Arq Bras Cardiol 2002; 78: 309-11. Takimura e cols Relato de Caso Origem da artéria coronária esquerda no tronco pulmonar Origem Anômala da Artéria Coronária Esquerda no Tronco Pulmonar. Relato de Um Caso em Adulto Celso K. Takimura, Allyson Nakamoto, Viviane T. Hotta, Monica F. Campos, Mário Málamo, Roberto Otsubo São Paulo, SP Origem anômala da artéria coronária esquerda no tronco pulmonar em paciente do sexo feminino, 26 anos, com diagnóstico clínico de insuficiência coronária. Descrevem-se o quadro clínico, a fisiopatologia e os aspectos diagnósticos e de tratamento cirúrgico. A origem anômala da artéria coronária esquerda no tronco pulmonar é um defeito congênito raro, estimando-se sua incidência em 1:300.000 nascidos vivos 1. A evolução clínica varia de acordo com o grau de circulação colateral intercoronariana desenvolvida após o nascimento, sendo que esse defeito possui elevada mortalidade no primeiro ano de vida e apenas 10-15% alcançam a idade adulta 2. O objetivo do presente trabalho é relatar um caso em paciente adulto com esta rara anomalia. Relato do Caso Paciente do sexo feminino, 26 anos, raça negra, policial, referia, há dois meses do diagnóstico, dor precordial em pontada, de forte intensidade, não relacionada a esforços físicos, acompanhada de cansaço aos grandes esforços e palpitações. Como antecedentes pessoais, relatava várias internações durante a infância devido a “inchaço no coração” e, em sua adolescência, apenas queixa de cansaço aos grandes esforços. Não apresentava fatores de risco para doença aterosclerótica coronariana e nem antecedentes familiares de cardiopatia. Ao exame físico apresentava-se em bom estado geral, acianótica, fácies incaracterística, peso de 57kg, estatura de 1,80m, pressão arterial de 112x70mmHg e freqüência cardía- Hospital Santa Cruz - São Paulo Correspondência: Celso Kiyochi Takimura - Serviço de Cardiologia Invasiva S. Arie Ltda – Hemodinâmica - Hospital Santa Cruz - Rua Santa Cruz, 398 - 04122-000 São Paulo, SP - Email: [email protected] Recebido para publicação em 16/6/00 Aceito em 30/5/01 ca de 80bpm. Os pulsos periféricos encontravam-se presentes, simétricos e de amplitude normais. A ausculta cardíaca revelou bulhas cardíacas rítmicas normofonéticas a dois tempos e sopro protossistólico +/4+ no mesocárdio. Semiologia do sistema respiratório não revelou anormalidades. Radiografia de tórax evidenciava um discreto aumento da área cardíaca às custas de ventrículo esquerdo e trama vascular pulmonar normal. O eletrocardiograma mostrava ritmo sinusal, freqüência cardíaca de 85bpm, eixo elétrico de QRS a -60 graus, ondas Q em D1 e aVL com ondas T invertidas nestas derivações, indicativas de área inativa em parede lateral alta e padrão sugestivo de hipertrofia ventricular esquerda. O teste ergométrico foi eficaz, sem precordialgia, mas com infradesnivelamento retificado do segmento ST de 4mm no pico do esforço, indicativo de isquemia do miocárdio. O ecocardiograma bidimensional mostrou uma dilatação discreta do ventrículo esquerdo, hipertrofia moderada simétrica do miocárdio, desempenho sistólico conservado e prolapso da válvula mitral com incompetência discreta, não revelando alterações dos vasos da base, artérias coronárias ou defeitos septais. Foi então submetida a cateterismo cardíaco para elucidação diagnóstica. O procedimento foi realizado por via femoral pela técnica de Seldinger. A manometria de câmaras direitas e esquerdas estavam normais. A artéria coronária direita era de grande calibre, tortuosa e por meio de ramos colaterais enchia de forma retrógrada a artéria coronária esquerda, que se mostrava bem desenvolvida e estava conectada ao tronco pulmonar (fig. 1). A injeção de contraste no seio de Valsalva esquerdo não demonstrou nenhuma artéria originando-se desse local (fig. 2). A ventriculografia esquerda não foi realizada pelo desencadeamento de reação alérgica de grau discreto ao contraste iodado. Com o diagnóstico de origem anômala da artéria coronária esquerda no tronco pulmonar foi indicado tratamento cirúrgico. Entretanto, a paciente recusou ser submetida ao tratamento indicado, encontrando-se até o momento com quadro clínico estável, sem uso de medicações cardiovasculares ou limitação de suas atividades diárias. Arq Bras Cardiol, volume 78 (nº 3), 309-11, 2002 309 Takimura e cols Origem da artéria coronária esquerda no tronco pulmonar Arq Bras Cardiol 2002; 78: 309-11. Discussão Fig. 1 - Cinecoronariografia em projeção oblíqua anterior direita (OAD) 36 graus evidenciando artéria coronária direita (ACD) de grande calibre, tortuosa e enchendo por meio de colaterais a artéria coronária esquerda (ACE). A artéria coronária esquerda era bem desenvolvida e estava conectada ao tronco da artéria pulmonar (TP). Fig. 2 - Projeção oblíqua anterior direita (OAD) 21 graus. Injeção de contraste no seio de Valsalva esquerdo (SVE) da aorta (AO) não evidenciou nenhuma artéria originando-se deste local. SVD- seio de Valsalva direito. 310 A origem anômala da artéria coronária esquerda no tronco pulmonar ou síndrome de Bland-White-Garland é uma anomalia rara, estimando-se sua incidência em 1:300.000 nascidos vivos e constituindo 0,24% das cardiopatias congênitas 1. Geralmente, trata-se de um defeito isolado, podendo estar associado em 5% a outros defeitos cardíacos, como comunicação interventricular, comunicação interatrial, coarctação da aorta e outras anomalias múltiplas 3. Esta anomalia apresenta duas faixas etárias de apresentação: uma forma infantil e uma forma adulta 4. A forma infantil ou imatura é caracterizada pela pobreza de circulação colateral intercoronariana, podendo resultar em infarto do miocárdio, insuficiência cardíaca ou morte súbita. Estima-se a mortalidade no primeiro ano de vida, mesmo com o tratamento clínico, em 80 a 90%. A expressão clínica da síndrome decorre das alterações evolutivas morfofuncionais da circulação pulmonar, que ocorrem após o nascimento. Nos primeiros dois meses, mantendo-se ainda elevada a pressão em território pulmonar (padrão fetal), a circulação na artéria coronária esquerda se faz de forma anterógrada, tornando o aparecimento de sintomas ou a ocorrência de morte súbita extremamente incomum nessa faixa etária. A partir de então, com a diminuição da pressão pulmonar, o fluxo sangüíneo na artéria coronária esquerda se faz de forma retrógrada, por meio dos ramos colaterais da artéria coronária direita. As manifestações clínicas são decorrentes de isquemia miocárdica: cansaço e choro às mamadas, irritabilidade, sudorese e palidez. A forma adulta ou madura pode ocorrer na criança e, necessariamente, no adulto em cerca de 10-15% dos casos e caracteriza-se por uma riqueza de circulação colateral intercoronariana, de magnitude suficiente para permitir uma sobrevida até a vida adulta, relatando-se sobrevida até os 72 anos de idade 5. Pode se apresentar de forma assintomática, com quadro de cansaço, dispnéia de esforço, angina de peito, arritmia cardíaca ou morte súbita. Cerca de 150 casos já foram descritos na literatura, incluindo cinco destes no Brasil 6-9. Wesselhoeft e cols. 2 classificaram o espectro clínico e o modo de apresentação da origem anômala da artéria coronária esquerda do tronco pulmonar em: 1) síndrome infantil: ocorre na maioria dos pacientes. Desenvolvem episódios agudos de insuficiência respiratória, cianose, irritabilidade e sudorese profusa. Essas crianças, na maioria das vezes, morrem de modo súbito antes dos dois anos de idade; 2) regurgitação mitral: caracteriza-se por sopro de regurgitação mitral, insuficiência cardíaca congestiva, cardiomegalia e arritmias atriais em crianças, adolescentes ou adultos; 3) síndrome do sopro contínuo: ocorre em adultos assintomáticos ou com angina de peito. Ausculta-se sopro contínuo decorrente do grande fluxo sangüíneo, via ramos colaterais, entre as artéria coronária direita e artéria coronária esquerda; 4) morte súbita em adolescentes ou adultos: a maioria dos pacientes é assintomática, podendo apresentar angina de peito aos esforços, arritmias cardíacas e morte súbita. Arq Bras Cardiol 2002; 78: 309-11. Takimura e cols Origem da artéria coronária esquerda no tronco pulmonar A paciente deste relato apresentou na infância quadro de insuficiência cardíaca, motivando inúmeras internações hospitalares (síndrome infantil descrito por Wesselhoeft). Após essa fase, evoluiu oligoassintomática, com adequado crescimento e desenvolvimento e exercendo normalmente suas atividades profissionais. O quadro atual de dor precordial e cansaço aos grandes esforços decorre provavelmente de isquemia miocárdica por insuficiência de colaterais associado à hipertrofia miocárdica compensatória. Na origem anômala da artéria coronária esquerda no tronco pulmonar, o eletrocardiograma apresenta, de forma característica 3, alterações compatíveis com infarto de parede ântero-lateral, freqüentemente desvio de eixo elétrico para esquerda e hipertrofia ventricular esquerda, como observado no presente caso. O ecocardiograma bidimensional com Doppler é considerado o principal método de apoio para o diagnóstico de origem anômala da artéria coronária esquerda do tronco pulmonar 4. Entretanto, este exame tem limitações. Quando existe um aumento da pressão pulmonar, no caso de neonatos e em crianças com falência ventricular esquerda, pode ocorrer em realidade um fluxo anterógrado na artéria coronária esquerda. Além disso, em crianças jovens, a artéria coronária direita pode não se apresentar dilatada o suficiente para levar à suspeita de origem anômala da artéria coronária esquerda. O ecocardiograma realizado no presente caso não evidenciou a anomalia, revelando apenas dilatação discreta do ventrículo esquerdo, hipertrofia moderada e simétrica do miocárdio e prolapso da válvula mitral com incompetência discreta. Outros exames não invasivos que têm se mostrado úteis para o diagnóstico e caracterização desta síndrome são: ecocardiograma transesofágico, ecocardiograma sob estresse farmacológico, cintilografia com tálio, tomografia computadorizada e ressonância magnética. O cateterismo cardíaco está indicado para os casos com suspeita de origem anômala da artéria coronária esquerda do tronco pulmonar em que o ecocardiograma não revele a anormalidade. Três critérios angiográficos foram estabelecidos para o diagnóstico de origem anômala da artéria coronária esquerda do tronco pulmonar: 1) enchimento retrógrado da artéria coronária esquerda; 2) conexão desse vaso com o tronco pulmonar; 3) ausência de artéria coronária esquerda originando-se da aorta 4. Neste método recomenda-se a injeção seletiva na artéria coronária direita, apresentada em geral dilatada, fornecendo ramos colaterais para a artéria coronária esquerda. Em seguida, a artéria coronária esquerda contrasta-se de forma retrógrada até a conexão com o tronco pulmonar. Pode-se ainda realizar injeção direta no tronco pulmonar com cateter balão angiográfico ou injeção seletiva na artéria coronária esquerda conectada ao tronco pulmonar. Uma vez diagnosticada origem anômala da artéria coronária esquerda no tronco pulmonar impõe-se o tratamento cirúrgico precoce para correção do defeito e prevenção das complicações e seqüelas próprias da história natural da doença 3. A técnica cirúrgica de eleição para correção desta anomalia é o reimplante com translocação da artéria coronária esquerda do tronco pulmonar para a aorta 10, o que é possível na maioria dos casos 3. Na impossibilidade da aplicação desta técnica, recomenda-se a “tunelização” ou técnica de Takeuchi, que consiste na criação de um túnel intrapulmonar de forma a conectar a artéria coronária esquerda com a aorta 11. Outras opções cirúrgicas são a simples ligadura da artéria coronária esquerda e a realização de enxertos venosos ou arteriais. A evolução clínica e recuperação funcional do ventrículo esquerdo depende do grau e extensão da disfunção ventricular pré operatória. Entretanto, independentemente da técnica utilizada, esses pacientes podem ainda apresentar arritmias cardíacas e morte súbita. Em suma, o presente caso de síndrome de Bland-White-Garland, forma adulta ou madura, chama a atenção para a possibilidade, embora rara, do diagnóstico de origem anômala da artéria coronária esquerda do tronco pulmonar em adultos jovens portadores de insuficiência mitral, insuficiência cardíaca, arritmias cardíacas ou isquemia miocárdica. Referências 1. 2. 3. 4. 5. 6. Keith JD. The anomalous origin of the left coronary artery from the pulmonary artery. Br Heart J 1959; 21: 149-61. Wesselhoft H, Fawcet JS, Johnson AL. Anomalous origin of the left coronary from the pulmonary trunk: its clinical spectrum, patology and pathophysiology, based on a review of 140 cases with seven further cases. Circulation 1968; 38: 403-25. Amaral F, Carvalho JS, Granzotti JA, Shinebourne EA. 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Angina de esforço em paciente adulto com origem anômala de artéria coronária esquerda. Arq Bras Cardiol 1990; 55: 43-5. 9. Trajano A, Rodrigues LH, Miller VM, Gottschall CA. Anomalia da coronária esquerda e infarto do miocárdio. Arq Bras Cardiol 1992; 58: 379-82. 10. Almeida SL, Mazzieri R, Berlinck MF, Souza JM, Oliveira SA. Correção cirúrgica precoce da artéria coronária esquerda com origem em tronco pulmonar: evolução tardia. Arq Bras Cardiol 1990; 55: 319-23. 11. Takeuchi S, Imamura H, Katsumoto K, et al. New surgical method for repair of anomalous left coronary artery from pulmonary artery. J Thorac Cardiovasc Surg 1979; 78: 7-11. 311