Apresentação - Editora Contexto

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Apresentação
Este livro reúne reflexões sobre os processos de constituição do enunciado,
dirigindo a atenção para a gramática que organiza as relações, constrói as significações
e define os efeitos pragmáticos que, afinal, fazem do texto uma peça em função. Fica
entendido que é no entrecruzamento dos processos ativados, e pela gramática organizados,
que a interação discursiva compõe os textos. Por isso o livro termina com um capítulo
(“Construir o texto com a gramática”) que organiza uma amostra de análise na qual os
processos básicos de constituição textual se entrecruzam e se sobredeterminam.
A análise mais natural que se faça de um texto em função desce, necessariamente,
à predicação (com o verbo no centro). Por isso, da predicação eu parto para falar da
gramática (capítulo “Falar de... e dizer que...”). Há muita coisa significativa que está fora
dela – lado a lado com ela, em torno dela, além dela – mas a gramática que organiza as
predicações já define as funções sintáticas (porque a oração é por excelência o constructo
sintático da linguagem), os papéis semânticos (porque são eles, em primeiro lugar,
que têm de ser referidos às funções sintáticas) e as funções pragmáticas (porque é o
contrato interacional que define as escolhas dos papéis no “drama” da linguagem, bem
como a relevância mútua desses papéis e sua distribuição em termos de topicidade e
focalidade, ingredientes fundamentais no êxito da interação discursiva).
Papéis semânticos são necessariamente referenciados no texto, e essa referenciação
se distribui pela organização tópica do discurso.Vou, então, à referenciação (capítulo
“Referenciar”). Parto da noção central de que no processo discursivo se criam os
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referentes, e que essa organização referencial se mantém em ligação com a organização
tópica, que dirige o fluxo de informação. Insisto em que há escolhas do falante que
dirigem a criação e a identificação de referentes nos enunciados, escolhas que não são
apenas das manifestações textuais, mas ainda da própria condição referencial, ou não,
dos indivíduos que povoam o texto, as quais se operam a partir do que sugere o universo
de discurso negociado na interação. Nessas escolhas, o que o falante busca é garantir os
dados necessários à identificação dos objetos de discurso na textualização. Para isso, ele
explora as fontes de acessibilidade, por ativação da entidade referenciada, seja ela uma
pessoa, uma coisa, seja, ainda, uma abstração, um evento ou um estado. Essa qualidade
(ana)fórica nominal implica definitude, a qual, em certas condições, se resolve mais
concretamente no contexto (e o determinante de eleição é o pronome demonstrativo),
e, em outras condições, se resolve por via de avaliação cognitiva mais independente do
contexto (e o determinante de eleição é o artigo definido). É assim que a nominalização
constitui uma das mais importantes fontes de mapeamento conceptual, de organização
tópica e de orientação argumentativa no texto, obviamente a partir de seu papel na
organização sintática (predicativa) e na organização semântica (proposicional).
Mas a proposição já nasce submetida ao julgamento do falante, que a modela,
modeliza, modula e modaliza, segundo suas crenças, suas convicções, seus conhecimentos,
sua inserção na sociedade normatizada, sua visão de mundo etc., já que é de línguas naturais – e
em uso – que se trata. Por isso eu falo de modalização na linguagem (capítulo “Imprimir
marcas no enunciado”). Corre paralela toda a implicação de um domínio lógico que
explicita as modalidades em termos veredictórios, relacionando-as com as proposições,
em termos de possibilidade e necessidade, domínio que não tem correlato direto na
linguagem, mas ao qual as reflexões sobre o uso linguístico têm de recorrer, até para fazer
as separações devidas. Lógica à parte, parte-se do princípio de que, se é de interação que se
fala, a modalização do enunciado é um processo naturalmente implicado, dada a premissa
da existência de um conjunto de relações entre o locutor, o enunciado e a realidade
objetiva. A partir dessa visão ainda neutra de que é automática uma atitude ‘modal’ na
enunciação (com limites na própria polarização do enunciado), parte-se para a verificação
de uma inserção ainda mais forte do enunciador em seu enunciado, seja em termos de
comprometimento por via do conhecimento ou por via da conduta, seja em termos de
ligação com uma fonte do conhecimento, no terreno epistêmico.
Além disso, quando faz enunciados complexos, o falante faz escolhas
determinantes, tanto no modo de hierarquizar – ou não – funções e significados quanto
no modo de conectar formalmente as porções do enunciado total. Componho, então,
um capítulo sobre a junção nos enunciados. Aquela conjunção semântica entre o que
vem antes e o que vem depois de que falam Halliday e Hasan (1976), de espectro
tão amplo no fazer do texto, oferece um território francamente aberto a uma análise
gramatical, que é o da junção entre porções estruturadas do texto – orações e frases
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completas –, terreno em que se distribuem as tradicionais noções de coordenação
e de subordinação, de parataxe e de hipotaxe. Essas propostas centenárias têm sido
revisitadas, e parece importante que, se o que se pretende é dar conta da língua em
função, se penetre na organização real dos enunciados para avaliá-los não apenas sob os
diversos níveis (predicacional, proposicional, ilocucionário) mas também sob os diversos
ângulos que envolvem a atividade linguística (textual / informacional, interacional),
e com incorporação dos diversos componentes (sintático, semântico, pragmático).
Na formação de enunciados complexos facilmente se entreveem determinações
das relações interacionais, e noções ligadas à distribuição e ao fluxo de informação
se mostram determinantemente participantes. Relações semântico-pragmáticas,
como a relação tópico-comentário, a relação dado-novo e as relações de polaridade,
ligadas à ordenação dos constituintes, representam elementos significativos na
explicitação dos modos de construção. Dessa forma, a investigação se beneficia de
uma vinculação à ordem das palavras na frase, considerando, especialmente, que essa
ordem se resolve no encaminhamento das relações retóricas textuais.
A premissa central é que, numa visão da língua em uso, a avaliação deve ser
tentada no domínio discursivo, o que nada mais representa do que levar adiante as
propostas básicas de uma gramática funcional, que prevê que a interação verbal é uma
atividade estruturada (com regras, normas e convenções), mas também é uma atividade
cooperativa, e, desse modo, ativam-se, na linguagem (que é sempre uma interação),
dois sistemas de regras: as que regem a constituição das expressões linguísticas (regras
sintáticas, semânticas, morfológicas e pragmáticas) e as que regem o modelo de
interação verbal no qual as expressões são usadas (regras pragmáticas). Disso se fala
quando se fala em funcionalismo. E por isso eu parto de um primeiro capítulo sobre
noções teóricas nessa linha.
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O que se traz aqui é uma amostra, de valor representativo. Trata-se de um
conjunto de reflexões a que se acopla um conjunto de sugestões de análise gramatical
que busca não perder de vista as determinações de um tripé cognição – gramática –
discursivização que organiza as significações no texto em função. E que, portanto,
sustenta os usos de uma língua natural.
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O corpus de língua escrita que serve de base às análises (Corpus de Araraquara,
índice anexo) tem cerca de 100 milhões de ocorrências do português escrito contemporâneo
do Brasil, abrangendo textos dos tipos romanesco, oratório, técnico-científico,
jornalístico e dramático, o que garante grande representatividade. A própria modalidade
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falada está indiretamente representada na simulação que dela fazem as conversações
que constituem as peças teatrais incluídas na amostra. Esse corpus, que está disponível,
em meio digital no Laboratório de Estudos Lexicográficos da Faculdade de Ciências
e Letras da Unesp, Campus de Araraquara, vem sendo examinado em várias outras
obras da autora.
As ocorrências de língua falada examinadas pertencem ao ‘corpus mínimo’ do
Projeto Norma Urbana Culta (nurc), constituído por 5 arquivos do tipo D2 (diálogo
entre dois informantes), 5 do tipo DID (diálogo entre informante e documentador)
e 5 do tipo EF (elocução formal) de cada uma das cinco capitais que fazem parte do
banco de dados, São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, Recife e Porto Alegre. Amostras
desses materiais foram publicadas em São Paulo (Castilho-Preti Orgs. 1986 e 1987),
Rio de Janeiro (Callou Org. 1992, Callou-Lopes Orgs. 1993 e 1994), Salvador (MottaRollemberg Orgs. 1994), Recife (Sá-Cunha-Lima-Oliveira Jr. Orgs. 1996) e Porto
Alegre (Hilgert 1997) (Ver bibliografia). Esse corpus também tem sido analisado em
trabalhos da autora.
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