Anais Eletrônicos do VIII Encontro Internacional da ANPHLAC Vitória – 2008 ISBN - 978-85-61621-01-8 Thomas Ewbank: um viajante norte-americano no Rio de Janeiro imperial (1846) Carla Viviane Paulino1 Resumo Nesta comunicação pretendo discutir a narrativa de viagem Life in Brazil or a journal of a visit to the land of the cocoa and the palm (Vida no Brasil ou um diário de visita à terra do cacau e da palmeira), escrita pelo inglês radicado nos Estados Unidos Thomas Ewbank (1792-1870) em 1846, período em que esteve no Brasil. Publicado nos Estados Unidos e respectivamente na Inglaterra em 1856, o livro e os textos publicados sobre sua viagem em revistas importantes do período, alcançaram um público amplo e foram lidos por viajantes e estudiosos das ciências humanas. No Brasil, este relato de viagem foi publicado pela primeira vez somente em 1973, 117 anos após sua primeira publicação no exterior. Por ser esta narrativa de viagem muito utilizada como fonte documental por historiadores brasileiros e norte-americanos, pretendo analisar as imagens e representações que o autor construiu sobre o Rio de Janeiro, bem como a forma como este documento vem sendo utilizado e interpretado por historiadores brasileiros e norte-americanos no final do século XIX e durante o século XX. Desde as duas últimas décadas do século XX os relatos de viagem têm sido estudados por pesquisadores a partir de um olhar mais crítico, levando-se em consideração o fato de que estes documentos representam imagens construídas pelo observador sobre um determinado local. Para além da descrição de um lugar, em um determinado momento histórico, seus escritos nos informam muito sobre a identidade do viajante, e é sobre alguns dos elementos que compõem esta identidade, especificamente a identidade de Thomas Ewbank, que pretendo discutir nesta comunicação. O relato de viagem de Thomas Ewbank, bem como os artigos de sua autoria que tratam sobre sua viagem ao Brasil, publicados em revistas norte-americanas no início da 1 Mestranda em História Social, sob a orientação da Profa. Dra. Mary A. Junqueira, pela USP. E-mail: [email protected] 1 Anais Eletrônicos do VIII Encontro Internacional da ANPHLAC Vitória – 2008 ISBN - 978-85-61621-01-8 segunda metade do século XIX, compõem o meu objeto de pesquisa no mestrado. Busco a partir destes documentos, analisar as representações do homem e da cultura do Rio de Janeiro oitocentista veiculadas primeiramente nos Estados Unidos e depois no Brasil. O livro, com um interessante e sugestivo título– Life in Brazil or a journal of a visit to the land of the cocoa and the palm - foi publicado nos Estados Unidos e respectivamente na Inglaterra, em 1856. Os artigos antecederam o livro e foram publicados nos primeiros anos da década de 1850. Creio que ao se estudar um relato de viagem, alguns questionamentos tornam-se necessários : Quem é este autor? De onde ele vem? Para quem ele fala? Como ele viveu? E ainda: como suas perspectivas e crenças pessoais tais como sua religião, os seus parâmetros científicos, políticos e filosóficos, que, atrelados a própria história de vida do viajante, moldaram o documento por ele criado?. E, em direção oposta, como, a partir do encontro com uma outra cultura, esses mesmos parâmetros foram modificados?. Embora um tanto elementares, questões como essas, tão conhecidas do historiador ao interrogar um documento, nos permite conhecer melhor a documentação e nos fornecem elementos preciosos para discutir questões identitárias, tão presentes e significativas nos relatos de viagem. Passemos então a algumas respostas. Cientista, inventor e ex-fabricante de canos de cobre e chumbo em Nova York, Ewbank visitou às custas próprias o Rio de Janeiro, local em que residia seu irmão Joseph Ewbank, casado com uma brasileira, no ano de 1846, aos 54 anos de idade. Durante os meses em que esteve no Brasil, o autor quase diariamente saiu em incursões pela cidade a fim de descrevê-la em detalhes. Bem relacionado, durante o período em que permaneceu na capital do Império, Ewbank visitou lugares e pessoas ilustres da sociedade carioca. Mas seu interesse não se ateve apenas a este público. Seus escritos destacam-se pela primazia aos detalhes da vida cotidiana. Assim, escreveu sobre o modo de vida das pessoas comuns, dos negros forros e escravos, de padres e freiras, dos comerciantes e dos fazendeiros. Detalhou e interpretou com particular interesse o comportamento do clero, os ritos e as festas religiosas. Indignou-se com a desvalorização que o brasileiro imputava ao trabalho e, com grande desprezo, comentou as cerimônias monárquicas e o lugar de destaque que elas ocupavam no cotidiano brasileiro. Descreveu também os hábitos alimentares e os utensílios domésticos, a formatação das ruas e os meios de transporte, buscando compreender e ao mesmo tempo julgar os hábitos, os valores, as crenças e os costumes locais. 2 Anais Eletrônicos do VIII Encontro Internacional da ANPHLAC Vitória – 2008 ISBN - 978-85-61621-01-8 Bem ao espírito de sua época, o autor também deu atenção especial à tecnologia e aos sinais de progresso no país, descrevendo e analisando as técnicas utilizadas para diferentes finalidades, na busca por elementos que de certa forma determinassem o grau de civilidade, progresso e desenvolvimento de uma nação. Thomas Ewbank nasceu em Durham, Inglaterra, em 1792 e morreu em Nova York, em 1870. Em 1819, aos 27 anos, imigrou para os EUA e se estabeleceu como fabricante de canos de chumbo, estanho e cobre, entre 1820 e 1836, ano em que vendeu a manufatura e passou a dedicar-se ao estudo da filosofia, da etnologia, da ciência e da história das invenções. William Bate, historiador norte-americano, produziu na década de 1970 um estudo meticuloso mas pouco crítico sobre a carreira de Thomas Ewbank2. Segundo este autor, seus primeiros escritos, produzidos entre 1823 e 1832, trataram basicamente sobre mecânica e hidráulica, rendendo algumas publicações em revistas científicas e periódicos da época, tais como American Scientific e nos jornais do Franklin Institute. Em 1842, publicou o livro A descriptive and historical account of hydraulic and other machines for raising water, que desfrutou de grande sucesso e deu a Ewbank reconhecimento científico dentro e fora dos Estados Unidos. Até o ano de 1876, 16 edições deste livro foram impressas nos Estados Unidos. Sua carreira bem sucedida como fabricante, inventor e escritor, acabou lhe rendendo uma recompensa oficial: em 1849, dois anos após voltar de sua viagem ao Brasil, Ewbank foi convidado pelo então presidente dos Estados Unidos, Zachary Thaylor (1849-1850), para assumir o cargo de Comissário de Patentes, função que exerceu por três anos. Ewbank se firmou como um viajante primeiro às custas próprias e depois à serviço do governo. Sua viagem ao Brasil, em 1846, representou sua primeira experiência exploratória, conferindo-lhe capacitação para participar de expedições financiadas pelo governo dos Estados Unidos. Entre 1849 e 1857, Ewbank participou de duas outras viagens, percorrendo o interior dos Estados Unidos e também alguns países da costa oeste da América Latina, ambas à serviço do governo norte-americano3. Sua função nessas viagens concentrava-se no campo 2 BATE, William Allen Jr. The writings and public career of Thomas Ewbank, United States Commissioner of Patents, 1849-1852. Washington: George Washington University, 1979. (mimeo) 3 Ver EWBANK, Thomas. A description of indian antiquities brought from Chile and Peru, by the United States Naval Astronomical Expedition. In GILLIS, James Melville. U. S. naval astronomical expedition to the southern hemisphere during years 1849, 50, 51, 52. Washington: A.O.P. Nicholson Printer, 1855. p. 111-150. Ver Também: WHIPPLE, W.; EWBANK, Thomas; TURNER, Wm. W. Report upon the indian tribes. In Explorations and surveys for a railroad route from the Mississippi river to the Pacific Ocean. Washington, D.C.: War Department, 1855. p. 43-53. 3 Anais Eletrônicos do VIII Encontro Internacional da ANPHLAC Vitória – 2008 ISBN - 978-85-61621-01-8 da etnologia, com o foco na observação das tribos indígenas locais, estudando seus hábitos e costumes e procurando classificá-las por nível de civilidade, docilidade ou selvageria. Após a viagem ao Brasil em 1846, entre 1849 e 1852, Ewbank participou da expedição comandada por James Gilliss, capitão da Marinha de guerra dos Estados Unidos, a U. S. Navy, com a missão de transportar o maquinário de alta precisão e instalar no Chile um observatório astronômico. Os expedicionários permaneceram no Chile por quatro anos e percorreram também a região do Peru e da Argentina. Segundo Mary Anne Junqueira, tal expedição indica “o interesse norte-americano em fazer parte da comunidade científica internacional”.4 Em 1855, Ewbank fez parte de viagem exploratória comandada pelo War Departament (Departamento de Guerra), o Exército dos Estados Unidos, com o objetivo de mapear a região do Mississippi, a fim de encontrar rotas viáveis para a instalação de linhas férreas na região. Além disso, como se pode notar através do relatório de Ewbank nesta expedição, eles pretendiam também estudar a população nativa de territórios recém anexados pelo país e assim elaborar estratégias e medidas a serem tomadas em relação a essas terras, bem como aos povos que nelas habitavam. Homem de posição respeitada nos negócios, na política e na ciência, seu interesse pelo desenvolvimento da “raça humana” o levou a ser um dos fundadores da American Ethnological Society5(AES). Aqui convém destacar que chegando ao Brasil, Ewbank, na qualidade de representante desta Sociedade, procurou o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), com a incumbência de entregar uma carta da AES, propondo parceria entre as duas Instituições, no intuito de trocarem informações sobre os estudos etnológicos realizados nas Américas.6 Considerando as informações acima, este estudo deve também ser um diálogo com pesquisas que procuraram compreender não apenas as relações entre Estados Unidos e Brasil, mas entre aquele país e a América Latina em geral. É certo que representações negativas sobre o Brasil já foram identificadas nesses trabalhos. No entanto, essa pesquisa procura contribuir indicando que as visões negativas relativas ao país remontam pelo menos a meados 4 JUNQUEIRA, Mary A. "Ciência, técnica e as expedições da marinha de guerra norte-americana, U.S. Navy, em direção à América Latina (1838-1901)", In Varia História. Belo Horizonte: Departamento de História, Programa de pós-graduação em História, UFMG, vol. 23, n. 38, jul/dez 2007. 5 De acordo com o histórico da AES, disponível no site da Sociedade (www.aes.org), a American Ethnological Society é a mais antiga organização de estudos antropológicos dos Estados Unidos. Fundada em Nova York, em 1842, tinha por objetivo a pesquisa no campo da etnologia que começava a se desenvolver naquele período. Apesar de seu nome não ser citado no site oficial da Sociedade, Thomas Ewbank figura, de acordo com o documento de Constituição da AES, como um de seus membros fundadores. Para maiores detalhes ver WILSON, James Grant. “Proceedings of the American Ethnological Society” In American Anthropologist – New Series. New York: Vol. 2, n. 4, Oct.- Dec. 1900, p. 785-796. Disponível em: www.jstor.org, acesso em:11/09/2007. 6 O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro possui esta carta em seus arquivos. Junto com ela, Ewbank presenteou o IHGB com alguns livros tratando de estudos etnológicos. 4 Anais Eletrônicos do VIII Encontro Internacional da ANPHLAC Vitória – 2008 ISBN - 978-85-61621-01-8 do século XIX.7 Por outro lado, convém ressaltar que o relato de Thomas Ewbank não produziu uma análise de todo depreciativa do Rio de Janeiro. Sua narrativa destacou a beleza e a riqueza natural do país,8 e seus comentários sobre as relações entre negros e brancos, bem como a possibilidade de ascensão social daqueles, acabaram por servir como fonte utilizada por historiadores com a finalidade de confirmar teorias como as de Gilberto Freyre, com relação à convivência democrática e harmônica entre negros e brancos.9 Nessa direção,minha pesquisa de mestrado procura contribuir analisando as diferentes possibilidades de interpretações de Brasil, extraídas a partir deste relato de viagem. Life in Brazil10 Life in Brazil foi publicado somente em 1846, 10 anos após o retorno de Thomas Ewbank aos Estados Unidos. Entretanto, artigos de sua autoria sobre o Brasil foram inseridos em revistas importantes de Nova York. Uma vez, em 1854, e outras duas, em 1855, a Harper´s Magazine publicou artigos de Ewbank sobre o Brasil, os quais destacavam características do catolicismo e da escravidão no país visitado. Mencionar as inserções na Harper´s é importante porque seu alcance era amplo, atingindo um grande número de pessoas.11 Creio que tais artigos, somados ao livro posteriormente editado, ajudaram a 7 Ver JUNQUEIRA, Mary Anne. Ao Sul do Rio Grande – imaginando a América Latina em seleções: oeste, wilderness e fronteira (1942-1970). Bragança Paulista: EDUSF, 2000 e BAITZ, Rafael. Imagens da América Latina na revista National Geographic Magazine, 1895-1914. Tese de doutorado, Departamento de História FFLCH-USP, 2004 (mimeo). Em sentido inverso, os latino-americanos também escreveram suas narrativas sobre países que visitaram. Ver: FRANCO, Stella Maris Scatena. Peregrinas de outrora: viajantes latino-americanas no século XIX. Tese de doutorado, Departamento de História – FFLCH-USP, 2005. (mimeo) 8 Sobre distintas visões da natureza nas Américas, ver PRADO, Maria Ligia. Natureza e identidade nacional nas Américas. In América Latina no século XIX. Tramas, Telas e Textos. São Paulo: Edusp, 1999. 9 Em Ordem e Progresso, Gilberto Freyre cita Ewbank diversas vezes para tratar de temas variados. Ressalto aqui uma delas, em que Freyre utiliza o viajante para comentar que este foi capaz de perceber a “democracia racial” no Brasil, visto que aqui a miscigenação podia ser vista até entre nobres da corte imperial. Para Freyre, Ewbank reconheceu a importância e singularidade do Brasil entre os países da América Latina, como pode ser observado na seguinte passagem: “O que é significativo nos reparos de Ewbank é que o seu autor, a despeito de anglo-americano dos Estados Unidos, sem resvalar no simplismo dos Webb e de outros dos seus compatriotas, era dos que lucidamente compreendiam a singularidade na posição brasileira na América; e respeitavam sua forma monárquica de governo combinada com uma maneira paradoxalmente democrática – democracia étnica – de sua sociedade ser aristocrática; e através dessa combinação preparar-se para um futuro que se anunciava importantíssimo para a civilização moderna”. Conferir FREYRE, Gilberto. Ordem e Progresso. Rio de Janeiro: José Olympio, 1962. p. 35. 10 A partir de agora o relato de Thomas Ewbank Life in Brazil, or a journey of a visit to the land of the cocoa and the palm, será chamado apenas de Life in Brazil. 11 Lançada em 1850 em Nova York pela Harper & Brothers, a Harper´s Magazine vendeu rapidamente em sua primeira edição cerca de 7.500 exemplares. Seis meses depois a revista estava consolidada no mercado e alcançava o número de 50 mil exemplares vendidos. Publicada até os dias atuais, trata-se da segunda mais antiga revista mensal norte-americana ainda em circulação. Para maiores informações consulte: www.harpersmagazine.com e, para acessar exemplares antigos: www.cornelluniversity.org/americanstudies, acesso em 10/10/2007. 5 Anais Eletrônicos do VIII Encontro Internacional da ANPHLAC Vitória – 2008 ISBN - 978-85-61621-01-8 difundir determinadas imagens sobre o Brasil nos Estados Unidos que permanecem, modificadas ou não, até os dias atuais no imaginário norte-americano. Além das publicações sobre o Brasil na Harper´s, foi possível encontrar em outras revistas e jornais, resenhas e notas comentando e informando o leitor sobre o lançamento de Life in Brazil nos Estados Unidos.12 Também foi possível notar a importância de Ewbank como referência a outros viajantes do mesmo período, que elogiavam seu trabalho tanto por sua capacidade de observação quanto por sua coragem em escrever ousadas críticas dirigidas ao clero, à escravidão, à forma monárquica de governo e à aversão do brasileiro ao trabalho.13 No Brasil, sua primeira publicação deu-se somente em 1973, pelas editoras Itatiaia/Edusp, seguido de uma segunda edição em 1976, ou seja, 117 anos após sua publicação no exterior14. Todavia, tal fato não impediu que exemplares em inglês circulassem pelo país, pois esta obra, como pode ser observado nos livros de Gilberto Freyre e de Sérgio Buarque de Holanda15, vem sendo utilizada como fonte e referência para pesquisa e estudo da história do Brasil oitocentista muito antes de sua edição em português. Nos Estados Unidos, foi possível encontrar estudos de historiadores e antropólogos, que utilizam os relatos de Ewbank em um estudo comparativo entre a forma como a escravidão se exerceu nos Estados Unidos e no Brasil, desde o final do século XIX. Em algumas universidades norte-americanas, na disciplina História do Brasil, o livro de Ewbank faz parte da bibliografia indicada para o curso.16 12 Em cidades como Washington e Filadélfia, algumas revistas também publicaram artigos sobre a narrativa de viagem deste autor. Foi possível encontrar as seguintes publicações, a partir do site da Cornell University: “Review of life in Brazil”. In Graham´s Magazine, maio/1856; “Review of Life in Brazil”. In: Knickerbocker Magazine: maio/1856 e “Life in Brazil”. In: Littell´s Living Age : out/1863. 13 Bate fornece alguns dados relevantes sobre a opinião de alguns viajantes norte-americanos sobre Thomas Ewbank. John Codman, por exemplo, escreveu Ten Months in Brazil, em 1867, elogia Ewbank, considerando-o um “especialista” em arqueologia e mitologia comparada. Considero especialmente interessante a seguinte passagem em que Kidder e Fletcher, dois missionários protestantes e viajantes norte-americanos, citam Ewbank, e recomendam a leitura de seu livro àqueles que desejam saber sobre o lado sombrio do país: “Those who want to know how deep human nature can sink in moral degradation, monarchical imbecility, nopeless superstition, general ignorance, and political demoralisation, read Ewbank´s book.”. Ver BATE, William Allen Jr, op.cit., p. 107-108. 14 EWBANK, Thomas. A vida no Brasil; ou, diário de uma visita à terra do cacaueiro e das palmeiras. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1976. 15 Ver HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 26a edição, 1995, p.151; FREYRE, Gilberto.Casa-Grande & Senzala. Rio de Janeiro: José Olympio, 8a edição, 1954, p.614,712,763; FREYRE, Gilberto. Ordem e Progresso. Rio de Janeiro: José Olympio, 2a edição, 1962, 1o e 2o tomos, p. 35, 37, 527, 539, 696. 16 Alguns desses casos podem ser econtrados nos seguintes sites: http://dl.lib.Brown.Edu/travelogues/patrico.html “Thomas Ewbank´s depiction of cruelty to brasilian slaves”, by Ryan Patrico.; http://retanet.unm.edu/article.pl “Resources for teaching about Americas”.; http://dl.lib.brown.edu/travelogues/lambe.html ,“Modeling modern man: american sel-fashioning in nineteenth-century travel literature”. Acesso em: 10/11/2007. 6 Anais Eletrônicos do VIII Encontro Internacional da ANPHLAC Vitória – 2008 ISBN - 978-85-61621-01-8 Considerando o amplo alcance da obra, a sua relevância na construção das representações sobre o Rio de Janeiro imperial e atentos ao fato de que a mesma vem sendo utilizada desde o final do século XIX como fonte documental, como já mencionado, minha pesquisa de mestrado busca compreender como e que tipo de imagens e representações sobre o Rio de Janeiro foram gestadas neste texto, cuja repercussão pode ser analisada a partir da década de 1850, com as publicações em revistas e posteriormente a edição do livro, no ano de 1856.17 Para tanto, busco primeiramente identificar quais idéias ou concepções de mundo estavam presentes no olhar deste viajante sobre o Rio de Janeiro durante o Segundo Reinado18. Nesse sentido e levando em conta a possível identificação de Ewbank com a cultura e os ideais políticos norte-americanos, busca-se entender como e em que medida este autor avaliou e classificou o Brasil, posicionando o nosso país em relação aos Estados Unidos, visto como centro irradiador de aspectos da modernidade. Outro elemento importante nesta pesquisa está relacionado à forma como se deram as relações estabelecidas por Ewbank em sua estada no Rio de Janeiro. Nesse sentido, busco mapear as redes de relacionamento as quais o autor se inseriu ao chegar no Rio de Janeiro e o contato que Ewbank estabeleceu com diferentes instituições políticas, culturais, comerciais, diplomáticas e religiosas, procurando, na medida do possível, acompanhar as possíveis trocas, intercâmbios e transformações que ocorreram a partir deste encontro.19 Ao se buscar compreender como se deu a representação do Brasil nos Estados Unidos a partir de seu relato, torna-se necessário avaliar a forma como a obra foi divulgada nos 17 Roger Chartier salienta a importância do papel das representações ao estudarmos as construções de imagens sobre o outro. Para este autor, não podemos perder de vista o fato de que as mesmas não são discursos neutros, já que são sempre determinadas pelo discurso dos grupos sociais que as forjam. Sobre este assunto ver CHARTIER, Roger. A história Cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel; Rio de Janeiro: Bertland, Brasil, 1990. 18 Neste período, a economia do Brasil era essencialmente agrária, com mão de obra escrava. A produção cafeeira já havia alcançado o mercado externo, e o Conselho do Estado representava basicamente os interesses da aristocracia rural, fator que impediu, por longos anos, o desenvolvimento de uma sociedade mais igualitária e desenvolvida nos moldes europeus, como paradoxalmente se desejava, num país provido de trabalhadores escravos. De acordo com Alencastro, a escravidão, bem como o tráfico negreiro na década de 1840 encontravase em franca expansão, apesar de legalmente proibido desde 1831. Por outro lado, no período em que Ewbank esteve no Rio de Janeiro, a cidade se firmava como referência cultural e centro irradiador de modernidade, modismos, hábitos e costumes europeus para o resto do país. Sobre este assunto, ver: ALENCASTRO, Luiz Felipe de. Vida privada e ordem privada no Império. In: NOVAIS, Fernando (coord.) História da vida privada no Brasil: Império. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. Ver também: FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: EDUSP, 1994. 19 Ewbank parece ter estabelecido relações importantes durante sua estadia no Rio de Janeiro. Com Januário da Cunha Barbosa, cônego, maçom, secretário e um dos fundadores do IHGB, obteve autorização para desenhar e descrever os artefatos indígenas que mantinha em seu escritório.Este inclusive, foi o tema de seu primeiro escrito sobre o Brasil, que no entanto, foi rejeitado para publicação pela AES de Nova York. Ele visitou o palácio Imperial, fazendeiros de porte e políticos locais. Pelo o que se pode observar em seus relatos, parecia não haver “portas fechadas” para este autor, que transitou entre os mais diversos círculos sociais do Rio de Janeiro. 7 Anais Eletrônicos do VIII Encontro Internacional da ANPHLAC Vitória – 2008 ISBN - 978-85-61621-01-8 Estados Unidos e assim acompanhar como as imagens construídas pelo autor sobre o Rio de Janeiro circularam naquele país durante a segunda metade do século XIX. Para tanto, se faz necessário analisar o material impresso no período em revistas e jornais norte-americanos como a já citada Harper´s Magazine - que publicaram artigos e desenhos de Ewbank sobre sua viagem, bem como resenhas e comentários sobre a obra. Analisar este material é importante, pois este pode nos informar sobre as possíveis impressões ou construções imagéticas que sua viagem possibilitou a um público leitor mais amplo e menos especializado do que o que posteriormente teve acesso ao livro. A primeira hipótese de minha pesquisa, e que está relacionada com a questão das identidades, é a de que a forma como a cidade do Rio de Janeiro foi representada por Thomas Ewbank nos informa sobre uma determinada visão de mundo peculiar à cultura anglo-saxã. Apesar de sua origem inglesa, o autor parece estar em sintonia com o ideal político e cultural norteamericano. Nota-se em seus escritos uma clara aversão à monarquia e em paralelo, uma identificação com a forma republicana de governo, tal como existia nos Estados Unidos. Em sua narrativa, o autor parece eleger este país como modelo de civilização, a ponto de considerá-lo moderno em relação ao Brasil e mesmo em relação à Europa, ao menos no que se refere aos ideais políticos e religiosos, como pode ser observado nas passagens abaixo: Viagem livre e comércio livre ainda não existem. O barbarismo que no Velho Mundo impede o homem de atravessar a terra e comungar com suas espécies a seu bel prazer prevalece sobre a América do Sul. Não são permitidos aos turistas pisar, ou deixar a costa brasileira sem passaportes.20 Outra passagem - escrita por Ewbank enquanto viajava dentro dos Estados Unidos em direção a seu destino de embarque no navio que o levaria para o Brasil - denuncia sua repulsa à monarquia inglesa e à religião anglicana: Passando por Jersey, em cada vilarejo multidões aglomeravam-se na expectativa da Mensagem do Presidente. Tomamos conhecimento em Bristol onde era geral a expectativa em relação ao Oregon. Era universal o sentimento de que nenhum outro pedaço da América do Norte deveria ser poluído pela monarquia; que aqui, aconteça o que for, as pessoas deveriam ser livres dos males das regras hereditárias, primogenitura, dízimos e um sacerdócio estatal.21 20 EWBANK, Thomas. Life in Brazil or, a journal of a visit to the land of the cocoa and the palm. Boston: Adamant Media Corporation, 2005. p.17. No original: “Free travel and free trade are not yet. The barbarism that in the Old World prevents man from traversing the earth and communing with his species at his pleasure prevails over South América. Tourists are not allowed to step on nor to leave the shores of Brazil without passports.” 21 Idem, p.17. No original: “In passing through Jersey, crowds were assembled in every village in expectation of the President´s Message. It met us a Bristol, when every one responded to the sentiments concerning Oregon. The feeling was universal that not another foot of North America should be polluted with monarchy; that here, come what may, people should be free from the evils of hereditary rulers, primogeniture, tithes, and a state priesthood.” 8 Anais Eletrônicos do VIII Encontro Internacional da ANPHLAC Vitória – 2008 ISBN - 978-85-61621-01-8 As passagens acima indicam que o autor não se identifica com os ideais políticos e religiosos de seu país de origem, ao mesmo tempo em que realçam a sua crença em uma república laica e democrática. Como já mencionado, creio que esta identificação do autor, principalmente com a política, o individualismo e os ideais de progresso propalados nos Estados Unidos, influenciou a forma como Ewbank compreendeu o Rio de Janeiro e determinou as críticas feitas pelo autor sobre as mais variadas questões. Atentos às formas de relações de poder que muitas vezes se estabelecem no encontro entre duas culturas, acreditamos que em suas comparações entre o Brasil e os Estados Unidos, o autor buscou afirmar uma idéia de superioridade do país em que vivia em relação ao país que observou. Umas das formas que utilizou para demonstrar essa superioridade foi comparando o modo como norte-americanos e brasileiros distinguiam o pensamento racional de fé religiosa. A seguinte passagem exemplifica claramente essa observação: Vagueando logo cedo sem itinerário certo, acabei, sem saber como, na praia ou rua de Santa Luzia – uma rua sem casas, mas não sem uma igreja, dedicada à senhora de mesmo nome. Ela é a padroeira do cego, e muito celebrada por oferecer alívio para o qual nós outros recorremos aos oculistas e às enfermarias de olhos.22 Talvez o tema da religião tenha sido o mais abordado em todo o relato de Ewbank. Para o autor, os ritos católicos representam uma etapa primitiva da religião. Ele se admira, se espanta que determinadas crenças e superstições pudessem ainda existir em pleno século XIX. Além de atrasados em relação aos protestantes, o autor acredita que o clero católico brasileiro não é capaz de desenvolver nos fiéis a verdadeira religiosidade, de imbuir nos homens, mulheres e crianças verdadeiros valores cristãos, resultando assim em homens de princípios morais frágeis. Ao longo do relato, torna-se clara a produção de um discurso que descreve “dois mundos” em oposição – catolicismo versus protestantismo, o mundo católico, a América do Sul, em contraposição ao mundo anglo-saxão ou simplesmente à América. Essa idéia de “atraso” nos remete a uma visão evolucionista, de estágios de civilização. Para ele, para que a nação brasileira evolua, é preciso que o catolicismo deixe de ter lugar central na sociedade.A seguinte passagem nos dá uma idéia de como ele enxergava o catolicismo no Brasil: 22 EWBANK, op.cit., p.176. No original: “Wandering out early, I brought up, I know not how, on the beach or street of St. Luzia: a rua(sic) without houses, but not without a church – one dedicated to the lady just named. She is the patroness of the blind, and much celebrated for affording that relief for which we have recourse to oculists and eye infirmaries.” 9 Anais Eletrônicos do VIII Encontro Internacional da ANPHLAC Vitória – 2008 ISBN - 978-85-61621-01-8 Acredito que o Romanismo, tal como existe no Brasil e na América do Sul em geral, é uma barreira ao progresso, e comparado a este, outros obstáculos são pequenos, e há estadistas nativos alertas para o fato; mas, incorporados como estão nos pensamentos e hábitos das pessoas; transfundido como está, dos ossos até a medula, a menos que algum Kempis ou Fénélon, Lutéro ou Ronge, surja parapurificar isto, gerações passarão antes que caia a venda de seus olhos e tornem-se mentalmente livres.23 Sobre a convivência entre brancos e negros, por exemplo, Ewbank omite os conflitos existentes em seu país e restringe-se a escrever que nos Estados Unidos, as coisas funcionavam de forma diferente, com leis que determinavam as formas de convivência entre ambos. Em nenhum momento o autor informa claramente o leitor sobre o fato de ele viver em um país que também era escravocrata. Ademais, não foi apenas a sociedade escravocrata da nação que admirava que Ewbank evitou comentar, mas também a guerra com México (18461848) - conflito que explodiu quando se encontrava no Brasil - no qual o país latinoamericano perdeu metade do seu território para os Estados Unidos; além dos explosivos conflitos que a conquista territorial já anunciava, ou seja, o número de estados novos da nação que optaria por adotar ou não o sistema escravista. Sabe-se que foi exatamente essa disputa que poderia modificar o equilíbrio de poderes entre norte e sul - o que causou a Guerra Civil de 1861-186524. Sendo assim, analisar o discurso de Ewbank observando aquilo que lhe chamou a atenção e que sutilmente comparou ou, em direção contrária, evitou comparar com o seu país, pode nos ajudar a entender melhor a visão de mundo, bem como as motivações do autor em destacar um determinado tema e/ou evitar outros, na construção de seu discurso. Num período em que os relatos de viagem constituíam-se como uma das mais importantes fontes de informação sobre povos distantes, acredito que a obra deste autor, bem como os artigos produzidos a partir dela, em revistas norte-americanas do período, ajudaram a difundir e a manter mitos e estereótipos sobre o Brasil que permanecem até os dias atuais, modificados ou não, no imaginário norte-americano. Um outro aspecto de relevância a ser observado, diz respeito à forma como o autor, não fugindo à regra dos demais relatos de viagem, mostrou a sociedade carioca, representada principalmente pelos negros e mulatos, como seres sensuais e erotizados. Tais observações 23 Ewbank, op.cit, p.ix. No original: “I believe Rmanism, as it exists in Brazil and South America generally, to be a barrier to progress, compared to wich other obstacles are small, and there are native statesmen alive to the fact;but, incorporated as it is with the habits and thoughts of the people;transfused, as it were, through theirvery bones and marrow, unless some Kempis or Fénélon, Luther or Ronge, arise to purify it, generations must pass before the scales drop from their eyes, and they become mentally free.” 24 Sobre a Guerra com o México, ver: JOHANNSEN, Robert W. To the halls of the Montezumas. The Mexican War in the American imagination Nova York: Oxford University Press, 1985. Sobre as causas da Guerra Civil, ver: McPHERSON, James M. The United States at midcentury, México will poison us e An empire for slavery, in Battle cry of freedom. The Civil War era. Nova York: Balantine Books, 1988. 10 Anais Eletrônicos do VIII Encontro Internacional da ANPHLAC Vitória – 2008 ISBN - 978-85-61621-01-8 podem demonstrar que a imagem do Brasil como território do prazer remonta pelo menos à década de 1850 do século XIX, como pode ser visto na literatura de viagem25. É como se o Brasil fosse principalmente o lugar da sensualidade exacerbada e de uma moral desvirtuada, imagem esta que será fortemente combatida pelo governo e pela igreja no final do século XIX e início do XX.26 Sobre literatura de viagem A decisão pela abertura dos portos brasileiros em 1808, segundo Karen Lisboa, tomada por D. João, trouxe a oportunidade de estrangeiros aqui aportarem e conhecerem o Brasil. Reiniciou-se então uma série de visitas ao país, que reabriu suas portas a homens vindos das mais diversas regiões do mundo e com os mais diversos interesses no país. Comerciantes, artistas, imigrantes, naturalistas, diplomatas, mercenários, educadores, marinheiros e missionários, muitos tornaram públicas as suas impressões sobre o Brasil através da publicação de seus diários de viagem. Como bem observa Tzvetan Todorov, a maioria dos relatos de viagem foram escritos por representantes do colonialismo, estes, desdobrando-se em três modalidades: militar, comercial e espiritual, ou ainda, trata-se de “exploradores que se colocam à serviço de uma ou de outra dessas categorias.”27 Os representantes de qualquer uma dessas categorias, segundo este autor, apresentam uma postura comum: um olhar curioso e a segurança de saber-se superior em relação à cultura que observa. Para Todorov, esse sentimento de preeminência do europeu em relação às demais culturas permanece até os dias atuais. A denominação “relato de viagem” implica em uma narrativa pessoal, que expressa impressões pessoais sobre a experiência da viagem. Todorov observa que, do ponto de vista dos leitores, o autor deste tipo de gênero literário deve narrar “a descoberta dos outros, selvagens de regiões longínquas ou representantes de civilizações não européias.28 Este autor exemplifica que, para o leitor europeu, uma viagem para um país como a França, não configura um relato de viagem, pois a França não apresenta um modo de vida tão diferente do 25 Sobre este assunto ver: MACHADO, Maria Helena P.T. “A sensualidade como caminho. Notas sobre diários e viagens.” In Revista USP, São Paulo, v.58, 2003, , p.134-148. 26 MATOS, Maria Izilda S. de; SOIHET, Rachel(orgs.). “O corpo feminino em debate”. São Paulo: UNESP, 2003, p. 177-197. 27 TODOROV, Tzvetan. “A viagem e seu relato”, In Revista de letras da UNESP. São Paulo, vol. 46, n.1, 2006. p.10. 28 Idem, p.9. 11 Anais Eletrônicos do VIII Encontro Internacional da ANPHLAC Vitória – 2008 ISBN - 978-85-61621-01-8 encontrado na Itália, por exemplo. Ou seja, faltaria um elemento que é implícito nos relatos de viagem, qual seja, o “sentimento de alteridade em relação aos seres (e as terras) evocados.”29 Durante o século XIX, uma quantidade expressiva de livros de viagem sobre o Brasil foram escritos. Em uma conhecida pesquisa sobe este tema, Miriam M. Leite, afirma que esse tipo de literatura aparece em diversas formas: livros compactos ou muito extensos, em forma de romances, para adultos e para crianças e até mesmo sob encomenda do governo brasileiro, com a finalidade de atrair imigrantes europeus.30 Joan Pau Rubiés chama a atenção para a importância da etnografia e da etnologia na construção dos relatos de viagem. Este autor observa que estes tiveram um papel fundamental não apenas para o entretenimento europeu, mas também para os assuntos filosóficos e discussões que buscavam confirmar a existência de características humanas universais. O autor fala de um impulso etnográfico europeu, que predominou principalmente a partir do Renascimento e que foi resultado de uma combinação única de expansão colonial e transformação intelectual presentes no período. Firmada como discurso acadêmico baseado em estudos comparativos e classificatórios no século XIX, a etnologia na verdade existiu dentro dos campos dos saberes humanísticos e aparece principalmente nos relatos de viagem nos informando sobre debates específicos da época, tais como as capacidades e origens do índio americano, a influência do clima nas características dos povos visitados ou a existência de estágios na historia da civilização.31 Aqui, é importante lembrar que Thomas Ewbank foi um dos fundadores da American Ethnological Society de Nova York e que portanto, seu relato de viagem Life in Brazil buscou responder ou atender à demandas específicas daquele período a um etnólogo, qual seja, a comparação entre povos e a descrição de sua cultura material. Assim sendo, creio que sua ligação com a etnologia indicia através de quais lentes este autor enxergou o Rio de Janeiro. Ainda sobre relatos de viagem, convém mencionarmos o estudo de Luciana de Lima Martins, que observa, entre outros elementos, a característica de construtividade dos discursos e imagens que compõem um livro de narrativa de viagem. A autora, ao estudar alguns relatos a partir dos manuscritos e diários pessoais que deram corpo à narrativa de viagem, aponta para as modificações que se fazem notar quando um diário se transforma em livro. Como se pode notar no trabalho de Martins, imagens e textos sofrem alterações, o que a leva a questionar “em que medida o material produzido pelos viajantes moldou-se com o intuito de 29 Idem, p.9. LEITE, Miriam Moreira. Livros de Viagem (1803-1900). Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1997, p.11. 31 Sobre este assunto ver RUBIÉS, Joan Pau. Travel writing and ethnography. In HULME, Peter and YOUNGS, Tim(Orgs). The cambridge companion to travel writing. Cambridge University press, 2002.p.242-43. 30 12 Anais Eletrônicos do VIII Encontro Internacional da ANPHLAC Vitória – 2008 ISBN - 978-85-61621-01-8 atender à curiosidade e aos interesses das elites, ou responder a uma crescente demanda popular pelo exótico?”32. Aqui, a idéia literal de construção, de composição, é posta à prova e seu trabalho nos mostra que neste processo de construção, palavras e imagens são cuidadosamente escolhidos para atenderem demandas específicas. Outro fator que vem sendo discutido sobre os relatos de viagem diz respeito à veracidade de seus conteúdos, incluindo-se constantes indícios de autores plagiando outros autores viajantes.33 Com base nas perspectivas apresentadas acima, nota-se a importância das narrativas de viagem como documento histórico, primeiramente, pelo volume de obras escritas. E há uma razão para este volume considerável: havia um mercado para elas, em que diferentes leitores buscavam aquilo que mais lhes interessavam. Mas, independente das razões que levavam um determinado leitor a apreciar este tipo de literatura, este, ao tomar um relato de viagem nas mãos e o ler, formava, a partir das imagens e descrições oferecidas pelo autor sobre um determinado país, uma imagem e uma opinião valorativa sobre aquele lugar, aquela cultura, aquela gente. Neste sentido, creio que as narrativas de viagem, ao longo dos séculos, ajudaram a formar e a consagrar uma determinada imagem de Brasil, nem sempre positiva. Adjetivos como indolência, preguiça, corrupção, aversão ao trabalho, religiosidade primitiva, além da descrição de um país caracterizado pela mestiçagem e escravidão, foram recorrentes nesses relatos e, no caso da obra de Thomas Ewbank, aparecem de forma expressiva. Por serem utilizadas como fontes primárias para a investigação histórica, faz-se necessário um olhar criterioso sob tais relatos, sem nunca perder de vista o fato de os mesmos constituírem sobretudo uma representação. A narrativa de viagem nos apresenta imagens matizadas pelo espírito da época e pela cultura do observador. Diante do diferente, o viajante que nos chega não vem só. Ele carrega consigo uma série de informações preconcebidas que lhe servirão como base no momento de encontro com o outro e que certamente irá influenciar a forma como este indivíduo irá assimilar o mundo que se apresenta diante de seus olhos de observador. O viajante traz em sua bagagem um modo de ver que lhe dá segurança diante de novo e do imprevisível. No final da década de 1980 e ao longo de 199034, alguns historiadores brasileiros voltaram-se para o tema, produzindo trabalhos interessantes sobre os relatos de viagem, 32 MARTINS, Luciana de Lima. O Rio de Janeiro dos viajantes: o olhar britânico (1800-1850). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001, p.40. 33 Ver HOOPER, Glenn, and YOUNGS, Tim. Introduction, In Perspectives on travel writing. Hants/Vermot, Ashgate, 2000, p.2. 34 Ver, por exemplo, a importante produção: VÁRIOS AUTORES. Revista da USP (Dossiê o Brasil dos Viajantes), São Paulo: n. 30, 1996. Trabalhos mais recentes podem ser vistos em VÁRIOS AUTORES. Revista Brasileira de História. (Dossiê Viagens e Viajantes) São Paulo: Anpuh/humanitas, vol.22, n.44, 2002. 13 Anais Eletrônicos do VIII Encontro Internacional da ANPHLAC Vitória – 2008 ISBN - 978-85-61621-01-8 voltando-se principalmente para o estudo de relatos de viajantes europeus. Todavia, pouco se estudou sobre relatos produzidos especificamente por viajantes norte-americanos e tão pouco buscou-se verificar a existência de certas especificidades em seus discursos. Literatura de viagem e crítica pós-colonial Para analisar o relato de Thomas Ewbank são importantes as reflexões de alguns autores que trabalham dentro do campo conhecido como crítica pós-colonial, uma vez que estes vêm contribuindo para um melhor entendimento do fenômeno do imperialismo, das relações e conflitos entre Norte e Sul e das implicações próprias da globalização. Uma das características que particularizam o trabalho de alguns desses intelectuais é pensar as relações desiguais de poder através do prisma da política e da cultura.35 Edward Said, autor amplamente reconhecido como um dos fundadores do campo da crítica pós-colonial, em seu livro Cultura e Imperialismo, afirma que “os escritores estão profundamente ligados à história de suas sociedades, moldando e moldados por essa história e suas experiências sociais em diferentes graus.”36 Este autor nos mostra que as produções literárias não estão desconectadas do contexto cultural, econômico e político em que seus autores estão imersos. Sendo assim, produções como os romances e a literatura de viagens reproduziram um determinado tipo de discurso que posiciona o homem europeu e, a meu ver, também o norte-americano, bem como o “seu mundo ocidental” e seus respectivos valores, como superiores em relação ao “resto” do mundo, delimitando assim o espaço doméstico e os outros lugares. Tais produções acabam por construir imagens estereotipadas sobre este outro, enfatizando tudo aquilo que possa diferenciar o homem oriundo de um centro difusor de civilidade e progresso dos demais. Ao analisar a produção cultural e mostrar que o discurso construído por grandes escritores reproduziram valores imperialistas, Said demonstrou que a cultura não pode ser vista como algo separado da sociedade e da política. Também ancorada em teorias formuladas no campo da crítica pós-colonial, em Mary Louise Pratt,37 vemos que ao entrar em contato com o outro, o viajante ao elaborar o seu discurso apropria-se de aspectos da cultura que observa – a cultura, as falas, os costumes deste outro constituem o seu texto. Sendo assim, o viajante não é um observador neutro e portanto 35 Para uma introdução do campo da crítica pós-colonial, ver: WILLIANS, Patrick e CHRISMAN, Laura, (org.). Colonial discourse and post-colonial theory. A introduction. In Colonial discourse and post-colonial theory. A reader. New York: Colúmbia University Press, 1994. 36 SAID, Edward W. Cultura e Imperialismo.São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p.23. 37 PRATT, Mary Louise. Introdução: crítica na zona de contato, In Os olhos do império – relatos de viagem e transculturação. São Paulo: EDUSC, 1999. 14 Anais Eletrônicos do VIII Encontro Internacional da ANPHLAC Vitória – 2008 ISBN - 978-85-61621-01-8 não pode haver uma divisão estanque entre as culturas. Assim seu discurso não é só a repetição dos paradigmas científicos ou culturais europeus dos séculos XVIII e XIX, mas é também uma cunhagem, um encontro, um choque, e portanto, a mutação desses paradigmas diante de um mundo, de um conjunto de dados que esses paradigmas não supunham. A autora analisa os relatos de viagem entendendo sua construção a partir do que ela chama de zona de contato, lugar comum em que se dão os encontros entre os viajantes e os povos visitados, constituindo-se em “espaços sociais onde culturas díspares se encontram, se chocam, se entrelaçam uma com a outra, freqüentemente em relações extremamente assimétricas de dominação e subordinação.38” Pratt completa sua explicação sobre este conceito salientando que, ao olhar para essas relações estabelecidas a partir de uma perspectiva de contato, ocorre a transculturação, termo utilizado pela autora para explicar a forma como os dois lados sofrem, em alguma medida, transformações neste encontro. Assim, a autora salienta “a questão de como os sujeitos são constituídos nas e pelas suas relações uns com os outros”.39 Acredito que o relato de Thomas Ewbank está inserido naquilo que Ricardo Salvatore, em seu livro Imágenes de um Império, chama de máquina representacional. Segundo este autor, a teoria pós-colonial permitiu pensar a América do Sul em outra chave e perceber que a região foi alvo do olhar norte-americano desde a primeira metade do século XIX. Para Salvatore, os Estados Unidos pretendiam desde os seus primórdios o estabelecimento de uma espécie de império informal na América do Sul. Para tanto, possibilitaram a criação de um conjunto de representações sobre a região que incluía imagens divulgadas em feiras e exposições universais, notícias e reportagens em jornais e revistas, relatos de viagem, exposições realizadas em importantes museus dos Estados Unidos, trabalhos missionários. Ressalta-se neste empreendimento o papel central da academia norte-americana, que contribui significativamente nesse processo, endossando e divulgando imagens estereotipadas sobre a América do Sul.40 Por ser o relato de viagem o principal meio de divulgação de imagens sobre o outro nos Estados Unidos, como afirma o autor, entre 1820-1860, período que Salvatore caracteriza como um momento de engajamento mercantil,41 acredito que esta obra, como parte 38 PRATT, op.cit, p.27. Idem, p32. 40 SALVATORE, Ricardo D. “The enterprise of knowledge: representational machines of informal Empire” In LEGRAND, Catharine C.; SALVATORE, Ricardo D. (orgs.). Close Encounters of Empire: Writing the Cultural History of. U.S. – Latin American Relations. Durham: Duke University Press, 1998, pág.81. 41 Neste período, Salvatore indica que os Estados Unidos estavam focados em expandir sua rede de comércio com a América do Sul. Segundo este autor, “Suas narrativas de viagem, ‘fluxo de preços’ e artigos de jornal contribuíram para um preludial mapeamento da América do Sul dentro da órbita do conhecimento norte39 15 Anais Eletrônicos do VIII Encontro Internacional da ANPHLAC Vitória – 2008 ISBN - 978-85-61621-01-8 fundamental desta máquina representacional no período, exerceu um papel importante na produção de imagens sobre a América do Sul, colaborando para produzir um outro inferiorizado ao mesmo tempo em que reforçou a idéia de serem os Estados Unidos preeminentes entre os países das Américas42. A literatura de viagem nasce, assim, do deslocamento e do encontro de duas culturas diferentes e das trocas aí estabelecidas. Apesar das relações desiguais que marcam este encontro, devemos ter em mente que em geral, o viajante busca enxergar sobre o outro aquilo que ele quer ver. Nesse sentido, devemos entender o relato de viagem como uma produção que reflete uma mescla de representações, que envolvem opiniões e sentimentos pessoais e subjetivos, mas que também refletem uma determinada forma de compreender o mundo que, por sua vez, representa uma determinada cultura, de uma determinada época e de um determinado lugar e, como senão bastasse, devemos somar às considerações anteriores, as mudanças e matizes que esse olhar preconcebido sofre a partir de seu encontro com uma outra cultura. Sendo assim, embora seja inegável o valor desses relatos como fonte documental que nos informem sobre determinado período, não podemos perder de vista a complexidade que envolve sua produção. Bibliografia BAITZ, Rafael. Imagens da América Latina na revista National Geographic Magazine, 18951914. 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