1. Crianças: os sujeitos das pesquisas antropológicas

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CRIANÇAS: os sujeitos das pesquisas antropológicas
Patrícia dos Santos BEGNAMI*
RESUMO
A imagem recorrente da infância é a da fragilidade. Crianças são vistas como seres
dependentes, incompletos e em socialização e que, portanto, necessitam de
proteção. Esse artigo procura desmistificar, com uma breve revisão bibliográfica, a
ideia de uma criança natural e universal, demonstrando teoricamente como se deu a
construção da noção de criança nas ciências sociais. O artigo se propõe, então, a
contribuir com os estudos da antropologia da criança e ampliá-los, pois grandes são
os esforços dos estudiosos das crianças para legitimá-las enquanto sujeitos das
pesquisas. Porém, grandes também são as dificuldades de reconhecê-las enquanto
tal. Com esse texto, pretendo ressaltar que dialogamos com a antropologia
enquanto disciplina e não apenas para uma antropologia da criança, pois
compartilhamos os mesmos conflitos e dilemas antropológicos; a diferença é que
temos as crianças como sujeitos interlocutores das pesquisas.
PALAVRAS-CHAVE: Antropologia. Antropologia da criança. Crianças. Sujeitos.
As ciências sociais dariam um passo importante no seu
desenvolvimento se reconhecessem que são elas (as crianças),
nos dias de hoje, os principais portadores de crítica social.
(MARTINS, 1993).
Esse artigo se propõe a contribuir com os estudos da antropologia da criança e ampliálos, pois grandes são os esforços dos estudiosos das crianças para legitimá-las enquanto
sujeitos das pesquisas. Porém, grandes também são as dificuldades de reconhecê-las
enquanto tal. Com esse texto, pretendo ressaltar que dialogamos com a antropologia
enquanto disciplina e não apenas para uma antropologia da criança, pois
compartilhamos os mesmos conflitos e dilemas antropológicos; a diferença é que temos
as crianças como sujeitos interlocutores das pesquisas.
O texto é resultado de diálogos e discussões em torno de uma pesquisa realizada entre
2004 e 2007, que resultou na dissertação de mestrado em Antropologia Social na
Universidade Federal de São Carlos e que teve por objetivo ampliar e aprofundar a
análise sobre periferia, tomando como objeto de estudos a favela do Gonzaga,
localizada na cidade de São Carlos, interior do estado de São Paulo, bairro
estigmatizado pela população são-carlense, que o vê como um “bairro problema”, local
em que reside a maioria dos criminosos que atuam na cidade, pois é um dos bairros que
abriga a população de baixa renda. Através da etnografia focalizada num estudo de
caso, a favela do Gonzaga, problematizei a relação coextensiva entre dois universos
geracionais: o adulto e o infantil, investigando a sociabilidade no bairro, tomando como
objetos de análise a rua, a relação entre as crianças, a relação das crianças com os pais e
com a parentela. Em suma, investiguei através da pesquisa de campo como as crianças
estão comprometidas com a configuração e a rede de práticas sociais no bairro e como
isso está representado e reproduzido no comportamento e na sociabilidade infantil e nas
suas práticas lúdicas. Nesse trabalho de pesquisa as crianças ocuparam lugar central,
*
Mestre em Antropologia Social (PPGAS-UFSCar, São Carlos, 2008). Doutoranda do Programa de
Antropologia Social da Universidade Federal de São Carlos. E-mail: [email protected]
BEGNAMI, P. S. Crianças: os sujeitos das pesquisas antropológicas.
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elas foram as interlocutoras da pesquisa e tratadas como sujeitos capazes de representar
e significar suas experiências, como atores e agentes sociais que significam e não
apenas ressignificam seu mundo social, que apreendem o mundo e o representam a sua
maneira. Enfim, nessa pesquisa procurei mostrar a favela do Gonzaga pelos olhos das
crianças.
As crianças do Gonzaga fazem “besteirinhas”. Elas chamavam de besteirinhas as suas
relações sexuais. Esse assunto foi trazido pelas próprias crianças em uma das nossas
várias conversas. Conversávamos sobre suas famílias, assunto pelo qual me interessava,
já que estava preocupada em entender a comunicação entre o mundo adulto e o infantil,
quando uma das crianças relatou que via a mãe quase todos os dias “dando” no sofá da
sala. Esse foi o ponto de partida para outros relatos, elas não só contavam sobre o que
viam em suas casas, como passaram a relatar as suas próprias experiências sexuais.
A maioria das besteirinhas era entre as próprias crianças, geralmente entre irmãos e
irmãs, mas as crianças mais velhas preferiam com adultos. Nenhum detalhe me era
poupado, relatavam minuciosamente o que acontecia e diversas vezes me pediam
conselhos sexuais. Certa vez as crianças quiseram chamar um jovem morador do bairro
para me mostrar a filmagem de uma das besteirinhas gravada em um celular para provar
aquilo que faziam. No entanto, me recusei a ver. Esse assunto me incomodava, pois não
sabia o que fazer com esses dados em mãos, como trabalhar com eles, por ser algo
delicado de se falar, pois o pressuposto é que as crianças não têm vida sexual.
Em uma das discussões da pesquisa, embora ainda não tivesse problematizado esses
dados, eles foram apenas citados, as preocupações em torno desses relatos eram
baseadas na ética, em como expor publicamente esses dados e pensar se, no caso das
relações sexuais entre as crianças mais velhas e os adultos, isso seria classificado como
estupro ou abuso. Pois mesmo com o consentimento da criança, a lei brasileira classifica
como estupro toda relação sexual com criança menor de catorze anos, isso porque nossa
legislação proíbe relações sexuais entre adultos e crianças/adolescentes.
A questão era o que fazer com isso em mãos. Denunciar? Ocultar? Seríamos cúmplices
dessas situações? Eram questionamentos de como encarar tal fato. Em uma outra vez fui
questionada se essas crianças não mentiam e se eu sempre acreditava naquilo que elas
me diziam. Essa questão me deixou paralisada durante um bom tempo, o que me
proporcionou refletir sobre o “problema” de termos as crianças como interlocutoras das
pesquisas antropológicas**. Pois a mentira faz parte do jogo social, tanto de adultos
quanto de crianças, mas aqui não era disso que se tratava. Parecia mais ser uma questão
moral em torno dos interlocutores, sobre o estatuto das crianças nas pesquisas e sobre
suas verdades.
Para nós, estudiosos das crianças, essa questão está resolvida, sabemos que elas são
sujeitos legítimos das pesquisas e temos um campo de pesquisa consolidado,
principalmente nos estudos com crianças indígenas, mas fora desse campo de pesquisa
**
Essa questão e minhas discussões com meu orientador, professor Dr. Luiz Henrique de Toledo, e com
meus colegas do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Antropologia da Criança (LEPAC), da
Universidade Federal de São Carlos, coordenado pela professora Dra. Clarice Cohn, me motivaram a
escrever este texto.
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parece ser difícil reconhecê-las enquanto sujeitos desvinculados do universo da fantasia
e levá-las a sério no sentido que nós antropólogos das crianças nos propomos.
A infância e as crianças nas Ciências Sociais
A imagem geral acerca da infância a relaciona fundamentalmente à ideia de fragilidade
e, portanto, à necessidade de proteção. A infância é vista como uma das etapas da vida
humana, época do crescimento em que as crianças são dependentes dos pais e em que
aprendem através da educação: “[...] a criança é o que não fala (infans), o que não tem
luz (a-luno), o que não trabalha, o que não tem direitos políticos, o que não tem
responsabilidade parental ou judicial, o que carece da razão”. (SARMENTO, 2003, p.
53). Dessa forma, percebemos que essas visões são imagens em negativo das crianças,
pois são tratadas como seres incompletos, seres em formação e em socialização e que
necessitam de cuidados especiais e proteção. Porém, essa ideia de uma infância natural
e universal foi sendo desconstruída nos anos 70 e 80, e o que chamamos de criança hoje
não é o que chamávamos de criança anteriormente.
As crianças sempre estiveram presentes em pesquisas na área das Ciências Sociais,
porém elas não eram focos centrais ou interlocutoras das pesquisas nem eram levadas
realmente a sério, pois eram consideradas como seres incompletos, em socialização,
portanto, não legítimas de serem problematizadas em pesquisas.
De acordo com Émile Durkheim (1978), a infância seria um devir, passiva de
socialização e regida por instituições. A socialização seria um mecanismo de
perpetuação de uma ordem social, um processo de aquisição de papéis sociais. Para o
autor, a educação tem lugar privilegiado na formação da criança, pois a criança é
produto dessa educação. Elas vão interiorizando a cultura em que vivem por meio da
educação.
[...] a ação exercida, pelas gerações adultas, sobre as gerações que
não se encontram ainda preparadas para a vida social, tem por
objetivo suscitar e desenvolver, na criança, certo número de estados
físicos intelectuais e morais, reclamados pela sociedade política no
seu conjunto, e pelo meio espacial a que a criança, particularmente,
se destine. (DURKHEIM, 1978, p.41).
Assim, para Durkheim, a socialização vista da educação é um processo de assimilação
de ideias e valores, um pertencimento ao grupo. No Brasil, Florestan Fernandes (1976)
e Egon Schaden (1976) lançaram reflexões acerca da educação das crianças indígenas,
ambos enfocando a educação como forma de perpetuar uma ordem social vigente.
Ambos destacam a socialização como fator determinante da educação e o “aprender
brincando”. Sendo assim, ainda que analisem os processos educativos indígenas, ainda
tratam as crianças como miniaturas do mundo adulto e como reprodutores desse mesmo
universo geracional, pois a noção geral desses trabalhos é a transformação de um ser
imaturo em um ser social, além de traduzirem visões adultocêntricas do aprendizado das
crianças.
Sendo assim, para Durkheim (1978), Fernandes (1976) e Schaden (1976), as crianças e
adolescentes seriam receptáculos de informações e essas fases da vida seriam períodos
de transformação de um ser imaturo em ser social, ou melhor, o modo em que se
transformam e se moldam em adultos. O principal aqui é a ideia de que não estão
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preparados para a vida social, trata-se da instabilidade do ser versus a coesão social que
está na base epistemológica da teoria durkheimiana. Nesse sentido a criança seria um
ser menos “sagrado” porque mais próxima da ideia limite de natureza e dos arreios
psicofisiológicos que a prenderiam num corpo único. Portanto é a manifestação de uma
consciência individual ainda, uma vez que não internalizou totalmente os mores da
coerção social. Não tem limites, faz o que quer, sempre deve ser cerceada com o não,
não possui responsabilidade, etc.
Essa condição de instabilidade do ser criança, ou seja, aquela que vai se modificar,
condição provisória daquilo que vai ser qualquer coisa, espécie de devir incorporado de
adultos, nos remete à noção de que elas, como parte dos objetos clássicos da
antropologia, ou seja, o estudo de sociedades, colocariam em risco uma das noções
caras que sempre fundamentaram epistemologicamente a disciplina, que é a noção
sociológica de “coesão social”***. Crianças fazem parte da “sociedade”, da coesão social
e dela não podem ser destacadas, seriam uma espécie de “desvio”, dada a condição
naturalizada e instável, porque provisória, de sua condição, ou tábula rasa, onde todos
os imperativos do social são decalcados de forma essencializada e natural.
As crianças seriam projeções do social. Todos os grandes temas clássicos da
antropologia, parentesco e organização social, religião, para ficarmos nesses exemplos,
trazem como pressuposto teórico a coesão; lidar com crianças, então, colocaria em risco
a coerência estrutural e funcional que sempre se quis emprestar às etnografias.
A pergunta é: por que crianças entraram na pauta das preocupações da antropologia?
Que posicionamento teórico fez com que fossem percebidas como interlocutoras e
deixassem de ser vistas como meras projeções da sociedade?
A partir da década de 60, o questionamento da própria antropologia permitiu uma
mudança no pensamento em relação às crianças. Revendo seus conceitos fundamentais
como cultura e sociedade, como bem nos lembra Clarice Cohn (2005a), permitiu que se
estudasse a criança de maneiras inovadoras. A cultura vista como um sistema simbólico
e o contexto social como um conjunto de relações e interações entre os indivíduos
alteraram significativamente o olhar metodológico sobre a infância. A cultura deixou de
ser vista como estática ou como algo empiricamente observável, e passamos a entender
que a “cultura” só existe na relação. “A cultura não está nos artefatos nem nas frases,
mas na simbologia e nas relações sociais que os conformam e lhes dão sentido”.
(COHN, 2005a, p. 20). Nesse sentido, a cultura está constantemente em formação e em
mudança, e o mesmo vale ao se rever o conceito de sociedade, pois os indivíduos
passaram a ser vistos como atores sociais que recriam essa sociedade a todo o momento.
Adultos passaram a ser vistos como re-elaboradores de suas próprias culturas; sendo
assim, não são só as crianças que estão em socialização; crianças e adultos são seres que
se socializam e são socializados.
***
Solidariedade, conceito tão caro para Durkheim (1999). Nessa chave de pensamento podemos alocar
também Margareth Mead (1963). Embora pertença à chamada Escola de Cultura e Personalidade e tenha
estudado crianças e adolescentes levando em consideração os termos culturais e contextos sociais, é
durkheimiana em certo sentido, pois, para pensar as crianças, seus pressupostos se ancoram na ideia do
social; seus estudos se baseiam no modo como as crianças vão se transformando em adultos, como vão se
moldando enquanto tal em suas culturas.
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Essas são revisões de conceitos-chave da antropologia. E, por isso,
permitem que se vejam as crianças de uma maneira inteiramente
nova. Ao contrário de seres incompletos, treinando para a vida adulta,
encenando papéis sociais enquanto são socializados ou adquirindo
competências e formando sua personalidade social, passam a ter um
papel ativo na definição de sua própria condição. Seres sociais
plenos, ganham legitimidade como sujeitos nos estudos que são feitos
sobre elas. (COHN, 2005a, p. 21).
A ideia de uma infância natural e universal foi sendo desconstruída, e o que chamamos
de criança hoje nas ciências sociais não é o que chamávamos de criança anteriormente.
Devemos a Phillippe Áries (1978) a noção de infância construída socialmente. O autor
escreveu uma historiografia da criança e da família na França e desconstruiu a
naturalização da infância. Sabemos hoje que não há uma criança universal, mas uma
pluralidade de formas de infância comprometidas com o relativismo e com o
construtivismo social. E sendo a infância um fenômeno plural, construído social,
cultural e historicamente, as análises devem levar em conta o contexto social em as
crianças que vivem, pois elas não são, não agem e nem significam o mundo ao redor
igualmente, independente de onde vivem.
Assim, antes de entendermos o ponto de vista das crianças, como se pudéssemos tomálo como unívoco, precisamos entender o que significa ser criança no contexto em que
ela está inserida, de acordo com valores e condições sociais.
Precisamos ser capazes de entender a criança e seu mundo a partir do
seu próprio ponto de vista [...] Não podemos falar de crianças de um
povo indígena sem entender como esse povo pensa o que é ser
criança e sem entender o lugar que elas ocupam naquela sociedade –
o mesmo vale para as crianças nas escolas de uma metrópole. E é aí
que está a grande contribuição que a antropologia pode dar aos
estudos das crianças: a de fornecer um modelo analítico que permite
entendê-las por si mesmas. (COHN, 2005a, p. 09).
O que é a “verdade”?
Retomando a discussão sobre a sexualidade das crianças do Gonzaga, a questão que me
foi colocada é exatamente o que significaria “levar a sério” e “acreditar” em nossos
interlocutores de pesquisa, em especial quando eles são crianças, que, como sabemos,
não são levadas a sério em nossa sociedade no sentido que propomos aqui. Longe de
duvidar de suas palavras, faz-se necessário nessa pesquisa entender o lugar da
sexualidade na favela do Gonzaga e para essas crianças. Partindo de um debate da
antropologia, proponho discutir então o que significa acreditar, levar a sério, confiar em
o que nossos interlocutores de pesquisa nos contam e mostram, questão clássica da
antropologia, nesse caso tendo em vista as crianças e o desafio particular que é ouvi-las
seriamente a despeito das imagens a que o senso comum e mesmo parcelas da
antropologia as submetem.
As crianças se tornaram sujeitos legítimos das pesquisas, mais que isso, foram tomadas
como interlocutoras na produção de conhecimento das pesquisas. Reconheceu-se na
criança sua agência, no sentido de Pierre Bourdieu (2002), como capacidade de agir e
atuar no mundo. Enfim, as crianças foram tratadas como sujeitos capazes de representar
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e significar suas experiências, como atores e agentes sociais que significam seu mundo
social e que o apreendem e o representam a sua maneira.
A criança não só participa do mundo social como sua participação adiciona algo ao
meio social, como nos disseram Carvalho e Nunes (2007). As crianças não estão
isoladas do universo adulto, mas em relação com ele; sendo assim, elas constroem
relações sociais e produzem cultura; ora, a vida social não existe apenas quando se é
adulto. O mundo social é um espaço intersubjetivo, e as crianças estão nele incluídas.
Mais que isso:
As crianças têm algo de original a dizer, socializam-se ao longo da
relação dialógica com o mundo à sua volta, de tal modo que,
justificadamente, a sua vivência, as suas representações e seus modos
próprios de ação e de expressão devem constituir objetos específicos
de pesquisa social. (CARVALHO; NUNES, 2007, p. 18).
Os métodos consagrados pela Antropologia, como a observação etnográfica, são
adequados ao estudo das crianças, e a etnografia é considerada por vários autores como
chave para entender o processo de participação das crianças na vida social. Isso porque,
segundo Cristina Toren (2002), apenas as crianças podem nos dar acesso ao que elas
sabem, e aquilo que sabem, pode nos fornecer elementos para uma compreensão
analítica que não podem ser obtidos de nenhum outro modo. E, “usando-se da
etnografia, um estudioso das crianças pode observar diretamente o que elas fazem e
ouvir delas o que têm a dizer sobre o mundo” (COHN, 2005a, p. 10).
Como em qualquer outra pesquisa, é necessário desenvolver estratégias em campo,
estratégias de aproximação com os “nativos”, pois, assim como negociamos com
adultos, negociamos com crianças. Isso porque partilhamos os desafios da disciplina, os
problemas de negociação como em qualquer outra pesquisa, e, ao estudarmos as
crianças, podemos repensar os conceitos de cultura; estudos com crianças não revelam
somente dados a respeito desse universo geracional, mas da sociedade em que vivem.
Aqui a diferença é que levamos as crianças a sério, pois “ouvir as crianças é completar
uma percepção de mundo que ficaria efetivamente incompleta se só ouvisse os adultos”.
(COHN, 2005b, p. 07).
Porém, muitos antropólogos não sabem o que esperar da relação de pesquisa entre
adultos e crianças. E nem todos as reconhecem como sujeitos legítimos das pesquisas. A
visão do senso comum, presa à ideia de que são seres em formação, portanto
incompletos e frágeis****, que misturam fantasia e realidade, ainda está presente em
alguns de nós, adultos, e essa visão “adultocêntrica” do mundo faz com que tenhamos
dificuldade em reconhecer as crianças como atores sociais e em ouvir atentamente suas
concepções do mundo e das pessoas; por isso suas falas são questionadas quanto à
legitimidade. Sendo assim,
A criança é um ser social tanto quanto qualquer adolescente, adulto
ou velho. É a nossa habitual perspectiva “adultocêntrica”, que incide
sobre as crianças da nossa própria sociedade, e que se estende às
****
Nada mais falso que essa ideia, pois pressupõe, por contraste, que nós adultos somos seres
“acabados”.
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demais, que não nos permite reconhecer isso. (NUNES, 2002, p.
276).
Por isso alguns antropólogos colocam em questão a “veracidade” das falas das crianças.
Porém, ao estudar povos indígenas, possessões em rituais, por exemplo, dão “crédito”
às falas nativas, e não pensam se “acreditam” ou não nessas falas. Se perguntássemos
para um estudioso dos rituais de possessão se ele acredita que as pessoas estão
“possuídas”, certamente seríamos ridicularizados, pois a veracidade não é posta em
questão porque isso não é o relevante da investigação etnográfica. Os antropólogos
sabem que o discurso revelado pelo nativo tem muito a dizer sobre a “sociedade” em
questão.
Ao ser eu questionada quanto à veracidade das falas dos meus interlocutores, as
crianças, a própria antropologia foi questionada, pois a questão da verdade é própria da
antropologia. As crianças do Gonzaga mantêm relações sexuais, não devemos “duvidar”
disso, apenas pensar como trataremos isso antropologicamente, elas fazem sexo, temos
que “acreditar” nisso. Lembramos que a sexualidade das crianças não é algo novo na
disciplina, alguns autores já trabalham esse tema. Bronislaw Malinowski (1978) foi um
deles. O autor estudou a vida sexual das crianças trobriandesas. O sexo para essas
crianças era uma forma de divertimento e de brincadeira, e elas podiam desenvolver as
atividades sexuais com liberdade desde muito cedo.
Um outro trabalho de grande importância a respeito da sexualidade de crianças e
adolescentes é o da antropóloga Priscila Calaf (2007). A autora estudou a sexualidade
dos meninos e meninas de rua de Brasília e buscou entender como a disposição ativa
perene para o sexo era fundamental na construção da identidade dessas crianças. Tratou
apenas das relações sexuais entre pessoas da mesma geração, apesar de deixar claro que
era inegável que havia relações intergeracionais. Viu a sexualidade em sua positividade,
na construção de pessoas plenas. “O exercício da sexualidade se dá porque são crianças
diferentes, que sabem mais das coisas, e sabem mais das coisas exatamente porque
trepam”. (CALAF, 2007, p. 45). No texto de Calaf (2007) as crianças deixam de ser
crianças quando “trepam”, na favela do Gonzaga é quando se tornam pais ou mães.
Voltando à questão da “dúvida” e de “acreditar” ou não nas palavras dos nossos
interlocutores, como disse Eduardo Viveiros de Castro (2002, p. 130), “[...] levar a sério
significaria, então, ‘acreditar’ no que dizem os índios, tomar seu pensamento como
exprimido de verdade sobre o mundo?”. O autor nos coloca essa questão quando
indagado por uma estudante de antropologia se ele acreditava quando “seus” nativos
diziam que “os pecaris são humanos”. Como resposta à estudante:
Para crer ou não crer em um pensamento, é preciso primeiro imaginálo como um sistema de crenças. Mas os problemas autenticamente
antropológicos não se põem jamais nos termos psicologistas da
crença, nem nos termos logicistas do valor de verdade, pois não se
trata de tomar o pensamento alheio como uma opinião, único objeto
possível de crença ou descrença. (CASTRO, 2002, p. 130).
Portanto, quando o autor afirma levar a sério o discurso dos seus nativos é porque, ao
dizerem que “os pecaris são humanos”, percebe que a fala revela muito sobre aqueles
que o dizem. Revela diversos aspectos do mundo onde vivem, de como é ser Esse Eja,
nesse caso. As palavras em si podem não nos revelar grandes coisas de imediato, mas
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elas nos fazem refletir sobre a sociedade em questão como um todo. Por isso “Perguntar
(-se) se o antropólogo deve acreditar no nativo é um category mistake equivalente a
indagar se o número dois é alto ou verde”. (ibidem, p. 134). Marcio Goldman (2003) em
uma de suas pesquisas em Ilhéus sobre antropologia e política, foi chamado para
transportar em seu carro um despacho; objetos rituais de uma filha-de-santo falecida
para serem jogados em um rio. Ele aguardava no carro enquanto os objetos eram
lançados no rio. Nesse momento escuta som de instrumentos de percussão bem ao
longe, que imaginou serem abataques ou algum ensaio de bloco afro. Após retornarem
ao terreiro, em uma conversa com um de seus interlocutores percebe “que os tambores
que ouvira simplesmente não eram desse mundo”. (idem, p. 425).
Esse ocorrido fez com que o autor retomasse suas anotações em campo e repensasse
seus próprios pressupostos antropológicos e percebe que:
[...] devemos repensar radicalmente todo o problema da crença, ou ao
menos deixar de dizer preguiçosamente que os fulanos crêem que os
mortos tocam tambores ou que beltranos acreditam que os espíritos
do rio tocam flautas. Eles não ‘acreditam’: é verdade! É um saber
sobre o mundo. (ibidem, p. 426).
Conforme nos coloca o autor, o fato de os tambores que ouviu, serem ou não dos
mortos, ou “mesmo o fato de acreditar ou não que o eram, não têm a menor
importância. O que importa é que, querendo ou não, levei a história a sério” (ibidem,
427). Sendo assim, o que importa é o que os nativos estão dizendo, aquilo que as
crianças contam. A questão não é “acreditar” ou não, pois as ideias, as palavras servem
de suporte para refletir sobre muitas outras questões. No caso da minha pesquisa com as
crianças da favela do Gonzaga é entender o lugar da sexualidade para as crianças e
como essa sexualidade é representada no bairro, pois o assunto tem a nos revelar o que é
ser criança nesse contexto social específico e, não um mote para investigar quais
crianças realmente mantém relações sexuais e quais não. “Acreditamos” em nossos
sujeitos no sentido de confiar, tal como colocou Viveiros de Castro (2002). E, todos os
antropólogos em campo, mesmo aqueles que estudam sua própria sociedade, passam
por esse choque de ideias, tanto ao estudar crianças, adolescentes, adultos ou velhos. E
“podem se passar muitos e muitos anos antes que sejamos capazes (se é que algum dia o
seremos) de verdadeiramente dar crédito àquilo que nossos informantes nos dizem ser
fato”. (TOREN, 2006, p. 450). Isso em qualquer pesquisa, não só aqueles em que as
crianças são os sujeitos e os atores sociais centrais.
Portanto, não falamos para uma particularidade, apenas para uma antropologia da
criança, falamos de antropologia acima de tudo. Partilhamos dos mesmos problemas e
das mesmas angústias da antropologia enquanto disciplina. A diferença é que temos as
crianças como sujeitos das pesquisas e levamos a sério seus discursos, assim como os
adultos são levados nas pesquisas antropológicas. Chamamos de levar a sério ouvir as
crianças seriamente, a despeito das imagens a que o senso comum e mesmo parcelas da
antropologia lhe submetem. Olhamos para as crianças como sujeitos legítimos das
pesquisas, como produtoras de conhecimento, engajadas em interações sociais, com
capacidade de ação no mundo, assim como os adultos o são. E, como todo antropólogo,
nós estudiosos das crianças, sabemos que “uma antropologia que reduz o sentido
(meaning) à crença, ao dogma e à certeza cai forçosamente na armadilha de ter que
acreditar ou nos sentidos nativos, ou em nossos próprios”. (WAGNER, 1981, p. 30).
UNAR (ISSN 1982-4920), Araras (SP), v. 4, n. 1, p. 2-12, 2010.
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A antropologia da criança é um campo de pesquisas e estudos consolidado, há grupos de
trabalhos e seminários temáticos nos diversos congressos brasileiros, que recebem
inúmeras propostas de trabalhos todos os anos, dos mais variados temas envolvendo
pesquisas com crianças. Nesse momento nos parece ser relevante dialogarmos também
fora desse núcleo de discussões. Faz-se necessário discutir com as “outras”
antropologias, para não corrermos o risco de discutirmos e dialogarmos apenas com nós
mesmos e criarmos um núcleo fechado de discussão. Dialogando para além da
antropologia da criança poderemos ser mais creditados e menos “duvidados”, assim
como poderemos ampliar essas discussões para obtermos legitimidade fora desse
contexto específico. Pois, “temos, antropólogos ou não, muito o que aprender com as
crianças – com as nossas e com as dos outros”. (SZTUTMAN, 2005, p. 04).
ABSTRACT
The recurring image of childhood is of fragility. Children are seen as dependent
beings, incomplete and in process of socialization who, therefore, need protection.
The present article seeks to demystify , with a brief bibliographical review, the idea
of a natural and universal child, showing theoretically how the notion of child was
built into social sciences. Thus, the article has the purpose of contributing and
expanding the studies related to the anthropology of children, as there have been
great efforts by scholars to legitimate children as subject of researches. On the
other hand there are also dificulties to recognize them as so. With this text, I
intend to highlight that we deal with anthropology as discipline and not only an
anthropology for the children.
For we share the same conflicts and
anthropological dilemma, the difference is that we have children as interlocutor
subjects of researches.
KEYWORDS: anthropology, anthropology of child, children, subjects.
REFERÊNCIAS
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