CONTROLE PENAL NA OBRA DE MONTESQUIEU1

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BOLLMANN, Vilian. Controle penal na obra de montesquieu. Revista Eletrônica Direito e Política, Itajaí,
v. 1, n. 1, 3º quadrimestre de 2006. Disponível em: www.univali.br/direitoepolitica
CONTROLE PENAL NA OBRA DE MONTESQUIEU1.
Vilian Bollmann2
Sumário
Introdução. Montesquieu e o Controle Penal. Conclusão. Referência das
fontes citadas.
Resumo
O estudo aborda os fundamentos do controle social mediante repressão penal.
São investigados os princípios arrolados sobre o tema por Montesquieu na sua
obra “O Espírito das Leis”. Examina-se, no texto constitucional vigente, se este
conjunto de princípios é refletido em dispositivos normativos. A partir desta
análise, busca-se demonstrar que algumas das clássicas lições foram
incorporadas pela Constituição da República de 1988.
Palavras-chave: Direito Penal. Direito Constitucional. Controle Social.
Montesquieu.
Introdução
Parece evidente que há uma crescente utilização de normas penais como
instrumentos de controle social, implicando criminalização exorbitante de
diversas
condutas
que,
intuitivamente,
não
careceriam
deste
tipo
de
tratamento jurídico. Este fenômeno, contudo, tem, em diversos casos,
ocorrido não como fruto de um planejamento racional e orientado a objetivos
claros e definidos, mas sim, e infelizmente, como reações passionais
imediatamente posteriores a fatos de repercussão na mídia.
1
Artigo produzido como requisito de conclusão da disciplina Política Criminal e Controle
Social, Linha de Pesquisa Produção e Aplicação do Direito, sob a orientação do Professor
Doutor João José Leal.
2
Mestrando do Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da Universidade do Vale do
Itajaí. sob a orientação do Professor Doutor Moacyr Motta da Silva. Juiz Federal
Substituto. Autor dos livros “Novo código civil: princípios, inovações na parte geral e
direito intertemporal”, “Juizados Especiais Federais: comentários à legislação de
regência” e “Hipótese de Incidência Previdenciária e temas conexos”. Endereço
eletrônico: [email protected].
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Neste momento, além de uma pausa necessária à reflexão sobre os resultados
de tais alterações legislativas, faz-se interessante a retomada das lições dos
clássicos, comparando-os aos fundamentos da norma positivada. Desta
operação podem nascer considerações úteis que cumpram o objetivo de uma
atuação orientada pela Política Jurídica 3 , servindo de norte para atuação do
legislador e do julgador4. Afinal, a evolução do Direito e da Filosofia do Direito
aporta
no
surgimento
de
uma
concepção
chamada
pós-positivista
5
,
caracterizada, dentre outros fatores, pelo reconhecimento da normatividade
dos princípios jurídicos e num entrelaçamento do Direito com a Moral e a
Política, surgindo, daí, a idéia de “direito como integridade”.
Esta concepção atua em dois planos políticos: o legislativo e o judicial. Para o
legislador, estipula-se um dever de editar leis moralmente coerentes,
observando princípios e evitando criação de leis fundadas em critérios
3
MELO identifica a Política Jurídica como uma disciplina própria para tratar do “direito que
deve ser”, ou seja, do processo criativo do Direito. Essa busca, contudo, não pode
simplesmente pregar a desobediência civil, pois implicaria desconstrução do Estado de
direito, e nem pode ficar apegada ao formalismo do positivismo; ao contrário, deve
harmonizar essas posições, procurando encontrar na consciência Jurídica as
representações do imaginário social que identifiquem a sustentação, ou não, do princípio
vital da norma. Para ele, “a Política Jurídica, vale insistir, tem sua preocupação básica
não com o direito vigente mas com o direito desejado. Sendo o conteúdo da uma norma
um pressuposto para o juízo do justo, pode-se afirmar que não há justiça que não seja
uma valoração ética” .MELO, Osvaldo Ferreira de. Fundamentos da Política Jurídica.
Porto Alegre: Sergio Fabris, 1994. p. 16 e 117).
4
“A função epistemológica da Política Jurídica recai em duas atividades distintas. A
primeira se realiza na crítica ao direito vigente, cujos princípios, normas e enunciados
devem ser cotejados com critérios racionais de Justiça, Utilidade e Legitimidade, sem que
seja preciso apelar para quaisquer justificações de natureza metafísica ou para
proposições neo-anarquistas que possam desconstituir o território duramente já
conquistado do Estado de Direito. A segunda atividade é buscar, em fontes formais ou
informais, as representações jurídicas do imaginário social que se legitime na Ética, nos
princípios de Liberdade e Igualdade e na Estética da convivência humana” (MELO,
Osvaldo Ferreira de. Fundamentos da Política Jurídica, p.131)
5
Por pós-positivismo entende-se “o movimento crítico, que encerra o predomínio da
dogmática jurídica tradicional, [...] abre-se [...] duas vertentes. Uma delas é
desenvolvida por autores que buscam na moral uma ordem valorativa capaz de romper
os limites impostos pelo ordenamento jurídico positivo [...] amparam-se,
fundamentalmente, na argumentação capaz de legitimar as posições assumidas pelos
intérpretes [...] os nomes de Chaïm Perelman, Ronald Dworkin, Jürgen Habermas e
Robert Alexy [...]. Em outra banda encontram-se autores que abraçam o pragmatismo,
como [...] Friedrich Muller, Peter Habërle e Castanheira Neves“ (CAMARGO, Margarida
Maria Lacombe, Hermenêutica e Argumentação: uma contribuição ao Estudo do
Direito, p. 136-138).
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arbitrários ou aleatórios6. No plano judicial, requer que, até onde seja possível,
nossos juízes tratem nosso atual sistema de normas públicas como se este
expressasse e respeitasse um conjunto coerente de princípios e, com esse fim,
que interpretem essas normas de modo a descobrir normas implícitas entre e
sob as normas explícitas7.
Diante disso, buscar-se-á, neste artigo, dentro dos limites inerentes ao
espaço, identificar o pensamento de MONTESQUIEU na sua clássica obra “O
Espírito das Leis” que sirva como fundamento para o controle penal. Para isso,
[1] será apresentada, sinteticamente, a obra e o contexto do qual se originou;
e, em seguida, [2] serão descritas as assertivas do referido autor sobre o
tema penal, estabelecendo, em cada caso, [3] as aproximações entre aquele
pensamento e o texto constitucional vigente no Brasil hoje.
Montesquieu e o controle penal
MONTESQUIEU nasceu em 18 de Janeiro de 1689 e faleceu em 10 de
Fevereiro de 1755. Escreveu várias obras, como Cartas persas (1721),
Considerações sobre as causas da grandeza dos romanos e de sua decadência
(1734) e do Espírito das leis (1748), sendo esta última a mais conhecida e
influente. Muito embora esta obra seja mais reconhecida pelas contribuições
que
deu
à
formatação
do
Estado
Moderno,
ela
exerceu,
ainda
que
indiretamente, forte influência no pensamento penal contemporâneo, pois nela
constaram diversos princípios que serviram de base para a aclamada obra de
BECCARIA (“Dos delitos e das penas”).
Publicada cerca de cinqüenta anos antes da Revolução Francesa, “O Espírito
das Leis” nasceu em um momento histórico no qual se consolidava o processo
de separação da legitimidade do poder estatal em relação à Igreja. Neste
6
DWORKIN, Ronald. O império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 215-223.
7
DWORKIN, Ronald. O Império do Direito, p. 261.
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processo, o direito natural deixa de ter uma matriz divina para passar a ser
fundado na Razão.
Não é por outro motivo que MONTESQUIEU inicia sua obra apontando a
existência de certas distinções necessárias, esclarecendo que a virtude
expressa em seu texto “[não] é uma virtude moral, nem uma virtude cristã, é
a virtude política; e este é o motor que move o governo republicano, como a
honra é o motor que move a monarquia. Logo, chamei de virtude política o
amor à pátria e à igualdade”8.
Após adiantar que entende haver uma razão para os eventos do mundo9 (ou
seja, admitindo o princípio filosófico da razão suficiente ou da causalidade10),
MONTESQUIEU analisa como devem ser as leis humanas. Elas devem seguir
não só a razão, mas também o princípio de governo do Estado que as
estabeleceu. Na parte final de sua obra ele deixa claro que há também uma
distinção entre a lei humana e a lei de deus 11 . A partir desta distinção ele
traçará alguns aspectos sobre as relações que existem entre o tamanho
geográfico, a população, o clima e outros fatores com o Estado Político e de
8
MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Baron de. O espírito das Leis. Tradução: Cristina
Murachco. São Paulo: Martins Fontes, 1996. p. 3.
9
“As leis, em seu significado mais extenso, são as relações necessárias que derivam da
natureza das coisas [...] Existe, portanto, uma razão primitiva; e as leis são as relações
que se encontram entre ela e os diferentes seres, e as relações destes seres entre si.”
(MONTESQUIEU, Charles de Secondat. O espírito das Leis. p. 11).
10
Por este princípio, tudo o que existe tem uma razão e esta razão pode ser conhecida,
seja ela necessária e universal, seja ela específica e casual (CHAUÍ, Marilena. Convite à
filosofia, p. 60-61).
11
Para MONTESQUIEU, “[os] homens são governados por diversas sortes de leis: pelo
direito natural; pelo direito divino, que é o da religião; pelo direito eclesiástico [...] que é
o da ordem da religião; pelo direito das gentes, que podemos considerar como o direito
civil do universo, no sentido de que cada povo é um de seus cidadãos; pelo direito
político geral[...]. Logo, exigem diferentes ordens de leis, e a sublimidade da razão
humana consiste em saber a qual destas ordens estão principalmente relacionadas as
coisas sobre as quais se deve legislar, e em não confundir os princípios que devem
governar o homem. [...]. Todos concordam que as leis humanas são de natureza
diferente das leis da religião, e isto é um grande princípio; mas este mesmo princípio
está submetido a outros que é preciso procurar. [...] A natureza das leis humanas é
estarem submetidas a todos os acidentes que acontecem e variarem na medida em que
as vontades dos homens mudam; pelo contrário, a natureza das leis da religião consiste
em nunca variarem. [...] A força principal da religião vem de que se acredita nela; a
força das leis humanas vem de que são temidas.” (MONTESQUIEU, Charles de Secondat.
O espírito das Leis, p. 501-502).
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que forma ele controla a sua força. O poder político pode ser estruturado em
três formas principais: a República (democrática ou aristocrática), a Monarquia
e o Estado Despótico12.
A par dessas colocações (hoje clássicas no campo da Filosofia Política),
MONTESQUIEU traça um modelo de estrutura do Estado que evite a
concentração de poder típica do absolutismo. Ele identifica a existência de três
tipos de poder: o legislativo, o executivo das coisas que dependem do direito
das gentes e o executivo daquelas que dependem o direito civil; admitiu,
ainda, que o poder legislativo fosse exercido por representantes 13 . Embora
tenha dividido o poder em três, MONTESQUIEU também ponderou sobre a
necessidade de um poder regulador para o legislativo e executivo, formado
por um grupo de nobres que teriam unicamente o poder de veto e de, em
certos casos (para abrandar o rigor da lei), reformar decisões judiciais
aplicando a eqüidade14.
Ocorre
que,
embora
seja
mais
conhecida
e
notória
por
conta
das
considerações acima delineadas, a obra “Espírito das Leis” traz, também,
diversos princípios de Direito Penal que podem ser lidos à luz da atualidade
sem perder sua coerência lógica.
A
importância
de
um
correto
delineamento
das
normas
penais
era
preocupação de MONTESQUIEU, para quem a liberdade política era vista com
relação à constituição (distribuição dos três poderes), mas
12
também com
“Existem três espécies de governo: o REPUBLICANO, o MONÁRQUICO e o DESPÓTICO.
Para descobrir sua natureza, basta a idéia que o homens menos instruídos têm deles.
Suponho três definições, ou melhor, três fatos: “o governo republicano é aquele no qual
o povo em seu conjunto, ou apenas uma parte do povo, possui o poder soberano; o
monárquico, aquele onde um só governa, mas através de leis fixas e estabelecidas; ao
passo que, no despótico, um só, sem lei e sem regra, impõe tudo por força de sua
vontade e de seus caprichos” (MONTESQUIEU, Charles de Secondat. O espírito das leis.
p. 19).
13
MONTESQUIEU, Charles de Secondat. O espírito das leis. p. 167-171/173-174.
14
MONTESQUIEU, Charles de Secondat. O espírito das leis. p. 172/175.
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relação ao cidadão (segurança ou não e a opinião que se tem sobre esta
segurança)15. Segundo suas palavras,
A liberdade política consiste na segurança, ou pelo menos na opinião
que se tem de sua segurança. Esta segurança nunca é mais atacada do
que nas acusações públicas ou privadas. Assim, é da excelência das leis
criminais que depende principalmente a liberdade do cidadão [...]
quando a inocência dos cidadãos não está garantida, a liberdade
também não o está16.
Assim, embora não seja uma conexão direta, é possível dizer que, ao
afirmarem o primado da observância da lei ante à persecução criminal, essas
afirmativas de MONTESQUIEU reforçam, no âmbito penal, a aplicação do
princípio de que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o
devido processo legal” (art. 5º, LIV, da Constituição da República Federativa
do Brasil – CR). Além deste princípio, há relação direta também com a
vedação de retroatividade das leis (“a lei penal não retroagirá, salvo para
beneficiar o réu”, Art. 5º, XL), já que seus efeitos práticos remontam à da
segurança de que os atos hoje praticados não serão, no futuro, alvo de
perseguição.
Na esfera criminal, a primeira consideração imediatamente decorrente da idéia
de separação de poderes é a de que deve haver uma distinção entre quem
acusa e quem julga, isto é, há uma clara defesa daquilo que, atualmente, é
chamado de princípio acusatório. A união destas funções numa única pessoa
seria característica de governos despóticos (para os quais a virtude política e
princípio de funcionamento é unicamente o medo).
Com efeito, MONTESQUIEU diz:
Nos Estados despóticos, o próprio príncipe pode julgar. Não o pode nas
monarquias: a constituição seria destruída, os poderes intermediários
dependentes varridos; [...]. Eis aqui outras reflexões. Nos Estados
Monárquicos, o príncipe é a parte que persegue os acusados e faz com
que sejam castigados ou absolvidos; se ele próprio julgasse, seria juiz e
15
MONTESQUIEU, Charles de Secondat. O espírito das leis. p. 197.
16
MONTESQUIEU, Charles de Secondat. O espírito das leis, p. 198.
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parte. Nestes mesmos Estados, o princípio possui muitas vezes os
confiscos: se ele julgasse os crimes, seria mais uma vez juiz e parte.
Além do mais, perderia o mais belo atributo de sua soberania, que é o
de
agradar;
seria
insensato
que
ele
fizesse
e
desfizesse
seus
julgamentos. [...]. Possuímos hoje uma lei admirável: é esta que
determina que o príncipe, estabelecido par fazer executar as leis,
coloque um oficial em cada tribunal, para perseguir, em seu nome,
todos os crimes de sorte que a função dos delatores não é conhecida
entre nós e, se este vingador público fosse suspeito de abusar de seu
ministério, obriga-lo-íamos a nomear seu denunciante
17
.
Como concretização disso, vislumbra-se, no texto constitucional vigente, o
deslocamento da titularidade da ação penal pública para órgão que não integra
o Poder Judiciário: o Ministério Público18. Aliás, isso está expresso na obra de
MONTESQUIEU quando, ao criticar o rito sumário levado a cabo na Turquia de
sua época, afirma que
[...] nos estados moderados, onde a cabeça do menor cidadão é
considerável, não se retira dele sua honra e seus bens sem um longo
exame: ele só é privado de sua vida quando é a própria pátria que o
está acusando; e ela só o acusa deixando-lhe todos os meios possíveis
de se defender19.
Desta lição extrai-se igualmente uma conexão com os princípios da ampla
defesa e do contraditório20.
Outra idéia fundamental, hoje consagrada pelo princípio da legalidade, é a de
que a aplicação das penas não pode decorre de arbítrio, mas sim, e
unicamente, em função da lei21. Ou seja,
17
18
19
20
MONTESQUIEU, Charles de Secondat. O espírito das Leis, p. 89/92.
Veja-se Art. 129, I, da CR: “São funções institucionais do Ministério Público: promover,
privativamente, a ação penal pública, na forma da lei;”. Ainda que haja inércia deste
órgão, a Constituição trouxe, como solução, não a iniciativa pelo Poder Judiciário, mas
sim a do próprio ofendido: “será admitida ação privada nos crimes de ação pública, se
esta não for intentada no prazo legal” (Art. 5º, LIX). Mesmo neste caso, porém, observase não só a separação de funções, mas também o primado da lei e do devido processo
legal.
MONTESQUIEU, Charles de Secondat. O espírito das leis. p. 86.
“[...] aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são
assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”
(art. 5º, LV, da CR).
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[é] o triunfo da liberdade quando as leis criminais tiram cada pena da
natureza particular de cada crime. Toda a arbitrariedade acaba; a pena
não vem do capricho do legislador, mas da natureza da coisa; e não é o
homem que faz violência ao homem22.
A relação com o texto constitucional é clara e imediata, seja pela afirmação do
princípio geral da legalidade (“ninguém será obrigado a fazer ou deixar de
fazer alguma coisa senão em virtude de lei”, Art. 5º, II), seja pelos princípios
especificamente penais, ou seja, o da reserva legal e anterioridade da lei (“não
há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação
legal”, Art. 5º, XXXIX).
MONTESQUIEU, usando a razão como guia para o descobrimento dos
princípios que devem reger a edição destas leis, aponta que o fundamento
para a cumprimento das leis penais não é o tamanho ou tipo da pena, mas
sim a certeza de que ela será aplicada. A função da pena não é o de provocar
o medo e nem o de impor a punição, mas sim o de prevenir os delitos23.
Nas palavras dele,
[a] experiência demonstrou que nos países onde as penas são suaves o
espírito do cidadão é marcado por elas como o é em outros lugares
pelas grandes. Surge algum inconveniente num Estado: um governo
violento quer imediatamente corrigi-lo e, em vez de pensar em mandar
executar as antigas leis, estabelece uma pena cruel que acaba com o
mal no instante. Mas os mecanismos do governo se desgastam: a
imaginação acostuma-se com esta grande penalidade, assim como se
tinha acostumado com a menor; e, como se diminuiu o temor por esta,
é-se forçado a estabelecer a outra para todos os casos. [...] Não se
21
22
23
“Nos Estados despóticos, não há lei: o juiz é ele mesmo sua própria regra. Nos Estados
monárquicos, existe uma lei: e onde ela é precisa o juiz seque-a; onde ela não o é, ele
procura seu espírito. No governo republicano, é da natureza da constituição que os juízes
sigam a letra da lei. Não há cidadão contra quem se possa interpretar uma lei quando se
trata de seus bens, de sua honra ou de sua vida” (MONTESQUIEU, Charles de Secondat.
O espírito das leis. p. 87).
MONTESQUIEU, Charles de Secondat. O espírito das Leis, p. 199.
“A severidade das penas é mais conveniente ao governo despótico, cujo princípio é o
terror, do que à monarquia ou à república, que têm como motor a honra e a virtude[...]
Nesses estados, um bom legislador estará menos atento em punir os crimes do que em
preveni-los; estará mais aplicado em morigerar do que em infligir suplícios”
(MONTESQUIEU, Charles de Secondat. O espírito das leis. p. 93).
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devem conduzir os homens pelas vias extremas: devem-se proteger os
meios que a natureza nos dá para conduzi-los. Examinemos a causa de
todos os relaxamentos e veremos que eles vêm da impunidade dos
crimes e não da moderação das penas24.
Para ele, “é essencial que as penas se harmonizem, porque é essencial que se
evite mais um grande crime do que crime menor, aquilo que agride mais a
sociedade do que aquilo que fere menos”25. As penas devem, portanto, seguir
uma proporcionalidade, sendo distintas para cada tipo de crime. Segundo
MONTESQUIEU, “é um grande mal, entre nós, fazerem sofrer a mesma pena
aquele que rouba nas estradas e aquele que rouba e mata. É claro que, para a
segurança pública, deveria ser colocada alguma diferença na pena”26.
No que se refere aos tipos de pena, contudo, MONTESQUIEU aponta que há
quatro classes de crimes, cada um tendo um tipo mais apropriado de pena;
são os [1] crimes contra a religião, cuja sanção deve ser privação das
vantagens da religião, como a expulsão dos templos; [2] crimes contra os
costumes implicam penas como a obrigação de se esconder, a infâmia pública
ou a expulsão da sociedade; [3] crimes contra a tranqüilidade que, por
ofenderem outros cidadãos, exigem prisão, correção ou outras que tragam de
volta a ordem e [4] os crimes contra a segurança, nos quais há uma distinção:
que, se foi tirada a vida de um homem, então a pena merecida é a morte, mas
se for lesado o patrimônio, então o remédio mais adequado é a perda de bens
e “deveria ser assim se as riquezas fossem comuns ou iguais. Mas, como são
aqueles que não possuem bens que o mais das vezes atacam bens dos outros,
foi preciso que a pena corporal suprisse a pena pecuniária”27.
Desse corolário da necessidade de ligação da sanção à natureza do ato
cometido seguem as disposições constitucionais que tratam das penas
admissíveis e das banidas pelo ordenamento. Assim, de um lado, “a lei
24
MONTESQUIEU, Charles de Secondat. O espírito das leis. p. 95.
25
MONTESQUIEU, Charles de Secondat. O espírito das Leis, p. 100-101.
26
MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Baron de. O espírito das leis. p. 101.
27
MONTESQUIEU, Charles de Secondat. O espírito das leis. p. 199-201.
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regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes: a)
privação ou restrição da liberdade; b) perda de bens; c) multa; d) prestação
social alternativa; e) suspensão ou interdição de direitos;” (art. 5º, XLVI), e,
de outro, “não haverá penas: a) de morte, salvo em caso de guerra declarada,
nos termos do art. 84, XIX; b) de caráter perpétuo; c) de trabalhos forçados;
d) de banimento; e) cruéis;” (Art. 5º, XLVII).
Há fundamentos, na obra de MONTESQUIEU, também para as diversas formas
de extinção da pena. Para ele,
quando não há diferença na pena, deve-se colocar essa diferença na
esperança de perdão. [...] As cartas de indulto são um grande recurso
dos governos moderados. Este poder de perdoar que o príncipe possui,
executado com sabedoria, pode ter efeitos admiráveis28.
No campo constitucional, há previsão desta faculdade para o governante, pois
“Compete privativamente ao Presidente da República [...]- conceder indulto e
comutar penas, com audiência, se necessário, dos órgãos instituídos em lei”
(art. 84, XII, da CR); o constituinte, porém, traçou restrições a este poder,
pois
a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia
a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o
terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo
os
mandantes,
os
executores
e
os
que,
podendo
evitá-los,
se
omitirem(art. 5º, XLIII).
Conclusão
A partir do texto apresentado, é possível traçar algumas premissas que,
embora não conclusivas no sentido de uma verdade inalcançável, permitem
supor que a observância de princípios racionais pelo Direito Penal pode ser
alcançada pela utilização de clássicas lições quando da interpretação dos
textos constitucionais atuais. A partir disso, cresce a importância das
28
MONTESQUIEU, Charles de Secondat. O espírito das Leis, p. 10.
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observações de MONTESQUIEU, que, fundando um pensamento racional para
a política criminal, identificou na lei penal a função de prevenção do crime
como instrumento para alcançar a paz social, desde que alicerçada na garantia
da liberdade política do sentimento de segurança do cidadão. Esta sensação,
contudo, só é alcançada dentro de um Estado de Direito fundado na
observância das leis pelo Estado; leis que, por sua vez, devem estar imersas
em respeito ao cidadão.
Referência das fontes citadas
BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Tradução: J. Cretella Jr. e
Agnes Cretella. 3 ed., revista. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.
BOBBIO, Norberto. Estado, Governo, Sociedade; para uma teoria geral
da política. 2 ed. Trad. Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1987.
BRASIL. Constituição (1988). (Atualizada até a Emenda Constitucional n.°
45, de 08 de dezembro de 2004 (D.O.U. de 31/12/2004)). Disponível em:
<http://www.senado.gov.br/sf/legislacao/const/>. Acesso em 10/03/2005.
CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e Argumentação:
uma contribuição ao Estudo do Direito. 3 ed. ver. Atual. Rio de Janeiro:
Renovar, 2003.
CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 1997.
DWORKIN, Ronald. O império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
MELO, Osvaldo Ferreira de. Fundamentos da Política Jurídica. Porto
Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1994.
MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Baron de. O espírito das Leis.
Tradução: Cristina Murachco. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
640
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