Revista Eape Revista de Estudos Sobre a Educação Pública, Brasília, v.1, n.1, ago. 2013 ANTROPOLOGIAS MUNDIAIS: TRANSFORMAÇÕES DA DISCIPLINA EM SISTEMAS DE PODER RIBEIRO, Gustavo Lins e ESCOBAR, Arturo (org.). Brasília: Editora da UnB, 2012. 472 p. Gilberto Luiz Lima Barral1 Hoje muito se fala sobre a formação continuada de professores. A educação, ao acompanhar a formação de professores, deve acompanhar também as transformações que ocorrem nas disciplinas. Os olhares, as epistemologias, os tempos e os espaços se questionam. A hegemonia dos centros de produção de conhecimentos sobre as periferias enfrenta sempre novos paradigmas e novos sujeitos. Por isto a pertinência das reflexões das ciências sociais no limiar do século XXI, particularmente sob o impacto da diversidade cultural sobre a globalização. A obra recém-publicada Antropologias mundiais: transformações da disciplina em sistemas de poder, organizada por Gustavo Lins Ribeiro e Arturo Escobar, atualiza o lugar das ciências sociais em diversos locais do planeta, trazendo sérias contribuições da antropologia e da sociologia para a reflexão sobre a produção do conhecimento, formação, constituição e transformações no campo dessas disciplinas. Ainda, como informa o texto de apresentação dos autores na contracapa desse livro, “sua leitura pode ser uma fonte de inspiração para praticantes de outras disciplinas imaginarem conversações globais diferentes daquelas orientadas apenas pelas perspectivas dos centros disciplinares tradicionais”. Em tempos de antropologias mundiais, é preciso pensar como pode ser diverso o processo de produção do conhecimento, e como este se estrutura, face às habilidades e competências que se exigem e que exalam dos novos sujeitos do conhecimento e penetram na esfera da educação e da relação ensino-aprendizagem. Em grande medida, o deslocamento das disciplinas no currículo, umas ganhando importância sobre outras, tem a ver com certa horizontalidade entre sujeitos de conhecimentos, que surgem a partir do debate cultural sobre a diversidade dos saberes e das práticas sociais. Isto é muito maior que pensar em culturas estanques. 1 Doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília. Professor de Sociologia da Secretaria de Educação do Distrito Federal (SEDF). E-mail: [email protected] 190 Revista Eape Revista de Estudos Sobre a Educação Pública, Brasília, v.1, n.1, ago. 2013 A antropologia, devido a sua especificidade e essência, afirma as diferenças acendendo o debate sobre os diversos saberes. Nessa perspectiva, pensar a educação é observar o espaço escolar, lugar e tempo das práticas socioculturais da produção do conhecimento. Cada escola é única, assim como cada sala de aula, cada disciplina, cada professor e cada estudante. Dessas particularidades podem vir interessantes contribuições em termos de saberes. Contudo, existem os currículos mínimos a cumprir. O que o professor pode ou deve ensinar-aprender junto aos estudantes? Currículos, em grande medida, formulados nos espaços centrais de poder. Currículos hegemônicos na tradição do pensamento euroamericano. Em Antropologias mundiais: transformações da disciplina em sistemas de poder, quinze pesquisadores e professores de todos os continentes do planeta trazem suas contribuições para a disciplina antropologia refletir sobre a problemática relação entre conhecimento e poder. A proposta editorial de reunir e atualizar o debate entre pesquisadores de diferentes países é fundamental para a promoção da diversidade cultural como estruturante do processo de produção do conhecimento. Em tempos de globalização, é bom saber o que pensam os pensadores e educadores japoneses, australianos, americanos, indianos, mexicanos, europeus. No limiar do século XXI, o debate, em termos de educação, descentraliza-se rumo à heterogeneidade dos saberes. O conjunto de textos que compõe a obra é produto de um simpósio internacional promovido pela Fundação Wenner-Gren para a Pesquisa Antropológica que ocorreu na Itália em 2003. A perspectiva do seminário apresentou a disseminação da antropologia por todos os continentes, o que propiciou a constituição de uma “comunidade global de antropólogos”. Publicados em inglês no ano de 2006, agora os textos ganham uma tradução em português, coordenada pela antropóloga Alcida Rita Ramos. A obra é dividida em quatro seções, nesta ordem: transnacionalismo e poder estatal; poder e hegemonia em antropologia; dilemas disciplinares, sociológicos e epistemológicos; da antropologia atual às antropologias mundiais. A formação continuada de professores, em tempos de globalização, precisa respirar os ares da diversidade. No artigo que abre o livro, os organizadores indicam que é preciso aproveitar o “potencial pluralizante da globalização”. Principalmente porque ainda há forte influência do centro sobre as periferias. Contudo, para os autores, o momento é propício à 191 Revista Eape Revista de Estudos Sobre a Educação Pública, Brasília, v.1, n.1, ago. 2013 reinvenção. Os sistemas mundiais estão em transformação e, para tanto, os indivíduos inseridos em tal dinâmica precisam estar atentos ao tipo de formação que necessitam. Mas, segundo o antropólogo japonês Takami Kuwayama, ainda é o centro quem produz e dita o que será caracterizado como conhecimento. Em suas palavras, os especialistas influentes dos países centrais estão na posição de decidir que saberes merecem reconhecimento e atenção. O sistema de avaliação por pares adotado por periódicos de prestígio reforça essa estrutura. Assim, não importa quão significativo e valioso seja o conhecimento produzido na periferia, ele está fadado a ficar enterrado localmente, a menos que siga os padrões e as expectativas do centro (p. 9-10). Assim, as ciências sociais, como disciplina de produção de conhecimento, se realizam em um lugar entre periferia e centro. Antropologias mundiais apresenta um índice interessante de análise sobre o problema das disciplinas em um contexto de transformações socioculturais globais. No texto Transformações disciplinares em sistemas de poder, na seção inicial, os autores argumentam que em contexto de diversidade cultural é possível, ou até permissível, que conhecimentos periféricos se ascendam como saberes globais pertinentes. Mas, quantos “centros e periferias [há] no produto do conhecimento?” O professor Eduardo Archetti, respondendo esta pergunta, na segunda seção do livro, informa a importância e a centralidade das antropologias francesa, inglesa e norte-americana na formação e constituição do campo antropológico como centralidade. São nesses países centrais que se produzem dados teóricos sobre o que é antropologia, sobretudo realizando pesquisas e levantamentos etnográficos em outros lugares, com outros povos “nativos”. Assim, na produção de conhecimento, em antropologia, na visão de Archetti, poder e hegemonia ainda se encontram nas metrópoles europeias e norte-americanas. A tradição dos clássicos Durkheim, Mauss, Lévi-Strauss, Victor Turner ainda sustentam nações e impérios do conhecimento dos séculos XIX e XX. O conhecimento e as disciplinas hegemônicas têm papel político. O século XXI reclama outra orientação ao problema da produção e reprodução do conhecimento. “Dilemas disciplinares, sociológicos e epistemológicos” estão em curso em contexto de antropologias mundiais. Quando os “nativos” saltam de “dados para observação” a sujeitos de produção de outros conhecimentos, a tensão entre centro e periferia, contudo, reafirma “a hegemonia da antropologia acadêmica euro-americana”. Esta é a análise da professora Marisol de la Cadena. 192 Revista Eape Revista de Estudos Sobre a Educação Pública, Brasília, v.1, n.1, ago. 2013 Esta influência “eterna e intermitente” do centro euro-americano como hegemonia oficial de produção de conhecimentos, produz, no entanto, “pluralismos contestatórios”. O antropólogo indiano Shiv Visvanathan lembra que “centro e periferia não são mais geografias congeladas”. Esses universos se cruzam cotidianamente, produzem práticas e teorias da vida social através de vivências distintas. Para ele, o que importa é a produção intelectual das disciplinas sobre esses saberes e práticas. “Da antropologia atual às antropologias mundiais” há um enorme percurso. O antropólogo Otávio Velho mimetiza Lévi-Strauss para discutir os resultados de uma antropologia nos trópicos. Para Velho, a antropologia “nativa não produziu alternativas à metodologia ocidental”; nesse sentido, “a demanda por autenticidade nas tradições locais é, em si mesma, uma produção da modernidade”. A antropologia brasileira padece dessa homogeneização modernizante vinda das metrópoles. O simpósio da Fundação Wenner-Gren abordou questões cruciais para a antropologia. Discutindo o problema da hegemonia do pensamento euro-americano na produção do conhecimento e no fortalecimento das disciplinas, os textos, dos cinco continentes, apontam a dependência das periferias ao centro, mesmo em seus textos mais críticos. A perspectiva que se reivindica para uma antropologia do século XXI é sua revisão crítica rumo a uma pluralidade de olhares e interpretações sobre a relação entre conhecimento e poder. Em termos editoriais, Antropologias Mundiais: transformações da disciplina em sistemas de poder cumpre funções e exigências de forma e conteúdo. O título resume bem a obra e lhe confere universalidade. Os textos atualizam o debate acadêmico e são escritos como descrições relatadas em mesa de um simpósio. Um livro para ser lido em tempos de antropologias mundiais e de novas práticas e configurações sociais. 193