Revista Jurídica Edição 2007

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Sr. Alberto Luiz Candido Wust .................... 1º Tesoureiro
Sr. José Severino ......................................... 2º Vice-Tesoureiro
Dr. Osni Ferreira (Rev.) ................................ Chanceler
Dr. Eleazar Ferreira ...................................... Reitor
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REVISTA JURÍDICA da UniFil
Ano IV – nº 4 – 2007
Órgão de Divulgação Científica do
Curso de Direito da UniFil - Centro Universitário Filadélfia
COORDENADOR DO COLEGIADO DO CURSO DE DIREITO:
Prof. Dr. Osmar Vieira da Silva
COORDENADOR DO NÚCLEO DE PRÁTICAS JURÍDICAS:
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REITOR:
Dr. Eleazar Ferreira
PRÓ-REITOR DE ENSINO DE GRADUAÇÃO:
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SUMÁRIO
Linha de Pesquisa “Dogmática Jurídica, Desenvolvimento e Responsabilidade
Social”
TRABALHO, MEDO E SOFRIMENTO: CONSIDERAÇÕES ACERCA DO ASSÉDIO MORAL ...... 1 3
Ana Paula Sefrin Saladini
DEVER DE DOCUMENTAÇÃO, ACESSO AO PROCESSO CLÍNICO E SUA PROPRIEDADE. UMA
PERSPECTIVA EUROPÉIA ...................................................................................................................... 2 5
André Gonçalo Dias Pereira
COMPROMISSO DE AJUSTAMENTO DE CONDUTA ........................................................................ 3 6
Demétrius Coelho Souza
Vera Cecília Gonçalves Fontes
A TUTELAANTECIPADA EM SEDE DE JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS .......................................... 5 1
Hylea Maria Ferreira
O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA PUBLICIDADE E PROPAGANDA DO GOVERNO ........... 6 4
Marcos Antônio Striquer Soares
O PRINCÍPIO DO NÃO-CONFISCO NO DIREITO TRIBUTÁRIO .................................................... 7 7
Mary Silvea Santana Vieira
O CONTEMPT OF COURT (desacato à ordem judicial) NO BRASIL ................................................ 9 1
Osmar Vieira da Silva
CONTRATO: DO TRADICIONAL A CELEBRAÇÃO ELETRÔNICA – ASPECTOS FORMAIS .. 112
Simone Vinhas de Oliveira
Valkíria A. Lopes Ferraro
Vinicius Franco da Silva
Wesley Tomaszweski
Linha de Pesquisa “Teorias do Direito do Estado e Cidadania”
CONSIDERAÇÕES SOBRE O PODER CONSTITUINTE .................................................................. 127
Ana Carolina Miiller Lopes
Ana Karina Ticianelli Möller
A INFLUÊNCIA DA TÓPICA NO PENSAMENTO DE PETER HÄBERLE E O SEU CONCEITO DE
INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL ............................................................................................ 134
Carolina V. Ribeiro de A. Bastos
Eder Fernandes Mônica
Samia Moda Cirino
O PRINCÍPIO DA INTEGRIDADE COMO MODELO DE INTERPRETAÇÃO CONSTRUTIVA DO DIREITO EM RONALD DWORKIN ......................................................................................................... 144
Erika Juliana Dmitruk
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Estudos de Casos
PROTEÇÃO DA CRIANÇA EM FACE DA PUBLICIDADE DE MEDICAMENTOS INFANTIS1 .... 159
Ester Okamoto Della Costa
Raquel Sanchez de Lima
O PROCESSO DE ELABORAÇÃO E A PARTICIPAÇÃO POPULAR NOS PLANOS DIRETORES DE
ASSAÍ/PR E DE BELA VISTA DO PARAÍSO/PR ............................................................................... 176
Miguel Etinger de Araujo Junior
Resenha
RESENHA - DINIZ, Maria Helena. Lei de Introdução ao Código Civil brasileiro interpretada ... 187
Luciana Mendes Pereira Roberto
RESENHA - Resenha da obra “Ética e Direito”, de Chaim Perelman ................................................ 192
Osmar Vieira da Silva
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EDITORIAL
O instante de dar ao público um novo número da Revista Jurídica da
UniFil é sempre um momento de reflexão e revisão dos trabalhos desenvolvidos pelo Conselho Editorial na publicação de cada número. É sempre uma
satisfação reunir textos sobre assuntos de relevante interesse para o Curso
de Direito da UniFil, assim como aceitar o convite de debate que cada texto
provoca. Essa alegria de elaboração e conclusão de cada número, entretanto, vem conjugada com a responsabilidade de se produzir um novo número a
ser publicado em um futuro próximo. A Revista Jurídica da UniFil , agora, já
no quarto ano de publicação, provoca a renova do ânimo para a produção de
um novo número, com novos textos, novos assuntos, novos debates. É a alegria pela continuidade dos trabalhos acadêmicos, no intuito de aperfeiçoamento do Curso de Direito, da Instituição onde ele se realiza, da sociedade.
No presente número da Revista, foi estabelecida uma divisão nova dos
trabalhos apresentados. Os artigos científicos foram divididos entre as duas
linhas de pesquisa do Curso de Direito da UniFil: 1.- Dogmática Jurídica,
Desenvolvimento e Responsabilidade Social; e 2.- Teorias do Direito do Estado e Cidadania. Entre os artigos encontram-se trabalhos de ex-alunos do
Curso de Direito da UniFil, o que muito honra a todos. Como terceira parte,
dessa nova divisão, foram incluídos estudos de caso, apropriados para uma
área do conhecimento alocada entre as chamadas Ciências Sociais Aplicadas. E uma quarta parte foi reservada a resenha.
Fica mais uma vez o convite a toda a comunidade acadêmica voltada ao
conhecimento jurídico para participar não só dos debates e questionamentos,
como também do próximo número da Revista Jurídica da UniFil
Conselho Editorial
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Linha de Pesquisa “Dogmática Jurídica, Desenvolvimento e Responsabilidade
Social”
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Ana Paula Sefrin Saladini
TRABALHO, MEDO E SOFRIMENTO: CONSIDERAÇÕES ACERCA DO
ASSÉDIO MORAL
Ana Paula Sefrin Saladini*
O medo destrói a saúde mental dos trabalhadores de modo progressivo e
inelutável, como o carvão que asfixia os pulmões do mineiro com silicose.
(Dejours).
RESUMO
O presente trabalho aborda o problema do assédio moral no ambiente de trabalho. Partindo-se da
definição do tema, é feita uma análise do panorama nacional da questão, abordando, ainda, as
perspectivas legislativas. Na seqüência, analisa-se a responsabilidade do empregador. Discutemse questões pertinentes ao medo e ao sofrimento inerentes ao trabalho, e do medo utilizado como
instrumento pelo empregador, ora visando o incremento da produtividade, ora como mero exercício
arbitrário de poder. Por fim, verificam-se as conseqüências do medo e do sofrimento na saúde do
trabalhador.
Palavras-chave: Assédio Moral. Medo. Sofrimento. Abuso de Poder. Saúde.
WORK, FEAR AND SUFFERING: CONSIDERINGS CONCERNING THE
MORAL SIEGE
13
ABSTRACT
The present work approaches the problem of the moral siege in the work environment. Breaking
itself of the definition of the subject, an analysis of the national panorama of the question is made,
approaching, still, the legislative perspectives. In the sequence, it is analyzed responsibility of the
employer. Pertinent questions to the inherent fear and the suffering to the work, and of the used
fear are argued as instrument for the employer, however aiming at the increment of the productivity,
however as mere arbitrary exercise of being able. Finally, the consequences of the fear and the
suffering in the health of the worker are verified.
Keywords: Moral Siege. Fear. Suffering. Abuse of Being Able. Health.
1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O presente estudo visa distinguir duas situações específicas que podem desencadear transtornos mentais e de comportamento relacionados com o trabalho: o medo e o sofrimento psíquico no ambiente de trabalho.
Ainda que, em algumas profissões, essas circunstâncias sejam inerentes ao
trabalho, as práticas empresariais modernas, muitas vezes, têm incrementado a cultura do medo e
sofrimento nas relações de trabalho, ora como meio de incremento de produtividade, ora como
mero exercício arbitrário de poder.
* Juíza do Trabalho Titular da Vara do Trabalho de Jacarezinho-Paraná. Especialista em Direito do Trabalho. Especialista em
Direito Civil e Processo Civil. Professora de Graduação e Pós-Graduação.
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Trabalho, Medo e Sofrimento: Considerações Acerca do Assédio Moral
Esse panorama leva ao desenvolvimento de doenças mentais relacionadas com
o trabalho, causando, a médio e longo prazo, perda de capacidade produtiva. Além disso, as situações de medo e sofrimento criados pelo empregador têm sido qualificadas pela doutrina e jurisprudência como práticas de assédio moral, capazes de gerar dever de indenizar.
2 ASSÉDIO MORAL
2.1 Definição
O assédio moral também é conhecido como mobbing (GUEDES, 2003, p.
162) ou psicoterror. Uma das maiores autoridades internacionais no assunto é a psicanalista francesa Marie-France Hirigoyen, que assim define assédio moral (HIRIGOYEN, 2003, p. 65):
1
Por assédio em um local de trabalho temos que entender toda e qualquer
conduta abusiva manifestando-se sobretudo por comportamentos, palavras, atos, gestos, escritos que possam trazer danos à personalidade, à
dignidade ou à integridade física ou psíquica de uma pessoa, pôr em perigo
seu emprego ou degradar o ambiente de trabalho.
Heinz Leymann (apud MENEZES, 2003, p. 291), considerado pioneiro no assunto, identificou como doença profissional enfermidades de natureza psicossomática, derivadas
do mobbing, e definiu a figura do assédio moral nos seguintes moldes:
...a deliberada degradação das condições de trabalho através do estabelecimento de comunicações não éticas (abusivas), que se caracterizam pela repetição, por um longo tempo, de um comportamento hostil de um superior ou
colega(s) contra um indivíduo que apresenta, como reação, um quadro de
miséria física, psicológica e social duradoura.
14
Destaca-se, de tais conceitos, a necessidade de a conduta ofensiva ser reiterada: fatos isolados, ainda que ofensivos à integridade moral do empregado, não configuram o assédio moral. Isso porque o próprio termo assédio tem a conotação de insistência impertinente, perseguição constante, estabelecimento de um cerco com a finalidade de exercer o domínio sobre a
pessoa assediada.
A prática tem propagação insidiosa, normalmente agregando abuso de poder e
manipulação. Existe tanto na modalidade horizontal (entre colegas do mesmo nível hierárquico)
quanto na vertical ascendente (assédio do subordinado ao superior hierárquico) e na vertical descendente (cerco do superior em relação ao subordinado). A situação mais comum é essa última,
quando o superior agride ao subordinado, que, com medo de perder o emprego, acaba submetendose ao assédio, e termina por imputar a si mesmo a causa do cerco, acreditando na desqualificação
promovida pelo empregador, e atribuindo a si mesmo rótulo de incompetente, incapaz, despreparado,
etc.
1 Segundo Márcia Guedes, o termo mobbing foi empregado pela primeira vez pelo etiologista Heinz Lorenz, ao definir o
comportamento de certos animais que, circundando ameaçadoramente outro membro do grupo, provocam sua fuga por
medo de ataque.
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Ana Paula Sefrin Saladini
2.2 Panorama Nacional
Não obstante a doutrina indique que as práticas de assédio moral são tão antigas quanto o próprio trabalho organizado. No Brasil, até recentemente, a questão era pouco debatida, sendo, muitas vezes, confundida com situações gerais de estresse e conflitos naturais entre
empregados (SALVADOR, 2002, p. 66)2 . Após a promulgação da Carta Constitucional de 1988,
que assegurou de forma expressa a indenização decorrente de danos morais (art. 5º, X), o assunto
passou a ser objeto de estudos que começam a dar a real dimensão do problema.
Atualmente, a figura do assédio moral já se tornou conhecida dos trabalhadores
brasileiros, em razão de políticas agressivas e cruéis de gerenciamento, podendo ser vista como
sintomática desta época. Conforme Hádassa Dolores Bonilha Ferreira, o assédio moral (apud
FERRARI, 2005, p. 82).
...é fruto de um conjunto de fatores, tais como a globalização econômica
predatória, vislumbradora somente da produção e do lucro, e a atual organização do trabalho, marcada pela competição agressiva e pela opressão dos
trabalhadores através do medo e da ameaça. Esse constante clima de terror
psicológico gera, na vítima assediada moralmente, um sofrimento capaz de
atingir diretamente sua saúde física e psicológica, criando uma predisposição ao desenvolvimento de doenças crônicas, cujos resultados a acompanharão por toda a vida.
Em início de 2002, a médica do trabalho Margarida Barreto divulgou o resultado de uma pesquisa nacional sobre o assunto, desenvolvida para sustentar sua tese de doutorado na
PUC-SP, que foi publicada no Jornal Folha de São Paulo, suplemento especial Folha Equilíbrio, em
21.02.02, recebendo, ainda, intensa divulgação em outros órgãos de informação e na rede mundial
de computadores. No estudo, que serve como referência a diversos trabalhos posteriores sobre o
tema, foram ouvidos 4.718 trabalhadores, dos quais 68% declararam que sofriam assédio no ambiente de trabalho várias vezes por semana 20% relataram que o assédio ocorria em média uma vez
por semana, e 12% afirmou que a prática era sofrida uma vez por mês. Esses números indicam que
o assédio vem fazendo parte da rotina de trabalho do brasileiro. Dentre as principais ações de
assédio apresentadas na pesquisa, destacaram-se: dar instruções confusas e imprecisas, atribuir
erros imaginários, ignorar a presença do empregado em frente a outras pessoas, não cumprimentálo e não dirigir a palavra a ele, insinuar que o empregado tem problema mental ou familiar. Segundo
a pesquisa, 89% das agressões partem do superior hierárquico.
No campo da prática cotidiana, o aumento do número de queixas é evidente:
em 2002 foram registrados, nas delegacias regionais do trabalho brasileiras, 231 atendimentos em
razão de queixas de assédio moral; o ano de 2004 apontou um aumento de cerca de 110%, com
registro de 484 queixas (ANCHISES, 2006, p. 47).
Os trabalhadores trazem aos tribunais variado número de casos de abuso psicológico, através das reclamações judiciais. Destacam-se das notícias relatadas pela mídia algumas situações revoltantes: ridicularização pelo chefe em decorrência de características do empregado (tique nervoso, opção sexual, peso, altura, etc.); gerente que instala, por conta própria, câmara filmadora no banheiro reservado às empregadas, pretensamente para evitar furtos; insinuações
sobre a manutenção do emprego depender de um “teste íntimo sobre as habilidades com sexo
oral”; submissão de empregados a detector de mentiras.
2 Luiz Salvador ressalta que essa perspectiva impedia práticas de diagnóstico e prevenção das situações de assédio moral.
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Trabalho, Medo e Sofrimento: Considerações Acerca do Assédio Moral
Outras situações relatadas por empregados: o chefe que, chegando ao setor
com a garrafa de café fresco, indaga se os subordinados desejam tomar café; com a resposta
afirmativa, em frente a todos, despeja o café quente no ralo da pia; o superior hierárquico que, a
pretexto de aumento de produtividade, faz o empregado vendedor que menos se destacou durante
o expediente usar, por ocasião da reunião diária com a equipe de vendas, um “chapéu de burro”, do
tipo cônico, permanecendo sentado em um banco alto; o coordenador de equipe que manda “pagar
prendas” como dançar uma música ridícula e com conotação sexual, fazer flexões ao estilo do
exército, e uma gama de atividades criadas ora por uma mente perversa e arbitrária que busca
apenas se divertir à custa do sofrimento alheio, e que justifica sua conduta como técnica de
“implemento de produção, técnica de venda ou treinamento de recursos humanos”.3
O problema não nasceu aqui, e nem é limitado ao Brasil. Num mundo
globalizado, as práticas de gestão também são generalizadas. Assim, nem mesmo a Organização
Internacional do Trabalho escapa de críticas: a revista semanal Época, edição de 27.09.2004, noticiou que a ONU acolheu queixa de assédio moral feita por empregado em face da OIT, sua
empregadora.
Como forma de cientificar os trabalhadores, criando mecanismos de identificação do problema e estratégias de defesa, diversos sindicatos, a exemplos dos sindicatos dos bancários e dos sindicatos dos servidores públicos federais, vêm elaborando e distribuindo aos integrantes da categoria profissional cartilhas alertando quanto às práticas de assédio.
2.3 Perspectivas Legislativa
16
Embora endêmica, a questão relativa ao assédio moral ainda carece de regulamentação legal, no Brasil. Três importantes projetos de lei estão em trâmite na Câmara dos Deputados, para regulamentação e punição do assédio moral. O Projeto de Lei 5.970/01 altera dispositivos da CLT, e os Projetos de Lei 4.591/01 e 5.972/01 modificam dispositivos da Lei 8.112/90
(Regime Jurídico dos Servidores Públicos Civis da União, das Autarquias e das Fundações Públicas Federais).
O Projeto de Lei 4.591/01 dispõe sobre a aplicação de penalidades à prática de
assédio moral por parte de servidores públicos da União, das autarquias e das fundações públicas
federais a seus subordinados, vedando aos servidores públicos praticarem atitudes de cerco contra
seus subordinados, e estabelecendo penalidades disciplinares que se estendem de advertência até
demissão, progressivamente, considerada a reincidência e a gravidade da ação. O projeto conceitua
como assédio moral todo tipo de ação, gesto ou palavra que atinja, pela repetição, a auto-estima e
a segurança de um indivíduo, fazendo-o duvidar de si e de sua competência, implicando em dano ao
ambiente de trabalho, à evolução profissional ou à estabilidade física, emocional e funcional do
servidor, incluindo, dentre outras: marcar tarefas com prazos impossíveis; passar alguém de uma
área de responsabilidade para funções triviais; tomar crédito de idéias de outros; ignorar ou excluir
um servidor só se dirigindo a ele através de terceiros; sonegar informações necessárias à elaboração de trabalhos de forma insistente; espalhar rumores maliciosos; criticar com persistência; segregar fisicamente o servidor, confinando-o em local inadequado, isolado ou insalubre; subestimar
esforços.
Dentre as justificativas apresentadas no projeto quanto à necessidade de
regulação da questão, destaca-se o seguinte:
3 Essas situações foram relatadas por testemunhas à autora, em casos diversos, em sua experiência como Juíza do Trabalho.
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Ana Paula Sefrin Saladini
Sabe-se que o mundo do trabalho vem mudando constantemente nos últimos anos. Novas formas de administração, reengenharia, reorganização administrativa, entre outras, são palavras que aos poucos tornaram-se
freqüentes em nosso meio. No entanto, pouco se fala sobre as formas de
relação no trabalho. O problema do ‘assédio moral’ (ou tirania nas relações
do trabalho, como é chamado nos Estados Unidos) atinge milhares de trabalhadores no mundo inteiro. Pesquisa pioneira da Organização Mundial do
Trabalho, realizada em 1996, constatou que pelo menos 12 milhões de europeus já sofriam desse drama. Em nossa cultura competitiva, onde todos
procuram vencer a qualquer custo, urge adotarmos limites legais que preservem a integridade física e mental dos indivíduos, sob pena de perpetuarmos
essa ‘guerra invisível’ nas relações de trabalho. E para combatermos de
frente o problema do “assédio moral” nas relações de trabalho, faz-se necessário tirarmos essa discussão dos consultórios de psicólogos e tratá-lo no
universo do trabalho.
O Projeto de Lei 5.972/01 também visa alterar dispositivos do Estatuto dos
Servidores Públicos Civis da União, a fim de estabelecer proibição expressa ao servidor público de
coagir moralmente subordinado através de atos ou expressões reiteradas que tenham por objetivo
atingir a sua dignidade ou criar condições de trabalho humilhantes ou degradantes, abusando da
autoridade conferida pela posição hierárquica.
Especificamente quanto ao empregado submetido ao regime da CLT, o projeto
de lei visa estabelecer, como motivo para a rescisão indireta do contrato de trabalho, a prática, pelo
empregador ou seus prepostos, de coação moral, através de atos ou expressões que tenham por
objetivo ou efeito atingir sua dignidade e/ou criar condições de trabalho humilhantes ou degradantes, abusando da autoridade que lhe conferem suas funções, autorizando que o empregado permaneça ou não no serviço até final da decisão do processo.
O projeto também prevê uma indenização pré-tarifada, quando demonstrada a
coação moral, acrescentado à CLT o art. 484-A, que tem prevista a seguinte redação: “se a
rescisão do contrato de trabalho foi motivada pela prática de coação moral do empregador ou de
seus prepostos contra o trabalhador, o juiz aumentará, pelo dobro, a indenização devida em caso de
culpa exclusiva do empregador”.
Destacam-se, das justificativas do projeto, os seguintes argumentos:
O art. 7º, I, da Constituição Federal, assevera que é direito do trabalhador
uma ‘relação de trabalho protegida contra despedida arbitrária ou sem justa
causa’, prevendo a estipulação legal de indenização compensatória, com
essa finalidade. Nenhuma despedida é mais arbitrária e injusta do que aquela
que força o trabalhador a pedir, ele mesmo, a sua demissão, por lhe ter sido
tornado insuportável o ambiente de trabalho, pela perseguição sistemática e
pela sua submissão a comportamentos vexatórios, humilhantes e degradantes, pelo que estamos convencidos da necessidade de aprovação, neste
Parlamento, de normas que protejam o trabalhador dos efeitos deletérios
desses atos dos patrões ou de seus prepostos.
As justificativas apresentadas pelos autores dos projetos de lei bem indicam a
gravidade do problema e a urgência de adoção de medidas de contenção e prevenção de danos.
2.4 Responsabilidade Patronal
A falta de dispositivo legal específico não impediu o desenvolvimento da doutrina e da jurisprudência em torno da questão do assédio moral, nem tem servido como barreira para
a aplicação de penalidades aos empregadores que assim procedem ou que permitem esses proce-
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Trabalho, Medo e Sofrimento: Considerações Acerca do Assédio Moral
dimentos por parte de seus prepostos, principalmente no âmbito da fixação de indenização ao
empregado lesionado.
O assédio moral é ato cuja responsabilidade deve ser imputada ao empregador,
que, como detentor do poder disciplinar, tem a obrigação de administrar tanto o conflito existente
entre empregados do mesmo grau hierárquico quanto o decorrente das próprias relações hierárquicas. Conforme Márcia Guedes (GUEDES, 2003, p. 162):
...tanto a administração rigidamente hierarquizada, dominada pelo medo e
pelo silêncio, quanto a administração frouxa, onde reina a total insensibilidade para com valores éticos, permitem o desenvolvimento de comportamentos psicológicos doentes, que dão azo à emulação e à criação de bodes
expiatórios.
No âmbito internacional, têm sido deferidas indenizações de grande monta.
Relata o advogado Luiz Salvador (SALVADOR, 2002, p. 68) que o assédio moral, no ambiente de
trabalho, tem gerado, nos EUA, indenizações milionárias em favor dos assediados, transformandose em um dos principais riscos financeiros das empresas. Cita os seguintes exemplos: a rede WalMart foi condenada a pagar 50 milhões de dólares a uma empregada assediada moralmente, em
decorrência de observações chocantes quanto a seus dotes físicos; a Chevron foi condenada a
uma indenização superior a dois milhões de dólares a empregados por agressões ocorridas no
ambiente de trabalho; no Estado da Flórida uma empresa foi condenada a pagar indenização de
237 mil dólares a um gerente que foi assediado por seu chefe.4
Embora seja tradição do direito brasileiro o deferimento de indenizações em
valores muito mais modestos, o cotidiano demonstra o crescimento do número de ações trabalhistas que denunciam a utilização de práticas de assédio como ferramentas de gestão e controle
empresarial.
18
3 MEDO, SOFRIMENTO E TRABALHO
3.1 Medo e Sofrimento Inerentes ao Trabalho
O medo está presente em todos os tipos de ocupação profissional. Em algumas
atividades, o risco à integridade física é inerente ao próprio trabalho desenvolvido, como nos casos de
trabalhadores da área de segurança (policiais, agentes penitenciários, vigilantes, transportadores de
valores), trabalhadores da construção civil, bombeiros, etc. Em outras funções, o medo é mais personalizado pelas condições a que está exposto o trabalhador. Os riscos profissionais típicos são causa de
insegurança e medo no trabalho. Esse medo, implícito e impossível de deixar de existir, quando se
trata de trabalho perigoso ou insalubre, implica desequilíbrio na carga psíquica do trabalho. As más
condições de trabalho trazem prejuízos ao corpo e ao espírito, citando-se, como exemplo, a ansiedade
resultante das ameaças à integridade física, classificada como “seqüela psíquica” do risco que a
nocividade das condições de trabalho impõe ao corpo (DEJOURS,1991, p. 78).
Paralelamente ao medo, encontra-se o sofrimento psíquico experimentado pelo
trabalhador em razão de dificuldades características da atividade profissional exercida. Essa atividade profissional pode ser estressante por si própria, ou ter como fator gerador do estresse e
sofrimento a frustração causada pelo trabalho monótono, repetitivo ou desgastante. Exemplo da
primeira modalidade é o caso dos controladores de vôo, que demonstraram à nação o grau de
desgaste dos integrantes da carreira depois do acidente aéreo fatal ocorrido em setembro de 2006
4 Ressalte-se que no Brasil as indenizações são de montante tímido, quando comparadas com a máquina judiciária americana,
célebre por suas condenações milionárias em razão da teoria dos danos punitivos.
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e que vitimou 154 pessoas. Exemplo de trabalho desgastante e que gera frustração é relatado por
Dejours, quando se refere à categoria profissional de telefonista, que tem a frustração do profissional explorado pela organização do trabalho, com canalização para a produtividade: a frustração se
transforma em agressividade; a agressividade é canalizada para o atendimento rápido do interlocutor,
empurrando-o a desligar mais depressa; esse procedimento leva a aumentar a produtividade, o que
deixa o profissional ainda mais exasperado, e, assim sucessivamente, num círculo vicioso que, à
custa de prejudicar a saúde mental do trabalhador, faz aumentar a produtividade em prol da empresa de telefonia (DEJOURS, 1991, p. 96-115).
A sociologia do trabalho indica que o processo de modernidade vem acarretando a piora do meio ambiente de trabalho. A automação, a adoção de sistemas de trabalho taylorista,
mecanizado, dividido, submisso, controlado, repetitivo e vazio aumenta a angústia do trabalhador,
que não vê coerência nem resultado no trabalho desenvolvido, trazendo repercussões negativas a
seu equilíbrio mental, e, por conseqüência, à sua saúde como um todo. Saindo de um panorama
taylorista, na pós-modernidade são adotados novos sistemas gerenciais que continuam a produzir
estresse ocupacional.
Sidnei Machado observa, com propriedade, que (MACHADO, 2001, p. 46):
...O modo de produção capitalista, paradoxalmente, ao mesmo tempo que faz
exaltação do trabalho, por meio da organização de seu processo, controla a
atividade produtiva inibindo o enriquecimento das tarefas. A mecanização,
inicialmente, e depois a automação impostas pela organização do trabalho,
delimitando ritmos, cadências e tempo, vão revelar uma falta de adaptação
do homem às modernas condições de trabalho e produção. Esse ambiente de
produção tornou-se um fator de risco à saúde física e mental dos trabalhadores. As novas formas de organização do trabalho e a introdução de novas
tecnologias tendem a intensificar ainda mais os fatores de risco no trabalho
em todo o mundo...
19
Essa realidade de medo e sofrimento não pode ser negada. Apesar do implemento
de novas técnicas de recursos humanos, não se têm desenvolvido práticas para melhorar as condições de trabalho. Ao contrário, a assustadora realidade tem sido negada, ou, muitas vezes, as
situações de medo e sofrimento são detectadas e têm sua energia canalizada para melhorar os
índices de produtividade empresarial, através de condutas que geram ainda mais sofrimento.
3.2 O Medo como Meio de Incremento de Produtividade
Embora o medo e o sofrimento sejam inerentes a alguns tipos de trabalho,
existem situações em que são condições de trabalho criadas pelo empregador, visando, com sua
exploração, o incremento da produtividade individual e o aumento dos ganhos do capital. Conforme
Dejours, a erosão da vida mental individual do trabalhador é útil para a implantação de um comportamento condicionado favorável à produção, e o sofrimento mental aparece como intermediário
necessário à submissão do corpo (DEJOURS, 1994, p. 96).
No mundo atual, infligir injustiça a outrem já é forma banalizada de gestão; a
questão do mal hoje se coloca de maneira totalmente nova, com o surgimento de condutas iníquas
generalizadas, em contextos organizacionais diferentes do sistema fordiano, notadamente no quadro dos novos métodos de administração de empresas e gerenciamento (DEJOURS, 1999, p. 98):
Júlio Rocha adverte, no que diz respeito às relações humanas no meio ambiente
de trabalho, que são cada vez mais importantes as análises acerca de elementos psicológicos como
a pressão para o desempenho da atividade, que desencadeia a depressão e distúrbios emocionais
(apud MELO, 2004, p. 278).
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Analisando a obra de Dejours, Leonardo Wandelli (2004, p. 99) diagnostica a manipulação do medo e do sofrimento do trabalhador como instrumentos úteis aos fins
empresariais:
Manipulação do medo e do sofrimento: este é um processo que envolve a
ampliação da vulnerabilidade social, já mencionada, mas articulada no interior da empresa de maneira que ela sirva de instrumento à consecução dos
objetivos pretendidos pela organização. A ameaça velada ou expressa como
base de política de pessoal. O medo, assim, não é só o resultado da ameaça
ou da vulnerabilidade, mas o ponto de partida da banalização do mal. (...)
Enquanto se trabalha, além da ameaça de precarização, há o medo diante dos
riscos de acidente ou doença do trabalho; o medo de não corresponder às
expectativas dos superiores e consumidores; de ser descartado como inapto. A pressão por resultados aumenta...
20
Essa manipulação do medo e do sofrimento inicialmente serve ao fim empresarial de incremento de produtividade: o empregado amedrontado e abalado psicologicamente acaba
por acatar qualquer ordem, ainda que contrária ao seu próprio senso de ética; o abalo em seu
sistema nervoso pode acarretar um estado de confusão mental que chega a impedir o empregado
de discernir o certo do errado. Dejours, depois de afirmar que não encontra diferenças entre a
banalização do mal no sistema neoliberal e no sistema nazista, identifica entre ambos os sistemas
“as etapas de um processo capaz de atenuar a consciência moral em face do sofrimento infligido a
outrem e de criar um estado de tolerância ao mal” (DEJOURS, 1999, p. 139).
Com a criação de um ambiente de trabalho hostil e a desestabilização emocional do trabalhador, este se torna dócil e menos reivindicativo, moldado aos desejos do capital.
Segundo estudo promovido pela Sociedade Cubana de Direito do Trabalho e Seguridade Social
(SALVADOR, 2002, p. 67), isso acontece porque, em uma empresa orientada para o mercado,
requer-se uma competitividade empresarial superior para poder sobreviver à pressão da economia,
o que faz o empregador buscar os melhores talentos, assim como o pessoal mais dócil, manejável,
capaz de assumir funções sem protestar.
Na jurisprudência, cada dia são mais freqüentes os casos de condenação de
empregadores em razão de atos decorrentes da utilização do medo e do sofrimento como meios de
incremento de produtividade. A título ilustrativo são citados dois exemplos:
1. O TRT Capixaba condenou uma empresa de comunicação por se utilizar de
“dinâmicas de grupo”, em treinamentos e no dia-a-dia de trabalho, que eram consideradas vexatórias,
como “dançar a dança da boquinha da garrafa e o bonde do tigrão”. Nessa ocasião o Regional
entendeu que:
...o empregador é responsável pela saúde emocional de seus empregados e
não pode permitir que meros instrutores utilizem, de modo absolutamente
temerário, uma ferramenta científica própria da psicologia, cuja conseqüência é tão-somente a humilhação e o constrangimento do trabalhador. (...) Os
atos praticados pela recorrida ultrapassam os limites profissionais, porque
minam a saúde física e mental da vítima e nada têm de modernos (TRT, 17a
Região, RO 01294.2002.007.17.00.9 – Ac. 23.10.03 – Relatora Juíza Sônia das
Dores Dionísio – LTr 68-03, março de 2004, p. 356-359).
2. O TRT do Rio Grande do Sul apurou a utilização, como política de incremento de produtividade, de humilhações e constrangimentos impostos a trabalhador que não cumpria
metas estabelecidas. As alegações do empregado incluíam o relato de práticas como ser obrigado
“vestir uma saia e desfilar em cima de uma mesa, enquanto os colegas gritavam ‘veado’”. Na
análise da prova, o Regional constatou o seguinte:
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...a segunda testemunha informou que quando os vendedores chegavam
atrasados, esqueciam uniformes, não atingiam as metas, pagavam prendas;
que eram chamados de ‘filhos da p...’, ‘merda’; que tinham apertado suas
nádegas em corredor polonês, que isso acontecia quando o empregado não
sabia responder ao ‘pinga fogo’...(TRT, 04a Região, RO 00887.2003.015.04.00.4
– Ac. 8a Turma – Relator Juiz Carlos Alberto Robinson – DJRS 16.07.04.)
Embora tais práticas sejam utilizadas a pretexto de aumento de produtividade, é
fato constatado pela psicologia que em médio e longo prazo produzem efeito contrário ao pretendido. O empregado, desgastado psicologicamente, vê diminuir sua capacidade de trabalho e produtividade; o cansaço emocional favorece o desenvolvimento de doenças, algumas decorrentes de um
processo de somatização, o que acarreta ausências ao serviço, inclusive afastamentos com autorização médica (HIRIGOYEN, 2003, p. 66).5 Algumas doenças, como estresse agudo, alcoolismo e
síndrome de bournout, podem ser decorrentes da exposição reiterada ao medo e sofrimento no
ambiente de trabalho.
3.3 O Medo Criado como Mero Exercício Arbitrário de Poder
Além do medo e do sofrimento utilizados como meio de incremento de produtividade não é raro depararmos com indivíduos perversos que, identificados como “empreendedores
e pró-ativos”, são alçados a cargos de chefia e utilizam dessa posição para dar vazão à crueldade.
De acordo com levantamentos da OIT, a cada dia cresce a violência no ambiente de trabalho, com destaque para a pressão psicológica, consistente em atitudes como observações e críticas destrutivas, segregação de pessoas do convívio social, difusão de rumores ou informações falsas.
Práticas perversas e reiteradas de gestão abusiva são identificadas como assédio moral. Hirigoyen qualifica o indivíduo maldoso como “perverso”, vez que utiliza procedimentos
semelhantes aos que eram usados nos campos de concentração, “atando” psicologicamente a
vítima, que fica impedida de reagir. O agressor criva a vítima de críticas e censuras, vigia, cronometra,
deixando-a sem saber como agir e sem compreender o que acontece. Os instrumentos utilizados
de forma mais freqüente são a recusa à comunicação direta, a desqualificação através de comunicação não verbal (suspiros, levantar de ombros, olhares, silêncios) e “brincadeiras” perversas
(ironias, zombaria, sarcasmo). O indivíduo que assedia leva a pessoa a desacreditar de si; provoca
o isolamento do empregado, não o convocando para reuniões, privando-o de informações, “arquivando” a pessoa sem lhe dar o que fazer (DEJOURS, 1991, p. 77),6 condutas que geram mais
estresse que a mera sobrecarga física de trabalho. Também é prática usual a utilização de procedimentos vexatórios, como confiar à vítima tarefas inúteis ou humilhantes ou induzir o empregado
ao erro. Não se descartam, ainda, as situações de assédio de caráter sexual, que também imprimem sofrimento à vítima (HIRIGOYEN, 2003, p. 76-81).
Outra forma bem disseminada de assédio, e particularmente bem aceita por
parte dos comandados, em razão de questões sociológicas, constitui na escolha dos empregados
“favoritos” do chefe, que levam pequenas e reiteradas vantagens no dia a dia empresarial: são
beneficiados na distribuição das tarefas, na opção de períodos de férias, na concessão de folgas e
opção por compensação de horas de trabalho, o que provoca uma divisão desigual do trabalho.
Conforme Dejours, a desigualdade na divisão do trabalho é uma arma de que se servem os chefes
5 Não se morre diretamente de todas essas agressões, mas perde-se uma parte de si mesmo. Volta-se para casa, a cada noite,
exausto, humilhado, deprimido. E é difícil recuperar-se.
6 DEJOURS relata o caso de fábricas de automóveis, na França, que para isolar os empregados organizavam as linhas de
montagem intercalando empregados de diversas nacionalidades diferentes (um árabe, um iugoslavo, um francês, um turco,
um espanhol, um italiano, um português, etc.), de modo a, com o obstáculo da língua, impedir toda a comunicação durante
o horário de trabalho.
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a bel-prazer da própria agressividade, hostilidade ou perversidade. Essa discriminação da hierarquia com relação aos trabalhadores faz parte integrante das táticas “guerrilheiras” de comando,
uma vez que a criação de rivalidades e a discriminação asseguram um grande poder à supervisão
(DEJOURS, 1991, p. 75-76).
3.4 Efeitos do Medo e do Sofrimento na Saúde do Trabalhador
Medo e sofrimento no trabalho são agentes desencadeadores de doenças psíquicas, como estresse e depressão. O resultado da soma de sofrimentos psíquicos, muitas vezes,
vem a ser a ruptura do equilíbrio psíquico, o que vai desencadear a psicopatologia.
Fiorelli e Malhadas (2003, p. 38), no estudo conjunto da psicologia e do direito
do trabalho, indicam os seguintes efeitos dessa ruptura do equilíbrio psíquico:
Aqueles empregados que (...) não conseguem superar as situações de risco,
real ou imaginário, por eles percebidas, mostram-se potencialmente capazes
de desenvolver estados continuados de tensão, predispondo-se a diversos
tipos de patologias ou psicopatologias. Daí resultam hipertensões, crises de
gastrite, úlceras, taquicardias e outras complicações; no campo psíquico,
encontram-se a ansiedade, a depressão, a propensão à drogadição, etc. A
tensão continuada contribui para a redução das defesas do organismo, facilitando as ações de vírus e bactérias.
22
Wandelli (2004, p. 101) adverte que a prática da exploração tem como conseqüência uma soma de sofrimentos: ao sofrimento psíquico decorrente de um mal padecido pelo
sujeito soma-se o sofrimento ético, “aquele experimentado pelo sujeito ao cometer atos que ele
próprio condena moralmente”.
Há estudos demonstrando que o processo do assédio moral pode levar “à total
alienação do indivíduo do mundo social que o cerca, julgando-se inútil e sem forças e levando,
muitas vezes, ao suicídio” (NASCIMENTO, 2004, p. 922). Na Suécia, estima-se que esse tipo de
pressão é causa de 10 a 15% dos suicídios (OLIVEIRA, 2002, p. 189). No Japão, já se criou um
vocábulo próprio, karoshi, para designar a morte pelo excesso de trabalho. Esse trabalhar até a
exaustão e morte pode ser decorrente, também, de práticas de assédio moral, utilizadas como
forma de pressão por melhores resultados no trabalho.
A vítima fica indefesa: se tenta reagir, provoca a contra-reação do agressor,
através de uma hostilidade declarada, visando sua destruição moral, o que pode levar a seu
total aniquilamento psíquico, ou, em casos extremos, até mesmo ao suicídio. Se não reage,
paulatinamente tem destruído seu amor próprio e segurança para desenvolver até mesmo
trabalhos rotineiros.
4 CONCLUSÃO
O assédio moral tem sido objeto de diversos estudos em relação às suas hipóteses e sintomatologia. Muitas vezes, entretanto, falta questionar o que leva o empregador a admitir
ou até incentivar tais práticas, bem como analisar os efeitos disso na vida privada do empregado.
Na atual cultura empresarial, o medo e o sofrimento do trabalhador têm sido
utilizados ora como meios de incremento da produção, sob o rótulo de sistema de gestão, ora como
mera demonstração arbitrária de poder por parte de chefias despreparadas e que utilizam tais
práticas como válvula de escape da própria perversidade e agressividade.
A rotina de causar medo e sofrimento pode configurar assédio moral. Diversos
projetos de lei estão em tramitação, buscando regular o assunto. Não obstante, a falta de legislação
específica não serviu de empecilho ao desenvolvimento de ampla doutrina e jurisprudência a respeito da questão.
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Caso demonstrada a conduta de cerco por parte do empregador ou seus
prepostos, seja pelo incentivo, seja pela tolerância, estará caracterizada a culpa empresarial. Em
havendo nexo de causalidade entre a conduta do empregador e o sofrimento causado no empregado, este terá direito à percepção de indenização. Os tribunais trabalhistas pátrios têm reconhecido,
reiteradamente, a existência do problema, inclusive com condenação de empregadores ao pagamento de indenizações.
O prejuízo social é ainda maior, uma vez que o trabalhador submetido à tortura
no trabalho pode perder sua capacidade laboral de forma temporária ou permanente. A sociedade
não pode permanecer inerte diante dessas situações, assistindo ao desmonte da saúde do trabalhador que busca ganhar seu pão. E não basta que o Poder Judiciário defira o pagamento de indenizações às vítimas. Urge sejam tomadas medidas visando suprimir esse círculo vicioso de maldade e
sofrimento.
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André Gonçalo Dias Pereira
DEVER DE DOCUMENTAÇÃO, ACESSO AO PROCESSO CLÍNICO E SUA
PROPRIEDADE. UMA PERSPECTIVA EUROPÉIA
André Gonçalo Dias Pereira*
RESUMO
Neste texto apresentam-se os fundamentos, as finalidades e os objectivos que presidem ao dever
de documentação dos médicos. Estuda-se o regime de vários ordenamentos jurídicos europeus de
acesso ao processo clínico, verificando-se que a maioria das legislações admite o acesso directo
do doente ao processo. Relativamente à questão da propriedade do processo clínico, observa-se
hoje uma nova compreensão da questão, na medida em que a informação de saúde carece de
cautelas suplementares de protecção face aos avanços da genómica, pelo que, em Portugal, a Lei
12/2005, de 26 de janeiro, outorgou a propriedade da informação de saúde ao paciente, sendo as
unidades do sistema de saúde meras depositárias do processo clínico.
Palavras-chave: Processo Clínico. Acesso à Ficha Clínica. Propriedade do Processo Clínico.
DOCUMENTATION DUTY, ACCESS TO MEDICAL FILE AND ITS
OWNERSHIP. A EUROPEAN OUTLOOK
ABSTRACT
This paper discusses the reasons, goals and objectives of the doctor’s duty to register. Secondly,
the system of access to medical records in different European countries is analysed. Increasingly
the patient has the right to access directly to his/her medical file. Finally, taking into consideration
the challenges of genomics, a new perspective of the ownership of medical files is discussed. In
that respect, recent Portuguese law (Law 12/2005, 26 January) states that medical information is
owned by the patient.
Keywords: Medical data. Access to Medical File. Ownership of Medical Records.
1 FUNDAMENTOS E FINALIDADES DO PROCESSO CLÍNICO
É doutrina e jurisprudência segura por toda a Europa que os médicos e os hospitais estão obrigados a proceder à documentação e registo da actividade clínica.1 Os fundamentos
desta obrigação podem ser encontrados quer no plano do direito contratual, quer delitual, nomeadamente através dos direitos de personalidade (LAUFS; UHLENBRUCK, 2002, p. 481-482).2
No plano contratual, entende-se que há um dever lateral (Nebenpflicht) resultante do contrato médico de realizar uma documentação minuciosa, pormenorizada, cuidadosa e
completa da actividade médica, cirúrgica e dos cuidados de enfermagem.
* Assistente da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Pós-graduado em Direito Civil e em Direito da Medicina pela
Universidade de Coimbra; Mestre e Doutorando em Ciências Jurídico-civilísticas pela Universidade de Coimbra. Secretário
Científico do Centro de Direito Biomédico; Membro do Conselho Nacional de Medicina Legal.
1 Numa análise muito resumida, podemos afirmar que os principais deveres dos médicos face aos doentes são: (1) respeitar as
leges artis e assegurar cuidados de saúde de qualidade; (2) informar o paciente e obter o seu consentimento livre e esclarecido;
(3) guardar sigilo e salvaguardar a protecção de dados pessoais e (4) fazer uma boa documentação clínica.
2 Na formulação do BGH (Supremo Tribunal Federal alemão), o dever de documentação tem origem delitual e contratual e é
um requisito fundamental para a segurança do paciente no tratamento. Destarte, o dever de documentar impõe-se mesmo
que entre o médico e o paciente não se tenha estabelecido uma relação contratual.
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Dever da Documentação, Acesso ao Processo Clínico e sua Propriedade. Uma Perspectiva Européia
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A obrigação de levar a cabo um perfeito registo da história clínica resulta também de um dever de cuidado do médico, de uma obrigação inserta nas leges artis
(Therapiepflicht). Para que os cuidados de saúde sejam zelosos e organizados, impõe-se que o
médico proceda ao registo e à documentação das consultas, exames, diagnósticos e tratamentos
efectuados, sob pena de incorrer em responsabilidade civil.
As principais finalidades do dever de documentação consistem em garantir a
segurança do tratamento, a obtenção da prova, o controlo dos custos de saúde e a facilidade
de fundamentação dos honorários (LAUFS; UHLENBRUCK, 2002, p.481).
Relativamente à segurança do tratamento, deve-se ter em conta que hoje se
pratica uma medicina de equipa, com elevada tecnologia, pelo que o adequado registo das informações médicas permite evitar acidentes graves. Pense-se no caso dramático da amputação de um
membro saudável devido a má comunicação entre o médico e o cirurgião. O direito a uma segunda consulta ou a uma segunda opinião também contribui para a maior exigência relativamente
ao dever de documentação.
A importância do processo clínico ou prontuário como meio de prova vem-se
afirmando cada vez mais, seja nas acções de negligência médica, seja nas acções de consentimento informado. Nas primeiras, é sabido que só a reconstituição do iter do tratamento permite
averiguar da culpa do médico; quanto às segundas, cada vez mais a doutrina apela a uma boa
documentação da informação e do consentimento em detrimento do burocratizado e estandardizado
formulário para consentimento (PEREIRA DIAS, 2004, p. 187, s. E 525 e s.).
Quanto ao controlo dos custos de saúde, um adequado registo da história
clínica pode permitir grandes poupanças. Na verdade, uma das principais causas do exponencial
aumento dos custos de saúde é a multiplicação de exames supérfluos e repetidos sobre o mesmo
paciente.
Finalmente, a existência de uma boa documentação clínica facilita a fundamentação dos honorários (Rechenschaftslegung).
A facilidade probatória e o facto de a documentação constituir um instrumento
para cobrança de honorários são finalidades criticadas por alguma doutrina neste contexto; todavia, parece que é razoável e pragmático aceitar que estas são efectivamente finalidades importantes e legítimas do dever de documentação. Este dever tanto favorece o médico como o paciente e
permite uma melhor execução do contrato (LAUFS; UHLENBRUCK, 2002, p.485).
Finalmente, pode-se sintetizar os grandes objectivos da existência do processo
clínico: (1) melhorar os cuidados de saúde prestados ao doente; (2) partilhar informação clínica
entre os profissionais de saúde; (3) diminuir o erro; (4) melhorar a forma como a informação é
obtida, registada e disponibilizada; (5) garantir a mobilidade e acesso remoto; (6) melhorar o suporte à decisão clínica; (7) acesso fácil a standards terapêuticos; e, por último, (8) a racionalização de
recursos.
2 O DEVER DE DOCUMENTAÇÃO NO DIREITO PORTUGUÊS
No direito português, Guilherme de Oliveira defende que está previsto o dever
jurídico de documentação. Este dever encontra-se vertido no art. 77º, n.º 1 Código Deontológico
da Ordem dos Médicos, que tem a seguinte redacção:
O médico, seja qual for o Estatuto a que submeta a sua acção profissional,
tem o direito e o dever de registar cuidadosamente os resultados que considere relevantes das observações clínicas dos doentes a seu cargo, conservando-as ao abrigo de qualquer indiscrição, de acordo com as normas do
segredo profissional.
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Essa norma deontológica tem a virtualidade heurística de densificar o conteúdo
normativo do art. 7º, al. e) do Decreto-Lei n.º 373/79, de 8 de Setembro (Estatuto do Médico),
segundo o qual o médico tem o dever de “contribuir com a criação e manutenção de boas condições técnicas e humanas de trabalho para a eficácia dos serviços” (OLIVEIRA, Guilherme de.
SD, p. 36).
Outra base legal encontra-se nos artigos 573º e 575º CC, que regulam a obrigação de “informação” e de “apresentação de documentos” (FIGUEIREDO DIAS; SINDE
MONTEIRO, 1984, p.42). A afirmação desse dever de documentação tem também influência
na distribuição da carga probatória (VÁZQUEZ FERREYRA; TALLONE. 2000).3 O médico
fica prejudicado no plano probatório não apenas se subtrair ou alterar documentos que têm
importância para esclarecer a controvérsia (art. 344.º, n.º2 do Código Civil), mas também se a
redacção dos actos médicos for inexacta ou incompleta. De qualquer modo, convém reiterar que
o processo clínico não constitui sempre uma verdade irrefutável e absoluta, pelo que deve ser
avaliada conjuntamente com os restantes elementos probatórios presentes no processo (GALÁN
CORTÉS, 2001, p. 152).
Efectivamente, entende-se que o processo clínico pode ter uma importância
decisiva num processo de responsabilidade médica. Entre nós, o art. 344º, n.º 2, CC estabelece a
inversão do ónus da prova quando a parte contrária tiver culposamente tornado impossível a prova
à parte onerada.4 O médico deve ser o primeiro a ter interesse em ser zeloso na conservação e no
adequado registo da ficha clínica (TEIXEIRA DE SOUSA, 1996, p. 131).
Em suma, o processo ou ficha clínica é de grande importância na boa relação
médico–paciente e, simultaneamente, pode ajudar a controlar os ‘galopantes’ custos de saúde.
Nesse sentido, as legislações modernas5 exigem que o médico registe as consultas e organize um
processo onde deve incluir, entre outros, os exames, as análises, os apontamentos das consultas,
formulários do consentimento, etc (DUPUY, 2002, p. 15 s.).
3 O CONTEÚDO DO DEVER DE DOCUMENTAÇÃO
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O adequado cumprimento dever de documentação pressupõe o registo de vários itens, como, por exemplo: a anamnese, o diagnóstico, a terapia, os métodos de diagnóstico
utilizados, o doseamento da medicação, o dever de informar para o consentimento, o relatório das
operações; os acontecimentos inesperados, a mudança de médico ou de cirurgião, a passagem
pelos cuidados intensivos, o abandono do hospital contra a indicação médica, etc..
A forma da documentação também deve ser objecto do maior cuidado. Os
hospitais vão uniformizando e sistematizando os prontuários, o que é salutar enquanto demonstra o
rigor e o cuidado nesta tarefa; por outro lado, nos tempos modernos, assume especial atenção a
documentação electrónica.
3 A Cámara Civil y Comercial de Junín (Argentina), na decisão de 15-12-1994, decidiu que “constitui uma presunção contra
o profissional a inexistência da história clínica ou a existência de irregularidades na mesma”. A falta do processo clínico priva
de um elemento valioso para a prova da responsabilidade médica e deve prejudicar a quem era exigível como dever de
colaboração na difícil actividade probatória e esclarecimento dos factos. Através da prova por presunções, uma história
clínica insuficiente constitui mais um indício que deverá ser tomado em consideração pelo tribunal na hora de analisar a
conduta dos profissionais. Mas a necessária relação causal não pode deduzir-se apenas da existência de uma história clínica
irregular..
4 Artigo 344.º, n.º2 do Código Civil – (Inversão do ónus da prova): “Há também inversão do ónus da prova, quando a parte
contrária tiver culposamente tornado impossível a prova ao onerado, sem prejuízo das sanções que a lei de processo mande
especialmente aplicar à desobediência ou às falsas declarações.”
5 No plano histórico, encontram-se os primeiros documentos, com informações relativas aos pacientes, nos hospitais de
Bagdad nos séculos IX, X e XI da nossa era.
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O registo da história clínica deve ser feito em devido tempo. Deve verificar-se
uma relação imediata com o tratamento ou com a intervenção médica. Com efeito, se a documentação for realizada semanas ou meses depois da intervenção, pode-se defender, no caso de um
processo de responsabilidade médica, uma inversão do ónus da prova, tal como nos casos de
ausência ou insuficiente documentação. A jurisprudência alemã entende que há uma relação de
proporcionalidade entre a gravidade da intervenção e a exigência de documentar com brevidade.
Assim, por exemplo, uma cirurgia de alto risco deve ser objecto de um registo minucioso e imediato; intervenções de rotina podem ser registadas passado algum tempo (LAUFS; UHLENBRUCK,
2002, p. 487).
4 O ACESSO AO PROCESSO CLÍNICO
28
O processo clínico pode ser um instrumento importante na relação médico–
paciente e também como meio de prova da informação fornecida e do consentimento obtido.6 É
mister considerar apenas a comunicação do processo clínico ao paciente (MONIZ, 1997).
O acesso à ficha clínica, por parte do paciente, pode ter um regime diferente
consoante se esteja numa fase extra-processual, pré-processual ou já em fase processual.
A doutrina alemã distingue: a) a fase extra-processual, em que a consulta
pode estar sujeita a algumas limitações temporais e objectivas (para protecção do interesse do
médico em não ver devassadas as suas anotações pessoais e de terceiras pessoas); b) a fase préprocessual, em que o paciente pretende preparar uma acção de honorários ou de responsabilidade
civil (havendo também limitações para protecção do médico e de terceiros, bem como por razões
terapêuticas, sendo admissível limitar o aceso a paciente com problemas psiquiátricos que seriam
gravemente prejudicados com o conhecimento integral do seu ficheiro clínico, devendo este ser
acompanhado e aconselhado por um médico); c) o direito de consulta durante um litígio em
tribunal, em que a ficha clínica assume uma importância decisiva na clarificação dos factos, podendo mesmo ser requerida ex officio pelo próprio tribunal. Quando seja entregue,7 a ficha clínica
passa a ser considerada como documento integrante do processo (Teil der Prozessakte) e não há
razões de índole terapêutica que justifiquem uma limitação ao direito de consulta do processo
(LAUFS; UHLENBRUCK, 2002, p. 491).
Podemos acrescentar, à face do direito português, que, em caso de litígio, o
médico tem o dever de cooperação para a descoberta da verdade (art. 519º, n.º1 CPC), “o
qual impõe a obrigação de facultar à contraparte e ao tribunal os documentos que estão em seu
poder. Quando pretenda fazer uso desses documentos, o paciente requererá que o médico demandado seja notificado para os apresentar dentro do prazo que o tribunal designar (art. 528º,
n.º1 CPC); se o médico se recusar a fazê-lo, o tribunal apreciará livremente a sua conduta para
efeitos probatórios (art. 529º CPC), isto é, poderá, se assim o entender, dar como provados os
factos que o paciente se propunha demonstrar através desses documentos” (TEIXEIRA DE
SOUSA , SD, p. 134 e FIGUEIREDO DIAS/ SINDE MONTEIRO, SD, p. 28 e 32). Porém,
terceiros (mesmo com interesses patrimoniais directos) têm direito de acesso ao processo apenas na medida em que os seus interesses tenham um valor superior ao direito de autodeterminação informativa do paciente.
Neste trabalho será apresentado apenas um breve quadro da legislação de
alguns países europeus no que respeita ao acesso ao dossier médico numa situação extra-judicial.
6 A Declaração dos Direitos dos Pacientes prescreve que “à saída de um estabelecimento de tratamento, os pacientes deveriam
poder, a seu pedido, obter um resumo escrito do diagnóstico, tratamento e cuidados que a ele dizem respeito” (2.9.)
7 Contudo, este é um processo complexo em que deve ser ouvida a Ordem dos Médicos, nos termos do art. 69.º e 73.º do Código
Deontológico.
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4.1 O Direito de Consulta do Processo Clínico
Nesta fase o paciente não está em litígio nem pretende intentar uma acção
contra o facultativo. Os fundamentos do direito de consulta encontram-se no contrato médico e na
protecção dos direitos de personalidade. O doente deve apresentar uma justificação para consultar
o processo, porém essa justificativa não carece de revestir um especial interesse de protecção.
4.1.1 Posição Tradicional: O Acesso Indirecto
A maior parte das ordens jurídicas nos países latinos admitiam o acesso à história clínica, mas apenas através de um médico nomeado pelo paciente. Era o chamado sistema do
acesso indirecto.
Em Portugal, mantém-se o acesso limitado, na medida em que só pode ser
efectuado por intermédio de um médico. Consagra-se assim o acesso mediato ou indirecto à ficha
clínica. Esse direito de acesso indirecto à informação clínica, encontra-se previsto no art. 11º, n.º
5 da Lei n.º 67/98, de 26 de Outubro (Lei de Protecção dos Dados Pessoais) e na Lei n.º 94/99,
de 16 de Julho (Lei de Acesso aos Documentos Administrativos [LADA]). A Lei n.º 12/2005, de
26 de Janeiro, Informação genética pessoal e informação de saúde) mantém esse regime,
prescrevendo o artigo 3.º, n.º3: “O acesso à informação de saúde por parte do seu titular, ou de
terceiros com o seu consentimento, é feito através de médico, com habilitação própria, escolhido
pelo titular da informação.”
Esse sistema não é contrário ao art. 10º, n.º 3, da Convenção dos Direitos do
Homem e a Biomedicina (DIÁRIO DA REPUBLICA, 2001), já que esta Convenção confere a
possibilidade de os Estados parte adoptarem este modelo mais paternalista, “a título excepcional e
no interesse do paciente.” Essa mediação tem em vista proteger o paciente de informações que
poderiam afectar gravemente a sua saúde. Este regime encontra evidente paralelismo com o privilégio terapêutico, pelo que, após a Reforma do Código Penal de 1995 deveremos ser muito
restritivos na limitação da informação ao doente. Assim, esta limitação só se justifica “se isso
implicar a comunicação de circunstâncias que, a serem conhecidas pelo paciente, poriam em perigo a sua vida ou seriam susceptíveis de lhe causar grave dano à saúde, física o psíquica.”
Com efeito, o art. 3.º, n.º 2 da Lei 12/2005, prevê que: “O titular da informação
de saúde tem o direito de, querendo, tomar conhecimento de todo o processo clínico que lhe diga
respeito, salvo circunstâncias excepcionais devidamente justificadas e em que seja inequivocamente demonstrado que isso lhe possa ser prejudicial, ou de o fazer comunicar a quem seja
por si indicado.”
Na esteira do direito alemão, porém, no acesso à documentação deve distinguir-se entre “os elementos que contêm dados objectivos e aqueles que implicam valorações
subjectivas, bem como a notícia de dados fornecidos por terceiros (cônjuge ou parentes), em
relação aos quais não existe o direito de apresentação” (SINDE MONTEIRO, 1990, p. 427).8
Pelo que o médico que proceda à transmissão da informação ao paciente deve ter em conta os
interesses do médico e de terceiros.9
8 No mesmo sentido, cfr. as leis de Espanha e da Bélgica.
9 Adiante este ponto será desenvolvido.
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4.1.2 Nova Orientação: O Acesso Directo
30
As recentes leis de direitos dos pacientes, nos países latinos, têm vindo a
admitir o acesso de forma mais liberal.
Em Espanha, a Ley 41/2002, de 14 de Novembro,10 regula o acesso à história
clínica, consagrando o direito de acesso livre e directo e o direito de obter cópia destes dados.
Salvaguardando, porém, os direitos de terceiras pessoas à confidencialidade dos dados, o interesse terapêutico do paciente e o direito dos profissionais à reserva das suas anotações
subjectivas. 11
A lei francesa de 4 de Março de 200212 confere aos pacientes o direito de
aceder às informações médicas contidas no seu processo clínico. Mais concretamente, essa lei –
quebrando a tradição gaulesa – consagra a possibilidade para o paciente de aceder directamente
à ficha clínica que lhe diz respeito. Anteriormente, o doente só podia tomar conhecimento dessas
informações através do intermédio de um médico.
A consagração do direito de acesso directo ao processo clínico é a resposta do
legislador às reivindicações das associações de utentes. Contudo, certamente assistiremos a alguma resistência por parte de alguns médicos. Para além de verem a sua ‘privacidade’ profissional
devassada por esta lei, os médicos temem que o paciente fique mais exposto aos riscos de pressão
dos empregadores e seguradores no sentido de conhecerem os seus prontuários (DUPUY, 2002,
p.6).13
O legislador salvaguardou, porém, certas hipóteses para as quais este direito de
acesso será indirecto. Assim acontece no caso de uma hospitalização compulsiva. Esta limitação justifica-se pela necessidade para o médico de dispor de um poder de controlo da difusão de
informação sobre a patologia ao seu paciente. Por outro lado, o direito de consulta do processo
relativo a um menor não emancipado é exercido pelos titulares da autoridade parental. Contudo,
também pode ter lugar a pedido do menor por intermédio do médico. O menor que quiser manter
segredo de determinado tratamento pode-se opor a que o médico comunique ao titular da autoridade parental as informações relativas a essa intervenção. O médico deve fazer menção escrita
dessa oposição (DUPUY, 2002, p. 8).
Também na Bélgica se aceita, actualmente, o acesso directo ao seu processo.
O art. 9, §2 da Lei Belga sobre Direitos dos Pacientes de 2002,14 reconhece o direito de consultar
a história clínica, mas considera que as anotações pessoais do profissional de saúde e os dados
relativos a terceiros não são abrangidos por esse direito de consulta.
10 Ley 41/2002, de 14 de noviembre, básica reguladora de la autonomía del paciente y de derechos y obligaciones en
materia de información y documentación clínica.
11 Artículo 18. Derechos de acceso a la historia clínica.: “1. El paciente tiene el derecho de acceso, con las reservas señaladas
en el apartado 3 de este artículo, a la documentación de la historia clínica y a obtener copia de los datos que figuran en ella.
Los centros sanitarios regularán el procedimiento que garantice la observancia de estos derechos. 2. El derecho de acceso del
paciente a la historia clínica puede ejercerse también por representación debidamente acreditada. 3. El derecho al acceso del
paciente a la documentación de la historia clínica no puede ejercitarse en perjuicio del derecho de terceras personas a la
confidencialidad de los datos que constan en ella recogidos en interés terapéutico del paciente, ni en perjuicio del derecho
de los profesionales participantes en su elaboración, los cuales pueden oponer al derecho de acceso la reserva de sus
anotaciones subjetivas. 4. clínica de los pacientes fallecidos a las personas vinculadas a él, por razones familiares o de hecho,
salvo que el fallecido lo hubiese prohibido expresamente y así se acredite. En cualquier caso el acceso de un tercero a la
historia clínica motivado por un riesgo para su salud se limitará a los datos pertinentes. No se facilitará información que
afecte a la intimidad del fallecido ni a las anotaciones subjetivas de los profesionales, ni que perjudique a terceros.”
12 Loi no 2002-303 du 4 mars 2002 relative aux droits des malades et à la qualité du système de santé.
13 Todavia, o art. 45 do Code de Déontologie médicale dispõe que “independentemente do dossier clínico previsto na lei, o
médico deve ter para cada paciente uma parte de observações que lhe é pessoal; essa ficha é confidencial e inclui os elementos
actualizados, necessários às decisões diagnósticas e terapêuticas”. Alguns autores entendem que essas fichas também são
comunicáveis se o paciente o solicitar. Outros entendem que tal medida apenas iria sobrecarregar o processo de informação
médica. Que o doente possa, se quiser, aceder à informação médica que lhe diz respeito, parece adequado, mas seria mais
judicioso ater-se ao espírito da norma do Código Deontológico, isto é à sagacidade do médico.Jean-Marie Clément, receia
que se caminhe para uma formalização excessiva das relações médico–paciente quando nesta relação deveria presidir a
confiança. “Le droit des usagers devient un droit des consommateurs de soins et à ce titre, on verse d’une confiance à une
défiance, avec toutes les conséquences d’une telle modification”.
14 Loi relative aux droits du patient du 22 août 2002.
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Nos países do norte da Europa, o acesso directo ao processo clínico é já tradicional. Nos Países Baixos (segundo o art. 456 BWB – Código Civil holandês),15 odireito de acesso
à totalidade do processo é reconhecido ao paciente, exceptuando as informações susceptíveis de
lesar a vida privada de terceiras pessoas (CLÉMENT, JM. 2002, p. 16).
Na Dinamarca, o direito de acesso ao processo clínico abrange todas as informações, incluindo as notas pessoais ou, por exemplo, os comentários a uma radiografia, mas
cada pedido é examinado e a consulta pode ser directa ou com a ajuda de um médico.
Na Alemanha, a lei autoriza o acesso directo aos “dados objectivos” do processo (resultados de exames, radiografias, troca de correspondência entre médicos) mas restringe
à autorização dos médicos o acesso aos elementos subjectivos (anotações pessoais, por exemplo). Assim, o acesso ao “dossier” pode estar sujeita a algumas limitações temporais e objectivas
(para protecção do interesse do médico em não ver davassadas as suas anotações pessoais e de
terceiras pessoas). O BGH (Bundesgerischtshof) – Tribunal Federal alemão – limita o direito de
acesso aos resultados de índole objectiva, científica e às referências a tratamentos, especialmente
no domínio da medicação e relatórios sobre cirurgias. Está vedado o direito de acesso a valorações
subjectivas do médico, como a reprodução de impressões pessoais sobre o paciente ou sobre os
seus familiares. O médico e/ou o hospital/ clínica têm o direito de esconder essas observações,
desde que seja notório que isso se verificou (LAUFS; UHLENBRUCK, 2002, p.489).
Também no Reino Unido se consagra o direito de acesso do paciente à informação de saúde. Todavia, a lei mantém uma excepção, na medida em que o acesso pode ser
condicionado caso a informação possa causar um grave dano ao paciente (‘likely to cause serious
harm’) (MASON & Mc CALL SMITH, 1999, p. 210).
Podemos concluir que a evolução no direito comparado vai no sentido de conceder ao paciente o direito de acesso directo ou imediato ao processo clínico (Luis MARTINÉZCALCERRADA; LORENZO, 2001).16
Vejamos o seguinte quadro comparativo:
31
15 Nos Países Baixos, o contrato médico está regulado no Código Civil de 1992, no livro 7 referente aos
contratos em
especial. Veja-se Ewoud HONDIUS/ Annet van HOOFT, “The New Dutch Law on Medical Services”, Netherlands International
Law Review, XLIII, 1-17, 1996. Sobre o direito holandês, cfr., tb., Loes MARKENSTEIN, “Country Report The Netherlands”,
in Jochen TAUPITZ (Ed.), Regulations of Civil Law to Safeguard the Autonomy of The Patient…, pp. 741 e ss.
16 Sobre esta matéria, na jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, cfr. Decisões de 28-1-2000; 7-12-99; 96-1998; 27-8-1997; 25-2-1997.
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Dever da Documentação, Acesso ao Processo Clínico e sua Propriedade. Uma Perspectiva Européia
5 A QUESTÃO DA PROPRIEDADE DO PROCESSO CLÍNICO
32
A questão da propriedade da ficha clínica dá origem a freqüentes dificuldades
terminológicas e confusões conceptuais. O termo “propriedade” é aqui usado em sentido amplo,
querendo significar titularidade ou domínio sobre a informação contida no processo.
Normalmente a lei não se pronuncia claramente sobre essa questão. Por isso, a
doutrina costuma analisar este problema tendo em conta os seguintes aspectos: a quem incumbe a
conservação do “dossier”? Tem o doente direito de acesso directo ao processo clínico (DUPUY,
2002, p. 192)? Tem o médico direito de propriedade intelectual sobre os registos clínicos (MASON
& Mc CALL SMITH, 1999, p. 211)?
No direito francês, a questão da propriedade do dossier é muito controversa.
Para Dupuy, (2002, p. 9) a unidade de saúde está obrigada ao dever de conservação, o que lhe
confere uma responsabilidade ligada à sua obrigação de arquivamento em boas condições e de
comunicação ao paciente quando este o desejar. Mas este dever não é assimilável às prerrogativas
(próprias do direito de propriedade) de fructus, de usus e de abusus sobre o “dossier”. O médico,
por seu turno, tem o direito de propriedade intelectual de uma parte variável do seu conteúdo
e nomeadamente das suas notas pessoais; contudo não é considerado depositário do “dossier”.
Por outro lado, o paciente não tinha, tradicionalmente direito de acesso directo ao “dossier”, o que
constituía uma limitação importante. Actualmente, segundo Olivier Dupuy, (2002) e à luz da Lei
francesa de 4 de Março de 2002, que cria a regra de acesso livre e directo do paciente ao “dossier
médical”, o paciente deve ser considerado o proprietário do processo clínico.
Em sentido contrário, a Lei da Galiza,17 que admite o acesso directo ao processo clínico, diz claramente que a Administração de Saúde é proprietária da “história clínica”18 .
Assim, ao contrário do que defende Dupuy, não parece que se possa extrapolar do regime de
acesso à história clínica a resposta para a questão da propriedade.19
Em Portugal, onde o acesso é indirecto, este argumento serviria para afirmar
que o médico ou o Hospital são os proprietários. Neste sentido, aliás, o art. 77º, n.º 2 do Código
Deontológico da Ordem dos Médicos afirma que “a memória escrita do médico pertence-lhe”.20
Na opinião do Conselho Regional do Sul da Ordem dos Médicos, “a informação constante do
ficheiro clínico é um direito do doente que em qualquer momento pode solicitar que lhe seja fornecida
ou enviada a médico à sua escolha. O ficheiro, em si, é propriedade do médico sendo a única
17 A Comunidade Autónoma da Galiza regula esta matéria na Ley 3/2001, de 28 de mayo, com as modificações introducidas
pela Ley 3/2005, de 7 de marzo, de modificación de la Ley 3/2001, de 28 de mayo, reguladora del consentimiento
informado y de la historia clínica de los pacientes. Estas modificações visam adaptar a lei da Comunidade Autónoma à
legislação nacional do Reino de Espanha: Ley 41/2002, de 14 de noviembre, básica reguladora de la autonomía del
paciente y de derechos y obligaciones en materia de información y documentación clínica.
18 O artigo 19 prescreve: “1. El paciente tiene el derecho de acceso a la documentación de la historia clínica y a obtener copia
de los datos que figuran en la misma. Los centros sanitarios regularán el procedimiento que garantice la observancia de estos
derechos. Este derecho de acceso podrá ejercitarse por representación debidamente acreditada. 2. En los supuestos de
procedimientos administrativos de exigencia de responsabilidad patrimonial o en las denuncias previas a la formalización de
un litigio sobre la asistencia sanitaria se permitirá que el paciente tenga acceso directo a la historia clínica, en la forma y con
los requisitos que se regulen legal o reglamentariamente. (…) 4. El derecho al acceso del paciente a la documentación de la
historia clínica no puede ejercitarse en perjuicio del derecho de terceras personas a la confidencialidad de los datos que
constan en ella recogidos en interés terapéutico del paciente, ni en perjuicio del derecho de los profesionales participantes
en su elaboración, los cuales pueden oponer al derecho de acceso la reserva de sus anotaciones subjetivas.
19 Afirma o artigo 15 relativo à “Propiedad y Custodia:” “1. Las historias clínicas son documentos confidenciales propiedad
de la Administración sanitaria o entidad titular del centro sanitario, cuando el medico trabaje por cuenta e bajo la
dependencia de una institución sanitaria. En caso contrario, la propiedad corresponde al medico que realiza la atención
sanitaria.” 2. La entidad o el facultativo propietario es responsable de la custodia de las historias clínicas y deberá adoptar
todas las medidas precisas para garantizar la confidencialidad de los datos o de la información contenida en ellas. (…)
20 Artigo 77.º (Processo ou Ficha clínica e exames complementares): “1. O Médico, seja qual for o Estatuto a que se submeta
a sua acção profissional, tem o direito e o dever de registar cuidadosamente os resultados que considere relevantes das
observações clínicas dos doentes a seu cargo, conservando-as ao abrigo de qualquer indiscrição, de acordo com as normas do
segredo profissional. 2. A ficha clínica do doente, que constitui a memória escrita do Médico, pertence a este e não àquele,
sem prejuízo do disposto nos Artigos 69.º e 80.º 3. Os exames complementares de diagnóstico e terapêutica, que constituem
a parte objectiva do processo do doente, poderão ser-lhe facultados quando este os solicite, aceitando-se no entanto que o
material a fornecer seja constituído por cópias correspondentes aos elementos constantes do Processo Clínico.”
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forma de preservar a liberdade de transcrição e o registo de elementos de uso pessoal, e que
o médico pretende salvaguardar de qualquer exposição de outra pessoa./ Nas organizações
complexas, públicas ou privadas, em que vários médicos registam no mesmo processo clínico, este
é da responsabilidade do Director Clínico da instituição nos termos do Código Deontológico em
vigor.” Todavia, os novos ventos que sopram na medicina poderão vir a impor um reequacionamento
do problema. A informação genética poderá conduzir a uma nova perspectiva da propriedade da
informação de saúde e do processo clínico.
Com efeito, um novo argumento para a discussão prende-se com o facto de,
actualmente, a nova medicina preditiva ou predizente impor a necessidade de tutela reforçada dos
dados de saúde, em especial a informação genética, já que a informação de saúde se afirma como
um objecto de exploração comercial. Essa nova perspectiva pode justificar o regime inovador
previsto na Lei n.º12/2005, de 26 de Janeiro (Informação genética pessoal e informação de
saúde), que no seu artigo 3º, n.º 1 dispõe:
A informação de saúde, incluindo os dados clínicos registados, resultados
de análises e outros exames de subsidiários, intervenções e diagnósticos, é
propriedade da pessoa, sendo as unidades do sistema de saúde os depositários da informação, a qual não pode ser utilizada para outros fins que não
os da prestação de cuidados e investigação em saúde e outros estabelecidos em lei.
Parece paradoxal que uma lei que mantém, como vimos, o regime conservador
de acesso indirecto ao processo clínico afirme peremptoriamente que o utente é proprietário da
informação. Assim, a ligação que DUPUY faz entre acesso directo e propriedade também não se
verifica aqui.
Ademais, importa ter em conta a subtileza da Lei 12/2005: não se afirma que o
paciente é proprietário do dossier, qua tale, mas sim da informação de saúde.
Na Sociedade da Informação em que se vive, a informação de saúde, em especial a informação genética são um valor mercantil importante, pelo que as ameaças à autodeterminação informacional se fazem sentir com particular importância. Na nova economia – dominada
pelo investimento na genética, na genómica, na seqüenciação do genoma humano e suas aplicações médicas – as informações de saúde podem converter-se num “produto” apetecível
(FUKUYAMA, 2002). Basta pensar nas bases de dados genéticos da Islândia, da Estónia ou de
Taiwan, ou nos problemas levantados pelo já clássico caso Moore, decidido pelo Supremo Tribunal
da Califórnia.21 Assim sendo, compreende-se que, partindo da distinção entre processo clínico e
informação de saúde, se defenda que esta última é propriedade do paciente(MASON & Mc
CALL SMITH, p. 211).22
Trata-se de uma opção legislativa controversa.23 Por outro lado, o legislador
parece não ter tomado em consideração a necessidade de conciliar os interesses do paciente com
os interesses do médico e de terceiros.
Com efeito, a lei apenas admite que se não apresente todo o processo clínico
em “circunstâncias excepcionais devidamente justificadas e em que seja inequivocamente
demonstrado que isso lhe possa ser prejudicial.”24
21 Moore v. Regents of the University of California, 793 P.2d 479 (Cal. 1990).
22 Fica assim comprometido o entendimento tradicional segundo o qual o médico seria titular do direito de propriedade
intelectual sobre as informações registadas. “…the ownership of the contained intellectual property – ie the copyright – is
held by the person who has created the notes or his employer, an not by the subject of those notes.”
23 O Código Deontológico, no art. 77.º, n.º 3 já distinguia a informação objectiva relativa ao paciente, prevendo que: “Os
exames complementares de diagnóstico e terapêutica, que constituem a parte objectiva do processo do doente, poderão serIhe facultados quando este os solicite, aceitando-se no entanto que o material a fornecer seja constituído por cópias
correspondentes aos elementos constantes do Processo Clínico.”
24 Segundo o art. 3.º, n.º2: “O titular da informação de saúde tem o direito de, querendo, tomar conhecimento de todo o
processo clínico que lhe diga respeito, salvo circunstâncias excepcionais devidamente justificadas e em que seja inequivocamente demonstrado que isso lhe possa ser prejudicial, ou de o fazer comunicar a quem seja por si indicado.
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Dever da Documentação, Acesso ao Processo Clínico e sua Propriedade. Uma Perspectiva Européia
Não parece, pois, ter em conta os interesses do médico e de terceiros, tal
como acontece, por exemplo, na lei belga, que prescreve (art. 9, §2): “as anotações pessoais do
profissional de saúde e os danos relativos a terceiros não entram no quadro do direito de consulta.” 25
Poderemos interpretar extensivamente essa excepção de forma a respeitar os
interesses do médico de manter reserva sobre as suas anotações pessoais e a confidencialidade de
informações de saúde de terceiras pessoas?
Se considerarmos que a pessoa tem o “direito de propriedade” sobre a sua
informação de saúde – “incluindo os dados clínicos registados, resultados de análises e outros exames subsidiários, intervenções e diagnósticos” – como prescreve o n.º1 do art. 3.º,
parece razoável afirmar que neste conceito não se incluem informações de saúde relativas a
terceiros, nem as anotações pessoais do médico.
Esta interpretação faz jus à necessidade de “concordância prática” entre valores constitucionais conflituantes26 e pode ser defendida à luz do art. 18.º, n.º2 da Constituição da
República,27 na medida em que só assim se respeita o princípio da proporcionalidade e o respeito
pelo “núcleo essencial” (CANOTILHO, 192, p. 628) do direito à intimidade da vida privada e
familiar de terceiros (art. 26.º, nº1 CRP) e do próprio médico (LAUFS/ UHLENBRUCK, 2002,
p. 491).
6 CONCLUSÃO
34
O cabal cumprimento dever de documentação constitui um dos pilares essenciais nos quais assenta a relação médico-paciente e encontra-se consagrado no direito português,
nomeadamente no art. 77.º, n.º1, do Código Deontológico da Ordem dos Médicos.
Por toda a Europa, incluindo nos países latinos, vem-se confirmando o direito
de acesso directo do paciente ao processo clínico, abandonando-se um certo paternalismo médico
que ainda vigora em Portugal.
A questão da propriedade tem vindo a ser evitada pela maioria dos legisladores,
mas alguns vão-se pronunciando (por exemplo, na Galiza e em Portugal) em sentidos divergentes.
A doutrina deve tomar em consideração os dados da nova economia e da nova medicina, intimamente influenciados pelos avanços na genética, na genómica e na farmacogenética e compreender
que a tese da propriedade do paciente sobre a informação médica talvez seja a que melhor
protege o cidadão perante as ameaças que se vão fazendo sentir ao seu direito à autodeterminação informacional.
Finalmente, há que se a avançar com uma interpretação do n.º 2 do art. 3.º da
Lei 12/2005, de 26 de Janeiro, que visa conciliar os interesses e valores constitucionais em conflito,
garantindo a protecção do direito à intimidade da vida privada e familiar de terceiros e do próprio
médico.
REFERÊNCIAS
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25 Cfr. também o art. 18.3 lei espanhola de direitos dos pacientes (Ley 41/2002, de 14 de Novembro).
26 Ou, numa perspectiva juscivilística, a colisão de direitos que é regulada no art. 335.º do Código Civil: “1. Havendo colisão
de direitos iguais ou da mesma espécie, devem os titulares ceder na medida do necessário para que todos produzam igualmente
o seu efeito, sem maior detrimento para qualquer das partes.”
27 A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as
restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.
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Compromisso de Ajustamento de Conduta
COMPROMISSO DE AJUSTAMENTO DE CONDUTA
Demétrius Coelho Souza*
Vera Cecília Gonçalves Fontes*
RESUMO
O presente texto visa destacar alguns aspectos mais importantes em torno do chamado termo de
ajustamento de conduta, que é um dos métodos alternativos para a solução de conflitos, notadamente
na área ambiental, visando, por conseguinte, a fazer com que o causador do dano assuma obrigação de dar, fazer ou não-fazer, sempre objetivando a evitar mal maior, ou seja, a lesão a bem
jurídico.
Palavras-chave: Termo. Ajustamento. Conduta. Solução. Conflitos. Proteção. Bem Jurídico.
COMMITMENT OF BEHAVIOR ADJUSTMENT
ABSTRACT
The present text aims to point some of the relevant aspects involving the institute known as conduct
adjustment term, that is one of the methods of solving legal issues, mainly in the environmental
area. Through this institute, the damage author must assume an obligation to repare the damage in
order to avoid a higher prejudice, that is, the lesion of a legal good.
36
Keywords: Term. Adjustment. Conduct. Solution. Conflicts. Protection. Legal Good.
1 INTRODUÇÃO
O presente estudo pretende abordar e fazer algumas considerações em torno
do instituto conhecido como compromisso ou termo de ajustamento de conduta, justamente por se
constituir em um método alternativo à solução de conflitos nos quais estejam inseridos interesses
difusos, coletivos e individuais homogêneos, quer na fase pré-processual (inquérito civil), quer na
processual, ou seja, quando já há ação civil pública em andamento. Não se pretende, pois, esgotar
o assunto em sua plenitude, mas tão somente trazer à tona alguns tópicos para reflexão. Assim,
cabe inicialmente destacar que o compromisso ou termo de ajusta-mento de conduta foi introduzido no ordenamento jurídico brasileiro pelo art. 211 do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº
8.069/90) ao afirmar que “os órgãos públicos legitimados poderão tomar dos interessados compromisso de ajustamento de sua conduta às exigências legais, o qual terá eficácia de título executivo
extrajudicial”, segundo magistério de Luis Roberto Proença (2001, p. 120-1).
* Especialista em Direito Empresarial (UEL) e em Filosofia Jurídica e Política (UEL). Mestrando em Direito pela UEM.
Professor de Direito Civil na PUCPR, Campus Londrina e na UniFil. Advogado.
* Bacharel em Direito. Especialista em Direito Ambiental (UEM). Mestranda em Direito pela UEM.
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Logo em seguida, aproveitando-se desse mesmo dispositivo, o art. 113 do Código de Defesa do Consumidor1 (Lei nº 8.078/90) introduziu um parágrafo, o sexto, ao art. 5º da Lei
da Ação Civil Pública (Lei nº 7.347/85), passando a viger com a seguinte redação: “Os órgãos
públicos legitimados poderão tomar dos interessados compromisso de ajustamento de sua conduta
às exigências legais, mediante cominações, que terá eficácia de título executivo extrajudicial”.
Comparando-se ambos os textos legais, percebe-se que houve, com a alteração introduzida pelo art. 113 do CDC, o acréscimo do termo “cominações”, justamente para viabilizar
a previsão de sanções para os casos de descumprimento das obrigações assumidas no instrumento,
compromisso ou termo de conduta.2 Aliás, ensina José dos Santos Carvalho Filho (2001, p. 208)
que “para haver efetividade jurídica, é obrigatório (e nunca facultativo!) que no instrumento de
formalização esteja prevista a sanção para o caso de não cumprimento da obrigação”.
O compromisso ou termo de ajustamento de conduta (TAC) se fez presente,
ainda, em alguns outros textos legais, mencionando, a título exemplificativo, a Lei nº 8.884/94, que
dispôs sobre a prevenção e a repressão às infrações contra a ordem econômica e a Lei nº 9.605/98,
que dispôs sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao
meio ambiente.3
De qualquer sorte, o compromisso de ajustamento de conduta consagra a “hipótese de transação, pois destina-se a prevenir o litígio (propositura de ação civil pública) ou a pôrlhe fim (ação em andamento), e ainda dotar os legitimados ativos de título executivo extrajudicial ou
judicial, respectivamente, tornando líquida e certa a obrigação” (MILARÉ, 2004, p. 819).
Essa transação, porém, não deve ser analisada à luz das normas de direito civil
(CC, arts. 1025-1035), justamente por não versar sobre direitos patrimoniais disponíveis. Alguns
autores, nesse particular, chegam até mesmo a afirmar não ser correta a utilização do termo “transação”, nem dizer tratar-se de uma revisitação ao instituto, sob pena de restar alterada a natureza
da transação. Trata o instituto, portanto, “de um comprometimento ao ajuste de conduta às exigências legais, instituto novo, que existe per se, com suas próprias características” (FIORILLO,
RODRIGUES e NERY, 1996, p. 177).
Como justificar, então, a possibilidade de se transacionar direitos indisponíveis?
Realmente, em um primeiro momento não há que se falar em disponibilidade dos direitos ou interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos quando objeto de defesa coletiva. No entanto, a
realidade demonstrou ser mais interessante, em alguns casos, a celebração de um acordo entre o
ente legitimado e aquele que está violando o interesse protegido pela norma do que o enfrentamento
de um processo judicial, o que é sabidamente moroso e custoso para ambas as partes. Daí o
surgimento do compromisso de ajustamento de conduta como uma verdadeira opção no sentido de
se buscar uma solução mais rápida e eficaz para os problemas apresentados, constituindo o termo
ou compromisso, ainda, verdadeira tentativa de desafogar o Poder Judiciário. Diante desse quadro,
1 Neste particular, observa Édis Milaré que “quando da edição do Código de Defesa do Consumidor, vetou-se o § 3º do art. 82
(que introduzia o compromisso de ajustamento em matéria de relações de consumo) e promulgou-se o art. 113 (que
introduziu o mesmo compromisso em matéria de quaisquer interesses individuais), o que acabou por suscitar dúvida quanto
à vigência do atual § 6º do art. 5º da Lei 7.347/85. Segundo Hugo Nigro Mazzilli, o argumento usado pelos que sustentavam
o veto a tal parágrafo fundou-se no fato de que teria havido equívoco na promulgação do art. 113 em sua íntegra, pois era
manifesta a vontade do Presidente da República de vetar o compromisso de ajustamento, intento este exteriorizado por
expresso nas razões do veto a outro dispositivo da mesma lei (o parágrafo único do art. 92). Esse argumento, ainda que
verdadeiro no tocante à mens legislatoris, não é, porém, suficiente para induzir à existência do veto do instituto constante
no art. 113, pois este dispositivo foi regularmente sancionado e promulgado, em sua íntegra, como se pode aferir do exame
da publicação oficial da Lei 8.078, de 11.09.1990, publicado no Diário Oficial da União do dia imediato, em edição
extraordinária” (Notas sobre o compromisso de ajustamento de conduta. In: Antônio Herman Benjamin (Org.). Direito,
água e vida. São Paulo: Imprensa Oficial, 2003, p. 571 e 572). In: Direito do Ambiente: doutrina, jurisprudência,
glossário. 3. ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 818-819.
2 Explica Hugo Nigro Mazzilli que o compromisso de ajustamento de conduta é também conhecido por “termo de ajustamento
de conduta” justamente por ser tomado a termo. In: A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo: meio ambiente,
consumidor, patrimônio cultural, patrimônio público e outros interesses. 19 ed., São Paulo: Saraiva, 2006, p. 367.
3 Dispõe o art. 79-A da Lei nº 9.605/98 que “os órgãos ambientais integrantes do SISNAMA [...] ficam autori-zados a celebrar,
com força de título executivo extrajudicial, termo de compromisso com pessoas físicas ou jurídicas responsáveis pela
construção, instalação, ampliação e funcionamento de estabelecimentos e atividades utilizadores de recursos ambientais,
considerados efetiva ou potencialmente poluidores”.
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José dos Santos Carvalho Filho (2001, p. 202) elabora um conceito em torno do termo ou compromisso de ajustamento de conduta: “é o ato jurídico pelo qual a pessoa, reconhecendo implicitamente
que sua conduta ofende interesse difuso ou coletivo, assume o compromisso de eliminar a ofensa
através da adequação de seu comportamento às exigências legais”.
A título elucidativo, menciona-se o seguinte exemplo: determinada empresa, ao
celebrar um compromisso de ajustamento de conduta, compromete-se a não mais depositar resíduos sólidos (lixo) em local não apropriado e sem as mínimas condições de higiene, evitando, com
isso, a possibilidade de poluir manancial de água e contribuir para a má qualidade de vida da
população local. Um outro exemplo pode igualmente servir para o esclarecimento do assunto: o
Ministério Público do Trabalho celebra compromisso de ajusta-mento de conduta com determinado
município com vistas a fazer com que o ente público adote medidas para evitar o trabalho infantil
em determinada localidade, protegendo, assim, a criança e o adolescente em todas as suas possíveis formas.
Deste modo, com a celebração do ajuste de conduta (e com alusão ao primeiro
exemplo acima dado), o ente legitimado não mais promoverá ação civil pública em desfavor da
empresa (muito embora os demais co-legitimados ainda possam fazê-lo). Esse fato, por si só, pode
ser benéfico para o causador do dano à medida que evitará gastos e naturais preocupações advindas
de um processo judicial. Em contrapartida, caso o acordo não seja cumprido, valerá o mesmo como
título executivo extrajudicial (§ 6º, art. 5º da LACP), podendo o ente legitimado executá-lo com
base nas normas previstas no Código de Processo Civil, ocasião em que se farão incidir as
“cominações” previamente estabelecidas.
2 INTERESSES DIFUSOS, COLETIVOS E INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS
38
Como já mencionado, o termo ou ajustamento de conduta é utilizado no
sentido de buscar soluções para questões envolvendo diretos difusos, coletivos e individuais homogêneos. Daí a importância, antes de se seguir adiante, de algum delineamento em torno desses
direitos ou interesses.4
Segundo se depreende do art. 81 do Código de Defesa do Consumidor, a defesa dos interesses ou direitos difusos dos consumidores e vítimas poderá ser exercida individualmente ou a título coletivo. E seu parágrafo único determina que a defesa coletiva será exercida
quando se tratar de:
I – interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste Código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeter-minadas e ligadas por circunstâncias de fato.
II – interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste
Código, os transindividuais de natureza indivisível de que seja titular grupo,
categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por
uma relação jurídica base.
III – interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os
decorrentes de origem comum.
4 Muito embora possa haver alguma distinção entre os termos “interesse” e “direito”, serão aqui utilizados como sinônimos.
Em relação ao conceito de interesse, aliás, observa Marcelo Abelha Rodrigues que o “interesse é uma relação entre um
sujeito e um objeto. Relação essa que tem por pontos de contato a aspiração do homem acerca de determinados bens que
sejam aptos à satisfação de uma exigência sua. Feita essa dissecação do conceito de interesse, fica claro que no seu esqueleto
estão presentes: um sujeito com necessidade e um objeto idôneo para satisfazer essa mesma necessidade”. In: Instituições
de Direito Ambiental: parte geral. São Paulo: Max Limonad, 2002, p. 20-21. Rodolfo de Camargo Mancuso, de sua
parte, observa que “o interesse interliga uma pessoa a um bem da vida, em virtude de um determinado valor que esse bem
possa representar para aquela pessoa. A nota comum é sempre a busca de uma situação de vantagem, que faz exsurgir um
interesse na posse ou fruição daquela situação”. In: Interesses Difusos: conceito e legitimação para agir. 6. ed., São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 19-20.
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Demétrius Coelho Souza e Vera Cecília Gonçalves Fontes
Percebe-se da simples leitura desses incisos, portanto, que os direitos difusos
são metaindividuais (ou transindividuais), isto é, transcendem à pessoa, com indeterminação absoluta de titulares, sendo o objeto indivisível e estando as pessoas ligadas entre si por uma situação de
fato. É o que ocorre, por exemplo, em relação ao meio ambiente (CF/88, art. 225)5 , exemplo
clássico de interesse ou direito difuso, até porque todos temos o direito de viver em um meio
ambiente sadio e ecologicamente equilibrado, alheio às mais diversas degradações humanas.
Nos direitos ou interesses coletivos, o objeto é também indivisível (tal como nos
direitos difusos), mas a origem encontra fundamento em uma relação jurídica base comum, sendo
o grupo determinável. É o que ocorre, por exemplo, com o “direito de classe dos advogados de ter
representante na composição dos Tribunais (CF, art. 94)”, como bem aponta Teori Albino Zavascki
(2006, p. 45).
Aliás, a redação do inc. II (interesses coletivos), supra transcrito, faz crer que
o titular é um grupo, categoria ou classe de pessoas. O vínculo que permite identificar (rectius =
determinar) vem descrito da seguinte maneira na norma em comento: ligadas entre si ou com a
parte contrária por uma relação jurídica base. Significa dizer que o grupo, a categoria ou a classe
de pessoas estão ligados entre si (relação institucional como uma associação, um sindicato, uma
federação etc.) ou, alternativamente, é possível que esse vínculo jurídico emane da própria relação
jurídica existente com a parte contrária. Imagine-se, nesse sentido, o seguinte exemplo: o sindicato
de determinada classe de trabalhadores propõe ação judicial visando compelir o dono de uma
empresa a fornecer aparelhos auriculares a seus funcionários por conta do barulho excessivo
provocado pelas máquinas ali existentes. A ação é julgada procedente e o dono da empresa, então,
passa fornecer tais aparelhos, não apenas, porém, àqueles trabalhadores sindicalizados, mas sim a
todos que necessitam dos aparelhos, justa-mente por versar a questão sobre direitos coletivos,
abrangendo a decisão judicial toda a classe, categoria ou grupo de pessoas ligadas entre si.
Por fim, os direitos individuais homogêneos, onde o grupo é determinável, o
objeto divisível e a origem é comum. É o que ocorre em relação ao direito dos adquirentes a
abatimento proporcional do preço pago na aquisição de mercadoria viciada (CDC, art. 18, §1º, inc.
III). No entanto, não se pode perder de vista que o direito individual homogêneo, embora admita
uma defesa coletiva, que se justifica por sua origem comum, permanece sempre um direito individual, podendo a pessoa, se assim o desejar, manejar ação individual na defesa de seus interesses.
Todavia, como bem observa Teori Albino Zavascki (2006, p. 46), “nem sempre
são perceptíveis com clareza as diferenças entre os direitos difusos e os direitos coletivos, ambos
transindividuais e indivisíveis [...]”. Nesse particular, não se poderia deixar de reproduzir a precisa
lição de Hugo Nigro Mazzilli (2006, p. 55-6):
Para identificar corretamente a natureza de interesses transindividuais ou de
grupos, devemos, pois, responder a essas questões: a) O dano provocou
lesões divisíveis, individualmente variáveis e quantificáveis? Se sim, estaremos diante de interesses individuais homogêneos; b) O grupo lesado é
indeterminável e o proveito repara-tório, em decorrência das lesões, é
indivisível? Se sim, estaremos diante de interesses difusos; c) O proveito
pretendido em decorrência das lesões é indivisível, mas o grupo é
determinável, e o que une o grupo é apenas uma relação jurídica básica
comum, que deve ser resolvida de maneira uniforme para todo o grupo? Se
sim, então estaremos diante de interesses coletivos.
Nesse mesmo sentido, leciona Marcelo Abelha Rodrigues (2004, p. 36):
5 O art. 225 da Constituição Federal de 1988 está redigido nos seguintes termos: “todos têm direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público
e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.
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O legislador brasileiro optou por conceituar os interesses coletivos lato
sensu, distinguindo-os em difusos, coletivos propriamente ditos e individuais homogêneos. Essa conceituação se deu no art. 81, parágrafo único, incs.
I, II e III do Título III do CDC. No caso da alínea a, temos que uma soma de
necessidades individuais sobre objetos vários ou divisíveis configura a soma
de interesses individuais que podem alcançar, dependendo da situação, uma
feição coletiva (entre nós é o interesse individual homogêneo). Portanto,
não é na sua essência um direito coletivo, porque resulta da soma de interesses individuais. O seu tratamento jurídico é que pode vir a ser coletivo,
dependendo das razões políticas do legislador. No caso da alínea b, temos
que os sujeitos possuem as necessidades individuais comuns por causa da
indivisibilidade do bem que os irá satisfazer. Neste caso estaremos diante
dos interesses essencialmente coletivos, que, por sua vez, se esgalham em
difusos e coletivos. [...]
Pode-se concluir, pela rasa leitura dos incs. I e II do art. 81, parágrafo único
do CDC, que o divisor de águas entre o interesse difuso e o interesse coletivo
é o aspecto subjetivo. Assim, se o critério objetivo foi o determinante para
colocá-los na vala comum dos interesses essencialmente coletivos, foi o
critério subjetivo que o legislador adotou para diferenciar um de outro.
40
Cabe por fim destacar, consoante os ensinamentos de Nelson Nery Junior e
Rosa Maria de Andrade Nery (1995, p. 112), que “o que determina a classificação de um direito
como difuso, coletivo, individual puro ou individual homogêneo é o tipo de tutela jurisdicional que se
pretende quando se propõe a competente ação judicial”, o que leva a crer que o mesmo fato pode
dar ensejo à pretensão difusa, coletiva ou individual. Esse pensamento, porém, não é compartilhado
por toda a doutrina.
Feitas essas breves considerações em torno dos chamados direitos difusos,
coletivos e individuais homogêneos, volta-se ao tema anteriormente proposto, sem perder de vista
que o termo ou ajustamento de conduta é um meio previsto em lei para que as partes cheguem a
um acordo, obrigando-se uma a respeitar ou não mais violar direitos ou interesses dessa natureza e
outra a não propor ação judicial, justamente por conta da celebração desse acordo, o que evitaria
dissabores naturais advindos de um processo judicial.
3 NATUREZA JURÍDICA
Qual a natureza jurídica do termo ou compromisso de ajustamento de conduta?
A doutrina pátria ainda não é pacífica em torno do assunto. Para alguns, como é o caso de Fernando
Grella Vieira (2002, p. 270), o compromisso de ajustamento de conduta seria uma espécie de
transação, com peculiaridades próprias e distintas da figura comum aplicável às obrigações meramente patrimoniais, de natureza privada. Para outros, como é o caso de Hugo Nigro Mazzilli (2006,
p. 366), o compromisso de ajustamento seria “um título executivo extrajudicial, por meio do qual um
órgão público legitimado toma do causador do dano o compromisso de adequar sua conduta às
exigências da lei”. E continua o autor:
Como tem natureza bilateral e consensual, poderíamos ser tentados a
identificá-lo como uma transação do direito civil. Não seria correto, porém,
esse raciocínio. Se tivesse mesmo a natureza de transação verdadeira e própria, seria um contrato, porque suporia o poder de disposição dos contraentes,
que, por meio de concessões mútuas, preveniriam ou terminariam o litígio
(CC, art. 840).
Entretanto, o compromisso de ajustamento de conduta não é um contrato; nele o órgão público legitimado não é o titular do direito
transindividual, e, como não pode dispor do direito material, não pode
fazer concessões quanto ao conteúdo material da lide. Nem se diga que o
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compromisso teria natureza contratual porque o órgão público nele também
assumiria uma obrigação, qual seja a de fiscalizar o seu cumprimento. Essa
obrigação decorre do poder de polícia da Administração, não tendo caráter
contratual, tanto que, posto omitida qualquer cláusula a respeito no instrumento, mesmo assim subsistiria por inteiro o poder de fiscalizar.
É, pois, o compromisso de ajustamento de conduta um ato administrativo
negocial por meio do qual só o causador do dano se compromete; o órgão
público que o toma, a nada se compromete, exceto, implicitamente, a não
propor ação de conhecimento para pedir aquilo que já está reconhecido no
título.
Há, porém, aqueles que entendem ser o compromisso de ajustamento uma
figura jurídica própria que não se confundiria com a transação. Nessa linha (e parece-nos mais
acertadamente), encontram-se Celso Antônio Pacheco Fiorillo, Marcelo Abelha Rodrigues, Rosa
Maria de Andrade Nery e Luis Roberto Proença. Por fim, e de forma bem singela, afirma José dos
Santos Carvalho Filho (2001, p. 202) que “a natureza jurídica do instituto é, pois, a de ato jurídico
unilateral quanto à manifestação volitiva, e bilateral somente quanto à formalização, eis que nele
intervêm o órgão público e o promitente”.
4 CARACTERÍSTICAS
Hugo Nigro Mazzilli (2006, p. 366-7) aponta as principais características do
compromisso ou termo de ajustamento de conduta: a) é tomado por termo por um dos órgãos
públicos legitimados à ação civil pública; b) não há concessões de direito material por parte do
órgão público legitimado, mas sim a assunção de obrigações por parte do agente causador do dano
(obrigações de fazer ou não fazer); c) dispensam-se testemunhas instrumentárias e participação
de advogados; d) o compromisso constitui título executivo extrajudicial; e) não é colhido nem homologado em juízo; f) o órgão público legitimado pode tomar o compromisso de qualquer causador
do dano, mesmo que este seja outro ente público (só não pode tomar compromisso de si mesmo);
g) é preciso haver no próprio título as cominações cabíveis, embora não necessariamente a imposição de multa.
Realmente, em que pese nada dispor a lei sobre o assunto, o compromisso de
ajustamento não pode ser celebrado de forma verbal ou tácita, até por conta do princípio da publicidade (CF, art. 37), que tem como uma de suas manifestações a instrumentalização formal das
manifestações de vontade. O compromisso, por conseguinte, deve ser escrito e devidamente formalizado.
Em relação às obrigações de fazer e não fazer, Luis Roberto Proença (2001, p.
127) chama atenção para o também possível acordo em relação às obrigações de dar, justamente
por não existir óbice legal algum.
Em relação às testemunhas, afigura-se possível a celebração do ajuste sem sua
participação, até por conta do teor do próprio § 6º do art. 5º da Lei da Ação Civil Pública. Todavia,
questão interessante é trazida a lume pelo trecho do acórdão abaixo reproduzido, o qual informa
que um município, ao celebrar um termo ou ajustamento de conduta, por exemplo, não pode ao
depois alegar eventual dificuldade financeira para justificar seu eventual descumprimento. Essa
alegação, como sói esclarecer, não tem o condão de afastar a exigibilidade do título, veja-se:
O termo de compromisso de ajustamento firmado entre o Ministério Público
e a Municipalidade, com o fim de solucionar problemas constatados no
sistema de drenagem urbana do Município, é título executivo, consoante
dispõe o art. 5º, § 6º, da Lei nº 7.347/85 (ação civil pública), incluído pela Lei
nº 8.078/90 (Código do Consumidor). Precedentes do TJRGS e do STJ.
Descumprimento das obrigações constantes no termo. Dificuldades financeiras do município. A alegação de dificul-dades financeiras do Município
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para justificar o descumprimento do termo não tem o condão de afastar a
executividade do título, firmado espontaneamente pelo Prefeito Municipal,
que detinha competência para tal. Obras e estudos de sanea-mento básico,
medidas de interesse da saúde pública, somado à circunstância de que a sua
não-realização pode comprometer o patrimônio histórico daquele Município. Apelação desprovida, por maioria (Apelação Cível nº 70013257944, 22ª
Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, relator
Desembargador Eduardo Zietlow Duro, julgado em 15.12.05).
Em relação à participação dos advogados, com todo o respeito à lição do Prof.
Hugo Nigro Mazzilli, sua ausência pode ser temerária aos fins objetivados pelo TAC. Ora, se é
certo que compromisso de ajuste de conduta é pactuado para a prevenção ou reparação do dano a
interesses e direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos, é igualmente certo que o
compromitente (aquele que se obriga a adequar sua conduta às exigências da lei) necessita de uma
boa assessoria jurídica até mesmo para saber se as medidas necessárias à adequação não infringem outra lei. Em outros termos, de nada adiantará ao compromitente celebrar um compromisso
de ajustamento de conduta se, para honrar seu cumprimento, violar outras tantas disposições legais. Portanto, a assessoria jurídica se revela extremamente importante, justificando-a a própria
importância dos interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos.
Há, também, a hipótese de o compromisso ser colhido e homologado em juízo.
Realmente, observa Édis Milaré (2004, p. 819) que
apesar de a norma referir-se a ajuste extrajudicial (realizado no inquérito civil
ou em procedimento avulso, sem homologação judicial), nada obsta seja
efetivada também em juízo (realizado no processo ou levado em procedimento avulso à homologação judicial). Na primeira hipótese, o compromisso
implica o arquivamento implícito do inquérito, com sua homologação pelo
Conselho Superior do Ministério Público, qualificando-se como título executivo extrajudicial. Na segunda hipótese, a homolo-gação da transação é
feita pelo juiz e obtém-se título executivo judicial.
42
Digno de nota, ainda, a possibilidade de se prever, no próprio corpo do compromisso de ajuste de conduta, a cominação cabível em caso de descumprimento da obrigação assumida, sendo a mais comum a imposição de multa diária, denominada pela doutrina francesa de
“astreintes”. Assim é que o compromisso de ajustamento, por ter eficácia de título executivo
extrajudicial, substitui a fase processual de conhecimento, restando daí a possibilidade de prever
pena pecuniária diária em caso de descumprimento da obrigação assumida. Nesse sentido, observa Luis Roberto Proença (2001, p. 132) que
Dentre os novos poderes assegurados ao juiz da execução, previu o art. 645
do Código de Processo Civil, possa ele fixar, ao despachar a inicial de execução fundada em título extrajudicial, multa diária pelo atraso no cumprimento
de obrigação de fazer ou de não fazer. Assim, não se exige a fixação desta
multa no compromisso, para que este tenha eficácia. Por outro lado, se não é
necessária, é sempre útil prevê-la expressamente no termo do ajuste, como
meio psicológico de obtenção voluntária dos compromissos assumidos.
Um cuidado, porém, se impõe: o de imposição de cominações elevadas ou
excessivas. De fato, a multa tem caráter pedagógico e preventivo, prestando-se não apenas a
fazer com que a obrigação assumida seja cumprida, mas também a dissuadir o compromitente de
outras práticas irregulares ou ilícitas no futuro. E, revelando-se excessiva, pode o magistrado reduzir seu valor. É o que restou decidido no seguinte acórdão:
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A multa diária acordada em termo de ajustamento firmado perante o Ministério Público, em caso de inadimplemento de obrigação de fazer decorrente de
dano ambiental, pode ser reduzida pelo juiz se excessiva. Art. 645 do CPC.
Hipótese em que a multa diária correspondente a dois salários mínimos se
mostra desproporcional à renda do compromitente. As normas do Código de
Defesa do Consumidor não se aplicam ao termo de ajustamento de conduta
em matéria ambiental. Recurso provido. Voto vencido (Apelação Cível nº
70007750243, 22ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul,
relatora Desembargadora Maria Isabel de Azevedo Souza, julgado em
11.05.04).
Assim, em sendo excessiva a multa constante no TAC, revela-se possível sua
diminuição pelo magistrado. Tal redução, porém, “deve ser prudentemente estabelecida pelo juiz
em face das peculiaridades do caso” (DINAMARCO, 1998, p. 294), justamente para que não
motive o devedor a continuar inadimplente com sua obrigação. Nesta perspectiva,
não haveria justificativa para reduzir o juiz a multa fixada no compromisso de
ajustamento, se mesmo ela não se mostre suficiente para fazer o devedor
realizar aquilo a que se comprometeu. Assim, deve aquela possibilidade de
redução de multa ser utilizada com ponderação pelo juiz, tendo em vista as
circunstâncias do caso concreto e, sempre, o objetivo de dar efetividade ao
ordenamento jurídico (PROENÇA, 2001, p. 136).
Luis Roberto Proença (2001, p. 136-7) sustenta, ainda, a possibilidade de o
magistrado aumentar o valor da multa caso entenda ser insuficiente o valor constante no compromisso de ajustamento de conduta. Para tanto, justifica seu entendimento com base na efetividade
do processo, ou seja,
se é do propósito das reformas realizadas em nossa sistemática processual
obter a efetividade da jurisdição, conferindo ao juiz poderes para garanti-la,
dentre os quais o de suprir, ex officio, o omissão da previsão de multa nos
casos de títulos extra-judiciais (art. 645 do CPC), e o de aumentá-la, se considerar insuficiente aquela fixada nos títulos judiciais (art. 644 do CPC), não há
razão para que se entenda não poder fazê-lo no caso de execução baseada
em títulos extrajudiciais.
Por derradeiro, em que pese não terem sido mencionadas por Hugo Nigro
Mazzilli, aponta Luis Roberto Proença duas outras características em relação ao assunto em apreço: a primeira relacionada a um princípio de congruência e a segunda relacionada ao objeto do
compromisso de ajustamento de conduta, podendo ser parcial ou total. Em relação a um princípio
de congruência, diz o autor que
a atuação dos órgãos públicos em geral deve obedecer a um princípio de
congruência entre as suas competências ou atribuições e o objeto do compromisso de ajustamento. Assim, por exemplo, parece claro que a intenção
das normas ora comentadas é a de que um município possa firmar a avença
com um infrator, nos assuntos que lhe toca. Não haveria sentido, e, deste
modo, mostrar-se-ia inválido tal instrumento, se, por exemplo, um determinado município pactuasse com infrator de normas urbanísticas de outro município (PROENÇA, 2001, p. 123).
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O próprio autor, porém, vislumbra a possibilidade de, em casos de suma importância, como a preservação do meio ambiente, por exemplo, um município celebrar um compromisso de ajustamento de conduta com empresa situada em outro município, o que seria plenamente
justificável pelo interesse maior a ser protegido e resguardado.
Por fim, deve-se registrar que o compromisso de ajustamento pode ser integral
ou parcial. Integral será quando esgotar todas as conseqüências jurídicas de um conjunto de fatos.
Parcial, ao contrário, será o compromisso referente a apenas alguns dos fatos ou conseqüências
advindas desses fatos, relegando-se o restante para o prosseguimento das investigações no inquérito civil ou para a propositura da ação civil pública.
A esta última hipótese, Hugo Nigro Mazzilli (2006, p. 369) também atribui o
nome de “compromissos preliminares”, fazendo menção, inclusive, à Súmula nº 20 do Conselho
Superior do Ministério Público do Estado de São Paulo, redigida nos seguintes termos:
Quando o compromisso de ajustamento tiver a característica de ajuste preliminar, que não dispense o prosseguimento de diligências para uma solução
definitiva, salientado pelo órgão do Ministério Público que o celebrou, o
Conselho Superior homologará somente o compromisso, autorizando o prosseguimento das investigações.
5 OS LEGITIMADOS À CONFECÇÃO DO AJUSTAMENTO
44
O rol dos legitimados ativos à ação civil pública ou coletiva encontra-se previsto no artigo 5º, § 6º da Lei 7.347/85 (LACP), combinado com o artigo 82 da Lei 8.078/90 (Código
de Defesa do Consumidor). Todavia, nem todos os legitimados podem firmar compromisso de
ajustamento de conduta do agente causador do dano a interesses meta-individuais. Nesse particular, observa Hugo Nigro Mazzilli (2006, p. 363) que
só podem tomar o compromisso de ajustamento de conduta os órgãos públicos legitimados à ação civil pública ou coletiva .Quais são esses órgãos públicos legitimados? Para alguns, são todos os legitimados à ação
civil pública, excetuada apenas a associação civil. Numa outra interpretação,
grosso modo, poderíamos dizer que estão autorizadas a celebrar compromissos de ajustamento as pessoas jurídicas de direito público interno e seus
órgãos, não as sociedades civis , nem as fundações privadas, nem os sindicatos, nem as entidades da administração indireta, nem as pessoas jurídicas
que, posto com participação acionária do Estado, tenham regime jurídico
próprio de empresas privadas. Assim, a rigor, não estariam incluídos na condição de “órgãos públicos legitimados”: a) as associações civis; b) os sindicatos; c) as sociedades de economia mista; d) as fundações privadas; e)
as empresas públicas.
Tem-se, assim, que com relação à legitimação dos órgãos públicos para celebrar termo ou compromisso de ajustamento de conduta, há que se analisar se agem na qualidade de
prestadores ou de exploradores de serviço público com finalidade lucrativa, em condições de empresas de mercado. Nesse passo, na tentativa de apontar uma solução para a controvérsia, Hugo
Nigro Mazzilli (2006, p. 363) relaciona três categorias de legitimados, a partir do exame do rol
acima mencionado, veja-se:
a) a daqueles legitimados que, incontroversamente podem tomar compromisso de ajustamento: Ministério Público, União, Estados, Municípios, Distrito Federal e Órgãos Públicos, ainda que sem personalidade jurídica, especificamente destinados à defesa de interesses difusos, coletivos e individu-
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ais homogêneos. São os órgãos pelos quais o Estado administra o interesse
público, ainda que integrem a chamada administração indireta (como
autarquias, fundações públicas ou empresas públicas), nada obsta a que
tomem compromissos de ajustamento quando ajam na qualidade de entes
estatais.
b) a dos legitimados que, incontroversamente não podem tomar o compromisso: as associações civis, os sindicatos e as fundações privadas;
c) a dos legitimados em relação aos quais cabe discutir à parte se podem ou
não tomar compromisso de ajustamento de conduta, como as fundações
publicas e as autarquias, ou até as empresas públicas e as sociedades de
economia mista.
Ainda com relação aos legitimados para celebrar o TAC vale registrar a crítica
feita por José Emmanuel Burle Filho e Wallace Paiva Martins Júnior, que, sendo citados por Édis
Milaré (2005, p. 902), assim se manifestam:
[...] a melhor interpretação, que se ajusta ao sistema jurídico vigente, é a que
encontra na expressão órgãos públicos (mercê da má técnica legislativa) a
indicação de todas as entidades que compõem a Administração Pública direta,
indireta ou fundacional, e que, independentemente da personalidade jurídica de cada uma, desenvolvam precipuamente atividades de interesse público, o que permite incluir as sociedades de economia mista e as empresas
públicas como detentoras da prerrogativa de firmar compromisso de ajustamento de conduta desde (é claro) que esta esteja inserida entre os objetivos
legais e estatutários do ente, de modo a prevenir litígio para o qual estava
legitimada. Excluir-se, tout court , as entidades paraestatais da possibilidade
de firmarem compromissos de ajustamento de conduta é equipará-las à [sic]
entidades genuinamente privadas (como as associações co-legitimadas), o
que não se adequa ao ordenamento jurídico.
Daniel Roberto Fink (2002, p. 128), de sua parte e com relação ao especial
enfoque dos órgãos públicos legitimados (especificamente as empresas públicas e as sociedades
de economia mista) igualmente assevera que:
Burle e Martins admitem que essas pessoas jurídicas possam celebrar ajustamento de conduta baseados no argumento de que, se é verdade que têm
regime jurídico de empresas privadas, não é menos certo que o Estado participa de sua criação e gerenciamento, marcando-lhes com o signo público. É
certo, ainda, que prestam serviços de utilidade pública e realizam atividades
que envolvem o interesse público, ainda que seja uma atividade econômica,
mas sempre de interesse coletivo. Em abono a seu argumento, ajuntam uma
série de restrições impostas a seu funciona-mento, exatamente tendo em
vista a participação do Estado na realização da atividade (por exemplo, restrições a privilégios fiscais; submissão a licitação pública; investidura em empregos mediante concurso, entre outros ).
A seguir, o posicionamento de Hugo Nigro Mazzilli (2006, p. 103):
Parece-nos que, quando se tratar de órgãos pelos quais o Estado administra
o interesse público, ainda que da chamada administração indireta (como
autarquias, fundações públicas ou empresas públicas), nada obsta a que
tomem compromissos de ajustamento de conduta quando ajam na qualidade
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de entes estatais (quando prestem serviço público). Contudo, para aqueles
órgãos dos quais o Estado participe, quando concorram na atividade
econômica em condições empresariais, não se lhe pode conceder essa prerrogativa de tomar compromissos de ajustamento de conduta, sob pena de
estimular desigualdades afrontosas à ordem jurídica, como é o caso das
sociedades de economia mista ou das empresas públicas, quando ajam em
condições de empresas de mercado.
Todavia, há na doutrina quem reconheça legitimidade também às associações:
é o caso do posicionamento adotado por Fernando Grella Vieira (2002, p. 271), para quem
A associação terá legitimidade se a questão lhe for pertinente. Não é possível que uma entidade associativa que tenha por finalidade, segundo seus
estatutos, por exemplo, a proteção do meio ambiente ponha-se a tutelar
interesse atinente à esfera do consumidor, de deficientes, etc. Da mesma
forma, a pertinência e os limites da ofensa é que nortearão a legitimidade das
fundações, empresas públicas e sociedades de economia mista, em cada
caso, diante do que dispuser seus atos constitutivos quanto à finalidade
institucional ou objeto social.
46
Afirma ainda Fernando Grella Vieira (2002, p. 272) que em razão de a Lei
7.347/85 (LACP) permitir a assistência (art. 5º, § 2º), “a mesma colaboração pode formalizar-se
na tomada de compromisso extrajudicial”, o que somente corrobora a afirmação anterior-mente
feita no sentido de se permitir a participação de advogados quando da confecção do TAC. E, em
relação à legitimação do Ministério Público, menciona ainda o mesmo Fernando Grella Vieira
(2002, p. 272-3) duas limitações decorrentes de sua qualidade de legitimado, a primeira decorrente
do federalismo e a segunda da destinação institucional do próprio Ministério Público, veja-se:
Há duas limitações, entretanto, ao exercício dessa competência pelo Ministério Público: A primeira decorre do federalismo. Os Ministérios Públicos
estaduais têm a competência limitada à esfera da respectiva Unidade
Federada. Bem por isso a Lei 7.347/85, quando trata da legitimidade ativa,
expressa que será admitido o “litisconsórcio facultativo entre os Ministérios
Públicos da União, do Distrito Federal e dos Estados na defesa dos interesses e direitos de que cuida esta Lei”. Se os interesses ofendidos são de
âmbito regional, dizendo respeito a mais de um Estado, ou se são de âmbito
nacional, não pode determinado Ministério Público estadual, ainda que também interessado, com exclusividade, promover isoladamente a tutela. A segunda restrição prende-se à destinação institucional do Ministério Público,
definida na Constituição Federal, de órgão defensor de interesses sociais e
individuais indisponíveis, o que vale dizer que nem sempre os interesses
coletivos ou os chamados interesses individuais homogêneos poderão ser
tutelados pela Instituição, se deles não despontar a presença de interesse
público primário (art. 127, caput, c/c o art. 129, IX, da CF).
A defesa de interesses de grupos determinados de pessoas só pode ser feita
pelo Ministério Público quando restar evidenciado o interesse de toda a coletividade. É o que
ocorre, por exemplo, quando o Ministério Público ajuíza ação civil pública na defesa de alguns
idosos pleiteando vaga em determinado hospital público. E, com base em Hugo Nigro Mazzilli,
conclui Fernando Grella Vieira que, se não houver interesse da coletividade, a defesa dos interesses individuais deveria ser feita através da própria legitimação ordinária (que é, aliás, a regra no
direito processual civil brasileiro), devendo cada qual ajuizar ação autônoma, sob pena de ferir-se a
destinação institucional do Ministério Público. Ao apontar o outro aspecto limitador da atuação do
Ministério Público, prossegue o autor (2002, p. 273):
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De outro lado, sob o ponto de vista da natureza do interesse difuso, há
limitação material absoluta quanto à possibilidade de transação quando se
trata de patrimônio público e da moralidade administrativa, na forma da Lei
8.429, de 02.06.1992, que dispõe “sobre as sanções aplicáveis aos agentes
públicos nos casos de enriqueci-mento ilícito no exercício de mandato, cargo, emprego, função na Administração Pública direta, indireta e fundacional.
A última limitação apontada esclarece, assim, que os atos passíveis de serem
tipificados como atos de improbidade, nos termos da Lei 8.429/92 com penas que vão desde a
multa até a perda do cargo, mandato ou função, suspensão dos direitos políticos e proibição de
contratar com o Poder Público etc., são atos cuja punição constitui-se em atividade privativa da
jurisdição.
Todavia alguns autores chegam a sustentar a tese de que o ajustamento de
conduta deve ser aceito em casos envolvendo certos atos de improbidade administrativa. É o caso,
por exemplo, do agente político que se arrepende de ter auferido determinada vantagem ilícita e, de
livre e espontânea vontade, resolver devolver o numerário recebido aos cofres públicos. O entendimento, porém, é rechaçado por vários outros doutrinadores pátrios.
5.1 O Artigo 79-A da Lei 9.605/98
Por força da Medida Provisória nº 1.949-22, de 30.03.2000, foi inserido na Lei
9.605/98 o artigo 79-A, informando ser possível aos
órgãos ambientais integrantes do Sisnama, responsáveis pela execução de
programas e projetos e pelo controle e fiscalização dos estabelecimentos e
atividades suscetíveis de degradarem a qualidade ambiental, celebrar, com
força de titulo executivo extrajudicial, termo de compromisso com pessoas
físicas ou jurídicas responsáveis pela construção, instalação, ampliação e
funcionamento de estabeleci-mentos e atividades utilizadoras de recursos
ambientais, considerados efetiva ou potencialmente poluidoras.
Nesse particular, entende o Promotor de Justiça do Meio Ambiente em São
Paulo, Daniel Roberto Fink, tratar-se de nova modalidade de termo de ajustamento de conduta,
para o qual estão legitimados os órgãos integrantes do SISNAMA (Sistema Nacional do Meio
Ambiente – lei 6938/81). Sustenta o autor (FINK, 2002, p. 129): “Evidentemente estamos diante de
uma nova modalidade de termos de ajustamento de conduta, que, se é o mesmo na natureza
jurídica transacional, guarda muita dessemelhança em outros aspectos”.
Aliás, entende o referido doutrinador que a expressão “entidades” abriga as
entidades paraestatais (sociedades de economia mista, empresas públicas, fundações e autarquias),
desde que destinadas à execução de programas e projetos e ao controle e fiscalização dos estabelecimentos e atividades suscetíveis de degradarem a qualidade ambiental. Conclui, pois, o autor
(FINK, 2002, p. 130): “o dispositivo novo ampliou o rol de partes capaz de celebrar o ajustamento
de conduta em defesa do interesse público transindividual penal”.
Com a devida vênia, o dispositivo acrescentado à Lei nº 9605/98 apenas e tão
somente explicitou os entes que já possuíam legitimidade ativa para a celebração do ajustamento
de conduta, não tendo o condão de acrescentar novidade no que diz respeito à legitimidade ativa
para a celebração de um TAC.
6 PUBLICIDADE DO COMPROMISSO DE AJUSTAMENTO DE CONDUTA
Em relação à publicidade, posiciona-se Paulo Affonso Leme Machado (2005,
p. 364) no sentido de que o acordo deverá tornar-se público antes de ser assinado. Eis suas palavras: “um dos pilares fundamentais do Direito Ambiental é a informação ampla, veraz, rápida e
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institucionalizada. Havendo transparência, os interessados poderão trazer para os órgãos públicos
envolvidos outros subsídios ou a opinião de segmentos sociais diversos.” Na seqüência, prossegue
o autor:
não se conseguiu ainda a publicação prévia do termo de ajustamento de
conduta. Mas já se caminhou, de forma expressiva, para o acesso ao conteúdo do termo de ajustamento de conduta – TAC. A Lei 10.650, de 16.04.2003,
determina que a lavratura de termos de compromisso de ajustamento de
conduta seja publicada no Diário Oficial (art. 4º, IV). Não se trata de publicar
um resumo do termo, mas sua integralidade. A divergência de pontos de
vista não impedirá o acordo em primeira instância administrativa. A via do
recurso à instância administrativa – como o Conselho Superior do Ministério Público –, contudo, não ficará fechada aos discordantes.
Há, ainda, o posicionamento de Geisa de Assis Rodrigues (2006) que, em artigo
intitulado “A Participação da Sociedade Civil na Celebração do Termo de Ajustamento de Conduta”, afirma que a transparência revela a face democrática do ajuste, manifestando-se nos seguintes termos:
A publicidade é fundamental para garantir o controle de seus termos pela
sociedade e permitir que se averigúe se ele não representou nenhum tipo de
limitação ao direito protegido, bem como para garantir sua eficácia, porque
todos da sociedade podem contribuir na fiscalização do cumprimento das
cláusulas avençadas.
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Frise-se que não há previsão legal no sentido de se impor a obrigatoriedade de
instrumentos de participação para elaboração e celebração do ajuste. Porém, tal como se afirmou,
a observância da publicidade pode ser justificada ante a necessidade de se observar o Princípio
Democrático. Também de se salientar que a decisão definida acerca do ajuste será sempre do
órgão legitimado, vez que a norma não prevê qualquer espécie de submissão desta decisão à
deliberação – quando e se houver – da sociedade, até por uma questão de se evitar a possibilidade
de manipulação. Em síntese, pode-se dizer que o que se defende é a participação da sociedade civil
– à qual se dará publicidade – na elaboração do ajustamento, não se deixando de lado ainda a
participação de grupos cujos interesses coletivos estejam envolvidos no ajuste.
7 A (DES)NECESSIDADE DE SER O COMPROMISSO DE AJUSTAMENTO
HOMO-LOGADO PELO CONSELHO SUPERIOR DO MINISTÉRIO PÚBLICO
É controversa na doutrina a exigibilidade ou não de homologação do compromisso de ajustamento de conduta pelo Conselho Superior do Ministério Público. O que é de todo
recomendável, porém, é que o órgão que celebrou o ajuste fiscalize seu cumprimento, justamente
para que o teor do acordo seja efetivamente observado e cumprido. Nesse sentido, a lição de Édis
Milaré (2005, p. 904):
De qualquer forma, havendo ou não previsão na lei local quanto à necessidade de homologação do compromisso pelo Conselho superior, é recomendável, sempre, que o órgão que o celebrou fiscalize o seu efetivo cumprimento, para que não se protele, em nome do controle interno, a defesa do bem
jurídico de interesse coletivo.
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Aqui, não se deve olvidar as questões de ordem prática, ou seja, será que todos
os termos de ajustamento devem ser levados, necessariamente, ao conhecimento do Conselho
Superior do Ministério Público? Parece que não. Isto não quer dizer, porém, que aquele que celebrou o TAC não fique atento ao seu fiel cumprimento e faça cumprir, via tutela jurisdicional, as
determinações nele contidas. Assim, parece não haver a necessidade de ser o compromisso homologado, mas, em contrapartida, é imperioso que o órgão legitimado fique atento ao seu fiel cumprimento, sob pena de o ajuste perder suas próprias características e finalidades. Nesse sentido, a
lição de Luis Roberto Proença (2001, p. 130-1), para quem
Se não houver a previsão na respectiva Lei Orgânica do Ministério Público
da homologação do compromisso de ajustamento pelo Conselho Superior,
como condição de sua eficácia, então bastará a sua pactuação pelo órgão de
execução, para que tenha eficácia imediata, restando ao Conselho Superior
apreciar, em reexame, eventual ocorrência de ‘arquivamento implícito’.
No mesmo sentido, ensina Fernando Grella Vieira (2002, p. 284-5) que “o controle pelo Conselho Superior é dispensável, seja sob o enfoque de que o inquérito – por ter atingido
sua finalidade – reclamaria formal arquivamento, seja quanto à eficácia e à exeqüibilidade do
compromisso firmado”. O tema, todavia, pode ser objeto de regula-mentação pelas normas que
disciplinam a forma de atuação e as atribuições dos órgãos do Ministério Público. Assim, não é
indispensável que o compromisso seja remetido, sempre, ao Conselho Superior do Ministério Público, nada impedindo, porém, que haja determinação expressa nesse sentido, o que deverá constar
na Lei Orgânica do Ministério Público.
8 CONCLUSÕES
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Como se viu no primeiro tópico deste trabalho, o termo ou ajustamento de
conduta é um modo pelo qual é dada ao autor do dano a oportunidade de cumprir as obrigações
estabelecidas, comprometendo-se o ente legitimado, de sua parte, a não propor ação civil pública
ou a pôr-lhe fim, caso esta já esteja em andamento. Com isto, busca-se evitar processos extremamente custosos, desgastantes e morosos para ambas as partes, fazendo com que o autor do dano
pratique ou se abstenha de praticar o ato inquinado de lesivo, sempre com vistas a atender o bem
maior objeto do acordo. Assim, desde que cumprido o ajuste, terá o compromisso alcançado seu
objetivo, sem a necessidade de se movimentar toda a máquina judiciária. É, portanto, um meio
rápido e eficaz para a solução de problemas. E, na hipótese de não ser cumprido o TAC, poderá o
mesmo ser executado desde logo, eis que constitui título executivo extrajudicial, revelando-se desnecessária qualquer outra discussão em torno dos comportamentos que o instituíram.
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Hylea Maria Ferreira
A TUTELA ANTECIPADA EM SEDE DE JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS*
Hylea Maria Ferreira**
RESUMO
Análise do instituto da antecipação de tutela no ordenamento jurídico brasileiro com ênfase na sua
aplicabilidade, face aos juizados especiais cíveis – estaduais e federais – apresentando os requisitos essenciais para sua concessão e abordando as principais divergências doutrinárias a fim de
contribuir com uma possível solução para os conflitos da aplicação da lei especial.
Palavras-chave: Tutela Antecipada. Juizados Especiais Cíveis Federais. Juizados Especiais Cíveis
Estaduais.
THE ANTICIPATED GUARDIANSHIP IN HEADQUARTERS OF SPECIAL
COURTS CIVIL COURT JURISDICTION
ABSTRACT
Analysis about the institute of anticipated judicial protection in brazilian juridical order tiring its
aplicability face to the Small-Claim Civil Courts – statual and federal – introducing the essencial
requirements for its judicial concession and approaching the principal doutrinaries divergences in
order to contribute with a possible resolution for the existents disagreement of especial law’s
aplication.
Keywords: Anticipated Judicial Protection. Small-Claim Federal Civil Courts. Small-Claim State
Civil Courts.
1 INTRODUÇÃO
A evolução social aproximou as relações entre as pessoas. Conseqüentemente, de algumas dessas relações restaram litígios, os quais, não sendo resolvidos de modo pacífico,
levam os litigantes a invocar o Poder Judiciário. Com o número crescente dessas relações, tornouse crescente também o número das demandas judiciais, fator contribuinte para a morosidade processual. O reclamante, que visa ao reconhecimento de seu direito, resta prejudicado com a demora
do desenrolar dos procedimentos, enquanto para o reclamado, a lentidão torna-se cômoda.
Com o advento da Lei 8.952/94, surge a possibilidade da antecipação de tutela
nas diferentes sortes de processos, a exemplo de outros países que lograram sucesso com a adoção do instituto. O objetivo maior era não só o de atualizar o Código de Processo Civil vigente, mas
também de garantir maior efetividade à prestação jurisdicional. Assim, o novo instituto inserido no
Código de Processo Civil, em seu art. 273, deu legalidade à antecipação dos efeitos da sentença,
obedecendo aos requisitos (i) da existência de prova inequívoca, (ii) da verossimilhança das alegações, (iii) do fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação, (iv) do abuso de direito de
defesa ou do manifesto propósito protelatório do réu.
*O presente artigo é resultado de monografia de conclusão do curso de graduação em Direito, escrita sob a orientação do prof.
Ms. Henrique Afonso Pipolo.
**Bacharela em Direito pelo Centro Universitário Filadélfia – UniFil – e pós-graduanda em Filosofia Moderna e Contemporânea: Aspectos Éticos e Políticos pela Universidade Estadual de Londrina – UEL. E-mail: [email protected]
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A Tutela Antecipada em Sede de Juizados Especiais Cíveis
Com efeito, objetivando semelhante efetividade aos trâmites processuais, foi
promulgada a Lei 9.099/95 que rege os Juizados Especiais Cíveis e Criminais. Essa lei inovadora
traz em seu conteúdo a possibilidade das ações menos complexas e de menor valor serem processadas de uma maneira mais célere e informal, sem a necessidade do cumprimento das formalidades do rito ordinário.
Ao entender que grande parte das ações cíveis, ajuizadas atualmente, são justamente aquelas de caráter menos complexo e cujos valores discutidos não ultrapassam a alçada
legal, então, é de se entender também que, apesar de regidos por todos os princípios norteadores,
os Juizados Especiais Cíveis são passíveis da morosidade processual.
A Lei 9.099/95 silenciou a possibilidade da antecipação da tutela em sede de
Juizados Especiais. Ainda, quedou-se silente quanto à aplicação subsidiária do CPC quando aquela
for omissa. Assim, provoca-se a indagação quanto à possibilidade da antecipação da tutela junto
aos Juizados. A doutrina tem se mostrado positiva, bem como os juízes têm aplicado positivamente
a tutela antecipada nos Juizados Especiais.
Em 2001 foi promulgada a Lei 10.259 que dispõe sobre a instituição dos Juizados
Especiais Cíveis e Criminais no âmbito da Justiça Federal. A nova lei aproveitou as disposições da
Lei 9.099/95 e traz, no seu texto, as adequações do procedimento já existente ao âmbito da Justiça
Federal.
2 DOS REQUISITOS
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Para que seja admissível a concessão do tutela antecipada, a lei versou sobre
cinco requisitos que devem estar presentes na causa – (i) da existência de prova inequívoca, (ii) da
verossimilhança das alegações (iii) do fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação,
(iv) do abuso de direito de defesa ou (v) do manifesto propósito protelatório do réu. Não é necessário que todos estejam presentes para que seja possível a aplicação do instituto, mas como fundamento do pedido da tutela, devem estar expostos no processo, concorrentes entre si ou não.
Primeiramente, analisa-se a prova inequívoca, que pode ser entendida como o
resultado produzido por iniciativa do réu, que exprime condições claras e irrefutáveis, não sendo
possível admitir-se erro ou engano quanto à sua apreciação.
Carreira Alvim ensina que prova inequívoca será aquela que apresente alto
grau de convencimento, afastando de si qualquer dúvida razoável ou, em outros termos, cuja autenticidade ou veracidade seja provável (apud CARNEIRO, 2002, p. 21).
Importante salientar que a prova inequívoca tampouco se confunde com o fumus
boni iuris do processo cautelar. Na lição de Kazue Watanabe (apud CARNEIRO, 2002, p. 22),
o juízo fundado em prova inequívoca, em prova que convença bastante, que
não apresente dubiedade, é seguramente mais intenso que o juízo assentado
em simples ‘fumaça’, que somente permite a visualização de mera silhueta ou
contorno sombreado de um direito.
A rigor, deve-se entender que não existe prova perfeitamente inequívoca, no
aspecto de ser irrefragável, pois com o decorrer do processo a prova pode recair em dúvida, com
o advento de novas provas ou fatos que comprovem com mais severidade aspectos contrários à
prova anteriormente oferecida. Também, não há que falar da prova inequívoca sem associá-la à
verossimilhança dos fatos alegados, uma vez que as provas oferecidas têm por finalidade a demonstração da veracidade dos fatos apresentados. A verossimilhança consiste então na plausibilidade,
na perspectiva de que os fatos são possíveis ou reais, ainda quando descabidos de provas específicas (SANTORO, 2000, p. 11).
Trata-se este de um elemento subjetivo que complementa a prova apresentada
para convencer o magistrado da necessidade da concessão da tutela antecipada. O Juiz deve
analisar não somente se a prova é inequívoca, de onde não se resta dúvidas, mas deve considerar
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também se a prova tem nexo com as alegações e que estas sejam cabíveis e possam ser tomadas
como verdadeiras (SANTORO, 2000, p. 11). Assim sendo, pode-se dizer que o processo requer
uma verdade formal, que deve ser alcançada com a verossimilhança das alegações e a prova
inequívoca, ao passo que a verdade real é quase sempre inatingível, posto que um só fato pode
comportar várias interpretações.
Quanto ao terceiro requisito - o receio de dano irreparável ou de difícil reparação – tem-se que não se confundi-lo com a ameaça, propriamente dita. A primeira impressão que
se tem sobre o conceito de ameaça é que esta é ocasionada por ação do réu, que visa prejudicar o
ameaçado, através de coação física ou moral, direta ou indireta. Eis então por que aqui não se fala
em ameaça de dano, mas tão somente em receio, pois este pode vir a ser conseqüência de culpa do
réu, quando este age sem o animus (MIRABETE, 2000, p. 139-140)1 de provocar a situação, mas
acaba por dar ensejo à situação que, conseqüentemente, gera a insatisfação do autor. Mesmo que
o desprazer do autor seja ocasionado pela má-fé do réu, o receio é mais como um temor subjetivo
da parte, que advém de atos concretos que o colocam em situação de desconforto na iminência de
que lhe seja causado prejuízo (THEODORO JR., 2000, p. 415).
Cumpre ressaltar que o receio de dano experimentado pelo autor não parte
somente em face de ação ou omissão do requerido, mas também dos inconvenientes da demora
que toma o impulso processual, que, a seu turno, também poderia gerar danos que comprometam
substancialmente os direitos da parte autora.
Já o abuso do direito de defesa vislumbra-se quando o réu deduz pretensão
contra fato incontroverso ou opõe resistência infundada contra direito expresso e indubitável do
autor (SANTORO, 2000, p. 15), ou ainda, empregando meios ilícitos ou escusos para urdir situação
de defesa e protelar o deslinde da demanda, se beneficiando com a manutenção do status quo
(CARNEIRO, 2002, p. 33).
Aqui, o réu está mais próximo da postura de litigante de má-fé, assumindo
comportamento que corrobora com a sua intenção de retardar o pleito, evitando a solução do
conflito. Como dito anteriormente, enquanto este conflito gera irrefragável condição de desconforto ao autor, para o réu traz uma situação de extrema comodidade.
Este quarto requisito ainda apresenta um desdobramento – o abuso do direito
de recorrer – resultante da interposição de recursos com intuitos protelatórios. Mesmo que ao réu
seja garantido seu direito de recorrer da sentença, o recurso, por motivos legais, há de prosperar
ante à apresentação de fundamentos compatíveis com a causa, caso diverso do que se verifica na
grande parte dos recursos existentes, onde implicitamente, identifica-se seu objetivo protelatório.
Diante dessas possibilidades, a tutela antecipada também pode ser considerada
uma mantenedora da ética e dos bons costumes, posto que sana a má-fé do réu que pretende
retirar o impulso natural do processo, trazendo o autor mais próximo do seu direito (CARNEIRO,
2002, p. 34).
Há quem defenda a tese de que o manifesto propósito protelatório e o abuso de
defesa do réu são situações homônimas. Não obstante, entre ambos os requisitos paira uma tênue
diferenciação. O abuso de direito de defesa pode ser caracterizado pela resistência infundada que
se contrapõe ao direito do autor, ou pelo emprego de meios ilícitos ou dispensáveis para forjar
situação de defesa com o intuito de protelar a pretensão do autor (THEODORO JR., 2000, p. 414).
Já o manifesto propósito protelatório do réu abrange os atos do réu com maior amplitude. Não é
caracterizado pelo abuso, posto que o réu utiliza ao seu favor direitos previstos em lei.
O manifesto propósito protelatório do réu se caracteriza então pela utilização
de direito próprio com o objetivo de retardar o andamento processual, inclusive quando ciente de
que o ato por si praticado não é passível de reconhecimento, ante à jurisprudência, súmulas e texto
de leis existentes (ALVIM apud CARNEIRO, 2002, p. 35). Tem-se então uma conduta temerária,
que se exprime além da via processual, materializada pelos atos de direito que não atingem diretamente o processo.
1 Em sua obra Manual de Direito Penal, Mirabete, ao tratar das teorias sobre o dolo, traz uma análise crítica em relação à
concepção psicodinâmica, inspirada em Freud, que vem a definir o dolo como uma atitude interior de adesão aos próprios
impulsos intrapsíquicos anti-sociais, onde predomina a idéia do animus, que vem a ser, neste caso, a má-fé criminosa do
agente.
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A Tutela Antecipada em Sede de Juizados Especiais Cíveis
3 DA REVOGAÇÃO E MODIFICAÇÃO DA TUTELA ANTECIPADA
A tutela antecipada tem caráter provisório, conforme § 3º. do art. 273 do CPC.
Esse caráter é também evidenciando ante à possibilidade de revogação ou modificação do provimento antecipado a qualquer tempo, disposto no § 4º. do referido codex.
A sentença de mérito não está condicionada à decisão interlocutória que concedeu a antecipação da tutela, de modo que, após instrução, é permitido ao juiz outro convencimento, de forma que o pleito possa ser improcedente ou procedente somente em parte. (MARINONI,
1997, p. 158). Se improcedente, revogam-se os efeitos concedidos em sede de antecipação, restabelecendo o status quo ante, com a decorrente responsabilidade objetiva do autor pelos prejuízos
que a providência tenha eventualmente causado ao demandado. Caso a sentença seja parcialmente procedente, esta pode modificar a abrangência do provimento antecipado, seja diminuindo ou
aumentando os direitos antecipados ao autor.
4 OS JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS
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Além de estabelecerem toda uma estrutura principiológica singular, os Juizados
especiais também contemplam rito e procedimento diversos daqueles apresentados pelo CPC
(MARINONI; ARENHART, 2003, p. 714).
Houve quem discutisse que a lei dos Juizados, na verdade, estaria a criar um
novo órgão do Poder Judiciário, uma espécie de tribunal inferior, de forma que a Lei 9.099/95
deveria ser considerada inconstitucional. Todavia, não se observa qualquer criação, tampouco
mudanças na estrutura judiciária existente. O legislador apenas observou a necessidade de criação
de um novo órgão integrante da Justiça Ordinária, sem o vício de qualquer inconstitucionalidade
(ROCHA, 2002, p. 11-12).
Em 2001 foi promulgada a Lei 10.259, para regular a matéria no âmbito da
Justiça Federal, observando-se suas peculiaridades. A nova norma veio a complementar a Lei
9.099/95, sendo a este submetida, quando o objeto assim permitir.
Atualmente, entende-se que a Lei dos Juizados criou, em verdade, um
microsistema judiciário, adequado às causas cíveis de menor complexidade e com valores limitados, detentor de princípios e regras próprias, com a incumbência de ampliar o acesso à justiça e
descarregar os demais órgãos jurisdicionais.
5 OS JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS ESTADUAIS
O procedimento adotado nos Juizados é hialinamente diverso daquele adotado
pelo Código de Processo Civil, pois tem como escopo fundamental atender aos critérios informativos da Lei 9.099/95, bem como oferecer mecanismos adequados aos interesses pleiteados nestes
órgãos (MARINONI; ARENHART, 2003, p. 722-723).
A lei autoriza a comunicação dos atos através de qualquer meio idôneo de
comunicação, o que contribui com os princípios que regem os Juizados. As partes podem ser
intimadas de um despacho via fax, as testemunhas arroladas poderão ser notificadas através de um
telefonema, a citação pode ocorrer por carta registrada, mediante aviso de recebimento em mãos
próprias...
Quanto ao tempo, os Juizados possuem a prerrogativa do art. 12, que permite a
realização de atos processuais no período noturno, devidamente regulado pela organização judiciária competente de cada região. Quanto ao lugar, a prática dos atos prefere o foro do órgão, porém
nada impede que possam ser praticados além da sede dos Juizados, quando assim aprouver: vistorias de imóveis, colheita de depoimento das pessoas enumeradas no art. 144 do CPC.
Ainda, só são reduzidos a termo escrito os atos que se demonstrarem essenciais, afastando o formalismo que reveste o procedimento da Justiça Comum. Aliás, todo ato produzido nos autos, mesmo que revestido de vícios formais ou materiais, uma vez que atinja sua finali-
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dade no processo, sem causar prejuízo para nenhuma das partes, há de ser considerado um ato
válido e legítimo.
Inexistem, ainda, nos Juizados causas que tramitem em segredo de justiça, de
maneira que todo e qualquer ato processual é, por força de lei, um ato público, contrariamente ao
procedimento comum, onde muitas vezes, em razão da matéria, o segredo de justiça é essencial
para não submergir a efetividade da prestação jurisdicional.
As audiências também possuem procedimento especial, pois são presididas
pela pessoa do conciliador, quando da audiência preliminar de conciliação, e pelo juiz leigo, quando
da audiência de instrução e julgamento. Ainda que estes profissionais sejam assistidos a todo o
momento pelo magistrado togado, são considerados auxiliares da justiça e possuem a autonomia
necessária para efetividade dos atos aos quais foram designados.
A inexistência de cobrança do pagamento de custas, taxas e emolumentos, em
primeiro grau de jurisdição, também é prerrogativa dos Juizados. Em que pese no procedimento
comum as partes possam requerer o benefício da justiça gratuita, salvaguardado pela Lei 1060/50,
nos Juizados o benefício independe de requerimento, ou seja, ainda que a parte tenha condições de
arcar com as sucumbências, dela nada será cobrado, salvo as exceções legais, pela interposição de
recurso após a sentença de primeira instância transitada em julgado, ou ainda quando condenada
por litigância de má-fé (MARINONI; ARENHART, 2003, p. 723-724).
A representação técnica através de advogado também não é exigida em primeira instância, até o limite de vinte salários mínimos. Neste ponto a doutrina diverge quanto à
capacidade postulatória das partes, entendendo, de um lado, que a parte poderá atuar no processo
até a sentença final, enquanto outra corrente entende necessária a presença do causídico depois de
frustrada a audiência conciliatória, quando passaria o processo a exigir do demandante conhecimento técnico inerente do profissional advogado, sem o qual poderia restar a parte em prejuízo
irreparável.
6 OS JUIZADOS ESPECIAIS FEDERAIS
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Quase tudo que fora dito quanto aos Juizados Especiais Estaduais, também se
aplicara aos Juizados Especiais Federais. Porém impende destacar as características exclusivas
presentes no âmbito da Justiça Federal. Ao contrário do que se observa no procedimento comum
no âmbito da Justiça Federal, nos Juizados Federais a Fazenda Pública não conta com privilégios
processuais, como prazos estendidos, diante de seu caráter público (art. 9º).
Também, a Lei 10.259/01 outorgou ao autor o direito de eleger um representante legal judicial, ainda que não seja necessário (art. 10). Em parte, esta permissão pode ser justificada
por algumas situações costumeiras nas causas de matéria previdenciária. Primeiramente, é cediço
que uma subseção judiciária federal é responsável por vários municípios. É inequívoco concluir que
quase a totalidade das ações previdenciárias são pleiteadas por pessoas idosas ou inválidas, que
objetivam o benefício da aposentadoria, auxílios ou pensão. Unindo ambas as situações é fácil
perceber que uma ampla quantidade de requerentes teria dificuldades de se locomover até a sede
do juizado, o que contrariaria aquele fim de garantir o acesso à justiça, de modo que se faz legítimo
e eficaz a representação judicial de pessoa física que não possua a mesma investidura que a figura
do causídico. Ainda na esfera federal, pode-se observar a possibilidade de realização de perícia
técnica, quando o laudo pericial for essencial ao deslinde da causa.
Talvez o ponto mais importante que possa ser inserido singelamente neste ponto do artigo é o permissivo do art. 8º, § 2º, que prevê a possibilidade de recebimento de petições e
realização de demais atos processuais através da via eletrônica. Esta regra deu origem ao E-proc2 ,
já utilizado em todos os Juizados da 4ª região, com resultados bastante agradáveis.
2 O E-proc é o Sistema de Processo Eletrônico dos Juizados Especiais Federais da 4º Região. Sua utilização tem trazido
resultados excelentes, principalmente por diminuir custos, facilitar o acesso aos autos para ambas as partes e ensejar maior
celeridade nas ações abrangidas pelos juizados. Atualmente está sendo desenvolvido um projeto em Brasília, sob o gestão de
seu criador, Giscard Stephanou, que visa a implantação do E-proc em todos os JEFs do Brasil. Existem nas outras regiões da
Justiça Federal processos eletrônicos com funcionamento semelhante ao E-proc, mas nenhum alcançou o mesmo nível de
eficiência.
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A Tutela Antecipada em Sede de Juizados Especiais Cíveis
Todas as pessoas envolvidas no processo demandado nos Juizados Federais –
advogados, servidores da justiça federal, funcionários e procuradores das autarquias, fundações e
empresas públicas federais – são habilitados no E-proc através da assinatura de um termo de
compromisso e recebem um senha pessoal e intransferível, que deverá ser utilizada para o acompanhamento do processo judicial.
Conhecido também como juizado virtual, o procedimento do E-proc vem se
demonstrando uma verdadeira “mão-na-roda” na garantia do acesso à justiça e no cumprimento
dos preceitos fundamentais dos Juizados. O processo se torna mais célere, e, conseqüentemente,
mais eficaz, diminui as despesas do cartório, pois quase extingue a utilização do papel3 e ainda
facilita a vida dos procuradores que atuam perante o órgão, que podem acompanhar os atos simultaneamente, sem ter que se deslocarem de seus escritórios e gabinetes até a sede da Justiça
Federal.
Nos Juizados Federais, o cumprimento pecuniário da sentença não dependerá
de expedição de precatórios. Os pagamentos poderão ser feitos através de Requisição de Pagamento de Valor – RPV, no prazo máximo de sessenta dias, a contar da requisição feita pelo juiz, por
ofício, sendo que este também poderá seqüestrar numerário das contas dos entes públicos, nos
casos de descumprimento (BOCHENEK. 2004. p. 172).
Por fim, destaca-se o texto do art. 4º da Lei 10.259/01 que, ainda hoje, suscita
grande polêmica acerca da hipótese de apreciação de medidas cautelares em sede de Juizados,
porém, tratar-se-á do tema com mais afinco, a seguir.
6.1 O art. 4º da Lei 10259/01
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Prescreve o dispositivo: “Art. 4o. O Juiz poderá, de ofício ou a requerimento
das partes, deferir medidas cautelares no curso do processo, para evitar dano de difícil reparação”.
Resta entender: qual foi a verdadeira pretensão do legislador ao dispor sobre medidas cautelares,
inclusive quando é sabido que o projeto original da lei 10.259 continha a expressão “medidas urgentes” no texto do art. 4º?
As tutelas cautelares não se confundem com a tutela antecipatória. Apresentam requisitos distintos e cada qual busca objetivos diversos.
A dificuldade, porém, se encontra-se em diferenciar medida cautelar de tutela
cautelar e processo cautelar. Marília Lourido dos Santos, citando Humberto Theodoro Junior
(1998)nensina que a tutela cautelar se realiza através do processo cautelar, e constitui uma nova
face da jurisdição, um tertium genus que contém a um só tempo as funções do processo de
conhecimento e de execução, e tem por elemento específico a prevenção. Já a medida cautelar é
mais ampla, tem a finalidade de prevenção ou precaução de outro direito, a ser invocado posteriormente.
Seja qual for a nomenclatura, é certo que a doutrina é pacífica ao pronunciar
que, em sendo cautelar, via de regra, será acessória e se sujeitará a um processo principal. Porém,
em se tratando de Juizados, a face de seus princípios, dentre eles o da informalidade e da celeridade,
“não há necessidade de autuação própria do pedido cautelar, podendo ele ser formulado por simples petição” (BOLLMAN, 2004, p. 36).
Portanto, não há que se confundir a tutela cautelar com a tutela antecipatória.
A primeira é prevista na lei especial e pelos fundamentos dela deve ser procedida, e não pelos
preceitos da norma geral do CPC, que certamente exigiria a formalidade da autuação apartada da
ação principal. Outrossim, não se deve generalizar o termo “medidas cautelares” e inserir a tutela
antecipada como sua espécie. Esta também será possível nos Juizados, como a frente se verá, mas
não pelos fundamentos no art. 4º, e sim pelos defendidos motivos da possibilidade da aplicação
subsidiária do CPC em sede do órgão especial.
3 Informações no site do Tribunal Regional da 4ª Região dão conta que já foram distribuídos aproximadamente 140 mil
processos virtuais, o que significa uma economia de cerca de R$ 2.800.000,00 com papel e outros insumos de cartório.
Disponível em: <www.trf4.gov.br/trf4/upload/arquivos/emagis_prog_cursos/jef_eproc.ppt>. Acessado em: set. 2006
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7 A APLICABILIDADE SUBSIDIÁRIA DO CPC NOS JUIZADOS ESPECIAIS
CÍVEIS
É legítima a aplicação do CPC às lacunas da Lei 9099/95, por meio de analogia,
observando a não contrariedade com a norma específica. Neste sentido, defende Misael Montenegro
Filho (2005, p. 68):
A Lei Maior garantiu o direito de ação, abrindo as portas do judiciário para
que as pessoas que se sentem lesadas apresentem ações formais perante o
representante do poder em análise, impondo a formação de um processo.
Porém, evidente que o direito de ação não se limita a assegurar o acesso ao
representante do Poder Judiciário. No momento em que o processo é formado, o Estado se torna devedor de uma resposta jurisdicional, não necessariamente de mérito, segundo a teoria eclética desenvolvida por Liebman, exigindo-se do autor que preencha as condições da ação (...). Percebendo que
a lei especial prega a celeridade do processo (...) não nos parece lógico negar
a antecipação da tutela no âmbito dos órgãos especiais, já que o seu deferimento estará sempre apoiado no princípio em estudo.
A presente situação elucida a necessidade de se estudar e praticar os métodos
hermenêuticos na interpretação da lei. A análise exclusiva da letra fria da lei, tão somente quanto à
sua sintática, não expressa a mens legislatoris, tendo em vista que, em se aplicando somente este
método restritivo de interpretação, não seria possível buscar solução para os casos que a lei deixou
de prescrever.
Hans Kelsen já ensinava, em sua obra Teoria Pura do Direito, que o direito é
um sistema que é, em si mesmo, bastante, pois as normas que o compõem contém em si a possibilidade de solucionar todos os conflitos levados à apreciação dos magistrados ou órgãos jurisdicionais
competentes.
Leciona o jurisfilósofo (1998, p. 273):
(...) uma ordem jurídica pode sempre ser aplicada por um tribunal a um caso
concreto, mesmo na hipótese dessa norma jurídica, no entender do Tribunal,
não conter qualquer norma geral através da qual a conduta do demandante
ou acusado seja regulada de modo positivo. (...) quando não houver a norma
jurídica singular, que expresse qual postura deverá ser adotada no caso
concreto, sempre será possível a aplicação da ordem jurídica, o que é, também, a aplicação do direito.
Norberto Bobbio (1999, p. 114-116), por sua vez, aperfeiçoou esse raciocínio e
discorreu sobre a Completude do Ordenamento Jurídico: não existe caso que não possa ser regulado por uma norma extraída do sistema, excluindo-se a possibilidade de haver lacunas, ou seja,
falta de normas que regulem os fatos.
Desta sorte, é imprescindível que se admita a hipótese de aplicação secundária
do CPC ante aos Juizados Especiais Cíveis – Estaduais ou Federais - pois o que se pretende é
alcançar a justiça e não impor obstáculos à sua perpetuação, diante da omissão equivocada do
legislador.
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8 CABIMENTO DA TUTELA ANTECIPADA EM SEDE DE JUIZADOS ESPECIAIS
CÍVEIS ESTADUAIS
O motivo que talvez possa justificar mais adequadamente a antecipação dos
efeitos da sentença nos Juizados é a dinâmica do princípio da celeridade. Esse princípio relacionase intrinsecamente com a tutela antecipada nos Juizados, como pressuposto fundamental. Ora, se
os Juizados são competentes para processar determinada ação, mister também ousar dizer que ao
juízo cumpre tomar todas as providências devidas para o cumprimento da função jurisdicional.
Outrossim, a regra do art. 273 do CPC pode ser muito bem aplicada, com
resultados satisfatórios ao que se pretende, pois não apresenta conflitos com a lei especial. Senão,
veja-se a decisão:
EMENTA: MANDADO DE SEGURANÇA - ANTECIPAÇÃO DA TUTELA POSSIBILIDADE NOS JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS - DECISÃO QUE NÃO
SE REVELA TERATOLÓGICA - DENEGAÇÃO DA ORDEM. A antecipação
da tutela é cabível nos Juizados Especiais Cíveis, tratando-se de medida que
se coaduna perfeitamente com os modernos princípios de celeridade da prestação jurisdicional com justa distribuição do ônus da demora processual
entre as partes. São cabíveis a tutela acautelatória e a antecipatória em sede
dos Juizados Especiais Cíveis, em caráter incidental. (II Encontro Nacional
dos Coordenadores de Juizados Especiais, Cuiabá, dezembro de 1997) É
compatível com o rito estabelecido pela Lei nº 9.099/95 a tutela antecipatória
a que alude o art. 273 do Código de Processo Civil. (Enunciado nº 06, do 1o
EMJERJ) Decisão que, em antecipação de tutela determinou o bloqueio da
transferência de veículo perante o Detran em razão de garantia da satisfação
de obrigação pelo Impetrante, é medida acautelatória facultada ao Juízo, que
não se revela teratológica. Denegada a ordem. (TJPR. 2006.0003477-7. Rel.
Jose Sebastião Fagundes Cunha. 28/07/2006).
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Seja sob qual posicionamento for, importa é que é hialino o entendimento de que
a tutela não só é cabível nos Juizados Especiais Cíveis, como também se demonstra necessária,
com o escopo de atingir a finalidade da prestação jurisdicional, ainda que no contexto das pequenas
causas.
9 CABIMENTO DA TUTELA ANTECIPADA EM SEDE DE JUIZADOS ESPECIAIS
CÍVEIS FEDERAIS
Ao tratar da tutela antecipada no âmbito dos Juizados Especiais Federais não
se deve concluir que ela encontra-se prevista na lei, diante do exposto no art. 4º da Lei 10.259/01
(ver item 6.1). Aquele dispositivo trata das medidas cautelares e não da medida satisfativa que se
perfaz na tutela antecipada. Esta é igualmente possível de ser concedida na sede do órgão especial,
porém, pelos seus próprios fundamentos.
Vilian Bollmann (2004, p. 38) defende que a tutela é possível nos Juizados pelos
motivos da possibilidade da aplicação supletiva do Código de Processo Civil face à lei especial,
assim como ante ao princípio da celeridade e da efetividade da jurisdição, pois condiz com o “espírito” dos Juizados Especiais. Assim, inexiste incompatibilidade entre os Juizados Especiais Federais e a tutela antecipada, pois “ambos constituem mecanismos de salvaguarda da efetividade do
direito material, seja pela adoção de procedimento mais célere, seja pela produção, em tempo
presente dos efeitos de uma futura sentença”.
Observe também a decisão proferida pela Turma Recursal do Estado da Bahia:
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PROCESSUAL CIVIL. RECURSO CONTRA DECISAO. FORNECIMENTO
GRATUITO DE MEDICAÇÕES A PACIENTE PORTADOR DE HTLV-I. LEGITIMIDADE PASSIVA DA UNIÃO. LITISCONSÓRCIO PASSIVO NECESSÁRIO COM O ESTADO E MUNICÍPIO. INCOMPETÊNCIA DO JUIZADO
ESPECIAL FEDERAL. NÃO CONFIGURAÇÃO. ANTECIPAÇÃO DE TUTELA NOS JUIZADOS ESPECIAIS. POSSIBILIDADE. REQUISITOS
AUTORIZADORES DA ANTECIPAÇÃO DE TUTELA CONCEDIDA PRESENTES. RECURSO DESPROVIDO. 1. Inexiste ilegitimidade passiva da União
para o fornecimento de medicamento, pois a Constituição Federal e a Lei nº
8.080, de 19.09.90, que dispõe sobre o Sistema Único de Saúde, estabelece a
responsabilidade solidária da União, Estados, Distrito Federal e Municípios
de prover as condições indispensáveis ao pleno exercício do direito à saúde.
2. Considerando-se a obrigação concorrente da União, Estado e Município
de prover a atenção à saúde, nada obsta que a decisão antecipatória da
tutela se volte apenas contra a União, se os outros entes políticos não
dispõem da medicação pleiteada. 3. Não ocorrendo nenhuma das situações
de exclusão legalmente previstas, não há que se falar em incompetência do
Juizado Especial Federal. 4. Cabível a antecipação dos efeitos da tutela nos
Juizados Especiais Federais como medida de urgência prevista no art. 273,
inciso I, do CPC, efetuando-se uma interpretação não literal do art. 4º da Lei
nº 10.259/2001, conforme exige o art. 5º, da Lei de Introdução ao Código
Civil, como também considerando a aplicação supletiva do Código de Processo Civil. 5. Comprovada a existência nos autos de prova inequívoca da
doença da Recorrida (Paraparesia Espástica Tropical, causada pelo vírus
HTLV-I), bem como o fundado receio de dano irreparável à saúde, sem o
fornecimento do medicamento necessário, deve ser mantida a decisão que
antecipou os efeitos da tutela. 6. Recurso desprovido (Turma Recursal dos
Juizados Especiais Federais da Seção Judiciária do Estado da Bahia. Recurso Inominado. 2004.33.00.762691-0. Rel. Rosana Noya Weibel Kaufmann. 16/
12/2005) (grifo nosso).
O subsistema dos Juizados Federais possui, ainda, uma característica peculiar:
a de tratar de causas de natureza alimentar ou salarial, quando das ações de direito previdenciário.
Portanto, a antecipação dos efeitos do mérito se faz mais que necessária, pois
o direito em questão pode estar a retirar do requerente verbas de caráter alimentar, ou seja, essenciais à própria subsistência.
Nesse sentido se manifestou também J. E. Carreira Alvim (2005):
A antecipação da tutela, como se vê, é realmente necessária (...) nas causas
previdenciárias, em que o INSS, muitas vezes, suspende, manu militari,
benefícios previdenciários regularmente concedidos ao segurado, sob mera
suspeita de fraude. Certa vez, reformei uma decisão de um juiz de primeiro
grau, dando efeito ativo a um agravo de instrumento, num caso em que fora
cancelado o benefício previdenciário, e esse juiz denegara a tutela antecipada porque não vira “fumus boni juris” e o “periculum in mora”, a darem
suporte ao provimento antecipatório, como se o beneficiário não tivesse o
direito de alimentar-se até que se resolvesse o mérito da causa.
Com relação à sua concessão ex oficio, adota-se o entendimento de que é
possível e necessário. Negar que a antecipação da tutela possa ocorrer de ofício por ato do juiz é
negar, do mesmo modo, as garantias que à lei outorga ao requerente, leigo, de propor ação sem a
representação judicial. Ora, não se pode exigir que a parte autora possua conhecimento técnico
para apontar ao remédio legal do seu litígio, tampouco prosperará a idéia de que o magistrado não
possa vir a reconhecer este remédio pelo seu próprio impulso (SANTOS, 2005).
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A Tutela Antecipada em Sede de Juizados Especiais Cíveis
10 A TUTELA ANTECIPADA NO ÂMBITO RECURSAL DOS JUIZADOS
ESPECIAIS CÍVEIS
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Conforme preceitua a regra do art. 43 da Lei 9099/95, os recursos serão recebidos apenas do efeito devolutivo, sendo outorgado ao juiz a possibilidade de utilizar-se do efeito
suspensivo somente para evitar o dano irreparável para a parte. Assim sendo, a lei dos Juizados
preceitua a regra de que sempre será possível a execução provisória da sentença, salvo aqueles
casos em que, mesmo em caráter provisório, a execução possa vir a acarretar prejuízos para a
parte executada.
A tutela antecipada poderá ser concedida no âmbito recursal, face aos juizados
especiais cíveis, nos casos em que, sendo julgada improcedente a ação em primeiro grau, o requerente continue a apresentar os requisitos exigidos pelo art. 273 do CPC, não apreciados às vistas do
julgador da primeira instância. Portanto, uma vez observados presentes os requisitos autorizadores
da concessão da tutela antecipada, poderá ser concedida no âmbito recursal, respeitando os limites
da execução provisória.
William Santos Ferreira (2000, p. 244) aduz suas justificativas para a admissão
da tutela antecipada no âmbito recursal. Entre tais fundamentos, ensina que, no âmbito recursal, o
processo é dotado de mais elementos, portanto, é mais maduro, o que traz maior segurança na
verificação dos requisitos do art. 273 do CPC.
Em consonância, cumpre ressaltar que, no procedimento comum, uma vez recebido o recurso somente no efeito suspensivo, contra esta decisão caberá o agravo de instrumento, requerendo o efeito ativo da tutela antecipatória. Porém, tratando a lei dos juizados de um
procedimento especial, um subsistema judiciário, não é possível a interposição de agravo de instrumento, posto que a Lei 9099/95, nos arts. 41 e 42, versou sobre os recursos passíveis na sede do
órgão especial, excluindo-se a referida modalidade.
Para dirimir tal questão, a Turma Recursal Única do Paraná já se consolidou a
respeito:
MANDADO DE SEGURANÇA. RECURSO INOMINADO PARAA TURMA
RECURSAL. JUÍZO DEADMISSIBILIDADE. INVIABILIDADE DE SER EXERCIDO PELO ÓRGÃO A QUO. É cabível, excepcionalmente, a impetração de
Mandado de Segurança para a Turma Recursal quando o ato judicial atacado
subtraiu da sua competência o exame do recurso inominado previsto na Lei
9.099/95 contra a sentença. Não é lícito ao Juízo a quo exercer o juízo de
admissibilidade recursal nos Juizados Especiais Cíveis. Esse controle de
admissibilidade recursal somente poderá ser exercido pelo Juízo a quo nas
hipóteses de recursos manifestamente incabíveis e em processos com certidão do trânsito em julgado da sentença que se pretende revisar. SEGURANÇA
CONCEDIDA. (TJDF, Classe do Processo: DIVERSOS NO JUIZADO ESPECIAL ; Registro do Acórdão Número: 105833. Órgão Julgador: Turma Recursal
dos Juizados Especiais; Rel. Angelo Canducci Passareli. DJ: 15/06/1998) .
Portanto, não sendo possível a interposição de agravo de instrumento, a sua
ferramenta mais próxima será o mandado de segurança, pois se trata da garantia constitucional aos
atos ilegais praticados pela autoridade pública. Outra questão pertinente é quanto à competência
para julgar o mandado de segurança interpelado em face da decisão do magistrado atuante nos
Juizados Especiais.
Com o intuito de pacificar o entendimento, o STJ proferiu a seguinte decisão:
JUIZADOS ESPECIAIS. MANDADO DE SEGURANÇA CONTRAATO DE
AUTORIDADE DE PRIMEIRO GRAU. Competência do órgão que, em segundo, se constitui em instancia revisora de seus atos. decisão por unanimidade, negar provimento ao recurso ordinário. (STJ, Órgão Julgador - TER-
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CEIRA TURMA Relator Ministro EDUARDO RIBEIRO ROMS 6710/SC; (96/
0005778-8) Data da Decisão 08/10/1996 Fonte DJ DATA: 25/11/1996 PG: 46201).
Assim, não obstante as diversas polêmicas que permeiam a questão dos recursos contra decisões interlocutórias nos Juizados, o direito existente não poderá deixar de ser apreciado por falta da previsão legal, de forma que, ainda que não seja o instrumento totalmente adequado, o mandado de segurança é a ferramenta que tem a possibilidade de garantir o direito de
recurso.
11 CONCLUSÃO
A tutela antecipada foi inserida no ordenamento brasileiro ante à necessidade
de um instrumento adequado para suprir os casos práticos que demonstravam a necessidade de um
reconhecimento mais amplo e concreto do que aqueles possíveis mediante às ações cautelares,
utilizadas erroneamente nestes casos, antes da vinda a lume deste badalado instituto.
Com o seu reconhecimento, o ordenamento jurídico brasileiro viu-se diante da
satisfação proporcionada por um remédio há muito necessitado, utilizado perante a comprovação
hábil de seus requisitos autorizadores. Não obstante, com o surgimento da Lei 9.099/95, originou-se
também um novo procedimento. A nova lei criara os Juizados Especiais Cíveis e Criminais, um
microsistema que se apresentou para aprimorar a garantia do direito de ação e da satisfação da
função jurisdicional.
Os Juizados Especiais se mostraram como uma ferramenta jurisdicional acessível a toda a população, antes limitada pela simplicidade de suas demandas ou pelas burocracias e
formalidades jurisdicionais. Em que pese seu amplo acesso, a morosidade também se revelou
nestes órgãos.
A Lei 9099/95 omitiu-se quanto à aplicação subsidiária do CPC. Uma explicação plausível para tanto é a de que existiria certa contrariedade entre a previsão supletiva do CPC,
face aos objetivos pretendidos com a criação do órgão especial. Prever a necessidade da aplicação
do CPC antes mesmo das instalações dos Juizados, seria considerar o sistema especial falido,
antes mesmo do início de suas atividades. Os Juizados nasceram como um órgão autônomo, porém, a estrutura jurisdicional apresentada não fora suficiente para conter os anseios sociais.
Defende-se a tese de que é possível a aplicação da tutela antecipada em sede
dos Juizados Especiais Cíveis – Estaduais ou Federais – porquanto o instituto apresentado pela
norma geral não conflita com a lei especial. Pelo contrário, contribui com a eficácia da celeridade
motivadora daqueles órgãos, aproximando a parte do seu direito material.
Também, defende-se a tese da possibilidade da aplicação da antecipação dos
provimentos do mérito ex officio pela pessoa do magistrado. Como dito, os Juizados são norteados
pelo seu próprio sistema principiológico, dentro os quais o da informalidade, que, inclusive, veio a
permitir que as partes possam pleitear ação judicial desacompanhadas de advogado. Assim, permitiu a lei, em outras palavras, que aquele que não detenha conhecimento técnico jurídico possa atuar
em causa própria, destarte, sem que isso lhe cause conseqüências aquém dos seus direitos.
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O Princípio Constitucional da Publicidade e Propaganda do Governo
O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA PUBLICIDADE E PROPAGANDA DO
GOVERNO
Marcos Antônio Striquer Soares*
RESUMO
Analisa a dimensão constitucional do princípio da publicidade, como publicidade obrigatória e necessidade de publicação ou comunicação, como publicidade obrigatória sem necessidade de publicação ou comunicação, havendo aí a possibilidade de publicidade resumida. Constata-se a possibilidade da proibição de publicidade, bem como a publicidade desnecessária ou impossível. Por fim,
analisa o art. 37, § 1º da Constituição onde é encontrada a publicidade autorizada ou propaganda
dos órgãos públicos.
Palavras-chave: Princípio da Publicidade. Propaganda. Princípio Republicano. Princípio Democrático.
THE CONSTITUTIONAL PRINCIPLE OF THE ADVERTISING AND
PROPAGANDA OF THE GOVERNMENT
ABSTRACT
64
It analyzes the constitutional dimension of the principle of the advertising, as obligator advertising
and publication necessity or communication, as obligator advertising without publication necessity
or communication, having there the possibility of summarized advertising. It is evidenced possibility
of the prohibition of advertising, as well as the unnecessary or impossible advertising. Finally, it
analyzes art. 37, § 1º of the Constitution where the advertising authorized or propaganda of the
public agencies is found.
Keywords: Principle of the Advertising. Propaganda. Republican Principle. Democratic Principle.
1 PUBLICIDADE DOS ÓRGÃOS PÚBLICOS: A PUBLICIDADE COMO ATO DE
DIVULGAR, DE TORNAR PÚBLICO
Por estranho que pareça às gerações mais novas, a publicidade referente a
bens e interesses públicos, no Brasil, somente nos últimos anos, vem ganhando a importância
exigida pelo princípio republicano. Antes da Constituição de 1988, embora a publicidade fosse
exigida, ela não tinha a dimensão atual.
Conferir a este princípio expressão constitucional, como ocorre no sistema
jurídico brasileiro, tem explicação histórica. A marcha dos fatos da história
nacional deixou marcas de uma administração privada praticada no Estado
com os recursos do povo e, pior ainda, com a esperança do povo em que o
* Mestre e doutor em Direito do Estado/Direito Constitucional pela PUC/SP; professor de Direito Constitucional na UniFil;
professor de Direito Constitucional na graduação, na especialização e no mestrado em Direito Negocial da UEL.
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Marcos Antônio Striquer Soares
quanto praticado era feito para atendimento de suas necessidades mais primárias. (...) Por isso, a falta de limites bem definidos ou bem respeitados entre
o público e o privado, no desempenho estatal das atividades administrativas, justifica a inclusão expressa da publicidade como princípio constitucional da Administração (ROCHA, 1994, p. 239).
A partir da década de 50, acentuando-se nos anos setenta, surge o empenho
em alterar a tradição de ‘secreto’ predominante na atividade administrativa.
A prevalência do ‘secreto’ na atividade administrativa mostra-se contrária
ao caráter democrático do Estado. A Constituição de 1988 alinha-se a essa
tendência de publicidade ampla a reger as atividades da Administração, invertendo a regra do segredo e do oculto que predominava. O princípio da
publicidade vigora para todos os setores e todos os âmbitos da atividade
administrativa (MEDAUAR, 2004, p. 149-150).
Na pesquisa bibliográfica, realizada para este trabalho, foram encontradas poucas linhas sobre o tema em textos mais antigos, vindo a figurar com mais freqüência em textos
posteriores a 1988.
A origem da palavra “publicidade” é encontrada no Dicionário de Comunicação de Carlos Alberto Rabaça e Gustavo Barbosa (1998, p. 481), com sentido jurídico, e designa, a
princípio, o “ato de divulgar, de tornar público”, vindo a adquirir, no século 19, também um significado comercial: qualquer forma de divulgação de produtos ou serviços, através de responsabilidade
de um anunciante identificado. Portanto, na origem, a expressão tem um sentido jurídico e significa
ato de divulgar, de tornar público. Somente depois é que veio a adquirir o sentido comercial utilizado
como sinônimo de propaganda.
O significado original do termo, registrado com sentido jurídico, permanece até
hoje no campo da Ciência do Direito. Quando se fala em “publicidade”, nesta seara do conhecimento, esta-se referindo ao “ato de divulgar, de tornar público”. Este fato é de fundamental importância para este estudo, pois quando a lei impõe ao administrador público o dever de publicar algo,
não lhe impõe o dever de fazer propaganda, mas, simplesmente, de divulgar algo.
A publicidade, no âmbito dos órgãos públicos, é exigência expressa da Constituição brasileira, em diversos dispositivos. Contudo, conforme já se pode detectar pelos textos
acima citados, o termo tem mais de um significado. No caput do art. 37, ela aparece como “princípio”. No art. 84, IV, onde se encontra a competência do presidente da República para “fazer
publicar as leis”, a publicidade é exigida como condição de aperfeiçoamento da lei produzida pelo
Estado. Já no art. 93, IX, o qual determina que “todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos”, excetuado o interesse público, a publicidade não tem nenhuma das características anteriores: não é um princípio e, embora seja necessária para não haver nulidade do julgado,
não é o tipo de publicidade – ao menos no sentido exposto no dispositivo – que exija publicação
(uma das formas de publicidade). O §1º, do art. 37, traz outro tipo de publicidade, muito diferente
das examinadas, trata-se de propaganda dos órgãos públicos. “Publicidade” na Constituição de
1988 é, portanto, conceito polissêmico, ou seja, a expressão é utilizada, conforme explicação de
Canotilho e Vital Moreira, em sentidos diversos no texto constitucional, cabendo ao intérprete
precisar a “intenção” (sentido) com que esses conceitos são utilizados nos vários preceitos da
Constituição. “Perante cada utilização de um conceito polissêmico haverá que analisar cuidadosamente qual o sentido que lhe cabe nessa circunstância” (CANOTILHO e MOREIRA, 1984, p.
48). Deve-se, portanto, examinar as possibilidades de significado do termo “publicidade”.
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O Princípio Constitucional da Publicidade e Propaganda do Governo
2 PUBLICIDADE OBRIGATÓRIA: A PUBLICIDADE COMO PRINCÍPIO
CONSTITUCIONAL E COMO REGRA CONSTITUCIONAL
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A Constituição brasileira, conforme visto, traz a exigência de publicidade em
diversos dispositivos constitucionais. Em cada um deles, contudo, podem-se encontrar características de princípios ou de regras. Esta bipartição das características da norma jurídica vem sendo
afirmada em Direito Constitucional: princípios e regras têm sido apresentados como espécies de
norma,1 é a posição aceita por grande parte da doutrina atualizada, encontrada nos estudos mais
recentes sobre o assunto. Paulo Bonavides (202, p. 228-266) traz o desenvolvimento das idéias que
culminaram nessa teoria (princípios e regras como espécies de normas). Conforme apresente
características de “princípio” ou de “regra”, a exigência de publicidade terá efeito diferente no
mundo jurídico.
O “princípio constitucional” é a norma jurídica caracterizada como base do
sistema jurídico, dotada de um alto grau de abstração, contém pouca densidade semântica e maior
conteúdo axiológico, dependente da ação do intérprete para sua aplicação, e tem como função
expressar valores do povo e do Estado2 , dar unidade e harmonia ao sistema jurídico e orientar a
interpretação da Constituição. Para se entender a publicidade dos órgãos públicos, deve-se destacar que o princípio é norma jurídica e, como tal, produz efeitos jurídicos, obrigando a todos; tem alto
grau de abstração e pouca densidade semântica, o que indica vários significados e várias possibilidades de interpretação e aplicação, exigindo a intermediação do intérprete, o qual utiliza a lei, a
sentença, o ato administrativo, o contrato e, até mesmo, o costume para dar vida ao princípio
constitucional.
As regras constitucionais são normas jurídicas de maior densidade semântica e
de aplicação direta, sem necessidade de qualquer intermediação entre ela e o fato disciplinado, já
que são dotadas de conteúdo axiológico, a ser determinado pelo intérprete.
De um modo geral, tratar de publicidade, no âmbito de órgãos e funções públicas, é falar de publicidade obrigatória. Em princípio, tudo o que diga respeito aos órgãos públicos e
suas respectivas funções deverá ter publicidade, transparência. Duas exceções podem ser apresentadas: a publicidade proibida por determinação da Constituição e a publicidade desnecessária,
das quais se tratará adiante. Interessa, neste instante, esclarecer as exigências de publicidade, ou
melhor, os casos de “publicidade obrigatória”.
As exigências de publicidade obrigatória devem ser divididas em duas possibilidades: publicidade “com divulgação obrigatória” e publicidade “sem divulgação obrigatória”. Ainda que a doutrina trate o assunto de um modo genérico, percebe-se que, em alguns casos, o Poder
Público não tem obrigação de proceder à publicação ou comunicação de dados retidos em seus
departamentos; outras vezes, pelo contrário, o aperfeiçoamento do dado retido nos órgãos públicos
depende de veiculação dele aos interessados.
1 Canotilho explica: “Salienta-se, na moderna constitucionalística, que à riqueza de formas da constituição corresponde a
multifuncionalidade das normas constitucionais. Ao mesmo tempo, aponta-se para a necessidade dogmática de uma clarificação tipológica da estrutura normativa. [...]. A teoria da metodologia jurídica tradicional distinguia entre normas e
princípios (Norm-Prinzip, Principles-rules, Norm und Grundsatz).” O autor abandona esta distinção, preferindo outra: “(1)
– as regras e princípios são duas espécies de normas; (2) – a distinção entre regras e princípios é uma distinção entre duas
espécies de normas” (Direito constitucional, 6ª ed., Coimbra, Almedina, 1993, p.154-166).
2 Explicando a titularidade da soberania, Miguel Reale escreve: “A soberania é substancialmente da Nação e só juridicamente
é do Estado, o que quer dizer que, socialmente (mais quanto à fonte do poder), a soberania é da Nação, mas juridicamente
(mais quanto ao exercício do poder) a soberania é do Estado” (Teoria do Direito e do Estado, 5ª ed., São Paulo, Saraiva,
2000, p. 157).
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2.1 A publicidade como princípio constitucional e a desnecessidade de publicação ou
comunicação
A publicidade como princípio contém a exigência genérica de publicidade (dar
a público, veicular, informar, prestar contas). Tudo o que se refere ao Estado exige publicidade e a
ausência desta é exceção encontrada na própria Constituição. A publicidade, como princípio constitucional, serve de orientação para todo e qualquer comportamento do Estado. “Comportamento”
aqui tem um conteúdo importante, pois significa tudo que o Estado, ou parte dele, faz que envolva
ação ou reação.3 Envolve o conjunto de atitudes e reações dos órgãos públicos, do Estado em face
do meio social.4 “Comportamento”, aqui, envolve inclusive a omissão, já que a omissão, no Direito,
pode caracterizar-se como falta de ação ou uma reação indevida diante de uma imposição de lei. A
doutrina tem utilizado os termos “atividade e atos da administração ou atos estatais”, entre outros,
para expressar esse conjunto de ações e reações dos órgãos públicos. Sem descartar estes, prefere-se aquele termo, por ser mais abrangente.
Da Constituição brasileira podem ser extraídos os seguintes princípios referentes à publicidade: da “publicidade” (art. 37, caput – afeto à função administrativa); da “publicidade
e motivação das decisões judiciais e administrativas” (art. 93, IX e X – afetos ao Poder Judiciário
e às funções jurisdicional e administrativa); do “direito à informação” (art. 5º, XXXIII, pelo qual
todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de
interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade,
ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado – é
importante ressaltar que tal direito não se restringe à informação somente de interesse do indivíduo,
mas também de interesse coletivo ou geral); e da “publicidade dos atos processuais” (art. 5º, LX,
pelo qual a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade
ou o interesse social o exigirem).
A publicidade como princípio não impõe a divulgação pelo Diário Oficial ou
outro meio qualquer de publicidade5 , de tudo o que diga respeito ao Estado a todo e qualquer
indivíduo. Exige, sim, a disponibilidade das informações, a possibilidade de acesso às informações
a todo e qualquer cidadão. Quando surge uma lei impondo a publicidade de certo comportamento
do Estado, de contrato, por exemplo, nasce a regra jurídica.
Tratando do processo administrativo, Sérgio Ferraz e Adilson Abreu Dallari
(2001, p. 84) asseveram: salvo as ressalvas estabelecidas e as decorrentes de razões de ordem
lógica, o processo administrativo deve ser público, acessível ao público – ao público em geral e não
apenas às partes diretamente envolvidas. Salvo determinação regular de tramitação sigilosa, nada
pode impedir a vista de autos ou mesmo a obtenção de certidões.
3 No Dicionário Houaiss encontra-se: “2. tudo que um organismo, ou parte dele, faz que envolva ação e resposta à estimulação
[...]. 3. reação de um indivíduo, de um grupo ou de uma espécie ao complexo de fatores que compõe o seu meio ambiente
[...].” (Antônio Houaiss; Mauro de Salles Villar, Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, Rio de Janeiro, Objetiva, 2001,
p. 777).
4 No Dicionário Aurélio encontra-se: “conjunto de atitudes e reações do indivíduo em face do meio social” (Aurélio Buarque
de Holanda Ferreira, Novo dicionário da língua portuguesa, p. 441).
5 Geraldo Ataliba esclarece: “Publicar um ato é fazê-lo público. A publicação mais solene que há está em mandá-lo para o Diário
Oficial. Entretanto, não seria possível, nem necessário, que todos os atos administrativos fossem publicados. Muitos
despachos – por circunstâncias que se ligam aos processos em que se produzem, esfera de interessados, ou outras razões –
embora sejam públicos, não vão para o DO. Entretanto, públicos que são, por definição, consideram-se publicados no
instante que são praticados.” Na página seguinte, completa o autor: “como todo ato administrativo é público (do conhecimento do povo, por definição) não se requer saia no Diário Oficial. Publicado ele já foi desde que prolatado. [...] O que dá
eficácia ao ato é sua prolação e inserção num processo administrativo. Não a publicação no DO. Isto só se requer para atos
normativos ou atos externos” (Eficácia de ato administrativo – publicação, Revista de Direito Público, São Paulo, v. 25, n.
99, jul./set. 1991, p. 19 e 20).
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Muitas das atividades dos órgãos públicos, portanto, não são publicadas ou
comunicadas à sociedade ou aos cidadãos e isto não fere o princípio da publicidade. Pelo contrário,
o princípio dá à Administração Pública a orientação de transparência, o que vale dizer disponibilidade dos dados ali retidos à sociedade. No entanto, não impõe a divulgação de tudo o que ocorre no
interior dos órgãos públicos. Esses dados, que não são de publicação obrigatória, mas ficam disponíveis à consulta da sociedade, dependem da solicitação de interessado, cabendo ao Estado prestálos nesse instante. O agente público é obrigado a prestar a informação solicitada conforme os
dados constantes do órgão público, sem omissão alguma, sob pena de ser responsabilizado criminalmente6 , além da punição administrativa cabível.
A possibilidade da legislação infraconstitucional exigir expressamente a publicação ou comunicação de determinados atos (por exemplo, as regras sobre citação e intimação
contidas no Código de Processo Civil) nasce dessa exigência genérica de publicidade dos comportamentos dos órgãos públicos, ou, precisamente, do princípio da publicidade. O legislador ordinário
pode, portanto, criar as regras jurídicas referentes à publicidade com base no princípio da publicidade contido na Constituição. Se o princípio da publicidade traz a obrigação genérica de disponibilização
de dados, de transparência dos órgãos públicos, a criação de regra cobrando publicação ou comunicação será legítima.
Enquanto princípio constitucional, a publicidade tem o conteúdo desta espécie
de norma jurídica, anteriormente referida como norma jurídica, caracterizada como base do sistema jurídico, dotado de um alto grau de abstração, com pouca densidade semântica e maior conteúdo axiológico, e dependente da ação do intérprete para sua aplicação, tendo como função expressar valores do povo e do Estado, dar unidade e harmonia ao sistema jurídico e orientar a interpretação da Constituição.
Além disso, o conceito de princípio dado por Celso Antônio Bandeira de Mello
é bastante significativo para a compreensão da publicidade como tal: princípio
[...] é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce
dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e
inteligência exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema
normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico (2001, p.
771-772).
68
Assim, a publicidade como princípio constitucional não impõe a publicação e a
comunicação de todo e qualquer ato dos órgãos públicos, mas exige que estes o tenham como
orientação de todo e qualquer comportamento, pois, como princípio, a exigência de publicidade é
núcleo do sistema jurídico, a partir do qual surgirão todos os demais comportamentos dos órgãos
públicos. Não é a exigência de publicação de um ato tal ou qual, mas a disponibilidade das informações, a possibilidade de acesso às informações às quais todo e qualquer cidadão tem direito.
São relevantes, ainda, as explicações de Lucia Valle Figueiredo (2004, p. 62):
“decisões secretas, editais ocultos, mesmo a publicidade restrita ao mínimo exigido por lei (e conhecida de pouquíssimos), não atendem, de forma alguma, aos princípios constitucionais e, sobretudo, à transparência da Administração”. Depois de tudo o que foi dito sobre princípios constitucionais, devemos concordar com a autora, visto que estes argumentos são importantes para orientar
o aplicador da lei. Significa que o intérprete deve privilegiar sempre a publicidade. Como princípio
constitucional, a publicidade tem essa marca indelével.
6 O artigo 299 do Código Penal dispõe: Omitir, em documento público ou particular, declaração que dele devia constar, ou nele
inserir ou fazer inserir declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita, com o fim de prejudicar direito, criar obrigação ou
alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante: Pena – reclusão, de um a cinco anos, e multa, se o documento é público,
e reclusão, de um a três anos, e multa, se o documento é particular. Parágrafo único. Se o agente é funcionário público, e
comete o crime prevalecendo-se do cargo, ou se a falsificação ou alteração é de assento de registro civil, aumenta-se a pena
de sexta parte.
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2.2 A publicidade como regra constitucional e a necessidade de publicação ou
comunicação
A publicidade terá caráter de “regra jurídica” sempre que houver exigência de
publicação ou comunicação do comportamento do órgão público. Isto é, decorre de imposição
encontrada em norma jurídica. Esta pode trazer a exigência de publicação ou comunicação7 (formas de publicidade) ou pode falar, também, em publicidade, genericamente, mas impondo a divulgação dessa determinada manifestação do órgão público de modo específico, por exemplo, com
divulgação no Diário Oficial.
A Constituição, em algumas passagens, apresenta regras exigindo publicidade.
Podemos classificar como regra constitucional o art. 5º, XXXIV, letra b (que autoriza o “direito de
obtenção de certidões em repartições públicas”), o art. 84, IV (impõe ao presidente da República
o dever de “fazer publicar as leis”) e o art. 8º, da lei complementar nº95/98 (que contém a exigência
de publicação das leis). Em outros casos, a exigência de publicação ou comunicação (a regra de
publicidade) vem fixada em legislação sem status constitucional (nos Códigos de Processo Civil e
de Processo Penal, por exemplo). Nestes casos, a regra tem fundamento no princípio da publicidade, com origem constitucional.
Note-se que a publicidade como regra jurídica, obrigatória em razão de imposição de norma jurídica, deve cumprir o mínimo do que for determinado na norma. Contudo, para
respeitar ao princípio da publicidade, para atender à exigência de transparência implícita no princípio, a publicidade advinda de imposição de regra deve ser o mais amplo possível, podendo os
termos estritos da determinação da lei ser insuficiente. O princípio da publicidade exige que a
interpretação amplie o máximo possível as possibilidades de divulgação dos comportamentos do
Estado. Assim, a interpretação da regra jurídica que impõe determinada publicidade deve ser ampliada no sentido de dar maior efeito a essa regra.
2.3 Publicidade resumida
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A publicidade dos atos dos órgãos do Estado pode ser resumida. Isto tem sido
encontrado em lei (lei 8.666/93, com a redação dada pela lei 8.883/94 – arts. 21 e 61, § 1º) e,
inclusive, na Constituição de São Paulo8 . Contudo, tal possibilidade não abrange todos os comportamentos do Estado: “as leis, códigos e outros atos normativos (regulamentos, instruções, regimentos) devem ser publicados integralmente”(GASPARINI, 2001, 119).
O enorme número de editais de concursos e licitações a serem publicados
determina que se divulgue, nos meios oficiais, apenas resumos daqueles
eventos, definindo-se, sempre, onde e quando se poderão obter todos os
dados que interessam ao público e que, portanto, têm que ser a ele acessíveis. Não se rompe, por aqui, o princípio da publicidade por meio de publicações em meios oficiais. Apenas não se pode exigir que os custos com aquelas divulgações completas dos atos onerem os cofres públicos (ROCHA,
1994, p. 246).
7 Celso Antônio Bandeira de Mello explica que publicação e comunicação são formas de publicidade (Ato administrativo e
direito dos administrados, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1981, p. 47). No mesmo livro, p. 52, o autor apresenta três
modalidades de comunicação: a citação, a notificação e a intimação.
8 Constituição do Estado de São Paulo, art. 112: As leis e atos administrativos externos deverão ser publicados no órgão
oficial do Estado, para que produzam os seus efeitos regulares. A publicidade dos atos não normativos poderá ser
resumida.
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A publicidade resumida não fere o princípio da publicidade (tampouco os princípios republicano e democrático). Ela serve para evitar gastos excessivos, desde que tenha como
conteúdo básico – a publicação oficial – o mínimo de informações necessárias para que o povo
saiba do que se trata, o local onde o documento pode ser encontrado na íntegra e, ainda, estar, a
íntegra do documento, disponível ao cidadão para consulta (respeitando-se a imposição do “direito
à informação”, art. 5º, XXXIII da Constituição, pelo qual todos têm direito a receber dos órgãos
públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado).
Examinando os contratos, Bernardo de Souza (1999, p. 66) explica:
[...] só razões práticas e relevantes de economia fizeram com que não se
exigisse a publicação dos contratos, em sua íntegra, na imprensa oficial. Esta
homenagem à economia pública, entretanto, não pode redundar em franquia
ao segredo, em desatenção ao princípio constitucional da publicidade, nem
em violação do direito fundamental de acesso à informação.
70
Leon Frejda Szklarowsky, num estudo sobre as diversas peculiaridades que
envolvem a publicidade dos contratos administrativos, esclarece que a lei de licitação mandou
publicar todos os contratos, exceto aqueles cuja licitação foi dispensada: “quer a lei que se publiquem todos os contratos ou seus aditamentos, qualquer que seja o valor ainda que desonerados;
entretanto avisa que há uma ressalva, que não pode ser preterida” (1996, p. 97) – da licitação
dispensada9 . Demócrito Ramos Reinaldo (1998) adverte, porém, que constitui prática inconstitucional
a publicação, nos órgãos oficiais, de decisões administrativas de tal modo resumidas que impeçam
ao povo, em geral, e ao Ministério Público, em particular, cientificar-se de seu conteúdo. “Publicar
uma “decisão” ou um ato administrativo sem um mínimo de justificação que possibilite a compreensão [...] equivale a não publicar”.
Conforme já salientado por Lucia Valle Figueiredo (2004, p. 62): “mesmo a
publicidade restrita ao mínimo exigido por lei”, não atende, de forma alguma, à transparência da
Administração. O respeito às exigências de publicidade prescritas em lei responde ao princípio
republicano e ao princípio democrático e impõe uma interpretação que dê maior eficácia a estes
princípios. Significa que o intérprete deve privilegiar sempre a publicidade, especialmente quando
houver dúvida na aplicação da “regra” jurídica.
3 PUBLICIDADE PROIBIDA
Conforme se viu, a publicidade nas diversas atividades do Estado brasileiro,
desempenhada por seus mais diversos órgãos, é exigência expressa da Constituição. Este é o
princípio, esta é a orientação fundamental, é a orientação geral que atinge todas as situações e
todas as pessoas. Contudo, “situações existem nas quais a prévia divulgação das ações a serem
empreendidas pode torná-las inúteis” (FERRAZ e DALLARI, 2001, p. 83) ou a divulgação de
informação pode comprometer direito do responsável por ela ou de terceiros. A Constituição abre,
assim, exceções a essa orientação geral, permitindo o sigilo.
9 Maria Garcia assevera: “A publicidade é elemento da essência do processo licitatório: se a lei busca preservar o atendimento
ao princípio da isonomia no acesso dos interessados à realização das obras, serviços e todas as modalidades ad negotia dos
particulares com a Administração Pública e, por outro lado, garantir a seleção ou escolha da proposta mais vanjajosa ao
interesse público – a publicidade dos atos desse processo demonstra-se de fundamental importância.” Depois de analisar o
princípio da publicidade, a autora passa a coteja-lo com as diversas passagens da lei de licitação onde consta exigência de
publicidade (Censura e comunicação social, Revista de Direito Constitucional e Internacional, São Paulo, n.34, jan./mar.
2001, p. 10 e seguintes). Hely Lopes Meirelles é rigoroso, quando trata da publicidade da licitação: “Não há, nem pode
haver, licitação sigilosa. Se seu objeto exigir sigilo em prol da segurança nacional, será contratado com dispensa da licitação.
Nunca, porém, haverá licitação secreta, porque é da sua natureza a divulgação de todos os seus atos e a possibilidade de
conhecimento de todas as propostas abertas e de seu julgamento” (Licitação e contrato administrativo, 11ª ed., São Paulo,
Malheiros, 1997, p. 27).
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Registram-se os seguintes dispositivos do art. 5º da Constituição Federal que
impõem restrições à publicidade – trata-se de regras constitucionais: o inciso XXXIII, na parte
final, autoriza o sigilo, como exceção à exigência de publicidade, para os casos em que “seja
imprescindível à segurança da sociedade e do Estado”; o inciso LX trata da publicidade dos atos
processuais, autoriza restrições à publicidade “quando a defesa da intimidade ou o interesse social
o exigirem”; o inciso XIV, pelo qual é assegurado a todos o acesso à informação, resguarda o
“sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional”; o inciso XXXVIII, letra b, reconhece a instituição do júri e assegura “o sigilo das votações”. O art. 93, IX, na parte final também
autoriza o sigilo no Judiciário como exceção: “podendo a lei, se o interesse público o exigir, limitar
a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes”.
Ainda pode ser incluído neste rol o art. 53, § 6º, pelo qual os “deputados e senadores não serão
obrigados a testemunhar sobre informações recebidas ou prestadas em razão do exercício do
mandato, nem sobre as pessoas que lhes confiaram ou deles receberam informações”.
Para Carlos Ari Sundfeld (2003, p. 179) o
sigilo, a autorizar a denegação da informação ou da certidão, só se justifica
em duas situações, de caráter excepcional: quando for imprescindível à segurança da sociedade e do Estado (ex.: sigilo com relação aos planos militares, em tempo de guerra) ou quando a publicidade violar a intimidade de
algum particular (ex.: sigilo, em relação a terceiros, dos dados clínicos de
pacientes internados em hospital público). Afora esses casos, quem solicita
informação ao Estado tem o direito de obtê-la, o que é mera decorrência da
cidadania.
De qualquer modo, o cidadão tem direito de receber informações do Estado10 ,
ou por meio do Diário Oficial, ou nos balcões dos órgãos públicos, quando solicitada. A negação de
publicidade somente pode ser aceita quando fundamentada na própria Constituição.
As leis infraconstitucionais podem apresentar proibição de publicidade11 , desde que estejam adequadas às exceções previstas na Lei Maior. Tratando das exceções feitas à
publicidade, Geraldo Ataliba explica que o princípio republicano não permite, nem tolera a existência de ato administrativo secreto: “as ressalvas que o art. 5º da Constituição faz são as mais estritas
e, como exceção, devem merecer interpretação restritiva” (1991, p. 18-19). Enfim, todo e qualquer
dispositivo infraconstitucional que excepciona a exigência de publicidade somente pode ser aceito
se e na medida em que estiver adequado às exceções permitidas pela própria Constituição12 .
10 Ainda cabem outras passagens da literatura jurídica para corroborar essa lição: Embora voltado para o campo processual, o
texto de Antonio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco diz claramente: “Mas o
sigilo só pode ser temporário, enquanto estritamente necessário, não podendo sacrificar o contraditório, ainda que diferido”
(Teoria geral do processo, 20ª ed., São Paulo, Malheiros, 2004, p. 70). Segundo Maria Sylvia Zanella Di Pietro, “pode
ocorrer que, em certas circunstâncias, o interesse público esteja em conflito com o direito à intimidade, hipótese em que
aquele deve prevalecer em detrimento deste, pela aplicação do princípio da supremacia do interesse público sobre o
individual” (Direito administrativo, 17ª ed., São Paulo, Atlas, 2004, p. 75).
11 Citamos a seguir, apenas como exemplo, alguns dispositivos infraconstitucionais que apresentam exceções à exigência geral
de publicidade: Art. 198 do Código Tributário – sigilo de informações com vistas ao melhor desempenho da arrecadação
fazendária; Art. 155 do Código de Processo Civil – segredo de justiça; Art. 20 do Código de Processo Penal – sigilo no
inquérito policial; Art. 792, § 1º do Código de Processo Penal – restrição a publicidade de audiência, sessão ou ato processual;
Art. 8º da lei 9.296, de 24-07-96 – referente a interceptação telefônica.
12 Tratando da publicidade do contrato administrativo, Hely Lopes Meirelles explica: “a publicação do contrato é formalidade exigida pelas normas administrativas, como consectário da natureza pública dos atos da Administração, salvo os que
forem previamente considerados sigilosos por razões de segurança nacional. Esclareça-se desde logo que os contratos
resultantes de licitação não podem ser sigilosos, porquê, se o fossem, seriam firmados com dispensa de licitação. Mas a
licitação e o contrato podem ter anexos classificados como sigilosos em qualquer grau, casos em que esses documentos só
serão entregues aos licitantes e contratados mediante compromisso de manutenção de sigilo” (Licitação e contrato administrativo, p. 178).
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4 PUBLICIDADE DESNECESSÁRIA
Conquanto a publicidade seja regra indispensável, a partir dos princípios republicano e do Estado democrático de direito, é possível aceitar alguns casos em que não seja necessária, por ser impossível ou absolutamente irrelevante. Para Celso Ribeiro Bastos (1992, p. 45), a
publicidade, caracterizada como divulgação das decisões administrativas, não é exigida quando as
decisões administrativas têm interesse exclusivamente interno.
Explica Celso Antônio Bandeira de Mello (1981, p. 43)13 que, apesar de normalmente a formalização do ato administrativo ser escrita, “pode haver atos administrativos revelados de outra forma: verbal ou mímica. Ocorrerá quando a índole dos atos (ordens para assuntos
rotineiros, gestos de um guarda de trânsito) reclame estas formas de expressão. Referem-se normalmente a atos que requerem execução imediata”
Régis Fernandes de Oliveira (1980, p. 33-34) traz passagem esclarecedora:
Costuma a doutrina falar em atos não produtores de efeitos jurídicos (por
exemplo, convites, comunicações etc.). Tais atos, efetivamente, não podem
ser tidos como administrativos, uma vez que não produzem qualquer efeito
jurídico. Mas, se a lei lhe atribui qualquer relevância (efeito) será tido como
ato administrativo. Por exemplo, um parecer, ainda que facultativa sua adoção,
quando previsto, é requisito de legitimidade de procedimento, sempre que
sua audiência seja obrigatória. [...] Não há, pois, necessidade que o ato
interfira em esfera jurídica de terceiro. Mesmo os atos internos são tidos
como administrativos, uma vez que produzem efeitos jurídicos. Assim, as
ordens dadas de superior a inferior hierárquico constituem-se atos administrativos. [..] O ato pode, pois, ser introverso ou extroverso, alcançando o
simples âmbito interno da administração ou repercutindo na esfera jurídica
de terceiros. Necessário, no entanto, para ser qualificado como ato administrativo que o sistema normativo lhe atribua alguma relevância.
72
Assim, não terão, portanto, publicidade, atos não-escritos (ordens verbais, sinais ou gestos) quando não realizados em público; trata-se de publicidade impossível. Alguns comunicados internos (com alcance no âmbito interno da administração), não-caracterizados como
atos administrativos (e não-incorporados a um processo administrativo), serão, alguns deles, absolutamente irrelevantes fora dos órgãos públicos, mas terão importância tão somente para a tramitação
interna das decisões da administração.
Também será desnecessária a publicidade quando o indivíduo, antes da publicação ou comunicação, praticar o ato exigido. É o que ocorre, por exemplo, quando a parte se
manifesta no processo depois da juntada da sentença, mas antes ainda de sua publicação – desde
que não haja direitos indisponíveis em jogo. Em circunstâncias como esta, o gasto público será
desnecessário.
13 Celso Antônio Bandeira de Mello também faz referência a atos administrativos produzidos por sinais (como, por exemplo,
o sinal de trânsito) e cartazes convencionais (como por exemplo, os indicadores de mão e contramão), mas não têm
interesse direto pelo nosso trabalho, no que diz respeito à publicidade desnecessária, por isto não há que citá-los no corpo
do texto.
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5 PUBLICIDADE AUTORIZADA: PROPAGANDA DOS ÓRGÃOS PÚBLICOS
A última espécie de publicidade que ainda precisa ser exposta é a publicidade
dos órgãos públicos, prevista no § 1º, do art. 37 da Constituição. Ali se encontra um tipo totalmente
diferente de publicidade. Não se trata de princípio da publicidade, uma vez que este está inserido no
caput do mesmo art. 37. É uma regra constitucional, mas não impõe ao Estado a publicidade de
tais atos, como condição de seu aperfeiçoamento, ou seja, mesmo que a Administração não torne
públicas aquelas obras que está realizando, referidas no § 1º, do art. 37, elas existirão e tomarão o
devido espaço no mundo real e também poderão gerar conseqüências no mundo jurídico, obviamente. É regra jurídica que não impõe uma publicidade, mas “autoriza” a publicidade dos atos,
programas, obras, serviços e campanhas dos órgãos públicos.
O dispositivo constitucional em questão não impõe a publicação ou comunicação (formas de publicidade) de todos os atos, programas, obras, serviços e campanhas, porque isto
seria inviável economicamente. Por outro lado, esse dispositivo também não obriga a Administração a deixar as informações disponíveis para quem as procure nos balcões dos órgãos públicos,
pois esta idéia provém do princípio da publicidade que já consta do caput e não está sendo repetida
no § 1º. Consta ali uma permissão para a Administração veicular informações referentes a seus
atos, programas, obras, serviços e campanhas sempre que entender necessário levá-las a público,
não para divulgar simplesmente, mas cumprindo objetivos específicos.
Os objetivos dessa publicidade indicam a necessidade de interação dos órgãos
públicos com a sociedade, em vista de um ponto específico, uma obra, por exemplo. O objetivo
pode ser educar, informar ou orientar a sociedade. A interação, nesse caso, não é mera transmissão de dados, mas pressupõe a necessidade da comunicação de um interesse do governo, isto é,
para o bom andamento dos serviços públicos surge a necessidade da sociedade receber tais informações, caso contrário não será preciso levá-las a público. Essa necessidade de interação indica
que a publicidade em questão não é mera divulgação de dados, mas tem por fim incutir na mente
das pessoas tais dados seja para educar, seja para informar ou ainda para orientar a sociedade.
Nessa condição, pode-se denominá-la de propaganda dos órgãos públicos, posto que ela tem sempre, no fundo, ao menos uma intenção persuasiva.
O § 1º, do art. 37 da Constituição também contém uma regra constitucional.
Ele possibilita a “publicidade dos atos, programas, obras, serviços e campanhas dos órgãos públicos
os quais deverão ter caráter educativo, informativo ou de orientação social”. O dispositivo em
questão determina comportamento específico, não é dotado de alto grau de abstração e exige ação
determinada, ou seja, a divulgação de atos, programas, obras, serviços e campanhas dos órgãos
públicos deverá perseguir uma dentre três finalidades possíveis: educar, informar e/ou propor orientações sociais.
Tanto o objeto da publicidade como os objetivos propostos não possuem alto
grau de abstração, pelo contrário, são verbetes com conteúdo específico e com significado aferível
por interpretação literal. É regra jurídica, portanto, com grau de abstração reduzido e aplicação
direta,14 tem “observância imediata, não necessitando para sua aplicação de qualquer regulamentação” (GASPARINI, 2001, p. 129) (tem conteúdo semântico suficiente para incidir diretamente
sobre a realidade social). Esta convicção também é encontrada na jurisprudência15 .
14 A regra jurídica inscrita no § 1º, do art. 37 da Constituição é norma jurídica de eficácia plena, nos termos da classificação da
aplicabilidade das normas constitucionais proposta por José Afonso da Silva: “são de eficácia plena as normas constitucionais
que: a) contenham vedações ou proibições; b) confiram isenções, imunidades e prerrogativas; c) não designem órgãos ou
autoridades especiais, a que incumbam especificamente sua execução; d) não indiquem processos especiais de sua execução;
e) não exijam a elaboração de novas normas legislativas que lhes completem o alcance e o sentido, ou lhes fixem o conteúdo,
porque já se apresentem suficientemente explícitas na definição dos interesses nelas regulados”. Em seguida, o autor
completa: estabelecem conduta jurídica positiva ou negativa com comando certo e definido, incrustando-se, predominantemente, entre as regras organizativas e limitativas dos poderes estatais, e podem conceituar-se como sendo aquelas que,
desde a entrada em vigor da constituição, produzem, ou têm possibilidade de produzir, todos os efeitos essenciais,
relativamente aos interesses, comportamentos e situações, que o legislador constituinte, direta e normativamente, quis
regular (Aplicabilidade das normas constitucionais, 6ª ed., São Paulo, Malheiros, 2003, p. 101.
15 “AÇÃO POPULAR – Propaganda e publicidade oficial de município – Artigo 37, § 1º, da Constituição da República –
Aplicação – Norma de eficácia plena – Desnecessidade de regulamentação – Recurso não provido” – 17ª Câm. Civ. do
Tribunal de Justiça de São Palulo, JTJ/SP, LEX, v. 166, mar. 1995, p. 9.
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O Princípio Constitucional da Publicidade e Propaganda do Governo
O § 1º do art. 37 da Constituição também é exemplo de regra jurídica bastante
carregada de conteúdo axiológico. Ao indicar a publicidade como meio de divulgação de atos,
programas, obras, serviços e campanhas, e ao estabelecer certos objetivos a serem atingidos (educação, informação ou orientação social), essa regra transmite valores protegidos pela sociedade,
os quais devem ser protegidos pela via judicial, quando não observados. A publicidade, no caso,
enquanto instrumento de condução dos interesses do Estado, é meio para busca de certos objetivos
de governo – objetivos do povo, também, portanto - quais sejam: a educação, a informação ou a
orientação social, todos surgidos das decisões de governo que afetam diretamente o povo.
Por outro lado, Eros Roberto Grau (1997, p. 92) explica que é impossível imaginar, de antemão, todas as circunstâncias possíveis de aplicação de uma regra, por isso é que elas
são enunciadas em linguagem de textura aberta, configurando, mercê da abstração e generalidade
que as caracterizam, um esquema formal potencialmente idôneo a compreender um número indefinido de casos, sob a única condição de que tais casos sejam redutíveis a tal esquema. Não se
pode esquecer, então, que as normas são, por definição, genéricas e abstratas. Princípios e regras
seguem essa linha, sendo possível afirmar, no entanto, que aqueles possuem grau de abstração
muito elevado e pouca densidade semântica, ao passo que estas têm menor grau de abstração e
maior densidade semântica. Especialmente quanto à regra do § 1º, do art. 37, em questão, a situação não é diferente, ela tem textura aberta para incidir sobre um número indefinido de pessoas e
abranger inúmeras circunstâncias reais, ela incide imediatamente sobre o fato concreto. Somente
se podem aceitar dois tipos de atos intermediários entre tal dispositivo e sua realização no mundo
dos fatos: o ato administrativo e/ou uma decisão judicial (quando da correção de ato administrativo
irregular).
6 SÍNTESE DAS ESPÉCIES DE PUBLICIDADE
74
Depois de tudo o que foi estudado sobre a publicidade, no âmbito dos órgãos
públicos, é possível concluir dizendo que, por vezes, encontra-se na Constituição brasileira a exigência de publicidade como princípio, por vezes como regra. De qualquer modo, quando se fala em
publicidade dos órgãos públicos deve-se enquadrá-la em uma das seguintes possibilidades:
1- Como “publicidade obrigatória” (esta espécie contém duas subespécies: a
“publicidade obrigatória com necessidade de publicação ou comunicação”, ou seja, com divulgação
pelo órgão oficial de imprensa ou por comunicação direta ao interessado – é regra jurídica; e
“publicidade obrigatória sem necessidade de publicação ou comunicação”; isto ocorre sempre que
a informação ficar à disposição do povo nos órgãos públicos – é princípio constitucional. Quando
obrigados a divulgar seus atos, os órgãos públicos poderão fazer “publicidade resumida”);
2- Como “publicidade proibida” – decorre de disposição expressa da Constituição, sendo regra constitucional;
3- Como “publicidade desnecessária ou impossível”;
4- Como “publicidade autorizada”, qualificada como propaganda dos órgãos
públicos ou propaganda governamental – também é regra constitucional.
REFERÊNCIAS
ATALIBA, Geraldo. Eficácia de ato administrativo – publicidade. Revista de Direito Público,
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Mary Silvea Santana Vieira
O PRINCÍPIO DO NÃO-CONFISCO NO DIREITO TRIBUTÁRIO*
Mary Silvea Santana Vieira**
RESUMO
O presente artigo tem como objeto o estudo de não confisco preceituado no artigo 150, IV da
Constituição Federal, bem como analisar a sua aplicabilidade, dentro da sistemática tributária brasileira. O Princípio do Não-Confisco é uma limitação ao poder de tributar imposta ao Legislador
infra-constitucional, configurando uma proteção ao contribuinte. Sendo assim, este trabalho preocupa-se em delimitar a linha a partir da qual o tributo passa a ter efeito confiscatório.
Palavras-chave: Princípio do Não-Confisco. Contribuinte. Tributos. Limitações ao Poder de
Tributar.
THE PRINCIPLE OF THE NO CONFISCATION IN THE TAX LAW
ABSTRACT
This article consists in the study of the principle of non-confiscation specified in Article 150, IV of
the Federal Constitution, and examine its applicability, in the Brazilian tax system. The principle of
non-confiscation is a limitation to the tax imposed by the Federal Constitution to the infra legislator,
setting a protection to the taxpayer. So this article focuses on defining the line from which the
tribute will take confiscatory effect.
Keywords: Principle of the No Confiscation. Taxpayer. Taxes. Limiting the Tax Power.
1 INTRODUÇÃO
O objetivo do presente artigo é trazer para reflexão a importância do Direito
Tributário ser estudado de forma humanística. É incontestável que não só ele, pois o Direito existe
para a proteção dos direitos inerentes à pessoa humana, mas especificamente o Direito Tributário
deve ser o instrumento de efetivação dos direitos fundamentais e não de sua violação, como
freqüentemente ocorre.
É através do tributo, muitas vezes tido por injusto, que o Estado tem condição e
obrigação de redistribuir a riqueza, garantir o mínimo existencial e dar condição aos menos favorecidos, de uma vida digna, enfim, para fazer valer plenamente os direitos fundamentais de toda a
sociedade.
O estudo do tema, ora introduzido, necessita de maior aprofundamento. A pouca doutrina específica sobre o princípio do não-confisco no direito pátrio revela essa dificuldade.
Isto posto, é colocada a seguinte indagação: Será possível mensurar, exatamente ou aproximadamente, até onde deve o cidadão contribuir sem estar sendo lesado, ou confiscado pelo Estado?
Onde passa a linha tênue entre o confisco e o não-confisco?
Qual seria então a carga ideal, pois parece que o Estado é um devorador.
Quanto mais aumenta a carga tributária, como se tem visto e sentido nos últimos anos, percebe-se
que a contraprestação estatal está cada vez mais caótica e sucateada em se tratando de saúde,
educação e segurança.
*O presente artigo é resultado de monografia de conclusão do curso de graduação em Direito, escrita sob a orientação do prof.
Ms. Antonio Carlos Lovato.
**Mary Sílvea Santana Vieira, Bacharel em Direito, formada pela UNIFIL e Administradora de Empresas formada pela UEL.
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De maneira geral, o conceito de confisco é identificável e tem sido tratado
como sendo a absorção da propriedade particular pelo Estado, sem justa indenização. Quando isso
se dá por meio de tributo, está-se diante do confisco em matéria tributária.
A Constituição da República de 1988 (art. 150, inc. IV) preceituou limitações
ao poder de tributar, trazendo como um desses limites a vedação aos entes federados de utilizar
tributo com efeito de confisco. É certo também que o Estado, por força de seu poder de império,
tem o direito de exigir dos cidadãos contribuições compulsórias para a realização de suas finalidades de promoção do bem comum. Entretanto, em um Estado Democrático de Direito, esse poder é
limitado pelos diversos princípios, direitos e garantias individuais inseridos na Constituição da República Federativa do Brasil.
No intuito de esclarecer esses limites, a doutrina pátria tem-se limitado a afirmar que confiscatório é o tributo que excede a capacidade contributiva, sem, no entanto, fornecer
critérios objetivos para sua verificação. A afirmação de que é confiscatório o tributo que aniquila
total ou parcialmente propriedade particular também não resolve suficientemente o problema, já
que é fácil identificar sua extinção completa, porque representa 100% do bem. Mas, e quanto à
mutilação parcial? Qual seria o limite?
Como decorrências dessas indagações, surgem outras não menos interessantes: é o tributo, isoladamente considerado, que é confiscatório ou é a carga tributária total suportada
pelo contribuinte que atinge as raias do confisco? A vedação constitucional é absoluta ou comporta
exceções? A quem é dirigida? Atinge somente os impostos ou aplica-se também às demais espécies tributárias?
Para discorrer sobre o tema, serão analisados diversos aspectos jurídicos, até
se chegar a conclusão de que só é possível obter o conceito de “não-confisco” mediante o estudo
de cada caso concreto que se vislumbre pela frente. É somente pela apreciação de cada situação
concreta de instituição de tributo novo ou de aumento de tributo já existente que se poderá verificar
se realmente houve respeito ao princípio do “não-confisco”.
O tributo com efeito de confisco, destruindo a propriedade privada, aniquila a
própria base de sustentação do sistema, pois a existência de propriedade privada é a viga mestra
para a própria existência do sistema tributário, pois sem a propriedade privada não há o que se
tributar.
2 O TRIBUTO
2.1 Conceito e natureza jurídica
O conceito de tributo está explicitado no artigo 3º do Código Tributário Nacional, (CTN), que prescreve de modo adequado as características essenciais e necessárias para a
identificação dessa categoria jurídica, diferenciando-a de outras figuras semelhantes.
Prescreve o artigo 3º: “Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em
moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei
e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada”.
Segundo o doutrinador Ruy Barbosa Nogueira (1999, p. 155),
os tributos são receitas derivadas que o Estado recolhe do patrimônio dos
indivíduos, baseado no seu poder fiscal (poder de tributar, às vezes consorciado com seu poder de regular), mas disciplinado por normas de direito
público que constituem o Direito Tributário.
Na concepção de Geraldo Ataliba (2004, p. 53), tributo é:
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a expressão consagrada para designar a obrigação ex lege, posta a cargo
de certa pessoas, de levar dinheiros aos cofres públicos. É o nome que
indica a relação jurídica que se constitui no núcleo do direito tributário, já
que decorre daquele mandamento legal capital, que impõe o comportamento mencionado.
Dessa forma pode-se concluir que o tributo consiste de uma obrigação compulsória, isto é, obrigatória, instituída por lei, representada por um valor em dinheiro e que não constitua penalidade por algum ato ilícito.
A natureza jurídica do tributo é definida pelo fato gerador, conforme explícito
no artigo 4º do CTN.
Alfredo Augusto Becker (1972, p. 399), discorre sobre o tema, nos seguintes
termos:
... o único critério científico jurídico que permite aferir a natureza jurídica do
tributo é o critério da base de cálculo (núcleo da hipótese de incidência). O
núcleo (base de cálculo) confere gênero jurídico do tributo e os elementos
adjetivos atribuem a espécie jurídica àquele gênero.
O referido autor ainda observa o seguinte na mesma obra (1972, p. 260):
A natureza jurídica do tributo (e a do dever jurídico tributário) não depende da
destinação financeira ou extrafiscal que o sujeito ativo da relação jurídica vier
a dar ao bem que confere a consistência material ao tributo que foi ou deve ser
prestado. Nenhuma influência exerce sobre a natureza jurídica do tributo, a
circunstância de o tributo ter uma destinação determinada ou indeterminada....
Dessa forma ao se observar o fato gerador de uma obrigação e comparar com
as hipóteses autorizadas pela Constituição Federal para a instituição de tributos, é que definirá se
aquela obrigação tem caráter tributário ou não.
2.2 Histórico
2.2.1 Histórico dos Tributos no Direito Comparado
Os tributos “provinham do chamado Patrimônio Real, eram obtidos, sob a forma de rendimentos, extraídos do patrimônio dominial, cuidados pelos chefes dos clãs, reis ou imperadores, sob as formas várias, dos dízimos, das vintenas, dos quintos, cisas, etc” (FERREIRA,
1986, p. 14).
Segundo o autor Benedito Ferreira (1986, p. 14):
A origem do imposto fiscal remonta a tempos que se perderam no pretérito
da humanidade. Historiadores ilustres, em todas as épocas, invariavelmente,
procuraram registrar, ao descreverem usos e costumes das civilizações, os
seus sistemas tributários. Heródoto,...escrevendo e informando-nos, a cobrança de impostos em razão do chamado vínculo de Jurisdição Fiscal, aos
habitantes dos antigos impérios que povoaram as regiões dos rios Tigre,
Orange e Eufrates, há mais de quatro mil anos, anteriores a Era cristã. Segundo Heródoto, tributava-se 10% sobre a produção, que se constituíam na
“décima” e a quota de contribuição de cada um às despesas do Estado,
devida por todas as camadas sociais.
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Na Índia tributava-se a exportação de especiarias, produtos medicinais e essências, e também a prosperidade da Mesopotâmia teve seu epicentro não só no comércio, mas
principalmente aos tributos impostos aos povos conquistados,
Salomão explorou de forma sábia a estratégica posição geográfica de sua pátria, situada entre o Egito e a Mesopotâmia e vários países asiáticos, “que lhe pagavam direitos e
taxas sobre as mercadorias que por ali transitavam” (FERREIRA, 1986, p. 15).
Cita ainda o referido autor onde incidiam os tributos na Grécia Antiga:
tributavam as indústrias e profissões, como também, os direitos aduaneiros;
aplicavam multas e confiscos, tributos sobre bens e pessoas, rendas ou
lucros, que atingiam, mais e especialmente, os mil e duzentos cidadãos mais
ricos. Cresciam as alíquotas na medida das necessidades, especialmente nas
guerras.
Com a organização do ordenamento jurídico do Império Romano, o Direito
Tributário desenvolveu-se sobremaneira, pois já eram individualizadas algumas espécies tributárias, como “impostos”.
O já citado autor ainda traz a seguinte informação:
O desmoronamento do fabuloso Império romano, segundo as anotações de
Sêneca, Plínio e mesmo Montesquieu, teve seu fulcro na desagregação dos
costumes, especialmente no terrível desajuste familiar do Patriciado, nas
orgias promovidas com os recursos públicos, e que foram gerando a desorganização do Estado, e, consequentemente, a desobediência às leis, e, finalmente, a imposição de tributos, com alíquotas cada vez mais insuportáveis,
aos contribuintes, aos que trabalhavam e produziam... arbitrariamente, decretavam impostos sobre os pobres, sobre as mulheres separadas ou divorciadas, sobre os celibatários, sobre os escravos, até as portas estavam sujeitas à insânia tributária. A seguir, passaram a cobrar imposto sobre o casamento e, finalmente, Vespasiano, como Imperador, não tendo, talvez, mais o
que tributar, instituiu o imposto sobre a urina (FERREIRA, 1986 p. 16)
80
Segundo o jurista Aliomar Baleeiro (1969, p. 26),
as Finanças Públicas tiveram desde a Antiguidade, precursores que
incidentalmente comentaram aspectos da atividade financeira ou discutiram
medidas de política fiscal, muito embora só houvesse logrado a consistência
e a posição de disciplina autônoma no século XIX.
Nas palavras de Aliomar Baleeiro (1969, p. 27), pode-se constatar que:
São Tomás de Aquino (1226-1274) admitia a tributação em caso de escassez
das rendas patrimoniais dos príncipes e aconselhava a constituição do tesouro como reserva para os maus dias. Mateo Palmieri (1405-1475) defendeu
a proporcionalidade dos tributos contra os critérios progressivos, que a
república florentina então ensaiava. Na Renascença e início da idade moderna, surgem os pensadores políticos de maior envergadura acentuando a
correlação entre a economia privada e as finanças públicas.
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Saliente-se que Maquiavel, o autor do “Príncipe”, em seus escritos repelia a
ilimitação dos tributos impostos pelo Estado. Também é importante registrar que o Direito Constitucional moderno teve sua raiz principal na Carta Magna de 1215, na Inglaterra Medieval e revela
a idéia de impor limites ao poder de tributar (COELHO, 1999, p. 54).
2.2.2 Histórico dos Tributos no Direito Brasileiro
Segundo Benedito Ferreira (1986, p. 36), um marco importante do histórico dos
tributos no Brasil foi a vinda de D. João VI para o Brasil, pois em linhas gerais:
Abriram-se os portos ao comércio com todas as nações amigas, promoveuse a construção de novos portos, melhoraram-se os existentes, fomentou-se
e protegeu-se a indústria e o comércio interno e externo. Em matéria de
tributos e sistema fazendário fiscal, embora tenha sido benéfica para o Brasil
como um todo, a vinda de D. João VI não representou nenhum alívio para os
contribuintes, sendo mantidos, na sua inteireza, os impostos existentes, e
sobrecarregada mais ainda a carga fiscal. (...) Como a receita não conseguia
ultrapassar a casa dos 4 mil contos de réis, através do recém criado Banco do
Brasil, tivemos o início do endividamento interno e externo em que nos
encontramos até os dias atuais. E, também, a origem da nossa inconseqüente
“fúria tributária”, que premia os malandros usuários do “jeitinho” e liquida
com os contribuintes corretos.
Arnaldo Godoy (2003, p.147) disserta, em sua obra Direito e Literatura, o
posicionamento de Monteiro Lobato a respeito do Estado, tributo e confisco.
81
Lobato relutava em entender a miséria que se espargia entre nós, país tão
rico de recursos. Defendeu ardentemente o domínio de nossos recursos
naturais, ponderou acerca da função do Estado, defendendo um Estado
mínimo, destinado a garantir as liberdades individuais.
Na mesma obra, Arnaldo Godoy cita o livro de Monteiro Lobato, Idéias de
Jeca Tatu, que faz uma menção crítica e cínica ao fisco, conforme se pode observar; “ao descrever a chegada da Família Real portuguesa ao Brasil, Lobato chama a atenção para o desembarque
de um personagem: O Fisco - um canzarrão tremendo de dentuça arreganhada – é conduzido no
açamo por vários meirinhos”.
Na seqüência cita também a obra Na Antevéspera, em que Monteiro Lobato
faz críticas ao fisco, narrando o seguinte fato histórico:
Portugal só organizou uma coisa no Brasil - Colônia: o Fisco, isto é, o sistema
de cordas que amarram para que a tromba percevejante siga sem embaraços.
Quem lê as cartas régias e mais literatura metropolitana enche-se de assombro diante do maquiavélico engenho luso na criação de cordas. Cordas trançadas de dois, de três, de quatro ramais; cordas de cânhamo, de crina, de
tucum, de tripa; cordas estrangulatórias de espremer o sangue amarelo e
cordas de enforcar (GODOY, 2003, p. 147).
Insurge-se Arnaldo Godoy (2003, p. 148-149), ao comentar sobre a visão de
Monteiro Lobato em relação aos tributos. Nesse raciocínio escreve o autor:
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Lobato era irredutivelmente agressivo para com o Fisco, que qualificava com
os mais negativos impropérios. Escreveu: “Que é o fisco senão um ‘sistema
de embaraços’ opostos à livre atividade do homem, que deles só se livra por
meio de entrega ao Estado de uma certa quantidade de dinheiro. (...) A tributação para Lobato, vislumbra iniqüidades que mudam o rumo da história. A
Inconfidência Mineira é um exemplo, e Lobato sugere outro, tomado da
história universal, em sua obra Mundo da Lua: “A história da civilização
cabe dentro da história do Fisco”. Grandes convulsões sociais, como a Revolução Francesa, tiveram como verdadeira causa as iniqüidades do Fisco.
Conclui Arnaldo Godoy que o tributo na concepção de Monteiro Lobato tem
que estar diretamente ligado ao significado de justo e razoável: “A concepção tributária de Lobato
é muito próxima de suas concepções de justiça. Como homem de negócios, de ação pôde Lobato
viver, de experiência própria, os nefastos efeitos de um modelo tributário agressivo e ineficiente”.
3 TRIBUTO NÃO CONFISCATÓRIO
3.1 Conceito de Confisco
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O termo “confisco” possui o seguinte significado definido por Plácido e Silva
(2004, p. 505): “Confisco, ou confiscação, é vocábulo que se deriva do latim confiscatio, de
confiscare, tendo o sentido de ato pelo qual se apreendem e se adjudicam ao fisco bens pertencentes a outrem, por ato administrativo ou por sentença judiciária, fundados em lei”.
Na concepção de Eduardo Marcial Ferreira Jardim (2000, p. 45), o vocábulo
significa: “O ato pelo qual o Fisco adjudica bens do contribuinte.”
No entendimento de Paulo César Bária de Castilho (2002, p. 39):
O comando normativo constitucional proíbe, na verdade, o efeito de confisco que o tributo, por ser exagerado, desregrado, possa gerar. E isso é assim
porque, se tributo é instituto que não constitui sanção de ato ilícito (art. 3. º
do CTN), a Constituição só poderia referir-se a efeito de confisco e não a
confisco propriamente dito.
É de se salientar que o art. 150, inc. IV, da Constituição da República de 1988
não proíbe o confisco em si, mas sim “efeito de confisco”. Nos países capitalistas, é proibido o
confisco, como regra geral, sendo somente permitido como forma de sanção, conforme prevê o
art. 5º, inc. XLVI, letra b, da Constituição Federal que traz previsão à perda de bens como forma de
pena, de acordo com a lei.
3.2 Aspectos Normativos
3.2.1 Aspectos Normativos nas Constituições Anteriores
O desenvolvimento desigual em certas regiões do Brasil1 , na Constituição de
1946, levou o constituinte a procurar amenizar esta desigualdade através do aparelho tributário,
1 As regiões brasileiras que estavam se desenvolvendo rapidamente eram as regiões litorâneas e a região sul do país.
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Historicamente, a vedação constitucional aos tributos confiscatórios ou prejudiciais à atividade lícita teve origem no direito brasileiro através do art. 202 da Constituição Federal
de 1946, de inspiração liberal, que dispunha do seguinte texto: “os tributos têm caráter pessoal
sempre que isso for possível, e serão graduados conforme a capacidade econômica do contribuinte”. A Constituição de 24 de janeiro de 1967 dedica o Cap. V do Tít. I ao sistema tributário nacional
em seus artigos 18 a 28.
Pode-se concluir que somente a Carta Constitucional da República de 1988
traz, expressamente, a proibição da utilização de tributo com efeito de confisco, em seu art. 150,
inc. IV. Até então, a vedação constitucional era apenas implícita.
3.2.2 Aspectos Normativos na Constituição Federal de 1988
Segundo o doutrinador Mariano Junior (1994, p.75): “A Constituição Federal
traz os princípios de imperatividade maior para que o poder de tributar, pela competência partilhada
de cada uma das entidades de direito público dele titulares, possa ser exercido”.
Nas palavras de Mariano Junior (1994, p. 75):
Além da observância e cumprimento das determinações superiores da Constituição Federal e precisamente para que não haja conflitos de competência
entre as entidades públicas detentoras do poder tributante, cumpram-se as
limitações constitucionais ao poder de tributar e sejam seguidas normas
gerais em matéria de legislação tributária, terão que ser cumpridos os preceitos da lei complementar tributária (Artigo 146, CF/88) que, atualmente, é o
Código Tributário Nacional Lei Federal nº. 5.172 de 25-10-66).
Assim, o que está preceituado no título VI da Constituição Federal – da tributação e do orçamento – pelos artigos 145 a 156, deve ser rigorosamente observado pela União, pelo
Distrito Federal, pelo Estado-Membro e pelo Município no exercerem sua competência tributária
de editar lei ordinária própria para seus tributos e no exigirem efetivamente o pagamento de seus
impostos, taxas e contribuições.
3.3 Princípio do Não-Confisco e Direito de propriedade.
No entender do doutrinador Estevão Horvath (2002, p. 40), o fato de um princípio estar explícito, positivado é muito importante quando da sua interpretação ou aplicação nos
casos concretos. Segundo o autor, cumpre observar preliminarmente o seguinte:
A circunstância de um princípio estar previsto expressamente é importante
para efeitos interpretativos, ainda que seja para o fim de não se poder afirmar
que aquele não está positivado. A evolução histórica dos princípios gerais
de direito bem demonstra essa assertiva. Em segundo lugar, consoante também já se demonstrou, a convivência dos princípios é, no máximo, conflitual,
ao contrário do que sucede com as regras, em que ela é antinômica: “os
princípios coexistem, as regras antinômicas excluem-se” (Canotilho), eles
permitem o balanceamento de valores e interesses (não obedecem, como as
regras, à “lógica do tudo ou nada”), consoante o seu peso e a ponderação de
outros princípios eventualmente conflitantes (idem). Assim, não se trataria
de procurar uma interpretação isolada a cada um dos princípios, mas sim, de
sopesá-los, atribuir a cada um deles o seu peso e o seu devido valor. Daí que,
ainda que se possa extrair a proibição do confisco de outros princípios, mais
tradicionais e expressos, a sua formulação no direito positivo pode propiciar-lhe um alcance maior, ou pelo menos diferenciado com relação àqueles
dos quais derivaria.
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O Princípio do Não-Confisco no Direito Tributário
O confisco é proibido no direito brasileiro, simplesmente pelo fato da propriedade privada estar protegida, ressalvadas certas exceções contidas no Texto Magno. Contudo
a Carta Magna, ao preceituar que é vedado utilizar tributo com efeito de confisco, atribui a esta
idéia peculiaridades que não estariam presentes com a simples previsão genérica da vedação ao
confisco.
Nesse diapasão, assevera Estevão Horvath (2002, p. 40-41):
O que estamos buscando significar é que, se a vedação genérica do confisco
está a proibir que a tributação seja onerosa a ponto de retirar 100% da renda
ou do patrimônio de alguém (o que, de per si, é suficientemente óbvio para
prescindir de jurisprudência que o diga), ao vedar-se a “utilização de tributo
com efeito de confisco” se estaria ampliando o alcance do princípio, na
medida em que não seria confiscatório somente quando se priva a pessoa
das suas rendas ou bens por meio da tributação, mas também quando restasse comprovado que a imposição de que se cuida produziu esse indesejado
efeito.
Ainda segundo o presente doutrinador:
É mais abrangente dizer que se proíbe a tributação com efeito confiscatório
do que simplesmente dizer estar vedado o confisco. Têm-se a sensação que,
com a dicção constitucional, o intérprete se sente mais à vontade para extrair
que qualquer tentativa, por mais sub-reptícia que seja, de exacerbar a tributação, aproximando-a do confisco, ainda que parcial, tenderá a enquadrar-se
na vedação constitucional.
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No que diz respeito ao princípio da capacidade contributiva, a doutrina em geral
entende que este princípio deriva do princípio da igualdade, razão pela qual, não precisaria vir
expresso na Constituição. Entretanto, com o art. 145, § 1º da Carta Magna e com a forma pela qual
ele está expresso, outros detalhes interpretativos para o seu conhecimento e aplicação são passíveis de serem elucidados.
Na pouca doutrina existente acerca da vedação do tributo com efeito de confisco, verifica-se que os autores em geral extraem o princípio tributário da vedação do confisco
daquele.
No entendimento de Estevão Horvath (2002, p. 41), “não há antinomia entre
direito de propriedade e tributos, já que este é o preço que se deva pagar para viver em sociedade,
o que exige sufragar os gastos do governo encarregado de cumprir e fazer cumprir a Constituição”.
Antes de se falar em “quantum” de tributo que possa ser devido, necessário se
faz esclarecer que se estará violando o direito à propriedade e, simultaneamente, o princípio que
proíbe o confisco toda vez que se institua um tributo não autorizado pela Constituição Federal.
Desta forma assevera Estevão Horvath (2002, p. 43):
Com efeito, é evidente que a tributação é uma forma de apropriação da propriedade do contribuinte. Por isso mesmo, num Estado de Direito, depende
ela do consentimento dos cidadãos, para que possa existir. Nesse “consentimento” ou “autorização” para tributar repousa o princípio da legalidade e
têm origem os próprios parlamentos, como conhecemos hoje em dia. Não
basta, porém, que um determinado tributo seja consentido, mediante a sua
aprovação pelo Legislativo. Necessário se faz que o poder de representação
outorgado pelo povo ao legislador ordinário seja exercido dentro dos limites
que o legislador constituinte originário impôs, ao inaugurar o novo Estado.
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O professor Roque Carrazza (1999, p. 268) afirma que o princípio do não confisco potencializa o direto de propriedade:
... estamos notando que a norma que impede que os tributos sejam utilizados
com efeito de confisco, além de criar um limite explícito à progressividade –
que, de um modo geral, os impostos devem observar ... – reforça o direito de
propriedade. Assim por exemplo, em função dela, as alíquotas do imposto
sobre a renda não podem ser elevadas a ponto de fazerem desaparecer a
propriedade do contribuinte.
Estevão Horvath (2002, p. 45) traz a seguinte indagação para posterior
reflexão:
Se o princípio que veda o confisco já está implícito no Texto Constitucional
e que esse confisco já estaria proibido pela simples previsão da proteção à
propriedade privada, então qual a razão de ser, qual a importância de se
referir o Texto Magno a ele de modo expresso?
E o mesmo doutrinador, Horvath (2002, p. 45), responde nos seguintes termos
abaixo transcritos:
É que ele serve, também, como parâmetro para a elaboração das leis tributárias e não pode deixar de ser tomado em linha de conta pelo legislador à hora
de criar ou aumentar tributo. Juntamente com outros princípios, ele deve
atuar para compor o quadro do tributo a ser engendrado, não podendo pairar
dúvidas acerca da sua existência e operatividade em concreto.
Concluindo, pode-se salientar que o confisco é diretamente ligado ao direito de
propriedade, mas o fato do princípio estar positivado deu-lhe uma amplitude maior.
3.4 Princípio do Não-Confisco e Capacidade Contributiva
Antes de tudo, vale lembrar que se desenhar um gráfico e delimitar dois pontos,
sendo um ponto a partir do qual o tributo se torna possível e outro ponto onde a tributação não seja
mais razoável quantitativamente, torna-se inconstitucional, é inadmissível, entende-se que, no intervalo entre esses dois pontos, estará delimitada a liberdade de atuação do legislador tributário.
Segundo Goldschmidt (2004, p. 160), “esse espaço intermediário representará a capacidade
contributiva”.
Nesse diapasão, Fábio Brun Goldschmidt (2004, P. 162) faz o seguinte
arrazoado:
a relação necessária entre vedação de efeitos confiscatórios e capacidade
contributiva encontra-se em que os tributos não podem exceder a força
econômica do contribuinte”. Deve haver então clara relação de compatibilidade entre as prestações pecuniárias, quantitativamente delimitadas na lei e
a espécie de fato signo presuntivo de riqueza, posto na hipótese legal.
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O Princípio do Não-Confisco no Direito Tributário
O efeito de confisco pode estar aquém ou além da capacidade contributiva.
Quando o tributo estiver aquém da capacidade contributiva ele será confiscatório, pois não estará
garantindo o mínimo existencial ao cidadão, comprometendo assim seus direitos básicos, conflitando
com o preceito constitucional de dignidade da pessoa humana ou também de uma atividade produtiva. Dessa forma, “acima da capacidade contributiva haverá desde a mutilação da propriedade
(onde se inicia o efeito de confisco) até a sua efetiva aniquilação, com a ocorrência do confisco
propriamente dito” (GOLDSCHMIDT, 2004, p. 162).
3.5 Princípio do Não-Confisco e Princípio da Isonomia
Quando se pensa em tributo com efeito de confisco, vem à mente que se trata
de um tributo que seja excessivamente elevado. Mas, como saber se um determinado tributo é de
fato excessivamente elevado? Qual seria o parâmetro razoável? É aí que se insere a isonomia, isto
é, a igualdade. Para qualificar algo necessita-se de um referencial de comparação.
Nesse sentido, argumenta Fábio Brun Goldschmidt (2004, p. 211):
De fato, para adjetivarmos alguma coisa, necessitamos de um termo de comparação, de algo que seja diferente daquele objeto que se pretende analisar.
Absolutamente toda a adjetivação somente se faz possível pela existência
de diferenças, eis que se tudo fosse igual não seria possível a qualificação
pelo adjetivo.
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O conceito de isonomia é bom e também justo, porque oferece ao contribuinte
um parâmetro de comparação, que são os demais contribuintes. O muito e o pouco pressupõem um
referencial, uma valoração, assim disserta Fabio Brun Goldschmidt (2004, p. 212): “O muito e o
pouco são noções cuja apreciação supõe um juízo prévio do que seja “normal”, razoável; e esse
juízo prévio só é possível a partir da observação do padrão, para enfim se concluir se uma determinada situação está acima ou abaixo da média”.
O princípio do não-confisco proíbe a tributação excessiva dessa forma, pressupõe o conhecimento do que seja um percentual justo e aceitável de tributação.
Nesse sentido, comenta Fábio Brun Goldschmidt (2004, p. 213):
O sentimento de penalização experimentado pelo contribuinte, quando defrontado com um tributo com efeito confiscatório, deriva em grande parte da
noção de igualdade. Assim, o confronto com a realidade alheia (de um indivíduo, de um grupo, de um Estado, etc.), o confronto com o nível de retorno
que recebe do Estado pelos tributos que paga (em bens, serviços, assistência, previdência, segurança, educação etc.), o confronto com o custo da
atividade ensejadora do pagamento, o confronto, enfim, com aquilo que o
próprio contribuinte estaria apto a fazer, caso dispusesse do mesmo montante pago ao Estado, tudo isso, enfim serve para delimitação da medida da
Justiça na tributação (e para a caracterização do efeito de confisco, como
face reversa dessa Justiça).
Assim, pode-se concluir que o impacto e a reação do contribuinte, em
face da tributação e seus respectivos reflexos, serão vistos em estatísticas indicativas de
evasão, elisão, sonegação, fraude de um modo geral. Trata-se da curva de Laffer 2
(GOLDSCHMIDT, 2004, p. 213).
2 A curva de Laffer, consiste em um gráfico desenhado pelo economista americano Arthur Laffer, desenvolvido durante o
governo Reagan, nos EUA, ao qual pretendeu demonstrar que, a partir de certa medida, cada ponto percentual acrescido à
carga fiscal representará dois pontos a menos na arrecadação, dados os indefectíveis efeitos da sonegação.
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4 VEDAÇÃO AO EFEITO DE CONFISCO POR TRIBUT0 INDIVIDUALMENTE
OU PELO CONJUNTO DO SISTEMA TRIBUTÁRIO BRASILEIRO
É difícil analisar cada tributo isoladamente para saber se tem efeito de confisco
ou não. Quanto à confiscatoriedade do sistema como um todo, no entendimento de Estevão Horvath
(2002, p. 82) destaca-se o seguinte:
difícil saber-se a partir de quando um tributo passa a ter efeito confiscatório
da mesma forma que o é detectar a presença da confiscatoriedade no “sistema”. Contudo, outra questão afigura-se-nos especialmente difícil de responder, qual seja: a admitir-se a confiscatoriedade do sistema, a instituição ou a
majoração de qual tributo torna aquele confiscatório?
Fábio Brun Goldschmidt (2004, p. 281)assevera que o fato do Brasil ser uma
República Federativa, dotada de competência tributária, dificulta a identificação da esfera em que
estaria ocorrendo o confisco se nos tributos devidos à União, Estado ou ao Município, havendo
sempre as excludentes de responsabilidade conforme o autor:
O primeiro problema que se coloca a partir dessa premissa (da possibilidade de caracterização do efeito de confisco relativamente à totalidade
da carga tributária), contudo, está no fato de vivermos em uma federação, com três esferas de Poder concomitantes e igualmente competentes
para instituir e arrecadar tributos. A carga tributária total, assim, seria
muitas vezes formada pela soma das exigências dos três entes tributantes,
cada um na medida das suas competências, não havendo um único responsável pela inconstitucionalidade. É possível que cada uma das tributações dos três entes federados, individualmente, seja considerada razoável, havendo, contudo, efeito confiscatório quando da aplicação das
três cargas simultaneamente.
Nos ensinamentos de Fábio Brun Goldschmidt, (2004, p. 282) a tendência doutrinária mais comum é no sentido de declarar inconstitucional o último tributo instituído, que, adicionado aos já existentes, causou o efeito de confisco.
de outra parte, há quem sustente que, ultrapassando-se o limite após o qual
a tributação tem efeito de confisco, haverá que se abaixar todos e cada um
dos tributos que contribuem para esse efeito por sua superposição, em autêntica proporção, até que se alcance o referido limite, de modo que o conjunto não o supere.
Fábio Brun Goldschmidt (2004, p. 283) argumenta que toda essa dificuldade
não pode ser motivo para que o Poder Judiciário esteja como fiscal da Lei, verificando, analisando
e julgando os casos que lhe chegam às mãos:
É certo, contudo, que, em que pesem todas as soluções possíveis serem
passíveis de crítica, tal dificuldade não pode servir de pretexto para simplesmente excluirmos a possibilidade de apreciação pelo Poder Judiciário dessa
questão (o que, de mais a mais feriria o art. 5º, XXXV, da CF). Ora, o Estado é
uno, ainda que sua administração seja dividida em mais de uma esfera de
Poder. Os direitos fundamentais em jogo são os do cidadão, fonte do poder
do Estado, conceito que transcende em muito o de simples contribuinte de
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uma dada e específica exigência tributária. Seria, aliás, uma ironia cruel se a
federação pudesse servir de escudo para a perpetração de abusos contra o
povo brasileiro, em vez de funcionar como um instrumento para a sua
proteção e desenvolvimento.
No entender de Paulo César Bária de Castilho (2002, p. 101-102), a carga
tributária total é uma questão de política fiscal:
em que pese tenha havido um crescimento significativo da quantidade de
tributos exigidos no Brasil desde seu descobrimento, em 1500, até a presente data, entendemos que esse volume total é uma questão de política
fiscal, utilizada de acordo com circunstâncias próprias do momento histórico vivido.
O que dificulta a visualização do efeito de confisco no sistema tributário é que
não existe um teto máximo explicitado na Constituição, dando margem para muitas interpretações
e discussões, mas o jurista Ives Gandra Martins (1994, p.141) vislumbra essa possibilidade, conforme descreve o autor:
na minha especial maneira de ver o confisco, não posso examiná-lo a partir
de cada tributo, mas da universalidade de toda a carga tributária incidente
sobre um único contribuinte. Se a soma de diversos tributos incidentes
representa carga que impeça o pagador de tributos de viver e se desenvolver, estar-se-á perante carga geral confiscatória, razão pela qual todo o sistema terá que ser revisto, mas principalmente aquele tributo que, quando criado, ultrapasse o limite da capacidade contributiva do cidadão. Há, pois, um
tributo confiscatório decorrencial. A meu ver a Constituição proibiu a ocorrência dos dois, como proteção ao cidadão.
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Segundo a lição de Fábio Brun Goldschmidt (2004, p. 279), o Supremo Tribunal
Federal já se manifestou favoravelmente ao confisco quando da totalidade da carga tributária,
Assevera o autor:
A caracterização do efeito de confisco decorrente do total da carga tributária
suportada pelo contribuinte foi vencedora no Supremo Tribunal Federal,
consoante se lê do voto do Min. Carlos Velloso na ADIn 2010: “Em primeiro
lugar, a questão, ao que me parece, deve ser examinada no conjunto de
tributos que o servidor pagará, no seu contracheque, dado que se trata de
tributos incidentes sobre o vencimento, salário ou provento
A capacidade contributiva é uma só, um único patrimônio e uma única renda
que respondem pelo pagamento das obrigações tributárias que recaem sobre o sujeito passivo.
Para concluir, entende-se que existe a possibilidade de não só o tributo ser
confiscatório, mas todo o sistema tributário ser confiscatório, pois o efeito de confisco está diretamente ligado ao tributo exagerado, desregrado. A partir do momento em que a carga tributária ficar
tão alta que desrespeite a capacidade contributiva do cidadão, o sistema tributário na sua totalidade
estará tendo efeito de confisco. O que diferencia um tributo legítimo de um confiscatório é a
diferença de grau em que é exigido.
Cabe aqui ressaltar, que essa conclusão está sedimentada também em argumentos econômicos e financeiros e não somente em argumentos advindos do Direito Positivo.
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5 CONCLUSÃO
Ao concluir o presente artigo, é importante salientar que as normas de Direito
Tributário devem ser interpretadas em consonância com os direitos fundamentais e não contra o
cidadão. Assim o sistema tributário deve ser destinado à construção da plena cidadania. As normas
estão vigentes, o que está faltando é uma maior efetividade a elas, tendo o ser humano como centro
de todo o sistema.
O Estado necessita de recursos financeiros para consecução de seus fins, quais
sejam: promover o bem social, a felicidade coletiva. A competência tributária para criar e exigir
tributos, portanto, decorre do poder de império do Estado, contudo, é regrada, limitada pela própria
Constituição da República.
Na linha da história do Brasil, vê-se que a carga tributária aumenta ano a ano,
e a contraprestação devida pelo Estado está a cada dia pior. Os limites ao poder de império do
Estado são delineados pelos princípios, direitos e garantias individuais preceituados na própria Constituição, entre eles os princípios republicano, da igualdade, da legalidade, da capacidade contributiva,
da progressividade, da razoabilidade e o direito de propriedade.
Entende-se por confisco a apreensão de bens do particular pelo Estado sem a
devida indenização. Quando o confisco se dá por meio de tributo, retirando a totalidade ou parcela
considerável da renda ou do patrimônio do contribuinte, está-se diante de um confisco tributário.
O confisco em matéria tributária é, em regra geral, indireto. É por isso que a
Constituição veda a utilização de tributo com efeito de confisco. A vedação constitucional à utilização de tributo com efeito de confisco é uma das maiores conquistas da sociedade moderna, gerada
pela luta incessante em busca da cidadania e da justiça.
A natureza jurídica do art. 150, inc. IV, da Constituição da República de 1988 é
de limitação constitucional ao Poder de Tributar; é dirigida ao legislador para que ele, ao legislar
sobre matéria tributária, tenha como pressuposto o não confisco, é um não fazer, uma regra negativa, limitando a competência tributária dos entes da Federação (União, Estados e Distrito Federal,
Municípios).
O objetivo principal dessa norma constitucional não é garantir o direito de propriedade, que já está assegurado expressamente pelo art. 5.º, inc. XXII, e pelo art. 170, inc. II, da
Carta Política de 1988, mas sim limitar o Poder de Tributar.
Existe a possibilidade de não só o tributo isoladamente ser confiscatório, mas
todo o sistema tributário ser confiscatório, pois o efeito de confisco está diretamente ligado ao
tributo exagerado, desregrado. A partir do momento em que a carga tributária ficar tão alta que
desrespeite a capacidade contributiva do cidadão, retirando a totalidade ou parcela considerável da
renda ou do patrimônio do contribuinte, o sistema tributário, na sua totalidade, estará tendo efeito de
confisco. O que diferencia um tributo legítimo de um confiscatório é a diferença de grau em que é
exigido.
Notório é, que apesar do artigo 150, inciso IV, da Constituição Federal, vedar a
instituição de tributo com efeito conficatório e não estar expressamente incluída no princípio a
multa confiscatória, mesmo diante da diversidade da natureza jurídica de ambos, pode-se afirmar
que além da multa conficatória ferir o princípio do não-confisco esta fere também o direito de
propriedade como também o princípio da proporcionalidade.
Este tem sido o entendimento doutrinário e jurisprudencial, inclusive do Supremo Tribunal Federal, mas o tema merece um outro estudo mais aprofundado e específico.
Pode-se perceber que longe está de ser pacífica a abrangência do princípio
tributário do não confisco. Chega-se mesmo a dizer que ele não passa de um mero enunciado da
Constituição, sem muita aplicação concreta, dada a dificuldade desta sua colocação em prática
e o grau de subjetivismo que a sua interpretação acarreta. De acordo com as apontadas dificuldades, crê-se que o simples fato de o não confisco ser identificado como princípio constitucional
leva à necessidade de ser ele estudado e aplicado, como ocorre com qualquer outro princípio
constitucional.
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O Princípio do Não-Confisco no Direito Tributário
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Osmar Vieira da Silva
O CONTEMPT OF COURT (desacato à ordem judicial) NO BRASIL
Osmar Vieira da Silva*
RESUMO
O presente artigo pretende trazer à comunidade jurídica uma reflexão a respeito do instituto do
contempt of court (desacato à ordem judicial) nos países da common law e sua introdução ao
ordenamento jurídico brasileiro, contendo expressa previsão do dever de cumprir com exatidão os
provimentos mandamentais e não criar embaraços à efetivação de provimentos judiciais, de natureza antecipatória ou final, como forma de imprimir maior eficácia às decisões judiciais.
Palavras-chave: Contemp of Court. Desacato. Descumprimento. Embaraço. Ato Atentatório.
O CONTEMPT OF COURT (disregard to the judicial order) IN BRAZIL
ABSTRACT
The present article intends to bring to the legal community a reflection regarding the institute of
contempt of court (disregard to the judicial order) in the countries of common law and its introduction
to the Brazilian legal system, contends express forecast of the duty to fulfill with exactness attorney
provisioning and not to create embarrassments to the accomplishment judicial provisioning, of final
anticipation nature or, as form to print greater effectiveness to the sentences.
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Keywords: Contemp of Court. Disregard. Not Accomplishment. Embarrassment. Offensive Act.
1 INTRODUÇÃO
Ganha relevância a questão do desacato à ordem judicial, denominada no direito anglo-saxão como contempt of court e introduzida no ordenamento jurídico brasileiro no art. 14,
do CPC, através da Lei 10.358/2001 e, também, dos seus pressupostos, como o descumprimento
dos provimentos mandamentais e embaraços à efetivação dos provimentos judiciais de natureza
antecipatória ou final.
A necessidade de aplicação do preceito se dá em face da crise de autoridade
pela qual passa o Poder Judiciário que busca, na utilização de meios capazes, tornar eficazes as
decisões emanadas
Por essa razão, esse trabalho busca uma maior reflexão a respeito de tão
importante instituto, desvendando-o na sua origem e analisando os seus pressupostos no ordenamento
pátrio para, ao final, tratar da incidência da multa a todos aqueles que de alguma forma atuam no
processo, com a absurda exceção dos advogados.
* Doutor em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Coordenador do Curso de Direito da
UniFil e Advogado.
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O Contempt of Court (desacato à ordem judicial) no Brasil
2 O CONTEMPT OF COURT
2.1 Breve Histórico do Instituto nos Países do Common Law
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O instituto do contempt of court1 (ASSIS, 2003, p. 20) tutela o exercício da
atividade jurisdicional, nos países da common law, e existe desde os tempos da lei da terra. O poder
de contempt of court, reconhecido aos órgãos judiciários do Reino Unido e América do Norte,
consiste no meio de coagir à cooperação, ainda que de modo indireto, através da aplicação de
sanções às pessoas sujeitas à jurisdição, e a primeira referência à sua aplicação remonta ao ano de
1187, em hipótese de réu que não atendeu à citação (ASSIS, 2003, p. 19).
O poder de o juiz exigir e impor acatamento às suas determinações, decorrentes da parcela de soberania que lhe é conferida, parece essencial à subsistência da ordem, nas suas
esferas legítimas de governo e da justiça. Segundo James Oswald (apud ASSIS, 2003, p.19),
nenhuma corte ou tribunal carece de vindicar sua própria autoridade, dignidade e respeito.
Segundo relato de Ada Grinover (2001, p. 222), a origem do contempt of court
está associada à idéia de que é inerente à própria existência do Poder Judiciário a utilização de
meios capazes de tornar eficazes as decisões emanadas. É inconcebível que o Poder Judiciário,
destinado à solução de litígios, não tenha o condão de fazer valer os seus julgados. Nenhuma
utilidade teriam as decisões, sem cumprimento ou efetividade. Negar instrumentos de força ao
Judiciário é o mesmo que negar sua existência.
Na Inglaterra, a configuração básica do instituto emergiu de voto do Juiz Wilmot,
publicado depois de sua morte, em 1802. Tratava-se da publicação de libelo por um livreiro chamado Amon contra a Chief Justice Lord Mansfield. Em síntese, o poder de contempt, na concepção do Juiz Wilmot, decorria da possibilidade de qualquer corte vingar sua própria autoridade,
prendendo ou multando quem a desafiasse em caráter público. Na América, o Judicial Act de
1789, alterado em 1821 para dirimir incertezas, conferiu a todo tribunal análoga competência. Em
todos os casos, sob as mais variadas situações em que examinou o problema, a Suprema Corte
sempre preservou a autoridade judicial. Apesar das críticas e da criação, em 1970, de um Comitê
para reexaminar o tema e propor reformas, o poder de erradicar a obstrução à Justiça permanece
na sua feição original (ASSIS, 2003, p. 19).
Para o direito anglo-saxônico, o contempt of court significa a prática de qualquer ato que tenda a ofender um tribunal na administração da justiça ou a diminuir sua autoridade
ou dignidade, incluindo a desobediência a uma ordem. O contempt of court se divide em criminal
e civil, sendo que o criminal destina-se à punição pela conduta atentatória praticada, enquanto o
civil destina-se ao cumprimento da decisão judicial, usando para tanto meios coercitivos. É possível
que uma conduta desrespeitosa seja passível, ao mesmo tempo, de contempt civil e criminal, seja
no processo civil, seja no processo penal.
No contempt criminal (punitivo), o processo, autônomo, sumário, é instaurado
de ofício ou por provocação da parte interessada; no civil (coercitivo), a aplicação ocorre nos
mesmos autos, mediante provocação do interessado, garantida a ampla defesa. Admite-se transação sobre o contempt civil. As sanções ensejadas pelo contempt, em qualquer de suas modalidades, são a prisão, a multa, a perda de direitos processuais e o seqüestro. No civil, a punição é por
tempo indeterminado, até que haja o cumprimento da ordem judicial. Se a decisão se tornar de
impossível cumprimento, a sanção também deve cessar, motivando, entretanto, o contempt criminal. A multa pode ser compensatória, ou não. Quando compensatória, reverte ao prejudicado;
quando coercitiva, reverte ao Estado, considerado o grande prejudicado pela recalcitrância. A
prisão, aplicada com prudência, é considerada medida de grande praticidade para a efetividade do
processo (GRINOVER, 2001, p. 104).
1 O contempt of court no direito brasileiro. Não há tradução precisa na língua portuguesa para a palavra contempt, retratando
a exata acepção do vocábulo. Às voltas com problema similar, na língua espanhola, a doutrina escudou-se no costume para
traduzi-la como “desacato”.
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Osmar Vieira da Silva
O contempt civil, destinado ao cumprimento das ordens judiciárias, pode ser
direto ou indireto. O direto autoriza o juiz a prender imediatamente o recalcitrante, concedendo-lhe
um prazo para justificar sua conduta. O indireto exige um procedimento incidental que, no contempt
anglo-saxão, obedece aos seguintes requisitos: a) prova da ocorrência da ação ou omissão; b) que
a ordem judiciária determine com clareza a ação ou omissão imposta à parte; c) que a parte seja
adequadamente informada sobre o teor e a existência da ordem judiciária; d) que a ordem judiciária
desrespeitada seja de possível cumprimento. A citação e a oportunidade de ser ouvido são atributos
essenciais do procedimento. Com a citação, a pessoa deve ser informada das condições dentro das
quais o atendimento à ordem judicial resultará na revogação das sanções. Após a apresentação das
razões, o juiz decide, apreciando as provas produzidas, considerando ou não a parte em contempt
e impondo uma sanção condicionada, a incidir no caso de a parte resistir em não cumprir a ordem
desobedecida. Finalmente, a sanção imposta é concretamente aplicada, se o contemptor não cumprir a ordem (GUERRA, 1998, p. 104).
Aumenta o interesse da comunidade jurídica nacional pelo estudo dos
ordenamentos anglo-saxões, na esperança de que, sob sua influência, sejam introduzidos mecanismos processuais mais ágeis e efetivos no direito processual civil pátrio, capazes de “imprimir maior
eficácia ao funcionamento da máquina judiciária e, em termos genéricos, à atividade de composição de litígios” (BARBOSA MOREIRA, 2001, p. 155-156).2
Segundo Patrícia Pizzol, depois de mencionar o “potenciamento” dos poderes
do juiz, introduzido também pelo parágrafo único do art. 14, diz que a doutrina brasileira tem posto
em relevo como se vem verificando uma aproximação entre os sistemas do common law e do civil
law, também porque aquele resguarda os poderes do juiz.3
Nesse contexto insere-se a doutrina do contempt of court. A sua grande importância nos países que a adotam indica a profunda distância – em termos de autoridade e superioridade – entre o papel confiado ao Poder Judiciário no common law, em oposição ao que lhe
atribui o civil law. A sua adoção no direito processual civil brasileiro surge, pois, como algo a ser
alcançado, como uma possível resposta à “crise de autoridade” do Poder Judiciário.
A inobservância de uma ordem (injunction) proferida por um juízo ou tribunal
pode se dar em várias circunstâncias. Pode ocorrer um mero equívoco do jurisdicionado em relação ao significado e extensão do que lhe foi imposto, um descuido ou desatenção no seu cumprimento, ou, ainda, intenção deliberada de descumpri-la e confrontá-la. Para todas essas hipóteses, o
common law coloca à disposição dos juízos e tribunais uma ampla gama de meios e procedimentos
de execução para que a autoridade, o respeito e a dignidade confrontados pelo ato de insubmissão
sejam restaurados.
Os tais meios e procedimentos de execução podem simplesmente assumir um
caráter reparatório e esterilizador, alertando o jurisdicionado de que o ato por ele praticado vai de
encontro à decisão judicial legítima proferida, dando-lhe a chance de purgar sua mora e eliminar o
estado de insubordinação. Esse alerta destina-se a acelerar a submissão do jurisdicionado e vem
normalmente acompanhado de uma sanção temporária, que deve perdurar pelo tempo necessário
de seu convencimento e integral subordinação.
Por outro lado, os meios e procedimentos de execução podem assumir um
caráter punitivo, especialmente diante de atos praticados reiteradas vezes e irreversíveis. Nesses
casos, a sanção aplicável não se destina à modificação de um estado de inadequação comportamental
do jurisdicionado recalcitrante, mas à sua instrução e a dos demais jurisdicionados, das conseqüências danosas de um ato de insubmissão e afronta à justiça.
2 Tem acusado notável interesse, nos últimos tempos, entre os juristas da família ‘romano-germânica’, o interesse pelos
ordenamentos anglo-saxônicos. Na esfera doutrinária, vozes robustas apregoam a conveniência, senão a necessidade, de
redesenhar sistemas processuais, com os olhos fitos em modelos ingleses e sobretudo norte-americanos, mesmo ao preço de
cancelar ou relegar a nível mais modesto o papel de antigas tradições, cultivadas na Europa continental e transmitidas aos
países dela tributários no resto do planeta. Não falta quem deposite na absorção de elementos característicos daquela outra
família uma grande esperança de imprimir maior eficácia ao fundamento da máquina judiciária e, em termos genéricos, à
atividade de composição de litígios”.
3 La dottrina ha messo in relevo come si stia verificando un‘aprossimazione tra i sitemi del common law e del civil law, anche
per quel Che riguarda i poteri del giudice.” (trad. livre)
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Tal qual no civil law, no common law há toda uma ampla gama de meios e
procedimentos distintos de execução de ordens judiciais. Considerando-se que uma série de meios
e procedimentos alternativos de execução de ordens se encontram disponíveis para os tribunais, a
instauração de um processo de contempt of court por descumprimento não se justifica para todos
os casos de inobservância de uma ordem judicial.
Processos de contempt of court por descumprimento resultam mais comumente
da inobservância de uma ordem que, por suas características, somente possa ser cumprida – ou
descumprida – pelo jurisdicionado a quem foi endereçada. Podem ser, ainda, executadas, por meio
de processo de contempt of court por descumprimento, ordens que imponham ao jurisdicionado,
obrigações de fazer ou não fazer – conteúdo positivo ou negativo (BUENO, 2005, p. 133).
A injunction – termo que pode bem ser traduzido por “mandamento judicial” –
é a modalidade mais solene de ordem proferida por um tribunal e os jurisdicionados têm o dever de
observar estritamente os seus termos, cumprindo-os, na forma e no tempo indicados.
Pode acontecer de processos serem suspensos com base em um compromisso
assumido por uma das partes de praticar ou abster-se de praticar um ato em benefício da outra
parte. Esse compromisso tem a mesma força de uma ordem proferida pelo juízo no tribunal. Conseqüentemente, sua violação importa em contempt of court da mesma forma como uma violação
de um mandado judicial (injunction).
Importa ressaltar que, para o processamento do contempt of court por
descumprimento, é preciso demonstrar que uma ordem judicial, que imponha o cumprimento de
obrigação positiva ou negativa “específica”, foi ou está na iminência de ser descumprida. Para
tanto, exige-se uma interpretação estrita e precisa de seus termos, e quando a conduta exigida ou
proibida não puder ser claramente identificada e delimitada a partir dos termos contidos na ordem
judicial, o processo de contempt of court por descumprimento não pode prosperar (BUENO,
2005p. 134).
Não é essencial que a conduta passível de caracterizar a inobservância seja,
especificamente, a da parte a quem a ordem foi dirigida. Quando, por exemplo, a parte no feito for
uma pessoa jurídica, a conduta dos que a representam, na qualidade de diretores ou administradores, deve ser examinada e servirá de base para a caracterização ou não do ato de contempt of
court por descumprimento. O princípio da responsabilidade objetiva, portanto, aplica-se em tais
casos, de modo que a parte obrigada pela ordem é responsável pelas ações ou omissões de qualquer agente seu que esteja a agir dentro do escopo de suas funções ou encargos.
Com relação ao seu papel coercitivo por descumprimento, prossegue Julio César
Bueno que os processos de contempt of court por descumprimento podem ter uma ou ambas as
funções distintas: (a) execução da ordem judicial; e (b) punição por descumprimento. Quando a
pretensão do juízo ou tribunal for compelir o contemnor a executar a ordem, a sanção imposta será
coercitiva. Diferentemente da sanção punitiva, a sanção coercitiva é aplicada não como conseqüência de um determinado ato, mas para provocar um determinado ato; não como conseqüência de
um comportamento humano, mas como o meio necessário para induzir um determinado comportamento.
Segundo Alexander Pekelis, a magnitude de sua pressão é medida não pelo que
foi feito (seja a atrocidade do crime ou outros elementos), mas pela resistência a ser vencida.
Quando a vontade (de desobedecer) do que foi submetido à sanção esmorece, a coerção deve
cessar. O juiz que determina a prisão do contemnor participa de uma luta ativa contra a vontade
deste (do contemnor), e assim que este mude a sua atitude deve ser solto (PEKELIS, 1943, p.
673).4
4 Tradução livre: “The magnitude of this pressure is measured not by what has been done (be it the heinousness of the crime
or other elements) but the resistance to the overcome. Once the will of the person subject to treatment is spent, coercion
ceases. The judge gaoling the reluctant party engages in an active struggle with the will of the latter, and as soon as he
changes his attitude he is freed
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Por fim, considerando-se a variedade de mecanismos de execução disponíveis
para o juízo ou tribunal, em especial os de caráter sub-rogatório, tem-se como desnecessária ou
inadequada a aplicação da doutrina do contempt of court para obrigar o jurisdicionado ao cumprimento de todo e qualquer caso de descumprimento. É princípio básico da doutrina do contempt of
court que a função coerciva da sanção por contempt of court por descumprimento não deve ser
empregada para executar decisões judiciais quando existem outros meios disponíveis para tanto, ou
o ato de contempt of court por descumprimento, ao mesmo tempo possa ser enquadrado e sancionado por outro meio colocado à disposição do juízo ou tribunal.
Para a responsabilização do contemnor e a aplicação de sanção, alguns requisitos são necessários. Primeiramente, é indispensável que haja uma ordem, proferida pela Corte,
que seja clara e plenamente inteligível, e que especificamente determine a uma das partes no
processo que faça ou se abstenha de fazer alguma coisa. A ordem não pode ser ambígua e
também não pode haver dúvida de que o contemnor foi adequadamente cientificado de seus
termos. Ademais, deve haver prova inequívoca do descumprimento da ordem pelo contemnor ou
demonstração da forte plausibilidade de sua iminência. Isso tudo para que o contemnor não logre
êxito ao alegar ampla ignorância ou desconhecimento de todos os termos da ordem proferida
(HAZARD JR., 1993, p. 203).
As sanções aplicáveis aos contempt of court por descumprimento, como meio
executivo impróprio, de modo geral apresentam um espírito orientador e disciplinador, conexo à
idéia do pleno respeito às atividade de administração da justiça. Objetivam, assim, induzir ou compelir o contemnor a um determinado comportamento perante a Corte, ativo ou passivo, a fim de
que a pretensão à adequada prestação jurisdicional seja, a final, satisfeita ((HAZARD JR., 1993, p.
202-203).5
2.2 O Contempt of Court no Brasil
Com o advento da Lei 10358/2001, a reforma do art. 14 do CPC implantou um
eficaz mecanismo visando a coibir o contempt of court, genericamente entendido como desacato
à ordem judicial.
Em profundo artigo, afirma Luiz Rodrigues Wambier que, originariamente, a
regra do art. 14 versava apenas os deveres das partes e seus procuradores. Com a reforma,
ocorreu a inserção do parágrafo único, em que foi implantada no sistema processual brasileiro
figura até então desconhecida. Trata-se da figura do ”responsável” pelo descumprimento de ordem processual. Por outro lado, houve também a inserção de novo inciso (V), no art. 14, contendo
expressa previsão do dever de cumprir com exatidão os provimentos mandamentais e não criar
embaraços à efetivação de provimentos judiciais, de natureza antecipatória ou final. Em razão da
inclusão do referido dispositivo legal, os deveres de boa conduta processual foram estendidos para
além das partes e de seus procuradores, alcançando todos aqueles que de qualquer forma participam do processo (WAMBIER, 2005, p. 36).
Vai ainda mais além João Batista Lopes, ao asseverar a respeito da questão da
desobediência às ordens judiciais, tratando especificamente da regra dos arts. 600 e 601, que já é
tempo de se cogitar da introdução, entre nós, de medida semelhante ao contempt of court, para
permitir, nesses casos, a prisão civil por atentado à dignidade da justiça. O autor também defende
a constitucionalidade da medida e afirma que sua efetiva aplicação depende do atendimento ao
princípio do contraditório.6
5 Não cabe contempt of court para a efetivação de ordens de pagamento de valor. Tais ordens criam uma responsabilidade para
o obrigado, que deverá ser satisfeita pelos modos próprios de execução.
6 Nem se objete que a prisão estaria inquinada de inconstitucionalidade. É que a Lei Máxima proíbe, tão-somente, a prisão por
dívida; não a resultante de atentado à dignidade da Justiça. Claro está que a medida seria precedida de intimação pessoal do
devedor para dar explicações ao juiz ou defender-se da imputação formulada pelo credor, com o que se atenderá à garantia
do contraditório.
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O desenvolvimento da sociedade brasileira, todavia, sensivelmente perceptível
nas últimas décadas, até mesmo em razão da inserção de novos direitos e da disseminação da
informação, fruto próximo da democracia, fez com que a prestação de tutela jurisdicional
descompromissada, isto é, prestada pelo Estado sem atributos ou mecanismos capazes de garantir
sua real operação no plano dos fatos, seja tida, em nossos dias, como muito próxima de sua
inexistência, pois o que se quer garantir é o direito à obtenção de provimentos que sejam capazes
de promover, nos planos empírico e do direito, as alterações requeridas pelas partes e garantidas
pelo sistema jurídico. Não mais basta – repita-se – a mera tutela formal dos direitos (WAMBIER,
2005, p.38).
E o legislador já deu o primeiro passo (a multa - o segundo deverá ser a prisão)
na direção de que a partir da edição da Lei 10.358/2001, não mais se admite a ineficácia do
provimento judicial, causada por descumprimento de provimentos mandamentais e embaraços à
efetivação de provimentos judiciais que se constituam em desacato à ordem judicial (contempt of
court).
3 DESCUMPRIMENTO DOS PROVIMENTOS MANDAMENTAIS
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Ao falar em provimentos mandamentais, o novo inciso reporta-se à disciplina
da execução das obrigações específicas, contida nos arts. 461 e 461-A; provimentos de natureza
antecipatória, disciplinados pelos art. 273 e; cumprimento da sentença, de acordo com o art. 475.
Sendo os arts. 273 e 461 destinados a acelerar os resultados práticos do processo, é natural que todo empenho faça o legislador para que esses próprios dispositivos sejam
capazes de produzir tais resultados, independentemente da boa - vontade do obrigado ou de quem
quer que seja e até mesmo mediante punição a quem se opuser à sua efetivação. Daí os deveres
éticos explicitados no inc. V do art. 14, acompanhados de grave sanção ao seu descumprimento
(art 14, par.).
Segundo Candido Rangel Dinamarco, o novo texto não fala de sentenças
mandamentais, antecipatórias ou finais, mas em provimentos mandamentais antecipatórios ou
finais. São provimentos em direito processual, todos os atos portadores de uma vontade do
Estado-Juiz, às vezes acompanhado de alguma determinação no sentido de realizar ou omitir
uma conduta (DINAMARCO, 2002, p. 488). Dada essa amplitude do gênero próximo em que se
incluem as sentenças judiciais (provimentos), o inc. V do art. 14 do Código do Processo Civil
abrange não só as sentenças, mas também os demais provimentos que o juiz emitir, e que tenham
natureza mandamental (sentenças, decisões interlocutórias ou mesmo despachos)
(DINAMARCO, 2002, p. 60).
Asseverando o autor, que o dever de não embaraçar se aplica a todos,
assim afirma:
O dever de cumprir, obviamente, é exclusivo do sujeito que for titular da
obrigação de fazer ou de entregar, que haja sido objeto de determinação
judicial. O de não embaraçar tem eficácia erga ommes. Infringe o inc. V não
apenas aquele que, tendo o dever de dar efetividade ao provimento ou o de
contribuir para sua efetivação, deixa de fazê-lo ou cria dificuldades ilegítimas à sua efetivação; infringe-o também quem quer que, mesmo não tendo
dever algum relacionado com essa efetivação, interfere no iter de sua
produção mediante condutas que a impossibilitem ou dificultem
(DINAMARCO, 2002, p. 60).
Não cumprir o decisório de uma sentença condenatória comum, como a que
impõe um pagamento em dinheiro, significa somente permanecer em situação civil de inadimplemento,
sujeitando-se a futura execução e, talvez, a algum agravamento pecuniário da obrigação.
Não cumprir um provimento mandamental, no entanto, é “desobedecer” – e
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toda desobediência a atos estatais comporta a reação da ordem jurídica e dos agentes do poder
público (no caso, o Estado-Juiz), seja no sentido de punir o infrator, seja para coagi-lo legitimamente
a cumprir.
Provimentos finais, no processo de conhecimento, são as sentenças. Provimentos antecipatórios são atos decisórios com os quais o juiz oferece, em caráter provisório, no
todo ou em parte, os resultados práticos que a parte espera obter no processo. Nem toda sentença
e nem toda decisão interlocutória pode, contudo, ser considerada como de cumprimento obrigatório
e coativo por parte da parte vencida, para os fins desse dispositivo e das sanções cominadas à sua
transgressão. Nem mesmo toda sentença de mérito é portadora de um comando tão enérgico,
como são as mandamentais. É o caso das sentenças que condenam a pagar dinheiro, das constitutivas
em geral e das que julgam improcedente a demanda do autor.
Quanto às “condenações de conteúdo pecuniário”, o mero descumprimento
não passa da continuação de um inadimplemento que já vinha desde antes e, uma vez proferida a
condenação, passa a ser sancionado com os atos inerentes à execução por quantia certa – e não
mediante repressões ou as pressões psicológicas inerentes ao art. 461 e seus parágrafos.
O que se está falando é do dever de cumprir. É claro que, com relação a essas
sentenças, existe o dever de não criar embaraços, que hipoteticamente pode ser transgredido
mediante a subtração ou ocultação dos autos pelo devedor ou seu patrono, pela retenção em
cartório e sonegação ao advogado do credor, pela omissão do empregador do obrigado por pensões
alimentícias (não efetuando as retenções determinadas pelo juiz), etc. As condutas desleais e desrespeitosas ao Poder Judiciário, quando cometidas pelo devedor ou seu patrono no curso da execução, incidem nas sanções cominadas pelo Código de Processo Civil aos atos atentatórios à dignidade da Justiça, tipificados em seu art. 600.
Ocorre que, embora a primeira parte do § 1º do art. 656 do CPC, inserido pela
Lei 11.382/2006, diga que, pelo descumprimento do art. 600, IV, aplica-se a pena do 601, a sua
segunda parte faz referência expressa à aplicação do art. 14, § único, na hipótese do executado
que cause embaraço à realização da penhora e, quiçá, à efetivação dos provimentos judiciais. Por
idêntica razão, defende-se a aplicação da parte final do inciso V do art. 14 no caso do empresário
que, de alguma forma, abuse no exercício do direito da personalidade jurídica, escondendo os bens
da empresa em seu nome próprio e fazendo incidir o art. 50, do cc – desconsideração.
Portanto, o raciocínio de Dinamarco acrescenta que, por força do enunciado na
segunda parte do § 1º do art. 656, não se deve criar embaraços apenas às sentenças, sejam elas de
qual natureza forem, mas também a quaisquer outros provimentos judiciais (segundo o autor, tratase de gênero onde também se incluem as sentenças).
A sentença de condenação não sujeita o devedor a uma ordem do juiz, que
como autoridade estatal determina seu adimplemento. A condenação – conforme adverte Montesano
– não transforma os deveres privados em sujeição à autoridade estatal, ainda que abra oportunidade à utilização de instrumentos de direito público para a satisfação dos direitos subjetivos; o devedor condenado continua apenas civilmente obrigado perante o credor, e não vinculado a uma ordem
do juiz (MARINONI, 2000, p. 354).
Marinoni (2000, p. 356) espanca qualquer dúvida que possa existir entre a essência da sentença mandamental e condenatória que meramente declara, ao afirmar que a sentença seria condenatória apenas porque impõe uma prestação. Uma mera “sentença de prestação”,
entretanto, não pode ser confundida com a sentença condenatória, que é indissociavelmente ligada
à força do Estado. Portanto, a sentença que impõe uma prestação, mas não se liga à “sanção” é
meramente declaratória.
Note-se que a diferença reside na força que se empresta à obediência da ordem de mando. Para Marinoni, uma sentença não é mandamental apenas porque manda, ou ordena mediante mandado. A sentença que “ordena”, e que pode dar origem a um mandado, mas não
pode ser executada mediante meios de coerção suficientes, não pode ser classificada como
mandamental. A mandamentalidade não está na ordem, ou no mandado, mas na ordem conjugada
à força que se empresta à sentença, admitindo-se o uso de medidas de coerção para forçar o
devedor a adimplir. Só há sentido na ordem quando a ela se empresta força coercitiva; caso contrário, a ordem é mera declaração. Da mesma forma que a condenação só é condenação porque
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aplica a “sanção”, a sentença mandamental somente é mandamental porque há a coerção
(MARINONI, 2000, p. 356).
Além disso, ao tratar da questão no plano estrutural e sistemático, argumentou
Mandrioli que não há execução forçada se não há o superamento de um obstáculo e a invasão
coativa da esfera de autonomia do devedor (MARINONI, 2000, p. 357).
Para Marinoni (2000, p. 358), a sentença condenatória abre oportunidade para
a execução, mas não executa ou manda; a sentença mandamental manda que se cumpra a prestação sob pena de multa. Na condenação há apenas condenação ao adimplemento, criando-se os
pressupostos para a execução forçada. Na sentença mandamental há ordem para que se cumpra
sob pena de multa; há um “mandado”, que não se confunde com o mandado que será expedido, já
que o juiz “manda” que se cumpra e não apenas exorta ao cumprimento, fixando a base para
execução forçada. Na sentença mandamental não há, note-se bem, apenas exortação ao cumprimento; e há ordem de adimplemento que não é mera ordem, mas ordem atrelada à coerção. Uma
sentença que ordena sob pena de multa já usa a força do Estado, ao passo que a sentença que
condena abre oportunidade para o uso dessa força.
É de se notar que, da mesma forma que tais conceitos se aplicam à sentença
mandamental, o inciso V, do art. 14, se refere aos provimentos mandamentais, aos quais também se
deve aplicar os instrumentos de efetivação do direito material contidos no parágrafo único do art.
14, do CPC, bem como e principalmente, à efetivação dos provimentos judiciais.
Quem pretende ver inibida a prática de um ilícito pede ordem sob pena de multa
e não apenas mandado. O que varia do mandamento para a condenação é a natureza do provimento; o provimento condenatório condena ao adimplemento, criando o pressuposto para a execução
forçada, ao passo que o provimento mandamental ordena sob pena de multa. O critério que se
permite definir a mandamentalidade é meramente processual. O que define a mandamentalidade é
a possibilidade de se requerer ordem sob pena de multa (MARINONI, 2000, p. 359).
Na busca de uma definição da decisão pretendida pelo litigante, sempre se
observou o pedido imediato, porém, lembram Luiz Rodrigues Wambier e Teresa Arruda Alvim
Wambier que a noção de sentença mandamental não se refere à espécie de pedido do autor, mas
sim ao “fato de a providência pleiteada prestar-se a proporcionar uma garantia in natura ao
impetrante” (WAMBIER, 2005, p. 25).7
A principal característica dessa espécie de sentença é a ordem nela contida.
Assim, o juiz não condena simplesmente ao cumprimento de uma obrigação, mas expede um mandado com uma ordem para que seja cumprida sua determinação.
Para Ovidio Batista da Silva (2000, p. 336),
a ação mandamental tem por fim obter, como eficácia preponderante da respectiva sentença de procedência, que o juiz emita uma ordem a ser observada pelo demandado, em vez de limitar-se a condená-lo a fazer ou não fazer
alguma coisa. É da essência, portanto, da ação mandamental que a sentença
que lhe reconheça a procedência contenha uma ordem para que se expeça
um mandado. Daí a designação de sentença mandamental. Nesse tipo de
sentença, o juiz ordena, e não simplesmente condena.
Segundo observa Daniel Assumpção Neves (2003, p. 51), em virtude de tal
característica, decorrem dois importantes efeitos: O primeiro é a absoluta desnecessidade de ação
de execução autônoma para efetivação da decisão. A satisfação do vencedor dá-se de forma
imediata já com a expedição do mandado contendo a ordem para o cumprimento da obrigação, sem
a necessidade de qualquer formação posterior de nova relação processual, nova citação, nova
defesa, etc. O segundo, por ser uma ordem do juiz, e não uma mera condenação, o descumprimento
é considerado como desobediência ao ato do juiz, autoridade estatal. Dessa forma, poder-se-ia até
tipificar tal conduta penalmente.
7 Breves comentários à 2ª Fase da Reforma do Código de Processo Civil..
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Se ordens existem é para serem cumpridas, não necessitando haver norma
expressa para demonstrar tal obviedade. O problema é que, embora óbvia a obrigatoriedade de
cumprimento das ordens judiciais, verifica-se muito desrespeito por parte daqueles que deveriam
cumpri-las no caso concreto. Assim, diz-se o óbvio para prever a tal dever uma sanção, que infelizmente parece ser, nos tempos atuais, o único meio – e nem sempre eficaz – de evitar o absurdo
desrespeito às ordens judiciais (NEVES, 2003, p. 52).
4 OS EMBARAÇOS À EFETIVAÇÃO DE PROVIMENTOS JUDICIAIS
Nos exatos termos do contido no par. único do art. 14, todo aquele que de
algum modo atue no processo poderá ser declarado responsável pela frustração (embaraço) integral ou parcial do resultado da prestação jurisdicional, vale dizer, pelo desacato à decisão judicial
(ou, se preferirmos, pelo contempt of court).
O texto legal não se refere exclusivamente ao comportamento das partes, de
seus advogados, dos auxiliares do juízo, etc., mas, expressamente, faz referência a “todos aqueles
que de alguma forma participem do processo”.
Segundo Luiz Rodrigues Wambier, estarão causando embaraço à efetivação
dos provimentos jurisdicionais todos os atos ou omissões, culposos ou não, que criem dificuldades
de qualquer espécie ao alcance do resultado prático a que está vocacionado o provimento
jurisdicional. A responsabilidade prevista no art. 14 se assemelha à responsabilidade objetiva, eis
que prescinde, para sua declaração, da presença de culpa. Verificando o embaraço à efetivação do
provimento, a norma poderá ser aplicada ao responsável, sem a necessidade da verificação da
presença de culpa em seu agir (WAMBIER, 2005, p. 4).
Recentemente, mais precisamente em 20 de janeiro de 2007, entrou em vigor a
Lei 11.382. De acordo com o § 1º do art. 656 do CPC, é dever do executado abster-se de qualquer
atitude que dificulte ou embarace a realização da penhora, nos procedimentos de execução de
título extrajudicial, sob as penas do art. 14, parágrafo único.8
Tal previsão vem reforçar o comando previsto na parte final no inciso V do art.
14 do CPC, o qual também prescreve que é dever das partes e de todos aqueles que de qualquer
forma participam do processo não criar embaraços à efetivação de provimentos judiciais, de natureza antecipatória ou final, sob as penas previstas no parágrafo único do mesmo artigo.
Segundo Fredie Didier (2003, p. 08), a distinção entre provimentos antecipatório
e final, como é intuitivo, não diz respeito ao conteúdo que encerram, pois aquele visa exatamente
antecipar efeitos somente obtidos após este; o provimento antecipatório, portanto, abrevia o tempo
para a obtenção de efeitos materiais inicialmente alcançáveis apenas com o provimento final –
sentença ou acórdão. Aquele será fundado, no mais das vezes, em cognição sumária; este, em
exauriente.
Tutela final é aquilo que se pretende do Poder Judiciário – tutela jurisdicional,
resultado prático favorável, obtenível pela técnica condenatória, declaratória, constitutiva,
mandamental ou executiva, alcançada no sistema brasileiro, em regra, após o trânsito em julgado
da sentença. Tutela antecipatória é aquela que concede à parte o resultado prático que ele procura
obter da tutela final, antes do momento inicialmente projetado para tanto (JORGE, 2005, p. 08).
Segundo Marinoni, a tutela antecipatória contrapõe-se à tutela cautelar, que
também não se enquadra no conceito de tutela final, porquanto visa dar a esta segurança – embora
se possa construir a idéia de que a tutela cautelar é a tutela final do processo cautelar. A tutela
cautelar, ainda que provisória e fundada em cognição sumária – semelhanças que mantém com a
tutela antecipatória, dela se diferencia; enquanto a cautelar apenas o garante, a tutela antecipatória
atribui o resultado (ou parte dele) útil do processo; uma não é satisfativa, a outra sim (MARINONI,
1998, p. 88-110).
8 § 1º, do art. 656, do CPC (Lei 11.382 de 06/12/2006: É dever do executado (art. 600), no prazo fixado pelo juiz, indicar onde
se encontram os bens sujeitos à execução, exibir a prova de sua propriedade e, se for o caso, certidão negativa de ônus, bem
como abster-se de qualquer atitude que dificulte ou embarace a realização da penhora (art. 14, parágrafo único).
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Entende-se, como Fredie Didier (2003, p. 09), que o inciso V do art. 14 também
se aplica aos provimentos cautelares, pela identidade manifesta da ratio, sob pena de se afirmar
que uma decisão judicial em sede cautelar é menos digna de respeito do que uma decisão em
processo de conhecimento ou de execução. A permissão da fungibilidade das medidas antecipatória
e cautelar confirma a tese ora defendida. Ressalte-se, ademais, que as providências cautelares são
tomadas, geralmente, por meio de provimentos mandamentais ou executivos.
Como o inciso V do art. 14 estabelece, na sua segunda parte, o dever de não embaraçar
o cumprimento de provimentos judiciais finais e antecipatórios, verifica-se a postura ativa de impedir que os provimentos tenham eficácia, sejam eles finais ou proferidos durante o trâmite processual.
Preferiu o legislador, pelo menos à primeira vista, não limitar a natureza dos pronunciamentos e nem seus sujeitos passivos no que se refere à não criação de obstáculos à efetivação
dos pronunciamentos do juiz. Por se tratar de dever de caráter negativo, o dever de não embaraçar o cumprimento dos pronunciamentos judiciais é amplo e irrestrito, atingindo a todos, com verdadeiro efeito erga omnes.
Fala o inciso V do art. 14 em pronunciamentos judiciais de natureza antecipatória e final. Como se percebe, foge-se da classificação, tão criticada, levada a efeito pelo artigo 162 do
Código de Processo Civil. Não menciona o dispositivo de lei se é despacho, decisão
interlocutória ou sentença, deixando margem ao operador a constatação de quais espécies de
pronunciamentos do juiz seriam esses de natureza antecipatória e final. Parece que quanto ao
pronunciamento de natureza final não surge qualquer dúvida, tratando-se de sentença, ou ainda
100
acórdão, decisão colegiada do Tribunal.
O legislador ao mencionar os efeitos antecipatórios, estaria limitando-se aos provimentos
disciplinados pelos artigos 273 e 461 do Código de Processo Civil, e alguns procedimentos especiais (liminar). Nesses casos, o provimento antecipa faticamente os efeitos do provimento final e
definitivo.
Segundo Daniel Assumpção Neves (2003, p. 36), sempre que concedida uma liminar ou
uma tutela antecipada, tratar-se-a de provimento de natureza antecipatória. No processo
cautelar, a única diferença é que a antecipação não é dos efeitos que o reconhecimento do direito material do autor geraria, até mesmo porque esse não se discute nem se decide em sede
cautelar. Mas é inegável que a liminar antecipa os efeitos provenientes da sentença cautelar,
sendo, portanto, antecipatória da tutela cautelar.
Afinal, enquanto as liminares em geral entregam ao autor a fruição de um direito material que só virá de forma definitiva na sentença, a liminar da cautelar entrega ao requerente a
proteção cautelar de forma antecipada, garantindo-se assim a eficácia do resultado do processo
principal. Assim sendo, a tutela cautelar pode ser concedida de duas formas: provimento de natureza final (sentença cautelar) e provimento de natureza antecipatória (liminar).
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5 A MULTA DO PARÁGRAFO ÚNICO DO ARTIGO 14 DO CPC
O Código de Processo Civil prevê alguns atos considerados como litigância de má-fé ou
atentatórios à dignidade da justiça: deduzir pretensão ou defesa contra texto expresso de lei ou
fato incontroverso (art. 17, I); alterar a verdade dos fatos (art. 17, II); usar o processo para conseguir objetivo ilegal (art. 17, III); proceder de modo temerário em qualquer incidente ou ato do
processo (art. 17, V); fraudar a execução (art. 600, I); opor-se maliciosamente, à execução, empregando ardis e meios artificiosos (art. 600, II).
Tais deveres – das partes e de seus procuradores - sempre tiveram como sanção o pagamento de multa pecuniária, ou então a responsabilização pelos danos causados pela atitude
abusiva, conforme determinam os artigos 18 e 601 do CPC. Os valores dessas sanções são todos revertidos em favor da parte contrária, supostamente prejudicada com o ato considerado de
má-fé. Esquecia-se que o Estado, como responsável pela entrega de uma prestação jurisdicional
de qualidade, também era seriamente prejudicado com tais atos, vendo seu poder enfraquecido
perante os jurisdicionados.
Com o inciso V do art. 14, o atentado ao exercício da jurisdição permite que a multa
reverta para os cofres da União, do Estado ou do Distrito Federal. Ressalte-se que, se a multa
não for quitada no prazo dado pelo juiz, será incluída na Dívida Ativa do Estado ou da União,
dependendo da demanda ter seu trâmite perante a Justiça Estadual ou Federal, o que caracteriza
desde já prejuízo ao infrator, ainda que a Fazenda não ingresse imediatamente com a ação executiva.
5.1 Os Destinatários e a Exclusão dos Advogados
Assim preceituam o art. 14, V e seu parágrafo único do Código de Processo
Civil:
Art. 14 (caput): São deveres das partes e de todos aqueles que de qualquer
forma participam do processo:
...omissis
V - : cumprir com exatidão os provimentos mandamentais e não criar embaraços à efetivação de provimentos judiciais, de natureza antecipatória ou final.
Parágrafo único. Ressalvados os advogados que se sujeitam exclusivamente aos estatutos da OAB, a violação do disposto no inciso V deste artigo
constitui ato atentatório ao exercício da jurisdição, podendo o juiz, sem prejuízo das sanções criminais, civis e processuais cabíveis, aplicar ao responsável multa em montante a ser fixado de acordo com a gravidade da conduta
e não superior a 20% (vinte por cento) do valor da causa; não sendo paga no
prazo estabelecido, contado do trânsito em julgado da decisão final da causa, a multa será inscrita sempre como dívida ativa da União ou do Estado.
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Do enunciado do caput, verifica-se uma responsabilidade processual que
abrange não só as partes, assistentes e intervenientes em geral, como também seus advogados,
o próprio juiz, o Ministério Público, a Fazenda Pública, os auxiliares da justiça e as testemunhas
– dos quais, sem exceção, exigem-se comportamentos conforme a lealdade e a boa-fé, fiéis à
verdade dos fatos, sem abusar de faculdades ou poderes, etc. Mas o enunciado legal que à
primeira vista parece depender apenas de uma singela exegese literal, suscita no mínimo três
questões polêmicas.
A primeira questão que se coloca e que foi profundamente debatida por Luiz
Fernando Bellinetti e Elmer da Silva Marques (2006, p. 72) destinatário da multa: esta deverá
incidir sobre a própria Fazenda Pública, isto é, sobre a pessoa jurídica de direito público, ou deverá
incidir sobre o servidor público, aqui incluídas as autoridades, inclusive as que são titulares de
cargos eletivos?
Ocorre que o cumprimento da ordem emitida não está, na maioria absoluta dos
casos, afeito à discricionariedade de um único servidor público: este pode depender de atos alheios
à sua vontade, como a atuação de um superior hierárquico, da aprovação de medidas pelo Poder
Legislativo etc.
Segundo Luiz Fernando Bellinetti (2006, p. 84) de ser resolvida da seguinte
forma: quando se tratar de ordem a ser cumprida por uma única pessoa, ou, em outras palavras,
que dependa da atuação de um único servidor público, a multa deve incidir sobre essa pessoa. Isto
é mais facilmente detectável no mandado de segurança, que é movido contra autoridade pública
específica, que esteja atuando de forma a praticar atos ilícitos.
Se a multa recaísse única e exclusivamente sobre a pessoa jurídica de direito
público, poderia incutir na autoridade ou servidor público o entendimento de que não seria responsável pelo pagamento da multa.
Araken de Assis (2003, p.30) bem demonstrou o caráter psicológico da multa
sobre os servidores públicos:
[...] no caso de descumprimento à ordem judicial, travestida de provimento
mandamental (art. 14, V, do CPC), o servidor e o agente públicos sujeitam-se
à pena do art. 14, parágrafo único. A sanção se dirige ao ‘destinatário precípuo
da ordem’. Ora, tais pessoas, cujo comportamento se subordina ao princípio
da legalidade (art. 37, caput, da CF/88), se revelam suscetíveis à ameaça da
multa.É pouco provável que desafiem o órgão judicial, arrostando a conseqüência de se verem apenados. Razões individuais, a exemplo da promoção
iminente e o amor próprio, tornam o servidor apegado à rotina inflexível do
cumprimento espontâneo. Depois, transitada em julgado a decisão, a inscrição da multa como dívida ativa do Estado ou União, e, em seguida, a execução da respectiva certidão, constituem atos de competência de outros servidores, nada propensos a deixar de praticar atos de ofício para eximir colegas
desconhecidos, ainda mais sob fiscalização sempre aterrorizante do Ministério Público. Assim, a ameaça é real e efetiva, atingindo os objetivos da
técnica da pressão psicológica.
Segundo Luiz Guilherme Marinoni, caso a multa incidir sobre a pessoa jurídica
de direito público, apenas o seu patrimônio poderá responder pelo não-cumprimento da decisão.
Entretanto, não há cabimento na multa recair sobre o patrimônio da pessoa jurídica, se a vontade
responsável pelo não cumprimento da decisão é exteriorizada por determinado agente público. Não
há procedência no argumento de que a autoridade pública não pode ser obrigada a pagar a multa
derivada de ação em que foi parte apenas a pessoa jurídica. É que essa multa somente poderá ser
imposta se a autoridade pública, que exterioriza a vontade da pessoa jurídica, não der atendimento
à decisão. Note-se que a multa somente pode ser exigida da própria autoridade que tinha capacidade para atender à decisão e não a cumpriu (MARINONI, 2004, p. 662).
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A obediência às decisões judiciais é imperativo para a mantença do Estado
Democrático de Direito e a ordem pública e, ademais, se a prisão por descumprimento de ordem
judicial recai sobre a autoridade pública que descumpriu a ordem, com maior razão a multa pecuniária
também deverá recair sobre a autoridade. Vale, aqui, o conhecido adágio de que quem pode mais,
pode menos.9
Em sentido semelhante, também proferido em ação de revisão de pensão, o
Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul foi expresso ao determinar que “as penalidades previstas
na legislação, na hipótese de descumprimento de ordem, recairá [sic] sobre o servidor público que
não lhe der cumprimento: tratando-se de sentença mandamental dirigida contra servidor público,
eventual desobediência sujeita-o às penalidades previstas na legislação”.10
Segundo Bellinetti e Elmer Marques, se a prisão por descumprimento de ordem recai sobre a pessoa da autoridade ou servidor público, igualmente a multa deverá incidir
sobre a pessoa física que, por culpa sua, não deu cumprimento à ordem judicial. O fato de a
autoridade ou servidor público não ser parte do processo não a impede de ser responsabilizada pelo
não cumprimento da ordem advinda do processo que não atua como parte. Em primeiro lugar,
porque deve a autoridade ou servidor público cumprir a ordem judicial na medida em que atua
como agente da pessoa jurídica de direito público. Em segundo lugar, agindo a autoridade ou servidor público com culpa (lato sensu), e causando prejuízo ao Erário, deve ser responsabilizada por
seus atos, nos termos do art. 37, § 6º da CF/88. Trata-se de situação análoga à que consta no art.
362 do CPC, que prevê a emissão de ordem a terceiro para que exiba documentos necessários em
processo no qual não atua como parte, havendo previsão, inclusive, de responsabilidade criminal
(BELLINETTI, 2006, p. 88).
A segunda questão advém da polêmica para se saber se a multa pode ser
aplicada ao juiz. É interessante a idéia de Tereza Wambier (2002, p. 35), segundo a qual, “estão
incluídos nos rigores da nova regra os magistrados que, por qualquer motivo, dificultem, por exemplo, o cumprimento de cartas de ordem ou precatórias, desde que sua conduta seja determinante
para o esvaziamento do resultado concreto do provimento judicial”, porém, acredita ser muito
difícil, do ponto de vista prático, dar aplicação tão ampla a essa punição, afinal, quem aplicaria a
sanção se o autuado preside o processo?
A terceira polêmica reside na expressa exclusão dos advogados, pois, enquanto
tramitava no Congresso Nacional, foi alterada a proposta de redação do parágrafo único do art. 14.
A redação anteriormente sugerida, mais lacônica, permitia que se vislumbrasse a sua incidência
também para punir a conduta do advogado.
Para Fredie Didier Jr. (2003, p. 02), a redação do parágrafo único do art. 14 do
CPC apenas aparentemente exclui os procuradores da incidência do referido dispositivo. Trata-se
de falsa impressão. A um, porquanto a menção a tantos quantos participem do processo seja
genérica o suficiente para englobar, também, os causídicos; a dois, porque o título do capítulo
permanece o mesmo: “Dos deveres das partes e dos seus procuradores”. A referência aos advogados desapareceu porque se tornou desnecessária com a inclusão desta nova parte final do caput.
O que o autor quer dizer é que apenas se aplicam os quatro primeiros incisos
aos advogados, visto que o parágrafo único apenas os exclui da incidência da multa com relação
aos fatos previstos no inciso V.
9 Acórdão ou sentença transitada em julgado. Parcelas posteriores. Pagamento. Caráter mandamental da decisão. Desobediência. Prisão. Possibilidade. A decisão judicial de revisão de pensão é mandamental no que atina com os pagamentos das
parcelas posteriores ao transito em julgado. Precedentes do STJ. O não-pagamento importa em desobediência à ordem
judicial, pois implantar e não pagar e como não-implantar. Servidor ou agente público é passível de sanção pelo crime de
desobediência à ordem judicial. Precedentes do STJ. A obediência às decisões judiciais é imperativo para a mantença do
Estado Democrático de Direito e a ordem pública. (TJRS – Ag. Reg. 70002992162 – rel. Des. Adão Sérgio do Nascimento
Cassiano – j. 24.04.2002). No mesmo sentido: Direito processual penal. Denúncia contra prefeito municipal. Imputação de
crime de responsabilidade. Descumprimento imotivado de ordem judicial. Fatos descritos. Subsunção ao tipo penal indicado.
Denúncia formalmente perfeita. Ordem judicial contida em liminar de mandado de segurança. Indicadas as provas documentais comprobatórias da intimação judicial e do teor da ordem nela contida. Inocorrência de qualquer das hipóteses de rejeição
da denúncia (art. 43/CPP). Inexistência de qualquer das causas de extinção de punibilidade. Afastadas as justificativas
apresentadas na resposta do denunciado. Não demonstrada a entrega direta ao vereador impetrante dos documentos cuja
juntada aos autos foi determinada. Denuncia recebida. Ulterior prosseguimento do feito nos termos do art. 7. E segs. Da lei
n. 8.038/1990. (TJPR, Ac. 16761, Proc. 0152569-9, rel. Des. Luiz Mateus de Lima, 2ª Câm. Crim., j. 16.09.2004) (nossos
grifos)
10 TJRS ApCív e Reex. Nec. 70002763704, 2ª Câm. Cív., rel. Des. Maria Isabel de Azevedo Souza, j. 12.09.2001.
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Sugere Tereza Wambier (2002, p. 19) que o título do capítulo deveria ser alterado para “Dos deveres dos participantes do processo”.
Leciona Tucci (p. 25) que a falta profissional grave, inclusive aquela passível
de ser emoldurada nos quadrantes do novo art. 14, quando detectada pelo magistrado, deve ser
comunicada à Ordem dos Advogados do Brasil para as devidas providências. Cita como exemplo
a regra do art. 196 do CPC, que se apresenta, nesse particular, clara e precisa, ao dispor ser: “...
lícito a qualquer interessado cobrar os autos do advogado que exceder o prazo legal. Se, intimado,
não os devolver dentro em 24 (vinte e quatro) horas, perderá o direito à vista fora do cartório e
incorrerá em multa, correspondente à metade do salário mínimo vigente na sede juízo. Apurada a
falta, o juiz comunicará o fato à seção local da Ordem dos Advogados do Brasil, para o procedimento disciplinar e imposição da multa” (TUCCI, 2002, p. 25).
O art. 88 do estatuto processual italiano assevera que, diante de atos de má-fé
processual, compete ao juiz apenas informar aos órgãos administrativos aos quais estão subordinados os advogados para que a estas instâncias caiba aplicar eventuais sanções disciplinares.11
De acordo com José Rogério Cruz e Tucci (2002, p. 27), inseridos no mesmo
plano hierárquico, o advogado e o juiz jamais devem externar, na prática do respectivo ofício,
qualquer ressentimento pessoal. Todavia, o advogado e o juiz, que são homens como quaisquer
outros, têm sentimentos profundos. Não são raras as ocorrências, em época contemporânea, que
revelam as dificuldades que emergem do relacionamento advogado-juiz. É por essa razão que se
justifica plenamente a exceção atinente aos advogados, uma vez que, nas mãos de juízes rancorosos, a inovação legislativa, se lhe fosse aplicável, acabaria sendo um instrumento de ameaça e de
constrangimento para o livre exercício da advocacia. O ato decisório de índole jurisdicional, como
emanação do poder estatal de que se reveste o juiz, constitui, portanto, instrumento deveras perigoso quando conspurcada, por qualquer motivo de ordem material ou espiritual, a imparcialidade que
necessariamente deve exornar a administração da justiça.
Segundo Dinamarco (2003, p. 68), a emenda que fizeram no texto original, que
se associa à expressa imunização dos advogados à sanção cominada no novo parágrafo do art. 14,
teve o nítido intuito de deixá-los também a salvo de toda disciplina ética processual, contida no
Código de Processo Civil, e do controle judicial de possíveis infrações. Essa é, porém, uma arbitrariedade que só pela lógica do absurdo poderia prevalecer. Chegaria a ser inconstitucional dispensálos de toda carga ética, ou de parte dela, somente em nome de uma independência funcional que
deve ter limites. Pelo teor explícito e claro das primeiras palavras do parágrafo do art. 14, o advogado não fica sujeito à multa ali cominada, mas a lógica do razoável manda que ele fique sujeito a
todos os deveres elencados no capítulo e à responsabilidade por litigância de má-fé, nos termos dos
art. 16 e 18 do código de Processo Civil.
Para Fredie Didier Jr. (2003, p. 16-17), a inexistência de vírgula após a palavra
“advogados” poderia indicar que se estaria diante de uma oração subordinada restritiva. Para o
referido autor, houve apenas um pecadilho gramatical do legislador: os advogados, tout court,
estão excluídos da incidência da multa judicial. Isto porque realmente não haveria sentido em
estabelecer esta capitis deminutio para os advogados públicos – seria, sem dúvida, desigualação
descabida, pois se deve interpretar o dispositivo conforme a Constituição, sem a cogitada discriminação, que se afigura absolutamente irrazoável.12
Em linha de coerência, pelos mesmos argumentos, prossegue o referido autor
que não poderá o magistrado aplicar esta multa ao membro do Ministério Público, que possui
autonomia/independência funcional garantidas constitucionalmente. Poderá, entretanto, tomar as
mesmas providências, mutatis mutandis, no sentido de comunicar ao órgão do Parquet competente, a prática, por um membro seu, de condutas supostamente indevidas (JORGE, 2003, p. 17).
11 Dispõe o art. 88: “Dovere di lealtà e di probità. – Le parti e i loro difensori hanno il dovere di comportarsi in giudizio com
leltà e probità. In caso di mancanza dei difensori a tale dovere, il giudice deve riferirne alle autorità che esercitano il potere
disciplinares u di esse”.
12 Em decisão de ADIN, o STF já decidiu também pela exclusão dos procuradores públicos.
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Se restar caracterizado que a conduta do advogado tenha obstado ou dificultado a produção de resultados do provimento jurisdicional, poderá o magistrado afastar a incidência
da regra que excepciona o advogado, declarando sua inconstitucionalidade, em razão da violação
do princípio da isonomia. Se o juiz e o promotor podem ser alcançados pelos rigores da regra, a
exceção feita ao advogado rompe o necessário tratamento isonômico que a lei deve conferir aos
operadores do direito no processo (WAMBIER, 2005, 150).
Percebe-se que o alvo principal vislumbrado pelo legislador é a autoridade coatora
no mandado de segurança, usualmente renitente no cumprimento das decisões judiciais. Perceptível, também, é o aumento significativo dos poderes do magistrado, de modo a abranger sujeitos que
não participam do processo tão diretamente. Para Fredie DidieJr. (2003, P. 17), o dispositivo criado
funciona como norma geral, aplicável a quaisquer processos e procedimentos, abrangendo outros
sujeitos, em diferentes circunstâncias.
Shimura e Daniel Assumpção afirmam ser totalmente contrários ao que uns
podem chamar de prerrogativas, mas que lhes parecem privilégios. Para os autores parece não
restar dúvida de que há uma inconstitucionalidade patente, já que o disposto no parágrafo único
fere de forma cabal o princípio da isonomia, tratando de forma injustificada funções que merecem,
ao menos nesse tocante, o mesmo tratamento (NEVES, 2003, P. 60).
Para os referidos autores a exclusão não se justifica, seja qual for a razão
utilizada para defendê-la, já que o advogado é, sem sombra de dúvidas, o sujeito mais atuante no
processo, o que mais pratica atos processuais, e conseqüentemente o que mais terá oportunidade
para se portar contrariamente aos deveres éticos do processo (WAMBIER, 2002, p. 34-35).13
A multa somente será cobrada, como bem visto anteriormente, após o esgotamento dos recursos, ficando à disposição do advogado todos os meios para impugná-la. Assim,
ainda que o juiz da causa aplique a multa somente por vingança, ou desgosto pessoal do advogado,
será a esse concedido todo o sistema recursal para reverter o abuso e a extrapolação do dever do
juiz. Uma possível reversão da decisão, inclusive, poderá até mesmo ensejar representação do juiz
junto a Corregedoria e eventual demanda de reparação de danos promovida pelo advogado lesado
– até mesmo moralmente – em face do juiz (STOCO, 2002, p. 112-113).14
O advogado enfrenta a todos se preciso for, com serenidade e firmeza, não se
preocupando, inclusive por disposição de seu Estatuto, em desagradar ninguém nessa função. Não
nos resta dúvida que a independência funcional do advogado deve ser respeitada, mas isso não
pode nunca representar privilégios injustificados como a presente exclusão, já que acaba por maneira reflexa a dispensá-lo de respeitar as decisões judiciais, podendo opor obstáculos de toda a
sorte para impedir que elas se efetivem ou ainda, se obrigado a fazer algo, simplesmente se negar
a cumprir a decisão judicial.
A razão da exclusão provavelmente tenha explicação num forte lobby
corporativo perpetrado pela OAB que, embora tenha em seu estatuto a previsão de aplicação de
multa (inciso IV do art. 35 da Lei 8906/94), não se tem notícia que ela tenha sido aplicada, em que
pese ser muito comum atitudes de menosprezo e desrespeito ao exercício da jurisdição.
13 Luiz Rodrigues Wambier e Teresa Arruda Alvim Wambier, atentando para o possível aumento substancial de representações
junto aos Tribunais de Ética da OAB, concluem de forma irretocável: “Aconselhável, até mesmo para a preservação de sua
imagem histórica, construída com suas memoráveis lutas em defesa do Estado de Direito, que a própria corporação tomasse
a iniciativa de pleitear a eliminação desse privilégio excepcional, mediante proposta legislativa que poderia encaminhar ao
Congresso Nacional. Iniciativa desse teor certamente contaria com o aplauso da comunidade jurídica e, muito especialmente, da sociedade ávida por efetividade. A concessão de privilégios corporativos não se coaduna com o anseio de efetividade
e democratização do sistema processual”.
14 Afirma ser “a ressalva é frustrante e enfraquece o projeto e o objetivo precípuo de impedir a chicana e a litigância de máfé de alguns profissionais – por certo uma minoria”. “Como, infelizmente, esse comportamento advém de uma minoria,
nada justifica que não se responsabilize pessoalmente o advogado inortodoxo pelo seu comportamento antiético e prejudicial ao regular andamento da causa e que compromete os bons e honestos”.
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5.2 A Cumulação de Multas
5.2.1 Cumulação do Artigo 14 com o 461
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Considerando que a multa do art. 461 somente se aplica às partes, poderá
ocorrer que a mesma parte (ou interveniente) tenha conduta que importe incidência de ambos os
dispositivos, ou seja: é renitente em relação ao cumprimento de uma obrigação de fazer, não fazer
ou dar, e ainda cause embaraço à efetivação de provimentos judiciais, nos termos do disposto no
art. 14, V (segunda parte), do CPC. Nesse caso, nada impede que haja a condenação cumulativa
em razão das duas condutas.
Também para Leonardo José Carneiro da Cunha (2001, p.103), em cujo entender podem incidir cumulativamente as multas do art. 461 e do art. 14, eis que seus “pressupostos
são diversos”. Na mesma linha também é a sustentação de Hélio do Valle Pereira (2003, p. 218),
para quem a multa do art. 14 tem caráter essencialmente punitivo e “não derroga outras possíveis
conseqüências criminais, cíveis e processuais. Quer dizer, não se afasta a caracterização, por
exemplo, do crime de desobediência, as sanções pela litigância de má-fé (art. 18) ou as medidas do
art. 461. Tudo pode ser aplicado concomitantemente”.
Segundo a lição de Eduardo Talamini, o art. 461 protege o cumprimento da
ordem proferida pelo juiz com medidas de apoio ou de reforço. Dentre estas, o § 4º permite, ex
officio, a fixação de multa pelo inadimplemento da decisão antecipatória da tutela ou da própria
sentença. Trata-se de meio coercitivo, que “deverá” ser imposto àquele que descumprir o comando judicial, toda vez que o juiz pressentir a sua utilidade para constranger o réu, ou seja, “sempre
que a multa revelar-se ‘suficiente e compatível com a obrigação’, segundo a fórmula adotada no
art. 461, § 4º. Só ficará descartado o emprego da multa quando esta revelar-se absolutamente
inócua ou desnecessária, em virtude de circunstâncias concretas” (TALAMANI 2002, p. 236).
Para Teori Zavascki (1997, p. 115), a multa diária constitui mecanismo de coerção apto a induzir o cumprimento de obrigação positiva, vale dizer, a realização de uma atividade a
ser desenvolvida: a multa recai imediatamente, acumulando-se dia após dia e somente cessa com
o adimplemento. Por outro lado, na hipótese de obrigação negativa, na qual a pretensão tem por
escopo a omissão do réu, ou seja, a não atuação, a multa fixa é a apropriada. O caráter da medida
coercitiva (imposição de multa de valor fixo) delineia-se aí preventivo, que será exigível em uma
única oportunidade, se e quando houver o descumprimento.
Fredie Didier Jr (2003, 30). também entende que as multas previstas nos arts.
14 e 461 do CPC podem ser aplicadas cumulativamente, pois possuem natureza e função diversas.
5.2.2 Cumulação do Artigo 14 com o 18
A responsabilidade por litigância de má-fé é patrimonial e sempre em face do
adversário, que é a parte inocente. A parte responde sempre por ela, quer o ato antiético tenha sido
recomendado ou autorizado ao defensor, quer não o haja sido: o mandante responde sempre pelo
ato do mandatário. O advogado só responde se houver participado conscientemente da ilicitude
(EOAB, art. 34, inc. VI, X, XIV, XVII).
A responsabilidade de todos esses sujeitos consiste em uma indenização e em
uma multa, ambas devidas à parte inocente. A indenização deve ser razoavelmente proporcionada
ao prejuízo sofrido (art. 16 e 18), mas pode ser arbitrada pelo juiz (em valor não superior a 20%
sobre o valor da causa) logo ao impor a penalidade ou, se não for, mediante liquidação por
arbitramento. A multa é sujeita ao limite máximo de 1% sobre o valor nominal da causa – e não
sobre o da eventual condenação do infrator, na decisão da causa.
Segundo Dinamarco, essa multa não se confunde com a que veio a ser instituída
pelo novo parágrafo do art. 14 do Código de Processo Civil, que pode chegar a 20% do valor da causa,
reverte em favor da União ou Estado (e não do adversário) e só incide nas hipóteses do inc V desse
artigo e pode ser cumulada com as disciplinas dos arts. 16 e 18. (DINAMARCO, 2003, p. 66-67).
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5.2.3 Cumulação do Artigo 14 com o 601
Segundo Luiz Rodrigues Wambier e outros, o juiz pode eventualmente, de ofício ou por provocação do credor, intimar o devedor para que ele indique quais são os seus bens
penhoráveis (art. 652, § 3º) e mesmo onde se encontram (656, § 1º), sob pena de não o fazendo,
atentar contra a dignidade da justiça (art. 600, IV) (WAMBIER, 2007, p. 188).
Vale ressaltar que a teor do novo inciso IV do art. 600 do CPC, considera-se
ato atentatório à dignidade da justiça o ato do executado que: “intimado, não indica ao juiz, em cinco
dias, quais são e onde se encontram os bens sujeitos à penhora e seus respectivos valores”.
Em seguida, também o novo § 1º, do art. 656, do CPC, prescreve que “é dever
do executado (art. 600), no prazo fixado pelo juiz, indicar onde se encontram os bens sujeitos à
execução, ..., bem como abster-se de qualquer atitude que dificulte ou embarace a realização da
penhora (art. 14, parágrafo único).”
É possível concluir que as multas dos arts. 14, parágrafo único e 601 podem ser
aplicadas cumulativamente, afinal, se o executado cria embaraço à efetivação de provimentos
judiciais através de confusão patrimonial, mantendo até mesmo seus bens de uso pessoal, como
carros da família, em nome de sua empresa e, também, intimado, não indica onde se encontram os
bens passíveis de penhora, incorre em duas faltas com pressupostos distintos. Esta contra o credor,
cuja multa lhe acresce o valor do seu crédito e a outra contra a Justiça, cuja multa se reverte ao
Estado, Distrito Federal ou à União.
Patrícia Pizzol (2003, p. 631)15 manifesta idêntico entendimento ao afirmar
que:
[...] em conformidade com o artigo 601 do CPC, na hipótese acima descrita
(art. 600), o juiz tem o poder de impor multa ao devedor, em soma não
superior a 20% (vinte por cento) do valor do débito em execução, sem
prejuízo de outras sanções de natureza processual (por exemplo, a multa
deste com o art. 14 do CPC, por haver praticado ato que atenta contra o
exercício da jurisdição)....
15 “... in conformità all`art. 601 c.p.c., nelle ipotesi sopra descritte (art. 600), il giudice ha il potere di imporre al debitore
multa, in somma non superiore al 20% (venti per cento) del valore del debito in esecuzione, senza pregiudizio di altre
sanzioni di natura processuale (per esempio, la multa di cui all`art. 14 c.p.c., per aver praticato atto che attenta all`esercizio
della giurisdizione) ...” (trad. livre)
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O Contempt of Court (desacato à ordem judicial) no Brasil
5.2.4 Quadro Comparativo de Multas no Código de Processo Civil
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Osmar Vieira da Silva
6 CONCLUSÕES
01) Para o direito anglo-saxônico, o contempt of court significa a prática de
qualquer ato que tenda a ofender um tribunal na administração da justiça ou a diminuir sua autoridade ou dignidade, incluindo a desobediência a uma ordem.
02) As sanções aplicáveis aos contempt of court por descumprimento, como
meio executivo impróprio, de modo geral apresentam um espírito orientador e disciplinador, conexo
à idéia do pleno respeito às atividade de administração da justiça e objetivam, assim, induzir ou
compelir o contemnor a um determinado comportamento perante a Corte, ativo ou passivo, a fim
de que a pretensão à adequada prestação jurisdicional seja, afinal, satisfeita.
03) Com o advento da Lei 10358/2001, a inclusão do inciso V e parágrafo único
do art. 14, do CPC, implantou um eficaz mecanismo visando a coibir o contempt of court, genericamente entendido como desacato à ordem judicial.
04) Não cumprir um provimento mandamental é desobedecer – e toda desobediência a atos estatais comporta a reação da ordem jurídica e dos agentes do poder público (no
caso, o Estado-Juiz), seja no sentido de punir o infrator, seja para coagi-lo legitimamente a cumprir.
05) Se ordens existem é para serem cumpridas, não necessitando haver norma
expressa para demonstrar tal obviedade. O problema é que embora óbvia a obrigatoriedade de
cumprimento das ordens judiciais, verifica-se muito desrespeito por parte daqueles que deveriam
cumpri-las no caso concreto. Assim, diz-se o óbvio para prever a tal dever uma sanção, que infelizmente parece ser, nos tempos atuais, o único meio – e nem sempre eficaz – de evitar o absurdo
desrespeito às ordens judiciais.
06) São provimentos em direito processual, todos os atos portadores de uma
vontade do Estado-Juiz, às vezes acompanhado de alguma determinação no sentido de realizar ou
omitir uma conduta. Dada essa amplitude do gênero próximo em que se incluem as sentenças
judiciais (provimentos), o inc. V do art. 14 do Código do Processo Civil abrange não só as sentenças, mas também os demais provimentos que o juiz emitir, e que tenham natureza mandamental
(sentenças, decisões interlocutórias ou mesmo despachos).
07) Estarão causando embaraço à efetivação dos provimentos jurisdicionais
todos os atos ou omissões, culposos ou não, que criem dificuldades de qualquer espécie ao alcance
do resultado prático a que está vocacionado o provimento jurisdicional.
08) Se restar caracterizado que a conduta do advogado tenha obstado ou dificultado a produção de resultados do provimento jurisdicional, poderá o magistrado afastar a incidência da regra que o excepciona, declarando sua inconstitucionalidade, em razão da violação do
princípio da isonomia, afinal, se o juiz e o promotor podem ser alcançados pelos rigores da regra, a
exceção feita ao advogado rompe o necessário tratamento isonômico que a lei deve conferir aos
operadores do direito no processo.
09) A definição do valor da multa, tendo como parâmetro o valor da causa,
parece não ter sido a melhor alternativa, eis que deixa ao desabrigo da pressão em favor do
cumprimento das decisões judiciais, processos em que o valor da causa é simbólico;
10) Entre dar ao juiz um poder ilimitado no que tange ao valor da multa, e
estabelecer um limite, ainda que sacrificando sua utilidade em alguns casos concretos, parece ter
preferido o legislador a segunda opção.
11) O percentual da multa está ligado à gravidade do prejuízo que a conduta
causou em relação aos resultados que o processo deveria produzir.
12) Pela própria natureza, distinta das demais existentes no ordenamento brasileiro, a qual tem por escopo a atuação protetiva do ordenamento, a multa do art. 14 é cumulável
com outros tipos de multas, consoante reza o parágrafo único (“sem prejuízo das sanções criminais,
civis e processuais cabíveis”).
13) No Brasil, pode-se considerar que o artigo 14 passa a contemplar o contempt
of court civil somente no que tange à aplicação da multa, já que a prisão, embora proposta no projeto
original apresentado pela Escola Superior da Magistratura e o Instituto de Direito Processual Brasileiro, não foi adiante, e o parágrafo segundo proposto ao artigo foi retirado de sua redação final.
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O Contempt of Court (desacato à ordem judicial) no Brasil
14) o pressuposto inafastável para que o litigante ou outro integrante do processo possa ser responsabilizado pelo contempt, consiste na existência de uma ordem que imponha
especificamente a quem é dirigida uma obrigação de fazer ou abster-se de fazer.
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Osmar Vieira da Silva
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Contrato: Do Tradicional a Celebração Eletrônica - Aspectos Formais
CONTRATO: DO TRADICIONAL A CELEBRAÇÃO ELETRÔNICA –
ASPECTOS FORMAIS
Simone Vinhas de Oliveira*
Valkíria A. Lopes Ferraro*
Vinicius Franco da Silva*
Wesley Tomaszweski*
RESUMO
Pretende-se expor as principais características formais de um contrato realizado por meio eletrônico na intenção de mostrar as linhas teóricas e científicas nas quais fundamentam-se. Passa-se da
base principiológica dos contratos clássicos para as alterações e inovações, não só no âmbito
principiológico, mas também, na utilização análoga dos institutos já existentes, quando assim for
possível, corroborando-os com as situações fáticas que vieram à tona com o surgimento de uma
nova tecnologia de comunicação viabilizando novas formas de contratação. Conclui-se pela viabilidade desse novo instrumento contratual e assegura-se sua proteção jurídica com o que aqui se
expõe, argumentando-se favoravelmente e, inclusive, estimulando-se o crescimento do comércio
eletrônico (e-commerce), visto que, por força do princípio da equivalência funcional, não se pode
negar validade ou eficácia a um contrato simplesmente por este provir de meio eletrônico.
Palavras-Chave: Contrato eletrônico. Princípios. Forma. Validade. Legitimidade.
112
CONTRACT: OF THE TRADITIONAL A ELECTRONIC CELEBRATION FORMAL ASPECTS
ABSTRACT
It is intended to expose the mainly formal characteristics of a contract made through eletronic
ways in intention of show the theoric and scientific lines in wich it is based on. Goes throught the
principles base of the classic contracts to the alterations and innovations, not only in the principles
meaning, but also, when it is possible, in the analogical use of the existing institutes, corroborating
them with the in fact situations that came up on the sprouting of a new technology of communication,
making possible new ways of do the contracts. It is concluded for the viability of this new instrument
of contract and assures your legal protection arguing favorably and also stimulating the growth of
the eletronic commerce (e-commerce) because if you see the functional equivalence principel will
be not possible deny validity and effectiveness to a contract simply because it cames from the
eletronic way.
Keywords: Electronic Contract. Principles. Form. Validity. Legitimacy.
* Mestranda em Direito Negocial pela Universidade Estadual de Londrina - bolsista pela Capes.
* Doutora em Direito Civil pela PUC de São Paulo – Docente do Curso de Mestrado em Direito Negocial da Universidade
Estadual de Londrina-PR – Docente do Curso de graduação – UEL
-Coordenadora do Curso de Especialização em Direito Empresarial – UEL. Orientadora do Projeto de pesquisa – “ O Direito
Empresarial e suas Relações com as Tecnologias da Informação”
* Graduando em Direito da Universidade Estadual de Londrina, integrante do Projeto de Pesquisa supra, do qual são também
integrantes: João Carlos Leal Júnior, Lucas Franco de Paula, Paola Maria Gallina, Thaís Iglesias Barreira , Rogério Martins
de Paula, Wagner Kaba. Bolsista PIBIC/CNPq.
* Mestrando em Direito Negocial pela Universidade Estadual de Londrina – Especialista em Direito Civil e Processo Civil pela
CESUC/BB&G, bolsista pela Capes.
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1 INTRODUÇÃO
A sociedade atual encontra-se, em virtude do avanço científico, no maior grau
de desenvolvimento tecnológico já vivido. Essa condição traz novos conceitos como globalização,
digitalização e rede de informação. Convém destacar que as relações intersubjetivas, consagradas
no seio social, desde que se tem registro, foram, no sentido de dar segurança e estabelecer de
forma ordenada a vida em sociedade, de certo modo, abarcadas pelo Direito (2003).
Com base nessas duas premissas, ressalte-se que a cada revolução tecnológica
e social, os meios de se garantir essa interação evoluiu de forma igualitária. De fato o Direito está
sempre observando os acontecimentos sociais, perseguindo-os, de modo a se fazer presente em
seu encalço, pretendendo sua regulamentação. Daqui, deriva-se o brocardo jurídico: ubi societas,
ibi ius1 . Sendo que, é no contrato, pelo seu caráter cotidiano, que são reveladas as grandes transformações do ambiente social por funcionar como um “espelho” da relação existente entre os
indivíduos.
É justamente neste instrumento consagrado pela doutrina como viabilizador da
circulação de riquezas, que se desenvolve o presente estudo. O contrato sofre releituras de natureza paradigmática e principiológica e ainda encontra um novo cenário de realização, a saber: o
ambiente virtual. Devido a restrição temática, bem como aos limites físicos do estudo analisar-seá a evolução do contrato em sua forma tradicional e as peculiaridades encontradas devido a fatores
proporcionados pela sociedade da informação.
Parte da doutrina jurídica afirma que, nos dias atuais, não é mais possível a
sociedade se desenvolver sem a informática, presente nos mais variados ramos das ciências, da
geografia, ciências políticas, humanas e sociais à engenharia, medicina e ciências exatas e biológicas de modo geral, exaltando-se aí a medicina, amplamente coberta por aparelhos e máquinas que
de alguma forma interagem com a informática (LAWAND, 2003, p. 3 e ss).
A internet (CORRÊA, 2000)2 inovação tecnológica no ramo das telecomunicações, resultante do surgimento da informática, é o resultado de um processo gradativo, que se
desenvolveu, primeiramente, no âmbito militar e acadêmico, para, posteriormente, se estabelecer
em todo o mundo. Como todo meio de comunicação, o homem passou a utilizá-la como forma de
interagir comercialmente, o que, com o passar dos anos, se intensificou e, com sua ampla utilização
e desenvolvimento constante, fez nascer o e-commerce3 .
Este conceito se tornou o ícone primordial na revolução contratual que se percebe atualmente. Para fins elucidativos, a média de crescimento do setor no Brasil, nos últimos três
anos, foi de 35%. Em números, temos para 2005 um movimento de R$ 12,5 bilhões e, para 2006,
movimento de 30,9 bilhões (REVISTA GAZETA MERCANTIL, 2006).
As características próprias desta rede, comunicação em tempo real e global4 ,
facilidade na obtenção de dados estatísticos gerais e do consumidor, agilidade na propagação de
ofertas, ofertas essas que exibem-se e vendem-se dentro dos limites do lar do consumidor, acabam
por criar um ambiente no qual a redução de custos é assombrosa.
Existe diminuição de custos na localização da outra parte de uma futura relação contratual, pois se faz possível, por meio da comunicação global e em tempo real, a fácil
identificação de clientes potenciais e de usuários no mundo todo, sem que com isso seja necessário
alterações na tecnologia ou novos custos.
1 Significa: “onde há sociedade há direito”.
2 “A internet é um sistema global de rede de computadores que possibilita a comunicação e a transferência de arquivos de uma
máquina a qualquer outra máquina que pertença à mesma rede, possibilitando, assim, um intercâmbio de informações sem
precedentes na história, de maneira rápida, eficiente e sem a limitação de fronteiras, culminando na criação de novos
mecanismos de relacionamento.”
3 E-commerce significa o comércio realizado através de meios eletrônicos. É equivalente ao termo comércio eletrônico.
Geralmente ocorre por meio de sites ou sítios na rede.
4 Global no sentido de integralidade mundial. Uma mensagem emitida de um local específico, está apta, em tempo real, a se
apresentar em qualquer lugar do mundo. Assim como o telefone.
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Contrato: Do Tradicional a Celebração Eletrônica - Aspectos Formais
Por chegar aos lares e propiciar a qualquer sujeito o acesso, sem nenhuma
distinção ou discriminação, seja com relação a sexo, idade, nacionalidade ou cor, diminui consideravelmente o custo com a divulgação da oferta contratual e aumenta, espantosamente, o público alvo
e atingido pela oferta. Ainda, comparando-se a Internet à outras tecnologias de informação, como
o telefone, é, a perder de vista, a opção mais barata e vantajosa tanto para o consumidor como para
o empresário, reduzindo-se os custos e promovendo uma maior e melhor distribuição de riquezas.
Como se percebe, com esse crescimento galopante e com a redução de custos
contratuais, não poderia ficar de fora da apreciação jurídica essa nova realidade. Para isso, o
comércio eletrônico coloca em cheque todo um complexo doutrinário e jurídico já, há muito tempo,
consagrados no direito contratual.
O mesmo, em seus institutos e normas, bem como o direito obrigacional vêemse, ao menos em parte, sem uma exata correspondência quando se trata desta nova tecnologia.
O que justifica o presente estudo é tentar estabelecer as alterações, as novas
concepções, formas e condições de realização, ou seja, seus aspectos formais, por meio de um
estudo analógico do direito contratual clássico e do direito contratual derivado das relações no
ambiente virtual proposto pela mais atual doutrina e indagações jurídicas, levando-se em consideração que a analogia nem sempre será a solução, visto que novas tecnologias, muitas vezes, demandam novas soluções por não haver utilidade. Em determinadas circunstâncias, nem há possibilidade
de subsunção do tradicional ou comum ao novo, situação na qual se opta por uma solução ontológica,
baseada nos princípios que deram origem aos institutos contratuais e tomando estes como um
ponto fixo para a análise do paradigma digital (LORENZETTI, 2004, p. 49-53 e 68).
2 CONTRATO: ALGUNS ASPECTOS DE SUA EVOLUÇÃO
114
Antes de estabelecer um conceito didático a respeito do contrato eletrônico, é
necessário emergir o gênero do qual este se faz espécie. O contrato se traduz, sobretudo, num
meio seguro e efetivo de se consagrar transações econômicas, de circulação de riquezas no âmbito
social (DIAS, 2004, p. 52-53).
O conceito de contrato, sem os acréscimos pertinentes ao ramo do direito eletrônico, é bem definido como o meio pelo qual as partes pactuam a criação de uma obrigação,
submetendo-os, pois nasce da relativa autonomia da vontade da qual gozam (DIAS, 2004, p. 52).
Já, considerando a atuação estatal na regulação dos acordos de vontades, limitando-os em virtude do Estado Social que preza a submissão às normas de ordem pública, Pablo S.
Gagliano e Rodolfo P. Filho (2005, p. 11-12) salientam que:
... o contrato é um negócio jurídico por meio do qual as partes declarantes,
limitadas pelo princípio da função social e da boa-fé objetiva, autodisciplinam
os efeitos patrimoniais que pretendem atingir, segundo a autonomia das
suas próprias vontades.
Percebe-se aqui uma modelagem contratual revestida de elementos que, numa
visão rápida e superficial, não parecem constituir instituto próprio e descendente de época histórica
que o caracteriza. Antes da função castradora do Estado no relacionamento negocial das partes,
tínhamos o contrato baseado na liberdade total, fruto dos ideais que consolidaram a Revolução
Francesa. Portanto, é necessária uma breve consideração histórica deste instituto.
Há que se destacar as principais contribuições que as sociedades que se organizaram no decorrer da história, a partir do Direito Romano, legaram ao contrato.
Destaca, Caio Mario (2001, p. 225 e s.), que sobre o contrato atuam diversas
forças das quais duas devem ser destacas: “a força obrigatória e a influência de fatores determinantes
das injunções sociais”.
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Com relação às influência de fatores sociais, no contrato pode vigorar a liberdade contratual, seja subjetiva (escolha de quem contratar), objetiva (definição da obrigação) ou
formal (escolha tipológica das cláusulas). Ou, então, pode, de forma contrária, desaparecer essa
autonomia dando lugar a imposição do Estado, por meio de matérias de ordem pública, em caráter
transitório ou permanente.
No entanto, cabe-nos destacar bem sucintamente a origem da roupagem atual
dos contratos.
O Direito Romano, contado em todas as suas manifestação ao decorrer do
tempo, teve várias posições diferentes com relação ao contrato. A obrigação, no início, não nascia
em virtude de uma relação meramente individual, mas sim com base nos relacionamentos, muitas
vezes hostis, entre grupos de indivíduos. A Lei das XII Tábuas, quando afunila essa noção geradora
de obrigações de grupos para as relações interpessoais, mantém essa hostilidade, como podemos
perceber na espécie de concurso de credores que, como o próprio autor supra citado diz é no
mínimo macabro.
Tal concurso permitia que o próprio corpo do devedor, dividido em quantas
partes bastassem, dentro da proporção do crédito de cada credor, fosse utilizado como forma de
sanar a dívida do devedor.
Em 428 antes de Cristo, a Lex Poetelia Papira, promovendo a maior transformação pela qual passou o Direito Obrigacional, estipulou fosse a responsabilidade pela divida recaída sobre os bens do devedor e não mais sobre sua pessoa, pecuniae creditae bona debitoris,
non corpus obnoxium esse.
O desenvolvimento econômico e social em virtude do crescimento das possibilidades individuais cria o contrato e seu poder vinculativo e é, ainda na Lei das XII Tábuas, que se
encontra o poder vinculativo derivado da palavra e do que foi tratado verbalmente, observado
determinados requisitos. Advieram maiores complexidades sociais na vida romana em virtude de
seu desenvolvimento e da pluralidade de negócios o que originou uma necessidade de trazer certa
materialidade ao contrato.
Em virtude disso, surgiram, por meio de Gaius, quatro modalidades contratuais:
contratos re, que eram os contratos que se perfectibilizavam através de entrega de coisa; contratos
litteris, realizado pela inscrição da obrigação no codex do devedor; contratos verbis, o contrato
verbal realizado mediante requisitos; e, mais tarde, o contrato consensu. Finalizando, Gaius, com a
afirmativa de que as obrigações ora nascem do contrato, ora do delito.
Estabeleceu-se no Baixo Império e espalhou-se por toda a Idade Média a praxe contratual que via o nascimento da obrigação na simples proclamação verbal. Era necessário
aos escribas, para satisfazer as necessidade do Direito Romano, que reduzissem a termo as convenções. Porém, e é isso que deu origem aos contratos consensu, a praxe fez com que os escribas
observassem na redação da proclamação verbal que todos os rituais imprescindíveis tinham sido
observados, embora não o tivessem.
Passou-se, portanto, a considerar apenas a declaração das partes no surgimento
das obrigações, reduzindo, posteriormente os escribas, a termo como se todos os rituais tivessem
sido observados. Bastava-se, então, a declaração de vontades.
Conclui-se que as características e a modelagem contratual modificam-se de
acordo com a sociedade, tecnologia e costumes a que se submetem. O contrato estabelecido com
os ditames libertários da Revolução Francesa é apoiado na autonomia da vontade, por meio da qual
duas pessoas, de forma paritária, circulavam riquezas, seja pela compra e venda, locação, entre
outros, obedecendo simplesmente os seus interesses e volições está em declínio.
Um instrumento contratual que culmina da vontade de duas pessoas em igualdade de condições, no qual se discute preço, prazo, condições, está cada vez mais escasso. A
sociedade neocapitalista, mergulhada num caos produtivo, faz emergir novas riquezas importantes,
como os valores mobiliários e bens imateriais, enfraquecendo o valor que os bens imóveis representam no domínio econômico.
Os bens tornam-se descartáveis, nada mais é duradouro, a contratação sob
uma nova roupagem se faz necessária para que não exista uma lesão massificada na sociedade.
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Contrato: Do Tradicional a Celebração Eletrônica - Aspectos Formais
Cada vez menos se verifica o contrato característico da autonomia da vontade
em igualdade de condições, realizado entre pessoas físicas, mas sim a massificação contratual,
evidenciando a padronização, limitada pelo Estado em conceitos como o da função social do contrato e da defesa do consumidor. É nesse ambiente que surge o contrato eletrônico, como um dos
novos meios de se realizar a circulação de riquezas num mundo caracterizado pela padronização e
agilidade na circulação de riquezas por meio da produção e consumo.
O contrato é a convergência das manifestações de vontade das partes, visando
a realização de determinada obrigação. O contrato eletrônico, nesse diapasão, é quando a convergência das manifestações de vontade se realiza por intermédio de um meio eletrônico capaz de
veicular de forma completa o cerne dessa manifestação.
2.1 Principiologia Contratual e suas Inovações Decorrentes do Comércio Eletrônico
116
Os princípios são a base da construção jurídica, o baluarte de criação, inovação
e interpelação do Direito na vida social. De acordo com a explanação sobre princípios de Ricardo
L. Lorenzetti, os princípios são utilizados pelo juiz para julgar, pelo legislador para legislar, pelo
jurista para raciocinar e embasar seus tratados e pelo operador do Direito como ferramenta de
trabalho, trazendo para a especificidade do caso concreto a concepção principiológica já adaptada.
Diz, ainda, o supracitado jurista, que o princípio é um enunciado que permite
resolver um problema e orientar um comportamento. São normas de sentido abstrato, sem conteúdo pronto e acabado, sendo, portanto, flexíveis, esperando o complemento trazido pelas necessidades casuísticas (LORFENZETTI, 2004, p. 82-83).
Como descrito no início do tópico 2, sendo o contrato eletrônico uma espécie de
contrato, não se pode olvidar a aplicabilidade dos conceitos principiológicos contratuais tradicionais
no âmbito do comércio eletrônico. As contratações eletrônicas só podem desenvolver-se, no Brasil,
em virtude do princípio da liberdade de forma para contratação não solene.
Graças a um princípio tradicional, pode-se estabelecer essa nova modalidade
contratual. Porém, pela especialidade do tema, emergem das condições desta nova tecnologia
princípios próprios, característicos e necessários, por não serem suficientes à esgotar as possibilidades do tema, os tradicionais. Princípios estes que derivaram da discussão mundial a respeito do
assunto.
Em 1996, com a criação da Lei Modelo sobre Comércio Eletrônico
(UNCITRAL), pela Comissão de Direito Internacional da Organização das Nações Unidas
(FERREIRA; BAPTISTA, 2002, p. 90-91), percebe-se a consolidação de algum deles. Os princípios que norteiam a contratação eletrônica servem aos propósitos de identificação, autenticação,
impedimento de rejeição, verificação e privacidade (ORTIZ, 2001, p. 37).
Portanto, pode-se delinear os seguintes princípios referentes aos contratos eletrônicos: “princípio da equivalência funcional; princípio da neutralidade tecnológica das disposições
reguladoras do comércio eletrônico e princípio da inalterabilidade do direito existente sobre obrigações e contratos”. Tendo em mente que não se pretende esgotar a base principiológica nesta
humilde abordagem, mas sim mostrar que com a atual evolução tecnológica pode-se, inclusive,
constituir-se novos.
2.1.1 Princípio da Equivalência Funcional
Princípio decorrente da UNCITRAL que visa a garantir, aos contratos realizados por meio eletrônico, todas as condições da qual gozam os contratos estabelecidos em papel e
registrados em tabelionato. Com isso evita-se qualquer tipo de repugnância ou preconceito à essa
nova modalidade (LAWAND, 203, p. 42 e s.).
Não se pode negar validade ou eficácia ao contrato argumentando-se, exclusivamente, ter sido ele firmado por meio eletrônico (FERREIRA; BAPTISTA, 2002, p. 91). Têm-se,
portanto, em funcionalidade contratual, equivalência entre o tradicional e novo.
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Este princípio busca duas conseqüências jurídicas: a impossibilidade de ser considerado inválido o contrato em base virtual, exclusivamente por sua natureza eletrônica; e o resguardo quanto à possíveis impedimentos legais exclusivos ao contrato eletrônico, quando este restar exclusivamente pela sua natureza eletrônica.
2.1.2 Princípio da Neutralidade Tecnológica das Disposições Reguladoras do
Comércio Eletrônico
A Lei Modelo, em seu item 8, parte final, afirma: “Cabe assinalar que, em
princípio, não se exclui nenhuma técnica de comunicação do âmbito da Lei Modelo, de forma a
acolher em seu regime toda eventual inovação técnica neste campo”.
Têm-se, aqui, a real preocupação da referida Lei em não restringir sua aplicação à tecnologias hoje existentes e que, porventura, possam vir a ser consideradas, em futuro
próximo, obsoletas (LAWAND, 2003, p. 45). Isso faz com que a legislação derivada da UNCITRAL
não abarque apenas as tecnologias existentes na época de sua promulgação, mas, também, inovações tecnológicas que derivem do desenvolvimento constante dessa área, sem que com isso se
faça necessário reformulações legislativas.
É o caso do protocolo Wap, que capacita o acesso à Internet por meio de um
telefone celular, sem a necessidade do uso de computadores, ou, ainda, se for descoberto um meio
criptográfico ou qualquer outra forma de se garantir a autoria e autenticidade do documento eletrônico, que torne a criptografia assimétrica5 obsoleta.
Ana Paula Gambogi Carvalho (CARVALHO, 2001, p. 152), quanto ao projeto
nacional sobre comércio eletrônico, diz que: “A lei a ser promulgada deve ser tecnologicamente
neutra, ou seja, reconhecer a validade jurídica não apenas do sistema de criptografia assimétrica,
mas também de outras tecnologias equiparáveis, que atendam aos mesmos fins”.
E a importância desse princípio se faz clara. Não se pode admitir uma norma
geral seja promulgada de forma fechada e vinculada aos meios tecnológicos atuais. A própria
orientação culturalista de nossa atual legislação civil não aprova tal situação. Toda e qualquer
norma geral é promulgada regulando situações, justamente, gerais.
Não cabe à norma perder sua eficácia visto a possibilidade de mudanças
tecnológicas, tão presentes e rápidas inclusive, ou a evolução comercial e contratual seja tolhida de
melhores condições visto a vigência de lei precária sobre o assunto. Portanto, a neutralidade
tecnológica, além de importante, é necessária para a própria segurança do sistema.
2.1.3 Princípio da Inalterabilidade do Direito Existente Sobre Obrigações Contratos
Para esclarecer tal princípio necessário se faz ter nítido que um contrato eletrônico, firmado por meio da internet, não traz diferenças substancias com relação aos contratos em
geral. A função da nova tecnologia é servir de meio para a celebração contratual e não fim.
Então, não se trata aqui de novas formulações com relação ao direito obrigacional
ou contratual. Estes continuam intactos. Novas adaptações se fazem necessárias para que se
possa garantir o valor probante daquilo que resultou do consenso das partes levando em consideração aquilo que foi ofertado e aceito através do meio utilizado, qual seja, a internet.
Determina, portanto, o princípio, que a internet, em especial, ou o meio eletrônico, de forma geral, é apenas uma nova forma de transmissão das vontades dos negociantes e não
um novo direito regulador das mesmas. Todos os requisitos e pressupostos contratuais já consagrados não se alteram substancialmente (LAWAND, 2003, p. 47 e s.). Não obstando o aparecimento
de determinadas inovações e adaptações jurídicas no âmbito da validade, pela especialidade da
tecnologia.
5 Melhor explanada no Tópico 3.5, a respeito da Validade dos Contratos Eletrônicos.
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2.2 A terminologia Contrato Eletrônico em Contraposição à Contrato Informático
Contratos informáticos são aqueles que tem por objeto bens ou serviços de
informática, celebrados por qualquer que seja o meio, eletrônico ou não. Já na contratação eletrônica o objeto é livre, desde que lícito e determinável, tendo como meio de formação contratual o
eletrônico (COLARES, 2006, p. 111).
Melhor explicando, o contrato eletrônico recebe o nome do meio utilizado para
sua celebração, o eletrônico, enquanto o contrato informático recebe o nome do objeto, ou seja,
artigos informáticos ou serviços que venham a ser prestados exclusivamente no âmbito da
informática.
3 ASPECTOS FORMAIS DO CONTRATO E SUA ADAPTAÇÃO AOS CONTRATOS
ELETRÔNICOS
Como aqui pretende-se abordar os contornos do contrato eletrônico, nada mais
justificável do que mostrar as adaptações contratuais que surgiram em virtude do novo meio de
comunicação ao invés de falar-se a respeito de um novo complexo científico que vise abarcar a
inovação tecnológica.
3.1 Natureza Jurídica
118
Falar sobre natureza jurídica é o mesmo que tentar encaixar o instituto num
gênero jurídico que lhe seja antecessor, superior e consequentemente maior em abrangência. Como
ensina Jorge José Lawand (2003, p. 88), o questionamento à respeito da natureza jurídica visa a
qualificação, o enquadramento de uma regra dentro de determinada estrutura ou categoria jurídica
na qual possa se subsumir.
No que toca o instituto jurídico objeto deste estudo, entende-se por sua natureza jurídica, contrato que tenha por objeto bem disponível, seja formado pelo consentimento gerado
por manifestações de vontade ora entre presentes, ora entre ausentes, conforme a instantaneidade
da formação do vínculo, atrelado à modalidade de negócio jurídico formado fora do estabelecimento comercial.
3.2 Momento de Formação
Importante se faz a especificação do momento de formação do contrato eletrônico para que as consequências jurídicas, decorrentes de tal vínculo, possam surtir seus efeitos.
Assim como na formação do vínculo contratual fora do meio eletrônico, têm-se, para esta modalidade específica, contratos entre “presentes” e entre “ausentes”.
Nos moldes da contratação clássica, temos, nos contratos entre ausentes, uma
distância geográfica que demanda um tempo juridicamente relevante para que se efetue a comunicação. Entretanto, a tecnologia vem a neutralizar a geografia e, apesar de se ter pessoas fisicamente distantes, a mensagem passa a ser instantânea.
O telefone é um exemplo inicial a respeito da neutralização geográfica entre
pessoas fisicamente distantes para a celebração de um contrato por meio de um sistema de comunicação instantâneo (LORENZETTI, 2004, p. 313-314). Assim como no exemplo, o contrato eletrônico pode ganhar status de celebrado entre presentes, interpretando-se analogicamente a Lei
10.406 de 2002 (Novo Código Civil), em seu artigo 428, I, considera-se também como presentes os
que contratam por telefone ou “meio de comunicação análogo”.
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Portanto, basta que o contrato eletrônico seja firmado através de comunicação
instantânea6 para que se estabeleça vínculo entre presentes, visto que se trata de meio de comunicação semelhante e há perfeita subsunção da realidade fática à norma vigente. Vale ressalvar que
a partir do momento em que o ofertante se faz sentir da aceitação do oblato, têm-se firmado o
certame obrigacional.
Apesar do meio de comunicação eletrônico propiciar a instantaneidade de mensagens, casos há em que se tem a formação contratual “não instantânea”(LORENZETTI, 2004, p.
323), ou entre “ausentes”, levando-se em conta um maior lapso temporal decorrido do intercâmbio
das mensagens, como no caso de formação por intermédio de correio eletrônico, e-commerce,
entre outros.
Para explicar a perfectibilização de um vínculo contratual entre ausentes,
têm-se duas principais teorias, a da cognição, que exige que a resposta do aceitante chegasse ao
conhecimento do proponente, e a da agnição que dispensa o conhecimento da resposta.
No Brasil, com o Código de 1916, em seu artigo 1086, era considerada como
válida a teoria da agnição através de sua subteoria, a da expedição, ou seja, considera-se formado
o contrato com o envio da aceitação ao proponente.
Entrementes, o atual código estabelece, em seu artigo 434, que a formação
contratual acontece quando a aceitação é expedida, porém ressalva exceções em seus incisos o
que nos levar a perceber a alteração da tendência do código para outra subteoria da agnição, qual
seja, a da recepção (GAGLIANO, 2005, p. 105 e s.).
Nos dizeres de Carlos Roberto Gonçalves (2002, p. 20), o atual código:
estabeleceu três exceções: a) no caso de haver retratação do aceitante; b) se
o proponente se houver comprometido a esperar resposta; e c) se ela não
chegar no prazo convencionado. Ora, se sempre é permitida a retratação
antes de a resposta chegar às mãos do proponente, e se, ainda, não se reputa
concluído o contrato na hipótese de a resposta não chegar no prazo
convencionado, na realidade o referido diploma filiou-se à teoria da recepção, e não à da expedição.
Além disso, considerando a segurança na formação do negócio jurídico em
virtude do meio eletrônico, estabeleceu-se, também, na prática, considerar formado quando a
confirmação chegue à esfera de conhecimento do proponente, não sendo necessário que este
tome conhecimento efetivo da resposta, mas, apenas, que esta esteja disponível no seu âmbito de
conhecimento.
É, portanto, o proponente, responsável, no caso de contrato formado via correio
eletrônico, pela manutenção de seu equipamento em estado que possibilite a recepção da resposta,
como no caso de não recebimento de e-mail por estar a caixa de correio sem espaço suficiente.
Têm-se, concluindo-se, que a formação dos contratos eletrônicos entre ausentes se perfectibiliza
com a recepção, pelo policitante, da aceitação do oblato.
3.3 Lugar de Formação
O Direito Brasileiro abarca a teoria que determina a formação contratual no
lugar em que este é proposto. Nos termos do artigo 435 do Código Civil, “o contrato reputa-se
celebrado no lugar onde foi proposto”. Tal determinação, longe de ser desnecessária, reveste-se de
extrema utilidade quando, por exemplo, o juiz tiver de analisar questões de cunho axiológico e
costumeiro do lugar onde o negócio fora pactuado, ou, ainda, quando surgirem questões de competência (GAGLIANO, 2005, p. 110 e 111).
6 Diálogo interativo que implica atos instantâneos, como se percebe no IRC – Internet Relay Chat, Msn, ICQ, entre outros.
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Entretanto, no tocante aos contratos eletrônicos, como definir o local de formação, visto que há duas possibilidades, quais sejam: a) o local onde encontra-se o equipamento por
meio do qual fora realizada a proposta, ou seu endereço lógico; e b) o local da residência do
policitante.
Seguindo os passos de Álvaro Marcos Cordeiro Maia, independentemente da
posição geográfica do equipamento utilizado, reputa-se celebrado o contrato eletrônico no lugar da
residência do proponente, ou seja, opta-se pela segunda alternativa. Isso se dá, principalmente, por
questões de segurança. Se assim não fosse, haveria abertura para fraude ou prejuízo à contratante
de boa-fé.
Ilustrando, há que se imaginar um proponente, residente num país cujas leis
consumeiristas sejam rígidas, realizando seus negócios por meio de equipamento ou endereço lógico localizado em país diverso, preferencialmente com leis consumeiristas escassas, inexistentes ou,
ao menos, mais relaxadas em relação ao local de sua residência, com o intuito de furtar-se de
responsabilidades. Neste sentido, a Lei Modelo da UNCITRAL, estabelece em seu art. 15, § 4º,
que uma declaração eletrônica se considerará expedida e recebida no lugar onde remetente e
destinatário, respectivamente, tenham seu estabelecimento, no caso de mais de um, onde tenham o
principal. Portanto, têm-se como principal norte que se reputa celebrado o contrato eletrônico no
lugar onde reside o proponente ou onde esteja afixado seu estabelecimento principal.
De qualquer sorte, em hipótese que se admite apenas para argumentar, destaca-se que as considerações são tecidas à luz do Direito comparado e magistério da doutrina, uma
vez que em solo brasileiro inexiste qualquer tipo de legislação específica acerca da contratação
internacional e da tutela das ações que nasçam com base no meio eletrônico, principalmente, do
consumidor por suas características de hipossuficiência e vulnerabilidade.
Ademais, o julgador conta com o ordenamento jurídico posto, e este lhe remete
as disposições da Lei de Introdução ao Código Civil – LICC, a qual condiciona a existência de
tratado e relacionamento com o outro país envolvido na celebração.
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3.4 Validade
Quando se fala a respeito dos pressupostos de validade contratual, tem-se,
como forma resumida, que o contrato deve nascer de uma manifestação de vontade emanada de
maneira livre e de boa-fé. Só pode ser manifestada de forma livre se o agente for capaz na
realização do ato.
Com relação a esta capacidade não se remete, o leitor, à idéia de capacidade
genérica da personalidade, mas sim à específica condição de ser pólo de determinado contrato, que
tem como “legitimidade”. É de boa-fé o contrato que tenha por objeto bem da vida “idôneo”, ou
seja, “lícito”, que este possa ser “possível” (física e juridicamente), de figurar como objeto contratual
e que tal seja “determinado” ou “determinável”, aquele que seja individualizado ou com elementos
mínimos capazes de individualizá-lo.
Como elucidação é válido citar o artigo 426 do atual Código Civil que determina
a proibição de figurar como objeto contratual a herança de pessoa viva. A forma também possui o
seu lugar na averiguação da qualidade do vínculo formado, portanto deve ser a adequada para cada
caso, ou seja, a “prescrita” ou “não defesa em lei” (GAGLIANO, 2005, p. 22-23).
Caso, em um contrato, não se perceba algum desses elementos, aquele nascerá nulo. Trata-se de pressupostos de validade cuja falta, seja de um ou mais, reputa a nulidade do
negócio celebrado.
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3.4.1 Forma
Há que se dar mais uma palavra a respeito da forma. Tem-se, no artigo 107, do
atual Código, a positivação do “princípio da liberdade da forma” para os negócios jurídicos. Assim,
estabelece-se, como regra geral, que os negócios jurídicos sejam firmados sem a observância de
forma determinada7 .
Aqui é que se percebe o grande fundamento positivo para a contratação eletrônica, visto que esta, por excelência, está baseada no princípio da livre forma, pois o que caracteriza
o comércio eletrônico é justamente o meio de comunicação veiculador de vontades e seu registro
em suporte diverso da cártula habitual.
3.4.2 Legitimação e a determinação da autoria
O documento eletrônico é o meio físico, geralmente magnético ou óptico, capaz
de armazenar, para a posterioridade, aquilo estabelecido no contrato eletrônico, e, apesar de registrado em uma base não física, possui idoneidade para veicular o interesses das partes (DIAS, 2004,
p. 82). Porém, por não estarem, as partes, fisicamente presentes, é necessário que se estabeleça
meios de se auferir a autoria, a autenticidade dos sujeitos envolvidos na relação jurídica.
É este o grande problema do meio eletrônico. É aqui a base de situações capazes de gerar insegurança jurídica na contratação. Como determinar quem, exatamente, está do
outro lado de um computador aceitando ou fazendo proposta negocial? Sabe-se que a legitimidade
para a contratação é pressuposto de validade do negócio, assim como a licitude e a determinação
do objeto, sendo, portanto, nulo o negócio jurídico realizado por incapaz. Qual a responsabilidade
envolvida nessa situação?
Uma forma simples e barata de resolver a questão é a adoção de webcams8 ,
no momento da manifestação da vontade, que nos dá a certeza da pessoalidade e autoria do sujeito
contratante. Porém, torna-se inviável, tal medida, por aumentar os custos do processo.
Ricardo L. Lorenzetti (2004, p. 293), ensina que, como regra geral tem-se “aquele
que utiliza meio eletrônico e cria uma aparência de que este pertence à sua esfera de interesse,
arca com os riscos e com os ônus de demonstrar o contrário”. Esta regra se dá com base na
necessidade de comportamentos de cooperação eficientes, sendo que quem opta pela contratação
eletrônica deve estar orientado em realizar os atos nos meios mais seguros e prevenir-se contra
terceiros mal-intencionados.
Não é admissível que este pretenda que o ônus seja suportado pelo destinatário,
o que se tornaria muito mais oneroso. Entende o autor supra-citado, que se trata da atribuição dos
riscos que derivam do meio utilizado (LORENZETTI, 2004, p.293 e s.).
O que se tem como solução para o problema, maior objeto de pesquisa no
âmbito da contratação eletrônica, é a adoção da certificação, uso de senhas, assinaturas eletrônicas ou digitais, ou, mesmo, um contrato prévio, onde as partes estão presentes, estabelecendo que
se reputa a determinado sujeito toda e qualquer contratação, realizada por meio daquele equipamento (LORENZETTI, 2004, 291).
7 A não ser quando esta é estabelecida em lei, como visto acima.
8 Pequenas câmeras de vídeo, de baixa resolução, utilizadas para a transmissão em tempo real da imagem da pessoa que está
operando o computador naquele momento.
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4 CONCLUSÃO
Como exposto, desde o intróito, o crescimento da contratação eletrônica é galopante e inevitável, assim como a rede mundial de computadores. A natureza humana revela-se,
no sentido de receio e temor pelo desconhecido, entretanto alguns indivíduos são investigadores e
desbravadores (uns mais outros menos) e aceitam o desafio de adentrar ao admirável mundo novo,
a vida virtual. Nesse sentido, centrou o presente estudo na doutrina pátria e internacional, já que
esta investiga e proporciona suporte teórico para o legislador e aplicador do direito.
Em sede de conclusões e em apertada síntese, é possível destacar ser perfeitamente possível a contratação eletrônica sendo, inclusive, esta, abarcada pelo Direito pátrio, por
meio o Código Civil brasileiro baseado em uma filosofia culturalista que abre a lei para o que se tem
de novo no campo social, interpretando essas novas insurgências do meio, muitas vezes,
analogicamente.
A abertura do sistema e a aplicação principiológica revelam-se como um suporte normativo, à disposição do operador do direito. Cabe à doutrina e à jurisprudência delinear e
localizar as deficiências e peculiaridades do cenário eletrônico para que este disponha de meios
que proporcione maior segurança aos contratantes.
Nesse sentido, localiza-se a primeira problemática. Definir a natureza jurídica
do contrato eletrônico. A doutrina ainda não chegou a um entendimento uníssono. Se não fosse
suficiente, restam dúvidas quanto à legitimação das partes envolvidas, o que requer um uso
supervalorizado da boa-fé dos contratantes.
Enfim, a sociedade hodierna caracteriza-se pela globalização, digitalização e
velocidade da informação. Resta ao direito buscar tutelar as relações nesta desenvolvidas, uma
vez que negar a evolução constante das instituições jurídicas, principalmente das relações privadas,
pelo aspecto cotidiano, seria omitir-se quanto a evolução do próprio homem e do meio em que ele
está inserido.
122
REFERÊNCIAS
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Forense, 2001.
CARVALHO, Ana Paula Gabogi. Contratos Via Internet. Belo Horizonte: Del Rey, 2001.
COLARES, Rodrigo Guimarães. Internet Legal: O Direito na Tecnologia da Informação. Artigo:
Contratos Eletrônicos x Informáticos. Modalidades Contratuais ganharam novas terminologias. 4.
tiragem. Curitiba: Juruá, 2006.
CORRÊA, Gustavo Testa. Aspectos Jurídicos da Internet. São Paulo: Saraiva, 2000.
DIAS, Jean Carlos, Direito Contratual no Ambiente Virtual, 2. ed. rev. e atu. Curitiba: Juruá, 2004.
FERREIRA, Ivette Senise; BAPTISTA, Luiz Olavo. Novas Fronteiras do Direito na
Era Digital. São Paulo: Saraiva, 2002.
GAGLIANO, Pablo Stolze; PANPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil: Contratos. v. 4. Tomo I. São Paulo: Saraiva, 2005.
GONÇALVES, Carlos Roberto, Direito das Obrigações – Parte Especial – Contratos (Sinopse
Jurídicas), Tomo I. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2002.
LAWAND, Jorge José. Teoria geral dos Contratos Eletrônicos. São Paulo: Juarez de Oliveira,
2003.
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Simone Vinhas de Oliveira, Valkíria A. Lopes Ferraro, Vinicius Franco da Silva e Wesley Tomaszweski
LORENZETTI, Ricardo L. Comércio Eletrônico. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.
ORTIZ, Rafael IIIescas. Derecho de la contratación eletrônica. Madrid: Civitas Ediciones,
2001.
REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2003.
REVISTA GAZETA MERCANTIL: E-commerce - Comércio varejista virtual. 04.01.2006.
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Linha de Pesquisa “Teorias do Direito do Estado e Cidadania”
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Ana Carolina Miiller Lopes e Ana Karina Ticianelli Möller
CONSIDERAÇÕES SOBRE O PODER CONSTITUINTE
Ana Carolina Miiller Lopes*
Ana Karina Ticianelli Möller*
RESUMO
O artigo trata do Poder Constituinte Originário, analisado como um fato não jurídico, que ocorre no
plano das relações político-sociais, e constrói, a partir de si, a lei suprema. Expõe em situação
diversa o Poder Constituinte Derivado, como um segundo poder, jurídico, calcado em uma regra
constitucional do Direito e seus limites.
Palavras-chave: Poder Constituinte Originário. Poder Constituinte Derivado.
CONSIDERINGS ON THE CONSTITUENT POWER
ABSTRACT
The article deals with the Originary Constituent Power, analyzed as a not legal fact, that occurs in
the plan of the social politician relations, and constructs, from itself, the supreme law. Derivative
displays in diverse situation the Constituent, as as to be able, legal, treaded Power in a constitutional
rule of the Right and its limits.
Keywords: To be Able Constituent Originary. To be Able Constituent Derivative.
1 INTRODUÇÃO
O texto pretende a análise do Poder Constituinte Originário como um fato não
jurídico, que ocorre no plano das relações político-sociais, não encontra como referencial nenhuma
norma jurídica, e constrói, a partir de si, a lei suprema, afirmado como o momento de passagem do
poder ao direito. Situação diversa encontra-se o Poder Constituinte Derivado, calcado em uma
regra de Direito, constitucional, que permite a Emenda Constitucional.
Compreender a origem, a força e a atuação do Poderes Constituintes Originário e Derivado, este com todos seus limites, aquele de poder ilimitado, torna-se necessário para
compreensão da própria história da Constituição, bem como de seu significado para toda a sociedade.
2 O PODER CONSTITUINTE
Poder Constituinte é aquele entendido como o Poder de se elaborar uma Constituição; capaz de criar, modificar ou implementar normas de força constitucional. É um poder
primário, primogênito, de primeiro grau, genuíno, não adstrito a nenhum outro poder ou direito
(DINIZ, 2004). É ilimitado, incondicionado, não tem por referencial nenhuma norma jurídica, pelo
contrário, é a partir dele que vai ser produzida a norma suprema, o texto jurídico. Portanto o Poder
Constituinte é pré-jurídico, precede à formação do direito, não sofre embargo de ordem jurídica e/
ou nenhuma outra ordem.
* Advogada, especialista em Direito Empresarial, mestranda em Direito Negocial pela Universidade Estadual de Londrina.
* Advogada, especialista em Direito Empresarial, mestranda em Direito Negocial pela Universidade Estadual de Londrina.
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Considerações sobre o Poder Constituinte
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Pode-se afirmar que o Poder Constituinte Originário é o maior momento de
ruptura com uma ordem constitucional, sendo que, devido à força do Poder Originário, essa nova
ordem constitucional que se inicia não terá qualquer limite jurídico positivo naquele sistema com o
qual se está rompendo.
Celso Antonio Bandeira de Melo (1983, p.69) entende que o Poder Constituinte
não se constitui um fato jurídico, já que o ser incondicionado, o ser ilimitado já demonstra que não
sofre nenhum tipo de restrição, e, portanto, não tem por referencial nenhuma norma jurídica. E
dessa forma, também não se teria de falar que o Poder Constituinte confere poder a alguém, já que
o Poder Constituinte é um fato, ou alguém tem este poder e o exerce ou não tem este Poder. Ele
existe por si só e assim produz seus efeitos, sem que algum bloqueio de ordem jurídica possa servir
de embargo, de óbice, de impeço àquilo que venha a ser disposto pelo Poder Constituinte.
O titular do Poder Constituinte é o povo, pois a idéia de titularidade do Poder
está adstrita à imagem de soberania do Estado, uma vez que através do exercício do Poder Constituinte Originário se estabelecerá sua organização fundamental através da Constituição. Assim, a
titularidade do Poder Constituinte pertence ao povo, pois o Estado decorre dessa soberania popular. Entretanto, não se confunde titularidade com exercício, sendo que o titular do poder constituinte
é o povo, entretanto o seu exercício é realizado por aqueles que, em nome do povo, criam o Estado,
editando uma nova Constituição.
A Constituição é feita não pelo, mas para o Estado, a ponto de se afirmar que,
juridicamente falando, a cada nova Constituição corresponde a um novo Estado, sendo, por essa
razão, no entendimento de Miguel Nogueira de Brito (2000, p. 32) “que toda a Constituição Positiva
toma o nome do Estado que ela põe no mundo das positividades jurídicas”, como “República Federativa do Brasil”. Ainda do mesmo autor, “... a própria Constituição originária, que é a primeira voz
do Direito aos ouvidos do povo, é gestada por ele e somente por ele, o Poder Constituinte”.
O exercício do Poder Constituinte Originário realiza-se por meio da outorga,
também chamada de “Movimento Revolucionário” e da Assembléia Nacional Constituinte. A outorga é o estabelecimento da Constituição pelo próprio detentor do poder, sem a participação popular. É ato unilateral do governante, que auto-limita o seu poder e impõe as regras constitucionais ao
povo. Geralmente é a primeira forma de Constituição de um país que adquire liberdade política. Já
a Assembléia Nacional Constituinte é a forma típica de exercício do poder constituinte, em que o
povo, seu legítimo titular, democraticamente, outorga poderes a seus representantes especialmente
eleitos para a elaboração da Constituição. Ocorre em todas as demais Constituições após a outorga da primeira (MORAES, 2004, p.58).
Para o professor Pinto Ferreira (apud MAGALHÃES, 2004) existem dois
tipos principais de organização do poder constituinte. O primeiro é o modelo da convenção constitucional, que é o tipo primitivo onde existe uma assembléia eleita pelo povo para elaborar a Constituição, e não há necessidade de ratificação popular. O segundo modelo é o sistema popular direto,
onde a Constituição é votada pela convenção nacional e posteriormente é submetida à aprovação
popular através do referendo, sendo que esta última é tida como a forma mais democrática de
realização do Poder Constituinte.
O Poder Constituinte Originário é forte o suficiente para romper com o
ordenamento anterior sem qualquer limite jurídico positivo. É um poder de fato, de transformação
social, e aí reside a sua força. Uma Constituição deve ser tão forte e perene a ponto de nenhum
poder jurídico conseguir romper com seus fundamentos e estrutura. Apenas um poder social fortalecido tem autoridade para tal, legitimando essa ruptura, sem ilegalidade ou inconstitucionalidade
em relação ao ordenamento rompido.
Com a afirmativa de que somente o poder constituinte é poder de fato – histórico e transformador, e não jurídico, tem-se a segurança de que a Constituição não será objeto de
manobra política por parte da rotatividade parlamentar, evitando que os interesses sejam constantemente modificados, à mercê de uma minoria, ainda que esta minoria seja, teoricamente, a representação de uma sociedade.
O desenvolvimento de mecanismos representativos e consultivos, como o plebiscito e o referendo, para alteração do texto constitucional, deve ser analisado com cautela, pois a
força da propaganda manipuladora pode proporcionar uma falsa vontade popular. Nada justifica,
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senão uma mobilização popular genuína, as rupturas profundas constitucionais. O Poder Constituinte somente será legítimo quando sustentado por um amplo processo democrático, constituindo-se
também um Poder de Direito, entendendo o direito não como texto positivado, mas como idéia de
justiça, fundamentando democraticamente as rupturas constitucionais, com debate profundo dos
mais variados interesses e valores da sociedade nacional.
Para Antonio Negri (In: BRITO, 2000, p.35) o poder constituinte apresenta-se
como uma dilatação revolucionária da capacidade humana de fazer história, como um ato fundamental de inovação, e, deste modo, como um procedimento absoluto, que significa a capacidade
real, de organizar uma estrutura dinâmica, de construir uma forma formadora que, através de
compromissos, balanços de forças, ordens e equilíbrios diversos, encontra a racionalidade dos
princípios, a adequação material do político relativamente ao social.
Encontra-se, historicamente, o Poder Constituinte exercido de diversas maneiras, tendo como sujeito grupos, com interesses além dos da sociedade, ou indivíduos, como ditadores, reis, titulares de um poder nem sempre legítimo, com distorções graves do conceito de democracia. Mas também exercido de forma diferente, com expressa representação e manifestação
popular, da vontade nacional.
É certo que a vontade do poder constituinte deve emanar de mecanismos democráticos, que permitam que o processo de elaboração da constituição, assim como de sua reforma, seja aberto a ampla participação popular, não apenas através de diálogo com os representantes
eleitos, mas através do poder de soberania do povo. Portanto, o Poder Constituinte Originário
pertence a uma assembléia eleita com a finalidade de elaborar a Constituição, deixando de existir
quando cumprida tal função, e, assim sendo, é um poder temporário.
Também pode o Poder Constituinte resultar de um golpe de militar, como foi o
caso do Brasil, exercido com a Carta de 1967 e uma nova Carta em 1969, denominada de Emenda
nº 1, cujo processo da reforma constitucional reflete as tensões internas do regime da época, da
oposição dos moderados à linha dura do regime vigente.
O poder será democrático quando existir de forma ampla a demonstração e
discussão de temas de importância nacional, com a efetiva participação das forças sociais, com o
mínimo de pressão de grupos econômicos e manipulação por meio de marketing político, a fim de
se evitar que a vontade de uma minoria prevaleça sobre a vontade e as necessidades reais de toda
a sociedade.
A aceitação e legitimação do texto pela sociedade são tão necessárias que,
embora essencial a existência de um processo democrático na sua elaboração, pode nascer de
forma inadequada e, mesmo assim, ser incorporada pela sociedade, como no caso da Lei Fundamental alemã de 1949, ainda hoje vivida pelos alemães, como verdadeira Constituição, entre outros
exemplos históricos.
Julian Franklin (In: BRITO, 2000, p.16) explica que Locke introduziu pela primeira vez a distinção clara e consistente entre poder constituinte e poder ordinário, de aplicação
universal, estabelecendo o princípio de que os representantes ordinários, independente do fato de
terem sido eleitos democraticamente, não podem alterar procedimentos constitucionais ou liberdades do sistema que sejam constitucionalmente reservadas aos indivíduos, sem o consentimento de
toda a comunidade. O modo de Locke fundamentar o direito de resistência ressaltou a importância
dos conflitos entre rei e parlamento que caracterizavam a história política inglesa do Séc. XVII, a
serem resolvidos por meio da soberania do povo. Para Locke, existe um poder constituinte permanente no povo, referente à sua titularidade, mas não ao respectivo exercício. Fundamenta com o
fato de o poder constituinte aparecer equacionado com o direito de resistência.
Apesar do Poder Constituinte ser um poder político por excelência, não se
deixando regrar pelo Direito, não significa que está imune aos fatores sócio-culturais da sociedade
que o detém. A legitimidade da Constituição a ser constituída está intrinsecamente ligada ao reconhecimento político que terá por esta mesma sociedade. Há sim uma independência formal e
material, um rompimento com a carta anterior, mas a construção e a conquista dos direitos fundamentais das sociedades não podem ser relegados e esquecidos quando da elaboração da nova
carta. São direitos que precedem a própria Constituição, que independem de sua positivação para
sua aceitação pela sociedade.
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Considerações sobre o Poder Constituinte
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Existe um grande questionamento sobre a legitimidade da Constituinte para
romper com os direitos fundamentais da ordem constitucional anterior. E a Assembléia Nacional
Constituinte pode realmente fazer isso, já que seu poder é incondicionado a qualquer norma jurídica, além de soberana e de ter poder ilimitado para dispor da forma como desejar. Entretanto é certo
que os direitos e garantias fundamentais independem de positivação para serem reconhecidos
como legítimos pelo povo. Assim, não é uma Constituição que tem o Poder para positivar tais
direitos e garantias, mas, sim, estes são positivados nas Constituições por serem direitos vivenciados
e reconhecidos pela sociedade.
Por isso que, mesmo a Constituinte sendo legítima, no sentido literal da palavra,
para dispor e até excluir esses direitos e garantias fundamentais do texto constitucional, não será
reconhecida pela sociedade tal exclusão, já que o povo soberano reconhece tais valores como
direitos seus legítimos, e, assim sendo, continuarão a requerê-los quando houver violação ou ameaça de violação dos mesmos, independentemente de sua positivação.
Quando o povo se reúne em uma Assembléia Nacional, que representa a sociedade e não o Estado, assumindo sua natureza constituinte, e positiva seus direitos e suas diretrizes,
exerce a plena soberania e transforma este poder de constituir em poder constituído, saindo da
esfera política e adentrando, agora, sim, na esfera jurídica. Dissolve-se a Assembléia no momento
da positivação e promulgação da nova Carta.
A Constituição Federal de 1998 foi incorporada pela sociedade brasileira e tem
em cada cidadão, sociedade organizada, tribunais e juízos de primeiro grau, administradores e
legisladores, seus intérpretes e defensores contra a ação do Congresso Nacional e alguns juízes,
quando deixam de aplicar o texto constitucional para proteger políticas econômicas inconstitucionais,
ou utilizam de emendas constitucionais, inconstitucionais, visando priorizar o econômico, contra o
Direito e a Justiça (MAGALHÃES, 2004).
Em relação à Constituição Federal de 1988 há questionamento por parte de
alguns autores e doutrinadores sobre a legitimidade da Assembléia Nacional Constituinte convocada
para compor a elaboração da nova Carta Magna do Brasil. Ocorre que a convocatória da Assembléia Constituinte se deu através da Emenda Constitucional nº 26 à Constituição Federal de 1969,
por iniciativa do próprio Poder Executivo, que tenta transformar o Congresso, que é um poder
constituído e limitado, em um órgão de soberania como deve ser a Assembléia Constituinte
(BONAVIDES, 2004, p. 493). Assim, foram eleitos deputados e senadores, uma assembléia congressista que não viria a ser dissolvida posteriormente, para a mais importante tarefa de criar a
nova Carta Constitucional, sendo que tal fato exclui da Assembléia Nacional Constituinte os requisitos da soberania popular plena e ruptura com a ordem constitucional anterior, pressupostos que
são fundamentais para a uma Constituinte, o que fundamenta a discussão sobre sua legitimidade.
Cabe, porém, ressaltar que, embora tenha havido vários problemas de ordem
formal, que, muitas vezes, colocam em dúvida a real legitimidade da Constituinte, é certo que, em
toda a história constitucional brasileira, não houve outra Constituinte na qual o povo estivesse tão
perto dos mandatários da soberania e pudessem, sem qualquer óbice ou restrição, colaborar para o
atual texto constitucional, participando efetivamente de sua instituição. Assim, tais fatos bastam, no
entendimento de Paulo Bonavides (2004, p. 496), para “explicar e demonstrar o alto índice de
legitimação alcançado pela Constituinte congressual, redimida assim de suas origens impuras”
visto que devido à tamanha participação social em sua elaboração há integral reconhecimento,
incorporação e vivência de seu conteúdo pela sociedade brasileira.
3 O PODER CONSTITUINTE DERIVADO E SEUS LIMITES
Diferente do Poder Constituinte Originário, que tem como finalidade a elaboração de uma nova Constituição, o Poder Constituinte Derivado, também chamado de Reformador,
pode se manifestar a qualquer momento, desde que cumpridos os requisitos formais e observados
os limites impostos. Diz respeito à alteração de elementos secundários de uma ordem jurídica,
tendo em vista não ser possível alterar através de emenda ou revisão os princípios fundamentais ou
estruturais de uma ordem constitucional. Os princípios fundamentais e estruturantes são a essência
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da Constituição, e, mesmo que não haja cláusula expressa que proíba emenda ou revisão, a essência não pode ser alterada.
O Poder de revisão é mais amplo que o de emenda, pois trata de uma revisão
sistêmica do texto constitucional. Apesar de prevista na Constituição brasileira, a revisão foi concretizada atipicamente, por meio de emendas, porém respeitados os aspectos formais processuais
da revisão prevista no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.
Enquanto o Poder Constituinte Originário visa resolver o problema da fundação
de um novo corpo político, o poder de revisão se encarrega com o problema das alterações da
constituição e tem a ver com a questão de saber como poderão as gerações futuras exercer o seu
consentimento relativamente à lei fundamental (BRITO, 2000, p. 125).
O poder de reforma pode manifestar-se a qualquer tempo, desde que respeitados determinados limites. Em relação aos limites do Poder Constituinte Derivado, são divididos em
três espécies: limites materiais, formais e temporais (AGRA, 2002, p. 77). Os limites materiais são
aqueles que dizem respeito às matérias que podem ser tratadas pela emenda constitucional. Assim,
o art. 60, parágrafo 4º, incisos I a IV da CF, dispõe sobre os limites materiais, informando que é
vedada emenda tendente a abolir a forma Federal, os direitos individuais e suas garantias, a separação dos poderes e a democracia. Tendo em vista a teoria da indivisibilidade dos direitos fundamentais, conclui-se que também não pode haver emendas que limitem de qualquer forma os direitos individuais, políticos, sociais e econômicos.
Nesse mesmo artigo, encontram-se alguns limites circunstanciais, sendo que
não poderá haver emendas ou revisão durante situações como o estado de sítio, estado de defesa
e intervenção federal, pois são ocorrências de grave comprometimento da democracia. Outro
limite diz respeito às regras constitucionais referentes ao funcionamento do poder constituinte de
reforma, que não podem ser objetos de emenda, sob pena de total ausência de segurança jurídica.
Também há aqueles limites materiais implícitos, que são os que dizem respeito
ao funcionamento do poder constituinte de reforma, que não podem ser objetos de emenda, sob
pena de falta de segurança jurídica. Mesmo não existindo limites expressos, o poder de reforma
não pode se transformar em um poder originário. O poder de reforma pode modificar, alterar o
conteúdo da Constituição, mantendo sua essência, ou seja, os princípios fundantes e estruturantes,
pois reforma não é construir outro e sim modificar por meio de adição, supressão ou modificação
de alínea, inciso e/ou artigo da Constituição, mantendo-se sua estrutura e fundamentos (AGRA,
2002, p. 77).
Os limites formais impostos na Constituição Federal são aqueles que obrigam
que a emenda se dê através de quorum de 3/5, em dois turnos de votação, em seção bicameral
enquanto a revisão ocorre em seção unicameral por maioria absoluta (50% mais um de todos os
representantes). Quanto aos limites temporais, a Constituição de 1988 estabeleceu que a revisão
ocorreria após cinco anos da promulgação da Constituição, não existindo limites temporais para a
reforma por meio de emendas (MAGALHÃES, 2004).
Portanto, Poder de reforma significa alterar normas secundárias, as regras,
mas jamais a estrutura, a essência, o fundamento de uma ordem jurídica.
4 CONCLUSÃO
Com o presente estudo conclui-se a importância em entender o Poder Constituinte e as diferenças entre suas formas de expressão, seja como Poder Constituinte Originário,
seja como Poder Constituinte Derivado ou Reformador, já que tais formas foram, por várias vezes,
utilizadas nas Constituições Federais Brasileiras e ainda serão cada vez que o povo brasileiro
entender necessária a ruptura com as atuais realidades sócio-político-jurídicas.
Poder Constituinte Originário é aquele ilimitado, incondicionado, que cria uma
nova Constituição através da soberania popular, delega o exercício de tal poder a uma Assembléia
Constituinte. Já o Poder Derivado ou Reformador é aquele que fica à disposição para quando for
necessária alguma alteração no conteúdo da Constituição então vigente, e faz tal modificação por
meio de emenda ou revisão.
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Considerações sobre o Poder Constituinte
Com relação ao questionamento sobre a possibilidade de o Poder Constituinte
Originário, escolhido para compor uma nova Ordem Constitucional, ter legitimidade para eliminar
do novo texto as garantias e direitos fundamentais previstos e já aceitas pela sociedade, verifica-se
que tal poder tem realmente esta legitimidade, por ser ilimitado, incondicionado, e por romper-se
em relação ao antigo texto constitucional, sem necessidade de se ater a quaisquer direitos anteriormente previstos.
Ocorre, entretanto, que esses direitos e garantias individuais e sociais, aceitos e
incorporados pela sociedade, não são apenas pelo motivo de estarem positivados no texto Constitucional. Engana-se aquele que entende que tais direitos somente existem em decorrência de disposição legal. Pelo contrário. Em relação a esses direitos foi a própria lei que teve de adequar-se
com tais dispositivos em seu conteúdo, uma vez que tais direitos já estavam aceitos e incorporados
pela sociedade, e qualquer nova ordem constitucional que venha a ser implementada, deverá conter, em seu bojo, tais direitos e garantias, uma vez que estes são pré-constitucionais. Tais direitos e
garantias são como a essência humana, e independentemente de positivação, já são reconhecidos
pela sociedade como tais. Assim, a Constituição, na sua essência, deve ser tão forte e perene que
nenhum poder constituinte pode romper com seus fundamentos e estrutura, mas somente um poder
social mais forte, que nem mesmo a Constituição poderá segurá-lo, já que é o poder social dos
próprios cidadãos, incorporados, reconhecidos e aceitos por eles através da história e da evolução
social.
Em relação à legitimidade da Assembléia Nacional Constituinte de 1987, seja
pela natureza da Constituinte Congressista, seja pela questão da não ruptura com a ordem constitucional anterior, é inegável que o poder constituinte originário foi forte o suficiente para construir
uma nova ordem sem nenhum tipo de limite jurídico positivo na ordem com a qual se estava rompendo, e a sua legitimidade está validada pela participação popular em sua elaboração, tanto que,
embora não cumpridos alguns requisitos formais de uma Constituinte, está sendo integral e plenamente vivida e sentida pela sociedade brasileira.
132
REFERÊNCIAS
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Tribunais, 2003.
BARROSO, Luís Roberto. Temas de Direito Constitucional. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar,
2002.
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 2004.
BONAVIDES, Paulo. ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. 5. ed. Brasília:
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BRITTO, Carlos Ayres. Teoria da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2003.
BRITO, Miguel Nogueira de. A Constituição Constituinte. Ensaio sobre o poder da revisão
da Constituição. Coimbra: Coimbra, 2000.
CRETELLA JR., José. Elementos de Direito Constitucional. 4. ed. rev. atual. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2000.
DINIZ, Jean dos Santos. O Poder Constituinte – Aula 01. 05 abr. 2004. Disponível em: <http://
www.vemconcursos.com/opiniao/index.phtml?page_ordem=assunto&page_id=1502&page_print=1>.
Acesso em: 09 jun. 2006.
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Ana Carolina Miiller Lopes e Ana Karina Ticianelli Möller
MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. A Teoria do Poder Constituinte. Jus Navigandi, Teresina,
ano 8, n. 250, 14 mar. 2004. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=4829>.
Acesso em: 24 jun. 2006.
MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Revista de Direito Constitucional e Ciência Política
nº. IV, 1983.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 15. ed. São Paulo: Atlas, 2004.
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A Influência da Tópica no Pensamento de Peter Häberle e o seu conceito de Interpretação
Constitucional
A INFLUÊNCIA DA TÓPICA NO PENSAMENTO DE PETER HÄBERLE E O
SEU CONCEITO DE INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL1
Carolina V. Ribeiro de A. Bastos*
Eder Fernandes Mônica
Samia Moda Cirino
RESUMO
Diante dos novos problemas da sociedade contemporânea e da necessidade de uma atualização da
Teoria da Constituição, o presente trabalho tem por escopo analisar a reformulação dada às teorias
tradicionais da Interpretação, que se mostraram em determinado momento insuficientes. Para
tanto, abordar-se-á primeiramente a metodologia clássica da interpretação e, em seguida a contribuição da Tópica no sentido de voltar à atenção para o problema ao colocar o intérprete em
contato com a realidade. Tratará também das posturas intermediárias, que procuraram a conciliação entre realidade e normatividade. E, por fim, analisar-se-á a teoria pluralista e procedimental de
Peter Häberle, a qual colocou novas indagações, até então inexistentes, à Teoria da Interpretação
Constitucional.
Palavras-chave: Teoria da Constituição. Interpretação. Peter Häberle.
THE INFLUENCE OF THE TOPICAL IN THE THOUGHT OF PETER HÄBERLE
AND ITS CONCEPT OF CONSTITUTIONAL INTERPRETATION
ABSTRACT
134
Before the new problems of the contemporary society and of the need of a modernization of the
Theory of the Constitution, the present work has to objective to analyze the reformulation given to
the traditional theories of the Interpretation, that were insufficient in certain moment. For so much,
it will be approached the classic methodology of the interpretation firstly and, in continuation, the
contribution of the Topical in the sense of returning to the attention for the problem when placing
the interpreter in contact with the reality. The intermediary postures will be treat too, that sought
the conciliation between reality and the normativity. Finally, will be analyzed the pluralist and the
procedimental theory of Peter Häberle, which placed new inquiries, until then no existents, to the
Theory of the Constitutional Interpretation.
Keywords: Constitucional Theory. Interpretation. Peter Häberle.
1 INTRODUÇÃO
Canotilho enumera alguns problemas básicos da Teoria da Constituição, tais
como: dificuldade de inclusão dos problemas das mudanças e inovações jurídicas; necessidade de
reinvenção do seu território; impossibilidade de formação de um código unitário diante da complexidade social que gera diferenciações funcionais em sistemas (político, econômico, jurídico); ausência de uma compreensão de novos conceitos da teoria social como o conceito de risco, dentre
outros (2004, p. 27-35).
1 Trabalho apresentado como requisito parcial de conclusão da disciplina de Direito Constitucional do curso de Mestrado em
Direito Negocial da Universidade Estadual de Londrina.
* Mestrandos em Direito Negocial pela Universidade Estadual de Londrina.
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Carolina V. Ribeiro de A. Bastos, Eder Fernandes Mônica e Samia Moda Cirino
Esses problemas demonstram que, face ao desenvolvimento acelerado e o grau
de complexidade das sociedades contemporâneas, o Direito Constitucional e Teoria da Constituição já não conseguem responder às demandas por uma sociedade mais justa e igualitária. Atualmente, há que se refletir e afrontar questões como diversidade, comunidade global e legitimação
democrática da Constituição se se pretende sair do idealismo e tentar recuperar o contato com a
realidade social.
Nesse contexto, novos instrumentos surgiram no sentido de dar uma
reformulação às teorias tradicionais da interpretação constitucional. Percebeu-se que os métodos
clássicos não conseguiam responder satisfatoriamente às novas demandas sociais e às particularidades apresentadas, bem como se levantou o problema de qual seria a melhor maneira de interpretar a Constituição, ou ainda o que se entende por “interpretação constitucional”.
O filósofo da linguagem Wittgenstein acreditava que a indagação sobre o significado das palavras orienta melhor as tarefas práticas da vida e que o estudo do uso da linguagem
logo mostra a grande complexidade da vida social. Segundo Wittgenstein, a incerteza quase sempre é o resultado obtido quando se procura respostas para perguntas que aparentemente são simples, como, por exemplo: o que é o Direito (MORRISON, 2006, p. 01-02)?
Neste sentido, este estudo propõe a tarefa de buscar, na perspectiva de Peter
Häberle, a resposta à questão: O que é interpretação constitucional? Para tanto, primeiramente,
partiu-se da metodologia clássica da interpretação constitucional, demonstrando suas premissas e
insuficiências, as quais levaram os autores a buscar uma relação maior com a realidade, ou seja,
deixando somente o caráter abstrato e geral das normas constitucionais e levando em conta a
Constituição material e sua capacidade de apreender e resolver os problemas. Essa foi a proposta
da tópica jurídica, relevante por despertar a atenção para o problema em si. Entretanto, outros
juristas verificaram que, ao se conferir tanta relevância ao problema, corria-se o risco da perda de
normatividade da Constituição. Houve então a procura de uma metodologia que permitisse o contato com a realidade sem se perder o caráter normativo. Peter Häberle, ao analisar essa discussão,
mudou seu enfoque, no sentido de não só se buscar os melhores métodos, mas também uma maior
legitimação do processo de interpretação constitucional.
2 METODOLOGIA CLÁSSICA DA INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL
Devido a motivos como ambigüidade do texto, imperfeição, falta de terminologia técnica é que a doutrina tem buscado desenvolver métodos para a interpretação das normas
jurídicas e, mais especificamente, das normas constitucionais, haja vista suas peculiaridades. Consoante assevera Canotilho (CANOTILHO, 2003, p. 1210):
A questão do “método justo” em direito constitucional é um dos problemas
mais controvertidos e difíceis da moderna doutrina juspublicista. No momento atual, poder-se-á dizer que a interpretação das normas constitucionais é um conjunto de métodos, desenvolvidos pela doutrina e pela jurisprudência com base em critérios ou premissas (filosóficas, metodológicas) diferentes mas, em geral, reciprocamente complementares .
Contudo, segundo Luis Roberto Barroso (2003, p. 107), os adeptos dos chamados métodos clássicos de interpretação, advindos dos institutos do Direito Civil, parecem não atentar às seguintes particularidades constitucionais: superioridade hierárquica, natureza da linguagem,
caráter político, dentre outros aspectos que evidenciam a necessidade de uma metodologia aplicada à Constituição de certa forma autônoma dos demais métodos interpretativos presentes no sistema jurídico (2003, p. 107).
A metodologia clássica parte da tese da identidade pela qual a interpretação
constitucional equivale à interpretação legal, tendo em vista que, para todos os efeitos, a Constituição é uma lei. Assim, a despeito da posição que ocupa na estrutura do ordenamento jurídico, a
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A Influência da Tópica no Pensamento de Peter Häberle e o seu conceito de Interpretação
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Constituição essencialmente é uma lei e, por isso, há de ser interpretada segundo as regras tradicionais da hermenêutica, articulando-se e complementando-se, para revelar o seu sentido, os mesmos critérios que são levados em conta na interpretação das leis em geral.
Trata-se de uma concepção hermenêutica, baseada na idéia de que toda norma possui um sentido em si, uma vontade pré-existente, seja aquela que o legislador pretendeu
atribuir-lhe (mens legislatoris), seja a que afinal acabou embutida no texto (mens legis). E, por
meio dos instrumentos de interpretação (lógico, sistêmico, teleológico e gramatical), poderia ser
alcançado o sentido, o querer inerente à norma independentemente do problema a ser solucionado. Por isso, a tarefa do intérprete, como aplicador do direito, resumir-se-ia em descobrir o
verdadeiro significado das normas e guiar-se-ia por ele na sua aplicação. Assim, desde fins do
século XIX, essas duas teorias da interpretação jurídica - objetiva e subjetiva - enfrentam relativamente quanto ao critério metodológico que o interprete deve seguir para desvendar o sentido
da norma (DINIZ, 2003, p. 420).
A teoria subjetiva, que tem como principais expoentes Savigny e Windscheid,
estabelece, como meta da interpretação, o estudo da vontade histórico-psicológica do legislador
expressa na norma. O pensamento dominante, nessa metodologia, estava eminentemente voltado
para o legislador a fim de determinar a mens legis, entendida como a vontade oculta do propositor
da norma, cuja vontade incumbia ao intérprete revelar com fidelidade.
Segundo Bonavides, o voluntarismo é o traço marcante dessa corrente que se
renova no século XX com as modernas escolas da interpretação, que substituem o voluntarismo do
legislador pelo voluntarismo do juiz. Assim ocorre, por exemplo, com os juristas da livre investigação científica (Geny), do “direito livre” (Kantorowicz) e da teoria pura do direito (Kelsen). Entretanto, Bonavides destaca que os subjetivistas dessa nova corrente, exaltando a função judicial,
“debilitam as estruturas clássicas do Estado de Direito, assentadas numa valorização dogmática da
lei, expressão prestigiosa e objetiva de racionalidade” (2004, p. 453).
Já a teoria objetiva, tendo como principais representantes Karl Engisch,
Schreier e Larenz, preconiza que na interpretação deve-se ater à vontade da lei – mens legis –
que, com sentido objetivo, independe do querer subjetivo do legislador, porque, após o ato legislativo,
a lei desliga-se do seu elaborador, adquirindo existência objetiva. Consoante expõe Diniz, a norma seria uma “vontade transformada em palavras, uma força objetivada independente do seu
autor”, razão pela qual deve ser buscado o sentido imerso no texto e não o que o legislador teve
em mira (2003, p. 421).
A tese dessa corrente gira, ao dizer de Engisch, ao redor do texto da lei, “da
palavra que se fez vontade”. O conteúdo da lei se desprende do legislador e adquire autonomia
para seguir um curso independente. A vontade do legislador tem função apenas subsidiária,
ficando, assim, a lei desmembrada de suas origens, dotada de força e vida própria (BONAVIDES,
2004, p. 454).
A posição objetivista da interpretação da lei e da Constituição tornou-se a posição predileta dos positivistas formais do século XIX que, em nome da estabilidade e segurança
jurídica, preconizavam o dogmatismo e a legalidade como fundamentos das instituições do Estado
de Direito. Vivia-se o auge do formalismo jurídico, do culto ao texto da lei, da Constituição Formal
e da neutralidade diante da tensão entre a Constituição e a realidade constitucional, de onde resultou um Direito Constitucional fechado, compacto, sistemático, lógico. Essa posição também levou
ao dualismo entre Estado e Sociedade. Nesse sentido, o texto constitucional exprimia basicamente
a organização do Estado, a atribuição de competências, limitação de seus poderes e a declaração
de direitos fundamentais oponíveis ao Estado.
A tarefa do intérprete de desvendar o sentido das normas constitucionais, seja
objetivo ou subjetivo, é orientada pelos elementos interpretativos: gramatical ou literal, lógico, sistemático, histórico e sociológico ou teleológico. Tais processos são “meios técnicos utilizados para
desvendar as várias possibilidades de aplicação da norma” (DINIZ, 2003, p. 425).
Pela técnica gramatical o intérprete busca o sentido literal do texto normativo
ante a indeterminação dos vocábulos que são, em regra, vagos ou ambíguos. Essa técnica se funda
sobre as regras da gramática e da lingüística. Para Larenz, consiste na compreensão do sentido
possível das palavras, servindo esse sentido como limite da própria interpretação (BARROSO,
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Carolina V. Ribeiro de A. Bastos, Eder Fernandes Mônica e Samia Moda Cirino
2003, p. 127). A interpretação gramatical, segundo Jhering, reconhece tão somente o que se disse
no texto da lei de modo direto e expresso. O que não consta das palavras é como se não existisse,
e deixa, portanto, de ser objeto de consideração (BONAVIDES, 2004, p. 440-441).
A interpretação lógica é aquela que, examinando a lei em conexidade com as
demais leis, investiga-lhe também as condições e os fundamentos de sua elaboração, de modo a
alcançar, posteriormente, a precisa vontade da lei. O elemento lógico, sintetizado na locução “intenção do legislador”, é considerado objetivamente e não subjetivamente, de modo que essa intenção não é a subjetivação de quem propôs a lei, mas a ratio ou mens é aquela que se insere e se
objetiva na norma mesma (BONAVIDES, 2004, p. 440-441). Quanto ao problema de fixação do
sentido e valor que se deve conferir à intenção do legislador, a doutrina da interpretação lógica se
reparte em três posições: escola dogmático-jurídica, escola da livre investigação do direito e escola
histórico-evolutiva. A escola dogmático-jurídica entende que a intenção ou vontade do legislador
resulta dos trabalhos preparatórios, das exposições de motivos, dos debates parlamentares que
precedem a adoção da lei. Todos esses elementos são importantes para determinar a mens legis.
Já a segunda, a escola da livre investigação do direito, abre ao intérprete uma larga esfera de
liberdade, que lhe consente deduzir o direito da consciência jurídica popular através da própria
consciência. Por último, a escola histórico-evolutiva toma a lei como dotada de vida própria, ou
seja, uma vez elaborada segue uma trajetória independente, amoldando-se às novas condições e
necessidades da vida social. A vontade da lei é o que ela exprime objetivamente e não o que quis
exprimir subjetivamente o legislador (BONAVIDES, 2004, p. 441-442).
Por sua vez, o processo sistemático considera o sistema, em que se insere a
norma, relacionando-a com outras normas concernentes ao mesmo objeto. Consoante assevera
Barroso, “o Direito positivo não é um aglomerado aleatório de disposições legais, mas um organismo jurídico, um sistema de preceitos coordenados ou subordinados, que convivem harmoniosamente”. A interpretação sistêmica é, portanto, fruto da idéia de unidade do ordenamento jurídico. Através dela o intérprete situa o dispositivo a ser interpretado dentro do contexto normativo geral e
particular, estabelecendo conexões até vislumbrar-lhe o sentido e alcance (2003, p. 136).
A técnica interpretativa histórica, oriunda das obras de Savigny e Puchta, baseia-se na averiguação dos antecedentes da norma, da occasio legis. Consiste, portanto, na busca
do sentido da lei através dos precedentes legislativos, desde o projeto de lei, sua exposição de
motivos, emendas, aprovação, as circunstâncias fáticas que a precederam e que lhe deram origem,
ou seja, às condições culturais ou psicológicas sob as quais o preceito normativo surgiu (DINIZ,
2003, p. 428).
O processo sociológico ou teleológico objetiva, na visão de Ihering, adaptar a
finalidade da norma às novas exigências sociais. O intérprete não pode estar indiferente às exigências da vida e ao fato de que a norma se destina a um fim social, de que o magistrado deve
participar, ao interpretar o preceito normativo (BONAVIDES, 2004, p. 440). Dessa forma, a técnica teleológica procura o fim, a razão do preceito normativo, para a partir dele determinar o seu
sentido.
No que tange a essas técnicas interpretativas, Scheuerle recomenda na aplicação prática do direito, uma livre escolha delas, como o melhor caminho a seguir, desde que isso,
porém, possa conduzir a um resultado satisfatório (BONAVIDES, 2004, p. 456). Muitos se
posicionaram a favor de uma livre escolha das técnicas interpretativas, como o melhor caminho a
seguir, desde que isso pudesse conduzir a um resultado satisfatório. Entretanto, Savigny discreparia
dessa livre eleição, pois afirmava que os quatro elementos tradicionais – gramatical, lógico, histórico e sistemático – não constituíam quatro formas de interpretação entre as quais se poderia escolher à vontade, mas diferentes atividades a atuarem conjugadas a fim de se obter uma interpretação bem-sucedida (BONAVIDES, 2004, p. 457).
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A Influência da Tópica no Pensamento de Peter Häberle e o seu conceito de Interpretação
Constitucional
3 AS TEORIAS MATERIAIS DA CONSTITUIÇÃO E A TÓPICA JURÍDICA
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Os procedimentos hermenêuticos tradicionais, no âmbito da Constituição do
Estado Liberal, funcionavam como interpretação de bloqueio, sob o primado do princípio da legalidade, visando à certeza e à segurança jurídica. Entretanto, com o advento do Estado Social, as
novas aspirações sociais exigiram procedimentos que as legitimassem em face da Constituição, ou
seja, uma interpretação de legitimação cuja realização exige a mediação concretizadora do intérprete. Assim, com a configuração social do Estado, tornou-se difícil, para a metodologia de origem
jusprivatista, conciliar o Direito com as novas aspirações da Sociedade, bem como a própria Constituição à realidade.
Essas novas aspirações sociais geraram um inconformismo com o positivismo
lógico-formal e o colapso das estruturas liberais de Estado. O social ganha prevalência sobre o
jurídico, fazendo com que o direito constitucional, de matizes formalistas, entre em declínio. Abrese um campo de imprevisível extensão para o florescimento de distintas posições interpretativas no
domínio da hermenêutica constitucional (BONAVIDES, 2002, p. 434-435).
É nesse contexto que surge a corrente tópica, como tentativa de responder às
novas aspirações. Na configuração dada por Viehweg, a tópica toma como ponto de partida o
sentido comum, e o desenvolve mediante um tecido de silogismos e não mediante longas deduções
em cadeia. Ela constitui uma parte da retórica, com raízes na Antiguidade, com as obras de Aristóteles
e Cícero, e com raízes na Idade Média, na qual a retórica foi uma das sete artes liberais. A partir do
racionalismo e da irrupção do método matemático-cartesiano, houve a desqualificação da tópica,
com sua conseqüente perda de influência na cultura ocidental. É por isso que Viehweg faz referência à Vico em sua obra, na qual este contrapunha o método antigo, tópico ou retórico, ao método
novo do cartesianismo (ATIENZA, 2003, p. 47-49).
Para Viehweg a tópica é caracterizada por três elementos, estreitamente ligados entre si. Do ponto de vista do seu objeto, a tópica é uma técnica do pensamento problemático;
do ponto de vista do instrumento com que opera, o que se torna central é a noção de topos ou lugarcomum; e do ponto de vista do tipo de atividade, a tópica é uma busca e exame de premissas. O
que a caracteriza é ser um modo de pensar no qual a ênfase recai nas premissas, e não nas
conclusões. Dessa maneira, a tópica é um procedimento de busca de premissas que, na realidade,
não termina nunca. Os tópicos são os fios condutores do pensamento que só permitem alcançar
conclusões curtas, e devem ser vistos como premissas compartilhadas que têm uma presunção de
plausibilidade. Com esse procedimento seria possível resolver aporias ou problemas impossíveis de
se afastar. A ênfase da análise recairia no problema, e não no sistema. Assim, trata-se de buscar
um modo que ajude a encontrar a solução; o problema leva assim a uma seleção de sistemas e em
geral a uma pluralidade de sistemas (ATIENZA, 2003, p. 49-50).
Conforme expõe Bonavides (2002, p. 446 a 453), com a insuficiência do método “científico” dos naturalistas e também com o malogro das correntes idealistas que tentavam
resolver com exclusividade o problema do método, fez inevitável a ressurreição da tópica como
método. Pensar o problema constitui o âmago da tópica. Ela não foi uma revolta contra a lógica,
mas procurou demonstrar que o argumento dedutivo não constitui o único veículo de controle da
certeza racional. É a tópica uma técnica jurídica da “praxis”. A situação deve ser compreendida
em toda a sua complexidade, a fim de problematizar-se o ideal de uma solução. Mas houve contra
a tópica fortes reações críticas e doutrinárias de juristas, preocupados com a metodologia, sobretudo aqueles inclinados a uma visão sistemática da ciência jurídica.
A invasão da Constituição formal pelos topoi e a conversão dos princípios
constitucionais e das próprias bases da Constituição em pontos de vista à
livre disposição do intérprete, de certo modo enfraquece o caráter normativo
dos sobreditos princípios, ou seja, a sua juridicidade. A Constituição, que já
é parcialmente política, se torna por natureza politizada ao máximo com a
metodologia dos problemas concretos, decorrentes da hermenêutica tópica
(BONAVIDES, 2002, p. 453).
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A tópica surge num contexto de renovação de toda a velha metodologia. Há
uma busca de maior dinamismo nos métodos interpretativos. Com a tópica, a norma e o sistema
perdem o primado, tornando-se meros pontos de vista ou simples “topoi”, cedendo lugar à
hegemonia do problema. Assim, os métodos clássicos são rebaixados à condição de auxiliares e,
desde que convenham ao esclarecimento e solução do problema, todos os métodos interpretativos
podem ser utilizados. Todo este contexto fez com que a tópica representasse o tronco de onde
partem as direções e correntes mais empenhadas em renovar a metodologia clássica de interpretação das regras constitucionais. Estas correntes ainda continuam em processo de elaboração teórica e de reação ao excesso de formalismo e juridicidade das correntes positivas
(BONAVIDES, 2002, 452-454).
4 A REFORMULAÇÃO DA TÓPICA
Alguns juristas, comprometidos com a teoria material da Constituição, buscaram uma saída metodológica para a crise em que a tópica tende igualmente a mergulhar: impotência teórica em lançar alicerces mais seguros. É nesse sentido que se levanta o jurista alemão
F. Müller, que procura estruturar e racionalizar o processo de concretização da norma, vinculando a atividade interpretativa a uma racionalização metodológica, não se dissolvendo, por conseguinte, o teor de obrigatoriedade ou normatividade da regra constitucional. Interpretar seria o
mesmo que concretizar a norma. Mas a pergunta que Müller se faz é “que norma?”. Esse é o
ponto fundamental de suas análises. A norma jurídica é algo mais que o texto de uma regra
normativa. A interpretação ou concretização de uma norma transcende a interpretação do texto.
Com isso, Müller tenta evitar o hiato entre as Constituições formal e material, bem como o
confronto da realidade com a norma jurídica, socorrendo, assim, a Constituição, e procura reaver
todo o sentido material das regras constitucionais exaurido pela metodologia formalista. Para
Müller, a Constituição é repositório de princípios, às vezes, antagônicos e controversos e teria
sido um erro o emprego da metodologia interpretativa do formalismo e do jusprivatismo para
interpretá-la (BONAVIDES, 2002, p. 456-461).
Para Müller os instrumentos tradicionais de metodologia jurídica lidam explicitamente com textos e só implicitamente contêm possibilidades de incorporar à interpretação conteúdos materiais provenientes do âmbito da norma. Dessa forma, as quatro técnicas interpretativas
elucidadas por Savigny precisam ser completadas com elementos metodológicos que atinjam o
conteúdo material do âmbito normativo na decisão dos casos jurídicos (BONAVIDES, 2002, p.
506). Toda concretização constitucional é aperfeiçoadora e criativa. O direito não está mais na
vontade subjetiva do legislador ou na vontade objetiva da lei. O jurista, ao falar de Constituição,
deve-se esquecer que está falando do texto da Constituição, pois o verbalismo normativo é o
somenos, enquanto que o realismo extra-vocabular da norma é tudo. O texto de uma prescrição
jurídica positiva é tão somente a cabeça do iceberg. A norma não deve nunca ser isolada da
realidade. O texto, neste sentido, funcionará como diretiva e limite da concretização possível. A
interpretação do texto normativo é uma parte importante, mas não a única e, por isso, é mais
apropriado falar-se de concretização (BONAVIDES, 2002, p. 461-463).
5 A CONCEPÇÃO PLURALISTA E PROCEDIMENTAL DE PETER HÄBERLE
Para Hesse (1983, p. 35), onde não se suscitam dúvidas não se interpreta. Já
para Häberle (1997, p. 13) aquele que simplesmente vive a norma acaba por interpretá-la, ou ao
menos co-interpretá-la, sendo tal idéia fundamental para compreender a concepção de interpretação deste autor, que representou um novo modo de compreender a experiência normativa no
campo da Hermenêutica Jurídica.
Segundo Häberle (1997, p. 11-12), a teoria da interpretação tem colocado duas
questões essenciais: a indagação sobre as tarefas e os objetivos da interpretação constitucional e a
indagação sobre os métodos. Isto porque a teoria da interpretação esteve muito vinculada a um
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A Influência da Tópica no Pensamento de Peter Häberle e o seu conceito de Interpretação
Constitucional
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modelo de sociedade fechada e se reduziu ainda mais, quando se concentrou na interpretação dos
juízes e nos procedimentos formalizados. O autor coloca também um terceiro problema, relativo
aos participantes da interpretação.
Dessa maneira, apresenta o autor a tese de que no processo de interpretação
estão potencialmente vinculados todos os órgãos estatais, todas as potências públicas, todos os
cidadãos e grupos, não sendo possível estabelecer um elenco fechado de intérpretes da Constituição. Tal posicionamento resulta do fato de se tratar sua pesquisa de uma investigação realista
do desenvolvimento da interpretação constitucional, a qual exige um conceito mais amplo de
hermenêutica, que reconheça outras forças produtivas de interpretação, ainda que subsista sempre a responsabilidade da jurisdição constitucional de fornecer a última palavra (HÄBERLE,
1997, p. 13).
Sua investigação é conseqüência de um conceito republicano de interpretação,
segundo o qual a teoria constitucional deve estar em condições de explicitar os grupos concretos de
pessoas e os fatores que formam o Espaço Público, o tipo de realidade de que se cuida, as possibilidades e necessidades existentes. Por isso, sugere uma democratização do processo de interpretação, estabelecendo um catálogo, ainda provisório, de participantes neste processo.
Assim, Häberle (1997, p. 20-23) sistematiza o mencionado catálogo de participantes da interpretação da seguinte maneira:
- as funções estatais: que compreendem as decisões vinculantes da Corte Constitucional e as decisões vinculantes dos demais órgãos estatais, que exercem função jurisdicional,
executiva ou legislativa;
- os participantes do processo de decisão que não são necessariamente órgãos
do Estado, tais como: autor e réu; aqueles que têm direito de manifestação ou integração à lide;
pareceristas ou experts; grupos de pressão organizados; os requerentes ou partes nos processos
administrativos de caráter participativo;
- a opinião pública, a mídia, as associações, os partidos políticos2 , os cidadãos,
igrejas, teatros, editoras, escolas, associações de pais etc;
- e a doutrina.
Häberle (1997, p. 29) reconhece que uma teoria constitucional que tem por
escopo a produção de uma unidade política há que se submeter a crítica de que, dependendo da
forma com que seja praticada a interpretação, poderá dissolver-se num emaranhado de intérpretes
e interpretações; entretanto, adverte que tal objeção tem que ser avaliada, tendo em vista a
legitimação dos diferentes intérpretes.
O autor explica que a questão da legitimação coloca-se para todos aqueles que
não estão formalmente nomeados para exercer a função de intérpretes da Constituição, ou seja,
aqueles que não atuam conforme um procedimento pré-estabelecido, pois uma vinculação limitada
à Constituição implicaria uma legitimação igualmente restrita (HÄBERLE, 1997, p. 29).
Acrescenta Häberle (1997, p. 31) que do ponto de vista da Teoria da Interpretação deve-se levar em consideração que o juiz interpreta a Constituição na esfera pública e na
realidade, sendo errôneo reconhecer as influências a que se submete apenas sob o aspecto de uma
ameaça a sua independência. Essas influências contêm uma parte da legitimação, a qual não deve
ser entendida formalmente, pois deve resultar da participação, isto é, da influência qualitativa e de
conteúdo sobre a própria decisão, o que se trata de um aprendizado não só dos participantes, mas
também dos tribunais em face dos demais participantes.
Já do ponto de vista da Teoria da Constituição, a legitimação das forças pluralistas
residiria no fato de que essas forças representam um pedaço da publicidade e da realidade da
Constituição, o que as incluiria no processo de interpretação. Uma Constituição que vise estruturar
não apenas o Estado, mas também a esfera pública, dispondo sobre a organização da própria
sociedade, não pode tratar as forças sociais e privadas como meros objetos, pelo contrário, deve
integrá-las ativamente enquanto sujeitos (HÄBERLE, 1997, p. 33).
2 Häberle explica que estes atuam, sobretudo, mediante a longa manus da eleição de juízes, o que não acontece no sistema
brasileiro, já que o ingresso na carreira se dá mediante concurso público (1997, p. 22).
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Sob a perspectiva da Teoria da Democracia, afirma que, nas sociedades contemporâneas, a democracia não se desenvolve apenas no contexto de delegação de responsabilidade formal do “povo” para os órgãos estatais; numa sociedade aberta, ela se desenvolve também
por meio de formas refinadas de mediação do processo público e pluralista da política e do cotidiano, especialmente mediante a realização dos direitos fundamentais (HÄBERLE, 1997, p. 36).
Neste sentido:
Povo não é apenas referencial quantitativo que se manifesta no dia da eleição e que, enquanto tal, confere legitimidade democrática ao processo de
decisão. Povo é também um elemento pluralista para a interpretação que se
faz presente de forma legitimadora no processo constitucional [...] e sua
competência objetiva para a interpretação constitucional é um direito da
cidadania [...] (HÄBERLE, 1997, p. 37).
Dentre as conseqüências da teoria de Häberle para a Interpretação, destacase a relativização da Interpretação Jurídica, pois o juiz não mais interpreta de forma isolada. Além
disso, através da proposta ampliação do círculo dos intérpretes, a esfera pública desenvolve força
normatizadora na medida em que a Corte Constitucional tenha que interpretar de acordo com uma
atualização pública.
Para comprovar a realidade de sua teoria, Häberle argumenta que as questões
referentes à Constituição Material nem sempre chegam à Corte Constitucional, mas a Constituição
Material subsiste sem essa interpretação judicial, ou seja, o processo Constitucional formal já não
é a única via de acesso ao processo de interpretação constitucional (1997, p. 42).
Aos princípios e métodos de interpretação Häberle confere nova função: a
de filtros da publicidade no sentido de canalizar e disciplinar as múltiplas formas de influência
dos diferentes participantes do processo. Tanto que, nos casos em que há um rigoroso controle da opinião pública, a Corte tem que considerar a legitimação democrática e levar um minus
de efetiva participação a um plus de controle constitucional; e, se houver uma profunda divisão da opinião pública, cabe ao Tribunal zelar pela função integrativa da Constituição
(HÄBERLE, 1997, p. 43-45).
Conclui Häberle (1997, p. 55) que o direito processual constitucional torna-se
parte do direito de participação democrática. Por isso, não se pode mais avaliar a questão da
interpretação por um prisma negativo3 , isto é, sob a ótica das limitações jurídico-funcionais do
intérprete juiz. Tem-se que desenvolver uma compreensão positiva, como intérprete da Constituição tanto para o juiz, quanto para o legislador e demais participantes, constitucionalizando
formas e processos de participação. Para o autor, esta é a nova tarefa da Teoria Constitucional.
Porém limita a constitucionalização de conteúdos e métodos, visto que o processo deve ser o
mais aberto possível para garantir que uma interpretação diferente possa ser sustentada em
qualquer momento.
6 CONCLUSÃO
Na idéia de constituição aberta, são condensadas algumas das propostas mais
importantes do moderno pensamento constitucional. A função material do projeto da constituição é
relativizada e se justifica a “desconstitucionalização” de elementos substantivadores da ordem
constitucional. Nesse projeto aberto, ordena-se o processo da vida política fixando limites às atribuições do Estado e delimitam-se as dimensões prospectivas traduzidas na formulação dos fins
sociais mais significativos e na identificação de alguns programas da configuração constitucional
(CANOTILHO, 2004, p. 23).
3 Segundo Alvarenga (1998,p. 86), esta era a denominada “interpretação de bloqueio” ou “princípio da proibição de excessos”,
típica do Estado de Direito Liberal e pautada nos princípios da legalidade e estrita legalidade, conferia à Hermenêutica
Constitucional Tradicional uma tarefa reduzida às atividades do Estado e às funções do Judiciário (1998, p. 86).
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A Influência da Tópica no Pensamento de Peter Häberle e o seu conceito de Interpretação
Constitucional
Portanto, buscando responder à pergunta inicialmente proposta, tem-se que, na
perspectiva de Häberle, a interpretação é, além de um elemento resultante da idéia de sociedade
aberta, também um elemento formador, constituinte dessa sociedade; por isso, os critérios de interpretação deverão ser mais abertos quanto mais pluralista for a sociedade. Do ponto de vista teórico
ou prático, a interpretação constitucional deixa de ser evento exclusivamente estatal e vincula, ao
menos potencialmente, todas as forças da comunidade política.
Essa nova orientação hermenêutica contrapõe-se à ideologia da subsunção,
visto que se reconhece que a norma não é uma decisão prévia, simples e acabada. A ampliação do
círculo dos intérpretes é apenas conseqüência da tão defendida integração da realidade no processo de interpretação, inevitável em uma sociedade pluralista.
Conforme Alvarenga (1998, p. 102-103), a concepção teórica da interpretação
de Häberle está longe de acarretar a quebra da unidade da Constituição, mas pelo contrário, será
reforçada pelas diversas forças de interpretação que culminarão na Jurisdição Constitucional. O
resultado desta teoria é uma Constituição concebida não como uma decisão pronta acerca da
natureza e da forma da unidade política, cuja legitimidade residiria em uma decisão “livre de contradições” do poder constituinte; mas sim uma Constituição que depende de uma permanente
confirmação no tempo, mediante um processo que deve ser histórico e aberto.
Também, deve-se observar que, no decorrer da evolução da teoria constitucional, os métodos de interpretação, em certa medida, ganhavam corpo conforme o paradigma adotado. Mesmo que o objetivo tenha sido a produção de um método que não se identificasse com os
posicionamentos políticos do intérprete, é quase impossível que este, ao analisar o caso, se
desvinculasse de sua “pré-compreensão” de mundo. Desse modo, é importante que se busque
estender a possibilidade de interpretação ao maior número de pessoas atingidas, buscando uma
legitimação democrática em torno dos instrumentos de interpretação, no sentido apresentado pela
teoria de Peter Häberle.
REFERÊNCIAS
142
ALVARENGA, Lucia Barros Freitas. Direitos Humanos, dignidade e erradicação da pobreza: uma dimensão hermenêutica para a realização constitucional. Brasília: Brasília Jurídica, 1998.
ATIENZA, Manuel. As razões do direito: Teorias da Argumentação Jurídica. 3. ed. São Paulo:
Landy, 2003.
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 2004.
BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma
dogmática constitucional transformadora. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2003.
BASTOS, Celso Ribeiro. Hermenêutica e Interpretação. 2. ed. São Paulo: Celso Bastos Editor
– Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, 1999.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed.
Coimbra: Almedina, 2003.
______. Teoria de la Constitución. (Trad.). Carlos Lema Anón. Madrid: Dykinson.
DINIZ, Maria Helena. Compendio de introdução à ciência do direito. 15. ed. São Paulo:
Saraiva, 2003.
HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista a procedimental da Constituição. (Trad.). Gilmar
Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1997.
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Carolina V. Ribeiro de A. Bastos, Eder Fernandes Mônica e Samia Moda Cirino
HESSE, Konrad. Escritos de Derecho Constitucional. Madrid: Centro de Estúdios
Constitucionales, 1983.
MORRISON, Wayne. Filosofia do Direito: dos gregos aos pós-modernos. São Paulo: Martins
Fontes, 2006.
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O Princípio da Integridade como Modelo de Interpretação Construtiva do Direito em Ronald Dworkin
O PRINCÍPIO DA INTEGRIDADE COMO MODELO DE INTERPRETAÇÃO
CONSTRUTIVA DO DIREITO EM RONALD DWORKIN
Erika Juliana Dmitruk*
RESUMO
Analisa o princípio da integridade desenvolvido por Dworkin, como teoria da interpretação construtiva do Direito. Procura entender os conceitos fundamentais deste filósofo, como princípios,
regras, políticas, Juiz Hércules e hard cases. Investiga o método de resolução de casos difíceis de
Hércules. Descreve as repercussões do princípio da integridade no Direito.
Palavras-chave: Dworkin. Integridade. Regras. Princípios. Tese dos Direitos.
THE PRINCIPLE OF THE INTEGRITY AS MODEL OF CONSTRUCTIVE
INTERPRETATION OF THE RIGHT IN RONALD DWORKIN
ABSTRACT
It analyzes the principle of the integrity developed for Dworkin, as theory of the constructive
interpretation of the Right. Search to understand the concepts basic of this philosopher, as principles,
rules, politics, Hércules Judge and hard cases . It investigates the method of resolution of difficult
cases of Hércules. It describes the repercussions of the principle of the integrity in the Right.
144
Keywords: Dworkin. Integrity. Rules. Principles. Thesis of the Rights.
1 INTRODUÇÃO
Preocupado com a definição positivista do Direito, que o reduz a um modelo de
regras e que autoriza o juiz a utilizar o poder discricionário ao se deparar com casos complexos,
Dworkin propõe uma teoria da interpretação que auxilia os operadores do Direito a encontrar uma
resposta correta mesmo para os casos complexos.
O objeto de estudo deste artigo é a teoria desenvolvida por Dworkin sobre a
resolução dos casos difíceis. Acredita Dworkin que os juízes, ao resolverem os casos difíceis,
devem utilizar padrões determinados, para que a previsibilidade e justiça da resposta seja alcançada.
Para isso, refuta a teoria da discricionariedade, proposta pelo positivismo jurídico, tentando encontrar algo que vincule o juiz a uma resposta correta.
A distinção feita por Dworkin entre princípios, políticas e regras será analisada
na primeira parte. Segundo o autor estudado, conhecendo as peculiaridades de cada um desses
padrões, a tarefa de integrá-los em uma teoria da decisão jurídica torna-se mais clara e passível de
entendimento.
Na segunda parte deste artigo, explicar-se-á o que Dworkin entende por casos
difíceis, a tese dos direitos e o modo de trabalho do juiz Hércules perante esses casos. Desenvolve
a tese dos direitos e exemplifica a sua aplicação a partir de um juiz filósofo, comprometido com as
leis, os precedentes e a busca da melhor solução. Esse juiz Hércules terá uma tarefa à altura do
seu nome.
* Graduada em Direito pela Universidade Estadual de Londrina, Mestre em Filosofia e Teoria do Direito pela Universidade
Federal de Santa Catarina, pós-graduanda em Filosofia Política e Jurídica na Universidade Estadual de Londrina. Professora
da UNIFIL, UEL e PUC/ Londrina. Email: [email protected].
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Erika Juliana Dmitruk
Logo após, tratar-se-á a interpretação construtiva e o que Dworkin conceituou
como integridade. A idéia de integridade como uma virtude política ao lado da equidade, da justiça
e do devido processo legal, divide-se em dois princípios: um princípio legislativo e um princípio
jurisdicional.
Para finalizar, estudar-se-á a integridade aplicada ao Direito. De que maneira a
teoria dos direitos que Dworkin desenvolveu no decorrer das suas obras culmina com o princípio da
integridade como uma tese da interpretação construtiva dos direitos.
2 PRINCÍPIOS, POLÍTICAS E REGRAS
Ronald Dworkin tem se destacado com um pensamento original e, conforme
opinião de Wolkmer (2006, p. 38), é um dos principais jusfilósofos que desenvolve críticas relevantes ao liberalismo utilitarista e ao positivismo jurídico contemporâneo, principalmente na versão
dada a esta teoria pelo professor Herbert Hart. Também é considerado por outros como um
“neojusnaturalista”. Esses autores também afirmam que sua teoria é uma das que demonstra o
enfraquecimento da dicotomia “jusnaturalismo” e positivismo jurídico (OLIVEIRA JUNIOR).1
Para outros, Dworkin é responsável por criar uma terceira teoria do direito, onde a primeira e a
segunda seriam o positivismo jurídico e o jusnaturalismo (FALLON, 1992).2
Em seu livro Levando os Direitos a Sério (2002), Dworkin apresenta uma
teoria liberal do Direito, não atada apenas às correntes que costumam ser identificadas como tal,
positivismo e utilitarismo jurídico. Para Dworkin, quando se cria uma teoria do Direito, ela deve
conter uma teoria da legislação e uma teoria da decisão judicial. Nesse artigo será privilegiada a
teoria da decisão judicial, a qual, segundo o mesmo autor, precisa estabelecer padrões que os juízes
devem seguir para decidir os casos jurídicos difíceis.
Nesse livro ele já começa a esboçar uma teoria conceitual alternativa. A
primeira distinção elaborada por Dworkin versa sobre os direitos políticos, que podem ser direitos preferenciais (prevalecem contra decisões tomadas pela sociedade); e direitos institucionais
mais específicos “que podem ser identificados como uma espécie particular de um direito político, isto é, um direito institucional a uma decisão de um tribunal na sua função judicante”
(DWORKIN, 2002, XV).
A teoria conceitual alternativa traça a possibilidade de que os indivíduos tenham direito a uma decisão judicial favorável, independente de uma decisão anterior favorável ou
regra jurídica expressa aplicável a seu caso. Para o professor de Oxford, essa hipótese é possível
com a distinção entre argumentos de princípio e argumentos de política, uma vez que defende a
tese de que as decisões jurídicas baseadas em argumentos de princípios são compatíveis com os
princípios democráticos (DWORKIN, 2002, XVI).
Não é o objetivo de Dworkin indicar, previamente, os argumentos de política ou
de princípio existentes, nem elencar quais direitos um indivíduo possui abstratamente, mas analisar
casos difíceis, onde, mesmo os juízes mais criteriosos podem divergir (DWORKIN, 2002, XIX).
Todavia, mesmo nesses casos, é necessário entender que, para Dworkin, o juiz não tem o direito de
criar novos direitos, mas sim descobrir quais são eles em conformidade com o ordenamento jurídico (COUTINHO, 2003).
1
Ver também: Casalmiglia, Prólogo a “Los Derechos en Serio”, Barcelona: Ariel, 1989, p.11.
ALEXY, Robert. Derecho y Razón Prática. México: Distribucinoes Fontamara, 1993, p. 14 e ss. GÜNHTER, Klaus. Teoria
da Argumentação no Direito e na Moral: justificação e aplicação. São Paulo: Lamdy, 2004.
2 Through its various iterations, Dworkin’s third theory has attempted to bridge the gap between the two traditional theories.
With the positivists, Dworkin has accepted that the concept of law makes sense only in reference to going legal systems;
to know what the law is, it is necessary to begin with the materials that are recognized as law in a particular culture. Dworkin
leaves room to accommodate the natural law view, however, by insisting that the materials that are recognized as authoritative
within any legal system—the rules and standards that positivists have traditionally regarded as exhaustive of law—must
always be interpreted. For interpretation, according to Dworkin, has an irreducibly moral element; the relevant materials
must be interpreted in their best moral light. Dworkin thus sides with natural law theorists in recognizing a conceptual link
between law and morals. Building on this foundation, he has further asserted that legal interpretation necessarily aspires to
provide a moral justification for the law’s claim to obedience. He implies that a regime that was incapable of generating at
least a presumptive, general duty to obey the law would not count as a properly “legal” system at all, but only as a scheme
of organized coercion. (FALLON, 1992)
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A preocupação esboçada por Dworkin ao relacionar uma teoria interpretativa
do Direito com uma teoria da justificação política não é uma preocupação efêmera ou pontual. Em
toda sua obra perpassa essa necessidade de trabalhar em conjunto uma concepção de Estado e o
papel do Direito neste modelo de sociedade escolhido.
Em Uma Questão de Princípio (2000, IX) Dworkin afirma que a prática política brasileira reconhece dois tipos diferentes de argumentos que buscam justificar uma decisão
política. Esses argumentos são: a) argumentos de política, os quais traçam um programa, um objetivo voltado para a coletividade; e b) argumentos de princípio, que traçam direitos individuais,
particulares, inobstante o interesse da coletividade. Defende neste livro uma concepção do Estado
de Direito que chama de “centrada nos direitos”, a qual pressupõe que os cidadãos têm direitos e
deveres morais entre si e direitos políticos perante o Estado (2000, p. 7). Para Ikawa (2004),
Dworkin não distingue Direito e Moral, como faz Hart, assim como para Ingeborg Maus3 e Alexy.
Porém, segundo BAHIA, essa leitura de Dworkin é baseada em uma interpretação alexyana que
popularizou-se na Alemanha. Porém para Günther e Habermas, Dworkin concebe a diferença
entre Direito e Moral, e também destes para argumentos éticos e pragmáticos. Os argumentos
morais são importantes na fase legislativa, porém, no judiciário, valem os argumentos de princípio e
não mais os argumentos de política (BAHIA, 2005, p. 11).
Um dos exemplos trazidos para ilustrar a influência da questão política sobre a
questão jurídica trata da Lei de Relações Raciais. Existe um conflito entre o direito de agremiações
escolherem seus associados segundo critérios próprios. Pela lei supra, o direito de estar livre de
discriminação é forte para impedir que instituições inteiramente públicas pratiquem discriminação,
mas não tão forte a ponto de aniquilar o direito de associações totalmente privadas de escolherem
seus associados. A dificuldade está nos casos intermediários, como as agremiações político-partidárias (DWORKIN, 2000, p. 35).
Para entender a diversidade de argumentos é necessário vislumbrar o peso que
a diferença entre eles tem nas decisões, mesmo que tratados por outros nomes ou de outras formas
pelas diversas teorias jurídicas. Nos casos difíceis, a concepção positivista do Direito que o percebe apenas como um modelo de regras, ignorando outros padrões como políticas e princípios, é
insuficiente (DWORKIN, 2002, p. 36).
Política é um tipo de padrão que estabelece um objetivo a ser alcançado, em
geral uma melhoria da comunidade (2002, p. 36). Dworkin já havia definido este conceito em Uma
Questão de Princípio. Esses argumentos de política justificam decisões políticas, que fomentam
algum objetivo coletivo (2002, p. 129).
Princípio, de maneira genérica, é todo padrão que não é regra. Princípio,
assim, pode ser entendido como um padrão que deve ser observado por ser uma exigência da
justiça ou eqüidade. Sua repercussão não será, necessariamente, uma melhoria social. (2002, p.
36) Os argumentos de princípio justificam uma decisão política, mostrando que a decisão respeita ou garante um direito de um indivíduo ou de um grupo (2002, p. 129-130). “No caso dos
subsídios, poderíamos dizer que os direitos conferidos são gerados por uma política e qualificados por princípios; no caso contra a discriminação, são gerados por princípios e qualificados por
políticas” (DWORKIN, 2002, p. 130).
O objetivo imediato de Dworkin é distinguir princípios, no sentido genérico, das
regras. Analisa o caso “Riggs contra Palmer”, onde em 1889 um tribunal de Nova Iorque teve que
decidir se um herdeiro nomeado no testamento de seu avô poderia herdar o disposto naquele
testamento, mesmo se ele próprio tivesse assassinado seu avô com esse objetivo. O tribunal, levando em conta que as leis e os contratos podem ser limitados por máximas gerais e fundamentais do
direito costumeiro, como a que dispõe que “ninguém será permitido lucrar com sua própria fraude,
beneficiar-se com seus próprios atos ilícitos, basear qualquer reivindicação na sua própria iniqüidade ou adquirir bens em decorrência de seu próprio crime”, não deu ao assassino o direito à herança. (2002, p. 37) O tribunal não aplicou uma regra, aplicou princípios.
3 Ver também: MAUS, Ingeborg. Judiciário como Superego da Sociedade: o papel da atividade jurisprudencial na sociedade
órfã. Novos Estudos CEBRAP. São Paulo, nº.58. p. 185. nov/ 2000.
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Os padrões utilizados em decisões deste tipo não são regras jurídicas, são princípios jurídicos. A distinção entre ambos é de natureza lógica. As regras são aplicáveis à maneira
do tudo-ou-nada. Ou uma regra é válida, e a sua resposta deve ser aceita, ou não é válida, e sua
resposta em nada contribuirá (DWORKIN, 2002, p. 39). Mas não é assim que funcionam os
princípios jurídicos. O exemplo utilizado por Dworkin é o exemplo do princípio “Nenhum homem
pode beneficiar-se de seus próprios delitos”. Segundo ele, esse princípio não pretende estabelecer
condições que tornem sua aplicação necessária. Ele apenas se limita a enunciar uma razão que
conduz o argumento em certa direção, e, por isso mesmo, para ser concretizado, precisa de uma
decisão particular. Podem existir outros princípios ou outras políticas que argumentem em outra
direção – uma política que garanta o reconhecimento da validade de escrituras ou um princípio que
limite a punição ao que foi estipulado pelo Legislativo. Se assim for, o princípio não prevalecerá,
mas assim mesmo continuará a ser um princípio do sistema jurídico, pois, em outro caso, quando
essas considerações em contrário estiverem ausentes ou tiverem menor força, o princípio poderá
ser decisivo (DWORKIN, 2002, p. 41-42).
Outra diferença entre regras e princípios é que os princípios possuem uma
dimensão de peso e importância. Quando os princípios se intercruzam (por exemplo, a política de
proteção aos compradores de automóveis se opõe aos princípios de liberdade de contrato), aquele que vai resolver o conflito tem de levar em conta a força relativa de cada um (DWORKIN,
2002, p. 42).
Já as regras ou são importantes ou desimportantes. Uma regra jurídica pode
ser mais importante do que outra porque desempenha um papel maior ou mais importante na
regulação do comportamento. Se duas regras estão em conflito, uma suplanta a outra em virtude
de sua importância maior. (DWORKIN, 2002, 43). Essa importância maior é dada com a resolução das antinomias aparentes, estudadas por BOBBIO (1999), em Teoria do Ordenamento Jurídico. Mas a distinção entre regras e princípios nem sempre é fácil. Muitas vezes eles se confundem, tendo em vista a forma muito próxima de ambos. Alguns termos como razoável, negligente,
injusto e significativo, segundo Dworkin, fazem com que uma disposição funcione do ponto de vista
lógico como uma regra e do ponto de vista substantivo, como um princípio. Isso porque a inclusão
desses termos faz com que a aplicação da regra dependa de princípios e políticas que vão além
dela (DWORKIN, 2002, p. 45). Todavia, apenas o uso desses termos não transforma uma regra
em princípio.
Para Dworkin (2002, p. 46), os princípios jurídicos atuam de maneira mais
vigorosa nas questões judiciais difíceis. Todavia, quando aplicados, os princípios dão origem a
regras. No caso “Riggs contra Palmer” a aplicação do princípio deu origem a uma nova regra “um
assassino não pode beneficiar-se do testamento de sua vítima”.
Existem duas formas de análise dos princípios jurídicos, e a escolha influencia a
resolução do caso submetido ao tribunal. Segundo primeira orientação, os princípios jurídicos devem possuir obrigatoriedade de lei e ser levados em conta por juízes e juristas que tomam decisões
sobre obrigações jurídicas. Segundo essa orientação, o direito inclui tanto regras quanto princípios.
Já a segunda orientação nega que princípios possam ser obrigatórios. Para essa orientação, quando
o juiz aplica princípios, ele julga além do direito (DWORKIN, 2002, p. 46-47).
Apesar do enfoque bastante decisivo dado por Dworkin na distinção entre princípios e políticas, para outras teorias essa distinção pode não ser tão importante quanto para Dworkin.
A teoria de Hans-George Gadamer prevê que o texto a ser interpretado não é uma coisa em si, mas
possui um significado pela virtude inferida do que ele chama de wirkungsgeschichte, ou precedente, o conjunto histórico de interpretações que o texto teve (HOY, 1987, p. 327). Todavia, não faz
nenhuma distinção que possa ser comparada com a distinção entre princípios e regras feitas por
Dworkin. Ainda segundo HOY, essa distinção pode nem mesmo ajudar a afirmação de Dworkin de
que sempre há uma resposta correta (HOY, 1987, p. 337).
Ainda assim, a distinção feita por Dworkin é capaz de ajudar a resolver o
problema da discricionariedade em sentido forte da doutrina positivista. A escolha entre uma ou
outra abordagem afeta a resposta aos casos difíceis. Se escolhermos a primeira orientação, aceitaremos que o juiz está aplicando direitos e obrigações jurídicas preexistentes ao caso apresentado.
Se adotarmos a segunda orientação, deveremos reconhecer que em algumas decisões a parte
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sucumbente foi privada de seus bens por um ato discricionário do juiz (DWORKIN, 2002, p. 49).
Neste ponto, a argumentação de Dworkin supera a argumentação do positivismo
jurídico, uma vez que não aceita a discricionariedade do poder do juiz e encontra uma fundamentação legítima para as decisões tomadas nos casos difíceis. Segundo Ikawa (2006), Dworkin aceita
a possibilidade de discricionariedade judicial no sentido fraco e apenas rechaça-a no sentido forte.
Analisando o conceito de regra de reconhecimento de Hart, desenvolvido em
seu livro O Conceito de Direito (2001), Dworkin denuncia a inconsistência deste modelo para a
integração entre princípios e regras. Para ele os positivistas sempre lêem os princípios e políticas
como regras, lêem como se fossem padrões tentando ser regras (DWORKIN, 2002, p. 62). Para
ele também não é correto trabalhar com o conceito de válido ou não válido com os princípios, uma
vez que esse é apenas apropriado para as regras, renunciando aí a abrangência dos princípios pela
regra de reconhecimento. (DWORKIN, 2002, p. 66) O autor conclui que não é possível adaptar a
versão de Hart do positivismo, modificando sua regra de reconhecimento para incluir princípios
(DWORKIN, 2002, p. 69).
Então lança a questão: “Se nenhuma regra de reconhecimento pode fornecer
um teste para identificar princípios, por que não dizer que os princípios constituem a última instância e constituem a regra de reconhecimento no nosso direito”? Mas isso não é possível, tendo em
vista que não é possível enumerar todos os princípios que fazem parte de um direito vigente. Por
isso, para que seja possível tratar os princípios como direito, deve-se rejeitar a doutrina positivista
(DWORKIN, 2002, p. 72).
Entende-se, então, que os princípios não podem ser considerados válidos ou
não-válidos. Eles entram em conflito uns com os outros e interagem. Fornecem justificativas a
favor de uma determinada solução de um caso difícil, mas não a estipula. E, sua não aplicação em
determinado caso não indica que não é válido. Poderá ser aplicado em outro caso. Não existe um
número fixo de padrões, dos quais se pode dizer que tantos são regras e outros são princípios. Não
cabe na concepção de Dworkin um conjunto fixo de padrões.
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3 CASOS DIFÍCEIS
Segundo o positivismo jurídico, diante dos casos difíceis, os juízes possuem
poder discricionário para decidir. Casos difíceis são aqueles que não podem ser decididos apenas
com base em regras, ou porque essas não são claras, ou porque não foram escritas. Em virtude
dessa similitude de termos, Ikawa (2004) explica que o termo hard cases utilizado por Dworkin, é
sinônimo de lacuna da lei, utilizado pelos positivistas e por Herbert Hart.4
A partir dessa teoria, quando o juiz decide um caso difícil, ele legisla novos
direitos jurídicos, e os aplica retroativamente. Por isso essa teoria da decisão é totalmente inadequada, uma vez que causa insegurança jurídica e, provavelmente, gera decisões injustas (DWORKIN,
2002, p. 128).
Dworkin afirma que uma teoria geral sobre a validade da lei não é uma teoria
neutra, como defendem os positivistas, entre eles seu interlocutor Herbert Hart. Para Dworkin,
uma teoria sobre a validade das leis é sempre interpretativa, e é o modo como se deve interpretála que deve ser justificado (DWORKIN, 2004, p.2).
Criticando Dworkin, Postema (1987, p. 286-287) assevera que, segundo a teoria dele, as deliberações legais podem ser iluminadas a partir da prática social de interpretação
geral. Porém essa concepção esbarra em dois problemas: a) onde há desacordo entre os participantes da comunidade personificada, será necessário escolher de maneira arbitrária alguns participantes como porta-vozes; e 2) onde há um consenso forte entre os participantes da comunidade
personificada, não existe possibilidade de nenhuma crítica desafiadora do pensamento dominante.
4 Sobre o debate entre Hart e Dworkin ler também: DMITRUK, Erika. O que é o Direito? Uma análise a partir de Hart e
Dworkin. Revista Jurídica da Unifil. nº. 1. Londrina, 2004. p. 71-88. CARRIÓ, Genaro. Notas sobre Derecho y Lenguage.
4 ed. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1990. p. 321-328. HART, H. L. A.; DWORKIN, R. La decisión judicial. Studio
preliminar de César Rodrigues. Universidade de Los Andes, 1997, p. 15. HART, H.L.A. O conceito de Direito. (com pósescrito editado por Penélope A. Bulloch e Joseph Raz). 3ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
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Um caso será difícil quando um juiz, em sua análise preliminar, não encontrar
uma interpretação que se sobreponha a outra, entre duas ou mais interpretações de uma lei ou de
um julgado (DWORKIN, 2003, p. 306). Uma lei só será considerada obscura quando existirem
bons argumentos para mais de uma interpretação em confronto (DWORKIN, 2003, p. 421).
Em vista desse posicionamento, tornou-se necessário desenvolver uma nova
teoria da decisão, uma vez que deve-ser garantir a uma das partes o direito de uma resposta
favorável mesmo que não haja um precedente estrito ou uma lei específica. O juiz não deve, de
forma alguma, criar novos direitos que valham retroativamente (DWORKIN, 2002, p. 128).
Para que se descubram quais direitos a parte tem, é necessário que se conheçam os princípios políticos que inspiraram a Constituição. Esses princípios auxiliam a leitura da
Constituição, limitando seu conteúdo e auxiliando nos casos difíceis. Mesmo as decisões dos tribunais que são consideradas decisões políticas importantes, podem ser lidas como decisões tomadas
com base em princípios, uma vez que as decisões de princípios são aquelas baseadas nos direitos
que as pessoas têm a partir da Constituição, e não em políticas que buscam realizar objetivos
coletivos (DWORKIN, 2000, p.101; 2002, p. 133).
As decisões judiciais não originais, que apenas aplicam os termos claros de
uma lei de validade inquestionável, são sempre justificadas pelos argumentos de princípio, mesmo
que a lei em si tenha sido gerada por uma política (DWORKIN, 2002, p. 131).
Muitas vezes é possível confundir argumentos de princípio com argumentos de
política, todavia deve-se ater a orientação de Dworkin, onde argumentos de princípios falam sobre
direitos que as pessoas têm em face do ordenamento jurídico e argumentos de política falam sobre
objetivos coletivos que o Estado pretende alcançar.
Segundo a teoria dos direitos, desenvolvida no livro Levando os Direitos a
Sério, aplicada pelo juiz filósofo Hércules, existe um caminho para se chegar a uma resposta
correta nos casos difíceis. Hércules é um juiz que aceita as leis, e acredita que os juízes têm o
dever geral de seguir as decisões anteriores de seu tribunal ou dos tribunais superiores. Hércules
precisa descobrir a intenção da lei – ponte entre a justificação política da idéia geral de que as leis
criam direitos e aqueles casos difíceis que interrogam sobre que direitos foram criados por uma lei
específica. E também o conceito de princípios que subjazem às regras positivas do direito, fazendo
uma ponte entre a justificação política da doutrina segundo a qual os casos semelhantes devem ser
decididos da mesma maneira e aqueles casos difíceis nos quais não fica claro o que essa regra
requer. Assim, em primeiro lugar, estudará a Constituição, procurando entender as regras que ela
contém, as interpretações judiciais anteriores, e a filosofia política que embasa os direitos ali dispostos (DWORKIN, 2002, p. 165-168). Depois disso procurará a interpretação que vincula de
modo mais satisfatório o disposto pelo legislativo a partir das leis promulgadas e suas responsabilidade como juiz (DWORKIN, 2002, p. 169). Ainda se perguntará qual argumento de princípio e de
política convenceria o poder legislativo a promulgar a lei sob estudo. Hércules também utilizará
uma teoria política para interpretar a lei, para descobrir o seu fim (DWORKIN, 2002, p. 168-171).
O terceiro passo em sua busca pela melhor resposta é a análise dos precedentes, no caso de o
problema a ele submetido não ser regulado por nenhuma. Ao analisar os precedentes, Hércules
levará em conta os argumentos de princípio que o embasaram.
Mas, uma vez que Hércules será levado a aceitar a tese dos direitos, sua
interpretação das decisões judiciais será diferente de sua interpretação das
leis em um aspecto importante. Quando interpreta as leis, ele atribui à linguagem jurídica, como vimos, argumentos de princípio ou de política que fornecem a melhor justificação dessa linguagem à luz das responsabilidades do
poder legislativo. Sua argumentação continua sendo um argumento de princípio. Ele usa a política para determinar que direitos já foram criados pelo
Legislativo. Mas, quando interpreta as decisões judiciais, atribuirá à linguagem relevante apenas argumentos de princípio, pois a tese dos direitos sustenta que somente tais argumentos correspondem à responsabilidade do
tribunal em que foram promulgadas (DWORKIN, 2002, p.173).
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Ao estudar os precedentes, Hércules terá que distinguir sua força gravitacional
nas decisões posteriores. A força gravitacional de um precedente, segundo Dworkin, repousa na
eqüidade, os casos semelhantes devem ser tratados do mesmo modo (DWORKIN, 2002, p. 176).
Para definir a força gravitacional de um precedente, Hércules só levará em consideração os argumentos de princípio que justificam esse precedente.
Ainda como desdobramento dos seus estudos sobre os precedentes, Hércules
construirá uma cadeia de princípios que fundamentam o direito costumeiro, a partir das justificações dadas nas decisões pretéritas (DWORKIN, 2002, p. 181). Esses princípios devem ser capazes de justificar de maneira coerente porque determinadas decisões foram tomadas (DWORKIN,
2002, p. 182).
O primeiro passo dessa tarefa hercúlea será especificar a teoria constitucional
que já utilizou quando se perguntou sobre quais responsabilidades o sistema político lança sobre o
legislador (DWORKIN, 2002, p. 183).
Mesmo seguindo todo esse caminho, Hércules sabe da possibilidade de encontrar decisões incoerentes. Por isso precisa também de uma teoria sobre os erros. Ele construirá a
primeira parte de sua teoria dos erros por meio de dois conjuntos de distinções. Distinguirá autoridade específica, que é o poder de uma lei ou precedente, ou decisão executiva, de produzir exatamente os efeitos nela dispostos (por exemplo, uma lei que obrigue companhias aéreas a indenizar
seus passageiros por atrasos de vôo); das conseqüências institucionais, que definem o seu poder
gravitacional (com base no postulado anterior, exigir que as companhias de ônibus indenizem seus
passageiros por atraso). A segunda distinção trata de erros enraizados, que apesar da perda do
poder gravitacional, os efeitos específicos continuam, e os erros passíveis de correção, cuja perda
do poder gravitacional gera a perda da autoridade específica (2002, p. 189-190). O nível constitucional de sua teoria irá determinar quais são os erros enraizados.
A segunda parte da sua teoria deve demonstrar que é melhor que ela exista do
que o não reconhecimento dos erros, ou o reconhecimento dos erros de uma forma diferente (2002,
p.190). Hércules utilizará duas ordens de argumentos para demonstrar que uma determinada corrente jurisprudencial está errada. Valer-se-á de argumentos históricos ou de uma percepção geral
da comunidade, para mostrar que um determinado princípio que já foi historicamente importante,
hoje não é mais, não exerce força suficiente para gerar uma decisão jurídica. Também utilizará
argumentos de moralidade política, demonstrando que tal decisão ou princípio fere a eqüidade, é
injusto (DWORKIN, 2002, p. 191).
É preciso afirmar que Hércules não possui um método para os casos difíceis e
outro para os casos fáceis. Seu método é aplicável a qualquer caso, todavia, nos casos fáceis, as
respostas são evidentes, e por isso não se tem a certeza de estar-se aplicando um método para
resolvê-los (DWORKIN, 2003, p. 423).
4 A INTEGRIDADE
Para Dworkin, a interpretação do Direito se dá pela reconstrução deste a partir
das próprias práticas da sociedade personificada. Para isso, divide o processo de interpretação
construtiva em três partes: uma pré-interpretativa, onde são identificadas regras e padrões já utilizados; uma etapa interpretativa, onde busca-se uma justificação geral para as regras e padrões
identificados na etapa pré-interpretativa; e uma etapa pós-interpretativa, onde ajusta a prática
identificada na etapa pré-interpretativa com a justificação da etapa interpretativa (DWORKIM,
2003, p. 81-82).
As interpretações dadas ao Direito são mutáveis e o que em uma época é
incontestável, em outra sofre sérias críticas. O que em uma época é considerada uma interpretação radical, em outro momento é aceito (DWORKIN, 2003, p. 109-112). Por isso, Dworkin acredita ser tão importante o estudo das decisões judiciais, já que o Direito é um romance em cadeia,
cada voto de qualquer juiz é um capítulo deste romance.
Um filósofo do direito, ao estudar e pesquisar as práticas jurídicas existentes,
poderá se deparar com um conjunto quase estanque de princípios. Assim, uma nova discussão
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sobre o direito existente pode ser revolucionária. O objetivo de Dworkin é discutir de que maneira
pode-se guiar e restringir o poder de coerção do Direito através de uma teoria interpretativa que
trabalhe com uma comunidade de princípios, onde o sistema de direitos e responsabilidades sejam
coerentes (DWORKIN, 2003, p. 116).
Para isso, defenderá a existência de uma virtude política não tradicional.
Ao lado da justiça e devido processo legal, Dworkin colocará uma terceira virtude, a qual
denomina integridade (DWORKIN, 2003, p. 199-201). A integridade refere-se ao compromisso de que o governo aja de modo coerente e fundamentado em princípios com todos os seus
cidadãos, afim de estender a cada um os padrões fundamentais de justiça e equidade
(DWORKIN, 2003, p. 201-202).
Segundo Dworkin (2003, p. 203), será mais fácil entender a interpretação construtiva do Direito, se se aceitar a integridade como uma virtude política, uma vez que as exigências
da mesma se dividem em integridade na legislação (que solicita aos legisladores que produzam leis
coerentes com os princípios) e a integridade no julgamento (que solicita aos que julgam o façam
também de forma coerente com os princípios).
O fato de Dworkin considerar a integridade como uma virtude política aplicável
ao Direito é considerado um ato de extremo otimismo, uma vez que esta exige a coerência de um
corpo de normas feito sem critério e ao acaso (HOY, 1987, p. 345). Por isso mesmo não é possível
pensar que o aperfeiçoamento desta virtude se dê de maneira simples. Para sua realização, a
integridade política supõe uma personificação profunda da comunidade. Pressupõe que esta se
engaje na fomentação dos princípios de equidade, justiça e devido processo legal, e que honre
essas virtudes. A idéia de integridade política personifica a comunidade como um agente moral,
atuante, pressupondo que a comunidade pode adotar, expressar e ser fiel ou infiel a princípios
próprios, diferentes daqueles de quaisquer de seus dirigentes ou cidadãos enquanto indivíduos
(DWORKIN, 2003, p. 203-205).
A partir dessas considerações, é possível entender que o princípio da integridade não admite que uma comunidade personificada aplique direitos diferentes, que não podem ser
definidos como um conjunto coerente com os princípios de justiça, equidade e devido processo
legal.
Dworkin (2003, p. 225) defende que o princípio da integridade, nos Estados
Unidos, está incluído na cláusula de igual proteção da Décima Quarta Emenda. Da mesma forma,
quando se discute a igual proteção nas cortes norte-americanas, discute-se a igualdade formal e a
exigência de integridade do sistema.
Ainda é possível entender o princípio da integridade na reivindicação de
fraternidade, na Revolução Francesa, ou a partir de seu nome mais comum, comunidade. Para o
autor estudado neste artigo, “uma sociedade política que aceita a integridade como virtude política
se transforma, desse modo, em uma forma especial de comunidade, especial num sentido que
promove sua autoridade moral para assumir e mobilizar monopólio de força coercitiva” (DWORKIN,
2003, p. 228).
Como conseqüências práticas da integridade, Dworkin assevera o fato de que
a integridade contribui para a eficiência do direito, uma vez que quando as pessoas são governadas
por princípios há menos necessidade de regras explícitas, e o Direito pode expandir-se e contrairse organicamente, na medida em que se entenda o que eles exigem em novas circunstâncias
(DWORKIN, 2003, p. 229).
São vislumbradas também conseqüências morais, tais como, a possibilidade de
que cada cidadão aceitar as exigências que lhe são feitas e fazer exigências aos outros, que compartilham e ampliam a dimensão moral de quaisquer decisões políticas explícitas (DWORKIN,
2003, p. 230).
Dworkin descreve três modelos gerais de prática associativas, um primeiro
onde os membros supõem que sua associação não passa de um acidente de fato da história e da
geografia; o segundo chamado de modelo das regras, onde os membros aceitam o compromisso
geral de obedecer às regras estabelecidas conforme um modo pré-determinado, e o terceiro modelo, defendido por ele, que é o modelo do princípio. Neste terceiro modelo de comunidade os membros aceitam que são governados por princípios comuns e não apenas por regras criadas por um
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acordo político. Admitem que seus direitos e deveres políticos não se esgotam nas decisões particulares constantes nas regras, mas dependem, de maneira mais ampla, do sistema de princípios
que essas decisões pressupõem (DWORKIN, 2003, p. 252-255).
Qualquer interpretação construtiva bem sucedida das práticas políticas deve
reconhecer a integridade como um ideal político distinto. Neste sentido, a integridade é a chave
para a melhor interpretação construtiva de nossas práticas jurídicas distintas e, particularmente, do
modo como os juízes decidem os casos difíceis nos tribunais.
A integridade não se reduz a coerência do ordenamento jurídico. Ela vai além,
pois exige que as normas públicas da comunidade sejam criadas e vistas, na medida do possível, de
modo a expressar um sistema único e coerente de justiça e equidade, na correta proporção
(DWORKIN, 2003, p. 264).
5 INTEGRIDADE NO DIREITO
152
O princípio da integridade no direito é um desdobramento do método de Hércules
já explicitado ao falar do seu método de julgar os casos difíceis. Em O Império do Direito, Dworkin
elabora de maneira mais completa sua tese dos direitos.
Dworkin percebe a construção da prática jurídica como a elaboração de um
romance em cadeia. Sua visão do direito como integridade aborda as afirmações jurídicas como
opiniões interpretativas, que tanto se voltam para o passado quanto para o futuro, e estão em
processo ininterrupto de desenvolvimento.
Para que seja válido o esforço de interpretar o direito como integridade, os
juízes devem, nos limites do possível, identificar os direitos e deveres como se tivessem sido criados
por um único autor, a comunidade personificada. Essa exigência é necessária uma vez que entende-se que as proposições jurídicas são válidas quando derivam dos princípios de justiça, equidade e
devido processo legal, oferecendo a melhor interpretação do direito (DWORKIN, 2003, p. 271272).
Neste ponto da teoria de Dworkin é que surge uma das principais críticas feitas
ao seu método por Habermas. A impossibilidade de se conceber o direito de uma comunidade feito
por um só autor, e a solidão de Hércules que, ao decidir sozinho, são os principais pontos fracos da
teoria. O fato de Hércules estudar o direito na solidão de seu gabinete, nega ao mesmo um
interlocutor qualificado e a possibilidade de aprimorar seus argumentos, faltando também pressupostos da teoria do discurso (HABERMAS, 1997, p. 276-277).
Apesar da crítica feita por Habermas, deve-se considerar o fato de que Hércules
possui um padrão de qualidade, e tem como objetivo sempre buscar a melhor resposta jurídica para
o problema apresentado, inobstante o fato de não possuir um interlocutor que se esmere tanto
quanto ele na construção do direito como integridade. Todavia, Dworkin não ignora que a autoria
do direito como integridade é múltipla, tanto que prevê seu desenvolvimento como o de um romance em cadeia, onde cada intérprete, ao escrever o próximo capítulo, deve encontrar o melhor
desenvolvimento da história (DWORKIN, 2003, p. 274-276)
Também deve-se asseverar que Dworkin (2003, p. 316) não imagina que todos
os juízes tornem-se Hércules. Para ele a utilidade de Hércules decorre do fato dele ser mais
reflexivo e auto-consciente do que qualquer juiz. Além disso, Hércules não conta com a limitação
de prazo para tomar decisões e age como se tivesse toda sua carreira para se dedicar a uma
decisão.
O caminho feito por Hércules para encontrar a melhor resposta a um problema
jurídico difícil é, em linhas gerais, o seguinte: 1) encontrar, uma teoria coerente sobre os direitos em
conflito, tal que um membro do legislativo ou do executivo, com a mesma teoria, pudesse chegar a
maioria dos resultados que as decisões anteriores dos tribunais relatam; 2) Selecionar diversas
hipóteses que possam corresponder à melhor interpretação do histórico das decisões anteriores;
caso elas se contradigam é necessário encontrar uma correta; 3) Encontrar a hipótese correta, a
partir do pensamento de que o direito é estruturado por um conjunto coerente de princípios sobre
justiça e equidade e o devido processo legal adjetivo, e que esses princípios devem ser aplicados de
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forma a garantir a aplicação justa e eqüitativa do direito. A partir de uma teoria coerente sobre
política e direito é possível encontrar uma resposta satisfatória quando princípios conflitam
(DWORKIN, 2003, p. 253); 4) Eliminar toda hipótese que seja incompatível com a prática jurídica
de um ponto de vista geral. 5) Colocar a interpretação à prova. Perguntar-se-á se essa interpretação é coerente o bastante para justificar as estruturas e decisões políticas anteriores de sua comunidade (DWORKIN, 2003, p. 288-294). Neste momento Dworkin justifica o nome de Hércules,
uma vez que nenhum juiz real poderia aproximar-se da tarefa que a ele foi confiada.
Hércules também desenvolve métodos distintos, para aplicação do common
law, das leis e da Constituição. Para fins desta pesquisa, aprofundar-se seu método no que concerne
às leis e à Constituição, já que o modelo de Direito pátrio é o romano-germânico e não o common
law.
Para analisar uma lei, Hércules tratará o Congresso como um autor anterior a
ele na cadeia do Direito. Todavia, tem a clareza de que este autor possui poderes e responsabilidades diferentes dos seus. Hércules deverá procurar a melhor interpretação da lei com base em suas
próprias convicções, analisando também o histórico desta lei. Abordará as declarações oficiais dos
legisladores e atos políticos relacionados ao texto que pretende interpretar. A interpretação construtiva de Dworkin (2003, 377-380) contrapõe-se à interpretação conversacional, a qual procura
aceitar o ponto de vista da intenção do locutor. Hércules perceberá nas declarações de propósitos
oficias como decisões políticas, englobando-as na interpretação das leis (DWORKIN, 2003, p.
410).
Repetindo e aprofundando o processo exposto no livro Levando os Direitos à
Sério, a integridade exige que Hércules elabore uma justificativa para a aplicação da lei. Essa
justificativa deve ser coerente com o restante da legislação vigente (DWORKIN, 2003, 407).
Poderá até levar em conta a opinião pública geral (DWORKIN, 2003, p. 409). Hércules interpreta
não só o texto da lei, mas também sua vida, o processo que se inicia antes que ela se transforme em
lei e se estende para além desse momento.
Para interpretação da Constituição um outro método é necessário, tendo em
vista que a Constituição é um tipo especial de norma. Os tribunais superiores têm o poder de julgar
a compatibilidade de uma norma ou ação governamental com a Constituição, um poder bastante
amplo e que deve ser utilizado respeitando as virtudes políticas.
Ao tratar de normas constitucionais, Hércules não se considera nem um
passivista nem um ativista. Acredita, assim como em outros casos, que “sob o regime do direito
como integridade, os problemas constitucionais polêmicos pedem uma interpretação, não uma
emenda” (DWORKIN, 2003, p. 442). Qualquer interpretação competente da Constituição como
um todo deve reconhecer que alguns direitos constitucionais se destinam a impedir que as maiorias
sigam suas próprias convicções quanto ao que a justiça requer. O julgamento interpretativo de
Hércules exigirá o envolvimento das virtudes políticas e a averiguação de compatibilidade delas
com os mandamentos constitucionais (DWORKIN, 2003, p. 442-450).
Inicia seu processo interpretativo pesquisando a melhor teoria de interpretação
disponível e após elabora uma que se aplique aos fins constitucionais, sempre sujeita a revisões
posteriores. Uma interpretação feita a partir do princípio da integridade deve sempre respeitar as
limitações institucionais, quais sejam a supremacia legislativa e o precedente estrito nos países do
common law (DWORKIN, 2003, p.472- 479).
Finalizando, existe para Dworkin (2003, p.483-484), dois tipos de integridade, a
integridade inclusiva, que reflete-se na interpretação do juiz quando este constrói uma teoria geral
do direito a fim de refletir, da maneira mais coerente possível, os princípios de equidade, justiça e
devido processo legal. É a aplicação prática da integridade, e está presente em nosso ordenamento
jurídico. E a integridade pura, uma ambição maior do direito moderno, a qual funciona como um
horizonte a ser buscado.
A integridade pura é composta de princípios de justiça que justificam o direito
contemporâneo, sem levar em conta as restrições institucionais exigidas pela integridade inclusiva..
Essa interpretação purificada se dirige diretamente à comunidade personificada (DWORKIN,
2003, p. 485).
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O Princípio da Integridade como Modelo de Interpretação Construtiva do Direito em Ronald Dworkin
6 CONCLUSÃO
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O presente artigo teve como objetivo o esclarecimento acerca da teoria de
Ronald Dworkin sobre a resolução dos casos difíceis. Para isso, foi necessário encontrar a definição de alguns conceitos básicos para o autor, como o conceito de regras, princípios, políticas,
integridade, hard cases. Além disso, foi necessário também descrever a teoria da decisão construtiva do Juiz Hércules, e desenvolver as suas idéias sobre a teoria dos direitos.
Analisou-se o valor político batizado por Dworkin de integridade e suas repercussões no campo das decisões políticas, legislativas e jurídicas, bem como seus reflexos no entendimento do Direito como um conjunto coerente de normas. Também, vislumbrou-se a possibilidade
de um caminho ainda mais perfeito para a interpretação, denominado por Dworkin de princípio da
integridade pura. Uma teoria que conta com a vantagem de não estar, necessariamente, ligada aos
casos concretos.
Infere-se dos estudos realizados que a sofisticada teoria de Ronald Dworkin,
apesar da complexidade de seus métodos, a dedicação e o tempo de Hércules, ainda encontra
muitos críticos e opositores, e está longe de constituir-se uma unanimidade.
Para alguns, o ponto mais fraco de sua teoria é a ficção de que o direito tenha
um só legislador, a comunidade personificada. Tal ficção se torna bastante importante para interpretar o direito como integridade. Para outros, é difícil absorver a importância do pensamento de
um juiz que tem a carreira toda para resolver um único caso, e que por isso ,não possui a limitação
dos juízes comuns. Há também aqueles que consideram sua teoria demasiadamente otimista. A
confusão entre moral e direito também é citada por autores que criticam sua teoria. Mas, sem
dúvida, a parte de sua teoria que mais gera desconforto é a afirmação de que, mesmo nos casos
difíceis, há apenas uma resposta correta.
Mesmo assim, a “hermenêutica política” de Dworkin é importante. O fato de
ser debatida e discutida por tantos teóricos, ao invés de diminuir o valor de seu trabalho, apenas
agrega valor. Esta é a riqueza da comunidade científica.
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Estudos de Casos
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Ester Okamoto Della Costa e Raquel Sanchez de Lima
PROTEÇÃO DA CRIANÇA EM FACE DA PUBLICIDADE DE
MEDICAMENTOS INFANTIS1
Ester Okamoto Della Costa*
Raquel Sanchez de Lima*
RESUMO
Dispõe sobre a proteção da criança diante da publicidade de medicamentos infantis. Depois de
fornecer noções fundamentais e conceitos de publicidade, analisa a legislação sobre o assunto,
tendo por base normas de áreas diversas do direito, para avaliar a situação da criança destinatária
do medicamento.
Palavras-chave: Defesa do Consumidor. Publicidade. Publicidade de Medicamentos. Público
Infantil.
PROTECTION OF THE CHILD IN FACE OF THE INFANTILE MEDICINE
ADVERTISING
ABSTRACT
It relates the protection of children in the face of the advertising of infant medicines. After providing
basic concepts and notion of advertising, it examines the law on the subject, based on standards of
various areas of law, to evaluate the situation of the child addressed the medicine.
Keywords: Consumer Protection. Advertising. Advertising for Drugs. Infant Public.
1 INTRODUÇÃO
Em uma sociedade de consumo, a principal forma de convencer o consumidor
de adquirir determinado produto é através da publicidade. Diante disso, esta tem sido uma técnica
muito utilizada pela indústria, inclusive a indústria farmacêutica.
Ocorre que o consumo inadequado de medicamento causa conseqüências graves à saúde das pessoas. Além disso, no caso de medicamentos de uso infantil, deve ser ressaltado
que a criança não é um adulto em tamanho menor, pois a criança está em desenvolvimento, tanto
físico quanto intelectual, e o consumo inadequado de medicamento pode causar dano no seu desenvolvimento físico e até uma dependência em relação ao consumo de medicamentos.
Por isso, deve-se analisar o que vem a ser publicidade e quais as espécies
permitidas na legislação brasileira, destacando-se que são proibidas as que influenciem negativamente as crianças, abusando de sua inexperiência.
1 Artigo resultou da pesquisa desenvolvida no sub-projeto de pesquisa “Proteção da criança em face da publicidade abusiva de
medicamentos infantis”, conseqüente do projeto de pesquisa Uel-Anvisa “Projeto de Monitoração da propaganda e,
alimentos especiais e produtos para saúde.”
* Farmacêutica, especialista em Bioética e Saúde Pública, mestre em saúde coletiva e doutoranda em Saúde Pública, coordenadora do projeto de pesquisa de monitoramento de propaganda de medicamentos Uel-Anvisa.
* Advogada, especialista em Bioética, colaboradora do projeto de pesquisa de monitoramento de propaganda de medicamentos
Uel-Anvisa.
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Proteção da Criança em Face da Publicidade de Medicamentos Infantis
Além do Código de Defesa do Consumidor, o Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu Art. 7º, protege a vida e a saúde da criança e do adolescente, sendo este dispositivo
legal desconsiderado no momento da produção de publicidade de medicamento de uso infantil, pois
estaria prejudicando sua saúde, podendo até estar infringindo o direito à vida da criança vítima
desta publicidade.
Assim, faz-se necessário analisar como poderia ser a proteção dessas crianças
que se encontram vulneráveis diante da imensa gama de publicidade de medicamento infantis.
2 DA PUBLICIDADE
No Brasil a publicidade vem evoluindo de forma notável. Deve-se ligar este
fato ao progresso industrial. Há um tipo de correlação entre a indústria e a publicidade, ou seja, à
medida que um cresce, o outro acompanha este crescimento.
Não se pode imaginar este exacerbado mercado consumidor sem o efeito da
publicidade que conseqüentemente permitiu o surgimento da fabricação em
série, base do desenvolvimento da indústria moderna. Ao analisar o verbo
vender numa interpretação mais ampla de que se chegue aos outros a mensagem capaz de interessá-los em determinada ação, a finalidade principal da
publicidade é vender. Não se deve, no entanto ter a idéia extrema que a única
finalidade da publicidade é vender determinada mercadoria ou serviço. Ela
influência bastante e motiva a venda. Porém, sem os demais fatores essenciais: qualidade, apresentação do artigo, preço, dentre outros, seria também
insensato demais querer que a publicidade atingisse na sua plenitude os
objetivos almejados (SILVA, 2005).
160
Publicidade é “toda atividade destinada a estimular o consumo de bens e serviços, bem como promover instituições, conceitos e idéias”, conceito dado pelo Conselho de AutoRegulamentação Publicitária (CONAR). Cláudia Lima Marques conceitua como “toda a informação ou comunicação difundida com o fim direto ou indireto de promover, junto aos consumidores, a
aquisição de um produto ou a utilização de um serviço, qualquer que seja o local ou meio de
comunicação utilizado” (VIEIRA, 2005).
A publicidade passou a mudar hábitos e ditar comportamentos aos cidadãos. Hermano
Duval Comparato (apud ALMEIDA, 2003, p. 85) explica este fenômeno da seguinte forma:
É um fato notório que a mensagem publicitária vai, hoje, além da mera informação. Em uma primeira etapa, ela informa; na segunda, sugestiona, e, na
terceira, ela capta em definitivo o consumidor. De tanto insistir na mesma
tecla, mas sempre revestida de novos recursos propiciados pela chamada
‘criatividade’,... a publicidade comercial passa habilmente da informação à
sugestão e desta à captação, isto é, eliminação no consumidor de sua capacidade crítica ou censura ao que lhe é proposto (anunciado), o que importa
numa violação ao princípio da liberdade de pensamento. E ao fim de tantas e
marteladas repetições, incapaz de distinguir a sugestão do erro, o público
consumidor apresenta-se ‘condicionado’ a mensagem, isto é, fica com o
produto anunciado para ‘libertar-se’ de sua promoção, rejeitando, assim,
qualquer outra informação ou crítica, para só se decidir pela que ficou ‘condicionado’. Nesta fase, a pior comunicação publicitária é a da chamada ‘publicidade subliminar’, de que se aproxima a ‘publicidade redacional’... Claro
que o processo de ‘condicionamento’ é psicológico, mas o de sua imposição
está na função moderna da publicidade. Ontem, advertiu Linsdsay Roger,
importava saber o que a opinião pública queria, hoje importa decidir o que
ela deve querer.
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Além disso, deve-se destacar que propaganda e publicidade são coisas diferentes, pois a publicidade tem objetivo comercial, enquanto que a propaganda visa a um fim ideológico,
religioso, filosófico, político, econômico ou social. Ademais, a publicidade é paga e identifica seu
patrocinador, fato que nem sempre sucede com a propaganda.
Assim, percebe-se que o consumidor encontra-se a mercê de publicidades,
sem conseguir discernir corretamente o que é real ou não. Embora tenha se regulamentado a
publicidade de forma geral, esta é superficial e epidérmica. Isto porque ela sempre foi vista como
concorrência desleal e relacionada a proteção da propriedade industrial, perdendo o enfoque principal que é a indução do consumidor, deixando o consumidor em segundo plano. Mesmo quando o
Conar – Conselho Nacional de Auto-Regulamentação Publicitária percebia que esta não era adequada, não podiam tirá-la do ar, não havendo grandes conseqüências à empresa que divulgava a
publicidade.
A publicidade é norteada por dois princípios o da liberdade e o da boa-fé. O
princípio da publicidade é relativa a livre concorrência e iniciativa. Além disso, sofre influência
atenuada dos princípios da manifestação de pensamento e o da liberdade de informação, pois a
publicidade é uma atividade relacionada à atividade comercial.
O outro princípio é o da Boa-fé que está expressamente disposto no Art. 4º,
CDC, significando que os contratos devem ser menos formais e devem expressar as intenções
reais, que serão contraídas. Deve-se, ainda, observar a ajuda mútua para que o contrato chegue
até o fim e a contraposição de interesses existentes devem ser respeitados, podendo ser resumido
em lealdade e confiança. Paulo V. Jacobina afirma sobre o assunto:
O certo é que as partes devem, mutuamente, manter o mínimo de confiança e
lealdade, durante todo o processo obrigacional; o seu comportamento deve
ser coerente com a intenção manifestada, evitando-se o elemento surpresa,
tanto na fase de informação, quanto na de execução, e até mesmo na fase
posterior, que se pode chamar de fase de garantia e reposição. É nesse
sentido que o princípio da boa-fé foi positivado pelo CDC, no inciso III do
art. 4º, e é nesse sentido que a lei fala em harmonização de interesses e
equilíbrio nas relações entre fornecedores e consumidores (SILVA, 2005).
Com a criação do CDC foi proibida a publicidade abusiva e enganosa, aplicando sanções administrativas, dentre elas a contrapropaganda e a retirada do ar da publicidade proibida e melhorou o acesso à justiça. Ressalta-se que estas penalidades somente são aplicadas a
publicidade irregular não interferindo na liberdade de criação.
A atividade publicitária deve ser exercida observando alguns princípios, tais
como, a identificação da publicidade, ou seja, o consumidor deve saber que o que está vendo é uma
publicidade; a veracidade, relativo à honestidade e escorreição; a não abusividade, pois deve preservar valores éticos, não induzindo o consumidor a situações prejudiciais; transparência e fundamentação, que significam que a publicidade deve ser baseada em dados fáticos, técnicos e científicos; a obrigatoriedade do cumprimento ou da vinculação contratual da publicidade, ou seja, ofertou
deve cumprir, e por fim, a inversão do ônus da prova, pois o consumidor não tem condições para
provar o que está alegando devido a sua vulnerabilidade.
Seguindo o princípio da veracidade, a única forma de publicidade permitida no
ordenamento jurídico brasileiro é a verdadeira, não podendo existir publicidade simulada, abusiva
ou enganosa. A publicidade enganosa é a que deixa de informar dado essencial ou contem informações falsas, mesmo que parcialmente, gerando vício de vontade ao consumidor, podendo-se destacar neste momento a hipossuficiência do consumidor. Como forma de explicar a publicidade enganosa por comissão: “A publicidade enganosa vicia a vontade do consumidor, que, iludido, acaba
adquirindo produto ou serviço em desconformidade com o pretendido. A falsidade está diretamente
ligada ao erro, numa relação de causalidade” (CARVALHO, 2005).
Já a publicidade enganosa por omissão consiste na falta de informação acerca
de um dado essencial do produto e Adalberto Pascoalotto a explica da seguinte forma: “Mesmo
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sendo verdadeira, uma comunicação publicitária pode ser falsa, inteira ou parcialmente. A situação
é freqüente quando há omissão de algum dado necessário ao conhecimento do consumidor, provavelmente determinante da compra” (CARVALHO, 2005).
Pode-se considerar abusiva a publicidade discriminatória, que incite a violência
ou que explore medo ou superstição, se aproveite de deficiência de julgamento e experiência de
criança, violando valores éticos da sociedade. Ambas estão proibidas pelo Art. 37, CDC.
Este tipo de publicidade não está relacionado apenas às informações divulgadas,
mas também à forma que ela é divulgada. Devem sempre ser observadoS os princípios éticos,
morais e culturais, não podendo ser utilizados como uma arma. Ressalta-se ainda que a publicidade
não deve servir para “empurrar” serviços, tampouco deve aproveitar-se da ingenuidade das crianças para vender mercadorias e serviços.
O controle da abusividade da publicidade decorre, aliás, de imposição constitucional, constante no artigo 220, II, e § 4º da Lei Maior. Ali, exige-se que a
lei estabeleça os meios que garantam a possibilidade, à pessoa e à família, de
se defenderem da propaganda de produtos, práticas e serviços que possam
ser nocivos à saúde e ao meio ambiente. Outrossim, o § 4º restringe a propaganda dos produtos ali elencados (tabaco, bebidas alcoólicas, agrotóxicos,
medicamentos e terapias) e o art. 221 garante que programação das emissoras de rádio e televisão atenderá ao princípio do respeito aos valores éticos
e sociais da pessoa e da família. Tudo isso, combinado com o princípio da
defesa do consumidor, previsto em diversas passagens da Constituição (ver
art. 5º, XXXII, e art. 170, V), dão a necessária fundamentação a tal controle. É
preciso lembrar que não existe, no estado de Direito, liberdade fora ou acima
do direito. A liberdade é sempre exercida dentro dos limites jurídicos. Se a
publicidade não pode se conter dentro dos limites do ordenamento jurídico
democrático, há algo errado com a publicidade, não com o ordenamento
jurídico (SILVA, 2005).
162
Apesar de todos consumidores serem considerados vulneráveis, este fato se
agrava quando se trata de criança, pois além de vulneráveis são hipossuficientes. Apesar disso, um
dos principais alvos das empresas são as crianças, pois se aproveitando de sua imaturidade, inocência e ignorância tentam direta e indiretamente persuadi-las em suas mensagens.
Para isso, muitas vezes, utilizam crianças para a produção do comercial, pois
assim fica mais fácil de convencer outra criança por viverem no mesmo universo. Antônio Herman
de Vasconcelos Benjamin (apud SILVA, 2005), manifesta-se entendendo que:
tal modalidade publicitária não pode exortar diretamente a criança a comprar
um produto ou serviço; não deve encorajar a criança a persuadir seus pais
ou qualquer outro adulto (...); não pode explorar a confiança especial que a
criança tem em seus pais, professores etc.; as crianças que aparecem nos
anúncios não podem se comportar de modo inconsistente com o comportamento natural de outras da mesma idade.
Já a publicidade simulada disfarça seu caráter promocional para que o consumidor não perceba que está diante de uma publicidade. Antonio Herman de Vasconcelos Benjamim
(apud CARVALHO, 2005) afirma acerca de publicidade simulada:
A publicidade há que ser identificada pelo consumidor. O legislador brasileiro não aceitou nem a publicidade clandestina, nem a subliminar (...) publicidade que não quer assumir a sua qualidade é atividade que, de uma forma ou
de outra, tenta enganar o consumidor. E o engano, mesmo o inocente, é
repudiado pelo Código de Defesa do Consumidor (...) O dispositivo visa
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impedir que a publicidade, embora atingindo o consumidor, não seja por ele
percebida como tal (...) Veda-se, portanto, a chamada publicidade clandestina, especialmente sem sua forma redacional, bem como a subliminar.
É importante a intervenção do Estado na regulamentação de publicidades, estando este fato interligado ao intervencionismo estatal para que não haja abusos nas publicidades,
que devem ser analisadas mais cuidadosamente quando se trata de publicidade de medicamentos,
pois seu consumo inadequado interfere diretamente na saúde das pessoas.
3 PUBLICIDADE DE MEDICAMENTOS
A publicidade de medicamentos é uma prática utilizada desde o início do século
XX, e até os dias de hoje essa é uma forma de forte persuasão dos consumidores. No início essas
propagandas resumiam-se em simples mensagens. Hoje, com a chegada da mídia, os investimentos em publicidade de medicamentos cresceram estrondosamente.
Ocorre que, para a simples divulgação do consumo de um medicamento, existem muitos fatores que devem ser analisados, observando que ele não é o produto de consumo
comum, pois é um e não o único instrumento de promoção à saúde, devendo sempre existir como
medida preventiva, consultas médicas e até mesmo uma análise crítica de todo o contexto em que
a patologia se insere, não podendo simplesmente consumir o medicamento, acreditando que somente ele resolverá o problema. Ainda ressalta-se o risco sanitário existente no consumo de medicamentos sem prescrição médica, pois estes somente devem ser consumidos com consciência e
responsabilidade.
Por isso, em 1968, durante o 21ª Assembléia Mundial da Saúde, aprovaram-se
critérios éticos e científicos para propaganda farmacêutica, determinando que para produção da
publicidade de medicamento seriam necessárias as informações exatas do medicamento, sendo
estas as indicações corretas, contra-indicações, cuidados e advertências, posologia. Após foram
elaborados mais documentos estabelecendo como devem ser as publicidades de medicamentos
incluindo a Organização Mundial da Saúde e a Federação Internacional das Indústrias de Medicamentos, além das legislações nacionais de cada país.
No Brasil, a primeira legislação sobre a publicidade de medicamentos começou
a ser criada em 1976 com a elaboração da Lei 6.360/76, que foi regulamentada pelo decreto
79.094/77. Essa legislação sobre publicidade de medicamentos era muito superficial, não atendendo a necessidade de coibir os abusos na publicidade de medicamentos. Esta lei e esse decreto
estabeleceram que a publicidade de medicamentos deveria ser aprovada para ser divulgada, além
de que os produtos de venda sob prescrição médica somente poderiam ser divulgados para os
prescritores do medicamento.
Em 1980, foi criado o Código Brasileiro de Auto-Regulamentação publicitária,
que, em seu anexo I, trata especificamente de produtos farmacêuticos isentos de prescrição médica, exigindo os seguintes aspectos:
2. A publicidade de medicamentos populares:
a. não deverá conter nenhuma afirmação quanto à ação do produto que não
seja baseada em evidência clínica ou científica;
b. não deverá ser feita de modo a sugerir cura ou prevenção de qualquer
doença que exija tratamento sob supervisão médica;
c. não deverá ser feita de modo a resultar em uso diferente das ações terapêuticas constantes da documentação aprovada pela Autoridade Sanitária;
d. não oferecerá ao consumidor prêmios, participação em concursos ou recursos semelhantes que o induzam ao uso desnecessário de medicamentos;
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Proteção da Criança em Face da Publicidade de Medicamentos Infantis
e. deve evitar qualquer inferência associada ao uso excessivo do produto;
f. não deverá ser feita de modo a induzir ao uso de produtos por crianças,
sem supervisão dos pais ou responsáveis a quem, aliás, a mensagem se
dirigirá com exclusividade;
g. não deverá encorajar o Consumidor a cometer excessos físicos,
gastronômicos ou etílicos;
h. não deverá mostrar personagem na dependência do uso contínuo de
medicamentos como solução simplista para problemas emocionais ou estados de humor;
i. não deverá levar o Consumidor a erro quanto ao conteúdo, tamanho de
embalagem, aparência, usos, rapidez de alívio ou ações terapêuticas do produto e sua classificação (similar/genérico);
j. deverá ser cuidadosa e verdadeira quanto ao uso da palavra escrita ou
falada bem como de efeitos visuais. A escolha de palavras deverá corresponder
a seu significado como geralmente compreendido pelo grande público;
k. não deverá conter afirmações ou dramatizações que provoquem medo ou
apreensão no Consumidor, de que ele esteja, ou possa vir, sem tratamento, a
sofrer de alguma doença séria;
l. deve enfatizar os usos e ações do produto em questão. Comparações
injuriosas com concorrentes não serão toleradas. Qualquer comparação somente será admitida quando facilmente perceptível pelo Consumidor ou baseada em evidência clínica ou científica. Não deverão ser usados jargões
científicos com dados irrelevantes ou estatísticas de validade duvidosa ou
limitada, que possam sugerir uma base científica que o produto não tenha;
m. não deverá conter qualquer oferta de devolução de dinheiro pago ou
outro benefício, de qualquer natureza, pela compra de um medicamento em
função de uma possível ineficácia;
164
n. a publicidade de produto dietético deve submeter-se ao disposto neste
Anexo e, no que couber, nos anexos “G” e “H”. Não deverá incluir ou mencionar indicações ou expressões, mesmo subjetivas, de qualquer ação terapêutica.
3. A referência a estudos, quer científicos ou de consumo, deverá sempre ser
baseada em pesquisas feitas e interpretadas corretamente.
4. Qualquer endosso ou atestado, bem como a simples referência a profissionais, instituições de ensino ou pesquisa e estabelecimentos de saúde, deverá ser suportada por documentação hábil, exigível a qualquer tempo.
5. A publicidade de medicamentos não oferecerá a obtenção de diagnóstico
à distância.
6. Não conterá afirmações injuriosas às atividades dos profissionais de saúde ou ao valor de cuidados ou tratamentos destes.
7. Quando oferecer a venda do produto por meio de telefone ou endereço
eletrônico, deverá explicitar a razão social e o endereço físico do anunciante
a fim de facilitar ação fiscalizatória e reclamações.
Assim, ficaram estabelecidas as limitações do que poderia ser afirmado ou não
e a necessidade de informações.
Poucos anos depois, em 1988, foi promulgada a Constituição Federal que estabeleceu, no Art. 220, a limitação da publicidade de medicamentos, devido ao estabelecido no Art.
6º, que estabeleceu que é um direito de todos o direito à saúde. Desse modo, os Arts. 196 e 197
estabeleceram que a saúde é dever do Estado, e este deve interferir sempre para sua manutenção.
Dessa forma mesmo o Art. 220, sendo contrário a livre concorrência, é um direito do Estado
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intervir nesta livre concorrência, pois é seu dever preservar a saúde das pessoas, e o consumo
inadequado de um medicamento pode causar sérios danos à saúde de uma pessoa.
Em 1990, foi criado o Código de Defesa do Consumidor, estabelecendo, em seu
Art. 4º, que, apesar da necessidade do consumo, este deve ser atendido respeitando a dignidade e
saúde do consumidor, entre outros, mas dessa forma estabelece que, apesar da sociedade de
consumo em que se vive, a saúde de ninguém pode ser afetada pelo consumo. Ainda na mesma
legislação ficou estabelecido que a saúde e o esclarecimento do consumo são direitos básicos do
consumidor, segundo estabelecido no Art. 6º, CDC:
Art. 6º. São direitos básicos do consumidor: I - a proteção da vida, saúde e
segurança contra os riscos provocados por práticas no fornecimento de produtos e serviços considerados perigosos ou nocivos;
Na Declaração Universal dos direitos do Homem e do Cidadão, a saúde é um
direito de todos, sendo que o uso inadequado de medicamentos causa danos diretos às pessoas:
Artigo 25º
1. Toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar
e à sua família a saúde e o bem-estar, principalmente quanto à alimentação,
ao vestuário, ao alojamento, à assistência médica e ainda quanto aos serviços sociais necessários, e tem direito à segurança no desemprego, na doença, na invalidez, na viuvez, na velhice ou noutros casos de perda de meios de
subsistência por circunstâncias independentes da sua vontade.
Além disso, os Art. 36 a 38, Código Defesa do Consumidor, protegem o consumidor, exigindo que, em toda publicidade, esteja claro seu caráter publicitário e não admitindo que
existam publicidades enganosas, abusivas e simuladas, conforme já foi analisado acima.
Em 1996 foi criada a Lei 9.294/96, regulamentada pelo Decreto 2.018/96 que
determinou alguns critérios de informações essenciais para a publicidade de medicamentos, e como
esta pode ser divulgada.
Apesar de toda legislação criada no Brasil visando proteger a população das
publicidades de medicamentos, a Lei 6.360/76 foi submetida a uma consulta pública nº 5, resultando
na Resolução RDC 102/00 criada pela Anvisa, regulamentando a publicidade de promoção ou
divulgação ou comercialização de medicamentos, indicando seus critérios, e o que pode ou não ser
afirmado neste tipo de publicidade.
Ainda em 2000 foi criada a Gerência de Controle e Fiscalização de Medicamentos e Produtos iniciando-se um melhor controle dos medicamentos postos no mercado e também de suas publicidades, pois possui as seguintes competências:
I. avaliar, fiscalizar, controlar e acompanhar, a propaganda, a publicidade, a
promoção e a informação de produtos sujeitos à vigilância sanitária;
III. coordenar as atividades de apuração das infrações à legislação de vigilância sanitária, instaurar processo administrativo para apuração de infrações
à legislação sanitária federal, em sua área de competência;
VIII. formular, regulamentar, planejar, coordenar, avaliar, executar e propor as
diretrizes para implantação de um módulo de propaganda de produtos sujeitos à vigilância sanitária dentro do Sistema de Informação em Vigilância
Sanitária, visando o aprimoramento do desempenho das ações de vigilância
sanitária;
IX. articular-se com órgãos afins da administração federal, estaduas, municipal e do Distrito Federal visando a cooperação mútua e a integração de
atividades, de modo a incorporar o controle de propaganda, publicidade,
promoção e informação como uma ação de vigilância sanitária em todos os
níveis de governo.
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Além de organismos nacionais existem os supranacionais que também visam à
proteção da saúde através da coibição de publicidade de medicamentos. O mais importante deles
é a Organização Mundial da Saúde, que, desde 1968, vem estabelecendo critérios éticos e científicos para a propaganda farmacêutica.
Esses critérios foram ampliados em 1988 na Assembléia Mundial da saúde
quando foram aprovados os Critérios Éticos para a Promoção da Saúde. Nessa assembléia foi
considerada promoção qualquer forma de atividade informativa e de persuasão por parte dos fabricantes ou distribuidores de medicamentos, com o objetivo de induzir a prescrição, abastecimento,
aquisição ou utilização do medicamento.
Em 1992 a mesma assembléia constatou que a maioria dos países não tinha
adotado meios suficientes de controle das publicidades de medicamentos. Assim foi criado o regulamento WHA47 que recomenda aos Estados membros que implementem meios para coibir a
publicidade de medicamentos que não observem a ética.
Em 1994 foi elaborada a resolução WHA51.9, reafirmando que a regulamentação de medicamentos deve visar não apenas à segurança, mas também à eficácia, qualidade e
exatidão nas informações fornecidas aos pacientes e prescritores.
4 DA PUBLICIDADE VOLTADA AO PÚBLICO INFANTIL
Um público muito desejado pelos publicitários é o público infantil, pois constituem um mercado atraente e uma forma de atração aos pais. Somando este fato à hipossuficiência
das crianças, o CDC dispensou uma atenção especial para estes consumidores.
Por isso, as publicidades não podem incitar a criança diretamente a comprar
um produto ou contratar um serviço, não podem mostrar crianças tendo ações como outras crianças da mesma idade, persuadindo seus pais a comprarem. Tampouco podem aproveitar-se da
confiança que as crianças têm nos pais e professores para adquirirem um produto.
166
A publicidade dirigida a crianças deve ser veraz e claramente identificável
como tal; não deve aprovar a violência ou aceitar comportamentos que contrariem as regras gerais de comportamento social; não se podem criar situações que passem a impressão de que alguém pode ganhar prestígio com a
posse de bens de consumo, que enfraqueçam a autoridade dos pais, contribuam para situações perigosas para a criança, ou que incentivem as crianças
a pressionarem outras pessoas a adquirirem bens (SANTOS, 2005).
O Código de Defesa do consumidor, como já afirmado anteriormente, resguarda a saúde de todos os consumidores. Além disso, no capítulo relativo à publicidade, há uma proteção especial às crianças, por serem um público ingênuo que acredita nas afirmações acerca do
produto, sem ter completo discernimento do ideal. Essa proteção está no Art. 37, § 2º, CDC:
É abusiva, dentre outras, a publicidade discriminatória de qualquer natureza,
a que incite à violência, explore o medo ou superstição, se aproveite da
deficiência de julgamento experiência da criança, desrespeita valores
ambientais, ou que seja capaz de induzir o consumidor a se comportar de
forma prejudicial ou perigosa à sua saúde ou segurança.
Isso se deve ao fato de além, de vulneráveis como todo consumidor, a criança
ser hipossuficiente. Por isso um dos maiores alvos da publicidade, atualmente, são as crianças, pois
não possuem discernimento necessário para escolher o que é melhor para sua vida, são ingênuas e
imaturas, acabando, muitas vezes, ludibriadas pelas publicidades. “A hipossuficiência leva em consideração a situação concreta do consumidor, seu grau de cultura, instrução, situação financeira e
o meio em que vive” (SANTOS, 2005).
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Por tudo isso, foi regulamentada pelo Estado a proteção da criança face à
publicidade de medicamentos, pois, ocorrendo estes abusos, a saúde da criança pode ser afetada e
há diversas legislações protegendo a saúde da criança. Visando a proteção da saúde da criança, a
Constituição Federal é clara ao afirmar que é dever do Estado e da família sua proteção:
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e
ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao
respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocálos a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
§ 1º. O Estado promoverá programas de assistência integral à saúde da
criança e do adolescente, admitida a participação de entidades não governamentais e obedecendo os seguintes preceitos:
I - aplicação de percentual dos recursos públicos destinados à saúde na
assistência materno-infantil;
II - criação de programas de prevenção e atendimento especializado para os
portadores de deficiência física, sensorial ou mental, bem como de integração
social do adolescente portador de deficiência, mediante o treinamento para o
trabalho e a convivência, e a facilitação do acesso aos bens e serviços
coletivos, com a eliminação de preconceitos e obstáculos arquitetônicos.
No mesmo sentido, dispôs o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA):
Art. 4º. É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do Poder
Público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à
profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.
Art. 7º. A criança e o adolescente têm direito a proteção à vida e à saúde,
mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de
existência.
A lei Programa Nacional de Atenção Integral à Criança e ao Adolescente –
PRONAICA, Lei 8642 de 1993, acerca da proteção da saúde da criança, diz:
Art. 2º. O PRONAICA terá as seguintes áreas prioritárias de atuação:
I - mobilização para a participação comunitária;
II - atenção integral à criança de 0 a 6 anos;
III - ensino fundamental;
IV - atenção ao adolescente e educação para o trabalho;
V - proteção à saúde e segurança à criança e ao adolescente;
VI - assistência a crianças portadoras de deficiência;
VII - cultura, desporto e lazer para crianças e adolescentes;
VIII - formação de profissionais especializados em atenção integral a crianças e adolescentes.
Parágrafo único. Para dar suporte às ações de que trata este artigo, subordi-
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nando-as ao enfoque da atenção integral à criança e ao adolescente, e de
acordo com as necessidades sociais locais, serão adotados mecanismos e
estratégias de: integração de serviços e experiências locais já existentes;
adaptação e melhoria de equipamentos sociais já existentes; construção de
novas unidades de serviço.
A Estrutura Regimental Da Secretaria Especial Dos Direitos Humanos protege a saúde da criança da seguinte forma em seu Art. 6º:
Art. 6º À Subsecretaria dos Direitos da Criança e do Adolescente compete:
I - formular medidas necessárias para promover, estimular, acompanhar e
zelar pelo cumprimento do Estatuto da Criança e do Adolescente, mediante o
desenvolvimento de ações sociais públicas de proteção à vida e à saúde da
criança e do adolescente, para viver em condições dignas de existência;
II - propor diretrizes e a adoção de medidas administrativas e de gestão
estratégica, visando garantir a adequada implementação do Estatuto da Criança e do Adolescente;
III - supervisionar e coordenar a elaboração de planos de ação anuais para a
implementação e monitoramento de programas e projetos de atendimento às
crianças e aos adolescentes, com definição de prazos, metas, responsáveis e
orçamento para as ações;
IV - supervisionar e coordenar a execução da política de promoção e defesa
dos direitos da criança e do adolescente consagrados no Estatuto, bem
como fomentar o apoio a serviços de atendimento direto à criança e ao
adolescente;
V - promover parcerias com órgãos da Administração Pública federal, estadual, municipal e entidades não-governamentais na formulação de propostas para a implementação de programas de ações em defesa dos direitos da
criança e do adolescente;
168
VI - promover ações de proteção da criança e do adolescente com direitos
ameaçados ou violados, bem como apoiar o desenvolvimento de projetos de
atendimento aos egressos de medidas socioeducativas;
VII - incentivar o aprimoramento de instituições de atendimento direto aos
adolescentes em conflito com a lei;
VIII - promover e apoiar a execução de programas de proteção e assistência
à criança e ao adolescente, vítimas do narcotráfico e da exploração sexual;
IX - promover ações, em articulação com órgãos da Administração Pública
federal, estadual, municipal e outras entidades, de apoio à erradicação do
trabalho infantil;
X - estimular e apoiar a execução da política de adoção nacional, acompanhando as ocorrências e denúncias de irregularidades para assegurar nesse
sentido o cumprimento do Estatuto da Criança e do Adolescente;
XI - fomentar e contribuir para a formação, a especialização e o aperfeiçoamento de recursos humanos necessários à execução da política de atendimento e garantia dos direitos da criança e do adolescente;
XII - incentivar e apoiar as ações dos governos federal, estadual, do Distrito
Federal e municipal que visem a universalização do direito à documentação
civil básica da criança e do adolescente;
XIII - sistematizar, avaliar e disponibilizar os resultados alcançados pelos
programas de ações em defesa dos direitos da criança e do adolescente,
difundindo conhecimentos e informações mediante estudos e pesquisas
específicos;
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XIV - colaborar com o Gabinete do Secretário Especial na execução das
atividades relacionadas com os Aspectos Civis do Seqüestro Internacional
de Crianças e Adolescentes e com as ações relativas à Cooperação em Matéria de Adoção Internacional, de competência da Secretaria Especial; e
XV - realizar outras atividades determinadas pelo Secretário Especial.
A Convenção Sobre Os Direitos Da Criança complementa:
1. Os Estados Partes reconhecem o direito da criança de gozar do melhor
padrão possível de saúde e dos serviços destinados ao tratamento das doenças e à recuperação da saúde. Os Estados Partes envidarão esforços no
sentido de assegurar que nenhuma criança se veja privada de seu direito de
usufruir desses serviços sanitários.
2. Os Estados Partes garantirão a plena aplicação desse direito e, em especial, adotarão as medidas apropriadas com vistas a:
a) reduzir a mortalidade infantil;
b) assegurar a prestação de assistência médica e cuidados sanitários necessários a todas as crianças, dando ênfase aos cuidados básicos de saúde;
c) combater as doenças e a desnutrição dentro do contexto dos cuidados
básicos de saúde mediante, inter alia, a aplicação de tecnologia disponível e
o fornecimento de alimentos nutritivos e de água potável, tendo em vista os
perigos e riscos da poluição ambiental;
d) assegurar às mães adequada assistência pré-natal e pós-natal;
e) assegurar que todos os setores da sociedade, e em especial os pais e as
crianças, conheçam os princípios básicos de saúde e nutrição das crianças,
as vantagens da amamentação, da higiene e do saneamento ambiental e das
medidas de prevenção de acidentes, e tenham acesso à educação pertinente
e recebam apoio para a aplicação desses conhecimentos;
f) desenvolver a assistência médica preventiva, a orientação aos pais e a
educação e serviços de planejamento familiar.
3. Os Estados Partes adotarão todas as medidas eficazes e adequadas para
abolir práticas tradicionais que sejam prejudiciais à saúde da criança.
4. Em conformidade com suas obrigações de acordo com o direito humanitário internacional para proteção da população civil durante os conflitos armados, os Estados Partes adotarão todas as medidas necessárias a fim de
assegurar a proteção e o cuidado das crianças afetadas por um conflito
armado.
Os Estados Partes adotarão todas as medidas apropriadas para estimular a
recuperação física e psicológica e a reintegração social de toda criança vítima de qualquer forma de abandono, exploração ou abuso; tortura ou outros
tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes; ou conflitos armados. Essa recuperação e reintegração serão efetuadas em ambiente que
estimule a saúde, o respeito próprio e a dignidade da criança.
O Art. 24, dos Direitos das Crianças, da Unicef, prossegue afirmando que
todas as crianças têm direito à saúde:
Artigo 24 - Tens direito à saúde. quer dizer que, se estiveres doente, deves
ter acesso a cuidados médicos e medicamentos. Os adultos devem fazer
tudo para evitar que as crianças adoeçam, dando-lhes uma alimentação conveniente e cuidando bem delas.
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Por fim, a convenção dos direitos da criança, criada pela Organização das
Nações Unidas (ONU), estabeleceu:
Artigo 24.º
1. Os Estados Partes reconhecem à criança o direito a gozar do melhor estado
de saúde possível e a beneficiar de serviços médicos e de reeducação. Os
Estados Partes velam pela garantia de que nenhuma criança seja privada do
direito de acesso a tais serviços de saúde.
2. Os Estados Partes prosseguem a realização integral deste direito e, nomeadamente, tomam medidas adequadas para:
a) Fazer baixar a mortalidade entre as crianças de tenra idade e a mortalidade
infantil;
b) Assegurar a assistência médica e os cuidados de saúde necessários a
todas as crianças, enfatizando o desenvolvimento dos cuidados de saúde
primários;
c) Combater a doença e a má nutrição, no quadro dos cuidados de saúde
primários, graças nomeadamente à utilização de técnicas facilmente disponíveis e ao fornecimento de alimentos nutritivos e de água potável, tendo em
consideração os perigos e riscos da poluição do ambiente;
d) Assegurar às mães os cuidados de saúde, antes e depois do nascimento;
e) Assegurar que todos os grupos da população, nomeadamente os pais e as
crianças, sejam informados, tenham acesso e sejam apoiados na utilização
de conhecimentos básicos sobre a saúde e a nutrição da criança, as vantagens do aleitamento materno, a higiene e a salubridade do ambiente, bem
como a prevenção de acidentes;
170
f) Desenvolver os cuidados preventivos de saúde, os conselhos aos pais e
a educação sobre planeamento familiar e os serviços respectivos.
3. Os Estados Partes tomam todas as medidas eficazes e adequadas com
vista a abolir as práticas tradicionais prejudiciais à saúde das crianças.
4. Os Estados Partes comprometem-se a promover e a encorajar a cooperação internacional, de forma a garantir progressivamente a plena realização
do direito reconhecido no presente artigo. A este respeito atender-se-á de
forma particular às necessidades dos países em desenvolvimento.
Visando a proteção da saúde das crianças conforme determinado por toda esta
legislação acostada, o legislador brasileiro elaborou leis que protegem a criança face à publicidade
de medicamentos.
Em primeiro plano, deve-se destacar o papel do Código de Defesa do Consumidor que proíbe a publicidade abusiva, e estas podem ser considerada também as que exploram a
inocência infantil como ensinado anteriormente.
Além disso, a resolução RDC 102/00, em seu Art. 10, II, afirma que não pode
ser dirigida a publicidade de medicamentos isentos de prescrição para o público infantil2 . Diante
disso, infere-se que nenhum medicamento pode ser divulgado para o público infantil, pois os demais
medicamentos somente podem ser divulgados para a classe prescritora deles.
A Conar também decidiu como devem ser as publicidades voltadas ao público
infantil:
2 II - incluir mensagens de qualquer natureza dirigidas a crianças ou adolescentes; conforme classificação do Estatuto da Criança
e do Adolescente, bem como utilizar símbolos e imagens com este fim;
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Artigo 37 - No anúncio dirigido à criança e ao jovem:
a. dar-se-á sempre atenção especial às características psicológicas da
audiência-alvo;
b. respeitar-se-á especialmente a ingenuidade e a credulidade, a inexperiência
e o sentimento de lealdade dos menores;
c. não se ofenderá moralmente o menor;
d. não se admitirá que o anúncio torne implícita uma inferioridade do menor,
caso este não consuma o produto oferecido;
e. não se permitirá que a influência do menor, estimulada pelo anúncio, leveo a constranger seus responsáveis ou importunar terceiros ou o arraste a
uma posição socialmente condenável;
f. o uso de menores em anúncios obedecerá sempre a cuidados especiais
que evitem distorções psicológicas nos modelos e impeçam a promoção de
comportamentos socialmente condenáveis;
g. qualquer situação publicitária que envolva a presença de menores deve
ter a segurança como primeira preocupação e as boas maneiras como segunda preocupação.
Além disso, ressalta-se que, em seu anexo I, a referida Lei dispõe acerca da
publicidade ao público infantil de medicamentos: “f. não deverá ser feita de modo a induzir ao uso
de produtos por crianças, sem supervisão dos pais ou responsáveis a quem, aliás, a mensagem se
dirigirá com exclusividade”;
Assim, fica clara a existência de proteção à saúde da criança e a tentativa de
minimizar possíveis conseqüências do consumo inadequado de medicamentos, basta agora analisar
os mecanismos de proteção quando estes dispositivos não são respeitados.
171
5 MEIOS DE PROTEÇÃO
Os Meios de defesa do consumidor encontram-se elencados no Art. 5º, CDC.
A educação formal e informal é a primeira forma de proteção e talvez a mais importante, pois a
educação formal consiste na inclusão nos currículos escolares de educação consumerista, como o
objetivo de formar hábitos sadios de consumo e preparar as crianças para as escolhas que farão
durante à vida dentre os produtos ofertados. Por outro lado, a informal decorre de campanhas
divulgadas pelo Estado e por organizações não governamentais que forneçam esclarecimentos
para melhor postura como consumidor.
Os órgãos oficiais desempenham importante papel para o atendimento ao público, procurando solucionar conflitos sendo ora por políticas preventivas ora através de repressão.
As associações civis são criadas através de incentivo estatal e são tão importantes quanto os
órgãos oficiais para proteção do consumidor.
Informação ao consumidor é um direito básico, o princípio da transparência e
informação é relevante para proteção do consumidor. Todos os dados relativos aos produtos são de
função do fornecedor indicar para que o consumidor não caia em erro e possa exercer livre e
conscientemente sua escolha. Os serviços de atendimento nas empresas também são importantes,
pois significa uma tomada de consciência do fornecedor, evitando o acúmulo de reclamações envolvendo os produtos que fabrica, resolvendo previamente os problemas surgidos.
Os juizados Especiais Cíveis, como já dito anteriormente, é a forma mais rápida
e fácil para solucionar problemas em que o valor da causa não seja superior a 40 salários mínimos,
independente de pagamento de custas, taxas ou despesas, e nas causas com até 20 salários mínimos é possível exercer direito de ação sem a presença de advogado constituído.
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Proteção da Criança em Face da Publicidade de Medicamentos Infantis
O Ministério Público é responsável pela tutela do consumidor, desempenhando
papel de grande relevância na mediação dos conflitos. Antonio Herman Benjamin (apud ALMEIDA,
2003, p. 29) afirma que
a tutela do consumidor pelo MP tem como premissa básica a defesa do
interesse público, algo mais abrangente que o interesse exclusivo do
consumidor. Aí reside a razão principal por que é o MP, e não outro
órgão, a instituição mais adequada a carrear a tarefa mediativa nas relações de consumo.
A assistência jurídica consiste na assistência pelo poder público do consumidor
carente, respeitando seus direitos. Ainda cabe lembrar as Delegacias especializadas em atendimento ao consumidor vítima de infrações penais de consumo para tutelar o consumidor.
Além disso, são oferecidos outros instrumentos para a proteção do consumidor
como o instituto de pesos e medidas que analisam fraudes nessas áreas e a Vigilância Sanitária. O
cadastro das reclamações fundamentadas, identificando se as reclamações foram atendidas ou
não pelo fornecedor, tendo os consumidores acesso ao cadastro dos fornecedores, assegurando a
publicidade de sua confiabilidade e continuidade.
Sempre que o estabelecido acerca das publicidades não for obedecido, haverá
punição aos infratores, conforme disposto no Art. 50 do CONAR:
Artigo 50 - Os infratores das normas estabelecidas neste Código e seus
anexos estarão sujeitos às seguintes penalidades:
a. advertência;
b. recomendação de alteração ou correção do Anúncio;
172
c. recomendação aos Veículos no sentido de que sustem a divulgação do
anúncio;
d. divulgação da posição do CONAR com relação ao Anunciante, à Agência
e ao Veículo, através de Veículos de comunicação, em face do não acatamento das medidas e providências preconizadas.
A responsabilidade acerca da divulgação da publicidade é tanto da empresa
quanto do anunciante, de acordo com o Art. 45, CONAR:
Artigo 45 - A responsabilidade pela observância das normas de conduta
estabelecidas neste Código cabe ao Anunciante e a sua Agência, bem como
ao Veículo, ressalvadas no caso deste último as circunstâncias específicas
que serão abordadas mais adiante, neste Artigo:
a. o Anunciante assumirá responsabilidade total por sua publicidade;
b. a Agência deve ter o máximo cuidado na elaboração do anúncio, de modo
a habilitar o Cliente Anunciante a cumprir sua responsabilidade, com ele
respondendo solidariamente pela obediência aos preceitos deste Código;
c. este Código recomenda aos Veículos que, como medida preventiva, estabeleçam um sistema de controle na recepção de anúncios.
Destaca-se que a responsabilidade pela publicidade inadequada é objetiva, ou
seja, independe de culpa da pessoa que a produziu, existindo o nexo causal, o fato e o dano,
configura-se a ilicitude devendo ser indenizado. Geralmente a publicidade enganosa gera danos
materiais ao passo que a publicidade abusiva gera danos morais. Ressalta-se ainda que dependen-
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do da forma que o agente agiu o quantum indenizável é maior, principalmente em caso de abusividade.
O Código de Defesa do Consumidor apontou algumas práticas como crime
contra o consumo. Essas práticas consistem em divulgação de publicidade enganosa ou abusiva,
divulgação de publicidade de produto que poderá fazer mal a saúde do consumidor e deixar de
informar dados que são a base da publicidade:
Art. 67. Fazer ou promover publicidade que sabe ou deveria saber ser enganosa ou abusiva:
Pena - Detenção de três meses a um ano e multa.
Parágrafo único. (Vetado).
Art. 68. Fazer ou promover publicidade que sabe ou deveria saber ser capaz
de induzir o consumidor a se comportar de forma prejudicial ou perigosa a
sua saúde ou segurança:
Pena - Detenção de seis meses a dois anos e multa:
Parágrafo único. (Vetado).
Art. 69. Deixar de organizar dados fáticos, técnicos e científicos que dão
base à publicidade:
Pena - Detenção de um a seis meses ou multa.
A Lei dos crimes contra a ordem tributária, econômica e contra as relações de
consumo aponta alguns crimes em relação à publicidade enganosa de medicamentos:
Art. 7° Constitui crime contra as relações de consumo:
VII - induzir o consumidor ou usuário a erro, por via de indicação ou afirmação falsa ou enganosa sobre a natureza, qualidade do bem ou serviço, utilizando-se de qualquer meio, inclusive a veiculação ou divulgação publicitária;
Pena - detenção, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, ou multa.
Além da ação penal e responsabilização do dano causado pela publicidade enganosa ou abusiva, há uma outra forma de punição às publicidades, que é a contrapropaganda,
estabelecida no Art. 56, XII, CDC, após um procedimento administrativo visando apurar a
enganosidade e abusividade da publicidade.
Contrapropaganda, na relação de consumo, corresponde ao oposto da divulgação publicitária, pois destinada a desfazer efeitos perniciosos detectados e apenados na forma do CDC (...) punição imponível ao fornecedor de
bens ou serviços, consistente na divulgação publicitária esclarecedora do
engano ou do abuso cometidos em publicidade precedente do mesmo fornecedor (...) a imposição de contrapropaganda, custeada pelo infrator, será
cominada (art. 62) quando incorrer na prática de publicidade enganosa ou
abusiva (...) Quer a divulgação do anúncio, capaz de satisfazer a finalidade
indicada seja feita em jornais e revistas, quer seja pela mídia eletrônica, seu
custeio estará sempre a cargo do fornecedor (o fabricante, mesmo não destinando o produto ao destinatário final, pode ser sujeito passivo da obrigação) (CARVALHO, 2005).
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Proteção da Criança em Face da Publicidade de Medicamentos Infantis
A contrapropaganda pode ser considerada uma forma de proteção estatal do
consumidor hipossuficiente quando bombardeado por publicidades abusiva e/ou enganosas, resultando em um processo administrativo, mas não se libera de um processo civil de responsabilidade
ou penal.
6 CONCLUSÃO
Apesar da publicidade de medicamentos ser uma arma utilizada pela indústria
farmacêutica, visando convencer o consumidor a adquirir seus produtos, percebe-se que esta prática é inadimissível na legislação brasileira, devido ao fato de poder causar dano à saúde e por ser
este tipo de publicidade restrita as condições analisadas alhures. Apesar disso, esta restrição, na
maior parte das vezes não é observada existindo diversos tipos de publicidades de medicamentos,
inclusive voltadas ao público infantil.
Mecanismos aptos para punição deste tipo de publicidade, como se pode analisar, existem, porém sua aplicabilidade é quase nula, precisando assim encontrar outras formas para
proteção das crianças face a publicidade de medicamentos. O primeiro ponto e talvez o mais
importante é a informação-educação, ensinando a criança como deve ser consumido o medicamento e a preparando para possíveis práticas de publicidade voltada à ela de medicamento, pois
assim, ela deixaria de ser facilmente atingida.
Além disso, faz-se necessária a conduta da população buscando denunciar aos
órgãos responsáveis pela fiscalização desta forma de publicidade para que sejam coibidos anúncios
abusivos e enganosos.
REFERÊNCIAS
174
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O Processo de Elaboração e a Participação Popular nos Planos Diretores de Assaí/PR e de Bela VIsta do
Paraíso/PR
O PROCESSO DE ELABORAÇÃO E A PARTICIPAÇÃO POPULAR NOS
PLANOS DIRETORES DE ASSAÍ/PR E DE BELA VISTA DO PARAÍSO/PR
Miguel Etinger de Araujo Junior*
RESUMO
Desde meados dos anos oitenta, com o fim da ditadura militar, o Brasil vem passando por uma
implementação e aperfeiçoamento das práticas democráticas em relação ao Poder Público. A
atividade de planejamento urbano é uma das áreas onde vem se fortalecendo esta participação
popular, em especial na elaboração do Plano Diretor dos Municípios. Neste particular, esta participação é obrigatória, por força de dispositivo expresso do Estatuto da Cidade, em cumprimento ao
comando constitucional que prevê a democracia direta e participativa como um dos fundamentos
da República. Analisa-se neste artigo, como este processo ocorreu em dois Municípios do Paraná.
Palavras-chave: Democracia Participativa. Plano Diretor. Municípios. Constituição Federal.
THE PROCESS OF ELABORATION AND THE POPULAR PARTICIPATION IN
THE MANAGING PLANS OF ASSAÍ/PR AND BELA VISTA DO PARAÍSO/PR
ABSTRACT
176
Since middle of the Eighties, in the military dictatorship ending, Brazil has being passing through an
implementation and perfectioning of democratic practices relationed to the Public Power. The
urban planning activity is one of the areas where this popular participation has being fortified,
specially in the elaboration of the Cities Managing Plan. In this particular one, this participation is
obrigatory, to attend an express device of the City Statute, in order to attend the constitucional
comand that foresees the direct and participatory democracy as one of the Republic bases. In this
article is analysed, how this process ocurred in two Cities at Paraná / Brasil.
Keywords: ParticipAtory Democracy. Managing Plan. Cities. Federal Constitution.
1 INTRODUÇÃO
A população brasileira vem apresentando um elevado grau de concentração na
área urbana, alcançado em 2000 o índice de 81,25% em uma área de 1,1% do território nacional
(BRASIL, 2001). Esse panorama exige de toda a sociedade, em especial dos órgãos públicos, um
planejamento urbano que possa efetivamente apresentar políticas públicas para resolver os problemas decorrentes desta urbanização.
Um passo importante foi a elaboração do Estatuto da Cidade, Lei Federal nº.
10.257/2001 que operacionaliza os artigos 182 e 183 da Constituição Federal, estabelecendo diretrizes gerais da política urbana, seguindo a orientação constitucional ao prever em seu artigo 2º,
inciso IV, o “planejamento do desenvolvimento das cidades” como uma das diretrizes gerais da
política urbana (BRASIL, 2001).
* Doutorando em Direito da Cidade pela UERJ, Professor Assistente da UEL, Advogado.
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Trata-se, pois, de norma de ordem pública e interesse social que, segundo Odete Medauar (2004, p. 24) significa que “não podem ser derrogadas ou moldadas pela vontade dos
particulares, sendo imperativas, cogentes”. A questão do interesse social, continua a autora, parece
significar “algo relevante para toda a sociedade”.
Trata-se de verdadeiro “marco regulatório”, expressão cunhada por Rogério
Gesta Leal (2003, p. 77) para dar a real dimensão do Estatuto da Cidade no cenário brasileiro, que
trouxe os princípios e objetivos nacionais na política de desenvolvimento urbano.
O presente estudo analisa como se deu o processo de elaboração dos Planos
Diretores nos Municípios de Assaí e de Bela Vista do Paraíso, ambos no Paraná, bem como os
dispositivos das leis que prevêem o sistema de controle e fiscalização da política urbana através
dos Conselhos Municipais.
Procura-se ainda demonstrar a importância da efetiva participação da sociedade neste processo e sua relação com o princípio constitucional da democracia, bem como da gestão
democrática das cidades, refletindo o que Paulo Bonavides (2003, p. 10-11) chamou de democracia participativa e Rogério Gesta Leal (2003, p. 65) chama de democracia substantiva.
2 PLANOS DIRETORES E ANÁLISE DOS PROCESSOS DE ELABORAÇÃO
O presente Capítulo destina-se a apresentar os processos de elaboração dos
Planos Diretores dos respectivos Municípios, focando-se no aspecto da participação popular efetiva dos moradores, procurando identificar a capacitação destes para o debate, o interesse na participação e os resultados obtidos no texto final na lei, levando-se em consideração o reconhecimento
e consolidação do poder de decisão aos moradores, baseado na idéia de democracia participativa
(ou democracia direta).
O Plano Diretor é a lei municipal, cuja elaboração está prevista na Constituição
Federal de 1988, em seu artigo 182, § 1º, considerado o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana.
O Plano Diretor é, portanto, uma diretriz do Poder Público e da própria sociedade. Neste sentido afirma Alaor Caffé Alves (1981, P. 87).
Justamente por estar formalizado como modelo e como pauta, serve perfeitamente como conduta e, portanto, como direito e base de um juízo sobre seu
cumprimento. O plano é uma pauta de conduta que cria diretrizes e deveres
para o Governo e que dá lugar a responsabilidades políticas e jurídicas.
Tem-se verificado no Brasil uma crescente elaboração de Planos Diretores de
Desenvolvimento Urbano. Dados do Ministério das Cidades informam que até novembro de 2006
93% dos Municípios com mais de 20.000 (vinte mil) habitantes já havia elaborado seu Plano Diretor (BRASIL, 2007).
Segundo José Afonso da Silva (1995, p. 130) o Plano Diretor
estabelecerá as normas ordenadoras e disciplinadoras pertinentes ao
planejamento territorial. Definirá sobre a ordenação do solo, estabelecendo
as regras fundamentais do uso do solo, incluindo o parcelamento, o
zoneamento, o sistema de circulação, enfim sobre aqueles três elementos
antes indicados: Sistema viário, Sistema de Zoneamento e Sistema de Lazer
e Recreação.
O Plano Diretor deverá ainda ser complementado por outros instrumentos jurídicos específicos como leis de zoneamento, posturas, proteção ambiental, etc. É papel do Plano
Diretor balizar as duas vias de concretização do urbanismo que, segundo José Afonso da Silva
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(2002, 245) são: a) as regulamentações edilícias e b) a ordenação física e social da cidade.
Sob o aspecto social, Luiz Cézar de Queiroz Ribeiro e Adauto Lúcio Cardoso
afirmam (1990, p. 12):
A nossa participação na elaboração de planos diretores deve ser encarada
como uma forma de defesa do compromisso do Poder Público em assegurar
um determinado nível de bem-estar coletivo. Partindo deste ponto de vista,
torna-se um desafio a busca de um novo formato de planejamento que seja
capaz de gerar intervenções governamentais que efetivamente promovam a
melhoria das condições urbanas de vida, sobretudo para o conjunto dos
trabalhadores.
178
Uma característica dos processos de elaboração destas leis é a obrigatória
participação da comunidade, através consulta, audiências públicas e outras formas que dêem
efetividade ao princípio constitucional da democracia direta previsto no artigo 1º, parágrafo único
da Constituição Federal de 1988.
Essa obrigatoriedade foi reforçada pelo Estatuto da Cidade que, em seu artigo
40, § 4º, incisos I, II e III, prevê diversas formas de participação e controle da sociedade, classificando como ato de improbidade adminstrativa do Prefeito, impedir ou deixar de garantir os requisitos constantes dos dipositivos mencionados acima.
Os aspectos determinantes para a escolha dos Municípios analisados foram:
1 – elaboração do Plano Diretor após o Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257 de 10 de julho de
2001); 2 – a possibilidade de comprovação da veracidade das informações prestadas.
Foi elaborado um questionário, que buscava identificar os aspectos mencionados acima, e entregue aos coordenadores ou profissionais diretamente envolvidos na elaboração
dos planos diretores.
Deve-se ressaltar que, no Estado do Paraná, onde foram colhidas as informações, em especial na região próxima ao Município de Londrina, o processo de elaboração dos
Planos Diretores foi impulsionado por dois grandes fatores que não necessariamente veio acompanhado da qualidade técnica esperada em assunto tão importante.
O primeiro fator, em termo nacional, foram as eleições locais para prefeitos e
vereadores. O segundo aspecto foi a expedição de um Decreto do Poder Executivo Estadual, de
nº. 2.581, publicado em 17 de abril de 2004, que vinculava a assinatura de convênios entre o Estado
do Paraná para financiamento de obras de infra-estrutura e serviços somente com Municípios que
já possuíssem Planos Diretores ou que estivessem em processo de elaboração.
2.1 Município de Assaí / Paraná
O Município de Assai (2005) está localizado no norte do Estado do Paraná,
distante 386 Km da Capital do Estado, Curitiba, e a 36 Km de Londrina, principal Município da
região. Sua área é de 447.408 Km2, e no ano de 2000 possuía uma população total de 18.050
habitantes, sendo 13. 521 na área urbana e 4.529 na área rural.
Vale neste aspecto observar que o Município não estava obrigado a elaborar
seu Plano Diretor, nos termos do artigo 41 do Estatuto da Cidade1 . O Plano Diretor foi aprovado
pela Lei municipal nº. 824, de 1º de dezembro de 2004. O processo de elaboração durou em torno
de 08 (oito) meses e foi coordenado por uma organização não-governamental (2004), vencedora
do processo de licitação elaborado pelo Poder Executivo Municipal.
1 Art. 41 – O plano diretor é obrigatório para cidades:
I – com mais de vinte mil habitantes;
II – integrantes de regiões metropolitanas e aglomerações urbanas;
III – onde o Poder Público Municipal pretenda utilizar os instrumentos previstos no § 4º do art. 182 da Constituição Federal;
IV – inseridas na área de influência de empreendimentos ou atividades com significativo impacto ambiental de âmbito
regional ou nacional.
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As informações foram prestadas por um dos integrantes da equipe coordenadora, Solange Nozaki Souza (2005). Durante o processo de elaboração, foram realizadas 03 (três)
audiências públicas oficiais que visavam discutir os assuntos que haviam sido abordados em diversas outras audiências setoriais preparatórias das propostas e levantamentos. O Município disponibilizou
espaços e infra-estrutura para as audiências, e a convocação da população se deu através da
distribuição de cartilhas explicativas elaboradas pelo Instituto Polis (2005) sobre o que é Plano
Diretor, divulgação em carro de som, rádio e jornal local. Essa divulgação foi considerada insuficiente, sendo que um dos fatores que influenciaram foi o orçamento limitado para o projeto como um
todo.
O comparecimento da população aos debates não se deu da forma esperada,
tendo havido uma maior participação de líderes de bairros, representantes de classes e pessoas
ligadas ao setor educacional, sendo que de um total de 11 (onze) vereadores no Município, no
máximo 03 (três) participaram efetivamente. Verificou-se a presença de gerentes e funcionários
das agências bancárias públicas (Caixa Econômica, Banco do Brasil). Além dos debates e consultas públicas, foi feita uma abordagem informal dos moradores acerca de suas opiniões.
Vale observar que a Prefeitura Municipal enviou convites oficiais para todos os
líderes da sociedade, como líderes religiosos, políticos, representantes de classe, etc. Essa técnica
não se mostrou eficaz, em algumas situações, devido à falta de experiência e até timidez de alguns
elementos em expressar suas idéias em público.
Alguns temas específicos foram abordados, tais como:
1. potencial turístico étnico-cultural (colonização japonesa) como atividade econômica;
2. sugestões quanto à “terceirização” ou parceria no transporte de escolares,
na coleta do lixo urbano e do hospital municipal;
3. meio ambiente: quanto ao lançamento de esgoto in natura nos córregos e
nas galerias de água pluvial.
Quanto ao interesse dos participantes no encontro, pode-se dizer que alguns lá
estavam por questão ideológica e outros apenas como obrigação de representação. Vale observar
que o caráter deliberativo das audiências só ocorreu na última audiência, após as fases anteriores,
de caráter consultivo.
Algumas diretrizes e propostas já estão sendo implementadas ou em vias de
implementação como a reativação do eixo turístico gastronômico cultural, a “terceirização” do
transporte escolar, dentre outros. Deve-se registrar, no entanto, a falta de experiência da população no processo de elaboração de políticas públicas, passando a conviver com uma nova modalidade de administração, como a gestão democrática, orçamento participativo, etc.
Além desse aspecto, mencionado na entrevista, outros se apresentam em relação ao texto final da Lei nº. 824/2004, (2004) que constitui o PDDMA – Plano Diretor de Desenvolvimento Municipal de Assaí. Um dos mais relevantes, dentro do propósito do presente trabalho,
é o relativo à criação do SIP – Sistema Integrado de Planejamento, encarregado de gerenciar os
objetivos do Plano Diretor.
O SIP é composto por diversos órgãos, dentre os quais o CDM – Conselho de
Desenvolvimento Municipal – com atribuições deliberativas em relação aos planos, programas e
projetos de desenvolvimento territorial. Oportuna é a transcrição de sua composição, disposto no
artigo 220 da lei municipal nº. 824/2004:
Art. 220 – O CDM compõe-se de 12 (doze) membros titulares e seus respetivos
suplentes, eleitos ou indicados pelos respectivos órgãos ou categorias, e
homologadas pelo Prefeito Municipal, com renovação quadrienal e obedecendo a seguinte composição:
I – 05 (cinco) representantes de entidades governamentais vinculadas às
questões de desenvolvimento territorial, assim distribuídas:
01 (um) representante do nível estadual;
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04 (quatro) representantes do nível municipal.
II – 07 (sete) representantes de entidades não-governamentais, definidas
por ocasião das conferências municipais de avaliação do PDDMA e assim
distribuídos:
01 (um) representante das entidades representativas dos trabalhadores;
01 (um) representante das entidades representativas da sociedade civil (clube de serviço e associações comunitárias);
01 (um) representante dos conselhos municipais;
01 (um) representante das associações profissionais, sendo um, preferencialmente, das entidades de classe vinculadas ao planejamento urbano;
01 (um) representante das entidades empresariais e sindicatos patronais
preferencialmente vinculado à construção civil;
01 (um) representante das entidades educacionais;
01 (um) representante das entidades ambientais.
Esse dispositivo, aliado a outros constantes da lei que prevêem e condicionam a
gestão pública à efetiva participação popular, consubstancia a observância das diretrizes, princípios
e objetivos da idéia de gestão democrática, constante da Constituição Federal de 1988 e do Estatuto da Cidade.
2.2 Município de Bela Vista do Paraíso / Paraná
180
O Município de Bela Vista do Paraíso está localizado no norte do Estado do
Paraná, distante 429 Km da Capital do Estado, Curitiba, e a 37 Km de Londrina, principal Município da região. Sua população em 2000 era de 15.029 habitantes, sendo 13.858 na área urbana e
1.171 na área rural, distribuídos em uma área de 214.342 Km2 (BELA VISTA DO PARAISO,
2005).
O Município está inserido na Região Metropolitana de Londrina, por força da
Lei Complementar Estadual nº 86 de 07 de julho de 2000 (PARANÁ, 2000), estando, portanto,
obrigada a elaborar seu Plano Diretor, por força do artigo 41, II do Estatuto da Cidade. Vale
observar que, a despeito da lei estadual, só recentemente, em 2006 foram criados cargos de direção da Região Metropolitana de Londrina.
A elaboração do projeto de lei final, enviado à Câmara dos Vereadores, durou
cerca de onze meses e foi coordenada pela empresa Genius Loci Arquitetura e Planejamento SS
Ltda, vencedora do processo de licitação, cujo integrante, Nestor Razente (2005), prestou as informações que subsidiam o presente trabalho.
A exemplo da maioria dos Municípios do Estado do Paraná, a elaboração do
Plano Diretor de Bela Vista do Paraíso foi financiada por recursos do Governo do Estado, através
do Paranacidade, autarquia estadual criada para o desenvolvimento urbano no Paraná.
Neste contexto, foi criada uma Comissão Técnica, formada por funcionários
municipais e uma Comissão de Acompanhamento e da Elaboração do Plano Diretor. Essa comissão foi organizada entre os presentes na primeira audiência pública realizada em 18 de outubro de
2004 e escolhidos dentre os membros da comunidade local. Foram realizadas três audiências públicas durante o processo de elaboração do Plano Diretor.
Em relação à participação popular, vale observar que além dessas três audiências públicas, de caráter geral, foram realizadas reuniões temáticas com segmentos da sociedade,
como assistência social e saúde, por exemplo.Tanto as audiências públicas como as reuniões tiveram caráter deliberativo. Além disso, no projeto de lei, foi criado o Conselho do Plano Diretor de
Desenvolvimento Municipal, encarregado de fiscalizar a efetiva implementação do Plano Diretor e
servir como fórum de discussão de futuras alterações.
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A convocação da sociedade para o debate foi promovida pelo Gabinete do
Prefeito, através de convocação por jornais e convites dirigidos às representações de classes,
sindicatos, representantes de comunidades de bairro, ONGs e outros. Para um Município com
aproximadamente quinze mil habitantes, o comparecimento da população foi considerado satisfatório.
A falta de experiência da população no processo de elaboração de políticas públicas, assim como
em Assaí também foi um fator também observado neste Município.
Quanto ao Plano Diretor, em especial em relação à participação popular, alguns
dispositivos merecem especial atenção. Num primeiro momento, vale observar que o Plano Diretor
não se constitui de um único corpo de lei. Há diversos estudos que fundamentam o texto de lei, e
esta lei inclusive faz menção expressa de que o Plano Diretor de Bela Vista do Paraíso constitui-se
em “avaliação temática integrada”, “condicionantes, deficiência e potencialidades”, “diretrizes e
proposições para a política de desenvolvimento municipal”, “plano de ação municipal e projetos
prioritários” e diversos textos de lei, a saber, como do Sistema Viário, Uso e Ocupação do Solo
Urbano, dentre outras.
Em relação ao Conselho do Plano Diretor de Desenvolvimento Municipal, vale
transcrever os artigos que se seguem.
Art. 27. Fica criado o Conselho do Plano Diretor de Desenvolvimento Municipal, de caráter consultivo e deliberativo, naquilo que a lei indicar, com as
seguintes atribuições:
Examinar, emitir pareceres, sugerir propostas relacionadas a planos, projetos
e programas setoriais desenvolvidos pelo poder Executivo Municipal.
Examinar, emitir pareceres, sugerir propostas relacionadas a legislação urbanística e do Plano Diretor Municipal de Bela Vista do Paraíso.
Opinar e sugerir propostas relativas aos Planos Plurianuais de Investimentos e Lei de Diretrizes Orçamentárias.
Analisar e emitir pareceres sobre Estudo Prévio de Impacto de Vizinhança (EIV).
Atuar como auxiliar do poder Executivo e Legislativo Municipal na fiscalização da implementação do Plano Diretor Municipal de Bela Vista do Paraíso e
legislação decorrente.
Elaborar seu Regimento Interno.
Art. 28. Os integrantes, titulares e suplentes, do Conselho do Plano Diretor
de Desenvolvimento Municipal serão indicados por suas respectivas entidades e nomeados por Decreto do Executivo Municipal. Será presidido pelo
Assessor Municipal de Planejamento e constituído pelos seguintes representantes:
Assessoria de Planejamento do poder Executivo municipal.
Poder Legislativo Municipal.
De cada Conselho Municipal existente no Município.
Associação Comercial e Industrial do Município.
Associação de Moradores.
Comissão Municipal de Defesa Civil – CMDEC.
Loja Maçônica Visconde de Taunay.
Rotary Clube de Bela Vista do Paraíso.
Do órgão de planejamento da Região Metropolitana de Londrina, quando
houver.
Concessionária de saneamento básico.
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Companhia Paranaense de Energia Elétrica.
Empresa Paranaense de Assistência Técnica e Extensão Rural – EMATER.
Ordem dos Advogados do Brasil.
Sindicato Patronal Rural.
Sindicato dos Trabalhadores Rurais.
Art. 31. São princípios gerais que norteiam a Política de Desenvolvimento
Municipal:
[...]
III - Assegurar a participação do cidadão na gestão do desenvolvimento.
Art. 32. A Política de Desenvolvimento Municipal será composta pelas seguintes vertentes.
[...]
V - Gestão democrática e desenvolvimento institucional
Seguindo a estrutura do Estatuto da Cidade, constitui-se como objetivo geral do
Plano Diretor Municipal de Bela Vista do Paraíso a gestão democrática da cidade, assegurando a
participação comunitária, conforme estabelece seu artigo 3º, inciso II.
Por fim, atentando para o fato da precariedade dos órgãos internos da Administração Pública Municipal, o projeto prevê uma reformulação do modelo existente, com o intuito de
trazer efetividade à participação popular no processo de gestão do desenvolvimento municipal.
182
3 CONCLUSÃO
O que se pretendeu abordar neste trabalho é o modo de elaboração dos Plano
Diretores, ainda que de forma superficial, em especial quanto à participação da sociedade, bem
como salientar que a criação de Conselhos Municipais para a questão urbana, além de ser uma
demanda por parte da própria sociedade, é uma exigência do Estatuto da Cidade, pela interpretação do artigo 42, II, que prevê um sistema integrado de acompanhamento e controle do Plano
Diretor, do artigo 43, I, que dispõe sobre a obrigatoriedade de órgão colegiados de política urbana,
nacional, estadual e municipal, e do artigo 2º, II que estabelece como diretriz da política urbana a
gestão democrática da cidade.
Deve-se observar, ademais, que o artigo 1º, parágrafo único da Constituição
Federal de 1988 estabeleceu o princípio da democracia direta, onde “todo o poder emana do povo,
que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos temos desta Constituição”.
Sob outro aspecto, as leis criadoras destes conselhos municipais são verdadeira
conquista da sociedade, e qualquer tentativa de eliminar ou diminuir esta conquista se configura
afronta ao princípio constitucional que veda o retrocesso das garantias fundamentais.
Sobre o tema, J. J. Gomes Canotilho (1998, 327) leciona:
O princípio da proibição do retrocesso social pode formular-se assim: o
núcleo essencial dos direitos sociais já realizado e efectivado através de
medidas legislativas (‘lei de segurança social’, ‘lei do subsídio de desemprego’, ‘lei do serviço de saúde’) deve considerar-se constitucionalmente garantido, sendo inconstitucionais quaisquer medidas estaduais que, sem a
criação de outros esquemas alternativos ou compensatórios, se traduzam na
prática numa ‘anulação’, ‘revogação’ ou ‘aniquilação’ pura e simples desse
núcleo essencial. A liberdade de conformação do legislador e inerente autoreversibilidade têm como limite o núcleo essencial já realizado.
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Do ponto de vista prático, esta conquista não pode se transformar em mera
formalidade, valendo neste particular o alerta de Maria Paula Dallari Bucci sobre os problemas que
ocorrem no Brasil quanto à falta de infra-estrutura para o conselhos, acrescentando ainda:
Isso sem falar em problemas de índole mais política, entre eles o chamado
“elitismo popular”, em que se verifica uma certa especialização dos representantes da função, restando pouco espaço para o cidadão não engajado
em qualquer ONG, ou ainda, a superposição de representações, como indicou uma pesquisa do Instituto Brasileiro de Administração Municipal
(IBAM), que apontava os secretários de saúde e as primeiras-damas dos
Municípios como integrantes de quase todos os conselhos das pequenas
cidades, independentemente da área temático.
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Resenha
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Luciana MendesPereira Roberto
RESENHA
DINIZ, Maria Helena. Lei de Introdução ao Código Civil brasileiro interpretada. 2. ed. São
Paulo: Saraiva, 1996. p. 89 a 173 (Arts. 4º e 5º).
Luciana Mendes Pereira Roberto*
A Professora Doutora Maria Helena Diniz é Titular de Direito Civil da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, Professora de Direito Civil Comparado, de Filosofia do Direito e de Teoria Geral do Direito nos cursos de Pós-Graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Coordenadora da sub-área de Direito Civil Comparado dos Cursos de
Pós-Graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Diante de breve
exposição do currículo da autora, resta clara a sua experiência e sabedoria no que pertine ao tema
da Lei de Introdução ao Código Civil - Decreto-Lei nº 4657 de 04 de setembro de 1942, a qual
brilhantemente discorre nesta obra.
Ao interpretar o Art. 4º1 da referida lei, trata da integração e o problema das
lacunas no Direito, referindo o fato de quando o magistrado não encontra norma aplicável a um
caso concreto, não sendo possível subsumir o fato a nenhum preceito, esta-se diante do problema
das lacunas, que pode ocorrer pela falta de conhecimento sobre um status jurídico de certo comportamento, um defeito do sistema, uma ausência de norma ou uma disposição legal injusta ou em
desuso. Para tanto deverá haver um desenvolvimento aberto, uma consciência da modificação que
as normas experimentam para a aplicação do Direito. Essa integração, de acordo com os limites
estabelecidos pelo Direito, de criar uma norma individual, em consonância com o ordenamento, é
que suprirá a lacuna, atendo-se aos subconjuntos valorativo, fático e normativo que compõem o
sistema jurídico.
Em seguida aborda a localização sistemática do problema das lacunas jurídicas, o levantamento das questões relativas à lacuna dentro da ordenação jurídica e das questões
desencadeadas paralelamente a ela. Há o problema das lacunas com a própria concepção do
Direito (se o direito constitui ou não uma ordem limitada), tendo em vista o prescrito no Art. 4º da
Lei de Introdução ao Código Civil, e o problema lógico da completude ou da incompletude do
sistema. Admitindo as lacunas, há os problemas de sua constatação, de seu preenchimento, da
legitimidade de seu uso; e, assim, distingue três questões básicas para tanto: da existência, constatação
e preenchimento das lacunas.
O tema discute a questão da existência das lacunas, o qual sub-divide em
quatro partes. Inicia com considerações gerais sobre a existência das lacunas, ou seja, traça perguntas sobre a completude do sistema, sobre o dinamismo ou estática do sistema jurídico, entre
outras, mostrando que deve haver a discussão do Direito como um ordenamento. Assim, o problema da existência de lacunas vai depender da concepção que se tem do ordenamento jurídico, ou
sob um prisma pragmático (preenchimento), e que ambos constituirão as bases das investigações
sobre o problema das lacunas. A seguir trata da lacuna como problema inerente ao sistema jurídico,
ou seja, depende de consciência da mobilidade e temporalidade do sistema. Para tanto há duas
corrente antitéticas: uma que afirma a inexistência da lacuna (plenitude hermética do Direito Kelsen) e outra que sustenta sua existência (concepção de sistema aberto e incompleto).
* A resenhista é Advogada. Mestre em Direito Negocial pela Universidade Estadual de Londrina. Especialista em Direito
Empresarial e em Bioética pela Universidade Estadual de Londrina. Docente na Universidade Estadual de Londrina e no
Centro Universitário Filadélfia - UNIFIL.
1 Lei de Introdução ao Código Civil: Art. 4º. Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os
costumes e os princípios gerais de direito.
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Há lacuna nos casos em que o direito objetivo não oferece uma solução de
pronto para o caso concreto, uma determinada circunstância não encontra satisfação na ordem
jurídica. A autora defende a corrente da existência das lacunas, entendendo que o Direito é uma
realidade dinâmica, dentro de um contexto de atualização com as mudanças da vida das pessoas
em sociedade, que traz novas situações, como alterações nos fatos, nos valores e nas normas,
considerando que o Direito não é estático, está sob constante progresso.
É apresentado, de forma gráfica, o que traz bastante clareza ao leitor, que o
sistema normativo é aberto e está relacionado com os sistemas fático e de valores (axiológico).
Assim, quando o juiz aplica o Direito ao caso concreto não se baseia somente no sistema normativo,
mas também no fático e no axiológico, não sendo relevante apenas se determinada conduta é
proibida ou permitida no sistema normativo, mas sim se há possibilidade de solução pelos outros
sistemas. Presente a lacuna, o juiz transita pelos “subsistemas”, até supri-la, e dessa forma a
lacuna fica com caráter sempre provisório, pois o Direito tem uma temporalidade própria. Fica
expresso o entendimento, pela autora, que o Direito é lacunoso, sob uma análise dinâmica.
Há o apontamento de três espécies de lacunas: a normativa (ausência de norma); ontológica (a norma não corresponde aos fatos sociais) e axiológica (há ausência de norma
justa). Apresenta, ainda, a lacuna como problema de jurisdição, considerando-a uma questão processual, pois é este que, na aplicação das normas, levanta o problema da lacuna. Refere-se a
Kelsen que a princípio afasta a idéia da existência de lacunas, mas acaba por admiti-la como mera
ficção, estabelecendo limites ideológicos à atividade judicial, ou seja, reconhece a incompletude do
sistema.
A colmatação de lacunas, em um determinado processo judicial, soluciona um
problema individualmente e não tem a finalidade de eliminar conflitos. Dessa forma, o Direito será
sempre lacunoso e, ao mesmo tempo, sem lacunas. Isso implica em dizer que a lacuna faz um fato
indecidível, e cabe ao Judiciário torná-lo decidível.
Trata, assim, da aporia das lacunas (raciocínios coerentes, conclusões contrárias): “[...] o Direito é sempre lacunoso, mas é também, ao mesmo tempo, sem lacunas”, de forma
que o sistema jurídico não é completo, mas completável, exercendo as lacunas dupla função, ora
fixando os limites para as decisões dos magistrados, ora justificando a atividade do Legislativo.
O fato de que o termo lacuna, trata-se de uma aporia é porque alberga idéias
conflitantes, “uma questão sem saída a que não há resposta unânime”. No entender da autora,
todas as doutrinas pertinentes aos temas, na realidade se compartilham, partindo de parâmetros
diferentes.
Na següência, escreve sobre a constatação e preenchimento das lacunas, mostrando que o primeiro passo é a identificação (constatação) da lacuna, a partir da admissão de sua
existência. Para tanto se faz necessária a análise de duas situações: o ordenamento jurídico e a
existência de fato da lacuna (ausência de norma tida como lacuna), resultante de um juízo de
apreciação e de integração. A constatação e o preenchimento das lacunas são aspectos correlatos,
mas independentes e indicados pela própria lei (Art. 4º Lei de Introdução do Código Civil).
Quanto aos meios supletivos das lacunas, mostra que são eles:
A analogia, consistente na aplicação de uma norma prevista para uma situação
distinta, a um caso que não seja contemplado por norma jurídica, a este semelhante. Envolve duas
fases: a constatação e um juízo de valor das lacunas, levando à decisão do magistrado, que atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum. É um processo revelador de normas implícitas,
com fundamento na igualdade jurídica, em “razões relevantes de similitude” e na teleologia. Se o
caso sub judice não estiver previsto em norma jurídica, se houver uma semelhança com outro
previsto, que esse elemento de identidade entre eles for fundamental, será o caso da aplicação da
analogia. Esta pode ser distinta em analogia legis (aplicação de uma norma existente) e a analogia juris (conjunto de normas, do qual se extrai elementos de aplicabilidade no caso concreto não
contemplado e similar). Na realidade toda analogia é juris, devido ao fato de que toda aplicação
prescinde do sistema jurídico que o envolve. Cita também os argumentos analógicos: argumentum
a simili ad simile (razão), argumentum a fortiori (as notas convenham ao segundo caso em grau
distinto do primeiro; podem ser a maiori ad minus e a minori ad maius), e argumentum a
contrario (instrumento integrador do sistema, uma “redução teleológica”).
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O costume, está em plano secundário, e é também uma fonte jurídica decorrente do uso pelo interessado, pelos tribunais e doutrinadores, formada por dois elementos necessários:
o uso e a convicção jurídica, sendo que de acordo com o Art. 4º da LICC, deve ser aplicado
“conforme usos e costumes” e em “respeito aos bons costumes”, respeitando sua continuidade,
sua uniformidade, sua diuturnidade, sua moralidade e sua obrigatoriedade, levando em conta os fins
sociais, as exigências do bem comum, os ideais de justiça e de utilidade comum. Existem em três
espécies: o secundum legem (previsto na lei), o praeter legem (supre a lei em caso de omissão) e
o contra legem (em sentido contrário à lei: norma de costume oposta à lei ou o não-uso formal da
lei, respectivamente consuetudo abrogatoria e desuetudo). É útil não apenas para o caso da
lacuna normativa, mas também para a lacuna axiológica (injustiça ou inconveniência da aplicação
da lei vigente) e para a lacuna ontológica (incompatibilidade entre fatos e normas). Assim, nota-se
que a aplicação dos costumes, para a integração do sistema normativo, exige sensibilidade e atualidade social por parte do aplicador.
Os princípios gerais de direito, estão contidos de forma imanente no ordenamento
jurídico e são úteis quando da falha da analogia e do costume no preenchimento da lacuna. Eles não
têm existência própria, sendo vitalizados pelo juiz, ao descobri-los. Devem conter uma resposta
segura para o caso duvidoso e não podem apresentar oposição ao disposto no ordenamento. Devido à imprecisão de seu caráter, os princípios gerais de direito possuem diversas concepções pelas
escolas jurídicas. Há doutrinadores que simplesmente combatem a concepção de princípios gerais
de direito; há a escola que os identifica com as normas de direito natural; há a que os entende como
normas baseadas na eqüidade, a própria eqüidade (a autora é contrária a esse entendimento, pois
considera a eqüidade meio diverso de preenchimento de lacunas); há a que os considera como
tendo caráter universal, ditados pela ciência e pela Filosofia do Direito; há a que os caracteriza
como princípios historicamente contingentes e variáveis e norteadores extraídos das diversas normas do ordenamento jurídico; há, ainda, uma posição eclética, que busca conciliar todas as demais
posições. Porém, existe um elemento comum a todas as doutrinas, que é a justiça.
Maria Helena Diniz ensina a multiplicidade da natureza dos princípios gerais de
direito, que podem ser decorrentes das normas do ordenamento jurídico, derivados das idéias políticas e sociais vigentes e reconhecidos pelas nações civilizadas com historicidade comum. Isso
significa que recaem sobre os sistemas normativo, fático e valorativo, preenchendo as lacunas.
Ocorre que muitos dos princípios gerais do direito encontram-se prescritos em normas e, mesmo
não estando positivadas, guiam o magistrado pelo senso de justiça, pelo valor genérico que integram o sistema jurídico. O magistrado deve procurar, ao aplicá-los, primeiramente buscar os princípios fundamentais do ordenamento positivado do caso sub judice, atingir os princípios que informam o diploma onde se insere a instituição, procurar os princípios de direito consuetudinário, recorrer ao direito internacional e invocar os elementos de justiça.
A eqüidade, conforme se posicionou a autora, trata-se de meio diverso de preenchimento de lacunas, devendo ser utilizada nos casos em que o juiz, constatando semelhança
entre fatos diversos, faz um juízo de valor, e assim não consegue usar a analogia, o costume e os
princípios gerais de direito Há três acepções que ligam a eqüidade (Alípio Silveira): a latíssima
(suprema regra de justiça), a lata (idéia absoluta de justiça) e estrita (a justiça no caso concreto).
Pode ser dividida em (Agostinho Alvim): legal (contido no texto da norma) e judicial (o legislador
permite o seu uso no caso concreto), sendo que o pressuposto de qualquer das duas é a flexibilidade da lei. Apresenta, ainda, os requisitos da eqüidade (Limongi França): decorrência do sistema e
do direito natural; inexistência de texto claro e inflexível sobre a matéria; omissão, defeito ou
generalidade acentuada da lei; apelo para as formas complementares de expressão do direito antes
da livre citação da norma eqüitativa; elaboração científica em harmonia com o sistema e com os
princípios o objeto da decisão. O legislador, ao elaborar uma lei, deve ter em conta todos os fatores
econômicos e morais, as atualizações da vida em sociedade, as tendências, a vontade, a consciência do povo. Assim, a eqüidade exerce influência da elaboração legislativa, além de desempenhar importante papel na interpretação das normas, destacando a finalidade da lei sobre a sua
letra e a preferência da mais favorável e humana interpretação. Exercendo, assim, a adaptação da
norma ao caso concreto, ao caso sub judice, suplementando a lei, integrando o sistema jurídico.
Nessa função integrativa que exerce, a eqüidade preenche as lacunas voluntárias (pelo próprio
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legislador), além dos casos que fogem à previsão do elaborador da norma. Nesse contexto, é a
eqüidade o poder conferido ao magistrado para revelar o direito latente, um poder discricionário,
mas de forma alguma arbitrário, que se utiliza no preenchimento das lacunas, relacionando os
sistemas normativo, fático e valorativo.
Na seqüência, registra-se a interpretação do Art. 5º2 da referida Lei de Introdução ao Código Civil, expondo a princípio a utilidade prática do citado artigo.
A autora ensina que a ciência do Direito surge como uma teoria hermenêutica
por ter a tarefa de interpretar normas, verificar a existência da lacuna jurídica e afastar contradições normativas; é a teoria da decisão. Para tanto, deverá estabelecer a sistematização de normas,
daí a sua função de organização, com a finalidade de decisão, ou seja, da busca de condições de
possibilidade de resolução de conflitos. A ciência do Direito não se separa da técnica, o conhecimento e domínio de meios para atingir certo objetivo, sendo instrumento de viabilização do Direito.
A dogmática jurídica tem uma função social, no dever de limitar as possibilidades de variação na
aplicação do Direito e de controlar a consciência das decisões, com base em outras decisões.
É apresentada uma interessante construção silogística (Engisch): norma geral
(premissa maior); caso conflitivo (premissa menor) e conclusão (decisão), referindo-se à subsunção
da norma ao caso concreto, em que a grande dificuldade é encontrar a premissa maior, conduzindo
a dois problemas para a efetiva decisão jurídica: a qualificação jurídica e as regras decisórias.
Quanto à qualificação jurídica, a dificuldade está no emprego de linguagem natural ou comum e
falta de informação sobre os fatos do caso, remediada pelas presunções legais. Diante de tais
apontamentos, entende-se que o jurista fará uma consideração dinâmica do Direito (sistemas
normativo, fático e valorativo), para fornecer os caminhos da decisão, aplicando a norma ao caso
concreto, e atendendo à finalidade social e ao bem comum.
Em continuidade, analisa-se o conceito, funções e caráter necessário da interpretação. Tanto a lei clara como a obscura devem ser interpretadas; porém à obscura deverá ser
somada certa dose de atividade intelectual, pois tal norma contém palavras fora de seu significado,
apresenta imprecisões, fórmulas falhas, pensamento incompleto ou confuso, ou, ainda, ambigüidade, que pode aparecer na letra da lei ou no seu pensamento ou conteúdo.
Interpretar é, então, descobrir o sentido e o alcance da norma, buscando o
significado dos conceitos jurídicos, que se adaptam a mudanças com a evolução e o progresso da
sociedade, extraindo da norma o sentido apropriado que leve a uma decisão. As funções da interpretação são conferir a aplicabilidade da norma às relações sociais, estender o sentido da norma a
relações novas, temperar o alcance do preceito normativo.
A hermenêutica é a teoria científica da arte de interpretar, a ela deve ser somada a intersubjetividade, ou seja, o intérprete deve levar em conta os fatores valorativos e sociais
contidos na norma, baseado no momento histórico em que está vivendo, garantindo, ainda, seus fins
sociais. A interpretação pode ser considerada não-autêntica (Kelsen: determinar o quadro das
significações possíveis da norma geral) e autêntica (cria direito para o caso concreto).
O texto destaca a liberdade do Judiciário, que não ficará dependente de decisões anteriores, pois o magistrado é o intérprete necessário e permanente da lei, com a obrigação
apenas de fundamentar suas decisões, podendo interpretar diversamente em casos concretos semelhantes. Interpretar é estabelecer uma norma individual, assim a interpretação é um ato normativo.
E em seguida passa a tratar, então, a questão da vontade da lei ou do legislador como critério
hermenêutico, em duas teorias: a subjetiva (vontade do legislador) e a objetiva (vontade da lei,
concentrada em quatro argumentos: a vontade, a forma, a confiança e a integração). Ambas são
criticadas, a primeira por favorecer ao autoritarismo e a segunda por favorecer ao anarquismo. Os
dogmas (caráter objetivo) e a liberdade (caráter subjetivo) levam ao caráter deontológico e normativo
da interpretação, em que um ato de vontade se efetiva por razões axiológicas e cria uma norma
individual (decidibilidade), com um mínimo de perturbação social.
Com referências às técnicas interpretativas, estas podem ser: gramatical, lógica, sistemática, interpretativa histórica, sociológica ou teleológica. Tais processos interpretativos se
completam, são operações distintas que devem atuar conjuntamente na descoberta do sentido e
alcance da norma.
2 Art. 5º. Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.
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Destaca, a seguir, a técnica interpretativa teleológica e integração da lacuna
ontológica e axiológica, mostrando que o Art. 5º da LICC indica o critério do fim social e o do bem
comum, para a adaptação da lei às novas exigências sociais e aos valores positivos, mostrando que
a finalidade da norma não é ser dura, mas justa e de acordo com as necessidades fático-sociais
vigorantes na sociedade no momento de aplicação jurídica.
Quanto ao fim social, ensina a autora que não há lei que não contenha uma
finalidade social imediata, e é aí que está presente a necessidade de sua correta aplicação a um
dado caso, pois o aplicador deverá ter por escopo a felicidade da sociedade política, a busca do fim
social.
O bem comum, por sua vez, é a liberdade, a paz, a justiça, a segurança, a
utilidade social, a solidariedade, almejados pela sociedade, ficando acima dos interesses particulares dos indivíduos. Assim, são justas as leis que têm por finalidade o bem comum, que atendam ao
interesse social; e, no caso da solução de conflitos duvidosos, o intérprete deverá seguir o caminho
que mais se aproxime da utilidade comum dos cidadãos, da coletividade em geral. O bem comum
é a preservação dos valores positivos vigentes na sociedade, que dão sustento a determinada
ordem jurídica.
Ao tratar dos efeitos do ato interpretativo, o texto esclarece que, tanto na interpretação extensiva quanto na restritiva, deve ser considerado o fim e os valores da criação e da
aplicação da norma. O hermeneuta deverá observar o espírito do texto normativo, a eqüidade, o
interesse geral, o paralelo entre a norma interpretanda e outras, e ao tipo da disposição normativa
interpretanda, e assim chegará a uma interpretação declarativa com a correspondência entre a
expressão lingüístico-legal e a vontade da lei.
O papel da ideologia, na aplicação jurídica, é neutralizador do valor, pois é o
universo dos valores possíveis de uma pessoa, um grupo, uma cultura. A decisão a ser proferida
deverá obedecer às exigências legais, atendendo aos fins sociais e valorativos do direito. Haverá
ideologia quando se neutraliza uma escolha no estabelecimento de objetivos (fim social, bem
comum).
Finalizando a análise do Art. 5º da LICC, trata da discricionariedade judicial,
devido ao fato de que cabe ao Judiciário, no caso de lacunas, adequar o Direito em relação à
realidade, fática, social e normativa, selecionado a melhor solução que a lei comporte, buscando a
justiça.
Diante de todo o aduzido, conclui-se que a função jurisdicional, seja de subsunção,
seja de integração, é ativa, tendo em vista as mudanças sociais e a atividade intelectiva do juiz ao
aplicar a norma individual, nos limites de sua jurisdição, conforme a lei e o Art. 4º e o Art. 5º da Lei
de Introdução do Código Civil, que trazem contribuições valiosas para a referida aplicação no
Brasil.
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Resenha da obra “Ética e Direito”, de Chaim Perelman
RESENHA
Resenha da obra “Ética e Direito”, de Chaim Perelman. Editora Martins Fontes. São Paulo,
1996.
Osmar Vieira da Silva*
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Das lições de Perelman, é possível extrair-se o entendimento de que o sentimento de injustiça nasce no homem a partir do desconforto que experimenta em face de alguma
falta ou privação cuja causa é a ação de um outro homem. Inviável, por outro lado, pensar-se o
justo sem que o agir do homem seja referido ao agir de outro homem.
A sensação de injustiça se dá ao experimentar a carência de algo de que se
necessita e de que se foi privado. As regras da justiça assentam nessa premissa e por isso mesmo
precisam, forçosamente, ser referidas aos “sistemas de necessidades”. Somente quando se põe
para o homem o desafio de responder à indagação de como agir quando há um conflito de interesses é que adquire relevo o problema da Justiça.
A definição de quem perde e quem ganha e em que extensão isso se dá, quem
se priva e quem será satisfeito, quem desfrutará de uma situação de vantagem e quem sofrerá as
conseqüências da desvantagem correspectiva é problema de justiça. Neste crucial momento da
convivência humana é que o problema se apresenta e para solucioná-lo buscam-se respostas de
natureza ética. Neste espaço também opera o Direito.
Refletindo sobre a Justiça, Perelman acentua que de todas as noções prestigiosas, a de justiça parece uma das mais eminentes e a mais irremediavelmente confusa, pela forte
carga emocional que sempre carrega consigo. Buscando escapar a essa contingência, ou reduzi-la
ao máximo, o autor começa por analisar as concepções mais correntes de justiça, demonstra como
são inconciliáveis e carecedoras de operacionalidade e alinha as seguintes:
a) a cada qual a mesma coisa;
b) a cada qual segundo os seus méritos;
c) a cada qual segundo suas obras;
d) a cada qual segundo suas necessidades;
e) a cada qual segundo sua posição e
f) a cada qual segundo o que a lei lhe atribui.
Para Perelman, se dermos a todos a mesma coisa, seremos injustos para os
que têm como correto, precisamente, um tratamento diferenciado, como se depreende de todas as
subseqüentes posições, sem esquecer que a mesma coisa não proporcionaria a todos os homens a
mesma satisfação.
Se elegermos, por exemplo, o mérito de cada um como fundamento, por que
modo definir este mérito e que critérios devem ser levados em conta para sua determinação?
Adotando-se a regra de atribuir a cada qual o que for devido segundo suas
obras, além da dificuldade de se definir a escala de valor capaz de medir estas obras, as mais
diversificadas que seriam, ainda se estaria diante de um critério que não é moral, pois deixa de
levar em conta a intenção e os sacrifícios realizados, considerando unicamente o resultado da
ação.
* Doutor em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Coordenador do Curso de Direito da
UniFil e Advogado.
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Osmar Vieira da Silva
Optar pela regra de dar a cada qual segundo suas necessidades coloca o
homem diante do óbice de termos que definir essas necessidades, para o que seria forçado a adotar
critérios meramente formais, porquanto as divergências a respeito ocasionariam inúmeras variantes da mesma fórmula.
Impensável admitir-se como regra de justiça dar a cada qual segundo sua posição, fórmula aristocrática, privilegiadora e necessariamente desigualizadora. A última regra, dar
a cada um o que a lei lhe atribui resultaria, necessariamente, em transferir, de modo absoluto, o
poder de definir o justo para quem é investido do poder de ditar a lei.
Diante disso, três atitudes são possíveis, diz Perelman. A primeira consistiria
em declarar que essas diversas concepções de justiça não têm absolutamente nada em comum e
não estão unidas por nenhum vínculo conceitual, donde o dilema de ter que rejeitar todas, em nome
da justiça, ou ter que eleger uma dentre elas, e esta escolha já se demonstrou ser insatisfatória e
não operacional. Evitar esse dilema é o que leva Perelman a tentar uma terceira solução. Afirma o
autor ser possível superar o impasse, procurando-se pesquisar o que há de comum nas diferentes
concepções de justiça precedentemente referidas. Conclui por encontrar esse elo na idéia de “igualdade”, subjacente a todas as posições precedentemente analisadas. A noção de justiça sugere a
todos, inevitavelmente, a idéia de certa igualdade. A igualdade perfeita, porém, todo mundo percebe imediatamente, é irrealizável e constitui apenas um ideal para o qual se pode tender, um limite do
qual se pode tentar aproximar na medida do possível.
É imprescindível existir certa semelhança entre os seres aos quais se aplica a
justiça, pois, inexistindo uma medida comum, isto é, não havendo identidade, a questão da realização da justiça nem sequer tem de ser colocada. E se hoje se reivindica tratamento justo para todos
os homens, é porque o homem reconheceu semelhança em todos os outros homens, é porque a
noção de humanidade foi ficando pouco a pouco evidente.
Ocorre que esta igualdade essencial dos homens está emoldurada por inúmeras e complexas diferenças. Daí o dilema – há que se tratar a todos da mesma forma ou devem
existir formas diferenciadas de tratamento, para assegurar, precisamente, o igual tratamento que
se deseja? E se formas diferenciadas forem necessárias, o que se deverá levar em conta para
tornar justo o tratamento diferenciado? Recai-se, então, nas divergências e inconciliabilidades antes referidas.
É possível, entretanto, superar esse impasse, diz Perelman. Em todas as concepções de justiça há uma atitude comum – trata-se igualmente os iguais. Pretende-se que se leve
em conta o mérito de igual tratamento para os que têm “igual” mérito, valendo o mesmo para
necessidades, posição social, etc. Seja qual for a divergência sobre outros pontos, todos estão de
acordo sobre o fato de ser justo tratar da mesma forma os seres que são iguais de certo ponto de
vista, que possuem uma “característica comum”, a única que se deve levar em conta na administração da justiça.
Perelman propõe seja esta característica qualificada de “essencial” e os que a
tiverem em comum pertencem a uma mesma categoria, à mesma categoria essencial. Portanto,
pode-se definir a justiça formal ou abstrata como um princípio de ação segundo o qual os seres de
uma mesma categoria essencial devem ser tratados da mesma forma. Abandonar-se-ia, de uma
vez por todas, a improfícua procura da “justiça material” como algo suscetível de prévia determinação. Conclui, portanto, que “o único meio que temos de dizer sobre a justiça ou injustiça de um ato
consiste na igualdade de tratamento que reserva a todos os membros de uma mesma categoria
essencial”.
A partir daí, pode-se definir a noção de “eqüidade” como técnica de superação
das antinomias da justiça, decorrentes do desejo de se aplicar simultaneamente várias regras de
justiça incompatíveis.
Por outro lado, se, de uma perspectiva formal, o pensamento de Perelman
oferece diretivas que parecem fundamentais, permanece irresolvido o problema da plena legitimidade da ordem jurídica.
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Resenha da obra “Ética e Direito”, de Chaim Perelman
Destarte, se é exato que só pela ordem jurídica se assegura, em última instância (com impositividade), a justiça relativa, contingente, possível em determinado momento histórico e em certo espaço político, isso implica o problema da legitimidade desta ordem jurídica, sempre
em permanente questionamento.
Toda ordem jurídica é tão mais legítima quanto mais amplamente possibilita a
explicitação das necessidades pelos indivíduos e grupos que sob seu império se colocam, a par de
viabilizar-lhes a organização para tê-las atendidas (PROCON, Juizados Especiais, etc). É mais
justo o ordenamento que menos necessidades deixa insatisfeitas e mais injusto o que maior número
de necessidades deixa desatendidas.
O Direito é, portanto, e sempre, uma forma possível de realização histórica e
social da justiça, não de uma justiça absoluta, nem necessariamente a mais perfeita. Ele apenas
formaliza e busca implementar o projeto de justiça possível nos limites da contingência que lhe dita
e lhe põe a correlação real das forças operantes na sociedade. Pode-se, pois, dizer que toda ordem
jurídica realiza alguma justiça e que ela será tanto mais quanto menos necessidades deixar insatisfeitas e menos expectativas desatendidas instituir. E tanto mais é injusta quanto mais desiguala,
privilegiando, com o que agrava o número dos excluídos e dos insatisfeitos. Portanto, a medida da
justiça ou injustiça de uma ordem jurídica se afere pelo maior ou menor grau de coerção que o
poder político institucionalizado precisa exercer para assegurar a paz social, ou em outros termos,
paradoxalmente, o Direito é tão mais necessário quanto mais injustiça determina a ordem social
existente, donde as sociedades mais perfeitas serem aquelas menos necessitadas da coerção do
Direito e, conseqüentemente, dos juristas.
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