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Heidegger e Levinas:
da ontologia à ética da alteridade
Silvestre Grzibowski*
Resumo: O presente estudo examina a partir do pensamento de Emmanuel Levinas a constituição da ética da alteridade. Levinas, estudioso de
Heidegger, verifica com suas análises que o primado filosófico do pensamento ocidental é a ontologia. Para ele a ontologia heideggeriana exibe
a autoridade do Eu sobre o Outro, sendo a ontologia o pensamento do
Mesmo e sobre o Mesmo, ou seja, o Outro é pensado a partir do Mesmo.
No entanto, Levinas propõe e defende a tese da ética como filosofia primeira. E, para construir a originalidade ética, partirá da terceira Meditação cartesiana quando apresenta a Ideia do Infinito onde o nosso autor
reconhece um duplo significado do termo. A ideia do infinito se comprova em uma transcendência absoluta, infinitamente Outro, o absolutamente Outro. E ainda o infinito reenvia ao Outro, no qual a exterioridade é o absoluto, este que não é outro mesmo – alter ego husserliano.
Palavras-chave: Levinas. Ontologia. Heidegger. Ética. Infinito.
* D
outor em Filosofia pela Universidad Pontifícia de Salamanca e atualmente é professor
adjunto da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).
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O nosso estudo que tem como título Heidegger e Levinas: da ontologia à ética da alteridade tem como finalidade mostrar que a pesquisa
partirá do pensamento ou das obras de Levinas. Em outras palavras, o
adágio heideggeriano será lido, interpretado e criticado pelo nosso autor.
Desse modo, a nossa pesquisa será uma tentativa de apresentar ao leitor o cuidado que Levinas teve ao analisar os escritos de Heidegger que,
a partir disso, constata que não seria possível edificar um pensamento
ético que contemplasse a alteridade do Outro. Sendo assim, ele busca
evadir-se da racionalidade tirânica do pensamento ocidental, sobretudo
tendo como pano de fundo a Ideia do Infinito. A seguinte hipótese norteará o estudo: é possível romper com o pensamento ontológico a partir
da Ideia do Infinito e construir assim uma ética de responsabilidade para
com o outro?
A inquietude1 que Levinas tinha do pensamento heideggeriano
vem desde os primeiros contatos, quando era ainda jovem e estudante
em Friburgo. Abordarei na primeira parte da pesquisa essas inquietações. Levinas aponta duras críticas a esse pensamento porque, segundo
ele, foi um dos grandes responsáveis pela objetivação da subjetividade
e o afugentamento do outro, da alteridade. Torna-se evidente a crítica,
pela dureza do discurso, bem como pela insistência, que se faz presente
praticamente em todas as obras. Entretanto, ele não ficou somente nas
condenações, assinalou outro modo de pensar. Por isso, na segunda parte mostrarei como Levinas busca edificar a questão da alteridade a partir
de categoria cartesiana da Ideia do Infinito em mim.
Da ontologia à ética
As obras levinasianas são um convite para pensarmos a filosofia a
partir da ética. Para Levinas, pensar a ética é refletir a ética e também ir
além dela, fora do sistema ou da totalidade. Discorrer e agir por puro
desinteresse. Diante disso, a relação na qual crê e arquiteta deve partir
1 V
er a entrevista que Levinas concede a Philippe Nemo, sobretudo nas páginas que
são dedicadas a Heidegger (LEVINAS, 1982, p. 21-29). É importante notar que Levinas dirige duras críticas a Heidegger, no entanto, ele reconhece que esse pensador
alemão é um dos maiores pensadores da filosofia ocidental e afirma que seria impossível estudar, fazer filosofia, sem conhecer o seu pensamento.
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do desinteresse (désintéressement).2 Esta seria a primeira condição vital
para entrar em uma relação ética da responsabilidade. Pois, o ser imperou na filosofia ocidental. Por conseguinte, o “désintéressement” substitui
“l’intéressement”. O ser, o esse (essência) é interesse (LEVINAS, 2003, p.
45). Levinas inverte radicalmente o eu da ação. Faz uma passagem do eu
“égo-logie” ao Outro “alter-logie”, que privilegia. Chama a isso de “despossuir”, deposição ou a destituição do eu egoísta. Ele mesmo designa
este processo como evasão (évasion) (LEVINAS, 1991, p. 13).
A ética proposta por Levinas3 é uma ética metafísica e separada
da ontologia. Para o pensador, a ética precisa ser a filosofia primeira e
não a ontologia. No entanto, a metafísica que Levinas defende é díspar
da daquela compreendida por Heidegger. O filósofo alemão concebeu a
metafísica a partir da física e na busca de compreender o ser, destruiu a
metafísica. “Heidegger descreveu o que os gregos chamaram de física, no
sentido amplo, encontrou nesta palavra o significado que tem tido para
eles” (LLEWWLY, 1988, p. 136). Ora, se nós entendermos esta palavra
no sentido extenso nós entenderemos porque Levinas disse que o principal ponto do pensamento é a metafísica.
Levinas se contrapõe à metafísica (ontologia) heideggeriana.
Em Totalidade e Infinito afirma que a “ontologia supõe a metafísica”
(LEVINAS 2006, p. 71). Isso significa que precede à ontologia. Porém,
quando ele fala em metafísica se refere à ética, porque a ética surge como
oposição à ontologia ou o antídoto será a ética como filosofia primeira.
2 “ Le due parole che constituiscono il centro della proposta filosófica di Levinas sono:
altrimenti che essere e dis-inter-esse. L’Altrementi che essere indica il non basare la vita
sul potenziamento di sé. Una altra parola che chiarisce questa idea è la depozione,
proprio nel senso in cui si dice che un despota o un tiranno o un sovrano va deposto.
Deporre l’io dalla sua sovranità, far posto all’atro e al suo indistruttible olto, instaura
relazioni di parola, di comunicazione, di inegnamento, prima ancora che un atto di
generosità, è un ato di giustizia e di alta eticitá. Il dis-inter-esse è scritto in tre pezzi per
indicare che nel movimento faccia a faccia, indicato dal pezzo intermedio inter, quello
che io debbo fare è di depontenziare la pretesa del mio essere a porsi comme sovrano
(e qui ci si ricongiunge col discurso di prima), e questo viene indicato nel primo dis e
nel terzo pezzo esse della parola scomposta” (BORSATO, 1995, p. 143).
3 Antonio Pérez Quintana afirma que “Pudiera ser considerado una contribución decisiva a la ética de la responsabilidad, que, según se dice, tendría que ser la ética del
siglo XXI” (QUINTANA, 2003, p. 139). Levando consideraçao esta tese, acredito que
a proposta sobre a ética levinasiana não deve direcionar a história, mas diria que,
filosoficamente, a história da filosofia não pode mais saltar por cima deste pensador.
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Assim, Levinas ao retomar o termo metafísica utilizado pela tradição
ocidental desde Aristóteles, desloca-o do eixo tradicional, dá-lhe um
novo direcionamento, situa-o na relação inter-humana. Uma ética instaurada na relação inter-humana. Na interpretação de Pivatto, a ética
proposta por Levinas revela o sentido profundo do humano e precede a
ontologia. “Propõe-se, por conseguinte, conferir-lhe nova inteligibilidade e novo estatuto. Para tanto, e com originalidade, opera inflexões novas
e surpreendentes sobre conceitos clássicos referentes à filosofia” (2000,
p. 81). Levinas marca criticamente a filosofia ocidental por ser demasiada
ontologia, porque essa, segundo ele, distanciou-se da ética e suprimiu a
subjetividade. A ontologia alvitrou a assimilação do outro e o retorno
ao mesmo, em que o sujeito se consolida e se acomoda como sendo –
alguém identidade – e onde não há processo de subjetivação. A filosofia
como ontologia “é a filosofia do poder, a ontologia como filosofia primeira que não questiona o Mesmo, é a filosofia da injustiça” (LEVINAS,
2006, p. 70). É da injustiça porque é uma filosofia imperialista, tirânica,4
não respeita o Outro como alteridade, mas o reduz a objeto – Mesmidade/
Mesmice. Levinas compreende que a ontologia é uma filosofia sem ética.
E ainda, esse pensamento determina um modo concreto de entender a ciência e a cientificidade, gera uma imagem da natureza como um
campo a ser transformado pelo trabalho e pela técnica, determina uma
organização deste trabalho, uma ideologia humanista sobre o lugar do
homem e seus direitos, por fim determina uma organização do poder
político e até dos supostos que fazem possível a destruição atômica. Assim, Heidegger crê encontrar uma atitude de domínio frente à natureza e aos demais, atitude que não é originária, nem ingênua e tampouco
universal a todos os grupos humanos e a todas as épocas históricas. No
4 L
evinas acusa impetuosamente a filosofia/ontologia como pensamento tirânico, afirma que o pensamento ocidental racional é um pensamento tirânico: “C’est que la
pensée libre n’est pas simplement d’une tyrannie s’exerçant sur notre animalité; elle
n’est pas simple spectatrice de cette pauvre animalité agitée par la peur et l’amour ; la
raison ne reconnaît pas simplement l’animalité en nous, elle en est comme infectée
par le dedans. La menace du tyran n’est pas simplement connue para la raison, elle
émeut la raison, si paradaxaux que puissent paraître ce termes : une raison émue. Le
despotisme des sens constitue la source de la tyrannie. C’est l’union incompréhensible
de la raison et de l’animalité, union sousjacente à leur distinction, qui rend dérisoire
l’autonomie” (LEVINAS, 1994, p. 36).
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entanto, segundo o filósofo lituano-francês (LEVINAS, 2006, p. 70-71)
essa técnica criada pelo homem moderno tem coisificado o homem e a
natureza. O homem torna-se coisa, objeto.
Convém lembrar aqui as discussões que se levantam, desde o século passado, sobre a redução do homem à categoria objeto, que
não implicam somente problemas epistemológicos mas também
e sobretudo antropológicos. É mister romper com o esquema do
objetivismo correlativo por não contemplar uma relação em que
a alteridade do outro seja resguardada inclusive pelo sujeito conhecedor (PIVATTO, 2000, p. 83).
Diante disso, o nosso autor insiste que é possível romper com a
rigidez do pensamento ocidental. Como rescindir com o esquema totalitário/objetivista e edificar a partir da ética um dito original? Levinas proferirá: as sociedades devem respeitar a alteridade, conviver com o diferente.
A alteridade do outro não depende da minha capacidade de distinguir o
outro como outro, porque se assim fosse, já não seria alteridade, a anularia. Pois, quem determina a alteridade é o Outro e não o Eu. Este que se
aproxima diante de mim é o totalmente Outro. Mas há que se distinguir
a diferença da alteridade. Ela não é em todo fato que existe apenas uma
diferença, “orientando-me até alguém que tem um nariz diferente do
meu, diferente cores dos olhos, e outras características. Isto não é diferença, mas alteridade” (WRIGHT; HUGHES, 1988, p. 170). E alteridade
não pode ser medida, é o começo da transcendência. Ou seja, a relação
com a alteridade nos coloca em relação com o infinito. Ela interrompe a
trama do ser.
A filosofia ocidental dirá que o outro quando se manifesta como
ser, perde a sua alteridade. “A filosofia foi desde sempre atingida por um
horror ao outro, que continua a ser outro, por uma alergia ‘allergie’ insuportável” (LEVINAS, 1994, p.188). Neste sentido, a filosofia do ser sempre será uma filosofia da imanência, da autonomia e do ateísmo, porque
ao negar o outro, nega-se a alteridade, o infinito do outro, atendendo a
todos como iguais.
A alteridade nunca é englobada em um conceito, nunca termina
em número ou em cifras, mas está fora da objetivação, está fora do meu
alcance e poder. O Outro permanece infinitamente transcendente, infinitamente estrangeiro, mas seu rosto, em que se produz sua epifania e
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que me chama, rompe com o mundo. Romper no sentido da natureza
que tenta dominar o outro, colocando-o numa ordem lógica, reduzindo-a em relação hierárquica. Levinas propõe uma relação anárquica.
Exatamente por isso, a linguagem ética será um fator importante
para a filosofia. Pois, o rosto fala, ou melhor, o rosto em sua presença
fala, antes de qualquer discurso. Segundo Levinas a manifestação do rosto já é discurso, assim que escapa de todas as normas da lógica formal.
Comanda uma relação entre as subjetividades distantes e separadas e
não englobadas em uma totalidade. O discurso é correlativo do Desejo
metafísico e pressupõe parte do Mesmo a acolhida do rosto no processo
de sua epifania (LEVINAS, 2006, p. 182). Rosto, o qual Levinas já chama
de discurso, apresenta uma relação original, não simplesmente a troca
de posições, de pensamentos ou de experiências,5 mas é a originalidade
pura no bom sentido do termo.
A filosofia levinasiana inverte os termos, de modo que a presença
do rosto não é e não se dá através do conhecimento objetivo, ou seja,
não é um desvelamento, mas sim uma revelação como ele mesmo escreve: “a revelação, com relação ao conhecimento objetivante, constitui uma
verdadeira inversão” (LEVINAS, 2006, p. 39, grifo nosso). A revelação é
uma manifestação de si por si. Levinas rompe com Heidegger, no qual
a relação com o outro repousa em definitiva sobre a compreensão, quer
dizer sobre a ontologia.
Na relação de um para com o outro, a essência da linguagem ética
deve ser a interpolação, o vocativo. Porque o outro não é alguém que eu
compreenda, que investigue a partir de um sistema, mas que me interpela e que clama. O outro se dirige a mim, e está nu. “A desnudez do rosto
que não é o que se oferece a mim para que o desvele, e que, por isso, seria
oferecido a meus poderes, aos meus olhos e as minhas percepções em
uma luz exterior até ele” (LEVINAS, 2006, p. 47). Diante da desnudes do
rosto do outro, que aparece como epifania, Levinas está convencido de
que a fenomenologia fracassa por não conseguir desvelar a sua aparição;
o seu modo de mostrar-se é algo que não se deixa catalisar, que excede
a aparição. A manifestação do rosto sempre apresenta uma novidade,
nunca é a mesma, não existe repetição, existe a novidade. De modo que
o rosto conduz ao infinito.
5 “ Le langage n’est pas une expression de la pensée, mais la condition d’un essai de communication. Parler n’est pas simplement dire quelque chose, c’est s’exposer à autrui”
(POIRIÉ, 1987, p. 23).
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Para concluir esta parte rosto e infinito, acredito que a melhor imagem que o nosso autor utiliza para superar a filosofia racionalista kantiana, hegeliana e a ontologia com a noção do infinito é no momento em
que ele busca em Descartes descrever a relação ética de um para com o
outro. A presença do outro não entra na esfera do Mesmo, mas presença que desborda. Esta é a palavra justa, desborda. A ideia do infinito,
“infinitamente mais contida no menos, se produz concretamente com a
modalidade de uma relação com o rosto. E só a ideia do Infinito mantém a exterioridade do Outro com referência ao Mesmo, apesar desta
relação” (LEVINAS, 2006, p. 170). De modo que, esta relação ética do
Mesmo para com o Outro, relação de responsabilidade, não entrará ou
não se deixará englobar pelo plano racional intencional ou ontológico. A
relação sempre será infinita e Levinas, para romper com o primado ontológico e construir uma relação ética original, parte da ideia do Infinito.
A ideia do infinito
A ideia do Infinito em Levinas parece ser um fio condutor de sua filosofia, conforme ele aponta em sua obra Totalité et Infini: “Nossas análises
são dirigidas por uma estrutura formal: a ideia do Infinito em nós” (LEVINAS, 2006, p. 10). Para isso, ele vai buscar a fundamentação em Descartes.
Para Levinas, a noção infinito será elaborada desta maneira: Absolutamente Outro, não integrável em uma totalidade, ou seja, exterioridade absoluta, o infinito desborda o cogito que tentava tematizar, escapa a toda dimensão de sua infinidade. “Sua transcendência com relação
ao cogito, que está separado e que pensa constitui o índice primeiro de
sua infinitude” (LEVINAS, 2006, p. 20). Segundo Descartes nós temos
em nós uma ideia do infinito. Bem mais, segundo Levinas. O Infinito,
infinitamente mais contido no menos, se produz concretamente com a
modalidade de uma relação com o rosto. E só a ideia do Infinito matém a
exterioridade do Outro (LEVINAS, 2006, 209). Sendo assim, se um quer
pensar a ideia do infinito, há que sair do conceito, já que esta apresenta
uma característica fundamental. Veja: seu ideatum sobrepassa sua ideia e
nós não podemos render conta por nós mesmos (LEVINAS, 2006, p. 19).
Assim como Descartes afirma a ideia do infinito está colocada em nós, e
ela não é uma recordação.
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De modo que para o nosso autor a ideia do infinito aparece no plano
de relação: um ser tem em seu poder entrar em relação imediata com o
que ele não pode nem absorver, nem compreender. Certas filosofias
refutam integrar no campo de suas reflexões as relações com o infinito,
ou bem, elas jogam para o campo da teologia, a título de experiência
mística. Há que sublinhar fortemente que a ideia do infinito em nós não
designa de modo algum uma experiência mística, espiritual no sentido
religioso. Mas reclama e quer ser filosofia como Levinas mesmo afirmaria
(LEVINAS, 1995, p. 103).
A sociedade com o infinito comporta suas exigências: ela implica,
em uma parte, um ser apto a conter mais que ele contém e infinitamente
mais que ele pode tirar de si, quer dizer, um ser interior, capaz de uma
relação não-eu, que não toma sua interioridade pela totalidade do ser,
egoísta. Ao contrário, a relação com o infinito exige uma exterioridade
que não se infiltra em uma vida deixada pelas necessidades e que rompe
esta interioridade pela sua própria incomensurabilidade.
Por isso podemos nos perguntar: o que é o infinito em Levinas?6
Normalmente se pensa o infinito a partir do finito. Levinas assim radicaliza; eu que sou um ser finito “moi qui suis un être fini” produzo a ideia
do infinito: em outros termos, que a ideia não poderia ter vindo se não
tivesse sido colocada em mim “mise em moi” por qualquer substância
que é verdadeiramente infinita. Presente no finito, mas presente fora do
finito, muda não de sentido, mas de nuance. Se a estrutura do infinito é
dupla é porque tudo se passa como – sem jogar com as palavras: “o in do
infinito significara o não e o em”. Ou seja, não é só a negação do que é finito, como também precisamente expressa que a ideia tem sido colocada
em mim “mise em moi” é inaglobável, quer dizer que ela vem de fora, e
desbordando o labor e a capacidade que tem a consciência de assumir.
Para Levinas, será a passividade da consciência. Porém, a passividade
“que não seria similar a receptividade” (LEVINAS, 1995, p. 106), já que é
6 “ Le terme même d’infini est un adjectif substantivé. Il désigne la propriété de certains
contenus offerts à la pensée de s’étendre au-delà de toute limite. Le terme “infini”
fait entendre le surplus ou l’excès sur toute totalité – excès qui n’est nulle part ailleurs
que dans le dynamisme ou le mouvement même d’excéder : débord qui est tout entier débordement; infinition écrit parfois Levinas” (CALIM, 2002, p. 37). Ainda sobre
este tema, tanto este dicionário como os mais importantes estudiosos de Levinas são
unânimes em afirmar que a melhor descrição sobre a ideia do infinito para o nosso
autor, foi feita por Descartes.
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mais passiva do que a receptividade radical da qual fala Heidegger a respeito de Kant, onde a imaginação transcendental oferece ao sujeito uma
alvéola do nada, para adiantar e assumir. Opondo-se a Kant, Levinas
toma de Descartes a ideia do infinito, sobretudo da terceira meditação.7
Como havíamos assinalado há que se reconhecer em Levinas um
duplo significado do termo infinito. Em primeiro lugar, a ideia do infinito se comprova no significado de transcendência absoluta. Levinas
tem criado o neologismo “Illéité” sugerindo que ele não concebe como
um Ente supremo, habitando além do mundo, caracterizando-se por sua
ausência. A “Illéité” tem sido desde o princípio designada como o “infinitamente Outro”, o “absolutamente Outro”, o “mais Alto”, e em suas
últimas obras, a identificou com Deus.
A segunda noção do infinito reenvia ao Outro, nela a exterioridade
é o absoluto, este que não é outro mesmo – alter ego husserliano. Embora,
Husserl, sobretudo na V Meditação Cartesiana tenta superar o solipsimo e assim abre a possibilidades para a existência do outro, embora esta
existência parte do ego.8
Temos que mirar na intencionalidade explícita e implícita em
que, sobre o solo de nosso ego transcendental, se manifesta e se
verifica o alter ego. Temos que conseguir ver como, em que intencionalidades, em que sínteses, em que motivações se forma
em mim o em sentido outro ego (HUSSERL, 1986, p. 150, grifo
nosso).
7 “ Não devo imaginar que não concebo o infinito por uma verdadeira ideia, mas somente
pela negação do que é finito, do mesmo modo que compreendo o repouso e as trevas
pela negação do movimento e da luz: pois, ao contrário, vejo manifestamente que há
mais realidade na substância infinita do que na substância infinita e, portanto, que, de
alguma maneira, tenho em mim a noção do infinito anteriormente à do finito, isto é, de
Deus antes que de mim mesmo. Pois, como seria possível que eu pudesse conhecer que
duvido e que desejo, isto é, que me falta algo e que não sou inteiramente perfeito, se não
tivesse em mim nenhuma ideia de um ser mais perfeito que o meu, em comparação ao
qual eu conheceria as carências de minha natureza. E isto não deixa de ser verdadeiro,
ainda que eu não compreenda o infinito, pois é da natureza do infinito que minha natureza, que é finita e limitada, não possa compreendê-lo” (DESCARTES, 1979, p. 108).
8 Não aprofundarei este tema aqui, porque não é o objetivo desse estudo, e segundo
porque é um tema amplo. Mencionei somente para dizer que Levinas supera o mestre
na forma de conceber a alteridade. Digo ainda que, a respeito deste tema – Husserl e
Levinas – existem muitos estudos, especialmente sobre a questão do outro e da subjetividade. Remeto ao excelente trabalho de PELIZZOLI, 1994, de modo especial no
primeiro capítulo.
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Sabemos da importância e da influência de Husserl em Levinas, no
entanto, parece que o outro, a alteridade, que Husserl propõe parte do
ego transcendental. A relação com Outrem para o nosso autor está fora
dos parâmetros da tematização. Assim, Levinas encontra em Descartes
uma porta aberta quando ele coloca a não constituição, ou a não tematização do infinito: tal seria o remarcado efeito da não constituição do
infinito em Descartes, contestando Husserl, que via no cogito uma subjetividade sem apoio fora dela, que constitui a ideia do infinito ela-mesma
e se dá como objeto. Aqui, em Levinas, ao contrário, não é um objeto. Eis
uma abertura que convida a trilhar fora dos caminhos pegados à intencionalidade husserliana. Levinas afasta da exterioridade do rosto a experiência presidida pelo conhecimento. A fenomenologia, neste ponto, é
abandonada por Levinas.
A relação com o Infinito já não tem, pois, a estrutura de uma
correlação intencional. O anacronismo por excelência de um
passado que nunca foi um agora e a abordagem do Infinito pelo
sacrifício – eis a palavra Enigma. O rosto só pode aparecer como
rosto – como proximidade que interrompe a série – se vier enigmaticamente a partir do infinito do seu passado imemorial. E o
Infinito, para solicitar o Desejo – um pensamento que pensa mais
que pensa – não pode encarnar-se num Desejável, não pode, infinito, fechar-se num fim (LEVINAS, 2000, p. 263).
Levinas quebra a simetria sem interrupção renascente no espelho
da representação, a reflexão especulativa. A presença de um ser não se
introduz na esfera do “Mesmo, presença que a desborda, fixa seu estatuto
infinito. A ideia do infinito, o infinitamente mais contido no menos, se
produz concretamente baixo as espécies de uma relação com o rosto”
(LEVINAS, 2006, p. 169). Este infinito assim pode designá-los, o Outro
e Illéité, são separados e inseparáveis, a tal ponto que Levinas conservou
a palavra infinita a riqueza incontornável de uma ambiguidade, de uma
equivocidade a uma ambivalência constitutiva. Separação e conexão
caracterizam, portanto, a sociedade Mesmo-Outro e a relação Mesmo-Illéité. Uma e a outra relação exigem separação do Mesmo e do Outro
que se mantém em relação e ao mesmo tempo em que eles se absolvem
desta relação, em sua residência estão absolutamente separados.9
9 S eparação, ateísmo, criação são temos importantes para o nosso pensador, por isso, e
que perpassam todo o pensamento levinasiano.
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Depois de ter identificado as implicações negativas da relação com
o infinito, quer dizer, da impossibilidade pelo ser transcendente e pelo
Mesmo de entrar sob o regime do conceito, de se deixar englobar pela
totalidade conceitual, Levinas busca um prolongamento de Descartes ao
elucidar o aspecto positivo da estrutura formal da ideia do infinito. Sua
reflexão brota, em uma parte, no plano ontológico de Conatus Essendi, e
em outra parte, no plano epistemológico do conhecimento e do saber, a
fim de se situar sobre o plano ético da relação, que segundo ele, convém
a um comércio onde está implicado na infinitude do infinito. Esta ética
surge lá onde existe sociedade. Ou seja, o homem concreto, vivendo em
sociedade, tem já a ideia do infinito que se produz em duplo sentido da
efetuação e da exposição, na interlocução do discurso que implica a posição de face-a-face, e a acolhida do rosto.
A exposição face-a-face é a oposição por excelência, que caracteriza o seu ponto de partida. Ela toma sua fonte, não na consciência, mas
no Outro. Ela não pode reivindicar sua iniciativa, como faz a intencionalidade husserliana. O Outro se apresenta e em sua face, se manifesta. De
modo que a presença do Outro se faz épiphanie; seu discurso, revelação.
Ao mesmo tempo, toca a acolhida de frente e em face da responsabilidade da resposta. “Eu não luto mais com um deus sem rosto, mas respondo
a sua expressão, a sua revelação” (LEVINAS, 2006, p. 171). Para Levinas
face-a-face é a linguagem, é o primordial, é a experiência originária do
inter-humano, quer dizer, do humano: a posteriori na função a priori.
Experiência originária. Esta experiência que Levinas repete, demasiadamente seria a proximidade ética com o Outro, de nudez sem máscara.
Nesse sentido, a ideia do Infinito para Levinas está ligada à relação
social, ou mais precisamente à relação com outrem. Esta relação consiste em abordar um ser absolutamente exterior. Esta relação não é de
um sujeito com o objeto, onde o eu faz do outro um objeto, um tema e
integra-se na identidade do Mesmo. Mas esta exterioridade do ser infinito manifesta-se na resistência absoluta que pela sua epifania se opõe a
todos os meus poderes. O outro, a alteridade do outro, jamais se deixará
ser reduzida ao Mesmo, mas sempre será exterioridade, alteridade. A
arquitetura do seu pensamento é um colocar-se face-a-face com outro
exigente e suplicante.
E por último ainda é importante frisar que a dimensão do transcendente em Levinas, a acolhida da ideia do Infinito, é abordada em duas
aproximações distintas: a primeira descreve o Transcendente para lá de
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toda a imanência, como uma ideia que vem a mim; e a segunda é introduzida na relação com Outro, com o rosto do Outro. Ela compreende
o Mesmo em um relacionamento totalmente diferente da experiência
feliz e egoísta do gozo, ela situa de entrada o eixo da relação ética. Pois,
a filosofia de Levinas, neste caso, a ética, está voltada para o Outro, do
totalmente outro, da exterioridade. O subtítulo de Totalité et Infini deixa
evidente o caminho que percorrerá: essai sur l’extériorité. Mas de qual
exterioridade Levinas fala? A exterioridade é de outrem, e é para este
que se reporta a ideia do infinito. Então, o nosso autor toma a ideia de
Descartes para apresentar sua anterioridade a todo o pensamento infinito, sua exterioridade a respeito do finito, e em seguida a sua ideia
pelo infinito nele mesmo no ser separado, mas, em nenhum instante está
preocupado em provar a existência de Deus, como fazia Descartes. Por
conseguinte, Levinas recolhe esta ideia de Descartes para fazer sua evidência de uma noção do infinito que se apresenta em tanto que “uma relação com alteridade total, irredutível a interioridade e que, não violenta
a interioridade” (LEVINAS, 2006, p. 186).
Apreciações finais
No âmago do pensamento levinasiano está a relação entre o eu e o
outro, ou o outro e eu, isso implica a injunção ou a exigência de responsabilidade para com o outro. Essa relação ética parte sempre do outro, do
totalmente outro. Nesse sentido, notamos que a filosofia de Emmanuel
Levinas é o que poderíamos nomear como um arrojado labor permeado
de desafios.
A filosofia de Levinas parte da Ideia do Infinito de Descartes evidencia como é possível sustentar uma ética a partir da alteridade do outro que é totalmente outro sem fazer sistema, ou seja, sem que o outro
arruíne a diferença. Assim, ultrapassa as barreiras dos conceitos e das
abstrações postuladas no Ocidente. Ela está cunhada na sabedoria do
amor que se concretiza pelo respeito, pela justiça, pela fraternidade e
pela responsabilidade ética com o outro. A filosofia ocidental se preocupou apenas com a questão do ser o que proporcionou a negação do outro
e legitimou os regimes totalitários tendo como consequências as mais
brutais e absurdas formas de violências como as guerras e o extermínio
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de milhares de pessoas nos campos de concentração. Percebemos que os
sistemas filosóficos foram ineficazes e findaram se extinguindo porque
não foram capazes de pensar o outro e, sobretudo, não pensaram o ser
humano em sua singularidade e identidade, limitando-se a questões cabalmente conceituais herméticas. A razão enquanto instrumento emancipatório é considerada senhora da verdade. Ela foi capaz de escravizar,
anular, negar e aniquilar o ser humano, reduzindo-o a objeto.
A proposta ética levinasiana não se insere numa relação prévia, ou
seja, epistemológica. Ele ataca esse modelo de conhecimento, sobretudo,
a relação ética apresentada pelo pensamento ocidental e propõe uma relação construída no respeito pelo Outro, que é o diferente, e que a diferença precisa ser respeitada.
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