47 - bem mais que remédios

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Amoroso da Silva
Bem mais que remédios
Sorriso fácil. O rosto transbordava alegria, enquanto via entrar pelo portão de
madeira amarrado com barbante a equipe do posto de saúde. Aquela senhora com
seus oitenta e tantos anos, vestida com seu melhor vestido costurado à mão,
aguardava inquieta a visita do seu médico.
─ Bom dia doutor! - disse ela com a voz trêmula e cansada- Podem entrar. Não
reparem a bagunça.
Ecoou um “bom dia” coletivo da equipe em resposta à velhinha simpática.
Entre a equipe estava Francisco. Um aluno de medicina, que participava de
uma liga de medicina de família fundada por ele e alguns colegas da faculdade. Para
ele era difícil acreditar em toda aquela alegria diante do cenário em que a senhora
simpática se encontrava.
A casa úmida, de piso de barro batido, algumas galinhas ciscando próximo à
porta, o cachorro magrelo coçando suas sardas, dormindo tranquilo debaixo da mesa
da cozinha, ilustravam a vida simples que dona Maria levava.
Francisco estava acompanhando a equipe da Unidade de Saúde da Família.
Nesse dia, tinha sido delegado a ele, pelo seu professor, a realização da consulta de
dona Maria. Perguntou a ela como estava se sentindo. “Daquele jeito meu filho”,
respondeu a senhora voltando o olhar para baixo. A agente de saúde já tinha dito que
dona Maria, uma senhora de oitenta e sete anos, viúva, mãe de nove filhos, morava
com um de seus filhos, o mais novo, alcóolatra, e que só aparecia na casa para
dormir...
Enquanto a enfermeira, organizava a papelada. O futuro médico parou para
observar o cenário e tentar entender o porquê daquela situação. “Por que ninguém
estava ali para acompanhar aquela senhora, fraca, com pneumonia e que mostrava
uma independência forçada pelo abandono?” - questionava-se Francisco.
─ Onde estão seus outros filhos, dona Maria?
De repente, o sorriso deu lugar a um rosto triste...
─ Cada um tem sua vida doutor! Pouco aparecem aqui - respondeu ela.
Aquelas palavras ficaram dando voltas na cabeça de Francisco. Segundos, que
pareciam horas, passaram antes que ele pudesse formular uma nova pergunta. Ele
não entendia por que aquela vida que dona Maria levava o comovia tanto. Aliás, ele
seria médico um dia e aquele tipo de situação seria rotina em sua vida e a emoção
não podia tomar conta dele em cada consulta, pensava ele. Lembrou que tinha lido
algo sobre transferência e contratransferência no primeiro ano de medicina, mas
continuava sem entender por que estava tão mal. O pensamento de compaixão
misturava-se ao sentimento de revolta por tanto descuido.
─ Nós criamos os filhos para o mundo. Disse a velhinha antes que Francisco
pudesse fazer outra pergunta.
─ A senhora deveria ser o mundo deles...
Uma pigarreada de Vivald, médico de família e professor, interrompeu a fala de
Francisco, que continuou a consulta apesar de tantos questionamentos, que não
podiam ser respondidos.
Durante o retorno para a centro de saúde, Francisco ficou imaginando a vida
daquela senhora. E os porquês ainda o incomodavam.
─ Tudo bem Francisco? - Perguntou o professor.
─ Acho que sim!
─ É normal nos sentirmos assim, Francisco. Nós, como médicos, temos muito
a fazer pela população. As nossas visitas têm esse papel de preencher alguns vazios
que ficam durante as consultas no ambulatório. Podemos curar, podemos prevenir,
podemos minimizar o sofrimento das pessoas. Entretanto, nunca poderemos assumir
o papel que a família deveria exercer na vida do doente. Dona Maria é uma mulher
com força de vontade, mas a memória já não é a mesma, omite muitas coisas nas
consultas que realiza no posto e a ausência de um familiar nas consultas que ela faz
é uma barreira que pode ser vencida com a visita em sua casa. Visitá-la nos permite
entender os inúmeros porquês que também existem em nossas cabeças. Não pense
que essas dúvidas são exclusividades suas. Pensar no paciente como um todo nos
permite elaborar tratamentos mais adequados e mais efetivos.
─ São muitos pacientes, professor. Como nós podemos atender a todos de
maneira integral?
─ Sozinhos não conseguiremos, meu caro. Por isso, somos uma equipe.
Quando dona Maria esteve no posto, os seus sintomas e exames conduziram-me ao
diagnóstico de pneumonia. Mas foi a agente comunitária que percebeu que dona
Maria não estava seguindo o tratamento estipulado. São esses os problemas que
podemos e devemos solucionar como equipe.
─ Essas visitas são realidades de poucos, professor. Esse é um pensamento
utópico que está na cabeça de poucos.
─ Os primeiros passos já foram dados, Francisco. Prova disso é você,
acadêmico de medicina e que está aqui realizando visitas, percebendo que a saúde é
bem mais que ausência das doenças que os livros descrevem. Percebendo que a
saúde de pessoas como dona Maria depende muita mais de que diagnósticos e
remédios. Você percebeu isso, não é?
Francisco acenou que sim. Com dúvidas menores apenas que a vontade de
ser médico!
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