborar uma Constituição; capaz de criar, modificar ou implementar normas de força constitucional. É um poder primário, primogênito, de primeiro grau, genuíno, não adstrito a nenhum outro poder ou direito (DINIZ, 2004). É ilimitado, incondicionado, não tem por referencial nenhuma norma jurídica, pelo contrário, é a partir dele que vai ser produzida a norma suprema, o texto jurídico. Portanto o Poder Constituinte é pré-jurídico, precede à formação do direito, não sofre embargo de ordem jurídica e/ ou nenhuma outra ordem. * Advogada, especialista em Direito Empresarial, mestranda em Direito Negocial pela Universidade Estadual de Londrina. * Advogada, especialista em Direito Empresarial, mestranda em Direito Negocial pela Universidade Estadual de Londrina. REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 09-revista_07.p65 127 29/10/2007, 21:43 127 Considerações sobre o Poder Constituinte 128 Pode-se afirmar que o Poder Constituinte Originário é o maior momento de ruptura com uma ordem constitucional, sendo que, devido à força do Poder Originário, essa nova ordem constitucional que se inicia não terá qualquer limite jurídico positivo naquele sistema com o qual se está rompendo. Celso Antonio Bandeira de Melo (1983, p.69) entende que o Poder Constituinte não se constitui um fato jurídico, já que o ser incondicionado, o ser ilimitado já demonstra que não sofre nenhum tipo de restrição, e, portanto, não tem por referencial nenhuma norma jurídica. E dessa forma, também não se teria de falar que o Poder Constituinte confere poder a alguém, já que o Poder Constituinte é um fato, ou alguém tem este poder e o exerce ou não tem este Poder. Ele existe por si só e assim produz seus efeitos, sem que algum bloqueio de ordem jurídica possa servir de embargo, de óbice, de impeço àquilo que venha a ser disposto pelo Poder Constituinte. O titular do Poder Constituinte é o povo, pois a idéia de titularidade do Poder está adstrita à imagem de soberania do Estado, uma vez que através do exercício do Poder Constituinte Originário se estabelecerá sua organização fundamental através da Constituição. Assim, a titularidade do Poder Constituinte pertence ao povo, pois o Estado decorre dessa soberania popular. Entretanto, não se confunde titularidade com exercício, sendo que o titular do poder constituinte é o povo, entretanto o seu exercício é realizado por aqueles que, em nome do povo, criam o Estado, editando uma nova Constituição. A Constituição é feita não pelo, mas para o Estado, a ponto de se afirmar que, juridicamente falando, a cada nova Constituição corresponde a um novo Estado, sendo, por essa razão, no entendimento de Miguel Nogueira de Brito (2000, p. 32) “que toda a Constituição Positiva toma o nome do Estado que ela põe no mundo das positividades jurídicas”, como “República Federativa do Brasil”. Ainda do mesmo autor, “... a própria Constituição originária, que é a primeira voz do Direito aos ouvidos do povo, é gestada por ele e somente por ele, o Poder Constituinte”. O exercício do Poder Constituinte Originário realiza-se por meio da outorga, também chamada de “Movimento Revolucionário” e da Assembléia Nacional Constituinte. A outorga é o estabelecimento da Constituição pelo próprio detentor do poder, sem a participação popular. É ato unilateral do governante, que auto-limita o seu poder e impõe as regras constitucionais ao povo. Geralmente é a primeira forma de Constituição de um país que adquire liberdade política. Já a Assembléia Nacional Constituinte é a forma típica de exercício do poder constituinte, em que o povo, seu legítimo titular, democraticamente, outorga poderes a seus representantes especialmente eleitos para a elaboração da Constituição. Ocorre em todas as demais Constituições após a outorga da primeira (MORAES, 2004, p.58). Para o professor Pinto Ferreira (apud MAGALHÃES, 2004) existem dois tipos principais de organização do poder constituinte. O primeiro é o modelo da convenção constitucional, que é o tipo primitivo onde existe uma assembléia eleita pelo povo para elaborar a Constituição, e não há necessidade de ratificação popular. O segundo modelo é o sistema popular direto, onde a Constituição é votada pela convenção nacional e posteriormente é submetida à aprovação popular através do referendo, sendo que esta última é tida como a forma mais democrática de realização do Poder Constituinte. O Poder Constituinte Originário é forte o suficiente para romper com o ordenamento anterior sem qualquer limite jurídico positivo. É um poder de fato, de transformação social, e aí reside a sua força. Uma Constituição deve ser tão forte e perene a ponto de nenhum poder jurídico conseguir romper com seus fundamentos e estrutura. Apenas um poder social fortalecido tem autoridade para tal, legitimando essa ruptura, sem ilegalidade ou inconstitucionalidade em relação ao ordenamento rompido. Com a afirmativa de que somente o poder constituinte é poder de fato – histórico e transformador, e não jurídico, tem-se a segurança de que a Constituição não será objeto de manobra política por parte da rotatividade parlamentar, evitando que os interesses sejam constantemente modificados, à mercê de uma minoria, ainda que esta minoria seja, teoricamente, a representação de uma sociedade. O desenvolvimento de mecanismos representativos e consultivos, como o plebiscito e o referendo, para alteração do texto constitucional, deve ser analisado com cautela, pois a força da propaganda manipuladora pode proporcionar uma falsa vontade popular. Nada justifica, REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 09-revista_07.p65 128 29/10/2007, 21:43 Ana Carolina Miiller Lopes e Ana Karina Ticianelli Möller senão uma mobilização popular genuína, as rupturas profundas constitucionais. O Poder Constituinte somente será legítimo quando sustentado por um amplo processo democrático, constituindo-se também um Poder de Direito, entendendo o direito não como texto positivado, mas como idéia de justiça, fundamentando democraticamente as rupturas constitucionais, com debate profundo dos mais variados interesses e valores da sociedade nacional. Para Antonio Negri (In: BRITO, 2000, p.35) o poder constituinte apresenta-se como uma dilatação revolucionária da capacidade humana de fazer história, como um ato fundamental de inovação, e, deste modo, como um procedimento absoluto, que significa a capacidade real, de organizar uma estrutura dinâmica, de construir uma forma formadora que, através de compromissos, balanços de forças, ordens e equilíbrios diversos, encontra a racionalidade dos princípios, a adequação material do político relativamente ao social. Encontra-se, historicamente, o Poder Constituinte exercido de diversas maneiras, tendo como sujeito grupos, com interesses além dos da sociedade, ou indivíduos, como ditadores, reis, titulares de um poder nem sempre legítimo, com distorções graves do conceito de democracia. Mas também exercido de forma diferente, com expressa representação e manifestação popular, da vontade nacional. É certo que a vontade do poder constituinte deve emanar de mecanismos democráticos, que permitam que o processo de elaboração da constituição, assim como de sua reforma, seja aberto a ampla participação popular, não apenas através de diálogo com os representantes eleitos, mas através do poder de soberania do povo. Portanto, o Poder Constituinte Originário pertence a uma assembléia eleita com a finalidade de elaborar a Constituição, deixando de existir quando cumprida tal função, e, assim sendo, é um poder temporário. Também pode o Poder Constituinte resultar de um golpe de militar, como foi o caso do Brasil, exercido com a Carta de 1967 e uma nova Carta em 1969, denominada de Emenda nº 1, cujo processo da reforma constitucional reflete as tensões internas do regime da época, da oposição dos moderados à linha dura do regime vigente. O poder será democrático quando existir de forma ampla a demonstração e discussão de temas de importância nacional, com a efetiva participação das forças sociais, com o mínimo de pressão de grupos econômicos e manipulação por meio de marketing político, a fim de se evitar que a vontade de uma minoria prevaleça sobre a vontade e as necessidades reais de toda a sociedade. A aceitação e legitimação do texto pela sociedade são tão necessárias que, embora essencial a existência de um processo democrático na sua elaboração, pode nascer de forma inadequada e, mesmo assim, ser incorporada pela sociedade, como no caso da Lei Fundamental alemã de 1949, ainda hoje vivida pelos alemães, como verdadeira Constituição, entre outros exemplos históricos. Julian Franklin (In: BRITO, 2000, p.16) explica que Locke introduziu pela primeira vez a distinção clara e consistente entre poder constituinte e poder ordinário, de aplicação universal, estabelecendo o princípio de que os representantes ordinários, independente do fato de terem sido eleitos democraticamente, não podem alterar procedimentos constitucionais ou liberdades do sistema que sejam constitucionalmente reservadas aos indivíduos, sem o consentimento de toda a comunidade. O modo de Locke fundamentar o direito de resistência ressaltou a importância dos conflitos entre rei e parlamento que caracterizavam a história política inglesa do Séc. XVII, a serem resolvidos por meio da soberania do povo. Para Locke, existe um poder constituinte permanente no povo, referente à sua titularidade, mas não ao respectivo exercício. Fundamenta com o fato de o poder constituinte aparecer equacionado com o direito de resistência. Apesar do Poder Constituinte ser um poder político por excelência, não se deixando regrar pelo Direito, não significa que está imune aos fatores sócio-culturais da sociedade que o detém. A legitimidade da Constituição a ser constituída está intrinsecamente ligada ao reconhecimento político que terá por esta mesma sociedade. Há sim uma independência formal e material, um rompimento com a carta anterior, mas a construção e a conquista dos direitos fundamentais das sociedades não podem ser relegados e esquecidos quando da elaboração da nova carta. São direitos que precedem a própria Constituição, que independem de sua positivação para sua aceitação pela sociedade. REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 09-revista_07.p65 129 29/10/2007, 21:43 129 Considerações sobre o Poder Constituinte 130 Existe um grande questionamento sobre a legitimidade da Constituinte para romper com os direitos fundamentais da ordem constitucional anterior. E a Assembléia Nacional Constituinte pode realmente fazer isso, já que seu poder é incondicionado a qualquer norma jurídica, além de soberana e de ter poder ilimitado para dispor da forma como desejar. Entretanto é certo que os direitos e garantias fundamentais independem de positivação para serem reconhecidos como legítimos pelo povo. Assim, não é uma Constituição que tem o Poder para positivar tais direitos e garantias, mas, sim, estes são positivados nas Constituições por serem direitos vivenciados e reconhecidos pela sociedade. Por isso que, mesmo a Constituinte sendo legítima, no sentido literal da palavra, para dispor e até excluir esses direitos e garantias fundamentais do texto constitucional, não será reconhecida pela sociedade tal exclusão, já que o povo soberano reconhece tais valores como direitos seus legítimos, e, assim sendo, continuarão a requerê-los quando houver violação ou ameaça de violação dos mesmos, independentemente de sua positivação. Quando o povo se reúne em uma Assembléia Nacional, que representa a sociedade e não o Estado, assumindo sua natureza constituinte, e positiva seus direitos e suas diretrizes, exerce a plena soberania e transforma este poder de constituir em poder constituído, saindo da esfera política e adentrando, agora, sim, na esfera jurídica. Dissolve-se a Assembléia no momento da positivação e promulgação da nova Carta. A Constituição Federal de 1998 foi incorporada pela sociedade brasileira e tem em cada cidadão, sociedade organizada, tribunais e juízos de primeiro grau, administradores e legisladores, seus intérpretes e defensores contra a ação do Congresso Nacional e alguns juízes, quando deixam de aplicar o texto constitucional para proteger políticas econômicas inconstitucionais, ou utilizam de emendas constitucionais, inconstitucionais, visando priorizar o econômico, contra o Direito e a Justiça (MAGALHÃES, 2004). Em relação à Constituição Federal de 1988 há questionamento por parte de alguns autores e doutrinadores sobre a legitimidade da Assembléia Nacional Constituinte convocada para compor a elaboração da nova Carta Magna do Brasil. Ocorre que a convocatória da Assembléia Constituinte se deu através da Emenda Constitucional nº 26 à Constituição Federal de 1969, por iniciativa do próprio Poder Executivo, que tenta transformar o Congresso, que é um poder constituído e limitado, em um órgão de soberania como deve ser a Assembléia Constituinte (BONAVIDES, 2004, p. 493). Assim, foram eleitos deputados e senadores, uma assembléia congressista que não viria a ser dissolvida posteriormente, para a mais importante tarefa de criar a nova Carta Constitucional, sendo que tal fato exclui da Assembléia Nacional Constituinte os requisitos da soberania popular plena e ruptura com a ordem constitucional anterior, pressupostos que são fundamentais para a uma Constituinte, o que fundamenta a discussão sobre sua legitimidade. Cabe, porém, ressaltar que, embora tenha havido vários problemas de ordem formal, que, muitas vezes, colocam em dúvida a real legitimidade da Constituinte, é certo que, em toda a história constitucional brasileira, não houve outra Constituinte na qual o povo estivesse tão perto dos mandatários da soberania e pudessem, sem qualquer óbice ou restrição, colaborar para o atual texto constitucional, participando efetivamente de sua instituição. Assim, tais fatos bastam, no entendimento de Paulo Bonavides (2004, p. 496), para “explicar e demonstrar o alto índice de legitimação alcançado pela Constituinte congressual, redimida assim de suas origens impuras” visto que devido à tamanha participação social em sua elaboração há integral reconhecimento, incorporação e vivência de seu conteúdo pela sociedade brasileira. 3 O PODER CONSTITUINTE DERIVADO E SEUS LIMITES Diferente do Poder Constituinte Originário, que tem como finalidade a elaboração de uma nova Constituição, o Poder Constituinte Derivado, também chamado de Reformador, pode se manifestar a qualquer momento, desde que cumpridos os requisitos formais e observados os limites impostos. Diz respeito à alteração de elementos secundários de uma ordem jurídica, tendo em vista não ser possível alterar através de emenda ou revisão os princípios fundamentais ou estruturais de uma ordem constitucional. Os princípios fundamentais e estruturantes são a essência REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 09-revista_07.p65 130 29/10/2007, 21:43 Ana Carolina Miiller Lopes e Ana Karina Ticianelli Möller da Constituição, e, mesmo que não haja cláusula expressa que proíba emenda ou revisão, a essência não pode ser alterada. O Poder de revisão é mais amplo que o de emenda, pois trata de uma revisão sistêmica do texto constitucional. Apesar de prevista na Constituição brasileira, a revisão foi concretizada atipicamente, por meio de emendas, porém respeitados os aspectos formais processuais da revisão prevista no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Enquanto o Poder Constituinte Originário visa resolver o problema da fundação de um novo corpo político, o poder de revisão se encarrega com o problema das alterações da constituição e tem a ver com a questão de saber como poderão as gerações futuras exercer o seu consentimento relativamente à lei fundamental (BRITO, 2000, p. 125). O poder de reforma pode manifestar-se a qualquer tempo, desde que respeitados determinados limites. Em relação aos limites do Poder Constituinte Derivado, são divididos em três espécies: limites materiais, formais e temporais (AGRA, 2002, p. 77). Os limites materiais são aqueles que dizem respeito às matérias que podem ser tratadas pela emenda constitucional. Assim, o art. 60, parágrafo 4º, incisos I a IV da CF, dispõe sobre os limites materiais, informando que é vedada emenda tendente a abolir a forma Federal, os direitos individuais e suas garantias, a separação dos poderes e a democracia. Tendo em vista a teoria da indivisibilidade dos direitos fundamentais, conclui-se que também não pode haver emendas que limitem de qualquer forma os direitos individuais, políticos, sociais e econômicos. Nesse mesmo artigo, encontram-se alguns limites circunstanciais, sendo que não poderá haver emendas ou revisão durante situações como o estado de sítio, estado de defesa e intervenção federal, pois são ocorrências de grave comprometimento da democracia. Outro limite diz respeito às regras constitucionais referentes ao funcionamento do poder constituinte de reforma, que não podem ser objetos de emenda, sob pena de total ausência de segurança jurídica. Também há aqueles limites materiais implícitos, que são os que dizem respeito ao funcionamento do poder constituinte de reforma, que não podem ser objetos de emenda, sob pena de falta de segurança jurídica. Mesmo não existindo limites expressos, o poder de reforma não pode se transformar em um poder originário. O poder de reforma pode modificar, alterar o conteúdo da Constituição, mantendo sua essência, ou seja, os princípios fundantes e estruturantes, pois reforma não é construir outro e sim modificar por meio de adição, supressão ou modificação de alínea, inciso e/ou artigo da Constituição, mantendo-se sua estrutura e fundamentos (AGRA, 2002, p. 77). Os limites formais impostos na Constituição Federal são aqueles que obrigam que a emenda se dê através de quorum de 3/5, em dois turnos de votação, em seção bicameral enquanto a revisão ocorre em seção unicameral por maioria absoluta (50% mais um de todos os representantes). Quanto aos limites temporais, a Constituição de 1988 estabeleceu que a revisão ocorreria após cinco anos da promulgação da Constituição, não existindo limites temporais para a reforma por meio de emendas (MAGALHÃES, 2004). Portanto, Poder de reforma significa alterar normas secundárias, as regras, mas jamais a estrutura, a essência, o fundamento de uma ordem jurídica. 4 CONCLUSÃO Com o presente estudo conclui-se a importância em entender o Poder Constituinte e as diferenças entre suas formas de expressão, seja como Poder Constituinte Originário, seja como Poder Constituinte Derivado ou Reformador, já que tais formas foram, por várias vezes, utilizadas nas Constituições Federais Brasileiras e ainda serão cada vez que o povo brasileiro entender necessária a ruptura com as atuais realidades sócio-político-jurídicas. Poder Constituinte Originário é aquele ilimitado, incondicionado, que cria uma nova Constituição através da soberania popular, delega o exercício de tal poder a uma Assembléia Constituinte. Já o Poder Derivado ou Reformador é aquele que fica à disposição para quando for necessária alguma alteração no conteúdo da Constituição então vigente, e faz tal modificação por meio de emenda ou revisão. REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 09-revista_07.p65 131 29/10/2007, 21:43 131 Considerações sobre o Poder Constituinte Com relação ao questionamento sobre a possibilidade de o Poder Constituinte Originário, escolhido para compor uma nova Ordem Constitucional, ter legitimidade para eliminar do novo texto as garantias e direitos fundamentais previstos e já aceitas pela sociedade, verifica-se que tal poder tem realmente esta legitimidade, por ser ilimitado, incondicionado, e por romper-se em relação ao antigo texto constitucional, sem necessidade de se ater a quaisquer direitos anteriormente previstos. Ocorre, entretanto, que esses direitos e garantias individuais e sociais, aceitos e incorporados pela sociedade, não são apenas pelo motivo de estarem positivados no texto Constitucional. Engana-se aquele que entende que tais direitos somente existem em decorrência de disposição legal. Pelo contrário. Em relação a esses direitos foi a própria lei que teve de adequar-se com tais dispositivos em seu conteúdo, uma vez que tais direitos já estavam aceitos e incorporados pela sociedade, e qualquer nova ordem constitucional que venha a ser implementada, deverá conter, em seu bojo, tais direitos e garantias, uma vez que estes são pré-constitucionais. Tais direitos e garantias são como a essência humana, e independentemente de positivação, já são reconhecidos pela sociedade como tais. Assim, a Constituição, na sua essência, deve ser tão forte e perene que nenhum poder constituinte pode romper com seus fundamentos e estrutura, mas somente um poder social mais forte, que nem mesmo a Constituição poderá segurá-lo, já que é o poder social dos próprios cidadãos, incorporados, reconhecidos e aceitos por eles através da história e da evolução social. Em relação à legitimidade da Assembléia Nacional Constituinte de 1987, seja pela natureza da Constituinte Congressista, seja pela questão da não ruptura com a ordem constitucional anterior, é inegável que o poder constituinte originário foi forte o suficiente para construir uma nova ordem sem nenhum tipo de limite jurídico positivo na ordem com a qual se estava rompendo, e a sua legitimidade está validada pela participação popular em sua elaboração, tanto que, embora não cumpridos alguns requisitos formais de uma Constituinte, está sendo integral e plenamente vivida e sentida pela sociedade brasileira. 132 REFERÊNCIAS AGRA, Walber de Moura. Manual de Direito Constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. BARROSO, Luís Roberto. Temas de Direito Constitucional. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. BONAVIDES, Paulo. ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. 5. ed. Brasília: OAB Editora, 2004. BRITTO, Carlos Ayres. Teoria da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2003. BRITO, Miguel Nogueira de. A Constituição Constituinte. Ensaio sobre o poder da revisão da Constituição. Coimbra: Coimbra, 2000. CRETELLA JR., José. Elementos de Direito Constitucional. 4. ed. rev. atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. DINIZ, Jean dos Santos. O Poder Constituinte – Aula 01. 05 abr. 2004. Disponível em: <http:// www.vemconcursos.com/opiniao/index.phtml?page_ordem=assunto&page_id=1502&page_print=1>. Acesso em: 09 jun. 2006. REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 09-revista_07.p65 132 29/10/2007, 21:43 Ana Carolina Miiller Lopes e Ana Karina Ticianelli Möller MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. A Teoria do Poder Constituinte. Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 250, 14 mar. 2004. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=4829>. Acesso em: 24 jun. 2006. MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Revista de Direito Constitucional e Ciência Política nº. IV, 1983. MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 15. ed. São Paulo: Atlas, 2004. 133 REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 09-revista_07.p65 133 29/10/2007, 21:43 A Influência da Tópica no Pensamento de Peter Häberle e o seu conceito de Interpretação Constitucional A INFLUÊNCIA DA TÓPICA NO PENSAMENTO DE PETER HÄBERLE E O SEU CONCEITO DE INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL1 Carolina V. Ribeiro de A. Bastos* Eder Fernandes Mônica Samia Moda Cirino RESUMO Diante dos novos problemas da sociedade contemporânea e da necessidade de uma atualização da Teoria da Constituição, o presente trabalho tem por escopo analisar a reformulação dada às teorias tradicionais da Interpretação, que se mostraram em determinado momento insuficientes. Para tanto, abordar-se-á primeiramente a metodologia clássica da interpretação e, em seguida a contribuição da Tópica no sentido de voltar à atenção para o problema ao colocar o intérprete em contato com a realidade. Tratará também das posturas intermediárias, que procuraram a conciliação entre realidade e normatividade. E, por fim, analisar-se-á a teoria pluralista e procedimental de Peter Häberle, a qual colocou novas indagações, até então inexistentes, à Teoria da Interpretação Constitucional. Palavras-chave: Teoria da Constituição. Interpretação. Peter Häberle. THE INFLUENCE OF THE TOPICAL IN THE THOUGHT OF PETER HÄBERLE AND ITS CONCEPT OF CONSTITUTIONAL INTERPRETATION ABSTRACT 134 Before the new problems of the contemporary society and of the need of a modernization of the Theory of the Constitution, the present work has to objective to analyze the reformulation given to the traditional theories of the Interpretation, that were insufficient in certain moment. For so much, it will be approached the classic methodology of the interpretation firstly and, in continuation, the contribution of the Topical in the sense of returning to the attention for the problem when placing the interpreter in contact with the reality. The intermediary postures will be treat too, that sought the conciliation between reality and the normativity. Finally, will be analyzed the pluralist and the procedimental theory of Peter Häberle, which placed new inquiries, until then no existents, to the Theory of the Constitutional Interpretation. Keywords: Constitucional Theory. Interpretation. Peter Häberle. 1 INTRODUÇÃO Canotilho enumera alguns problemas básicos da Teoria da Constituição, tais como: dificuldade de inclusão dos problemas das mudanças e inovações jurídicas; necessidade de reinvenção do seu território; impossibilidade de formação de um código unitário diante da complexidade social que gera diferenciações funcionais em sistemas (político, econômico, jurídico); ausência de uma compreensão de novos conceitos da teoria social como o conceito de risco, dentre outros (2004, p. 27-35). 1 Trabalho apresentado como requisito parcial de conclusão da disciplina de Direito Constitucional do curso de Mestrado em Direito Negocial da Universidade Estadual de Londrina. * Mestrandos em Direito Negocial pela Universidade Estadual de Londrina. REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 10-revista_07.p65 134 29/10/2007, 21:43 Carolina V. Ribeiro de A. Bastos, Eder Fernandes Mônica e Samia Moda Cirino Esses problemas demonstram que, face ao desenvolvimento acelerado e o grau de complexidade das sociedades contemporâneas, o Direito Constitucional e Teoria da Constituição já não conseguem responder às demandas por uma sociedade mais justa e igualitária. Atualmente, há que se refletir e afrontar questões como diversidade, comunidade global e legitimação democrática da Constituição se se pretende sair do idealismo e tentar recuperar o contato com a realidade social. Nesse contexto, novos instrumentos surgiram no sentido de dar uma reformulação às teorias tradicionais da interpretação constitucional. Percebeu-se que os métodos clássicos não conseguiam responder satisfatoriamente às novas demandas sociais e às particularidades apresentadas, bem como se levantou o problema de qual seria a melhor maneira de interpretar a Constituição, ou ainda o que se entende por “interpretação constitucional”. O filósofo da linguagem Wittgenstein acreditava que a indagação sobre o significado das palavras orienta melhor as tarefas práticas da vida e que o estudo do uso da linguagem logo mostra a grande complexidade da vida social. Segundo Wittgenstein, a incerteza quase sempre é o resultado obtido quando se procura respostas para perguntas que aparentemente são simples, como, por exemplo: o que é o Direito (MORRISON, 2006, p. 01-02)? Neste sentido, este estudo propõe a tarefa de buscar, na perspectiva de Peter Häberle, a resposta à questão: O que é interpretação constitucional? Para tanto, primeiramente, partiu-se da metodologia clássica da interpretação constitucional, demonstrando suas premissas e insuficiências, as quais levaram os autores a buscar uma relação maior com a realidade, ou seja, deixando somente o caráter abstrato e geral das normas constitucionais e levando em conta a Constituição material e sua capacidade de apreender e resolver os problemas. Essa foi a proposta da tópica jurídica, relevante por despertar a atenção para o problema em si. Entretanto, outros juristas verificaram que, ao se conferir tanta relevância ao problema, corria-se o risco da perda de normatividade da Constituição. Houve então a procura de uma metodologia que permitisse o contato com a realidade sem se perder o caráter normativo. Peter Häberle, ao analisar essa discussão, mudou seu enfoque, no sentido de não só se buscar os melhores métodos, mas também uma maior legitimação do processo de interpretação constitucional. 2 METODOLOGIA CLÁSSICA DA INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL Devido a motivos como ambigüidade do texto, imperfeição, falta de terminologia técnica é que a doutrina tem buscado desenvolver métodos para a interpretação das normas jurídicas e, mais especificamente, das normas constitucionais, haja vista suas peculiaridades. Consoante assevera Canotilho (CANOTILHO, 2003, p. 1210): A questão do “método justo” em direito constitucional é um dos problemas mais controvertidos e difíceis da moderna doutrina juspublicista. No momento atual, poder-se-á dizer que a interpretação das normas constitucionais é um conjunto de métodos, desenvolvidos pela doutrina e pela jurisprudência com base em critérios ou premissas (filosóficas, metodológicas) diferentes mas, em geral, reciprocamente complementares . Contudo, segundo Luis Roberto Barroso (2003, p. 107), os adeptos dos chamados métodos clássicos de interpretação, advindos dos institutos do Direito Civil, parecem não atentar às seguintes particularidades constitucionais: superioridade hierárquica, natureza da linguagem, caráter político, dentre outros aspectos que evidenciam a necessidade de uma metodologia aplicada à Constituição de certa forma autônoma dos demais métodos interpretativos presentes no sistema jurídico (2003, p. 107). A metodologia clássica parte da tese da identidade pela qual a interpretação constitucional equivale à interpretação legal, tendo em vista que, para todos os efeitos, a Constituição é uma lei. Assim, a despeito da posição que ocupa na estrutura do ordenamento jurídico, a REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 10-revista_07.p65 135 29/10/2007, 21:43 135 A Influência da Tópica no Pensamento de Peter Häberle e o seu conceito de Interpretação Constitucional 136 Constituição essencialmente é uma lei e, por isso, há de ser interpretada segundo as regras tradicionais da hermenêutica, articulando-se e complementando-se, para revelar o seu sentido, os mesmos critérios que são levados em conta na interpretação das leis em geral. Trata-se de uma concepção hermenêutica, baseada na idéia de que toda norma possui um sentido em si, uma vontade pré-existente, seja aquela que o legislador pretendeu atribuir-lhe (mens legislatoris), seja a que afinal acabou embutida no texto (mens legis). E, por meio dos instrumentos de interpretação (lógico, sistêmico, teleológico e gramatical), poderia ser alcançado o sentido, o querer inerente à norma independentemente do problema a ser solucionado. Por isso, a tarefa do intérprete, como aplicador do direito, resumir-se-ia em descobrir o verdadeiro significado das normas e guiar-se-ia por ele na sua aplicação. Assim, desde fins do século XIX, essas duas teorias da interpretação jurídica - objetiva e subjetiva - enfrentam relativamente quanto ao critério metodológico que o interprete deve seguir para desvendar o sentido da norma (DINIZ, 2003, p. 420). A teoria subjetiva, que tem como principais expoentes Savigny e Windscheid, estabelece, como meta da interpretação, o estudo da vontade histórico-psicológica do legislador expressa na norma. O pensamento dominante, nessa metodologia, estava eminentemente voltado para o legislador a fim de determinar a mens legis, entendida como a vontade oculta do propositor da norma, cuja vontade incumbia ao intérprete revelar com fidelidade. Segundo Bonavides, o voluntarismo é o traço marcante dessa corrente que se renova no século XX com as modernas escolas da interpretação, que substituem o voluntarismo do legislador pelo voluntarismo do juiz. Assim ocorre, por exemplo, com os juristas da livre investigação científica (Geny), do “direito livre” (Kantorowicz) e da teoria pura do direito (Kelsen). Entretanto, Bonavides destaca que os subjetivistas dessa nova corrente, exaltando a função judicial, “debilitam as estruturas clássicas do Estado de Direito, assentadas numa valorização dogmática da lei, expressão prestigiosa e objetiva de racionalidade” (2004, p. 453). Já a teoria objetiva, tendo como principais representantes Karl Engisch, Schreier e Larenz, preconiza que na interpretação deve-se ater à vontade da lei – mens legis – que, com sentido objetivo, independe do querer subjetivo do legislador, porque, após o ato legislativo, a lei desliga-se do seu elaborador, adquirindo existência objetiva. Consoante expõe Diniz, a norma seria uma “vontade transformada em palavras, uma força objetivada independente do seu autor”, razão pela qual deve ser buscado o sentido imerso no texto e não o que o legislador teve em mira (2003, p. 421). A tese dessa corrente gira, ao dizer de Engisch, ao redor do texto da lei, “da palavra que se fez vontade”. O conteúdo da lei se desprende do legislador e adquire autonomia para seguir um curso independente. A vontade do legislador tem função apenas subsidiária, ficando, assim, a lei desmembrada de suas origens, dotada de força e vida própria (BONAVIDES, 2004, p. 454). A posição objetivista da interpretação da lei e da Constituição tornou-se a posição predileta dos positivistas formais do século XIX que, em nome da estabilidade e segurança jurídica, preconizavam o dogmatismo e a legalidade como fundamentos das instituições do Estado de Direito. Vivia-se o auge do formalismo jurídico, do culto ao texto da lei, da Constituição Formal e da neutralidade diante da tensão entre a Constituição e a realidade constitucional, de onde resultou um Direito Constitucional fechado, compacto, sistemático, lógico. Essa posição também levou ao dualismo entre Estado e Sociedade. Nesse sentido, o texto constitucional exprimia basicamente a organização do Estado, a atribuição de competências, limitação de seus poderes e a declaração de direitos fundamentais oponíveis ao Estado. A tarefa do intérprete de desvendar o sentido das normas constitucionais, seja objetivo ou subjetivo, é orientada pelos elementos interpretativos: gramatical ou literal, lógico, sistemático, histórico e sociológico ou teleológico. Tais processos são “meios técnicos utilizados para desvendar as várias possibilidades de aplicação da norma” (DINIZ, 2003, p. 425). Pela técnica gramatical o intérprete busca o sentido literal do texto normativo ante a indeterminação dos vocábulos que são, em regra, vagos ou ambíguos. Essa técnica se funda sobre as regras da gramática e da lingüística. Para Larenz, consiste na compreensão do sentido possível das palavras, servindo esse sentido como limite da própria interpretação (BARROSO, REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 10-revista_07.p65 136 29/10/2007, 21:43 Carolina V. Ribeiro de A. Bastos, Eder Fernandes Mônica e Samia Moda Cirino 2003, p. 127). A interpretação gramatical, segundo Jhering, reconhece tão somente o que se disse no texto da lei de modo direto e expresso. O que não consta das palavras é como se não existisse, e deixa, portanto, de ser objeto de consideração (BONAVIDES, 2004, p. 440-441). A interpretação lógica é aquela que, examinando a lei em conexidade com as demais leis, investiga-lhe também as condições e os fundamentos de sua elaboração, de modo a alcançar, posteriormente, a precisa vontade da lei. O elemento lógico, sintetizado na locução “intenção do legislador”, é considerado objetivamente e não subjetivamente, de modo que essa intenção não é a subjetivação de quem propôs a lei, mas a ratio ou mens é aquela que se insere e se objetiva na norma mesma (BONAVIDES, 2004, p. 440-441). Quanto ao problema de fixação do sentido e valor que se deve conferir à intenção do legislador, a doutrina da interpretação lógica se reparte em três posições: escola dogmático-jurídica, escola da livre investigação do direito e escola histórico-evolutiva. A escola dogmático-jurídica entende que a intenção ou vontade do legislador resulta dos trabalhos preparatórios, das exposições de motivos, dos debates parlamentares que precedem a adoção da lei. Todos esses elementos são importantes para determinar a mens legis. Já a segunda, a escola da livre investigação do direito, abre ao intérprete uma larga esfera de liberdade, que lhe consente deduzir o direito da consciência jurídica popular através da própria consciência. Por último, a escola histórico-evolutiva toma a lei como dotada de vida própria, ou seja, uma vez elaborada segue uma trajetória independente, amoldando-se às novas condições e necessidades da vida social. A vontade da lei é o que ela exprime objetivamente e não o que quis exprimir subjetivamente o legislador (BONAVIDES, 2004, p. 441-442). Por sua vez, o processo sistemático considera o sistema, em que se insere a norma, relacionando-a com outras normas concernentes ao mesmo objeto. Consoante assevera Barroso, “o Direito positivo não é um aglomerado aleatório de disposições legais, mas um organismo jurídico, um sistema de preceitos coordenados ou subordinados, que convivem harmoniosamente”. A interpretação sistêmica é, portanto, fruto da idéia de unidade do ordenamento jurídico. Através dela o intérprete situa o dispositivo a ser interpretado dentro do contexto normativo geral e particular, estabelecendo conexões até vislumbrar-lhe o sentido e alcance (2003, p. 136). A técnica interpretativa histórica, oriunda das obras de Savigny e Puchta, baseia-se na averiguação dos antecedentes da norma, da occasio legis. Consiste, portanto, na busca do sentido da lei através dos precedentes legislativos, desde o projeto de lei, sua exposição de motivos, emendas, aprovação, as circunstâncias fáticas que a precederam e que lhe deram origem, ou seja, às condições culturais ou psicológicas sob as quais o preceito normativo surgiu (DINIZ, 2003, p. 428). O processo sociológico ou teleológico objetiva, na visão de Ihering, adaptar a finalidade da norma às novas exigências sociais. O intérprete não pode estar indiferente às exigências da vida e ao fato de que a norma se destina a um fim social, de que o magistrado deve participar, ao interpretar o preceito normativo (BONAVIDES, 2004, p. 440). Dessa forma, a técnica teleológica procura o fim, a razão do preceito normativo, para a partir dele determinar o seu sentido. No que tange a essas técnicas interpretativas, Scheuerle recomenda na aplicação prática do direito, uma livre escolha delas, como o melhor caminho a seguir, desde que isso, porém, possa conduzir a um resultado satisfatório (BONAVIDES, 2004, p. 456). Muitos se posicionaram a favor de uma livre escolha das técnicas interpretativas, como o melhor caminho a seguir, desde que isso pudesse conduzir a um resultado satisfatório. Entretanto, Savigny discreparia dessa livre eleição, pois afirmava que os quatro elementos tradicionais – gramatical, lógico, histórico e sistemático – não constituíam quatro formas de interpretação entre as quais se poderia escolher à vontade, mas diferentes atividades a atuarem conjugadas a fim de se obter uma interpretação bem-sucedida (BONAVIDES, 2004, p. 457). REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 10-revista_07.p65 137 29/10/2007, 21:43 137 A Influência da Tópica no Pensamento de Peter Häberle e o seu conceito de Interpretação Constitucional 3 AS TEORIAS MATERIAIS DA CONSTITUIÇÃO E A TÓPICA JURÍDICA 138 Os procedimentos hermenêuticos tradicionais, no âmbito da Constituição do Estado Liberal, funcionavam como interpretação de bloqueio, sob o primado do princípio da legalidade, visando à certeza e à segurança jurídica. Entretanto, com o advento do Estado Social, as novas aspirações sociais exigiram procedimentos que as legitimassem em face da Constituição, ou seja, uma interpretação de legitimação cuja realização exige a mediação concretizadora do intérprete. Assim, com a configuração social do Estado, tornou-se difícil, para a metodologia de origem jusprivatista, conciliar o Direito com as novas aspirações da Sociedade, bem como a própria Constituição à realidade. Essas novas aspirações sociais geraram um inconformismo com o positivismo lógico-formal e o colapso das estruturas liberais de Estado. O social ganha prevalência sobre o jurídico, fazendo com que o direito constitucional, de matizes formalistas, entre em declínio. Abrese um campo de imprevisível extensão para o florescimento de distintas posições interpretativas no domínio da hermenêutica constitucional (BONAVIDES, 2002, p. 434-435). É nesse contexto que surge a corrente tópica, como tentativa de responder às novas aspirações. Na configuração dada por Viehweg, a tópica toma como ponto de partida o sentido comum, e o desenvolve mediante um tecido de silogismos e não mediante longas deduções em cadeia. Ela constitui uma parte da retórica, com raízes na Antiguidade, com as obras de Aristóteles e Cícero, e com raízes na Idade Média, na qual a retórica foi uma das sete artes liberais. A partir do racionalismo e da irrupção do método matemático-cartesiano, houve a desqualificação da tópica, com sua conseqüente perda de influência na cultura ocidental. É por isso que Viehweg faz referência à Vico em sua obra, na qual este contrapunha o método antigo, tópico ou retórico, ao método novo do cartesianismo (ATIENZA, 2003, p. 47-49). Para Viehweg a tópica é caracterizada por três elementos, estreitamente ligados entre si. Do ponto de vista do seu objeto, a tópica é uma técnica do pensamento problemático; do ponto de vista do instrumento com que opera, o que se torna central é a noção de topos ou lugarcomum; e do ponto de vista do tipo de atividade, a tópica é uma busca e exame de premissas. O que a caracteriza é ser um modo de pensar no qual a ênfase recai nas premissas, e não nas conclusões. Dessa maneira, a tópica é um procedimento de busca de premissas que, na realidade, não termina nunca. Os tópicos são os fios condutores do pensamento que só permitem alcançar conclusões curtas, e devem ser vistos como premissas compartilhadas que têm uma presunção de plausibilidade. Com esse procedimento seria possível resolver aporias ou problemas impossíveis de se afastar. A ênfase da análise recairia no problema, e não no sistema. Assim, trata-se de buscar um modo que ajude a encontrar a solução; o problema leva assim a uma seleção de sistemas e em geral a uma pluralidade de sistemas (ATIENZA, 2003, p. 49-50). Conforme expõe Bonavides (2002, p. 446 a 453), com a insuficiência do método “científico” dos naturalistas e também com o malogro das correntes idealistas que tentavam resolver com exclusividade o problema do método, fez inevitável a ressurreição da tópica como método. Pensar o problema constitui o âmago da tópica. Ela não foi uma revolta contra a lógica, mas procurou demonstrar que o argumento dedutivo não constitui o único veículo de controle da certeza racional. É a tópica uma técnica jurídica da “praxis”. A situação deve ser compreendida em toda a sua complexidade, a fim de problematizar-se o ideal de uma solução. Mas houve contra a tópica fortes reações críticas e doutrinárias de juristas, preocupados com a metodologia, sobretudo aqueles inclinados a uma visão sistemática da ciência jurídica. A invasão da Constituição formal pelos topoi e a conversão dos princípios constitucionais e das próprias bases da Constituição em pontos de vista à livre disposição do intérprete, de certo modo enfraquece o caráter normativo dos sobreditos princípios, ou seja, a sua juridicidade. A Constituição, que já é parcialmente política, se torna por natureza politizada ao máximo com a metodologia dos problemas concretos, decorrentes da hermenêutica tópica (BONAVIDES, 2002, p. 453). REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 10-revista_07.p65 138 29/10/2007, 21:43 Carolina V. Ribeiro de A. Bastos, Eder Fernandes Mônica e Samia Moda Cirino A tópica surge num contexto de renovação de toda a velha metodologia. Há uma busca de maior dinamismo nos métodos interpretativos. Com a tópica, a norma e o sistema perdem o primado, tornando-se meros pontos de vista ou simples “topoi”, cedendo lugar à hegemonia do problema. Assim, os métodos clássicos são rebaixados à condição de auxiliares e, desde que convenham ao esclarecimento e solução do problema, todos os métodos interpretativos podem ser utilizados. Todo este contexto fez com que a tópica representasse o tronco de onde partem as direções e correntes mais empenhadas em renovar a metodologia clássica de interpretação das regras constitucionais. Estas correntes ainda continuam em processo de elaboração teórica e de reação ao excesso de formalismo e juridicidade das correntes positivas (BONAVIDES, 2002, 452-454). 4 A REFORMULAÇÃO DA TÓPICA Alguns juristas, comprometidos com a teoria material da Constituição, buscaram uma saída metodológica para a crise em que a tópica tende igualmente a mergulhar: impotência teórica em lançar alicerces mais seguros. É nesse sentido que se levanta o jurista alemão F. Müller, que procura estruturar e racionalizar o processo de concretização da norma, vinculando a atividade interpretativa a uma racionalização metodológica, não se dissolvendo, por conseguinte, o teor de obrigatoriedade ou normatividade da regra constitucional. Interpretar seria o mesmo que concretizar a norma. Mas a pergunta que Müller se faz é “que norma?”. Esse é o ponto fundamental de suas análises. A norma jurídica é algo mais que o texto de uma regra normativa. A interpretação ou concretização de uma norma transcende a interpretação do texto. Com isso, Müller tenta evitar o hiato entre as Constituições formal e material, bem como o confronto da realidade com a norma jurídica, socorrendo, assim, a Constituição, e procura reaver todo o sentido material das regras constitucionais exaurido pela metodologia formalista. Para Müller, a Constituição é repositório de princípios, às vezes, antagônicos e controversos e teria sido um erro o emprego da metodologia interpretativa do formalismo e do jusprivatismo para interpretá-la (BONAVIDES, 2002, p. 456-461). Para Müller os instrumentos tradicionais de metodologia jurídica lidam explicitamente com textos e só implicitamente contêm possibilidades de incorporar à interpretação conteúdos materiais provenientes do âmbito da norma. Dessa forma, as quatro técnicas interpretativas elucidadas por Savigny precisam ser completadas com elementos metodológicos que atinjam o conteúdo material do âmbito normativo na decisão dos casos jurídicos (BONAVIDES, 2002, p. 506). Toda concretização constitucional é aperfeiçoadora e criativa. O direito não está mais na vontade subjetiva do legislador ou na vontade objetiva da lei. O jurista, ao falar de Constituição, deve-se esquecer que está falando do texto da Constituição, pois o verbalismo normativo é o somenos, enquanto que o realismo extra-vocabular da norma é tudo. O texto de uma prescrição jurídica positiva é tão somente a cabeça do iceberg. A norma não deve nunca ser isolada da realidade. O texto, neste sentido, funcionará como diretiva e limite da concretização possível. A interpretação do texto normativo é uma parte importante, mas não a única e, por isso, é mais apropriado falar-se de concretização (BONAVIDES, 2002, p. 461-463). 5 A CONCEPÇÃO PLURALISTA E PROCEDIMENTAL DE PETER HÄBERLE Para Hesse (1983, p. 35), onde não se suscitam dúvidas não se interpreta. Já para Häberle (1997, p. 13) aquele que simplesmente vive a norma acaba por interpretá-la, ou ao menos co-interpretá-la, sendo tal idéia fundamental para compreender a concepção de interpretação deste autor, que representou um novo modo de compreender a experiência normativa no campo da Hermenêutica Jurídica. Segundo Häberle (1997, p. 11-12), a teoria da interpretação tem colocado duas questões essenciais: a indagação sobre as tarefas e os objetivos da interpretação constitucional e a indagação sobre os métodos. Isto porque a teoria da interpretação esteve muito vinculada a um REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 10-revista_07.p65 139 29/10/2007, 21:43 139 A Influência da Tópica no Pensamento de Peter Häberle e o seu conceito de Interpretação Constitucional 140 modelo de sociedade fechada e se reduziu ainda mais, quando se concentrou na interpretação dos juízes e nos procedimentos formalizados. O autor coloca também um terceiro problema, relativo aos participantes da interpretação. Dessa maneira, apresenta o autor a tese de que no processo de interpretação estão potencialmente vinculados todos os órgãos estatais, todas as potências públicas, todos os cidadãos e grupos, não sendo possível estabelecer um elenco fechado de intérpretes da Constituição. Tal posicionamento resulta do fato de se tratar sua pesquisa de uma investigação realista do desenvolvimento da interpretação constitucional, a qual exige um conceito mais amplo de hermenêutica, que reconheça outras forças produtivas de interpretação, ainda que subsista sempre a responsabilidade da jurisdição constitucional de fornecer a última palavra (HÄBERLE, 1997, p. 13). Sua investigação é conseqüência de um conceito republicano de interpretação, segundo o qual a teoria constitucional deve estar em condições de explicitar os grupos concretos de pessoas e os fatores que formam o Espaço Público, o tipo de realidade de que se cuida, as possibilidades e necessidades existentes. Por isso, sugere uma democratização do processo de interpretação, estabelecendo um catálogo, ainda provisório, de participantes neste processo. Assim, Häberle (1997, p. 20-23) sistematiza o mencionado catálogo de participantes da interpretação da seguinte maneira: - as funções estatais: que compreendem as decisões vinculantes da Corte Constitucional e as decisões vinculantes dos demais órgãos estatais, que exercem função jurisdicional, executiva ou legislativa; - os participantes do processo de decisão que não são necessariamente órgãos do Estado, tais como: autor e réu; aqueles que têm direito de manifestação ou integração à lide; pareceristas ou experts; grupos de pressão organizados; os requerentes ou partes nos processos administrativos de caráter participativo; - a opinião pública, a mídia, as associações, os partidos políticos2 , os cidadãos, igrejas, teatros, editoras, escolas, associações de pais etc; - e a doutrina. Häberle (1997, p. 29) reconhece que uma teoria constitucional que tem por escopo a produção de uma unidade política há que se submeter a crítica de que, dependendo da forma com que seja praticada a interpretação, poderá dissolver-se num emaranhado de intérpretes e interpretações; entretanto, adverte que tal objeção tem que ser avaliada, tendo em vista a legitimação dos diferentes intérpretes. O autor explica que a questão da legitimação coloca-se para todos aqueles que não estão formalmente nomeados para exercer a função de intérpretes da Constituição, ou seja, aqueles que não atuam conforme um procedimento pré-estabelecido, pois uma vinculação limitada à Constituição implicaria uma legitimação igualmente restrita (HÄBERLE, 1997, p. 29). Acrescenta Häberle (1997, p. 31) que do ponto de vista da Teoria da Interpretação deve-se levar em consideração que o juiz interpreta a Constituição na esfera pública e na realidade, sendo errôneo reconhecer as influências a que se submete apenas sob o aspecto de uma ameaça a sua independência. Essas influências contêm uma parte da legitimação, a qual não deve ser entendida formalmente, pois deve resultar da participação, isto é, da influência qualitativa e de conteúdo sobre a própria decisão, o que se trata de um aprendizado não só dos participantes, mas também dos tribunais em face dos demais participantes. Já do ponto de vista da Teoria da Constituição, a legitimação das forças pluralistas residiria no fato de que essas forças representam um pedaço da publicidade e da realidade da Constituição, o que as incluiria no processo de interpretação. Uma Constituição que vise estruturar não apenas o Estado, mas também a esfera pública, dispondo sobre a organização da própria sociedade, não pode tratar as forças sociais e privadas como meros objetos, pelo contrário, deve integrá-las ativamente enquanto sujeitos (HÄBERLE, 1997, p. 33). 2 Häberle explica que estes atuam, sobretudo, mediante a longa manus da eleição de juízes, o que não acontece no sistema brasileiro, já que o ingresso na carreira se dá mediante concurso público (1997, p. 22). REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 10-revista_07.p65 140 29/10/2007, 21:43 Carolina V. Ribeiro de A. Bastos, Eder Fernandes Mônica e Samia Moda Cirino Sob a perspectiva da Teoria da Democracia, afirma que, nas sociedades contemporâneas, a democracia não se desenvolve apenas no contexto de delegação de responsabilidade formal do “povo” para os órgãos estatais; numa sociedade aberta, ela se desenvolve também por meio de formas refinadas de mediação do processo público e pluralista da política e do cotidiano, especialmente mediante a realização dos direitos fundamentais (HÄBERLE, 1997, p. 36). Neste sentido: Povo não é apenas referencial quantitativo que se manifesta no dia da eleição e que, enquanto tal, confere legitimidade democrática ao processo de decisão. Povo é também um elemento pluralista para a interpretação que se faz presente de forma legitimadora no processo constitucional [...] e sua competência objetiva para a interpretação constitucional é um direito da cidadania [...] (HÄBERLE, 1997, p. 37). Dentre as conseqüências da teoria de Häberle para a Interpretação, destacase a relativização da Interpretação Jurídica, pois o juiz não mais interpreta de forma isolada. Além disso, através da proposta ampliação do círculo dos intérpretes, a esfera pública desenvolve força normatizadora na medida em que a Corte Constitucional tenha que interpretar de acordo com uma atualização pública. Para comprovar a realidade de sua teoria, Häberle argumenta que as questões referentes à Constituição Material nem sempre chegam à Corte Constitucional, mas a Constituição Material subsiste sem essa interpretação judicial, ou seja, o processo Constitucional formal já não é a única via de acesso ao processo de interpretação constitucional (1997, p. 42). Aos princípios e métodos de interpretação Häberle confere nova função: a de filtros da publicidade no sentido de canalizar e disciplinar as múltiplas formas de influência dos diferentes participantes do processo. Tanto que, nos casos em que há um rigoroso controle da opinião pública, a Corte tem que considerar a legitimação democrática e levar um minus de efetiva participação a um plus de controle constitucional; e, se houver uma profunda divisão da opinião pública, cabe ao Tribunal zelar pela função integrativa da Constituição (HÄBERLE, 1997, p. 43-45). Conclui Häberle (1997, p. 55) que o direito processual constitucional torna-se parte do direito de participação democrática. Por isso, não se pode mais avaliar a questão da interpretação por um prisma negativo3 , isto é, sob a ótica das limitações jurídico-funcionais do intérprete juiz. Tem-se que desenvolver uma compreensão positiva, como intérprete da Constituição tanto para o juiz, quanto para o legislador e demais participantes, constitucionalizando formas e processos de participação. Para o autor, esta é a nova tarefa da Teoria Constitucional. Porém limita a constitucionalização de conteúdos e métodos, visto que o processo deve ser o mais aberto possível para garantir que uma interpretação diferente possa ser sustentada em qualquer momento. 6 CONCLUSÃO Na idéia de constituição aberta, são condensadas algumas das propostas mais importantes do moderno pensamento constitucional. A função material do projeto da constituição é relativizada e se justifica a “desconstitucionalização” de elementos substantivadores da ordem constitucional. Nesse projeto aberto, ordena-se o processo da vida política fixando limites às atribuições do Estado e delimitam-se as dimensões prospectivas traduzidas na formulação dos fins sociais mais significativos e na identificação de alguns programas da configuração constitucional (CANOTILHO, 2004, p. 23). 3 Segundo Alvarenga (1998,p. 86), esta era a denominada “interpretação de bloqueio” ou “princípio da proibição de excessos”, típica do Estado de Direito Liberal e pautada nos princípios da legalidade e estrita legalidade, conferia à Hermenêutica Constitucional Tradicional uma tarefa reduzida às atividades do Estado e às funções do Judiciário (1998, p. 86). REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 10-revista_07.p65 141 29/10/2007, 21:43 141 A Influência da Tópica no Pensamento de Peter Häberle e o seu conceito de Interpretação Constitucional Portanto, buscando responder à pergunta inicialmente proposta, tem-se que, na perspectiva de Häberle, a interpretação é, além de um elemento resultante da idéia de sociedade aberta, também um elemento formador, constituinte dessa sociedade; por isso, os critérios de interpretação deverão ser mais abertos quanto mais pluralista for a sociedade. Do ponto de vista teórico ou prático, a interpretação constitucional deixa de ser evento exclusivamente estatal e vincula, ao menos potencialmente, todas as forças da comunidade política. Essa nova orientação hermenêutica contrapõe-se à ideologia da subsunção, visto que se reconhece que a norma não é uma decisão prévia, simples e acabada. A ampliação do círculo dos intérpretes é apenas conseqüência da tão defendida integração da realidade no processo de interpretação, inevitável em uma sociedade pluralista. Conforme Alvarenga (1998, p. 102-103), a concepção teórica da interpretação de Häberle está longe de acarretar a quebra da unidade da Constituição, mas pelo contrário, será reforçada pelas diversas forças de interpretação que culminarão na Jurisdição Constitucional. O resultado desta teoria é uma Constituição concebida não como uma decisão pronta acerca da natureza e da forma da unidade política, cuja legitimidade residiria em uma decisão “livre de contradições” do poder constituinte; mas sim uma Constituição que depende de uma permanente confirmação no tempo, mediante um processo que deve ser histórico e aberto. Também, deve-se observar que, no decorrer da evolução da teoria constitucional, os métodos de interpretação, em certa medida, ganhavam corpo conforme o paradigma adotado. Mesmo que o objetivo tenha sido a produção de um método que não se identificasse com os posicionamentos políticos do intérprete, é quase impossível que este, ao analisar o caso, se desvinculasse de sua “pré-compreensão” de mundo. Desse modo, é importante que se busque estender a possibilidade de interpretação ao maior número de pessoas atingidas, buscando uma legitimação democrática em torno dos instrumentos de interpretação, no sentido apresentado pela teoria de Peter Häberle. REFERÊNCIAS 142 ALVARENGA, Lucia Barros Freitas. Direitos Humanos, dignidade e erradicação da pobreza: uma dimensão hermenêutica para a realização constitucional. Brasília: Brasília Jurídica, 1998. ATIENZA, Manuel. As razões do direito: Teorias da Argumentação Jurídica. 3. ed. São Paulo: Landy, 2003. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. BASTOS, Celso Ribeiro. Hermenêutica e Interpretação. 2. ed. São Paulo: Celso Bastos Editor – Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, 1999. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003. ______. Teoria de la Constitución. (Trad.). Carlos Lema Anón. Madrid: Dykinson. DINIZ, Maria Helena. Compendio de introdução à ciência do direito. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista a procedimental da Constituição. (Trad.). Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1997. REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 10-revista_07.p65 142 29/10/2007, 21:43 Carolina V. Ribeiro de A. Bastos, Eder Fernandes Mônica e Samia Moda Cirino HESSE, Konrad. Escritos de Derecho Constitucional. Madrid: Centro de Estúdios Constitucionales, 1983. MORRISON, Wayne. Filosofia do Direito: dos gregos aos pós-modernos. São Paulo: Martins Fontes, 2006. 143 REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 10-revista_07.p65 143 29/10/2007, 21:43 O Princípio da Integridade como Modelo de Interpretação Construtiva do Direito em Ronald Dworkin O PRINCÍPIO DA INTEGRIDADE COMO MODELO DE INTERPRETAÇÃO CONSTRUTIVA DO DIREITO EM RONALD DWORKIN Erika Juliana Dmitruk* RESUMO Analisa o princípio da integridade desenvolvido por Dworkin, como teoria da interpretação construtiva do Direito. Procura entender os conceitos fundamentais deste filósofo, como princípios, regras, políticas, Juiz Hércules e hard cases. Investiga o método de resolução de casos difíceis de Hércules. Descreve as repercussões do princípio da integridade no Direito. Palavras-chave: Dworkin. Integridade. Regras. Princípios. Tese dos Direitos. THE PRINCIPLE OF THE INTEGRITY AS MODEL OF CONSTRUCTIVE INTERPRETATION OF THE RIGHT IN RONALD DWORKIN ABSTRACT It analyzes the principle of the integrity developed for Dworkin, as theory of the constructive interpretation of the Right. Search to understand the concepts basic of this philosopher, as principles, rules, politics, Hércules Judge and hard cases . It investigates the method of resolution of difficult cases of Hércules. It describes the repercussions of the principle of the integrity in the Right. 144 Keywords: Dworkin. Integrity. Rules. Principles. Thesis of the Rights. 1 INTRODUÇÃO Preocupado com a definição positivista do Direito, que o reduz a um modelo de regras e que autoriza o juiz a utilizar o poder discricionário ao se deparar com casos complexos, Dworkin propõe uma teoria da interpretação que auxilia os operadores do Direito a encontrar uma resposta correta mesmo para os casos complexos. O objeto de estudo deste artigo é a teoria desenvolvida por Dworkin sobre a resolução dos casos difíceis. Acredita Dworkin que os juízes, ao resolverem os casos difíceis, devem utilizar padrões determinados, para que a previsibilidade e justiça da resposta seja alcançada. Para isso, refuta a teoria da discricionariedade, proposta pelo positivismo jurídico, tentando encontrar algo que vincule o juiz a uma resposta correta. A distinção feita por Dworkin entre princípios, políticas e regras será analisada na primeira parte. Segundo o autor estudado, conhecendo as peculiaridades de cada um desses padrões, a tarefa de integrá-los em uma teoria da decisão jurídica torna-se mais clara e passível de entendimento. Na segunda parte deste artigo, explicar-se-á o que Dworkin entende por casos difíceis, a tese dos direitos e o modo de trabalho do juiz Hércules perante esses casos. Desenvolve a tese dos direitos e exemplifica a sua aplicação a partir de um juiz filósofo, comprometido com as leis, os precedentes e a busca da melhor solução. Esse juiz Hércules terá uma tarefa à altura do seu nome. * Graduada em Direito pela Universidade Estadual de Londrina, Mestre em Filosofia e Teoria do Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina, pós-graduanda em Filosofia Política e Jurídica na Universidade Estadual de Londrina. Professora da UNIFIL, UEL e PUC/ Londrina. Email: [email protected]. REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 11-revista_07.p65 144 29/10/2007, 21:43 Erika Juliana Dmitruk Logo após, tratar-se-á a interpretação construtiva e o que Dworkin conceituou como integridade. A idéia de integridade como uma virtude política ao lado da equidade, da justiça e do devido processo legal, divide-se em dois princípios: um princípio legislativo e um princípio jurisdicional. Para finalizar, estudar-se-á a integridade aplicada ao Direito. De que maneira a teoria dos direitos que Dworkin desenvolveu no decorrer das suas obras culmina com o princípio da integridade como uma tese da interpretação construtiva dos direitos. 2 PRINCÍPIOS, POLÍTICAS E REGRAS Ronald Dworkin tem se destacado com um pensamento original e, conforme opinião de Wolkmer (2006, p. 38), é um dos principais jusfilósofos que desenvolve críticas relevantes ao liberalismo utilitarista e ao positivismo jurídico contemporâneo, principalmente na versão dada a esta teoria pelo professor Herbert Hart. Também é considerado por outros como um “neojusnaturalista”. Esses autores também afirmam que sua teoria é uma das que demonstra o enfraquecimento da dicotomia “jusnaturalismo” e positivismo jurídico (OLIVEIRA JUNIOR).1 Para outros, Dworkin é responsável por criar uma terceira teoria do direito, onde a primeira e a segunda seriam o positivismo jurídico e o jusnaturalismo (FALLON, 1992).2 Em seu livro Levando os Direitos a Sério (2002), Dworkin apresenta uma teoria liberal do Direito, não atada apenas às correntes que costumam ser identificadas como tal, positivismo e utilitarismo jurídico. Para Dworkin, quando se cria uma teoria do Direito, ela deve conter uma teoria da legislação e uma teoria da decisão judicial. Nesse artigo será privilegiada a teoria da decisão judicial, a qual, segundo o mesmo autor, precisa estabelecer padrões que os juízes devem seguir para decidir os casos jurídicos difíceis. Nesse livro ele já começa a esboçar uma teoria conceitual alternativa. A primeira distinção elaborada por Dworkin versa sobre os direitos políticos, que podem ser direitos preferenciais (prevalecem contra decisões tomadas pela sociedade); e direitos institucionais mais específicos “que podem ser identificados como uma espécie particular de um direito político, isto é, um direito institucional a uma decisão de um tribunal na sua função judicante” (DWORKIN, 2002, XV). A teoria conceitual alternativa traça a possibilidade de que os indivíduos tenham direito a uma decisão judicial favorável, independente de uma decisão anterior favorável ou regra jurídica expressa aplicável a seu caso. Para o professor de Oxford, essa hipótese é possível com a distinção entre argumentos de princípio e argumentos de política, uma vez que defende a tese de que as decisões jurídicas baseadas em argumentos de princípios são compatíveis com os princípios democráticos (DWORKIN, 2002, XVI). Não é o objetivo de Dworkin indicar, previamente, os argumentos de política ou de princípio existentes, nem elencar quais direitos um indivíduo possui abstratamente, mas analisar casos difíceis, onde, mesmo os juízes mais criteriosos podem divergir (DWORKIN, 2002, XIX). Todavia, mesmo nesses casos, é necessário entender que, para Dworkin, o juiz não tem o direito de criar novos direitos, mas sim descobrir quais são eles em conformidade com o ordenamento jurídico (COUTINHO, 2003). 1 Ver também: Casalmiglia, Prólogo a “Los Derechos en Serio”, Barcelona: Ariel, 1989, p.11. ALEXY, Robert. Derecho y Razón Prática. México: Distribucinoes Fontamara, 1993, p. 14 e ss. GÜNHTER, Klaus. Teoria da Argumentação no Direito e na Moral: justificação e aplicação. São Paulo: Lamdy, 2004. 2 Through its various iterations, Dworkin’s third theory has attempted to bridge the gap between the two traditional theories. With the positivists, Dworkin has accepted that the concept of law makes sense only in reference to going legal systems; to know what the law is, it is necessary to begin with the materials that are recognized as law in a particular culture. Dworkin leaves room to accommodate the natural law view, however, by insisting that the materials that are recognized as authoritative within any legal system—the rules and standards that positivists have traditionally regarded as exhaustive of law—must always be interpreted. For interpretation, according to Dworkin, has an irreducibly moral element; the relevant materials must be interpreted in their best moral light. Dworkin thus sides with natural law theorists in recognizing a conceptual link between law and morals. Building on this foundation, he has further asserted that legal interpretation necessarily aspires to provide a moral justification for the law’s claim to obedience. He implies that a regime that was incapable of generating at least a presumptive, general duty to obey the law would not count as a properly “legal” system at all, but only as a scheme of organized coercion. (FALLON, 1992) REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 11-revista_07.p65 145 29/10/2007, 21:43 145 O Princípio da Integridade como Modelo de Interpretação Construtiva do Direito em Ronald Dworkin 146 A preocupação esboçada por Dworkin ao relacionar uma teoria interpretativa do Direito com uma teoria da justificação política não é uma preocupação efêmera ou pontual. Em toda sua obra perpassa essa necessidade de trabalhar em conjunto uma concepção de Estado e o papel do Direito neste modelo de sociedade escolhido. Em Uma Questão de Princípio (2000, IX) Dworkin afirma que a prática política brasileira reconhece dois tipos diferentes de argumentos que buscam justificar uma decisão política. Esses argumentos são: a) argumentos de política, os quais traçam um programa, um objetivo voltado para a coletividade; e b) argumentos de princípio, que traçam direitos individuais, particulares, inobstante o interesse da coletividade. Defende neste livro uma concepção do Estado de Direito que chama de “centrada nos direitos”, a qual pressupõe que os cidadãos têm direitos e deveres morais entre si e direitos políticos perante o Estado (2000, p. 7). Para Ikawa (2004), Dworkin não distingue Direito e Moral, como faz Hart, assim como para Ingeborg Maus3 e Alexy. Porém, segundo BAHIA, essa leitura de Dworkin é baseada em uma interpretação alexyana que popularizou-se na Alemanha. Porém para Günther e Habermas, Dworkin concebe a diferença entre Direito e Moral, e também destes para argumentos éticos e pragmáticos. Os argumentos morais são importantes na fase legislativa, porém, no judiciário, valem os argumentos de princípio e não mais os argumentos de política (BAHIA, 2005, p. 11). Um dos exemplos trazidos para ilustrar a influência da questão política sobre a questão jurídica trata da Lei de Relações Raciais. Existe um conflito entre o direito de agremiações escolherem seus associados segundo critérios próprios. Pela lei supra, o direito de estar livre de discriminação é forte para impedir que instituições inteiramente públicas pratiquem discriminação, mas não tão forte a ponto de aniquilar o direito de associações totalmente privadas de escolherem seus associados. A dificuldade está nos casos intermediários, como as agremiações político-partidárias (DWORKIN, 2000, p. 35). Para entender a diversidade de argumentos é necessário vislumbrar o peso que a diferença entre eles tem nas decisões, mesmo que tratados por outros nomes ou de outras formas pelas diversas teorias jurídicas. Nos casos difíceis, a concepção positivista do Direito que o percebe apenas como um modelo de regras, ignorando outros padrões como políticas e princípios, é insuficiente (DWORKIN, 2002, p. 36). Política é um tipo de padrão que estabelece um objetivo a ser alcançado, em geral uma melhoria da comunidade (2002, p. 36). Dworkin já havia definido este conceito em Uma Questão de Princípio. Esses argumentos de política justificam decisões políticas, que fomentam algum objetivo coletivo (2002, p. 129). Princípio, de maneira genérica, é todo padrão que não é regra. Princípio, assim, pode ser entendido como um padrão que deve ser observado por ser uma exigência da justiça ou eqüidade. Sua repercussão não será, necessariamente, uma melhoria social. (2002, p. 36) Os argumentos de princípio justificam uma decisão política, mostrando que a decisão respeita ou garante um direito de um indivíduo ou de um grupo (2002, p. 129-130). “No caso dos subsídios, poderíamos dizer que os direitos conferidos são gerados por uma política e qualificados por princípios; no caso contra a discriminação, são gerados por princípios e qualificados por políticas” (DWORKIN, 2002, p. 130). O objetivo imediato de Dworkin é distinguir princípios, no sentido genérico, das regras. Analisa o caso “Riggs contra Palmer”, onde em 1889 um tribunal de Nova Iorque teve que decidir se um herdeiro nomeado no testamento de seu avô poderia herdar o disposto naquele testamento, mesmo se ele próprio tivesse assassinado seu avô com esse objetivo. O tribunal, levando em conta que as leis e os contratos podem ser limitados por máximas gerais e fundamentais do direito costumeiro, como a que dispõe que “ninguém será permitido lucrar com sua própria fraude, beneficiar-se com seus próprios atos ilícitos, basear qualquer reivindicação na sua própria iniqüidade ou adquirir bens em decorrência de seu próprio crime”, não deu ao assassino o direito à herança. (2002, p. 37) O tribunal não aplicou uma regra, aplicou princípios. 3 Ver também: MAUS, Ingeborg. Judiciário como Superego da Sociedade: o papel da atividade jurisprudencial na sociedade órfã. Novos Estudos CEBRAP. São Paulo, nº.58. p. 185. nov/ 2000. REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 11-revista_07.p65 146 29/10/2007, 21:43 Erika Juliana Dmitruk Os padrões utilizados em decisões deste tipo não são regras jurídicas, são princípios jurídicos. A distinção entre ambos é de natureza lógica. As regras são aplicáveis à maneira do tudo-ou-nada. Ou uma regra é válida, e a sua resposta deve ser aceita, ou não é válida, e sua resposta em nada contribuirá (DWORKIN, 2002, p. 39). Mas não é assim que funcionam os princípios jurídicos. O exemplo utilizado por Dworkin é o exemplo do princípio “Nenhum homem pode beneficiar-se de seus próprios delitos”. Segundo ele, esse princípio não pretende estabelecer condições que tornem sua aplicação necessária. Ele apenas se limita a enunciar uma razão que conduz o argumento em certa direção, e, por isso mesmo, para ser concretizado, precisa de uma decisão particular. Podem existir outros princípios ou outras políticas que argumentem em outra direção – uma política que garanta o reconhecimento da validade de escrituras ou um princípio que limite a punição ao que foi estipulado pelo Legislativo. Se assim for, o princípio não prevalecerá, mas assim mesmo continuará a ser um princípio do sistema jurídico, pois, em outro caso, quando essas considerações em contrário estiverem ausentes ou tiverem menor força, o princípio poderá ser decisivo (DWORKIN, 2002, p. 41-42). Outra diferença entre regras e princípios é que os princípios possuem uma dimensão de peso e importância. Quando os princípios se intercruzam (por exemplo, a política de proteção aos compradores de automóveis se opõe aos princípios de liberdade de contrato), aquele que vai resolver o conflito tem de levar em conta a força relativa de cada um (DWORKIN, 2002, p. 42). Já as regras ou são importantes ou desimportantes. Uma regra jurídica pode ser mais importante do que outra porque desempenha um papel maior ou mais importante na regulação do comportamento. Se duas regras estão em conflito, uma suplanta a outra em virtude de sua importância maior. (DWORKIN, 2002, 43). Essa importância maior é dada com a resolução das antinomias aparentes, estudadas por BOBBIO (1999), em Teoria do Ordenamento Jurídico. Mas a distinção entre regras e princípios nem sempre é fácil. Muitas vezes eles se confundem, tendo em vista a forma muito próxima de ambos. Alguns termos como razoável, negligente, injusto e significativo, segundo Dworkin, fazem com que uma disposição funcione do ponto de vista lógico como uma regra e do ponto de vista substantivo, como um princípio. Isso porque a inclusão desses termos faz com que a aplicação da regra dependa de princípios e políticas que vão além dela (DWORKIN, 2002, p. 45). Todavia, apenas o uso desses termos não transforma uma regra em princípio. Para Dworkin (2002, p. 46), os princípios jurídicos atuam de maneira mais vigorosa nas questões judiciais difíceis. Todavia, quando aplicados, os princípios dão origem a regras. No caso “Riggs contra Palmer” a aplicação do princípio deu origem a uma nova regra “um assassino não pode beneficiar-se do testamento de sua vítima”. Existem duas formas de análise dos princípios jurídicos, e a escolha influencia a resolução do caso submetido ao tribunal. Segundo primeira orientação, os princípios jurídicos devem possuir obrigatoriedade de lei e ser levados em conta por juízes e juristas que tomam decisões sobre obrigações jurídicas. Segundo essa orientação, o direito inclui tanto regras quanto princípios. Já a segunda orientação nega que princípios possam ser obrigatórios. Para essa orientação, quando o juiz aplica princípios, ele julga além do direito (DWORKIN, 2002, p. 46-47). Apesar do enfoque bastante decisivo dado por Dworkin na distinção entre princípios e políticas, para outras teorias essa distinção pode não ser tão importante quanto para Dworkin. A teoria de Hans-George Gadamer prevê que o texto a ser interpretado não é uma coisa em si, mas possui um significado pela virtude inferida do que ele chama de wirkungsgeschichte, ou precedente, o conjunto histórico de interpretações que o texto teve (HOY, 1987, p. 327). Todavia, não faz nenhuma distinção que possa ser comparada com a distinção entre princípios e regras feitas por Dworkin. Ainda segundo HOY, essa distinção pode nem mesmo ajudar a afirmação de Dworkin de que sempre há uma resposta correta (HOY, 1987, p. 337). Ainda assim, a distinção feita por Dworkin é capaz de ajudar a resolver o problema da discricionariedade em sentido forte da doutrina positivista. A escolha entre uma ou outra abordagem afeta a resposta aos casos difíceis. Se escolhermos a primeira orientação, aceitaremos que o juiz está aplicando direitos e obrigações jurídicas preexistentes ao caso apresentado. Se adotarmos a segunda orientação, deveremos reconhecer que em algumas decisões a parte REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 11-revista_07.p65 147 29/10/2007, 21:43 147 O Princípio da Integridade como Modelo de Interpretação Construtiva do Direito em Ronald Dworkin sucumbente foi privada de seus bens por um ato discricionário do juiz (DWORKIN, 2002, p. 49). Neste ponto, a argumentação de Dworkin supera a argumentação do positivismo jurídico, uma vez que não aceita a discricionariedade do poder do juiz e encontra uma fundamentação legítima para as decisões tomadas nos casos difíceis. Segundo Ikawa (2006), Dworkin aceita a possibilidade de discricionariedade judicial no sentido fraco e apenas rechaça-a no sentido forte. Analisando o conceito de regra de reconhecimento de Hart, desenvolvido em seu livro O Conceito de Direito (2001), Dworkin denuncia a inconsistência deste modelo para a integração entre princípios e regras. Para ele os positivistas sempre lêem os princípios e políticas como regras, lêem como se fossem padrões tentando ser regras (DWORKIN, 2002, p. 62). Para ele também não é correto trabalhar com o conceito de válido ou não válido com os princípios, uma vez que esse é apenas apropriado para as regras, renunciando aí a abrangência dos princípios pela regra de reconhecimento. (DWORKIN, 2002, p. 66) O autor conclui que não é possível adaptar a versão de Hart do positivismo, modificando sua regra de reconhecimento para incluir princípios (DWORKIN, 2002, p. 69). Então lança a questão: “Se nenhuma regra de reconhecimento pode fornecer um teste para identificar princípios, por que não dizer que os princípios constituem a última instância e constituem a regra de reconhecimento no nosso direito”? Mas isso não é possível, tendo em vista que não é possível enumerar todos os princípios que fazem parte de um direito vigente. Por isso, para que seja possível tratar os princípios como direito, deve-se rejeitar a doutrina positivista (DWORKIN, 2002, p. 72). Entende-se, então, que os princípios não podem ser considerados válidos ou não-válidos. Eles entram em conflito uns com os outros e interagem. Fornecem justificativas a favor de uma determinada solução de um caso difícil, mas não a estipula. E, sua não aplicação em determinado caso não indica que não é válido. Poderá ser aplicado em outro caso. Não existe um número fixo de padrões, dos quais se pode dizer que tantos são regras e outros são princípios. Não cabe na concepção de Dworkin um conjunto fixo de padrões. 148 3 CASOS DIFÍCEIS Segundo o positivismo jurídico, diante dos casos difíceis, os juízes possuem poder discricionário para decidir. Casos difíceis são aqueles que não podem ser decididos apenas com base em regras, ou porque essas não são claras, ou porque não foram escritas. Em virtude dessa similitude de termos, Ikawa (2004) explica que o termo hard cases utilizado por Dworkin, é sinônimo de lacuna da lei, utilizado pelos positivistas e por Herbert Hart.4 A partir dessa teoria, quando o juiz decide um caso difícil, ele legisla novos direitos jurídicos, e os aplica retroativamente. Por isso essa teoria da decisão é totalmente inadequada, uma vez que causa insegurança jurídica e, provavelmente, gera decisões injustas (DWORKIN, 2002, p. 128). Dworkin afirma que uma teoria geral sobre a validade da lei não é uma teoria neutra, como defendem os positivistas, entre eles seu interlocutor Herbert Hart. Para Dworkin, uma teoria sobre a validade das leis é sempre interpretativa, e é o modo como se deve interpretála que deve ser justificado (DWORKIN, 2004, p.2). Criticando Dworkin, Postema (1987, p. 286-287) assevera que, segundo a teoria dele, as deliberações legais podem ser iluminadas a partir da prática social de interpretação geral. Porém essa concepção esbarra em dois problemas: a) onde há desacordo entre os participantes da comunidade personificada, será necessário escolher de maneira arbitrária alguns participantes como porta-vozes; e 2) onde há um consenso forte entre os participantes da comunidade personificada, não existe possibilidade de nenhuma crítica desafiadora do pensamento dominante. 4 Sobre o debate entre Hart e Dworkin ler também: DMITRUK, Erika. O que é o Direito? Uma análise a partir de Hart e Dworkin. Revista Jurídica da Unifil. nº. 1. Londrina, 2004. p. 71-88. CARRIÓ, Genaro. Notas sobre Derecho y Lenguage. 4 ed. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1990. p. 321-328. HART, H. L. A.; DWORKIN, R. La decisión judicial. Studio preliminar de César Rodrigues. Universidade de Los Andes, 1997, p. 15. HART, H.L.A. O conceito de Direito. (com pósescrito editado por Penélope A. Bulloch e Joseph Raz). 3ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 11-revista_07.p65 148 29/10/2007, 21:43 Erika Juliana Dmitruk Um caso será difícil quando um juiz, em sua análise preliminar, não encontrar uma interpretação que se sobreponha a outra, entre duas ou mais interpretações de uma lei ou de um julgado (DWORKIN, 2003, p. 306). Uma lei só será considerada obscura quando existirem bons argumentos para mais de uma interpretação em confronto (DWORKIN, 2003, p. 421). Em vista desse posicionamento, tornou-se necessário desenvolver uma nova teoria da decisão, uma vez que deve-ser garantir a uma das partes o direito de uma resposta favorável mesmo que não haja um precedente estrito ou uma lei específica. O juiz não deve, de forma alguma, criar novos direitos que valham retroativamente (DWORKIN, 2002, p. 128). Para que se descubram quais direitos a parte tem, é necessário que se conheçam os princípios políticos que inspiraram a Constituição. Esses princípios auxiliam a leitura da Constituição, limitando seu conteúdo e auxiliando nos casos difíceis. Mesmo as decisões dos tribunais que são consideradas decisões políticas importantes, podem ser lidas como decisões tomadas com base em princípios, uma vez que as decisões de princípios são aquelas baseadas nos direitos que as pessoas têm a partir da Constituição, e não em políticas que buscam realizar objetivos coletivos (DWORKIN, 2000, p.101; 2002, p. 133). As decisões judiciais não originais, que apenas aplicam os termos claros de uma lei de validade inquestionável, são sempre justificadas pelos argumentos de princípio, mesmo que a lei em si tenha sido gerada por uma política (DWORKIN, 2002, p. 131). Muitas vezes é possível confundir argumentos de princípio com argumentos de política, todavia deve-se ater a orientação de Dworkin, onde argumentos de princípios falam sobre direitos que as pessoas têm em face do ordenamento jurídico e argumentos de política falam sobre objetivos coletivos que o Estado pretende alcançar. Segundo a teoria dos direitos, desenvolvida no livro Levando os Direitos a Sério, aplicada pelo juiz filósofo Hércules, existe um caminho para se chegar a uma resposta correta nos casos difíceis. Hércules é um juiz que aceita as leis, e acredita que os juízes têm o dever geral de seguir as decisões anteriores de seu tribunal ou dos tribunais superiores. Hércules precisa descobrir a intenção da lei – ponte entre a justificação política da idéia geral de que as leis criam direitos e aqueles casos difíceis que interrogam sobre que direitos foram criados por uma lei específica. E também o conceito de princípios que subjazem às regras positivas do direito, fazendo uma ponte entre a justificação política da doutrina segundo a qual os casos semelhantes devem ser decididos da mesma maneira e aqueles casos difíceis nos quais não fica claro o que essa regra requer. Assim, em primeiro lugar, estudará a Constituição, procurando entender as regras que ela contém, as interpretações judiciais anteriores, e a filosofia política que embasa os direitos ali dispostos (DWORKIN, 2002, p. 165-168). Depois disso procurará a interpretação que vincula de modo mais satisfatório o disposto pelo legislativo a partir das leis promulgadas e suas responsabilidade como juiz (DWORKIN, 2002, p. 169). Ainda se perguntará qual argumento de princípio e de política convenceria o poder legislativo a promulgar a lei sob estudo. Hércules também utilizará uma teoria política para interpretar a lei, para descobrir o seu fim (DWORKIN, 2002, p. 168-171). O terceiro passo em sua busca pela melhor resposta é a análise dos precedentes, no caso de o problema a ele submetido não ser regulado por nenhuma. Ao analisar os precedentes, Hércules levará em conta os argumentos de princípio que o embasaram. Mas, uma vez que Hércules será levado a aceitar a tese dos direitos, sua interpretação das decisões judiciais será diferente de sua interpretação das leis em um aspecto importante. Quando interpreta as leis, ele atribui à linguagem jurídica, como vimos, argumentos de princípio ou de política que fornecem a melhor justificação dessa linguagem à luz das responsabilidades do poder legislativo. Sua argumentação continua sendo um argumento de princípio. Ele usa a política para determinar que direitos já foram criados pelo Legislativo. Mas, quando interpreta as decisões judiciais, atribuirá à linguagem relevante apenas argumentos de princípio, pois a tese dos direitos sustenta que somente tais argumentos correspondem à responsabilidade do tribunal em que foram promulgadas (DWORKIN, 2002, p.173). REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 11-revista_07.p65 149 29/10/2007, 21:43 149 O Princípio da Integridade como Modelo de Interpretação Construtiva do Direito em Ronald Dworkin 150 Ao estudar os precedentes, Hércules terá que distinguir sua força gravitacional nas decisões posteriores. A força gravitacional de um precedente, segundo Dworkin, repousa na eqüidade, os casos semelhantes devem ser tratados do mesmo modo (DWORKIN, 2002, p. 176). Para definir a força gravitacional de um precedente, Hércules só levará em consideração os argumentos de princípio que justificam esse precedente. Ainda como desdobramento dos seus estudos sobre os precedentes, Hércules construirá uma cadeia de princípios que fundamentam o direito costumeiro, a partir das justificações dadas nas decisões pretéritas (DWORKIN, 2002, p. 181). Esses princípios devem ser capazes de justificar de maneira coerente porque determinadas decisões foram tomadas (DWORKIN, 2002, p. 182). O primeiro passo dessa tarefa hercúlea será especificar a teoria constitucional que já utilizou quando se perguntou sobre quais responsabilidades o sistema político lança sobre o legislador (DWORKIN, 2002, p. 183). Mesmo seguindo todo esse caminho, Hércules sabe da possibilidade de encontrar decisões incoerentes. Por isso precisa também de uma teoria sobre os erros. Ele construirá a primeira parte de sua teoria dos erros por meio de dois conjuntos de distinções. Distinguirá autoridade específica, que é o poder de uma lei ou precedente, ou decisão executiva, de produzir exatamente os efeitos nela dispostos (por exemplo, uma lei que obrigue companhias aéreas a indenizar seus passageiros por atrasos de vôo); das conseqüências institucionais, que definem o seu poder gravitacional (com base no postulado anterior, exigir que as companhias de ônibus indenizem seus passageiros por atraso). A segunda distinção trata de erros enraizados, que apesar da perda do poder gravitacional, os efeitos específicos continuam, e os erros passíveis de correção, cuja perda do poder gravitacional gera a perda da autoridade específica (2002, p. 189-190). O nível constitucional de sua teoria irá determinar quais são os erros enraizados. A segunda parte da sua teoria deve demonstrar que é melhor que ela exista do que o não reconhecimento dos erros, ou o reconhecimento dos erros de uma forma diferente (2002, p.190). Hércules utilizará duas ordens de argumentos para demonstrar que uma determinada corrente jurisprudencial está errada. Valer-se-á de argumentos históricos ou de uma percepção geral da comunidade, para mostrar que um determinado princípio que já foi historicamente importante, hoje não é mais, não exerce força suficiente para gerar uma decisão jurídica. Também utilizará argumentos de moralidade política, demonstrando que tal decisão ou princípio fere a eqüidade, é injusto (DWORKIN, 2002, p. 191). É preciso afirmar que Hércules não possui um método para os casos difíceis e outro para os casos fáceis. Seu método é aplicável a qualquer caso, todavia, nos casos fáceis, as respostas são evidentes, e por isso não se tem a certeza de estar-se aplicando um método para resolvê-los (DWORKIN, 2003, p. 423). 4 A INTEGRIDADE Para Dworkin, a interpretação do Direito se dá pela reconstrução deste a partir das próprias práticas da sociedade personificada. Para isso, divide o processo de interpretação construtiva em três partes: uma pré-interpretativa, onde são identificadas regras e padrões já utilizados; uma etapa interpretativa, onde busca-se uma justificação geral para as regras e padrões identificados na etapa pré-interpretativa; e uma etapa pós-interpretativa, onde ajusta a prática identificada na etapa pré-interpretativa com a justificação da etapa interpretativa (DWORKIM, 2003, p. 81-82). As interpretações dadas ao Direito são mutáveis e o que em uma época é incontestável, em outra sofre sérias críticas. O que em uma época é considerada uma interpretação radical, em outro momento é aceito (DWORKIN, 2003, p. 109-112). Por isso, Dworkin acredita ser tão importante o estudo das decisões judiciais, já que o Direito é um romance em cadeia, cada voto de qualquer juiz é um capítulo deste romance. Um filósofo do direito, ao estudar e pesquisar as práticas jurídicas existentes, poderá se deparar com um conjunto quase estanque de princípios. Assim, uma nova discussão REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 11-revista_07.p65 150 29/10/2007, 21:43 Erika Juliana Dmitruk sobre o direito existente pode ser revolucionária. O objetivo de Dworkin é discutir de que maneira pode-se guiar e restringir o poder de coerção do Direito através de uma teoria interpretativa que trabalhe com uma comunidade de princípios, onde o sistema de direitos e responsabilidades sejam coerentes (DWORKIN, 2003, p. 116). Para isso, defenderá a existência de uma virtude política não tradicional. Ao lado da justiça e devido processo legal, Dworkin colocará uma terceira virtude, a qual denomina integridade (DWORKIN, 2003, p. 199-201). A integridade refere-se ao compromisso de que o governo aja de modo coerente e fundamentado em princípios com todos os seus cidadãos, afim de estender a cada um os padrões fundamentais de justiça e equidade (DWORKIN, 2003, p. 201-202). Segundo Dworkin (2003, p. 203), será mais fácil entender a interpretação construtiva do Direito, se se aceitar a integridade como uma virtude política, uma vez que as exigências da mesma se dividem em integridade na legislação (que solicita aos legisladores que produzam leis coerentes com os princípios) e a integridade no julgamento (que solicita aos que julgam o façam também de forma coerente com os princípios). O fato de Dworkin considerar a integridade como uma virtude política aplicável ao Direito é considerado um ato de extremo otimismo, uma vez que esta exige a coerência de um corpo de normas feito sem critério e ao acaso (HOY, 1987, p. 345). Por isso mesmo não é possível pensar que o aperfeiçoamento desta virtude se dê de maneira simples. Para sua realização, a integridade política supõe uma personificação profunda da comunidade. Pressupõe que esta se engaje na fomentação dos princípios de equidade, justiça e devido processo legal, e que honre essas virtudes. A idéia de integridade política personifica a comunidade como um agente moral, atuante, pressupondo que a comunidade pode adotar, expressar e ser fiel ou infiel a princípios próprios, diferentes daqueles de quaisquer de seus dirigentes ou cidadãos enquanto indivíduos (DWORKIN, 2003, p. 203-205). A partir dessas considerações, é possível entender que o princípio da integridade não admite que uma comunidade personificada aplique direitos diferentes, que não podem ser definidos como um conjunto coerente com os princípios de justiça, equidade e devido processo legal. Dworkin (2003, p. 225) defende que o princípio da integridade, nos Estados Unidos, está incluído na cláusula de igual proteção da Décima Quarta Emenda. Da mesma forma, quando se discute a igual proteção nas cortes norte-americanas, discute-se a igualdade formal e a exigência de integridade do sistema. Ainda é possível entender o princípio da integridade na reivindicação de fraternidade, na Revolução Francesa, ou a partir de seu nome mais comum, comunidade. Para o autor estudado neste artigo, “uma sociedade política que aceita a integridade como virtude política se transforma, desse modo, em uma forma especial de comunidade, especial num sentido que promove sua autoridade moral para assumir e mobilizar monopólio de força coercitiva” (DWORKIN, 2003, p. 228). Como conseqüências práticas da integridade, Dworkin assevera o fato de que a integridade contribui para a eficiência do direito, uma vez que quando as pessoas são governadas por princípios há menos necessidade de regras explícitas, e o Direito pode expandir-se e contrairse organicamente, na medida em que se entenda o que eles exigem em novas circunstâncias (DWORKIN, 2003, p. 229). São vislumbradas também conseqüências morais, tais como, a possibilidade de que cada cidadão aceitar as exigências que lhe são feitas e fazer exigências aos outros, que compartilham e ampliam a dimensão moral de quaisquer decisões políticas explícitas (DWORKIN, 2003, p. 230). Dworkin descreve três modelos gerais de prática associativas, um primeiro onde os membros supõem que sua associação não passa de um acidente de fato da história e da geografia; o segundo chamado de modelo das regras, onde os membros aceitam o compromisso geral de obedecer às regras estabelecidas conforme um modo pré-determinado, e o terceiro modelo, defendido por ele, que é o modelo do princípio. Neste terceiro modelo de comunidade os membros aceitam que são governados por princípios comuns e não apenas por regras criadas por um REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 11-revista_07.p65 151 29/10/2007, 21:43 151 O Princípio da Integridade como Modelo de Interpretação Construtiva do Direito em Ronald Dworkin acordo político. Admitem que seus direitos e deveres políticos não se esgotam nas decisões particulares constantes nas regras, mas dependem, de maneira mais ampla, do sistema de princípios que essas decisões pressupõem (DWORKIN, 2003, p. 252-255). Qualquer interpretação construtiva bem sucedida das práticas políticas deve reconhecer a integridade como um ideal político distinto. Neste sentido, a integridade é a chave para a melhor interpretação construtiva de nossas práticas jurídicas distintas e, particularmente, do modo como os juízes decidem os casos difíceis nos tribunais. A integridade não se reduz a coerência do ordenamento jurídico. Ela vai além, pois exige que as normas públicas da comunidade sejam criadas e vistas, na medida do possível, de modo a expressar um sistema único e coerente de justiça e equidade, na correta proporção (DWORKIN, 2003, p. 264). 5 INTEGRIDADE NO DIREITO 152 O princípio da integridade no direito é um desdobramento do método de Hércules já explicitado ao falar do seu método de julgar os casos difíceis. Em O Império do Direito, Dworkin elabora de maneira mais completa sua tese dos direitos. Dworkin percebe a construção da prática jurídica como a elaboração de um romance em cadeia. Sua visão do direito como integridade aborda as afirmações jurídicas como opiniões interpretativas, que tanto se voltam para o passado quanto para o futuro, e estão em processo ininterrupto de desenvolvimento. Para que seja válido o esforço de interpretar o direito como integridade, os juízes devem, nos limites do possível, identificar os direitos e deveres como se tivessem sido criados por um único autor, a comunidade personificada. Essa exigência é necessária uma vez que entende-se que as proposições jurídicas são válidas quando derivam dos princípios de justiça, equidade e devido processo legal, oferecendo a melhor interpretação do direito (DWORKIN, 2003, p. 271272). Neste ponto da teoria de Dworkin é que surge uma das principais críticas feitas ao seu método por Habermas. A impossibilidade de se conceber o direito de uma comunidade feito por um só autor, e a solidão de Hércules que, ao decidir sozinho, são os principais pontos fracos da teoria. O fato de Hércules estudar o direito na solidão de seu gabinete, nega ao mesmo um interlocutor qualificado e a possibilidade de aprimorar seus argumentos, faltando também pressupostos da teoria do discurso (HABERMAS, 1997, p. 276-277). Apesar da crítica feita por Habermas, deve-se considerar o fato de que Hércules possui um padrão de qualidade, e tem como objetivo sempre buscar a melhor resposta jurídica para o problema apresentado, inobstante o fato de não possuir um interlocutor que se esmere tanto quanto ele na construção do direito como integridade. Todavia, Dworkin não ignora que a autoria do direito como integridade é múltipla, tanto que prevê seu desenvolvimento como o de um romance em cadeia, onde cada intérprete, ao escrever o próximo capítulo, deve encontrar o melhor desenvolvimento da história (DWORKIN, 2003, p. 274-276) Também deve-se asseverar que Dworkin (2003, p. 316) não imagina que todos os juízes tornem-se Hércules. Para ele a utilidade de Hércules decorre do fato dele ser mais reflexivo e auto-consciente do que qualquer juiz. Além disso, Hércules não conta com a limitação de prazo para tomar decisões e age como se tivesse toda sua carreira para se dedicar a uma decisão. O caminho feito por Hércules para encontrar a melhor resposta a um problema jurídico difícil é, em linhas gerais, o seguinte: 1) encontrar, uma teoria coerente sobre os direitos em conflito, tal que um membro do legislativo ou do executivo, com a mesma teoria, pudesse chegar a maioria dos resultados que as decisões anteriores dos tribunais relatam; 2) Selecionar diversas hipóteses que possam corresponder à melhor interpretação do histórico das decisões anteriores; caso elas se contradigam é necessário encontrar uma correta; 3) Encontrar a hipótese correta, a partir do pensamento de que o direito é estruturado por um conjunto coerente de princípios sobre justiça e equidade e o devido processo legal adjetivo, e que esses princípios devem ser aplicados de REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 11-revista_07.p65 152 29/10/2007, 21:43 Erika Juliana Dmitruk forma a garantir a aplicação justa e eqüitativa do direito. A partir de uma teoria coerente sobre política e direito é possível encontrar uma resposta satisfatória quando princípios conflitam (DWORKIN, 2003, p. 253); 4) Eliminar toda hipótese que seja incompatível com a prática jurídica de um ponto de vista geral. 5) Colocar a interpretação à prova. Perguntar-se-á se essa interpretação é coerente o bastante para justificar as estruturas e decisões políticas anteriores de sua comunidade (DWORKIN, 2003, p. 288-294). Neste momento Dworkin justifica o nome de Hércules, uma vez que nenhum juiz real poderia aproximar-se da tarefa que a ele foi confiada. Hércules também desenvolve métodos distintos, para aplicação do common law, das leis e da Constituição. Para fins desta pesquisa, aprofundar-se seu método no que concerne às leis e à Constituição, já que o modelo de Direito pátrio é o romano-germânico e não o common law. Para analisar uma lei, Hércules tratará o Congresso como um autor anterior a ele na cadeia do Direito. Todavia, tem a clareza de que este autor possui poderes e responsabilidades diferentes dos seus. Hércules deverá procurar a melhor interpretação da lei com base em suas próprias convicções, analisando também o histórico desta lei. Abordará as declarações oficiais dos legisladores e atos políticos relacionados ao texto que pretende interpretar. A interpretação construtiva de Dworkin (2003, 377-380) contrapõe-se à interpretação conversacional, a qual procura aceitar o ponto de vista da intenção do locutor. Hércules perceberá nas declarações de propósitos oficias como decisões políticas, englobando-as na interpretação das leis (DWORKIN, 2003, p. 410). Repetindo e aprofundando o processo exposto no livro Levando os Direitos à Sério, a integridade exige que Hércules elabore uma justificativa para a aplicação da lei. Essa justificativa deve ser coerente com o restante da legislação vigente (DWORKIN, 2003, 407). Poderá até levar em conta a opinião pública geral (DWORKIN, 2003, p. 409). Hércules interpreta não só o texto da lei, mas também sua vida, o processo que se inicia antes que ela se transforme em lei e se estende para além desse momento. Para interpretação da Constituição um outro método é necessário, tendo em vista que a Constituição é um tipo especial de norma. Os tribunais superiores têm o poder de julgar a compatibilidade de uma norma ou ação governamental com a Constituição, um poder bastante amplo e que deve ser utilizado respeitando as virtudes políticas. Ao tratar de normas constitucionais, Hércules não se considera nem um passivista nem um ativista. Acredita, assim como em outros casos, que “sob o regime do direito como integridade, os problemas constitucionais polêmicos pedem uma interpretação, não uma emenda” (DWORKIN, 2003, p. 442). Qualquer interpretação competente da Constituição como um todo deve reconhecer que alguns direitos constitucionais se destinam a impedir que as maiorias sigam suas próprias convicções quanto ao que a justiça requer. O julgamento interpretativo de Hércules exigirá o envolvimento das virtudes políticas e a averiguação de compatibilidade delas com os mandamentos constitucionais (DWORKIN, 2003, p. 442-450). Inicia seu processo interpretativo pesquisando a melhor teoria de interpretação disponível e após elabora uma que se aplique aos fins constitucionais, sempre sujeita a revisões posteriores. Uma interpretação feita a partir do princípio da integridade deve sempre respeitar as limitações institucionais, quais sejam a supremacia legislativa e o precedente estrito nos países do common law (DWORKIN, 2003, p.472- 479). Finalizando, existe para Dworkin (2003, p.483-484), dois tipos de integridade, a integridade inclusiva, que reflete-se na interpretação do juiz quando este constrói uma teoria geral do direito a fim de refletir, da maneira mais coerente possível, os princípios de equidade, justiça e devido processo legal. É a aplicação prática da integridade, e está presente em nosso ordenamento jurídico. E a integridade pura, uma ambição maior do direito moderno, a qual funciona como um horizonte a ser buscado. A integridade pura é composta de princípios de justiça que justificam o direito contemporâneo, sem levar em conta as restrições institucionais exigidas pela integridade inclusiva.. Essa interpretação purificada se dirige diretamente à comunidade personificada (DWORKIN, 2003, p. 485). REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 11-revista_07.p65 153 29/10/2007, 21:43 153 O Princípio da Integridade como Modelo de Interpretação Construtiva do Direito em Ronald Dworkin 6 CONCLUSÃO 154 O presente artigo teve como objetivo o esclarecimento acerca da teoria de Ronald Dworkin sobre a resolução dos casos difíceis. Para isso, foi necessário encontrar a definição de alguns conceitos básicos para o autor, como o conceito de regras, princípios, políticas, integridade, hard cases. Além disso, foi necessário também descrever a teoria da decisão construtiva do Juiz Hércules, e desenvolver as suas idéias sobre a teoria dos direitos. Analisou-se o valor político batizado por Dworkin de integridade e suas repercussões no campo das decisões políticas, legislativas e jurídicas, bem como seus reflexos no entendimento do Direito como um conjunto coerente de normas. Também, vislumbrou-se a possibilidade de um caminho ainda mais perfeito para a interpretação, denominado por Dworkin de princípio da integridade pura. Uma teoria que conta com a vantagem de não estar, necessariamente, ligada aos casos concretos. Infere-se dos estudos realizados que a sofisticada teoria de Ronald Dworkin, apesar da complexidade de seus métodos, a dedicação e o tempo de Hércules, ainda encontra muitos críticos e opositores, e está longe de constituir-se uma unanimidade. Para alguns, o ponto mais fraco de sua teoria é a ficção de que o direito tenha um só legislador, a comunidade personificada. Tal ficção se torna bastante importante para interpretar o direito como integridade. Para outros, é difícil absorver a importância do pensamento de um juiz que tem a carreira toda para resolver um único caso, e que por isso ,não possui a limitação dos juízes comuns. Há também aqueles que consideram sua teoria demasiadamente otimista. A confusão entre moral e direito também é citada por autores que criticam sua teoria. Mas, sem dúvida, a parte de sua teoria que mais gera desconforto é a afirmação de que, mesmo nos casos difíceis, há apenas uma resposta correta. Mesmo assim, a “hermenêutica política” de Dworkin é importante. O fato de ser debatida e discutida por tantos teóricos, ao invés de diminuir o valor de seu trabalho, apenas agrega valor. Esta é a riqueza da comunidade científica. REFERÊNCIAS BAHIA, Alexandre G. M. F. Ingeborg Maus e o Judiciário como Superego da Sociedade. In: Revista CEJ, Brasília, n. 30, jul/set 2005. p. 10-12. BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. (Trad.) Maria Celeste Cordeiro Leite dos Santos. 10. ed. Brasília: UNB, 1999. COUTINHO, Kalyani R. M. A proposta de Ronald Dworkin na interpretação judicial dos hard cases. avocato.com.br. Brasília, n. 0006, nov. 2003. Disponível em:<http://www.avocato.com.br/ doutrina/ed0006.2003.icn0001.htm>. Acesso em: 5 mar 2006. DWORKIN, Ronald. Uma Questão de Princípio. (Trad.) Luis Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2000. ______ . Do values conflict? A Hedgehog’s approach. In: Arizona Law Review. v. 43:2, 2001. p. 251-259. ______ . Levando os Direitos a Sério. (Trad.) Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002. ______ . O Império do Direito. (Trad.) Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fonte, 2003. ______ . Hart’s Postscript and the Character of Political Philosophy. In: Oxford Journal of Legal Studies v. 24, n 1, 2004, p. 1-37. REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 11-revista_07.p65 154 29/10/2007, 21:43 Erika Juliana Dmitruk FALLON JR, Richard H. Reflections on Dworkin and the two faces of law. Notre Dame Law Review. n. 553, 1992. HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre a facticidade e falidade. v. 1. (Trad.) FLávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. HART, HERBERT L. A. O Conceito de Direito. (Trad.) A. Ribeiro Mendes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001. HOY, David Couzens. Dworkin’s constructive optimism v. desconstructive legal nihilism. In: Law and Philosophy. v. 6, n. 3, December 1987, p. 323-356. IKAWA, Daniela R. Hart, Dworkin and discretion. Lua Nova (online). 2004, n. 61, p. 91-113. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php>. Acesso em: 05 mar 2006. OLIVEIRA JUNIOR, José Alcebíades de. Ronald Dworkin e a Dissolução da Oposição Jus Naturalismo e Positivismo Jurídico. POSTEMA, Gerald J. “Protestant” Interpretation and Social Practices. In: Law and Philosophy. v. 6. n. 3. December 1987, p. 283-319. WOLKMER, Antonio C. Introdução ao Pensamento Jurídico Crítico. 5. ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2006. 155 REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 11-revista_07.p65 155 29/10/2007, 21:43 Estudos de Casos 12-revista_07.p65 157 29/10/2007, 21:43 Ester Okamoto Della Costa e Raquel Sanchez de Lima PROTEÇÃO DA CRIANÇA EM FACE DA PUBLICIDADE DE MEDICAMENTOS INFANTIS1 Ester Okamoto Della Costa* Raquel Sanchez de Lima* RESUMO Dispõe sobre a proteção da criança diante da publicidade de medicamentos infantis. Depois de fornecer noções fundamentais e conceitos de publicidade, analisa a legislação sobre o assunto, tendo por base normas de áreas diversas do direito, para avaliar a situação da criança destinatária do medicamento. Palavras-chave: Defesa do Consumidor. Publicidade. Publicidade de Medicamentos. Público Infantil. PROTECTION OF THE CHILD IN FACE OF THE INFANTILE MEDICINE ADVERTISING ABSTRACT It relates the protection of children in the face of the advertising of infant medicines. After providing basic concepts and notion of advertising, it examines the law on the subject, based on standards of various areas of law, to evaluate the situation of the child addressed the medicine. Keywords: Consumer Protection. Advertising. Advertising for Drugs. Infant Public. 1 INTRODUÇÃO Em uma sociedade de consumo, a principal forma de convencer o consumidor de adquirir determinado produto é através da publicidade. Diante disso, esta tem sido uma técnica muito utilizada pela indústria, inclusive a indústria farmacêutica. Ocorre que o consumo inadequado de medicamento causa conseqüências graves à saúde das pessoas. Além disso, no caso de medicamentos de uso infantil, deve ser ressaltado que a criança não é um adulto em tamanho menor, pois a criança está em desenvolvimento, tanto físico quanto intelectual, e o consumo inadequado de medicamento pode causar dano no seu desenvolvimento físico e até uma dependência em relação ao consumo de medicamentos. Por isso, deve-se analisar o que vem a ser publicidade e quais as espécies permitidas na legislação brasileira, destacando-se que são proibidas as que influenciem negativamente as crianças, abusando de sua inexperiência. 1 Artigo resultou da pesquisa desenvolvida no sub-projeto de pesquisa “Proteção da criança em face da publicidade abusiva de medicamentos infantis”, conseqüente do projeto de pesquisa Uel-Anvisa “Projeto de Monitoração da propaganda e, alimentos especiais e produtos para saúde.” * Farmacêutica, especialista em Bioética e Saúde Pública, mestre em saúde coletiva e doutoranda em Saúde Pública, coordenadora do projeto de pesquisa de monitoramento de propaganda de medicamentos Uel-Anvisa. * Advogada, especialista em Bioética, colaboradora do projeto de pesquisa de monitoramento de propaganda de medicamentos Uel-Anvisa. REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 12-revista_07.p65 159 29/10/2007, 21:43 159 Proteção da Criança em Face da Publicidade de Medicamentos Infantis Além do Código de Defesa do Consumidor, o Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu Art. 7º, protege a vida e a saúde da criança e do adolescente, sendo este dispositivo legal desconsiderado no momento da produção de publicidade de medicamento de uso infantil, pois estaria prejudicando sua saúde, podendo até estar infringindo o direito à vida da criança vítima desta publicidade. Assim, faz-se necessário analisar como poderia ser a proteção dessas crianças que se encontram vulneráveis diante da imensa gama de publicidade de medicamento infantis. 2 DA PUBLICIDADE No Brasil a publicidade vem evoluindo de forma notável. Deve-se ligar este fato ao progresso industrial. Há um tipo de correlação entre a indústria e a publicidade, ou seja, à medida que um cresce, o outro acompanha este crescimento. Não se pode imaginar este exacerbado mercado consumidor sem o efeito da publicidade que conseqüentemente permitiu o surgimento da fabricação em série, base do desenvolvimento da indústria moderna. Ao analisar o verbo vender numa interpretação mais ampla de que se chegue aos outros a mensagem capaz de interessá-los em determinada ação, a finalidade principal da publicidade é vender. Não se deve, no entanto ter a idéia extrema que a única finalidade da publicidade é vender determinada mercadoria ou serviço. Ela influência bastante e motiva a venda. Porém, sem os demais fatores essenciais: qualidade, apresentação do artigo, preço, dentre outros, seria também insensato demais querer que a publicidade atingisse na sua plenitude os objetivos almejados (SILVA, 2005). 160 Publicidade é “toda atividade destinada a estimular o consumo de bens e serviços, bem como promover instituições, conceitos e idéias”, conceito dado pelo Conselho de AutoRegulamentação Publicitária (CONAR). Cláudia Lima Marques conceitua como “toda a informação ou comunicação difundida com o fim direto ou indireto de promover, junto aos consumidores, a aquisição de um produto ou a utilização de um serviço, qualquer que seja o local ou meio de comunicação utilizado” (VIEIRA, 2005). A publicidade passou a mudar hábitos e ditar comportamentos aos cidadãos. Hermano Duval Comparato (apud ALMEIDA, 2003, p. 85) explica este fenômeno da seguinte forma: É um fato notório que a mensagem publicitária vai, hoje, além da mera informação. Em uma primeira etapa, ela informa; na segunda, sugestiona, e, na terceira, ela capta em definitivo o consumidor. De tanto insistir na mesma tecla, mas sempre revestida de novos recursos propiciados pela chamada ‘criatividade’,... a publicidade comercial passa habilmente da informação à sugestão e desta à captação, isto é, eliminação no consumidor de sua capacidade crítica ou censura ao que lhe é proposto (anunciado), o que importa numa violação ao princípio da liberdade de pensamento. E ao fim de tantas e marteladas repetições, incapaz de distinguir a sugestão do erro, o público consumidor apresenta-se ‘condicionado’ a mensagem, isto é, fica com o produto anunciado para ‘libertar-se’ de sua promoção, rejeitando, assim, qualquer outra informação ou crítica, para só se decidir pela que ficou ‘condicionado’. Nesta fase, a pior comunicação publicitária é a da chamada ‘publicidade subliminar’, de que se aproxima a ‘publicidade redacional’... Claro que o processo de ‘condicionamento’ é psicológico, mas o de sua imposição está na função moderna da publicidade. Ontem, advertiu Linsdsay Roger, importava saber o que a opinião pública queria, hoje importa decidir o que ela deve querer. REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 12-revista_07.p65 160 29/10/2007, 21:43 Ester Okamoto Della Costa e Raquel Sanchez de Lima Além disso, deve-se destacar que propaganda e publicidade são coisas diferentes, pois a publicidade tem objetivo comercial, enquanto que a propaganda visa a um fim ideológico, religioso, filosófico, político, econômico ou social. Ademais, a publicidade é paga e identifica seu patrocinador, fato que nem sempre sucede com a propaganda. Assim, percebe-se que o consumidor encontra-se a mercê de publicidades, sem conseguir discernir corretamente o que é real ou não. Embora tenha se regulamentado a publicidade de forma geral, esta é superficial e epidérmica. Isto porque ela sempre foi vista como concorrência desleal e relacionada a proteção da propriedade industrial, perdendo o enfoque principal que é a indução do consumidor, deixando o consumidor em segundo plano. Mesmo quando o Conar – Conselho Nacional de Auto-Regulamentação Publicitária percebia que esta não era adequada, não podiam tirá-la do ar, não havendo grandes conseqüências à empresa que divulgava a publicidade. A publicidade é norteada por dois princípios o da liberdade e o da boa-fé. O princípio da publicidade é relativa a livre concorrência e iniciativa. Além disso, sofre influência atenuada dos princípios da manifestação de pensamento e o da liberdade de informação, pois a publicidade é uma atividade relacionada à atividade comercial. O outro princípio é o da Boa-fé que está expressamente disposto no Art. 4º, CDC, significando que os contratos devem ser menos formais e devem expressar as intenções reais, que serão contraídas. Deve-se, ainda, observar a ajuda mútua para que o contrato chegue até o fim e a contraposição de interesses existentes devem ser respeitados, podendo ser resumido em lealdade e confiança. Paulo V. Jacobina afirma sobre o assunto: O certo é que as partes devem, mutuamente, manter o mínimo de confiança e lealdade, durante todo o processo obrigacional; o seu comportamento deve ser coerente com a intenção manifestada, evitando-se o elemento surpresa, tanto na fase de informação, quanto na de execução, e até mesmo na fase posterior, que se pode chamar de fase de garantia e reposição. É nesse sentido que o princípio da boa-fé foi positivado pelo CDC, no inciso III do art. 4º, e é nesse sentido que a lei fala em harmonização de interesses e equilíbrio nas relações entre fornecedores e consumidores (SILVA, 2005). Com a criação do CDC foi proibida a publicidade abusiva e enganosa, aplicando sanções administrativas, dentre elas a contrapropaganda e a retirada do ar da publicidade proibida e melhorou o acesso à justiça. Ressalta-se que estas penalidades somente são aplicadas a publicidade irregular não interferindo na liberdade de criação. A atividade publicitária deve ser exercida observando alguns princípios, tais como, a identificação da publicidade, ou seja, o consumidor deve saber que o que está vendo é uma publicidade; a veracidade, relativo à honestidade e escorreição; a não abusividade, pois deve preservar valores éticos, não induzindo o consumidor a situações prejudiciais; transparência e fundamentação, que significam que a publicidade deve ser baseada em dados fáticos, técnicos e científicos; a obrigatoriedade do cumprimento ou da vinculação contratual da publicidade, ou seja, ofertou deve cumprir, e por fim, a inversão do ônus da prova, pois o consumidor não tem condições para provar o que está alegando devido a sua vulnerabilidade. Seguindo o princípio da veracidade, a única forma de publicidade permitida no ordenamento jurídico brasileiro é a verdadeira, não podendo existir publicidade simulada, abusiva ou enganosa. A publicidade enganosa é a que deixa de informar dado essencial ou contem informações falsas, mesmo que parcialmente, gerando vício de vontade ao consumidor, podendo-se destacar neste momento a hipossuficiência do consumidor. Como forma de explicar a publicidade enganosa por comissão: “A publicidade enganosa vicia a vontade do consumidor, que, iludido, acaba adquirindo produto ou serviço em desconformidade com o pretendido. A falsidade está diretamente ligada ao erro, numa relação de causalidade” (CARVALHO, 2005). Já a publicidade enganosa por omissão consiste na falta de informação acerca de um dado essencial do produto e Adalberto Pascoalotto a explica da seguinte forma: “Mesmo REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 12-revista_07.p65 161 29/10/2007, 21:43 161 Proteção da Criança em Face da Publicidade de Medicamentos Infantis sendo verdadeira, uma comunicação publicitária pode ser falsa, inteira ou parcialmente. A situação é freqüente quando há omissão de algum dado necessário ao conhecimento do consumidor, provavelmente determinante da compra” (CARVALHO, 2005). Pode-se considerar abusiva a publicidade discriminatória, que incite a violência ou que explore medo ou superstição, se aproveite de deficiência de julgamento e experiência de criança, violando valores éticos da sociedade. Ambas estão proibidas pelo Art. 37, CDC. Este tipo de publicidade não está relacionado apenas às informações divulgadas, mas também à forma que ela é divulgada. Devem sempre ser observadoS os princípios éticos, morais e culturais, não podendo ser utilizados como uma arma. Ressalta-se ainda que a publicidade não deve servir para “empurrar” serviços, tampouco deve aproveitar-se da ingenuidade das crianças para vender mercadorias e serviços. O controle da abusividade da publicidade decorre, aliás, de imposição constitucional, constante no artigo 220, II, e § 4º da Lei Maior. Ali, exige-se que a lei estabeleça os meios que garantam a possibilidade, à pessoa e à família, de se defenderem da propaganda de produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente. Outrossim, o § 4º restringe a propaganda dos produtos ali elencados (tabaco, bebidas alcoólicas, agrotóxicos, medicamentos e terapias) e o art. 221 garante que programação das emissoras de rádio e televisão atenderá ao princípio do respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família. Tudo isso, combinado com o princípio da defesa do consumidor, previsto em diversas passagens da Constituição (ver art. 5º, XXXII, e art. 170, V), dão a necessária fundamentação a tal controle. É preciso lembrar que não existe, no estado de Direito, liberdade fora ou acima do direito. A liberdade é sempre exercida dentro dos limites jurídicos. Se a publicidade não pode se conter dentro dos limites do ordenamento jurídico democrático, há algo errado com a publicidade, não com o ordenamento jurídico (SILVA, 2005). 162 Apesar de todos consumidores serem considerados vulneráveis, este fato se agrava quando se trata de criança, pois além de vulneráveis são hipossuficientes. Apesar disso, um dos principais alvos das empresas são as crianças, pois se aproveitando de sua imaturidade, inocência e ignorância tentam direta e indiretamente persuadi-las em suas mensagens. Para isso, muitas vezes, utilizam crianças para a produção do comercial, pois assim fica mais fácil de convencer outra criança por viverem no mesmo universo. Antônio Herman de Vasconcelos Benjamin (apud SILVA, 2005), manifesta-se entendendo que: tal modalidade publicitária não pode exortar diretamente a criança a comprar um produto ou serviço; não deve encorajar a criança a persuadir seus pais ou qualquer outro adulto (...); não pode explorar a confiança especial que a criança tem em seus pais, professores etc.; as crianças que aparecem nos anúncios não podem se comportar de modo inconsistente com o comportamento natural de outras da mesma idade. Já a publicidade simulada disfarça seu caráter promocional para que o consumidor não perceba que está diante de uma publicidade. Antonio Herman de Vasconcelos Benjamim (apud CARVALHO, 2005) afirma acerca de publicidade simulada: A publicidade há que ser identificada pelo consumidor. O legislador brasileiro não aceitou nem a publicidade clandestina, nem a subliminar (...) publicidade que não quer assumir a sua qualidade é atividade que, de uma forma ou de outra, tenta enganar o consumidor. E o engano, mesmo o inocente, é repudiado pelo Código de Defesa do Consumidor (...) O dispositivo visa REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 12-revista_07.p65 162 29/10/2007, 21:43 Ester Okamoto Della Costa e Raquel Sanchez de Lima impedir que a publicidade, embora atingindo o consumidor, não seja por ele percebida como tal (...) Veda-se, portanto, a chamada publicidade clandestina, especialmente sem sua forma redacional, bem como a subliminar. É importante a intervenção do Estado na regulamentação de publicidades, estando este fato interligado ao intervencionismo estatal para que não haja abusos nas publicidades, que devem ser analisadas mais cuidadosamente quando se trata de publicidade de medicamentos, pois seu consumo inadequado interfere diretamente na saúde das pessoas. 3 PUBLICIDADE DE MEDICAMENTOS A publicidade de medicamentos é uma prática utilizada desde o início do século XX, e até os dias de hoje essa é uma forma de forte persuasão dos consumidores. No início essas propagandas resumiam-se em simples mensagens. Hoje, com a chegada da mídia, os investimentos em publicidade de medicamentos cresceram estrondosamente. Ocorre que, para a simples divulgação do consumo de um medicamento, existem muitos fatores que devem ser analisados, observando que ele não é o produto de consumo comum, pois é um e não o único instrumento de promoção à saúde, devendo sempre existir como medida preventiva, consultas médicas e até mesmo uma análise crítica de todo o contexto em que a patologia se insere, não podendo simplesmente consumir o medicamento, acreditando que somente ele resolverá o problema. Ainda ressalta-se o risco sanitário existente no consumo de medicamentos sem prescrição médica, pois estes somente devem ser consumidos com consciência e responsabilidade. Por isso, em 1968, durante o 21ª Assembléia Mundial da Saúde, aprovaram-se critérios éticos e científicos para propaganda farmacêutica, determinando que para produção da publicidade de medicamento seriam necessárias as informações exatas do medicamento, sendo estas as indicações corretas, contra-indicações, cuidados e advertências, posologia. Após foram elaborados mais documentos estabelecendo como devem ser as publicidades de medicamentos incluindo a Organização Mundial da Saúde e a Federação Internacional das Indústrias de Medicamentos, além das legislações nacionais de cada país. No Brasil, a primeira legislação sobre a publicidade de medicamentos começou a ser criada em 1976 com a elaboração da Lei 6.360/76, que foi regulamentada pelo decreto 79.094/77. Essa legislação sobre publicidade de medicamentos era muito superficial, não atendendo a necessidade de coibir os abusos na publicidade de medicamentos. Esta lei e esse decreto estabeleceram que a publicidade de medicamentos deveria ser aprovada para ser divulgada, além de que os produtos de venda sob prescrição médica somente poderiam ser divulgados para os prescritores do medicamento. Em 1980, foi criado o Código Brasileiro de Auto-Regulamentação publicitária, que, em seu anexo I, trata especificamente de produtos farmacêuticos isentos de prescrição médica, exigindo os seguintes aspectos: 2. A publicidade de medicamentos populares: a. não deverá conter nenhuma afirmação quanto à ação do produto que não seja baseada em evidência clínica ou científica; b. não deverá ser feita de modo a sugerir cura ou prevenção de qualquer doença que exija tratamento sob supervisão médica; c. não deverá ser feita de modo a resultar em uso diferente das ações terapêuticas constantes da documentação aprovada pela Autoridade Sanitária; d. não oferecerá ao consumidor prêmios, participação em concursos ou recursos semelhantes que o induzam ao uso desnecessário de medicamentos; REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 12-revista_07.p65 163 29/10/2007, 21:43 163 Proteção da Criança em Face da Publicidade de Medicamentos Infantis e. deve evitar qualquer inferência associada ao uso excessivo do produto; f. não deverá ser feita de modo a induzir ao uso de produtos por crianças, sem supervisão dos pais ou responsáveis a quem, aliás, a mensagem se dirigirá com exclusividade; g. não deverá encorajar o Consumidor a cometer excessos físicos, gastronômicos ou etílicos; h. não deverá mostrar personagem na dependência do uso contínuo de medicamentos como solução simplista para problemas emocionais ou estados de humor; i. não deverá levar o Consumidor a erro quanto ao conteúdo, tamanho de embalagem, aparência, usos, rapidez de alívio ou ações terapêuticas do produto e sua classificação (similar/genérico); j. deverá ser cuidadosa e verdadeira quanto ao uso da palavra escrita ou falada bem como de efeitos visuais. A escolha de palavras deverá corresponder a seu significado como geralmente compreendido pelo grande público; k. não deverá conter afirmações ou dramatizações que provoquem medo ou apreensão no Consumidor, de que ele esteja, ou possa vir, sem tratamento, a sofrer de alguma doença séria; l. deve enfatizar os usos e ações do produto em questão. Comparações injuriosas com concorrentes não serão toleradas. Qualquer comparação somente será admitida quando facilmente perceptível pelo Consumidor ou baseada em evidência clínica ou científica. Não deverão ser usados jargões científicos com dados irrelevantes ou estatísticas de validade duvidosa ou limitada, que possam sugerir uma base científica que o produto não tenha; m. não deverá conter qualquer oferta de devolução de dinheiro pago ou outro benefício, de qualquer natureza, pela compra de um medicamento em função de uma possível ineficácia; 164 n. a publicidade de produto dietético deve submeter-se ao disposto neste Anexo e, no que couber, nos anexos “G” e “H”. Não deverá incluir ou mencionar indicações ou expressões, mesmo subjetivas, de qualquer ação terapêutica. 3. A referência a estudos, quer científicos ou de consumo, deverá sempre ser baseada em pesquisas feitas e interpretadas corretamente. 4. Qualquer endosso ou atestado, bem como a simples referência a profissionais, instituições de ensino ou pesquisa e estabelecimentos de saúde, deverá ser suportada por documentação hábil, exigível a qualquer tempo. 5. A publicidade de medicamentos não oferecerá a obtenção de diagnóstico à distância. 6. Não conterá afirmações injuriosas às atividades dos profissionais de saúde ou ao valor de cuidados ou tratamentos destes. 7. Quando oferecer a venda do produto por meio de telefone ou endereço eletrônico, deverá explicitar a razão social e o endereço físico do anunciante a fim de facilitar ação fiscalizatória e reclamações. Assim, ficaram estabelecidas as limitações do que poderia ser afirmado ou não e a necessidade de informações. Poucos anos depois, em 1988, foi promulgada a Constituição Federal que estabeleceu, no Art. 220, a limitação da publicidade de medicamentos, devido ao estabelecido no Art. 6º, que estabeleceu que é um direito de todos o direito à saúde. Desse modo, os Arts. 196 e 197 estabeleceram que a saúde é dever do Estado, e este deve interferir sempre para sua manutenção. Dessa forma mesmo o Art. 220, sendo contrário a livre concorrência, é um direito do Estado REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 12-revista_07.p65 164 29/10/2007, 21:43 Ester Okamoto Della Costa e Raquel Sanchez de Lima intervir nesta livre concorrência, pois é seu dever preservar a saúde das pessoas, e o consumo inadequado de um medicamento pode causar sérios danos à saúde de uma pessoa. Em 1990, foi criado o Código de Defesa do Consumidor, estabelecendo, em seu Art. 4º, que, apesar da necessidade do consumo, este deve ser atendido respeitando a dignidade e saúde do consumidor, entre outros, mas dessa forma estabelece que, apesar da sociedade de consumo em que se vive, a saúde de ninguém pode ser afetada pelo consumo. Ainda na mesma legislação ficou estabelecido que a saúde e o esclarecimento do consumo são direitos básicos do consumidor, segundo estabelecido no Art. 6º, CDC: Art. 6º. São direitos básicos do consumidor: I - a proteção da vida, saúde e segurança contra os riscos provocados por práticas no fornecimento de produtos e serviços considerados perigosos ou nocivos; Na Declaração Universal dos direitos do Homem e do Cidadão, a saúde é um direito de todos, sendo que o uso inadequado de medicamentos causa danos diretos às pessoas: Artigo 25º 1. Toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua família a saúde e o bem-estar, principalmente quanto à alimentação, ao vestuário, ao alojamento, à assistência médica e ainda quanto aos serviços sociais necessários, e tem direito à segurança no desemprego, na doença, na invalidez, na viuvez, na velhice ou noutros casos de perda de meios de subsistência por circunstâncias independentes da sua vontade. Além disso, os Art. 36 a 38, Código Defesa do Consumidor, protegem o consumidor, exigindo que, em toda publicidade, esteja claro seu caráter publicitário e não admitindo que existam publicidades enganosas, abusivas e simuladas, conforme já foi analisado acima. Em 1996 foi criada a Lei 9.294/96, regulamentada pelo Decreto 2.018/96 que determinou alguns critérios de informações essenciais para a publicidade de medicamentos, e como esta pode ser divulgada. Apesar de toda legislação criada no Brasil visando proteger a população das publicidades de medicamentos, a Lei 6.360/76 foi submetida a uma consulta pública nº 5, resultando na Resolução RDC 102/00 criada pela Anvisa, regulamentando a publicidade de promoção ou divulgação ou comercialização de medicamentos, indicando seus critérios, e o que pode ou não ser afirmado neste tipo de publicidade. Ainda em 2000 foi criada a Gerência de Controle e Fiscalização de Medicamentos e Produtos iniciando-se um melhor controle dos medicamentos postos no mercado e também de suas publicidades, pois possui as seguintes competências: I. avaliar, fiscalizar, controlar e acompanhar, a propaganda, a publicidade, a promoção e a informação de produtos sujeitos à vigilância sanitária; III. coordenar as atividades de apuração das infrações à legislação de vigilância sanitária, instaurar processo administrativo para apuração de infrações à legislação sanitária federal, em sua área de competência; VIII. formular, regulamentar, planejar, coordenar, avaliar, executar e propor as diretrizes para implantação de um módulo de propaganda de produtos sujeitos à vigilância sanitária dentro do Sistema de Informação em Vigilância Sanitária, visando o aprimoramento do desempenho das ações de vigilância sanitária; IX. articular-se com órgãos afins da administração federal, estaduas, municipal e do Distrito Federal visando a cooperação mútua e a integração de atividades, de modo a incorporar o controle de propaganda, publicidade, promoção e informação como uma ação de vigilância sanitária em todos os níveis de governo. REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 12-revista_07.p65 165 29/10/2007, 21:43 165 Proteção da Criança em Face da Publicidade de Medicamentos Infantis Além de organismos nacionais existem os supranacionais que também visam à proteção da saúde através da coibição de publicidade de medicamentos. O mais importante deles é a Organização Mundial da Saúde, que, desde 1968, vem estabelecendo critérios éticos e científicos para a propaganda farmacêutica. Esses critérios foram ampliados em 1988 na Assembléia Mundial da saúde quando foram aprovados os Critérios Éticos para a Promoção da Saúde. Nessa assembléia foi considerada promoção qualquer forma de atividade informativa e de persuasão por parte dos fabricantes ou distribuidores de medicamentos, com o objetivo de induzir a prescrição, abastecimento, aquisição ou utilização do medicamento. Em 1992 a mesma assembléia constatou que a maioria dos países não tinha adotado meios suficientes de controle das publicidades de medicamentos. Assim foi criado o regulamento WHA47 que recomenda aos Estados membros que implementem meios para coibir a publicidade de medicamentos que não observem a ética. Em 1994 foi elaborada a resolução WHA51.9, reafirmando que a regulamentação de medicamentos deve visar não apenas à segurança, mas também à eficácia, qualidade e exatidão nas informações fornecidas aos pacientes e prescritores. 4 DA PUBLICIDADE VOLTADA AO PÚBLICO INFANTIL Um público muito desejado pelos publicitários é o público infantil, pois constituem um mercado atraente e uma forma de atração aos pais. Somando este fato à hipossuficiência das crianças, o CDC dispensou uma atenção especial para estes consumidores. Por isso, as publicidades não podem incitar a criança diretamente a comprar um produto ou contratar um serviço, não podem mostrar crianças tendo ações como outras crianças da mesma idade, persuadindo seus pais a comprarem. Tampouco podem aproveitar-se da confiança que as crianças têm nos pais e professores para adquirirem um produto. 166 A publicidade dirigida a crianças deve ser veraz e claramente identificável como tal; não deve aprovar a violência ou aceitar comportamentos que contrariem as regras gerais de comportamento social; não se podem criar situações que passem a impressão de que alguém pode ganhar prestígio com a posse de bens de consumo, que enfraqueçam a autoridade dos pais, contribuam para situações perigosas para a criança, ou que incentivem as crianças a pressionarem outras pessoas a adquirirem bens (SANTOS, 2005). O Código de Defesa do consumidor, como já afirmado anteriormente, resguarda a saúde de todos os consumidores. Além disso, no capítulo relativo à publicidade, há uma proteção especial às crianças, por serem um público ingênuo que acredita nas afirmações acerca do produto, sem ter completo discernimento do ideal. Essa proteção está no Art. 37, § 2º, CDC: É abusiva, dentre outras, a publicidade discriminatória de qualquer natureza, a que incite à violência, explore o medo ou superstição, se aproveite da deficiência de julgamento experiência da criança, desrespeita valores ambientais, ou que seja capaz de induzir o consumidor a se comportar de forma prejudicial ou perigosa à sua saúde ou segurança. Isso se deve ao fato de além, de vulneráveis como todo consumidor, a criança ser hipossuficiente. Por isso um dos maiores alvos da publicidade, atualmente, são as crianças, pois não possuem discernimento necessário para escolher o que é melhor para sua vida, são ingênuas e imaturas, acabando, muitas vezes, ludibriadas pelas publicidades. “A hipossuficiência leva em consideração a situação concreta do consumidor, seu grau de cultura, instrução, situação financeira e o meio em que vive” (SANTOS, 2005). REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 12-revista_07.p65 166 29/10/2007, 21:43 Ester Okamoto Della Costa e Raquel Sanchez de Lima Por tudo isso, foi regulamentada pelo Estado a proteção da criança face à publicidade de medicamentos, pois, ocorrendo estes abusos, a saúde da criança pode ser afetada e há diversas legislações protegendo a saúde da criança. Visando a proteção da saúde da criança, a Constituição Federal é clara ao afirmar que é dever do Estado e da família sua proteção: Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocálos a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. § 1º. O Estado promoverá programas de assistência integral à saúde da criança e do adolescente, admitida a participação de entidades não governamentais e obedecendo os seguintes preceitos: I - aplicação de percentual dos recursos públicos destinados à saúde na assistência materno-infantil; II - criação de programas de prevenção e atendimento especializado para os portadores de deficiência física, sensorial ou mental, bem como de integração social do adolescente portador de deficiência, mediante o treinamento para o trabalho e a convivência, e a facilitação do acesso aos bens e serviços coletivos, com a eliminação de preconceitos e obstáculos arquitetônicos. No mesmo sentido, dispôs o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA): Art. 4º. É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do Poder Público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. Art. 7º. A criança e o adolescente têm direito a proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência. A lei Programa Nacional de Atenção Integral à Criança e ao Adolescente – PRONAICA, Lei 8642 de 1993, acerca da proteção da saúde da criança, diz: Art. 2º. O PRONAICA terá as seguintes áreas prioritárias de atuação: I - mobilização para a participação comunitária; II - atenção integral à criança de 0 a 6 anos; III - ensino fundamental; IV - atenção ao adolescente e educação para o trabalho; V - proteção à saúde e segurança à criança e ao adolescente; VI - assistência a crianças portadoras de deficiência; VII - cultura, desporto e lazer para crianças e adolescentes; VIII - formação de profissionais especializados em atenção integral a crianças e adolescentes. Parágrafo único. Para dar suporte às ações de que trata este artigo, subordi- REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 12-revista_07.p65 167 29/10/2007, 21:43 167 Proteção da Criança em Face da Publicidade de Medicamentos Infantis nando-as ao enfoque da atenção integral à criança e ao adolescente, e de acordo com as necessidades sociais locais, serão adotados mecanismos e estratégias de: integração de serviços e experiências locais já existentes; adaptação e melhoria de equipamentos sociais já existentes; construção de novas unidades de serviço. A Estrutura Regimental Da Secretaria Especial Dos Direitos Humanos protege a saúde da criança da seguinte forma em seu Art. 6º: Art. 6º À Subsecretaria dos Direitos da Criança e do Adolescente compete: I - formular medidas necessárias para promover, estimular, acompanhar e zelar pelo cumprimento do Estatuto da Criança e do Adolescente, mediante o desenvolvimento de ações sociais públicas de proteção à vida e à saúde da criança e do adolescente, para viver em condições dignas de existência; II - propor diretrizes e a adoção de medidas administrativas e de gestão estratégica, visando garantir a adequada implementação do Estatuto da Criança e do Adolescente; III - supervisionar e coordenar a elaboração de planos de ação anuais para a implementação e monitoramento de programas e projetos de atendimento às crianças e aos adolescentes, com definição de prazos, metas, responsáveis e orçamento para as ações; IV - supervisionar e coordenar a execução da política de promoção e defesa dos direitos da criança e do adolescente consagrados no Estatuto, bem como fomentar o apoio a serviços de atendimento direto à criança e ao adolescente; V - promover parcerias com órgãos da Administração Pública federal, estadual, municipal e entidades não-governamentais na formulação de propostas para a implementação de programas de ações em defesa dos direitos da criança e do adolescente; 168 VI - promover ações de proteção da criança e do adolescente com direitos ameaçados ou violados, bem como apoiar o desenvolvimento de projetos de atendimento aos egressos de medidas socioeducativas; VII - incentivar o aprimoramento de instituições de atendimento direto aos adolescentes em conflito com a lei; VIII - promover e apoiar a execução de programas de proteção e assistência à criança e ao adolescente, vítimas do narcotráfico e da exploração sexual; IX - promover ações, em articulação com órgãos da Administração Pública federal, estadual, municipal e outras entidades, de apoio à erradicação do trabalho infantil; X - estimular e apoiar a execução da política de adoção nacional, acompanhando as ocorrências e denúncias de irregularidades para assegurar nesse sentido o cumprimento do Estatuto da Criança e do Adolescente; XI - fomentar e contribuir para a formação, a especialização e o aperfeiçoamento de recursos humanos necessários à execução da política de atendimento e garantia dos direitos da criança e do adolescente; XII - incentivar e apoiar as ações dos governos federal, estadual, do Distrito Federal e municipal que visem a universalização do direito à documentação civil básica da criança e do adolescente; XIII - sistematizar, avaliar e disponibilizar os resultados alcançados pelos programas de ações em defesa dos direitos da criança e do adolescente, difundindo conhecimentos e informações mediante estudos e pesquisas específicos; REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 12-revista_07.p65 168 29/10/2007, 21:43 Ester Okamoto Della Costa e Raquel Sanchez de Lima XIV - colaborar com o Gabinete do Secretário Especial na execução das atividades relacionadas com os Aspectos Civis do Seqüestro Internacional de Crianças e Adolescentes e com as ações relativas à Cooperação em Matéria de Adoção Internacional, de competência da Secretaria Especial; e XV - realizar outras atividades determinadas pelo Secretário Especial. A Convenção Sobre Os Direitos Da Criança complementa: 1. Os Estados Partes reconhecem o direito da criança de gozar do melhor padrão possível de saúde e dos serviços destinados ao tratamento das doenças e à recuperação da saúde. Os Estados Partes envidarão esforços no sentido de assegurar que nenhuma criança se veja privada de seu direito de usufruir desses serviços sanitários. 2. Os Estados Partes garantirão a plena aplicação desse direito e, em especial, adotarão as medidas apropriadas com vistas a: a) reduzir a mortalidade infantil; b) assegurar a prestação de assistência médica e cuidados sanitários necessários a todas as crianças, dando ênfase aos cuidados básicos de saúde; c) combater as doenças e a desnutrição dentro do contexto dos cuidados básicos de saúde mediante, inter alia, a aplicação de tecnologia disponível e o fornecimento de alimentos nutritivos e de água potável, tendo em vista os perigos e riscos da poluição ambiental; d) assegurar às mães adequada assistência pré-natal e pós-natal; e) assegurar que todos os setores da sociedade, e em especial os pais e as crianças, conheçam os princípios básicos de saúde e nutrição das crianças, as vantagens da amamentação, da higiene e do saneamento ambiental e das medidas de prevenção de acidentes, e tenham acesso à educação pertinente e recebam apoio para a aplicação desses conhecimentos; f) desenvolver a assistência médica preventiva, a orientação aos pais e a educação e serviços de planejamento familiar. 3. Os Estados Partes adotarão todas as medidas eficazes e adequadas para abolir práticas tradicionais que sejam prejudiciais à saúde da criança. 4. Em conformidade com suas obrigações de acordo com o direito humanitário internacional para proteção da população civil durante os conflitos armados, os Estados Partes adotarão todas as medidas necessárias a fim de assegurar a proteção e o cuidado das crianças afetadas por um conflito armado. Os Estados Partes adotarão todas as medidas apropriadas para estimular a recuperação física e psicológica e a reintegração social de toda criança vítima de qualquer forma de abandono, exploração ou abuso; tortura ou outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes; ou conflitos armados. Essa recuperação e reintegração serão efetuadas em ambiente que estimule a saúde, o respeito próprio e a dignidade da criança. O Art. 24, dos Direitos das Crianças, da Unicef, prossegue afirmando que todas as crianças têm direito à saúde: Artigo 24 - Tens direito à saúde. quer dizer que, se estiveres doente, deves ter acesso a cuidados médicos e medicamentos. Os adultos devem fazer tudo para evitar que as crianças adoeçam, dando-lhes uma alimentação conveniente e cuidando bem delas. REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 12-revista_07.p65 169 29/10/2007, 21:43 169 Proteção da Criança em Face da Publicidade de Medicamentos Infantis Por fim, a convenção dos direitos da criança, criada pela Organização das Nações Unidas (ONU), estabeleceu: Artigo 24.º 1. Os Estados Partes reconhecem à criança o direito a gozar do melhor estado de saúde possível e a beneficiar de serviços médicos e de reeducação. Os Estados Partes velam pela garantia de que nenhuma criança seja privada do direito de acesso a tais serviços de saúde. 2. Os Estados Partes prosseguem a realização integral deste direito e, nomeadamente, tomam medidas adequadas para: a) Fazer baixar a mortalidade entre as crianças de tenra idade e a mortalidade infantil; b) Assegurar a assistência médica e os cuidados de saúde necessários a todas as crianças, enfatizando o desenvolvimento dos cuidados de saúde primários; c) Combater a doença e a má nutrição, no quadro dos cuidados de saúde primários, graças nomeadamente à utilização de técnicas facilmente disponíveis e ao fornecimento de alimentos nutritivos e de água potável, tendo em consideração os perigos e riscos da poluição do ambiente; d) Assegurar às mães os cuidados de saúde, antes e depois do nascimento; e) Assegurar que todos os grupos da população, nomeadamente os pais e as crianças, sejam informados, tenham acesso e sejam apoiados na utilização de conhecimentos básicos sobre a saúde e a nutrição da criança, as vantagens do aleitamento materno, a higiene e a salubridade do ambiente, bem como a prevenção de acidentes; 170 f) Desenvolver os cuidados preventivos de saúde, os conselhos aos pais e a educação sobre planeamento familiar e os serviços respectivos. 3. Os Estados Partes tomam todas as medidas eficazes e adequadas com vista a abolir as práticas tradicionais prejudiciais à saúde das crianças. 4. Os Estados Partes comprometem-se a promover e a encorajar a cooperação internacional, de forma a garantir progressivamente a plena realização do direito reconhecido no presente artigo. A este respeito atender-se-á de forma particular às necessidades dos países em desenvolvimento. Visando a proteção da saúde das crianças conforme determinado por toda esta legislação acostada, o legislador brasileiro elaborou leis que protegem a criança face à publicidade de medicamentos. Em primeiro plano, deve-se destacar o papel do Código de Defesa do Consumidor que proíbe a publicidade abusiva, e estas podem ser considerada também as que exploram a inocência infantil como ensinado anteriormente. Além disso, a resolução RDC 102/00, em seu Art. 10, II, afirma que não pode ser dirigida a publicidade de medicamentos isentos de prescrição para o público infantil2 . Diante disso, infere-se que nenhum medicamento pode ser divulgado para o público infantil, pois os demais medicamentos somente podem ser divulgados para a classe prescritora deles. A Conar também decidiu como devem ser as publicidades voltadas ao público infantil: 2 II - incluir mensagens de qualquer natureza dirigidas a crianças ou adolescentes; conforme classificação do Estatuto da Criança e do Adolescente, bem como utilizar símbolos e imagens com este fim; REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 12-revista_07.p65 170 29/10/2007, 21:43 Ester Okamoto Della Costa e Raquel Sanchez de Lima Artigo 37 - No anúncio dirigido à criança e ao jovem: a. dar-se-á sempre atenção especial às características psicológicas da audiência-alvo; b. respeitar-se-á especialmente a ingenuidade e a credulidade, a inexperiência e o sentimento de lealdade dos menores; c. não se ofenderá moralmente o menor; d. não se admitirá que o anúncio torne implícita uma inferioridade do menor, caso este não consuma o produto oferecido; e. não se permitirá que a influência do menor, estimulada pelo anúncio, leveo a constranger seus responsáveis ou importunar terceiros ou o arraste a uma posição socialmente condenável; f. o uso de menores em anúncios obedecerá sempre a cuidados especiais que evitem distorções psicológicas nos modelos e impeçam a promoção de comportamentos socialmente condenáveis; g. qualquer situação publicitária que envolva a presença de menores deve ter a segurança como primeira preocupação e as boas maneiras como segunda preocupação. Além disso, ressalta-se que, em seu anexo I, a referida Lei dispõe acerca da publicidade ao público infantil de medicamentos: “f. não deverá ser feita de modo a induzir ao uso de produtos por crianças, sem supervisão dos pais ou responsáveis a quem, aliás, a mensagem se dirigirá com exclusividade”; Assim, fica clara a existência de proteção à saúde da criança e a tentativa de minimizar possíveis conseqüências do consumo inadequado de medicamentos, basta agora analisar os mecanismos de proteção quando estes dispositivos não são respeitados. 171 5 MEIOS DE PROTEÇÃO Os Meios de defesa do consumidor encontram-se elencados no Art. 5º, CDC. A educação formal e informal é a primeira forma de proteção e talvez a mais importante, pois a educação formal consiste na inclusão nos currículos escolares de educação consumerista, como o objetivo de formar hábitos sadios de consumo e preparar as crianças para as escolhas que farão durante à vida dentre os produtos ofertados. Por outro lado, a informal decorre de campanhas divulgadas pelo Estado e por organizações não governamentais que forneçam esclarecimentos para melhor postura como consumidor. Os órgãos oficiais desempenham importante papel para o atendimento ao público, procurando solucionar conflitos sendo ora por políticas preventivas ora através de repressão. As associações civis são criadas através de incentivo estatal e são tão importantes quanto os órgãos oficiais para proteção do consumidor. Informação ao consumidor é um direito básico, o princípio da transparência e informação é relevante para proteção do consumidor. Todos os dados relativos aos produtos são de função do fornecedor indicar para que o consumidor não caia em erro e possa exercer livre e conscientemente sua escolha. Os serviços de atendimento nas empresas também são importantes, pois significa uma tomada de consciência do fornecedor, evitando o acúmulo de reclamações envolvendo os produtos que fabrica, resolvendo previamente os problemas surgidos. Os juizados Especiais Cíveis, como já dito anteriormente, é a forma mais rápida e fácil para solucionar problemas em que o valor da causa não seja superior a 40 salários mínimos, independente de pagamento de custas, taxas ou despesas, e nas causas com até 20 salários mínimos é possível exercer direito de ação sem a presença de advogado constituído. REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 12-revista_07.p65 171 29/10/2007, 21:43 Proteção da Criança em Face da Publicidade de Medicamentos Infantis O Ministério Público é responsável pela tutela do consumidor, desempenhando papel de grande relevância na mediação dos conflitos. Antonio Herman Benjamin (apud ALMEIDA, 2003, p. 29) afirma que a tutela do consumidor pelo MP tem como premissa básica a defesa do interesse público, algo mais abrangente que o interesse exclusivo do consumidor. Aí reside a razão principal por que é o MP, e não outro órgão, a instituição mais adequada a carrear a tarefa mediativa nas relações de consumo. A assistência jurídica consiste na assistência pelo poder público do consumidor carente, respeitando seus direitos. Ainda cabe lembrar as Delegacias especializadas em atendimento ao consumidor vítima de infrações penais de consumo para tutelar o consumidor. Além disso, são oferecidos outros instrumentos para a proteção do consumidor como o instituto de pesos e medidas que analisam fraudes nessas áreas e a Vigilância Sanitária. O cadastro das reclamações fundamentadas, identificando se as reclamações foram atendidas ou não pelo fornecedor, tendo os consumidores acesso ao cadastro dos fornecedores, assegurando a publicidade de sua confiabilidade e continuidade. Sempre que o estabelecido acerca das publicidades não for obedecido, haverá punição aos infratores, conforme disposto no Art. 50 do CONAR: Artigo 50 - Os infratores das normas estabelecidas neste Código e seus anexos estarão sujeitos às seguintes penalidades: a. advertência; b. recomendação de alteração ou correção do Anúncio; 172 c. recomendação aos Veículos no sentido de que sustem a divulgação do anúncio; d. divulgação da posição do CONAR com relação ao Anunciante, à Agência e ao Veículo, através de Veículos de comunicação, em face do não acatamento das medidas e providências preconizadas. A responsabilidade acerca da divulgação da publicidade é tanto da empresa quanto do anunciante, de acordo com o Art. 45, CONAR: Artigo 45 - A responsabilidade pela observância das normas de conduta estabelecidas neste Código cabe ao Anunciante e a sua Agência, bem como ao Veículo, ressalvadas no caso deste último as circunstâncias específicas que serão abordadas mais adiante, neste Artigo: a. o Anunciante assumirá responsabilidade total por sua publicidade; b. a Agência deve ter o máximo cuidado na elaboração do anúncio, de modo a habilitar o Cliente Anunciante a cumprir sua responsabilidade, com ele respondendo solidariamente pela obediência aos preceitos deste Código; c. este Código recomenda aos Veículos que, como medida preventiva, estabeleçam um sistema de controle na recepção de anúncios. Destaca-se que a responsabilidade pela publicidade inadequada é objetiva, ou seja, independe de culpa da pessoa que a produziu, existindo o nexo causal, o fato e o dano, configura-se a ilicitude devendo ser indenizado. Geralmente a publicidade enganosa gera danos materiais ao passo que a publicidade abusiva gera danos morais. Ressalta-se ainda que dependen- REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 12-revista_07.p65 172 29/10/2007, 21:43 Ester Okamoto Della Costa e Raquel Sanchez de Lima do da forma que o agente agiu o quantum indenizável é maior, principalmente em caso de abusividade. O Código de Defesa do Consumidor apontou algumas práticas como crime contra o consumo. Essas práticas consistem em divulgação de publicidade enganosa ou abusiva, divulgação de publicidade de produto que poderá fazer mal a saúde do consumidor e deixar de informar dados que são a base da publicidade: Art. 67. Fazer ou promover publicidade que sabe ou deveria saber ser enganosa ou abusiva: Pena - Detenção de três meses a um ano e multa. Parágrafo único. (Vetado). Art. 68. Fazer ou promover publicidade que sabe ou deveria saber ser capaz de induzir o consumidor a se comportar de forma prejudicial ou perigosa a sua saúde ou segurança: Pena - Detenção de seis meses a dois anos e multa: Parágrafo único. (Vetado). Art. 69. Deixar de organizar dados fáticos, técnicos e científicos que dão base à publicidade: Pena - Detenção de um a seis meses ou multa. A Lei dos crimes contra a ordem tributária, econômica e contra as relações de consumo aponta alguns crimes em relação à publicidade enganosa de medicamentos: Art. 7° Constitui crime contra as relações de consumo: VII - induzir o consumidor ou usuário a erro, por via de indicação ou afirmação falsa ou enganosa sobre a natureza, qualidade do bem ou serviço, utilizando-se de qualquer meio, inclusive a veiculação ou divulgação publicitária; Pena - detenção, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, ou multa. Além da ação penal e responsabilização do dano causado pela publicidade enganosa ou abusiva, há uma outra forma de punição às publicidades, que é a contrapropaganda, estabelecida no Art. 56, XII, CDC, após um procedimento administrativo visando apurar a enganosidade e abusividade da publicidade. Contrapropaganda, na relação de consumo, corresponde ao oposto da divulgação publicitária, pois destinada a desfazer efeitos perniciosos detectados e apenados na forma do CDC (...) punição imponível ao fornecedor de bens ou serviços, consistente na divulgação publicitária esclarecedora do engano ou do abuso cometidos em publicidade precedente do mesmo fornecedor (...) a imposição de contrapropaganda, custeada pelo infrator, será cominada (art. 62) quando incorrer na prática de publicidade enganosa ou abusiva (...) Quer a divulgação do anúncio, capaz de satisfazer a finalidade indicada seja feita em jornais e revistas, quer seja pela mídia eletrônica, seu custeio estará sempre a cargo do fornecedor (o fabricante, mesmo não destinando o produto ao destinatário final, pode ser sujeito passivo da obrigação) (CARVALHO, 2005). REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 12-revista_07.p65 173 29/10/2007, 21:43 173 Proteção da Criança em Face da Publicidade de Medicamentos Infantis A contrapropaganda pode ser considerada uma forma de proteção estatal do consumidor hipossuficiente quando bombardeado por publicidades abusiva e/ou enganosas, resultando em um processo administrativo, mas não se libera de um processo civil de responsabilidade ou penal. 6 CONCLUSÃO Apesar da publicidade de medicamentos ser uma arma utilizada pela indústria farmacêutica, visando convencer o consumidor a adquirir seus produtos, percebe-se que esta prática é inadimissível na legislação brasileira, devido ao fato de poder causar dano à saúde e por ser este tipo de publicidade restrita as condições analisadas alhures. Apesar disso, esta restrição, na maior parte das vezes não é observada existindo diversos tipos de publicidades de medicamentos, inclusive voltadas ao público infantil. Mecanismos aptos para punição deste tipo de publicidade, como se pode analisar, existem, porém sua aplicabilidade é quase nula, precisando assim encontrar outras formas para proteção das crianças face a publicidade de medicamentos. O primeiro ponto e talvez o mais importante é a informação-educação, ensinando a criança como deve ser consumido o medicamento e a preparando para possíveis práticas de publicidade voltada à ela de medicamento, pois assim, ela deixaria de ser facilmente atingida. Além disso, faz-se necessária a conduta da população buscando denunciar aos órgãos responsáveis pela fiscalização desta forma de publicidade para que sejam coibidos anúncios abusivos e enganosos. REFERÊNCIAS 174 ALMEIDA, João Batista de. Manual de direito do consumidor. São Paulo: Saraiva, 2003. CARNEIRO, Odete Novais. Da responsabilidade por vício do produto e do serviço: código de defesa do consumidor (lei n. 8.078/90). São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998. CARVALHO, Antônio Carlos Alencar. A disciplina civil da publicidade no Código de Defesa do Consumidor. Disponível em: <www.jusnavegandi.com.br>. Acesso em: 15 out. 05. CARVALHO, Luiz Eduardo. O que é consumerismo? Disponível em: <http://acd.ufrj.br/consumo/faq/rc_definicao.htm>. Acesso em: 23 out. 05. COELHO, Claudia Schroeder. Publicidade enganosa e abusiva frente ao Código de Defesa do Consumidor. Disponível em: <www.jusnavegandi.com.br>. Acesso em: 05 out. 05. GONÇALVES, João Bosco Pastor. Princípios gerais da publicidade no Código de Proteção e Defesa do Consumidor. Disponível em: <www.jusnavegandi.com.br>. Acesso em: 05 out. 05. GUIMARÃES, Simone de Almeida Bastos. O direito à informação e os princípios gerais da publicidade no Código de Defesa do Consumidor. Disponível em: <www.jusnavegandi.com.br>. Acesso em: 25 out. 05. JESUS, Paula Renata Camargo de. Propaganda de Medicamentos. Disponível em: <http:// www.eca.usp.br/alaic/chile2000/10%20GT%202000Com%20e%20Salude/Paula%20Renata.doc>. Acesso em: 26 out. 05. LISBOA, Roberto Senise. Responsabilidade civil nas relações de consumo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 12-revista_07.p65 174 29/10/2007, 21:43 Ester Okamoto Della Costa e Raquel Sanchez de Lima MACHADO, Martha de Toledo. Direito da criança e do adolescente. Disponível em: <http:// www.gentevidaeconsumo.org.br/dir_crianca/martha_toledo/protecao_constitucional.htm>. Acesso em: 23 out. 05. MADUREIRA, Daniele. O papel social da propaganda. Disponível em: <http:// www.abap.com.br/noticias/papelsocialpropaganda.htm>. Acesso em: 07 set. 05. SANTOS, Davi Severino dos. A regulação jurídica da publicidade na sociedade de consumo. Disponível em: <www.jusnavegandi.com.br>, Acesso em: 25 set. 05. SILVA Marcus Vinicius Fernandes Andrade da. Influência da publicidade na relação de consumo: Aspectos jurídicos. Disponível em: <www.jusnavegandi.com.br>. Acesso em: 25 set. 05. TUSA, Gabriele. Aspecto da competência na responsabilidade civil do fornecedor no âmbito do código de defesa do consumidor. In: HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Direito e responsabilidade. Belo Horizonte: Del Rey, 2002. VIEIRA. Tereza Rodrigues e NASCENTES. Claudiene. O idoso, a publicidade e o Direito do Consumidor. Disponível em: <www.jusnavegandi.com.br>. Acesso em: 14 set. 05. 175 REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 12-revista_07.p65 175 29/10/2007, 21:43 O Processo de Elaboração e a Participação Popular nos Planos Diretores de Assaí/PR e de Bela VIsta do Paraíso/PR O PROCESSO DE ELABORAÇÃO E A PARTICIPAÇÃO POPULAR NOS PLANOS DIRETORES DE ASSAÍ/PR E DE BELA VISTA DO PARAÍSO/PR Miguel Etinger de Araujo Junior* RESUMO Desde meados dos anos oitenta, com o fim da ditadura militar, o Brasil vem passando por uma implementação e aperfeiçoamento das práticas democráticas em relação ao Poder Público. A atividade de planejamento urbano é uma das áreas onde vem se fortalecendo esta participação popular, em especial na elaboração do Plano Diretor dos Municípios. Neste particular, esta participação é obrigatória, por força de dispositivo expresso do Estatuto da Cidade, em cumprimento ao comando constitucional que prevê a democracia direta e participativa como um dos fundamentos da República. Analisa-se neste artigo, como este processo ocorreu em dois Municípios do Paraná. Palavras-chave: Democracia Participativa. Plano Diretor. Municípios. Constituição Federal. THE PROCESS OF ELABORATION AND THE POPULAR PARTICIPATION IN THE MANAGING PLANS OF ASSAÍ/PR AND BELA VISTA DO PARAÍSO/PR ABSTRACT 176 Since middle of the Eighties, in the military dictatorship ending, Brazil has being passing through an implementation and perfectioning of democratic practices relationed to the Public Power. The urban planning activity is one of the areas where this popular participation has being fortified, specially in the elaboration of the Cities Managing Plan. In this particular one, this participation is obrigatory, to attend an express device of the City Statute, in order to attend the constitucional comand that foresees the direct and participatory democracy as one of the Republic bases. In this article is analysed, how this process ocurred in two Cities at Paraná / Brasil. Keywords: ParticipAtory Democracy. Managing Plan. Cities. Federal Constitution. 1 INTRODUÇÃO A população brasileira vem apresentando um elevado grau de concentração na área urbana, alcançado em 2000 o índice de 81,25% em uma área de 1,1% do território nacional (BRASIL, 2001). Esse panorama exige de toda a sociedade, em especial dos órgãos públicos, um planejamento urbano que possa efetivamente apresentar políticas públicas para resolver os problemas decorrentes desta urbanização. Um passo importante foi a elaboração do Estatuto da Cidade, Lei Federal nº. 10.257/2001 que operacionaliza os artigos 182 e 183 da Constituição Federal, estabelecendo diretrizes gerais da política urbana, seguindo a orientação constitucional ao prever em seu artigo 2º, inciso IV, o “planejamento do desenvolvimento das cidades” como uma das diretrizes gerais da política urbana (BRASIL, 2001). * Doutorando em Direito da Cidade pela UERJ, Professor Assistente da UEL, Advogado. REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 13-revista_07.p65 176 29/10/2007, 21:43 Miguel Etinger de Araujo Junior Trata-se, pois, de norma de ordem pública e interesse social que, segundo Odete Medauar (2004, p. 24) significa que “não podem ser derrogadas ou moldadas pela vontade dos particulares, sendo imperativas, cogentes”. A questão do interesse social, continua a autora, parece significar “algo relevante para toda a sociedade”. Trata-se de verdadeiro “marco regulatório”, expressão cunhada por Rogério Gesta Leal (2003, p. 77) para dar a real dimensão do Estatuto da Cidade no cenário brasileiro, que trouxe os princípios e objetivos nacionais na política de desenvolvimento urbano. O presente estudo analisa como se deu o processo de elaboração dos Planos Diretores nos Municípios de Assaí e de Bela Vista do Paraíso, ambos no Paraná, bem como os dispositivos das leis que prevêem o sistema de controle e fiscalização da política urbana através dos Conselhos Municipais. Procura-se ainda demonstrar a importância da efetiva participação da sociedade neste processo e sua relação com o princípio constitucional da democracia, bem como da gestão democrática das cidades, refletindo o que Paulo Bonavides (2003, p. 10-11) chamou de democracia participativa e Rogério Gesta Leal (2003, p. 65) chama de democracia substantiva. 2 PLANOS DIRETORES E ANÁLISE DOS PROCESSOS DE ELABORAÇÃO O presente Capítulo destina-se a apresentar os processos de elaboração dos Planos Diretores dos respectivos Municípios, focando-se no aspecto da participação popular efetiva dos moradores, procurando identificar a capacitação destes para o debate, o interesse na participação e os resultados obtidos no texto final na lei, levando-se em consideração o reconhecimento e consolidação do poder de decisão aos moradores, baseado na idéia de democracia participativa (ou democracia direta). O Plano Diretor é a lei municipal, cuja elaboração está prevista na Constituição Federal de 1988, em seu artigo 182, § 1º, considerado o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana. O Plano Diretor é, portanto, uma diretriz do Poder Público e da própria sociedade. Neste sentido afirma Alaor Caffé Alves (1981, P. 87). Justamente por estar formalizado como modelo e como pauta, serve perfeitamente como conduta e, portanto, como direito e base de um juízo sobre seu cumprimento. O plano é uma pauta de conduta que cria diretrizes e deveres para o Governo e que dá lugar a responsabilidades políticas e jurídicas. Tem-se verificado no Brasil uma crescente elaboração de Planos Diretores de Desenvolvimento Urbano. Dados do Ministério das Cidades informam que até novembro de 2006 93% dos Municípios com mais de 20.000 (vinte mil) habitantes já havia elaborado seu Plano Diretor (BRASIL, 2007). Segundo José Afonso da Silva (1995, p. 130) o Plano Diretor estabelecerá as normas ordenadoras e disciplinadoras pertinentes ao planejamento territorial. Definirá sobre a ordenação do solo, estabelecendo as regras fundamentais do uso do solo, incluindo o parcelamento, o zoneamento, o sistema de circulação, enfim sobre aqueles três elementos antes indicados: Sistema viário, Sistema de Zoneamento e Sistema de Lazer e Recreação. O Plano Diretor deverá ainda ser complementado por outros instrumentos jurídicos específicos como leis de zoneamento, posturas, proteção ambiental, etc. É papel do Plano Diretor balizar as duas vias de concretização do urbanismo que, segundo José Afonso da Silva REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 13-revista_07.p65 177 29/10/2007, 21:43 177 O Processo de Elaboração e a Participação Popular nos Planos Diretores de Assaí/PR e de Bela VIsta do Paraíso/PR (2002, 245) são: a) as regulamentações edilícias e b) a ordenação física e social da cidade. Sob o aspecto social, Luiz Cézar de Queiroz Ribeiro e Adauto Lúcio Cardoso afirmam (1990, p. 12): A nossa participação na elaboração de planos diretores deve ser encarada como uma forma de defesa do compromisso do Poder Público em assegurar um determinado nível de bem-estar coletivo. Partindo deste ponto de vista, torna-se um desafio a busca de um novo formato de planejamento que seja capaz de gerar intervenções governamentais que efetivamente promovam a melhoria das condições urbanas de vida, sobretudo para o conjunto dos trabalhadores. 178 Uma característica dos processos de elaboração destas leis é a obrigatória participação da comunidade, através consulta, audiências públicas e outras formas que dêem efetividade ao princípio constitucional da democracia direta previsto no artigo 1º, parágrafo único da Constituição Federal de 1988. Essa obrigatoriedade foi reforçada pelo Estatuto da Cidade que, em seu artigo 40, § 4º, incisos I, II e III, prevê diversas formas de participação e controle da sociedade, classificando como ato de improbidade adminstrativa do Prefeito, impedir ou deixar de garantir os requisitos constantes dos dipositivos mencionados acima. Os aspectos determinantes para a escolha dos Municípios analisados foram: 1 – elaboração do Plano Diretor após o Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257 de 10 de julho de 2001); 2 – a possibilidade de comprovação da veracidade das informações prestadas. Foi elaborado um questionário, que buscava identificar os aspectos mencionados acima, e entregue aos coordenadores ou profissionais diretamente envolvidos na elaboração dos planos diretores. Deve-se ressaltar que, no Estado do Paraná, onde foram colhidas as informações, em especial na região próxima ao Município de Londrina, o processo de elaboração dos Planos Diretores foi impulsionado por dois grandes fatores que não necessariamente veio acompanhado da qualidade técnica esperada em assunto tão importante. O primeiro fator, em termo nacional, foram as eleições locais para prefeitos e vereadores. O segundo aspecto foi a expedição de um Decreto do Poder Executivo Estadual, de nº. 2.581, publicado em 17 de abril de 2004, que vinculava a assinatura de convênios entre o Estado do Paraná para financiamento de obras de infra-estrutura e serviços somente com Municípios que já possuíssem Planos Diretores ou que estivessem em processo de elaboração. 2.1 Município de Assaí / Paraná O Município de Assai (2005) está localizado no norte do Estado do Paraná, distante 386 Km da Capital do Estado, Curitiba, e a 36 Km de Londrina, principal Município da região. Sua área é de 447.408 Km2, e no ano de 2000 possuía uma população total de 18.050 habitantes, sendo 13. 521 na área urbana e 4.529 na área rural. Vale neste aspecto observar que o Município não estava obrigado a elaborar seu Plano Diretor, nos termos do artigo 41 do Estatuto da Cidade1 . O Plano Diretor foi aprovado pela Lei municipal nº. 824, de 1º de dezembro de 2004. O processo de elaboração durou em torno de 08 (oito) meses e foi coordenado por uma organização não-governamental (2004), vencedora do processo de licitação elaborado pelo Poder Executivo Municipal. 1 Art. 41 – O plano diretor é obrigatório para cidades: I – com mais de vinte mil habitantes; II – integrantes de regiões metropolitanas e aglomerações urbanas; III – onde o Poder Público Municipal pretenda utilizar os instrumentos previstos no § 4º do art. 182 da Constituição Federal; IV – inseridas na área de influência de empreendimentos ou atividades com significativo impacto ambiental de âmbito regional ou nacional. REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 13-revista_07.p65 178 29/10/2007, 21:43 Miguel Etinger de Araujo Junior As informações foram prestadas por um dos integrantes da equipe coordenadora, Solange Nozaki Souza (2005). Durante o processo de elaboração, foram realizadas 03 (três) audiências públicas oficiais que visavam discutir os assuntos que haviam sido abordados em diversas outras audiências setoriais preparatórias das propostas e levantamentos. O Município disponibilizou espaços e infra-estrutura para as audiências, e a convocação da população se deu através da distribuição de cartilhas explicativas elaboradas pelo Instituto Polis (2005) sobre o que é Plano Diretor, divulgação em carro de som, rádio e jornal local. Essa divulgação foi considerada insuficiente, sendo que um dos fatores que influenciaram foi o orçamento limitado para o projeto como um todo. O comparecimento da população aos debates não se deu da forma esperada, tendo havido uma maior participação de líderes de bairros, representantes de classes e pessoas ligadas ao setor educacional, sendo que de um total de 11 (onze) vereadores no Município, no máximo 03 (três) participaram efetivamente. Verificou-se a presença de gerentes e funcionários das agências bancárias públicas (Caixa Econômica, Banco do Brasil). Além dos debates e consultas públicas, foi feita uma abordagem informal dos moradores acerca de suas opiniões. Vale observar que a Prefeitura Municipal enviou convites oficiais para todos os líderes da sociedade, como líderes religiosos, políticos, representantes de classe, etc. Essa técnica não se mostrou eficaz, em algumas situações, devido à falta de experiência e até timidez de alguns elementos em expressar suas idéias em público. Alguns temas específicos foram abordados, tais como: 1. potencial turístico étnico-cultural (colonização japonesa) como atividade econômica; 2. sugestões quanto à “terceirização” ou parceria no transporte de escolares, na coleta do lixo urbano e do hospital municipal; 3. meio ambiente: quanto ao lançamento de esgoto in natura nos córregos e nas galerias de água pluvial. Quanto ao interesse dos participantes no encontro, pode-se dizer que alguns lá estavam por questão ideológica e outros apenas como obrigação de representação. Vale observar que o caráter deliberativo das audiências só ocorreu na última audiência, após as fases anteriores, de caráter consultivo. Algumas diretrizes e propostas já estão sendo implementadas ou em vias de implementação como a reativação do eixo turístico gastronômico cultural, a “terceirização” do transporte escolar, dentre outros. Deve-se registrar, no entanto, a falta de experiência da população no processo de elaboração de políticas públicas, passando a conviver com uma nova modalidade de administração, como a gestão democrática, orçamento participativo, etc. Além desse aspecto, mencionado na entrevista, outros se apresentam em relação ao texto final da Lei nº. 824/2004, (2004) que constitui o PDDMA – Plano Diretor de Desenvolvimento Municipal de Assaí. Um dos mais relevantes, dentro do propósito do presente trabalho, é o relativo à criação do SIP – Sistema Integrado de Planejamento, encarregado de gerenciar os objetivos do Plano Diretor. O SIP é composto por diversos órgãos, dentre os quais o CDM – Conselho de Desenvolvimento Municipal – com atribuições deliberativas em relação aos planos, programas e projetos de desenvolvimento territorial. Oportuna é a transcrição de sua composição, disposto no artigo 220 da lei municipal nº. 824/2004: Art. 220 – O CDM compõe-se de 12 (doze) membros titulares e seus respetivos suplentes, eleitos ou indicados pelos respectivos órgãos ou categorias, e homologadas pelo Prefeito Municipal, com renovação quadrienal e obedecendo a seguinte composição: I – 05 (cinco) representantes de entidades governamentais vinculadas às questões de desenvolvimento territorial, assim distribuídas: 01 (um) representante do nível estadual; REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 13-revista_07.p65 179 29/10/2007, 21:43 179 O Processo de Elaboração e a Participação Popular nos Planos Diretores de Assaí/PR e de Bela VIsta do Paraíso/PR 04 (quatro) representantes do nível municipal. II – 07 (sete) representantes de entidades não-governamentais, definidas por ocasião das conferências municipais de avaliação do PDDMA e assim distribuídos: 01 (um) representante das entidades representativas dos trabalhadores; 01 (um) representante das entidades representativas da sociedade civil (clube de serviço e associações comunitárias); 01 (um) representante dos conselhos municipais; 01 (um) representante das associações profissionais, sendo um, preferencialmente, das entidades de classe vinculadas ao planejamento urbano; 01 (um) representante das entidades empresariais e sindicatos patronais preferencialmente vinculado à construção civil; 01 (um) representante das entidades educacionais; 01 (um) representante das entidades ambientais. Esse dispositivo, aliado a outros constantes da lei que prevêem e condicionam a gestão pública à efetiva participação popular, consubstancia a observância das diretrizes, princípios e objetivos da idéia de gestão democrática, constante da Constituição Federal de 1988 e do Estatuto da Cidade. 2.2 Município de Bela Vista do Paraíso / Paraná 180 O Município de Bela Vista do Paraíso está localizado no norte do Estado do Paraná, distante 429 Km da Capital do Estado, Curitiba, e a 37 Km de Londrina, principal Município da região. Sua população em 2000 era de 15.029 habitantes, sendo 13.858 na área urbana e 1.171 na área rural, distribuídos em uma área de 214.342 Km2 (BELA VISTA DO PARAISO, 2005). O Município está inserido na Região Metropolitana de Londrina, por força da Lei Complementar Estadual nº 86 de 07 de julho de 2000 (PARANÁ, 2000), estando, portanto, obrigada a elaborar seu Plano Diretor, por força do artigo 41, II do Estatuto da Cidade. Vale observar que, a despeito da lei estadual, só recentemente, em 2006 foram criados cargos de direção da Região Metropolitana de Londrina. A elaboração do projeto de lei final, enviado à Câmara dos Vereadores, durou cerca de onze meses e foi coordenada pela empresa Genius Loci Arquitetura e Planejamento SS Ltda, vencedora do processo de licitação, cujo integrante, Nestor Razente (2005), prestou as informações que subsidiam o presente trabalho. A exemplo da maioria dos Municípios do Estado do Paraná, a elaboração do Plano Diretor de Bela Vista do Paraíso foi financiada por recursos do Governo do Estado, através do Paranacidade, autarquia estadual criada para o desenvolvimento urbano no Paraná. Neste contexto, foi criada uma Comissão Técnica, formada por funcionários municipais e uma Comissão de Acompanhamento e da Elaboração do Plano Diretor. Essa comissão foi organizada entre os presentes na primeira audiência pública realizada em 18 de outubro de 2004 e escolhidos dentre os membros da comunidade local. Foram realizadas três audiências públicas durante o processo de elaboração do Plano Diretor. Em relação à participação popular, vale observar que além dessas três audiências públicas, de caráter geral, foram realizadas reuniões temáticas com segmentos da sociedade, como assistência social e saúde, por exemplo.Tanto as audiências públicas como as reuniões tiveram caráter deliberativo. Além disso, no projeto de lei, foi criado o Conselho do Plano Diretor de Desenvolvimento Municipal, encarregado de fiscalizar a efetiva implementação do Plano Diretor e servir como fórum de discussão de futuras alterações. REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 13-revista_07.p65 180 29/10/2007, 21:43 Miguel Etinger de Araujo Junior A convocação da sociedade para o debate foi promovida pelo Gabinete do Prefeito, através de convocação por jornais e convites dirigidos às representações de classes, sindicatos, representantes de comunidades de bairro, ONGs e outros. Para um Município com aproximadamente quinze mil habitantes, o comparecimento da população foi considerado satisfatório. A falta de experiência da população no processo de elaboração de políticas públicas, assim como em Assaí também foi um fator também observado neste Município. Quanto ao Plano Diretor, em especial em relação à participação popular, alguns dispositivos merecem especial atenção. Num primeiro momento, vale observar que o Plano Diretor não se constitui de um único corpo de lei. Há diversos estudos que fundamentam o texto de lei, e esta lei inclusive faz menção expressa de que o Plano Diretor de Bela Vista do Paraíso constitui-se em “avaliação temática integrada”, “condicionantes, deficiência e potencialidades”, “diretrizes e proposições para a política de desenvolvimento municipal”, “plano de ação municipal e projetos prioritários” e diversos textos de lei, a saber, como do Sistema Viário, Uso e Ocupação do Solo Urbano, dentre outras. Em relação ao Conselho do Plano Diretor de Desenvolvimento Municipal, vale transcrever os artigos que se seguem. Art. 27. Fica criado o Conselho do Plano Diretor de Desenvolvimento Municipal, de caráter consultivo e deliberativo, naquilo que a lei indicar, com as seguintes atribuições: Examinar, emitir pareceres, sugerir propostas relacionadas a planos, projetos e programas setoriais desenvolvidos pelo poder Executivo Municipal. Examinar, emitir pareceres, sugerir propostas relacionadas a legislação urbanística e do Plano Diretor Municipal de Bela Vista do Paraíso. Opinar e sugerir propostas relativas aos Planos Plurianuais de Investimentos e Lei de Diretrizes Orçamentárias. Analisar e emitir pareceres sobre Estudo Prévio de Impacto de Vizinhança (EIV). Atuar como auxiliar do poder Executivo e Legislativo Municipal na fiscalização da implementação do Plano Diretor Municipal de Bela Vista do Paraíso e legislação decorrente. Elaborar seu Regimento Interno. Art. 28. Os integrantes, titulares e suplentes, do Conselho do Plano Diretor de Desenvolvimento Municipal serão indicados por suas respectivas entidades e nomeados por Decreto do Executivo Municipal. Será presidido pelo Assessor Municipal de Planejamento e constituído pelos seguintes representantes: Assessoria de Planejamento do poder Executivo municipal. Poder Legislativo Municipal. De cada Conselho Municipal existente no Município. Associação Comercial e Industrial do Município. Associação de Moradores. Comissão Municipal de Defesa Civil – CMDEC. Loja Maçônica Visconde de Taunay. Rotary Clube de Bela Vista do Paraíso. Do órgão de planejamento da Região Metropolitana de Londrina, quando houver. Concessionária de saneamento básico. REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 13-revista_07.p65 181 29/10/2007, 21:43 181 O Processo de Elaboração e a Participação Popular nos Planos Diretores de Assaí/PR e de Bela VIsta do Paraíso/PR Companhia Paranaense de Energia Elétrica. Empresa Paranaense de Assistência Técnica e Extensão Rural – EMATER. Ordem dos Advogados do Brasil. Sindicato Patronal Rural. Sindicato dos Trabalhadores Rurais. Art. 31. São princípios gerais que norteiam a Política de Desenvolvimento Municipal: [...] III - Assegurar a participação do cidadão na gestão do desenvolvimento. Art. 32. A Política de Desenvolvimento Municipal será composta pelas seguintes vertentes. [...] V - Gestão democrática e desenvolvimento institucional Seguindo a estrutura do Estatuto da Cidade, constitui-se como objetivo geral do Plano Diretor Municipal de Bela Vista do Paraíso a gestão democrática da cidade, assegurando a participação comunitária, conforme estabelece seu artigo 3º, inciso II. Por fim, atentando para o fato da precariedade dos órgãos internos da Administração Pública Municipal, o projeto prevê uma reformulação do modelo existente, com o intuito de trazer efetividade à participação popular no processo de gestão do desenvolvimento municipal. 182 3 CONCLUSÃO O que se pretendeu abordar neste trabalho é o modo de elaboração dos Plano Diretores, ainda que de forma superficial, em especial quanto à participação da sociedade, bem como salientar que a criação de Conselhos Municipais para a questão urbana, além de ser uma demanda por parte da própria sociedade, é uma exigência do Estatuto da Cidade, pela interpretação do artigo 42, II, que prevê um sistema integrado de acompanhamento e controle do Plano Diretor, do artigo 43, I, que dispõe sobre a obrigatoriedade de órgão colegiados de política urbana, nacional, estadual e municipal, e do artigo 2º, II que estabelece como diretriz da política urbana a gestão democrática da cidade. Deve-se observar, ademais, que o artigo 1º, parágrafo único da Constituição Federal de 1988 estabeleceu o princípio da democracia direta, onde “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos temos desta Constituição”. Sob outro aspecto, as leis criadoras destes conselhos municipais são verdadeira conquista da sociedade, e qualquer tentativa de eliminar ou diminuir esta conquista se configura afronta ao princípio constitucional que veda o retrocesso das garantias fundamentais. Sobre o tema, J. J. Gomes Canotilho (1998, 327) leciona: O princípio da proibição do retrocesso social pode formular-se assim: o núcleo essencial dos direitos sociais já realizado e efectivado através de medidas legislativas (‘lei de segurança social’, ‘lei do subsídio de desemprego’, ‘lei do serviço de saúde’) deve considerar-se constitucionalmente garantido, sendo inconstitucionais quaisquer medidas estaduais que, sem a criação de outros esquemas alternativos ou compensatórios, se traduzam na prática numa ‘anulação’, ‘revogação’ ou ‘aniquilação’ pura e simples desse núcleo essencial. A liberdade de conformação do legislador e inerente autoreversibilidade têm como limite o núcleo essencial já realizado. REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 13-revista_07.p65 182 29/10/2007, 21:43 Miguel Etinger de Araujo Junior Do ponto de vista prático, esta conquista não pode se transformar em mera formalidade, valendo neste particular o alerta de Maria Paula Dallari Bucci sobre os problemas que ocorrem no Brasil quanto à falta de infra-estrutura para o conselhos, acrescentando ainda: Isso sem falar em problemas de índole mais política, entre eles o chamado “elitismo popular”, em que se verifica uma certa especialização dos representantes da função, restando pouco espaço para o cidadão não engajado em qualquer ONG, ou ainda, a superposição de representações, como indicou uma pesquisa do Instituto Brasileiro de Administração Municipal (IBAM), que apontava os secretários de saúde e as primeiras-damas dos Municípios como integrantes de quase todos os conselhos das pequenas cidades, independentemente da área temático. REFERÊNCIAS ALVES, Alaor Caffé. Planejamento metropolitano e autonomia municipal no direito brasileiro. São Paulo: Bushatsky, 1981. ASSAÍ/PR. Lei nº 824 de 01 dez 2004. Dados disponíveis em: <www.paranacidade.org.br>. Acesso em: 30 out. 2005. BELA VISTA DO PARAISO/PR. Dados disponíveis em:<www.paranacidade.org.br>. Acesso em: 03 dezembro 2005. .ECOPOLIS. Plano diretor de desenvolvimento municipal de Assaí 2004. Londrina, 2005. 1 CD-ROM. 183 BONAVIDES, Paulo. “Teoria constitucional da democracia participativa”. São Paulo: Malheiros, 2003. BRASIL. IBGE. Mapa de distribuição da população 2000. Disponível em: <http:// www.ibge.gov.br/home/geociencias/geografia/mapas_doc1.shtm>. Acesso em: 17 set 2007. ______. Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001. “Diário Oficial da República Federativa do Brasil”. Poder Executivo, Brasília, DF, 11 jul. 2001. ______. Ministério das Cidades. Disponível em: <http://cidades.gov.br>. Acesso em: 05 set 2007. BUCCI, Maria Paula Dallari. Gestão democrática da cidade. In: DALLARI, Adilson Abreu; FERRAZ, Sérgio. Estatuto da Cidade: comentários à lei federal 10.257/2001. São Paulo: Malheiros, 2003. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. Coimbra: Almedina, 1998. INSTITUTO POLIS. Disponível em: <www.polis.org.br>. Acesso em 30 de out. 2005. LEAL, Rogério Gesta. Direito urbanístico: condições e possibilidades da constituição do espaço urbano. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. MEDAUAR, Odete. ALMEIDA, Fernando Dias Menezes (Coord.). Estatuto da Cidade: lei 10.257, de 10.07.2001: comentários. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004 REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 13-revista_07.p65 183 29/10/2007, 21:43 O Processo de Elaboração e a Participação Popular nos Planos Diretores de Assaí/PR e de Bela VIsta do Paraíso/PR MUKAI, Toshio. Direito urbano-ambiental brasileiro. São Paulo: Dialética, 2002. PARANÁ. Lei Complementar nº. 86 de 07 de julho de 2000. RAZENTE, Nestor. Questionário sobre planos diretores. [mensagem pessoal]. Mensagem recebida por <[email protected]> 25 set 2005. RIBEIRO, Luiz Cesar de Queiroz, CARDOSO, Adauto Lucio. Plano diretor e gestão democrática da cidade. Revista de Administração Municipal - IBAM, Rio de Janeiro, v. 37, n. 196, p. 8-20, jul./set. 1990, p. 12. SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro. São Paulo: Malheiros, 1995. SOUZA, Solange Nozaki. Questionário sobre planos diretores. [mensagem pessoal]. Mensagem recebida por <[email protected]> 20 set 2005. 184 REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 13-revista_07.p65 184 29/10/2007, 21:43 Resenha 14-revista_07.p65 185 29/10/2007, 21:43 Luciana MendesPereira Roberto RESENHA DINIZ, Maria Helena. Lei de Introdução ao Código Civil brasileiro interpretada. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 89 a 173 (Arts. 4º e 5º). Luciana Mendes Pereira Roberto* A Professora Doutora Maria Helena Diniz é Titular de Direito Civil da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Professora de Direito Civil Comparado, de Filosofia do Direito e de Teoria Geral do Direito nos cursos de Pós-Graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Coordenadora da sub-área de Direito Civil Comparado dos Cursos de Pós-Graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Diante de breve exposição do currículo da autora, resta clara a sua experiência e sabedoria no que pertine ao tema da Lei de Introdução ao Código Civil - Decreto-Lei nº 4657 de 04 de setembro de 1942, a qual brilhantemente discorre nesta obra. Ao interpretar o Art. 4º1 da referida lei, trata da integração e o problema das lacunas no Direito, referindo o fato de quando o magistrado não encontra norma aplicável a um caso concreto, não sendo possível subsumir o fato a nenhum preceito, esta-se diante do problema das lacunas, que pode ocorrer pela falta de conhecimento sobre um status jurídico de certo comportamento, um defeito do sistema, uma ausência de norma ou uma disposição legal injusta ou em desuso. Para tanto deverá haver um desenvolvimento aberto, uma consciência da modificação que as normas experimentam para a aplicação do Direito. Essa integração, de acordo com os limites estabelecidos pelo Direito, de criar uma norma individual, em consonância com o ordenamento, é que suprirá a lacuna, atendo-se aos subconjuntos valorativo, fático e normativo que compõem o sistema jurídico. Em seguida aborda a localização sistemática do problema das lacunas jurídicas, o levantamento das questões relativas à lacuna dentro da ordenação jurídica e das questões desencadeadas paralelamente a ela. Há o problema das lacunas com a própria concepção do Direito (se o direito constitui ou não uma ordem limitada), tendo em vista o prescrito no Art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil, e o problema lógico da completude ou da incompletude do sistema. Admitindo as lacunas, há os problemas de sua constatação, de seu preenchimento, da legitimidade de seu uso; e, assim, distingue três questões básicas para tanto: da existência, constatação e preenchimento das lacunas. O tema discute a questão da existência das lacunas, o qual sub-divide em quatro partes. Inicia com considerações gerais sobre a existência das lacunas, ou seja, traça perguntas sobre a completude do sistema, sobre o dinamismo ou estática do sistema jurídico, entre outras, mostrando que deve haver a discussão do Direito como um ordenamento. Assim, o problema da existência de lacunas vai depender da concepção que se tem do ordenamento jurídico, ou sob um prisma pragmático (preenchimento), e que ambos constituirão as bases das investigações sobre o problema das lacunas. A seguir trata da lacuna como problema inerente ao sistema jurídico, ou seja, depende de consciência da mobilidade e temporalidade do sistema. Para tanto há duas corrente antitéticas: uma que afirma a inexistência da lacuna (plenitude hermética do Direito Kelsen) e outra que sustenta sua existência (concepção de sistema aberto e incompleto). * A resenhista é Advogada. Mestre em Direito Negocial pela Universidade Estadual de Londrina. Especialista em Direito Empresarial e em Bioética pela Universidade Estadual de Londrina. Docente na Universidade Estadual de Londrina e no Centro Universitário Filadélfia - UNIFIL. 1 Lei de Introdução ao Código Civil: Art. 4º. Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito. REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 14-revista_07.p65 187 29/10/2007, 21:43 187 Resenha: DINIZ, Maria Helena. Lei de Introdução ao Código Civil brasileiro interpretada 188 Há lacuna nos casos em que o direito objetivo não oferece uma solução de pronto para o caso concreto, uma determinada circunstância não encontra satisfação na ordem jurídica. A autora defende a corrente da existência das lacunas, entendendo que o Direito é uma realidade dinâmica, dentro de um contexto de atualização com as mudanças da vida das pessoas em sociedade, que traz novas situações, como alterações nos fatos, nos valores e nas normas, considerando que o Direito não é estático, está sob constante progresso. É apresentado, de forma gráfica, o que traz bastante clareza ao leitor, que o sistema normativo é aberto e está relacionado com os sistemas fático e de valores (axiológico). Assim, quando o juiz aplica o Direito ao caso concreto não se baseia somente no sistema normativo, mas também no fático e no axiológico, não sendo relevante apenas se determinada conduta é proibida ou permitida no sistema normativo, mas sim se há possibilidade de solução pelos outros sistemas. Presente a lacuna, o juiz transita pelos “subsistemas”, até supri-la, e dessa forma a lacuna fica com caráter sempre provisório, pois o Direito tem uma temporalidade própria. Fica expresso o entendimento, pela autora, que o Direito é lacunoso, sob uma análise dinâmica. Há o apontamento de três espécies de lacunas: a normativa (ausência de norma); ontológica (a norma não corresponde aos fatos sociais) e axiológica (há ausência de norma justa). Apresenta, ainda, a lacuna como problema de jurisdição, considerando-a uma questão processual, pois é este que, na aplicação das normas, levanta o problema da lacuna. Refere-se a Kelsen que a princípio afasta a idéia da existência de lacunas, mas acaba por admiti-la como mera ficção, estabelecendo limites ideológicos à atividade judicial, ou seja, reconhece a incompletude do sistema. A colmatação de lacunas, em um determinado processo judicial, soluciona um problema individualmente e não tem a finalidade de eliminar conflitos. Dessa forma, o Direito será sempre lacunoso e, ao mesmo tempo, sem lacunas. Isso implica em dizer que a lacuna faz um fato indecidível, e cabe ao Judiciário torná-lo decidível. Trata, assim, da aporia das lacunas (raciocínios coerentes, conclusões contrárias): “[...] o Direito é sempre lacunoso, mas é também, ao mesmo tempo, sem lacunas”, de forma que o sistema jurídico não é completo, mas completável, exercendo as lacunas dupla função, ora fixando os limites para as decisões dos magistrados, ora justificando a atividade do Legislativo. O fato de que o termo lacuna, trata-se de uma aporia é porque alberga idéias conflitantes, “uma questão sem saída a que não há resposta unânime”. No entender da autora, todas as doutrinas pertinentes aos temas, na realidade se compartilham, partindo de parâmetros diferentes. Na següência, escreve sobre a constatação e preenchimento das lacunas, mostrando que o primeiro passo é a identificação (constatação) da lacuna, a partir da admissão de sua existência. Para tanto se faz necessária a análise de duas situações: o ordenamento jurídico e a existência de fato da lacuna (ausência de norma tida como lacuna), resultante de um juízo de apreciação e de integração. A constatação e o preenchimento das lacunas são aspectos correlatos, mas independentes e indicados pela própria lei (Art. 4º Lei de Introdução do Código Civil). Quanto aos meios supletivos das lacunas, mostra que são eles: A analogia, consistente na aplicação de uma norma prevista para uma situação distinta, a um caso que não seja contemplado por norma jurídica, a este semelhante. Envolve duas fases: a constatação e um juízo de valor das lacunas, levando à decisão do magistrado, que atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum. É um processo revelador de normas implícitas, com fundamento na igualdade jurídica, em “razões relevantes de similitude” e na teleologia. Se o caso sub judice não estiver previsto em norma jurídica, se houver uma semelhança com outro previsto, que esse elemento de identidade entre eles for fundamental, será o caso da aplicação da analogia. Esta pode ser distinta em analogia legis (aplicação de uma norma existente) e a analogia juris (conjunto de normas, do qual se extrai elementos de aplicabilidade no caso concreto não contemplado e similar). Na realidade toda analogia é juris, devido ao fato de que toda aplicação prescinde do sistema jurídico que o envolve. Cita também os argumentos analógicos: argumentum a simili ad simile (razão), argumentum a fortiori (as notas convenham ao segundo caso em grau distinto do primeiro; podem ser a maiori ad minus e a minori ad maius), e argumentum a contrario (instrumento integrador do sistema, uma “redução teleológica”). REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 14-revista_07.p65 188 29/10/2007, 21:43 Luciana MendesPereira Roberto O costume, está em plano secundário, e é também uma fonte jurídica decorrente do uso pelo interessado, pelos tribunais e doutrinadores, formada por dois elementos necessários: o uso e a convicção jurídica, sendo que de acordo com o Art. 4º da LICC, deve ser aplicado “conforme usos e costumes” e em “respeito aos bons costumes”, respeitando sua continuidade, sua uniformidade, sua diuturnidade, sua moralidade e sua obrigatoriedade, levando em conta os fins sociais, as exigências do bem comum, os ideais de justiça e de utilidade comum. Existem em três espécies: o secundum legem (previsto na lei), o praeter legem (supre a lei em caso de omissão) e o contra legem (em sentido contrário à lei: norma de costume oposta à lei ou o não-uso formal da lei, respectivamente consuetudo abrogatoria e desuetudo). É útil não apenas para o caso da lacuna normativa, mas também para a lacuna axiológica (injustiça ou inconveniência da aplicação da lei vigente) e para a lacuna ontológica (incompatibilidade entre fatos e normas). Assim, nota-se que a aplicação dos costumes, para a integração do sistema normativo, exige sensibilidade e atualidade social por parte do aplicador. Os princípios gerais de direito, estão contidos de forma imanente no ordenamento jurídico e são úteis quando da falha da analogia e do costume no preenchimento da lacuna. Eles não têm existência própria, sendo vitalizados pelo juiz, ao descobri-los. Devem conter uma resposta segura para o caso duvidoso e não podem apresentar oposição ao disposto no ordenamento. Devido à imprecisão de seu caráter, os princípios gerais de direito possuem diversas concepções pelas escolas jurídicas. Há doutrinadores que simplesmente combatem a concepção de princípios gerais de direito; há a escola que os identifica com as normas de direito natural; há a que os entende como normas baseadas na eqüidade, a própria eqüidade (a autora é contrária a esse entendimento, pois considera a eqüidade meio diverso de preenchimento de lacunas); há a que os considera como tendo caráter universal, ditados pela ciência e pela Filosofia do Direito; há a que os caracteriza como princípios historicamente contingentes e variáveis e norteadores extraídos das diversas normas do ordenamento jurídico; há, ainda, uma posição eclética, que busca conciliar todas as demais posições. Porém, existe um elemento comum a todas as doutrinas, que é a justiça. Maria Helena Diniz ensina a multiplicidade da natureza dos princípios gerais de direito, que podem ser decorrentes das normas do ordenamento jurídico, derivados das idéias políticas e sociais vigentes e reconhecidos pelas nações civilizadas com historicidade comum. Isso significa que recaem sobre os sistemas normativo, fático e valorativo, preenchendo as lacunas. Ocorre que muitos dos princípios gerais do direito encontram-se prescritos em normas e, mesmo não estando positivadas, guiam o magistrado pelo senso de justiça, pelo valor genérico que integram o sistema jurídico. O magistrado deve procurar, ao aplicá-los, primeiramente buscar os princípios fundamentais do ordenamento positivado do caso sub judice, atingir os princípios que informam o diploma onde se insere a instituição, procurar os princípios de direito consuetudinário, recorrer ao direito internacional e invocar os elementos de justiça. A eqüidade, conforme se posicionou a autora, trata-se de meio diverso de preenchimento de lacunas, devendo ser utilizada nos casos em que o juiz, constatando semelhança entre fatos diversos, faz um juízo de valor, e assim não consegue usar a analogia, o costume e os princípios gerais de direito Há três acepções que ligam a eqüidade (Alípio Silveira): a latíssima (suprema regra de justiça), a lata (idéia absoluta de justiça) e estrita (a justiça no caso concreto). Pode ser dividida em (Agostinho Alvim): legal (contido no texto da norma) e judicial (o legislador permite o seu uso no caso concreto), sendo que o pressuposto de qualquer das duas é a flexibilidade da lei. Apresenta, ainda, os requisitos da eqüidade (Limongi França): decorrência do sistema e do direito natural; inexistência de texto claro e inflexível sobre a matéria; omissão, defeito ou generalidade acentuada da lei; apelo para as formas complementares de expressão do direito antes da livre citação da norma eqüitativa; elaboração científica em harmonia com o sistema e com os princípios o objeto da decisão. O legislador, ao elaborar uma lei, deve ter em conta todos os fatores econômicos e morais, as atualizações da vida em sociedade, as tendências, a vontade, a consciência do povo. Assim, a eqüidade exerce influência da elaboração legislativa, além de desempenhar importante papel na interpretação das normas, destacando a finalidade da lei sobre a sua letra e a preferência da mais favorável e humana interpretação. Exercendo, assim, a adaptação da norma ao caso concreto, ao caso sub judice, suplementando a lei, integrando o sistema jurídico. Nessa função integrativa que exerce, a eqüidade preenche as lacunas voluntárias (pelo próprio REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 14-revista_07.p65 189 29/10/2007, 21:43 189 Resenha: DINIZ, Maria Helena. Lei de Introdução ao Código Civil brasileiro interpretada 190 legislador), além dos casos que fogem à previsão do elaborador da norma. Nesse contexto, é a eqüidade o poder conferido ao magistrado para revelar o direito latente, um poder discricionário, mas de forma alguma arbitrário, que se utiliza no preenchimento das lacunas, relacionando os sistemas normativo, fático e valorativo. Na seqüência, registra-se a interpretação do Art. 5º2 da referida Lei de Introdução ao Código Civil, expondo a princípio a utilidade prática do citado artigo. A autora ensina que a ciência do Direito surge como uma teoria hermenêutica por ter a tarefa de interpretar normas, verificar a existência da lacuna jurídica e afastar contradições normativas; é a teoria da decisão. Para tanto, deverá estabelecer a sistematização de normas, daí a sua função de organização, com a finalidade de decisão, ou seja, da busca de condições de possibilidade de resolução de conflitos. A ciência do Direito não se separa da técnica, o conhecimento e domínio de meios para atingir certo objetivo, sendo instrumento de viabilização do Direito. A dogmática jurídica tem uma função social, no dever de limitar as possibilidades de variação na aplicação do Direito e de controlar a consciência das decisões, com base em outras decisões. É apresentada uma interessante construção silogística (Engisch): norma geral (premissa maior); caso conflitivo (premissa menor) e conclusão (decisão), referindo-se à subsunção da norma ao caso concreto, em que a grande dificuldade é encontrar a premissa maior, conduzindo a dois problemas para a efetiva decisão jurídica: a qualificação jurídica e as regras decisórias. Quanto à qualificação jurídica, a dificuldade está no emprego de linguagem natural ou comum e falta de informação sobre os fatos do caso, remediada pelas presunções legais. Diante de tais apontamentos, entende-se que o jurista fará uma consideração dinâmica do Direito (sistemas normativo, fático e valorativo), para fornecer os caminhos da decisão, aplicando a norma ao caso concreto, e atendendo à finalidade social e ao bem comum. Em continuidade, analisa-se o conceito, funções e caráter necessário da interpretação. Tanto a lei clara como a obscura devem ser interpretadas; porém à obscura deverá ser somada certa dose de atividade intelectual, pois tal norma contém palavras fora de seu significado, apresenta imprecisões, fórmulas falhas, pensamento incompleto ou confuso, ou, ainda, ambigüidade, que pode aparecer na letra da lei ou no seu pensamento ou conteúdo. Interpretar é, então, descobrir o sentido e o alcance da norma, buscando o significado dos conceitos jurídicos, que se adaptam a mudanças com a evolução e o progresso da sociedade, extraindo da norma o sentido apropriado que leve a uma decisão. As funções da interpretação são conferir a aplicabilidade da norma às relações sociais, estender o sentido da norma a relações novas, temperar o alcance do preceito normativo. A hermenêutica é a teoria científica da arte de interpretar, a ela deve ser somada a intersubjetividade, ou seja, o intérprete deve levar em conta os fatores valorativos e sociais contidos na norma, baseado no momento histórico em que está vivendo, garantindo, ainda, seus fins sociais. A interpretação pode ser considerada não-autêntica (Kelsen: determinar o quadro das significações possíveis da norma geral) e autêntica (cria direito para o caso concreto). O texto destaca a liberdade do Judiciário, que não ficará dependente de decisões anteriores, pois o magistrado é o intérprete necessário e permanente da lei, com a obrigação apenas de fundamentar suas decisões, podendo interpretar diversamente em casos concretos semelhantes. Interpretar é estabelecer uma norma individual, assim a interpretação é um ato normativo. E em seguida passa a tratar, então, a questão da vontade da lei ou do legislador como critério hermenêutico, em duas teorias: a subjetiva (vontade do legislador) e a objetiva (vontade da lei, concentrada em quatro argumentos: a vontade, a forma, a confiança e a integração). Ambas são criticadas, a primeira por favorecer ao autoritarismo e a segunda por favorecer ao anarquismo. Os dogmas (caráter objetivo) e a liberdade (caráter subjetivo) levam ao caráter deontológico e normativo da interpretação, em que um ato de vontade se efetiva por razões axiológicas e cria uma norma individual (decidibilidade), com um mínimo de perturbação social. Com referências às técnicas interpretativas, estas podem ser: gramatical, lógica, sistemática, interpretativa histórica, sociológica ou teleológica. Tais processos interpretativos se completam, são operações distintas que devem atuar conjuntamente na descoberta do sentido e alcance da norma. 2 Art. 5º. Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum. REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 14-revista_07.p65 190 29/10/2007, 21:43 Luciana MendesPereira Roberto Destaca, a seguir, a técnica interpretativa teleológica e integração da lacuna ontológica e axiológica, mostrando que o Art. 5º da LICC indica o critério do fim social e o do bem comum, para a adaptação da lei às novas exigências sociais e aos valores positivos, mostrando que a finalidade da norma não é ser dura, mas justa e de acordo com as necessidades fático-sociais vigorantes na sociedade no momento de aplicação jurídica. Quanto ao fim social, ensina a autora que não há lei que não contenha uma finalidade social imediata, e é aí que está presente a necessidade de sua correta aplicação a um dado caso, pois o aplicador deverá ter por escopo a felicidade da sociedade política, a busca do fim social. O bem comum, por sua vez, é a liberdade, a paz, a justiça, a segurança, a utilidade social, a solidariedade, almejados pela sociedade, ficando acima dos interesses particulares dos indivíduos. Assim, são justas as leis que têm por finalidade o bem comum, que atendam ao interesse social; e, no caso da solução de conflitos duvidosos, o intérprete deverá seguir o caminho que mais se aproxime da utilidade comum dos cidadãos, da coletividade em geral. O bem comum é a preservação dos valores positivos vigentes na sociedade, que dão sustento a determinada ordem jurídica. Ao tratar dos efeitos do ato interpretativo, o texto esclarece que, tanto na interpretação extensiva quanto na restritiva, deve ser considerado o fim e os valores da criação e da aplicação da norma. O hermeneuta deverá observar o espírito do texto normativo, a eqüidade, o interesse geral, o paralelo entre a norma interpretanda e outras, e ao tipo da disposição normativa interpretanda, e assim chegará a uma interpretação declarativa com a correspondência entre a expressão lingüístico-legal e a vontade da lei. O papel da ideologia, na aplicação jurídica, é neutralizador do valor, pois é o universo dos valores possíveis de uma pessoa, um grupo, uma cultura. A decisão a ser proferida deverá obedecer às exigências legais, atendendo aos fins sociais e valorativos do direito. Haverá ideologia quando se neutraliza uma escolha no estabelecimento de objetivos (fim social, bem comum). Finalizando a análise do Art. 5º da LICC, trata da discricionariedade judicial, devido ao fato de que cabe ao Judiciário, no caso de lacunas, adequar o Direito em relação à realidade, fática, social e normativa, selecionado a melhor solução que a lei comporte, buscando a justiça. Diante de todo o aduzido, conclui-se que a função jurisdicional, seja de subsunção, seja de integração, é ativa, tendo em vista as mudanças sociais e a atividade intelectiva do juiz ao aplicar a norma individual, nos limites de sua jurisdição, conforme a lei e o Art. 4º e o Art. 5º da Lei de Introdução do Código Civil, que trazem contribuições valiosas para a referida aplicação no Brasil. REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 14-revista_07.p65 191 29/10/2007, 21:43 191 Resenha da obra “Ética e Direito”, de Chaim Perelman RESENHA Resenha da obra “Ética e Direito”, de Chaim Perelman. Editora Martins Fontes. São Paulo, 1996. Osmar Vieira da Silva* 192 Das lições de Perelman, é possível extrair-se o entendimento de que o sentimento de injustiça nasce no homem a partir do desconforto que experimenta em face de alguma falta ou privação cuja causa é a ação de um outro homem. Inviável, por outro lado, pensar-se o justo sem que o agir do homem seja referido ao agir de outro homem. A sensação de injustiça se dá ao experimentar a carência de algo de que se necessita e de que se foi privado. As regras da justiça assentam nessa premissa e por isso mesmo precisam, forçosamente, ser referidas aos “sistemas de necessidades”. Somente quando se põe para o homem o desafio de responder à indagação de como agir quando há um conflito de interesses é que adquire relevo o problema da Justiça. A definição de quem perde e quem ganha e em que extensão isso se dá, quem se priva e quem será satisfeito, quem desfrutará de uma situação de vantagem e quem sofrerá as conseqüências da desvantagem correspectiva é problema de justiça. Neste crucial momento da convivência humana é que o problema se apresenta e para solucioná-lo buscam-se respostas de natureza ética. Neste espaço também opera o Direito. Refletindo sobre a Justiça, Perelman acentua que de todas as noções prestigiosas, a de justiça parece uma das mais eminentes e a mais irremediavelmente confusa, pela forte carga emocional que sempre carrega consigo. Buscando escapar a essa contingência, ou reduzi-la ao máximo, o autor começa por analisar as concepções mais correntes de justiça, demonstra como são inconciliáveis e carecedoras de operacionalidade e alinha as seguintes: a) a cada qual a mesma coisa; b) a cada qual segundo os seus méritos; c) a cada qual segundo suas obras; d) a cada qual segundo suas necessidades; e) a cada qual segundo sua posição e f) a cada qual segundo o que a lei lhe atribui. Para Perelman, se dermos a todos a mesma coisa, seremos injustos para os que têm como correto, precisamente, um tratamento diferenciado, como se depreende de todas as subseqüentes posições, sem esquecer que a mesma coisa não proporcionaria a todos os homens a mesma satisfação. Se elegermos, por exemplo, o mérito de cada um como fundamento, por que modo definir este mérito e que critérios devem ser levados em conta para sua determinação? Adotando-se a regra de atribuir a cada qual o que for devido segundo suas obras, além da dificuldade de se definir a escala de valor capaz de medir estas obras, as mais diversificadas que seriam, ainda se estaria diante de um critério que não é moral, pois deixa de levar em conta a intenção e os sacrifícios realizados, considerando unicamente o resultado da ação. * Doutor em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Coordenador do Curso de Direito da UniFil e Advogado. REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 15-revista_07.p65 192 29/10/2007, 21:43 Osmar Vieira da Silva Optar pela regra de dar a cada qual segundo suas necessidades coloca o homem diante do óbice de termos que definir essas necessidades, para o que seria forçado a adotar critérios meramente formais, porquanto as divergências a respeito ocasionariam inúmeras variantes da mesma fórmula. Impensável admitir-se como regra de justiça dar a cada qual segundo sua posição, fórmula aristocrática, privilegiadora e necessariamente desigualizadora. A última regra, dar a cada um o que a lei lhe atribui resultaria, necessariamente, em transferir, de modo absoluto, o poder de definir o justo para quem é investido do poder de ditar a lei. Diante disso, três atitudes são possíveis, diz Perelman. A primeira consistiria em declarar que essas diversas concepções de justiça não têm absolutamente nada em comum e não estão unidas por nenhum vínculo conceitual, donde o dilema de ter que rejeitar todas, em nome da justiça, ou ter que eleger uma dentre elas, e esta escolha já se demonstrou ser insatisfatória e não operacional. Evitar esse dilema é o que leva Perelman a tentar uma terceira solução. Afirma o autor ser possível superar o impasse, procurando-se pesquisar o que há de comum nas diferentes concepções de justiça precedentemente referidas. Conclui por encontrar esse elo na idéia de “igualdade”, subjacente a todas as posições precedentemente analisadas. A noção de justiça sugere a todos, inevitavelmente, a idéia de certa igualdade. A igualdade perfeita, porém, todo mundo percebe imediatamente, é irrealizável e constitui apenas um ideal para o qual se pode tender, um limite do qual se pode tentar aproximar na medida do possível. É imprescindível existir certa semelhança entre os seres aos quais se aplica a justiça, pois, inexistindo uma medida comum, isto é, não havendo identidade, a questão da realização da justiça nem sequer tem de ser colocada. E se hoje se reivindica tratamento justo para todos os homens, é porque o homem reconheceu semelhança em todos os outros homens, é porque a noção de humanidade foi ficando pouco a pouco evidente. Ocorre que esta igualdade essencial dos homens está emoldurada por inúmeras e complexas diferenças. Daí o dilema – há que se tratar a todos da mesma forma ou devem existir formas diferenciadas de tratamento, para assegurar, precisamente, o igual tratamento que se deseja? E se formas diferenciadas forem necessárias, o que se deverá levar em conta para tornar justo o tratamento diferenciado? Recai-se, então, nas divergências e inconciliabilidades antes referidas. É possível, entretanto, superar esse impasse, diz Perelman. Em todas as concepções de justiça há uma atitude comum – trata-se igualmente os iguais. Pretende-se que se leve em conta o mérito de igual tratamento para os que têm “igual” mérito, valendo o mesmo para necessidades, posição social, etc. Seja qual for a divergência sobre outros pontos, todos estão de acordo sobre o fato de ser justo tratar da mesma forma os seres que são iguais de certo ponto de vista, que possuem uma “característica comum”, a única que se deve levar em conta na administração da justiça. Perelman propõe seja esta característica qualificada de “essencial” e os que a tiverem em comum pertencem a uma mesma categoria, à mesma categoria essencial. Portanto, pode-se definir a justiça formal ou abstrata como um princípio de ação segundo o qual os seres de uma mesma categoria essencial devem ser tratados da mesma forma. Abandonar-se-ia, de uma vez por todas, a improfícua procura da “justiça material” como algo suscetível de prévia determinação. Conclui, portanto, que “o único meio que temos de dizer sobre a justiça ou injustiça de um ato consiste na igualdade de tratamento que reserva a todos os membros de uma mesma categoria essencial”. A partir daí, pode-se definir a noção de “eqüidade” como técnica de superação das antinomias da justiça, decorrentes do desejo de se aplicar simultaneamente várias regras de justiça incompatíveis. Por outro lado, se, de uma perspectiva formal, o pensamento de Perelman oferece diretivas que parecem fundamentais, permanece irresolvido o problema da plena legitimidade da ordem jurídica. REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 15-revista_07.p65 193 29/10/2007, 21:43 193 Resenha da obra “Ética e Direito”, de Chaim Perelman Destarte, se é exato que só pela ordem jurídica se assegura, em última instância (com impositividade), a justiça relativa, contingente, possível em determinado momento histórico e em certo espaço político, isso implica o problema da legitimidade desta ordem jurídica, sempre em permanente questionamento. Toda ordem jurídica é tão mais legítima quanto mais amplamente possibilita a explicitação das necessidades pelos indivíduos e grupos que sob seu império se colocam, a par de viabilizar-lhes a organização para tê-las atendidas (PROCON, Juizados Especiais, etc). É mais justo o ordenamento que menos necessidades deixa insatisfeitas e mais injusto o que maior número de necessidades deixa desatendidas. O Direito é, portanto, e sempre, uma forma possível de realização histórica e social da justiça, não de uma justiça absoluta, nem necessariamente a mais perfeita. Ele apenas formaliza e busca implementar o projeto de justiça possível nos limites da contingência que lhe dita e lhe põe a correlação real das forças operantes na sociedade. Pode-se, pois, dizer que toda ordem jurídica realiza alguma justiça e que ela será tanto mais quanto menos necessidades deixar insatisfeitas e menos expectativas desatendidas instituir. E tanto mais é injusta quanto mais desiguala, privilegiando, com o que agrava o número dos excluídos e dos insatisfeitos. Portanto, a medida da justiça ou injustiça de uma ordem jurídica se afere pelo maior ou menor grau de coerção que o poder político institucionalizado precisa exercer para assegurar a paz social, ou em outros termos, paradoxalmente, o Direito é tão mais necessário quanto mais injustiça determina a ordem social existente, donde as sociedades mais perfeitas serem aquelas menos necessitadas da coerção do Direito e, conseqüentemente, dos juristas. 194 REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4 15-revista_07.p65 194 29/10/2007, 21:43