A linguagem como relação em Emmanuel Levinas

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A linguagem como relação
em Emmanuel Levinas
Anderson Fontes Dias*
Resumo: O artigo visa apresentar o sentido da linguagem no pensamento do filósofo Emmanuel Levinas. Considerando a linguagem como
dimensão fundamental da filosofia contemporânea com a reviravolta
linguística do século passado, a interpretação e reavaliação crítica feita
por Levinas da filosofia ocidental, e a sua proposta de um pensar a ética
da alteridade como filosofia primeira a linguagem assume uma papel
fundamental na constituição da relação interhumana. Em Levinas ela
é garantia de respeito ao Outro e de não indiferença à sua presença que
interpela, questiona e chama a uma resposta como responsabilidade.
Palavras-chave: Levinas. Linguagem. Rosto. Outro
Introdução
Uma das evidências de nossa era contemporânea parece ser a valorização da linguagem como porto de sentido humano do ser-no-mundo do
* Bacharel em Filosofia pelo IFIBE (2009). O texto é parte do Trabalho Monográfico de
Conclusão do Curso de Bacharelado em Filosofia orientado pelo professor José André
da Costa.
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homem e como ponte, sempre em construção, em vista da realização de
melhores relações interhumanas, ou seja, de uma vivência e convivência
pacífica e respeitosa entre as pessoas. Em outras palavras, pode-se dizer
que as falhas de nossas relações sociais tem na falha da linguagem, em sua
dimensão comunicativa, sobretudo, uma das causas mais patentes.
Tais considerações encontram raiz na chamada reviravolta linguística no início do século passado com Moore, Wittgenstein, Russell, a Escola de Viena, entre outros, que “transmigraram” a preocupação filosófica
que girava em torno do estudo do ser, como na antiguidade e do conhecer
na modernidade, para a dimensão linguística do homem, de forma que
os problemas filosóficos se converteram em problemas linguísticos.
Podemos dizer também que a reivindicação desta transmigração
justifica-se na medida em que se passa a compreender que o sentido da
realidade não se reduz a uma “simples” teoria sobre o conhecimento;
mas, sobretudo, que o sentido da realidade é de relação. Encontra-se na
linguagem não só um simples veículo de materialização do pensamento,
mas na própria possibilidade humana do falar e do compreender o falado, o sentido que dá sentido ao pensamento expressado. No dizer de
Levinas “a linguagem não apenas serve a razão, mas é a razão. [...] a razão
vive na linguagem” (LEVINAS, 1980, p. 187).
Na esteira da reviravolta, o filósofo contemporâneo Emmanuel
Levinas (1906-1995) encontra uma perspectiva que se abre à possibilidade de consumar seus propósitos de pensar a relação interhumana tendo
a ética e não a ontologia como filosofia primeira. Assim sendo, partindo
desta tese básica do autor, esboçaremos como ele pensa a linguagem, por
sua estrutura formal, como relação entre o Mesmo e o Outro, o Eu e o Tu,
mostrando também a exigência da resposta e do compromisso, suscitado
desde o rosto do Outro, como imperativo-ético, que interpela, questiona
e chama à responsabilidade e ao respeito.
A ética como filosofia primeira
Resumidamente, pode-se dizer que o móbil do pensamento levinasiano é o desejo de falar para o ocidente “outramente”, ou seja, de outra
forma, com outro horizonte de sentido, com outra perspectiva de busca
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pela verdade e pelo sentido do humano. Levinas considera que a tradição
filosófica ocidental estaria “convencida” de que possui um único modo
de falar do ser, do sentido e da verdade, e do próprio homem. Logo, a
razão teria se “adequado”, acomodado, e com ela toda a realidade, aos
esquematismos construídos desde os gregos: sistemas, conceitos significados, temas, relações lógicas, etc. Estas características seriam o que
constiuiram basicamente o pensamento ocidental como fundado na ontologia, “inteligência dos seres”, saber que afirma a prioridade do ser antes
do ente, da liberdade do Eu à justiça ao Outro, da Totalidade como fonte e
origem de sentido, seja em sua dimensão cosmológica, como nos gregos,
seja na logológica, na modernidade (Cf. OLIVEIRA, 1996, p. 391).
O discurso deste pensador, portanto, pretende ir além do ser, além
da totalidade, além da ontologia; intenção que justifica tendo em consideração a experiência da dor, do sofrimento e do horror dos campos
de concentração, aliada ao fato de sua família ter sido praticamente eliminada pela “política da morte” nazista. Levinas considera também que
os acontecimentos que se desenrolaram de 1933-1945 teriam sido o limite da razão, do saber e da compreensão do ser como totalidade, pois
durante, e ao cabo de tudo o que ocorreu, não se soube evitar e nem
compreender este trágico evento, aspecto que justifica ainda mais o seu
afastamento da filosofia tradicional e sua busca de sentido a partir da
ética como filosofia primeira e não da ontologia. Com isto traz para o
diálogo com a filosofia greco-ocidental elementos da tradição judaica
ao postular que primeiramente o homem seja não o pastor do ser, mas o
guardião do seu irmão; noções que, portanto, o separam também de seus
mestres Husserl e sobretudo de Heidegger, que reivindica na contemporaneidade uma ontologia fundamental, uma vez que para este autor a
verdade do ser enquanto relação original com o ser humano, não havia
até então sido perscrutada pela filosofia.
Uma das teses mais importantes da filosofia levinasiana afirma que antes de saber e poder, ou mesmo da compreensão do ser, o
homem deve estar voltado para uma inalienável responsabilidade para
com o outro homem, independente de suas qualidades. Por esta pretensão, reivindica uma ética da alteridade, defendendo que o Outro
deve ser acolhido como outro; respeitado em sua diferença, desde o
momento em que se aproxima; em que se faz presente no plano ético,
mas ausente no plano ontológico, pois é só no encontro com o Outro,
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no face-a-face, que o humano se oferece a uma relação que não é poder
(Cf. LEVINAS, 2005, p. 33), poder enquanto compreensão e desvelamento do ser do ente, no caso, o homem. O Outro, ainda que exista a
partir de sua história, dos seus meios, dos seus hábitos, de sua cultura,
sempre excede à nossa compreensão e aquilo que dele dizemos. O autor
lança mão da noção de rosto para indicar a possibilidade de uma realidade que significa “outramente”, ou seja, que possui um sentido em si
mesma e não desde um horizonte luminoso. “O rosto fala” (1980, p. 53),
olha, se expressa, se apresenta significando, tendo um sentido antes de
qualquer relação gnosiológica ou ontológica; ele não se reduz a um tema
ou a um conceito, pois incessantemente trai a sua manifestação, se dissimula, desfazendo a cada instante a forma que oferece (Cf. 1980, 53).
O rosto, por sua expressão viva, inquieta e desconcerta o Mesmo, porque
não se cataloga adequadamente no universo de sentido do Eu, é infinito,
transcendência ou transbordamento de uma ideia adequada (Cf. 1980, p.
66); transbordamento que suscita a saída de um egoísmo originário para
uma doação e generosidade como resposta a uma interpelação sempre
exigente, sempre presente, mas enigmática, a uma razão sempre disposta
a esclarecer todos os mistérios e capaz de fazer desaparecer aquilo que
poderia chocar, como foi e são as barbáries das guerras e da violência.
A ética como filosofia primeira tem como base a afirmação de que
metafísica preceda a ontologia. Considerando a metafísica como aspiração e relação humana radical com a exterioridade,1 enquanto desejo do
absolutamente Outro, Levinas desenvolve uma metafísica da alteridade,
ou seja, defende que a relação entre o Mesmo e o Outro que não culmina
em totalidade, acontece movimentada por este desejo que é diferente da
fome que satisfaz e da sede que sacia, dos sentidos que se aplacam. É
desejo não de satisfazer-se com o bem, mas como desejo de ser bom;
“desejo como bondade” que, ao invés de saciar, abre o apetite. Logo, a
metafísica tem lugar nas relações éticas, no encontro, na proximidade
e na interpelação; na afirmação da prioridade do Outro e na exigência
da responsabilidade. A anterioridade da ética, como metafísica, precede
1 Exterioridade e alteridade são sinônimos (Cf. 1980, p. 272). Consistem basicamente
naquilo que encontra significado desde si mesmo, fora de uma totalidade, no caso, a
relação face-face, onde o rosto do Outro revela-se não como fenômeno a ser descoberto, mas sempre e antes como apelo e expressão. Pela linguagem portanto, a exterioridade do rosto “exercita-se, desdobra-se, empenha-se” (1980, p. 276).
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a ontologia por ter desde a presença do Outro uma origem crítica não
na consciência do Eu, mas no rosto.2 Desse modo, a ética da alteridade revela-se como a instância que põe em questão, “impugna”, critica o
dogmatismo, a interioridade, a mesmidade; pois a crítica não reduz o
Outro ao Mesmo; e a ética revela-se como a essência crítica ao saber
como totalidade.
A essência crítica revela-se no rosto do Outro que, como expressão e revelação, depõe o Eu de sua soberania e conforto, pondo-o
em questão, excendendo por isso a Totalidade pela sua palavra e
pelo seu olhar. A relação entre o Mesmo e o Outro corresponde
a um abalo ético do ser por se produzir como ideia do Infinito. A
subjetividade então se encontra numa situação em que ela não pode
abarcar, mas pode se relacionar, pois pode, como finita, pensar o
infinito, mas não pode enquadrá-lo em suas categorias, porque, do
contrário, o reduziria à sua finitude. O aparecer do infinitamente
Outro, que mesmo no olhar fala, chega como novidade, inquietando
e ensinando o mundo ao sujeito. Na dimensão enigmática do olhar e
na incerteza do falar, o rosto, como uma das categorias mais importantes, é o signo da transcendência, signo do infinito, que com uma
simples piscadela pode desconcertar a tendência de sermos sempre
o Mesmo. O olhar revela uma resistência ética que desinstala, exige
abertura e acolhida, e põe continuamente em questão. O olhar é a
epifania do outro, “epifania do rosto como rosto”; é a sua manifestação como expressão, como nudez e miséria, ou seja, desprovido de
armas e ardis, mas provido de uma força de súplica de quem diz: Não
matarás, não reduzirás o Outro à ideia, à tua compreensão, ao teu
conceito; situação que desperta e condiciona o nascer do humano
como hospitalidade e responsabilidade.
A ética, portanto, é anterior à ontologia; é a filosofia primeira; é o
que permite que o Mesmo e o Outro se relacionem, sem que um aniquile o Outro pelo saber ou pela representação, sem que a diferença seja
anulada, mas acolhida e respeitada. Ela é primeiramente um acontecimento, um encontro e não conhecimento, revelação e não descoberta (Cf.
FINKIELKRAUT apud SOUZA, 2000, p. 237); em outras palavras, antes
2 “O que chamamos rosto é precisamente a excepcional apresentação por si, sem paralelo com apresentação de realidades simplesmente dadas, sempre suspeitas de algum
logro, sempre possivelmente sonhadas” (1980, p. 181).
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da pergunta pela verdade a própria presença do interlocutor tem que ter
um sentido não dado pelo saber. Por isso a relação face-a-face, homem a
homem, é a situação última enquanto origem donde se apreende o sentido do humano. Veremos então que a linguagem nasce deste “encontro
primitivo” e se firma como possibilidade mesma de significado da relação ética pretendida pelo autor.
O nascimento e o sentido da Linguagem
Levinas pode ser inserido no contexto da reviravolta linguística da
filosofia na contemporaneidade, uma vez que sua concepção difere do
conceito semântico tradicional e tende mais para a dimensão pragmática. Logo no começo de Totalidade e Infinito, ele aponta a dimensão que
a linguagem irá assumir em sua obra. Diz:
Esforçar-nos-emos por mostra que a relação do Mesmo e do Outro – ao qual parecemos impor condições tão extraordinárias – é
a linguagem. A linguagem desempenha de fato uma relação de
tal maneira que os termos não são limítrofes nessa relação, que
o Outro, apesar da relação com o Mesmo, permanece transcendente ao Mesmo. A relação do Mesmo e do Outro – ou metafísica – processa-se originalmente como discurso em que o Mesmo,
recolhido na sua ipseidade de “eu” – de ente particular único e
autóctone – sai de si (1980, p. 27).
A linguagem é, portanto, relação; mas relação entre termos separados (Cf. 1980, p. 174). Se o objetivo do autor é pensar a partir da ética
uma forma de se relacionar, logo, a incerteza do falar e o mistério do
olhar, como expressões vivas, permitem que ambos os termos se liguem
e ao mesmo tempo se desliguem; ou seja, que tenham uma relação sem
relação (Cf. 1980, p. 66), pois a estrutura formal da linguagem, entendida desde a relação interpessoal, sujeito-sujeito e não sujeito objeto que,
por isso, tem como base uma relação ética, o face-face, anuncia, por esta
mesma condição, a “inviolabilidade ética de Outrem” (1980, p. 174). A
inviolabilidade consiste no fato de que o Outro, como rosto que fala, é
uma presença que extravasa a compreensão e a doação de sentido da in124
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tencionalidade que o visa, rompendo assim com os seus esquematismos e
não entrando na esfera do Mesmo, pelo seu estatuto de infinito (Cf. 1980,
p. 174), como exterioridade radical, interpelante e questionante.
Na palavra do olhar do rosto que se revela há sempre um chamado
e um julgamento, “lembrando-me” de minhas obrigações. O chamado
às obrigações é como que um despertar, que não vem do cogito, mas
de outrem, que solicita não um acento a mais de responsabilidade de
minha subjetividade para com ele. A presença e o encontro com o rosto
revela que a subjetividade é ela mesma responsabilidade, antes que liberdade de poder furtar-se do compromisso: “não poder esquivar-se – eis o
eu” (LEVINAS, 1980, p. 223). Este “encurralamento” do eu pelo Outro é
na verdade a possibilidade que o autor encontra para a realização deste
mesmo eu na moralidade, ou seja, na situação em que toda relação interhumana converge numa exigência de serviço e acolhida, em existir
para outrem e “temer mais o assassínio do que a morte” (1980, p. 224).
O humano no homem insere-se, portanto, numa contínua ruptura da
identidade, ruptura da imanência, numa saída de si, abrindo a razão à
acolhida a uma alteridade que chega sempre antes em minha casa, como
uma visita, ainda que indesejada. Por isso, a subjetividade pode ser compreendida também como transcendência de si mesma e a transcendência
é comunicação, como um incômodo dizer e um consequente desdizer o
que foi dito, tendo como orientação o Outro:
Que o Outro enquanto outro não seja uma forma inteligível ligada a outras formas no processo de um desvelamento intencional,
mas um rosto, a nudez proletária, a indigência; que o outro seja
outrem; que a cada saída de si seja a aproximação do próximo;
que a transcendência seja proximidade; que a proximidade seja
responsabilidade pelo outro, substituição ao outro, expiação pelo
outro, condição – ou incondição – de refém; que a responsabilidade como resposta seja o prévio Dizer; que a transcendência seja
a comunicação, implicando, além de uma simples troca de sinais,
o ‘dom’, ‘a casa aberta’ – eis alguns termos éticos pelos quais a
transcendência significa à guisa de humanidade ou o êxtase como
des-interessamento (LEVINAS, 2008, p. 32).
O comércio ético da linguagem defendido por Levinas funda-se,
portanto, no face-a-face. Se o desejo, como movimento metafísico sem
completação é o que move o Mesmo em direção ao Outro impedindo
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a posse pelo saber, a estrutura formal da linguagem evoca o discurso,
a palavra, como percurso, como caminho de resposta de um em direção ao outro (Cf. SUSIN, 1983, p. 269). Assim sendo, rosto que fala já
significando outramente é pura revelação porquanto traz com a sua presença uma novidade sempre imprevista, com a possibilidade de mentir
ou falar a verdade, de acolher ou rejeitar. A presença e a possibilidade
premente de surpreender revelam-se como acontecimento irredutível à
evidência do cogito, como a ideia do infinito.
O eu é inefável, visto que falante por excelência; respondente e
responsável outrem, como puro interlocutor, não é uma conteúdo
conhecido, qualificado, captável a partir de uma ideia geral qualquer e submetido a esta ideia. Ele faz face, não se referindo senão
a si (LEVINAS, 2005, p. 50).
A existência desta ideia revela que nós existimos numa condição
de passividade ou receptividade de algo que não culmina numa síntese
transcendental em nossa consciência. A presença e novidade do rosto do
Outro pela linguagem comportam não uma correlação entre consciência
e mundo, mas um constante desprender os tentáculos do pensamento
que pensa o interlocutor como tema.
Outrem não é primeiro objeto de compreensão e, depois, interlocutor. As duas relações confundem-se. Dito de outra forma, da
compreensão de outrem é inseparável sua invocação. Compreender uma pessoa é já falar-lhe. Pôr a existência de outrem, deixando-a ser, é já ter aceito essa existência, tê-la tomado em consideração. ‘Ter aceito’, ‘ter considerado’, não corresponde a uma
compreensão, a um deixar-ser. A palavra delineia uma relação
original. Trata-se de perceber a função da linguagem não como
subordinada a consciência que se toma da presença de outrem ou
de sua vizinhança. Ou da comunidade com ele, mas como condição desta ‘tomada de consciência (LEVINAS, 2005, p. 27)
Para Levinas, a linguagem como relação também evoca uma espécie de assimetria, pois o interlocutor não é um tu, mas um Vós
(Cf. 1980, p. 87), ou seja, o Outro e o Mesmo não estão no mesmo
patamar. A palavra do “Outro inefável”, porque falante, revela-se
sempre como um mandamento-ensinamento, como interpelação primeira suscitando resposta à invocação, que deve ser resposta de res126
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ponsabilidade. Esta “majestade do Outro”, tão peculiar da filosofia de
Levinas, fica evidente ao indicar optar por termos como “discurso”
e “ensino” e não por diálogo, como o eu-tu em Buber, o que, sob a
perspectiva levinasiana, remeteria para uma espécie de reciprocidade
na relação, o que já não seria mais desejo, que aspira a exterioridade
radical, ao que falta sem nunca cumular, ao absolutamente outro, mas
necessidade que se satisfaz na cumulação da interioridade.
O discurso e o ensino fazem parte do movimento da relação do
Mesmo e do Outro na trilhas da linguagem. A deposição do sujeito soberano e a reivindicação do privilégio do Outro na relação constituem
e fundamentam a possibilidade de transcendência, o estar diante sem
síntese, como comunicação. O primeiro ensinamento do mestre é estar
diante do discípulo, e isto não é tematização, mas antes uma forma de relação originária que “condiciona assim o funcionamento do pensamento” (1980, p. 183), da compreensão das lições proferidas. Desse modo,
a linguagem possui uma essência encarnada que não consiste somente
em servir a razão como instrumento designativo, mas em possibilitar,
antes da doação de sentido, uma significação que não provém do interior
de uma consciência, mas do rosto como instância que põe em questão a
ação e a própria manobra da razão em utilizar o signo como veículo da
significação.
A linguagem tem de excepcional o facto de assistir à sua manifestação. A palavra consiste em explicitar-se sobre a palavra, em
ser ensinamento. A aparição é uma forma fixa da qual alguém já
se retirou, ao passo que na linguagem se realiza o afluxo ininterrupto de uma presença que rasga o véu inevitável da sua própria
aparição, plástica como toda aparição (1980, p. 84).
Ouvir a palavra ou o discurso do Outro como ensinamento é também admitir uma racionalidade eleita, aprendiz, heterônoma, que, para
o desespero dos kantianos, visa a produção das verdades, dos conceitos,
das leis, não desde o si mesmo, como obra minha, a partir de minha condição transcendental. O ensino do Outro como movimento da linguagem, como relação, modifica radicalmente o sentido da intencionalidade
do saber e do agir, de modo que não há verdade sem o face-a-face, sem
a presença-proximidade, sem uma razão aberta à alteridade e, portanto,
essencialmente relacional.
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Considerações finais
À guisa de conclusão, compreendemos que para Levinas a fala constitui-se como a grande expressão da relação humana, uma vez que a “exterioridade do discurso não se converte em interioridade”, em síntese
fechada ou totalidade. A possibilidade de transcender do interlocutor
na e pela linguagem constitui a sua singularidade (Cf. 2005, p. 50). A
singularidade está na condição do que o autor chama de dizer, enquanto realização da lógica do infinito, conforme Souza (1999, p.137), que
é diferente do dito do Ser, como síntese concentrada de sentido, como
totalidade (1999, p. 134).
O dizer infinito do Olhar do Outro como expressão que traz consigo o seu sentido provoca a desordem da inteligibilidade ansiosa por dar
cabo a todos os fenômenos. Com isso se percebe não apenas uma crítica
à filosofia ocidental, mas a proposta de uma forma de filosofar que é
“desfazer, em cada instante, a sua frase pelo preâmbulo ou pela exegese,
em desdizer o que foi dito, em tentar redizer sem cerimônias o que foi
já mal entendido no inevitável cerimonial em que se compraz o dito”
(LEVINAS, 1980, p. 17). A linguagem como relação, fundada no face-a-face, evoca assim uma dimensão “abraâmica” para quem ocupa-se com a busca pela verdade ou pelo sentido do humano; dimensão
errante e peregrina, sem lugar fixo, sem satisfação com temas e louros
conquistados: a verdade se torna um desafio ético pelo Olhar do Outro,
segundo Souza (1999, p. 143), uma vez que diante do rosto não se fica
simplesmente a contemplar; assim como diante dos acontecimento da
vida, dos traumas que nos atingem, dos quais podemos até, paradoxalmente, fingir não saber.
O dizer do rosto do Outro, como dizer da vida, arrebenta com
os conceitos; nos leva adiante a ponto de considerarmos que tudo é
grave enquanto o respeito ao Outro e ao outro do Outro não falar
mais alto.
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