Simbolismo do corpo na Bíblia Rafael Rodrigues da Silva Numa primeira leitura, podemos classificar esta obra como de suma importância para a compreensão da cultura e da antropologia no Antigo Israel e no ambiente dos cristianismos originários. E como tal deve fazer parte do acervo que abre novas portas para a análise dos textos bíblicos. Julgo que Simbolismo do corpo na Bíblia deve ser material de consulta junto com a grande obra de Hans Walter Wolff, Antropologia do Antigo Testamento. Aliás, esta obra pode ser vista como uma avaliação e complementação, pois traz novos aportes para a compreensão do corpo na Bíblia e na cultura semita. Logo na longa introdução, os autores apresentam algumas perspectivas de abordagem da antropologia bíblica. Tomando como referência a expressão imagem de Deus em Gn 1,26-27 e toda a compreensão na tradição cristã, deparamo-nos com diferentes correntes de interpretação: a similitude na tradição tomista-agostiniana, a mística com Gregório de Nissa, a sociológica nos tempos modernos e na teologia atual que, de certa maneira, ousou se devencilhar da especulação e domínio dogmático. Daí a grande questão sobre o que é o ser humano no âmbito da antropologia teológica. Uma primeira tentativa de resposta encontramos nos ensinamentos judaicos sobre Adão que o apresenta como o ser humano original e ao mesmo tempo o causador do pecado. Nesse quadro se expressa a possibilidade do livre-arbítrio. Outras tentativas aparecem na construção dialética entre Adão e Cristo na tradição cristã, nas especulações gnósticas e na apresentação do ser humano no intermédio entre Deus e o demônio presente na tradição islâmica. No âmbito da filosofia e da teologia, os autores apontam para as contribuições de Franz Rosenzweig e Emmanuel Lévinas para uma compreensão do corpo desde a perspectiva da filosofia da libertação. Daí toda a dimensão da corporalidade de homens e mulheres enquanto sacramento, medida de libertação e marcas de uma Igreja comprometida na experiência eclesial e teológica da América Latina. Outra tentativa de resposta sobre o que é o ser humano encontramos no esboço de uma antropologia do Antigo Testamento. Aqui os autores apontam para a importante contribuição de Hans Walter Wolff e que deve ser complementada por abordagens que superem a antropologia androcêntrica. Os autores, para além de reforçar as contribuições de Wolff e as objeções de James Barr para uma antropologia bíblica, procuram apresentar as lacunas dessas análises para a elaboração de uma leitura do corpo na Bíblia de maneira ampla e aberta. No que se refere à antropologia elaborada por Wolff, os autores apontam três exemplos de noções do corpo na tradição hebraica que são falhas na sua apresentação da antropologia do Antigo Testamento: a teologia do olho, o simbolismo do útero para fun Schroer, Silvia e Staubli, Thomas. Simbolismo do corpo na Bíblia. São Paulo: Paulinas, 2003 (Coleção Bíblia e História). Professor do Departamento de Teologia da PUC-SP. Ciberteologia - Revista de Teologia & Cultura - Ano II, n. 17 81 damentar o ser humano e a sexualidade. Como os próprios autores afirmam: “não queremos tirar o mérito de Wolff, mas chamar a atenção para os limites e as extrapolações que os métodos têm”. Por outro lado, a crítica e as objeções apresentadas pela exegese semântica de James Barr deveriam ser melhor trabalhadas no que tange à relevância dos gêneros masculinos e femininos de uma palavra e a sua construção semântica; bem como sair das armadilhas de uma leitura meramente linguística e buscar uma exegese que procura citar e situar cuidadosamente os textos bíblicos. Por fim, os autores apontam as perspectivas feministas de uma antropologia bíblica na superação do androcentrismo. Um aspecto interessante apontado pelos autores na introdução diz respeito a uma espiritualidade bíblica do corpo, perpassando desde a descrição do corpo a uma dimensão da sua beleza e fonte de oração (na perspectiva apontada pelo livro de Cântico dos Cânticos e pelo livro dos Salmos) até a sua afirmação como centro da celebração do pão, templo de Deus e espaço de eclesialidade, segundo a afirmação paulina. Vale salientar a forma de apresentação dos conceitos do corpo na Bíblia com imagens acompanhadas de suas respectivas notas e a riqueza de citações bíblicas ajudando o leitor a situar o texto. Também no final do livro encontramos, em anexo, as importantes palavras trabalhadas no livro e sua respectiva correspondência com o corpo humano. Silvia Schroer e Thomas Staubli levam o leitor a um passeio pelo corpo humano e ao mesmo tempo conduzem pela rede de significados na cultura semita. Esse é o caminho proposto pelos autores nos dez capítulos dessa belíssima antropologia bíblica. O primeiro capítulo aborda o coração como idéia central e interior do corpo humano, por isso a Bíblia descreve que Deus conhece muito bem o interior do ser humano. O leb pode estar cheio de medo, tranqüilo, desanimado ou arrogante, pode desejar algo fortemente e pode alegrar-se. É também o lugar da razão e do entendimento, dos planos secretos, da reflexão e da decisão. Assim, a ausência de coração implica a perda do bomsenso. É a insensatez, tanto na linguagem profética quanto nos ensinamentos e instruções dos sábios. A garganta (nefesh) é o órgão tratado no segundo capítulo. É a garganta visível, audível e ávida. Assim torna-se símbolo da pessoa desejosa, carente; ou seja, é a força vital que faz da pessoa um ser sequioso de vida. Daí para o entendimento de nefesh como alma é um longo caminho, que segundo os autores favoreceu muitos reducionismos e mal-entendidos, pois ficou impresso no conceito as noções advindas da filosofia grega. A idéia de alma da filosofia grega não pode ser comparada com a representação hebraica da nefesh. O terceiro capítulo vai tratar da barriga (região abdominal) como sismógrafo do sentimento. O conceito primordial é o útero (rechem), que é a sede de fortes movimentos sentimentais. Resultando assim no conceito de compaixão e misericórdia atribuídos à imagem de um Deus compassivo e misericordioso. Tema caro para a tradição hebraica e de suma importância para a construção de um rosto feminino e materno de Deus. A cabeça, que representa o ser humano por inteiro, conjugada com o rosto, os cabelos, o pescoço tem significado todo especial. Pode representar a liderança e o poder, implicando a virilidade e o erotismo através dos cabelos até a fúria e raiva representada pelo nariz. Esses órgãos e seus significados são tratados no quarto capítulo. No entanto, é nos capítulos quinto e sexto que os autores tratam de apontar os complementos na antropologia de Hans Walter Wolff, ao tratar dos olhos e do ouvido como partes totalmente integradas e ricas para a elaboração de uma teologia bíblica vetero-testamentária. O ver e o ouvir também são fundamentais para compreender o papel da profecia e da sabedoria e, sobretudo, a prática de Jesus de Nazaré. Da boca a conexão com a palavra e o louvor; das mãos, o aspecto do gesto, do ato criaCiberteologia - Revista de Teologia & Cultura - Ano II, n. 17 82 dor e da força e, dos pés a noção de caminho e pertença. O Deus bíblico é um Deus com mão e pé, um Deus que age poderosamente na História, que sofre com seu povo, que é concreto e pode ser tocado – mesmo que seja apenas nos pés. Essas são as partes do corpo e suas nuanças teológicas abordadas nos capítulos sétimo ao nono. No último capítulo é abordado o conceito de basar, carne, referindo-se ao corpo como um todo e que se torna um símbolo da humanidade querida por Deus e expressão da vida. A pessoa humana é carne – enquanto vive, é uma garganta sequiosa de vida; sua carne é jovial, alada, movida e conduzida por forças vitais. O Primeiro Testamento descreve essas forças vitais com a palavra ruach. Ruach o sopro vital, que começa a mover-se quando finalmente o faminto recebe o alimento e o sedento a bebida (1Sm 30,12;. Jz 15,19), ou ainda, com uma boa notícia, soergue a vontade de viver, que pode estar no chão, abatida ou extinta (Gn 45,27). Eis um eficiente instrumento para o estudo bíblico, para a compreensão do corpo e da cultura semita e, sobretudo, para cuidar do corpo levando em conta o respeito pelos direitos de homens, mulheres e crianças e sua espiritualidade. Uma boa leitura e a construção de valiosas reflexões é o que se pode esperar dos agentes das comunidades, das pastorais e das igrejas. Ciberteologia - Revista de Teologia & Cultura - Ano II, n. 17 83