Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Programa de Mestrado em Direito Núcleo de Pesquisa: Direito das Relações Econômicas Internacionais Linha de Pesquisa: Efetividade dos Direitos de Terceira Dimensão e Tutela da Coletividade, dos Povos e da Humanidade Ana Carolina Souza Fernandes O MERCADO FINANCEIRO E A GLOBALIZAÇÃO: UMA ANÁLISE SOB A PERSPECTIVA DA EFETIVIDADE DO DIREITO AO DESENVOLVIMENTO São Paulo 2014 2 Ana Carolina Souza Fernandes O MERCADO FINANCEIRO E A GLOBALIZAÇÃO: UMA ANÁLISE SOB A PERSPECTIVA DA EFETIVIDADE DO DIREITO AO DESENVOLVIMENTO Dissertação apresentada como exigência parcial para obtenção do Título de Mestre no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sob a orientação do Prof. Dr. Cláudio Finkelstein. São Paulo 2014 3 Fernandes, Ana Carolina Souza O Mercado Financeiro e a Globalização: Uma Análise sob a Perspectiva da Efetividade do Direito ao Desenvolvimento / Ana Carolina Souza Fernandes; orientador: Cláudio Finkelstein – São Paulo: PUC, 2014. 221f. Dissertação. Programa de Pós-graduação Stricto Sensu em Direito. Núcleo de Pesquisa: Direito das Relações Econômicas Internacionais. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. 1. Mercado Financeiro. 2. Globalização. 3. Regulação. 4. Direito ao Desenvolvimento. 4 FOLHA DE APROVAÇÃO Ana Carolina Souza Fernandes O Mercado Financeiro e a Globalização: Uma Análise sob a Perspectiva do Direito ao Desenvolvimento Dissertação apresentada como exigência parcial para obtenção do Título de Mestre no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sob a orientação do Prof. Dr. Cláudio Finkelstein. Núcleo de Pesquisa: Direito Econômicas Internacionais. das Relações Área: Efetividade dos Direitos de Terceira Dimensão e Tutela da Coletividade, dos Povos e da Humanidade. Aprovado em: Agosto/2014 Banca Examinadora da Qualificação Prof. Dr. Cláudio Finkelstein Orientador Instituição: PUC/SP Assinatura: _________________________ Prof. Dr. Vladmir Oliveira da Silveira Instituição: PUC/SP Assinatura: _________________________ Profa. Dra. Lívia Gaigher Bósio Campello Instituição: UNIMAR/SP Assinatura: _________________________ 5 DEDICATÓRIA Dedico este trabalho à minha família, em especial, meus pais, Milton Fernandes e Helen Mota Souza, pelo constante apoio e incentivo. Dedico igualmente este trabalho ao querido amigo, Prof. Dr. Vladmir Oliveira da Silveira, sem o qual não teria chegado até aqui. 6 AGRADECIMENTOS Meus primeiros agradecimentos vão para os meus primeiros mestres, meus pais, que desde sempre foram um exemplo a ser seguido: de coragem e superação. Sem eles, certamente, muitos obstáculos teriam sido enfrentados com maior dificuldade. Agradeço também ao meu professor e orientador, Prof. Dr. Cláudio Finkestein, por ter acreditado no meu projeto de dissertação e, assim, ter viabilizado não somente minha entrada no programa de mestrado da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como também por ter oferecido uma orientação de grande valia. Não posso deixar de agradecer, igualmente, o Prof. Dr. Vladmir Oliveira da Silveira, inicialmente professor e tutor da minha época de graduação e atualmente um grande amigo, cujas contribuições foram imprescindíveis para o resultado final deste trabalho, fruto de 02 (dois) anos de aprofundados estudos. Agradeço ao Prof. Dr. Roberto Correia da Silva Gomes Calda, que conheci nas reuniões da Associação dos Pós-Graduandos da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e acabou se tornando um grande amigo e prestou relevantes contribuições para o aprimoramento deste trabalho, quando da banca de qualificação. Agradeço a Profa. Dra. Lívia Gaigher Bósio Campello que auxiliou sobremaneira nas questões metodológicas, enriquecendo, assim o presente trabalho. Agradeço também aos amigos pelo carinho e pela compreensão pelos momentos de ausência, mas que necessários para que a conclusão deste. A todos que, direta ou indiretamente, contribuíram para que esse trabalho fosse realizado: Meu eterno agradecimento! 7 “AS FINANÇAS SÃO O CÉREBRO DA ECONOMIA DE MERCADO. Infelizmente, como o mundo lembrou com tanta frequência ao longo das últimas três décadas, mormente no aperto de crédito que começou no terceiro trimestre de 2007 – esse cérebro está sujeito a várias enfermidades. Em especial, está propenso a violentas oscilações de humor, da euforia ao pânico. Portanto, a história das finanças globais, desde 1980, tem sido de crises financeiras assustadoramente onerosas – onerosas não só em termos de custos para os contribuintes ou de perdas na produção de bens e serviços, mas também em termos de esfacelamento da vida de vítimas inocentes”. MARTIN WOLF 8 RESUMO FERNANDES, Ana Carolina Souza. O Mercado Financeiro e a Globalização: Uma Análise sob a Perspectiva da Efetividade do Direito ao Desenvolvimento. 2014. 221f. Dissertação (Programa de Pós-Gradução Stricto Sensu) – Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 2014. A livre circulação de bens e serviços, capital financeiro e de informação é a base do fenômeno da globalização. Quando se trata do papel do Direito neste contexto há uma convergência de entendimentos acerca do descompasso entre o direito posto e a realidade que pretende regular. Ações por parte dos governos na regulação do mercado, em especial os mercados financeiro e de capital, são fatores essenciais e determinantes para a estabilidade e o desenvolvimento nacionais. A presente dissertação pretende analisar a origem e a evolução da globalização financeira, bem como seus efeitos, principalmente após o advento da crise de 2008. Pretendemos, ainda, contextualizar a questão da regulação dos mercados como um meio de efetivação do direito ao desenvolvimento, por meio da atuação do Estado necessário. Por se tratar de um estudo descritivo e exploratório, será realizado com base em pesquisa bibliográfica, nacional e estrangeira, utilizando-se do método dedutivo e, excepcionalmente, do método indutivo. Palavras-chave: desenvolvimento. mercado financeiro; globalização; regulação; direito ao 9 ABSTRACT FERNANDES, Ana Carolina Souza. Financial Markets and Globalisation: An Analysis under the Perspective of the Effectiveness of the Right to Development. 2014. 221f. Thesis (L.LM Program) – Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 2014. The free circulation of goods and services, financial capital and information is the basis of the globalisation. When it comes to the role of Law in such context there is a convergence of understandings regarding the mismatch between the current Law and the reality that the Law intents to regulate. Actions taken by governments towards regulation of the market, especially the financial and the capital markets, are essential factors and also decisive for the stability and development. This thesis shall analyze the origin and evolution of financial globalization, and its effects, mainly after the 2008 crisis. It is also intented to contextualize the market regulation as a mean to the effectiveness of the right to development, through the actions of the necessary State. Since this is a descriptive and exploratory study, shall be based on literature, national and alien, using the deductive method, and excepcionally, the inductive method. Keywords: financial markets; globalisation; regulation; right to development. 10 LISTA DE ILUSTRAÇÕES Figura 1 – Sistema das Nações Unidas .................................................................... 52 Figura 2 – Política Protecionista durante a Grande Depressão................................. 61 Figura 3 – Grupo Banco Mundial Priorizando o Setor Financeiro ao Invés da Pobreza (Ano Fiscal 2010-2013) ............................................................................................. 66 Figura 4 – Classificação das Instituições Financeiras ............................................. 120 Figura 5 – Operação Financeira Estruturada .......................................................... 140 Figura 6 – Fluxo de Pagamento das Hipotecas....................................................... 141 Figura 7 – Ranking de Investimentos Estrangeiros (Em US$ Bilhões) .................... 157 Figura 8 – Capital Social das Securitizadoras x Volume de Emissões .................... 164 Figura 9 – Evolução do Índice de Desenvolvimento Humano ................................. 175 Figura 10 – Objetivos do Desenvolvimento do Milênio ............................................ 194 11 SUMÁRIO INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 13 1 A GLOBALIZAÇÃO DOS MERCADOS NO SÉCULO XXI ................................... 18 1.1 A Globalização e Seus Desmembramentos: Um Resgate de Suas Origens .. 20 1.1.1 Globalização Econômica ....................................................................... 22 1.1.2 Globalização Financeira ........................................................................ 28 1.1.3 Outros Tipos de Globalização ................................................................ 39 2 GLOBALIZAÇÃO, MERCADO FINANCEIRO E DIREITO INTERNACIONAL ..... 46 2.1 O Papel das Organizações Internacionais em um Mundo Globalizado .......... 48 2.2 A Globalização na Agenda das Organizações Internacionais ......................... 54 2.2.1 Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio/Organização Mundial do Comércio ........................................................................................................ 56 2.2.2 Fundo Monetário Internacional .............................................................. 61 2.2.3 Banco Mundial ....................................................................................... 64 2.3 O Sistema Financeiro Global como Soft Law .................................................. 67 2.4 Governança Global ......................................................................................... 73 3 O PAPEL DO ESTADO CONTEMPORÂNEO DIANTE DA GLOBALIZAÇÃO FINANCEIRA ............................................................................................................ 80 3.1 Estado Liberal ................................................................................................. 82 3.2 Estado Social ou Welfare State....................................................................... 86 3.3 O Neoliberalismo e o Estado Mínimo .............................................................. 92 3.4 Estado Democrático e Social de Direito .......................................................... 99 3.4.1 A Ideia de um Estado Necessário ........................................................ 104 3.4.2 A Terceira Via ...................................................................................... 107 4 O MERCADO FINANCEIRO E AS CONSEQUÊNCIAS DO CAPITAL ESPECULATIVO .................................................................................................... 111 4.1 A Dinâmica do Mercado Financeiro .............................................................. 119 4.1.1 O Mercado Financeiro ......................................................................... 122 12 4.1.2 O Mercado de Capitais ........................................................................ 128 4.2 Capital Especulativo e sua Relação com as Crises ...................................... 134 4.2.1 A Crise Subprime de 2008 ................................................................... 137 4.3 A Relação da Law & Economics com o Mercado Financeiro ........................ 147 4.4 Estado Necessário ou Autoregulação? ......................................................... 152 5 O DIREITO AO DESENVOLVIMENTO COMO DIREITO HUMANO ................... 167 5.1 Crescimento e Desenvolvimento: Uma Superação Conceitual ..................... 171 5.1.1 O Índice de Desenvolvimento Humano................................................ 173 5.1.2 O Índice do Bom País .......................................................................... 177 5.2 O Direito ao Desenvolvimento como Direito Humano ................................... 180 5.2.1 Acepção Moral e Ética ......................................................................... 185 5.3 O Desenvolvimento como Liberdade ............................................................ 188 5.4 O Direito ao Desenvolvimento e o Direito Econômico Internacional ............. 191 5.5 Concretização do Direito ao Desenvolvimento Enquanto Direito Humano ... 196 CONCLUSÃO ......................................................................................................... 201 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ....................................................................... 208 13 INTRODUÇÃO A expressão “globalização” é notadamente utilizada para exprimir uma mudança de paradigma na dinâmica do comércio internacional e do capital, no que diz respeito à transposição de barreiras e ausência de referências espaciais. Para os fins da presente dissertação, ao falarmos em capital estamos nos referindo ao capital financeiro, de modo que não haja confusão entre este e o capital propriamente dito, enquanto elemento do fator de produção. A denominada globalização econômica é caracterizada pela livre circulação de bens e serviços em escala global, aliada ao acesso quase que irrestrito e imediato à informação. Ato contínuo, a integração dos sistemas bancário e financeiro e a livre circulação de capital é a base do que se alcunhou de globalização financeira. Em ambos os casos, tem-se o encurtamento da distância entre os povos em tempo e a custo mais reduzidos. No entanto, ao tratarmos da globalização – tanto econômica quanto financeira –, observa-se uma grande contradição: de um lado, tal fenômeno promoveu a integração econômica, a intensificação do comércio internacional, o aumento de produtividade, o aumento da disponibilidade de poupança, bem como a convergência de normas jurídicas (consubstanciada em normas jurídicas de origem internacional) e a convergência cultural de consumo. Por outro lado, trouxe consigo a desagregação social, a má distribuição de renda, a dissolução dos alicerces da soberania nacional, o enfraquecimento da capacidade de intervenção do Estado e o comprometimento do funcionamento das forças democráticas de dado país. No que diz respeito à globalização financeira, a intensa – e nem sempre regulada – entrada de capitais trouxe inúmeros efeitos adversos, notadamente cambiais, monetários e inflacionários, especialmente em se tratando de países enquadrados como “em desenvolvimento” ou “emergentes”, na medida em que estes são bastante dependentes desse tipo de investimento externo. 14 É sabido que a sociedade global atual baseia-se, primordialmente, em uma economia de mercado, na qual decisões sobre o quê, o como e ao para quem devem ser produzidos os bens são tomadas pelos próprios agentes econômicos. Dentre algumas exceções, por exemplo, o Brasil, característico por possuir uma visão sócioeconômico de mercado, ao Estado cabe um papel de garantir o seu regular funcionamento, nos termos do artigo 174 da Constituição Federal de 1988. Por meio de regulações e de fiscalizações de agentes descentralizados, buscam corrigir determinadas imperfeições do mercado, como, por exemplo: (i) incapacidade de promover uma adequada alocação de recursos; (ii) insuficiência de, sozinho, promover uma justa distribuição da renda; e (iii) proteção de investidores e acionistas minoritários, dentre outros. Mister mencionar que a presente dissertação não tem o objetivo de defender teses contra ou a favor da globalização econômica, sequer financeira. Apenas reconhecer sua existência como parte integrante da realidade mundial e cuja tendência é se aprimorar, se reinventar. Como jamais visto outrora, os países estão cada vez mais dependentes de produtos e serviços uns dos outros. No que concerne à livre circulação de capital, essa dependência é cada vez mais evidente se levarmos em consideração os efeitos perversos das diversas crises que assombraram diversos países ao longo dos séculos XX e XXI. No auge da crise financeira nos Estados Unidos, por exemplo, o presidente da Security Exchange Commission – órgão regulatório do mercado de capitais norte-americano –, Charles Christopher Cox, declarou que a intervenção governamental poderia ser vista pelo mercado como um sinal de extremo risco para o sistema financeiro global e até mesmo um sinal de fraqueza por parte dos órgãos reguladores. No entanto, o próprio Estado, em uma Nação extremamente liberal, foi responsável pelos diversos socorros financeiros (bailouts) que ajudaram a salvar os principais bancos de investimentos norte-americanos. E tal fato segue em direção oposta ao pensamento liberal clássico que preconiza que quanto mais livres (ou autoregulados) são os mercados do poder intervencionista dos Estados, melhor. Consequentemente, qualquer tipo de regulação surge como um obstáculo para o crescimento e desenvolvimento 15 econômicos. A realidade, contudo, nos mostrou e continua nos mostrando que tal assertiva nem sempre é verdadeira. Por mais liberal que possa vir a ser, em situações de crises econômicas, como foi o caso da crise subprime de 2008, o Estado é sempre chamado a intervir e restabelecer o status quo. Por vezes, a atuação de organizações internacionais também faz a diferença, se levarmos em conta o Acordo de Basiléia III do Banco de Compensações Internacionais (Bank for International Settlements), com sede na Suiça, e responsável pela supervisão bancária internacional, contando com a colaboração de representantes de diversos bancos centrais mundiais. Diante deste cenário de incertezas e instabilidades, a presente dissertação tem como objetivo responder às seguintes problemáticas: (i) qual é o exato papel do Estado?; (ii) e das organizações internacionais diante do atual estágio de desenvolvimento do direito internacional público?; (iii) até que ponto e em que medida o Estado torna-se responsável pela salvaguarda do crescimento econômico e desenvolvimento sustentável de determinada economia em detrimento à autoregulação?; e (iv) como concretizar o direito ao desenvolvimento em momentos de estresse? Justifica-se o estudo do tema com a linha de pesquisa porquanto ainda não se dá, na literatura nacional, o destaque que merece. O mercado de capitais, sem sombra de dúvidas, é um meio alternativo de captação de recursos não somente privado, mas também público. E, por conseguinte, relaciona-se diretamente com o direito ao desenvolvimento em seu sentido mais amplo. Uma melhor compreensão do papel do Estado, enquanto agente regulatório, e das organizações internacionais, neste contexto, pode servir como diretriz na elaboração de novas normas jurídicas que estejam associadas ao terceiro elemento prescrito pela Revolução Francesa: a fraternidade. Para tanto, a presente dissertação propõe abordar, em um primeiro momento, o sentido, o alcance e os reflexos jurídicos da globalização nos dias atuais, buscando abordar suas diversas modalidades. Em um segundo momento, será analisado o papel das organizações internacionais no contexto da globalização 16 financeira, qual a agenda das principais organizações internacionais integrantes da comunidade internacional ao tratar da questão da globalização, para, ao final, perquirir acerca da relação entre o direito internacional e o sistema financeiro global, bem como da importância e adequação dos princípios da governança no ambiente financeiro. Em um terceiro momento, trataremos da evolução do Estado até os dias atuais, estudando os principais sistemas econômicos, ou seja, desde o Estado liberal até o Estado que denominamos de “necessário”. Isso porque restou evidente, após a crise subprime de 2008, o interesse de melhor regular o sistema financeiro, em todas as suas esferas, na medida em que a regulação é uma questão de prudência e transparência aos investidores e à sociedade, trazendo uma maior confiança nas operações, pilar indispensável à estabilidade do sistema financeiro. Em um quarto momento, buscar-se-á discorrer sobre a dinâmica do mercado financeiro, refletindo acerca da temática proposta, isto é, da relação entre o mercado financeiro e o capital especulativo, sob um enfoque jurídico-econômico, utilizando-se como paradigma a crise subprime de 2008. Ainda, tratar-se-á da existência de algum tipo de influência de teorias econômicas aplicadas ao direito, tal como a Law & Economics, contribuindo com o debate para a integração de seus conceitos, a fim de verificar a possibilidade de se harmonizar o binômio economiadireito. Também, com vistas a corroborar a hipótese de Estado necessário, tratar-seá da possibilidade de subsistência deste com a autoregulação. Por fim, mas não menos importante, pretendemos entender o alcance do conceito de direito ao desenvolvimento, consoante previsto na Declaração das Nações Unidas sobre o Direito ao Desenvolvimento (1986). Adicionalmente, traçaremos um paralelo entre conceitos sobremaneira importantes, a saber: crescimento econômico e desenvolvimento integral, conceito este desenvolvido no âmbito da Organização dos Estados Americanos. Buscaremos analisar, também, eventual correlação entre o direito ao desenvolvimento e o direito econômico internacional. Ao final e diante das características do Estado Democrático e Social de Direito brasileiro analisar o direito ao desenvolvimento enquanto direito humano, 17 cuja observância, mesmo no contexto do mercado financeiro, deve ser não somente garantido, como também concretizado. Para tanto, a presente dissertação basear-se-á em estudo descritivo e exploratório, utilizando-se de pesquisas bibliográficas e legislativas, nacionais e estrangeiras, por meio do método dedutivo. A título de exceção, o método indutivo também poderá ser utilizado nas tentativas de resolução das problemáticas aqui levantadas. 18 1 A GLOBALIZAÇÃO DOS MERCADOS NO SÉCULO XXI Um dos mais significativos questionamentos do século XXI é saber o porquê o tema globalização se tornou tão controverso, na medida em que proporcionou não somente a abertura ao comércio internacional e a uma maior integração financeira, mas também um crescimento jamais experimentado nos países que migraram de uma tradição agrícola para a industrial. De fato, a Revolução Industrial, iniciada na Inglaterra e espalhada para o resto da Europa a partir do século XVIII, trouxe uma nova forma de pensar a economia, de melhor aproveitar os meios de produção em função do avanço tecnológico e, consequentemente, fez surgir um novo tipo de sociedade com novas estruturas institucionais. Novos métodos de organização da produção, mudanças nas formas de relações sociais e trabalhistas e uma nova abordagem para o consumo foram algumas das características marcantes desse período. Nesse sentido, podemos inferir que a evolução da economia mundial é marcada, inicialmente, pela abertura dos mercados a produtos e serviços estrangeiros e, posteriormente, pela possibilidade de entrada de capital estrangeiro, nas suas mais diversas formas (exportações, investimentos estrangeiros, mercado de capitais, dentre outras). A globalização, no entanto, não diferenciou as características peculiares de cada um dos países. Introduziram-se, de forma acelarada, as inovações impostas pela Revolução Industrial, que foi determinada por uma intensificação da atividade econômica. Ao mesmo tempo, uma explosão nos volumes de transações internacionais, com o desenvolvimento não só do sistema bancário, como também do sistema financeiro, foi à contraface para o surgimento de teorias econômicas tentando explicar o fenômeno da globalização. O liberalismo econômico, surgido em contraposição ao mercantilismo e ao protecionismo que já não se ajustavam às necessidades do capitalismo que vigia 19 naquele momento, não deve induzir ao errôneo raciocínio de que a globalização propriamente dita é um fenômeno recente. Dani Rodrik1, nesse sentido, leciona que: During the seventeenth and eighteenth centuries, world trade had expanded at a steady clip of around 1 percent per year, outpacing the rise in world incomes but not greatly so. Starting sometime in the early part of the nineteenth century, world trade began to grow by leaps and bounds, registering an unprecedent rate of almost 4 percent per annum for the century as a whole. Transaction costs that impede long-distance trade – due to transportation and communication difficulties, government restrictions, or risks to life and property – began to decline precipitously. Capital flows boomed and most of the world´s economies became financially more integrated than before. This was also an era of vast flows of people between continents, with working-class Europeans migrating en masse to the Americas and other lands of recent settlements. For these reasons, most economic historians consider the long century before 1914 the first era of globalization. Tem-se, pois, que o tripé que impulsionou a globalização pautou-se no comércio de bens e serviços, no fluxo de pessoas (imigração) e no fluxo internacional de capitais. A teoria do laissez faire, laissez passer2, bem como a lei da oferta e da procura passam a ganhar espaço nesse cenário. 1 Tradução livre da autora: “Durante os séculos XVII e XVIII, o comércio mundial se expandiu a um ritmo constante de cerca de 1 por cento ao ano, superando o aumento da renda mundial, mas não foi muito além disso. Começando em algum momento no início do século XIX, o comércio mundial começou a crescer aos trancos e barrancos, registrando uma taxa sem precedentes de quase 4 por cento ao ano para o século como um todo. Os custos de transação que impediam o comércio de longa distância – devido a dificuldades de transporte e comunicação, restrições do governo, ou de riscos à vida e à propriedade – começaram a cair vertiginosamente. Os fluxos de capital cresceram e a maioria das economias do mundo tornaram-se financeiramente mais integradas do que antes. Esta foi também uma época de grandes fluxos de pessoas entre os continentes, com a classe trabalhadora europeia migrando em massa para as Américas e outras terras emergentes. Por estas razões, os historiadores econômicos consideram o longo século antes de 1914 a primeira era da globalização” (Rodrik, Dani. The Globalization Paradox: Why Global Markets, States and Democracy Can´t Coexist. Oxford University Press: London, 2011, p. 24). 2 Expressão invocada por Adam Smith, no século XVIII, defendendo um livre mercado e afastando qualquer tipo de interferência externa, essencialmente do Estado. 20 Não obstante o ritmo do comércio internacional durante esse período até meados do século XIX, não podemos afirmar a efetiva existência de um livre comércio propriamente dito. Pelo contrário, havia políticas de império, na qual países industrializados exerciam poder em relação aos países menos industrializados. Essa relação de poder era concretizada, sob o manto de ações voluntárias e consentidas, por meio da formalização de tratados internacionais, objetivando a redução de barreiras tarifárias, a despeito de outras imposições. É evidente, pois, a tentativa de restringir que certos países tomassem as rédeas de suas próprias políticas internas e internacionais3. Assim sendo, o presente Capítulo tem como objetivo resgatar as principais alterações no cenário internacional, de modo a compreender a forma como se deu a globalização desde o seu início até o seu formato nos dias atuais. Refrise-se a importância de se entender os modelos econômico e jurídico impostos pelos países industrializados, difundindo uma cultura liberal, mesmo quando outros sistemas econômicos ainda encontravam-se em vigor, tal como na China (comunismo) e na antiga União Soviética (socialismo), para citar alguns exemplos. E, eventualmente, este Capítulo irá perquirir acerca da existência de outros tipos de globalização. A globalização é, independentemente dos posicionamentos a favor ou contra, uma realidade, um fato que não se pode dissociar, e sequer negar sua interligação direta com o direito internacional, na medida em que ela se efetiva por meio da relação entre Estados. 1.1 GLOBALIZAÇÃO E SEUS DESMEMBRAMENTOS: UM RESGATE DE SUAS ORIGENS O cenário econômico internacional está cada vez mais caracterizado por seu dinamismo, resultado da globalização. O campo das relações econômicas internacionais tornou-se mais abrangente. Cada vez mais um maior número de 3 Podemos citar como exemplo, dentre tantos outros, o Tratado de Balta Liman, assinado entre a GrãBretanha e o Império Otomano, em 1838, limitando o percentual incidente sobre as importações e exportações. Nesse mesmo tratado internacional, restou acordado que o Império Otomano também aboliaria qualquer tipo de monopólio existente, principalmente do ópio. 21 agentes interage entre si, tanto em função do intercâmbio de bens e serviços quanto pelo crescimento do fluxo de investimentos externos. Por sua vez, os mercados produtivos e financeiros parecem viver em uma realidade a parte. Certas tendências como, por exemplo, a crescente interdependência entre os países, a existência de blocos regionais (tal como a União Europeia e o Mercosul), o surgimento de economias emergentes (tal como o BRICS 4), bem como os avanços tecnológicos em diferentes setores, constituem um ambiente que prestigia uma constante competição. Como resultado dessas novas tendências, a globalização dos mercados e, consequentemente, a interconexão do sistema financeiro, tem crescido cada dia mais. Para Ulrich Beck5, (...) a questão da globalização na virada para o século XXI representa, para as empresas que fazem negócios transnacionais, o mesmo que a questão das classes sociais representava para o movimento dos trabalhadores no século XIX, mas com uma diferença essencial: enquanto o movimento dos trabalhadores atuava como poder de oposição, as empresas globais atuam até este momento sem oposição (transnacionais). É imperativo, no contexto atual, uma visão mais contemporânea das relações econômicas internacionais, repensando, assim, conceitos dentro de um modelo econômico diferenciado, que não seja tão liberal, nem tampouco excessivamente intervencionista. Ainda que haja certa dificuldade em separar o processo evolutivo da globalização econômica e da globalização financeira – por serem fenômenos interligados e complementares –, entendemos por bem fazê-lo para os fins da presente dissertação. Não obstante o foco seja essencialmente a globalização financeira, esta, refrise-se, somente surgiu em função da interconexão dos mercados de bens e serviços globais. 4 Grupo este formado pelo Brasil, pela Rússia, pela Índia, pela China e, mais recentemente, pela África do Sul. 5 Beck, Ulrich. O Que É Globalização? Equívocos do Globalismo: Respostas à Globalização. Tradução de André Carone. Editora Paz e Terra: São Paulo, 1999, p. 14. 22 1.1.1 Globalização Econômica A partir do século XIX, as relações econômicas internacionais evoluiram mais rapidamente que outrora, devido a alguns aspectos tais como: (i) progressivo crescimento do comércio e da produção; (ii) aumento de preços – em dólar – das commodities em todo o mundo (variação cambial); (iii) crescimento de bens manufaturados; (iv) abertura para investimentos estrangeiros; (v) desenvolvimento contínuo da transferência de tecnologia; (vi) aumento progressivo dos movimentos de capitais internacionais; (vii) crescente importância econômica da cooperação internacional, dentre outros6. Como resultado, o processo de produção foi sendo automatizado. A Revolução Industrial trouxe como consequência a busca incessante por lucros (em verdade, sua maximização) e as empresas, diante desse processo de expansão e produção em grande escala, buscaram aumentar sua participação no mercado (market share) em decorrência do esgotamento do mercado interno, muito embora nem sempre tal fator seja decisivo no processo de tomada de decisão de uma empresa. Para tanto, viram-se obrigadas a transpor barreiras geográficas, buscando novos mercados além de suas fronteiras, mantendo como foco não só os países em desenvolvimento como potenciais consumidores e receptores de investimentos estrangeiros, mas também os países emergentes. Nesse diapasão, a globalização econômica surgiu com uma promessa: prosperidade, por meio da liberalização dos mercados. Tal promessa, no entanto, se concretizou apenas a um pequeno grupo de países envolvidos nas revoluções tecnológica e industrial. Os países industrializados forçaram países periféricos ou menos desenvolvidos a eliminar suas barreiras comerciais, ao passo que aqueles mantinham as suas, dificultando, assim, as exportações de commodities desses países e, via de consequência, a entrada de receita. Podemos citar, nesse sentido, a disputa entre Estados Unidos e Brasil na Organização Mundial do Comércio, em 6 Disponível em: <http://www.forex.in.rs/the-process-of-internationalization-of-companies-in-todaysglobalized-and-competitive-world/>. Acesso em 02 de agosto de 2013. 23 2009, em função da apuração de práticas de dumping por parte de exportadores brasileiros de suco de laranja ao mercado norte-americano, como também acerca dos subsídios norte-americanos à produção e exportação de algodão, em 20057. As teorias econômicas do livre comércio internacional, principalmente de Adam Smith e David Ricardo, preconizavam uma ideologia capitalista, pautada na liberalização, na livre concorrência e na desregulamentação. Para Adam Smith, as forças do mercado por si próprias, notadamente o lucro, direcionariam a economia a resultados eficientes, como se empurrados por uma “mão invisível” 8. Nesse cenário, não haveria espaço para intervenção do Estado. Defensor de Adam Smith e de sua teoria, John R. Lott Jr.9 afirma que “conceder liberdade às pessoas para que melhorem sua própria condição econômica contribui para tornar a sociedade mais rica de um modo geral”. E continua o autor: “uma vez que o mercado parece estar falhando, o governo é convidado a intervir para tornar as coisas ‘justas’. Mas a intervenção governamental muitas vezes só consegue tornar as coisas piores. Desde leis para companhas políticas até regras para obtenção de licenças profissionais, a regulamentação governamental tende a dificultar o livre comércio”. Até os dias atuais, muitos economistas buscam demonstrar em que sentido e em que condições as proposições de Adam Smith são válidas10. Joseph Stiglitz e Bruce Greenwald11 argumentam que estas condições são válidas apenas 7 Relevante informar que em ambos os casos, a decisão foi favorável ao Brasil. Conceito desenvolvido por Adam Smith, significando “uma coordenação invisível que assegura a consistência dos planos individuais numa sociedade onde predomina um sistema de mercado. De acordo com Smith, um indivíduo que busca apenas o seu próprio interesse é na verdade conduzido por uma mão invisível a obter um resultado que não estava originalmente em seus planos. Esse resultado obtido corresponderia ao interesse da sociedade” (Sandroni, Paulo. Dicionário de Economia do Século XXI. Record: Rio de Janeiro, 2005, p. 511). 9 Lott Jr., John R. Freedomnomics: Por que o Livre Comércio Funciona e Pode Resgatar a Economia Mundial. Tradução de Ivan P. F. Santos. Editora Saraiva: São Paulo, 2009, pp. 14-17. 10 Para maiores detalhes sobre a teoria do equilíbrio e a teoria da impossibilidade, argumentos que especificam as condições pelas quais as assertivas de Adam Smith estão corretas, ver lições de Gerard Debreu (Theory of Value: An Axiomatic Analysis of Economic Equilibrium. Yale University Press: New Haven and London, 1959. Disponível em: <http://cowles.econ.yale.edu/P/cm/m17/>) e Kenneth Arrow (Social Choice and Individual Values. 2.ed. John Wiley & Sons: New York, 1963. Disponível em: <http://cowles.econ.yale.edu/P/cm/m12-2/>), ganhadores do Prêmio Nobel de Economia em 1983 e 1972, respectivamente. Acesso em 02 de agosto de 2013. 11 Greenwald, Bruce; Stiglitz, Joseph. Externalities in Economies with Imperfect Information and Incomplete Markets. Quarterly Journal of Economics 101(2). Maio de 1986, pp. 229-264. 8 24 em situações altamente restritivas, uma vez que quando a informação é imperfeita ou os mercados são incompletos, o equilíbrio competitivo não é eficiente (limitação do Princípio de Pareto). Inclusive, em outro momento, Joseph Stiglitz12 reitera que: Indeed, more recent advances in economic theory – ironically occurring precisely during the period of the most relentless pursuit of the Washington Consensus policies – have shown that whenever information is imperfect and markets incomplete, which is to say always, and specially in developing countries, then the invisible hand works most imperfectly. Fato é que Adam Smith não foi capaz de demonstrar, por meio da “mão invisível” e da teoria da vantagem absoluta13, que o capitalismo liberal é efetivamente lucrativo e vantajoso a todos os envolvidos 14. David Ricardo, seu sucessor, foi quem formulou a teoria da vantagem comparativa, na tentativa de suprir as lacunas de seu antecessor, afirmando que “ainda que uma nação apresentasse desvantagem absoluta na produção de ambas as mercadorias em relação à outra nação, o comércio seria vantajoso, desde que ela se especializasse na produção e exportação do bem em que sua vantagem absoluta fosse maior. Além disso, deveria importar a mercadoria em que sua vantagem absoluta fosse menor”15. 12 Tradução livre da autora: “De fato, os avanços mais recentes na teoria econômica – que ocorre, ironicamente, justamente durante o período da perseguição mais implacável das políticas do Consenso de Washington – têm mostrado que sempre que a informação é imperfeita e os mercados incompletos, ou seja, sempre, e especialmente nos países em desenvolvimento, a mão invisível funciona da maneira mais imperfeita possível” (Stiglitz, Joseph. Globalization and Its Discontents. Penguim Books: Nova Iorque, 2002, p. 73). 13 A teoria da vantagem absoluta defende que “cada nação poderia especializar-se na produção de mercadorias que ela produzisse com maior eficiência que as demais nações, ou seja, em que tivesse vantagem absoluta, e importar as mercadorias em que tivesse desvantagem absoluta (ou produzisse menos eficientemente)” (Passos, Carlos Roberto Martins; Nogami, Otto. Princípios de Economia. 5.ed.rev. Cengage Learning Edições: São Paulo, 2005, p. 523). 14 Passos, Carlos Roberto Martins; Nogami, Otto. Princípios de Economia. 5.ed.rev. Cengage Learning Edições: São Paulo, 2005, p. 525. 15 Passos, Carlos Roberto Martins; Nogami, Otto. Princípios de Economia. 5.ed.rev. Cengage Learning Edições: São Paulo, 2005, p. 525. 25 Na tentativa de estabelecer uma diferença entre o pensamento de Adam Smith e David Ricardo, Cláudio César Soares16 leciona que: (…) Smith disse que, dados dois países e dois produtos, se cada país se especializasse na produção dos bens que pudesse produzir com menos horas de trabalho, o comércio internacional traria vantagens para ambos. Ricardo generalizou esse conceito e afirmou que, mesmo que um dos países seja mais eficiente na produção dos dois bens comparativamente ao outro, ainda assim o comércio internacional traria benefício para os dois países se cada um se especializasse na produção dos bens e que fosse mais eficiente em relação ao outro. Ainda assim, ambas as teorias tiveram grande relevância para os países industrializados, que contavam com estruturas e instituições relativamente sólidas. Para a existência de uma economia de mercado alguns pré-requisitos são fundamentais, tais como direitos de propriedade e direito da concorrência bem definidos e tribunais capazes de preservar tais direitos. Adicionalmente, a capacidade de geração e absorção de informações também se torna indispensável. No entanto, tais pré-requisitos nem sempre estão presentes em países menos desenvolvidos ou emergentes, tal como o Brasil. Não há que se olvidar, nos dizeres de Cláudio Finkelstein17, “que o capitalismo vive em simbiose com a globalização, e que seu ímpeto inicial veio da interligação dos fatores de produção em frenética velocidade”, e nem mesmo a recente crise subprime de 2008 “interrompeu o ciclo do capitalismo nem barrou a marcha da globalização, somente reforçou a necessidade de repensar ainda mais os limites a tais ímpetos”. Essa assertiva reitera a ideia de que o capitalismo liberal e a globalização transformaram a maneira pela qual o Estado passa a ser visto: de um Estado 16 Soares, Cláudio César. Introdução ao Comércio Exterior – Fundamentos Teóricos do Comércio Internacional. Editora Saraiva: São Paulo, p. 34. 17 Finkelstein, Cláudio. Jus Cogens Como Paradigma do Metaconstitucionalismo de Direito Internacional. 263f. Livre-Docência em Direito Internacional Público. Pontifícia Universidade Católica: São Paulo, 2010, p. 25. 26 nacional para um Estado aterritorial, na qual as forças do mercado e do capital (geralmente especulativo) interferem sobremaneira na atuação dos governantes em todas as suas esferas. Um exemplo de como funciona a sociedade globalizada nos é fornecido por Ulrich Beck18, a saber: Não estamos lidando, no caso do recolhimento de impostos, com um princípio qualquer, mas com o princípio da autoridade do Estado nacional. O valor deste imposto está relacionado à atividade econômica dentro de um determinado território – uma premissa que se torna cada vez mais fictícia diante das perspectivas do comércio mundial. Empresas podem produzir em um país, pagar impostos em outro e exigir investimentos públicos sob a forma de aprimoramento da infra-estrutura em um terceiro. As pessoas se tornaram mais móveis, e também mais engenhosas: se são ricas, podem encontrar e explorar brechas nas redes de captação do Estado ou, se dispuserem da competência requerida, empregar sua capacidade de trabalho onde lhes for mais vantajoso; ou, por fim, se forem pobres, podem emigrar para o lugar onde acreditam jorrar o leite e o mel. De sua parte, o Estado nacional se enreda em contradições com suas tentativas de manter o isolamento. Pois para que haja concorrência na sociedade mundial, os países precisam atrair capital, conhecimento e mão-de-obra. Sob essa perspectiva, a globalização econômica não pode – e nem deve – ser entendida como um meio de solucionar os problemas mundiais, na medida em que, aliado ao capitalismo liberal, traz uma série de novos problemas ou, até mesmo, equaciona antigos. George Soros19, sob o ponto de vista da globalização financeira e dos intensos fluxos de capital, chegou à conclusão de que a já resolvida “[asiatic] crisis is a symptom of pathologies inherent in the global system. International financial markets have served themselves as more than just a passive transmission mechanism for the global contagion; they have themselves been the 18 Beck, Ulrich. O Que É Globalização? Equívocos do Globalismo: Respostas à Globalização. Tradução de André Carone. Editora Paz e Terra: São Paulo, 1999, pp. 18-19. 19 Tradução livre da autora: “a crise [asiática] é o sintoma de uma patologia inerente ao sistema global. Os mercados financeiros internacionais servem não só como um mecanimos passivo de transmissão, eles são a principal causa da epidemia econômica” (Soros, George. Capitalism Last Chance. Winter, 1998-1999, p. 56). 27 main cause of economic epidemic”. E em sendo considerada uma patologia passível de controle, “o Direito entra em cena, que se encarrega de garantir segurança jurídica e equidade às relações entre os atores econômicos, principalmente àquelas cujos custos de transação são inaceitáveis ou abusivos”20, tal como ocorre no mercado financeiro. Por outro lado, teóricos como Paul Hirst & Grahame Thompson 21 são bastante céticos a respeito da irreversibilidade do processo de globalização, dispondo que: Os defensores mais ingênuos da rápida e crescente “globalização” têm memória curta e tendem a ver a economia mundial em termos pós-1973. Uma perspectiva mais ampla é prudente, não simplesmente pelo que revela sobre a economia mundial pré-1914, mas porque mostra quão volátil, quão sujeito a mudanças conjunturais e quão vulnerável aos efeitos dos conflitos políticos é a economia internacional. Nenhum regime importante durou mais do que 30 ou 40 anos, e períodos de abertura e de crescimento consideráveis foram substituídos por períodos de fechamento e de declínio. Portanto, seria uma ingenuidade projetar as tendências atuais de abertura e de integração, como se fossem inevitáveis ou irreversíveis. Sob outro enfoque, Gilberto Dubas apud Cláudio Finkelstein22 discorre sobre o fenômeno globalizador afirmando que “a liberalização das fronteiras, a multiplicidade de atores, regras e conflitos põem em dúvida o sistema do bem estar social e a própria noção de Estado como sempre a concebemos”. 20 Gonçalves, Everton das Neves; Stelzer, Joana. A Doutrina Law and Economics (LAE) e o Direito Internacional Econômico. In: Gonçalves, Everton das Neves; Stelzer, Joana (Org.). Direito das Relações Internacionais – Estudos em Homenagem à Luminar Trajetória Acadêmica de Odete Maria de Oliveira. Ijuí: Editora Unijuí, 2006, pp. 183-233. 21 Hirst, Paul; Thompson, Grahame. Globalização em Questão: A Economia Internacional e as Possibilidades de Governabilidade. Editora Vozes: Petrópolis, 1998, p. 341. 22 Finkelstein, Cláudio. Jus Cogens Como Paradigma do Metaconstitucionalismo de Direito Internacional. 263f. Livre-Docência em Direito Internacional Público. Pontifícia Universidade Católica: São Paulo, 2010, p. 24. 28 Podemos extrair, portanto, que a globalização econômica só se tornou factível a partir do momento em que as indústrias nacionais de determinado país passaram a enfrentar dificuldades para comercialização de seus produtos, por falta, principalmente, de mercado consumidor interno. A população não mais crescia na mesma proporção que a capacidade produtiva advinda do pós-Revolução Industrial. Com a transição do capitalismo monopolista para o capitalismo global, vemos uma unificação do mercado em escala mundial. O capitalismo global conduziu a uma integração de sistemas de produção anteriormente de monopólio local (de um determinado país) ou regional (decorrente da formação de blocos econômicos) para uma perspectiva internacional. Da mesma forma, em se tratando de produção normativa, na medida em que o capitalismo global propiciou um maior espaço de atuação para os sujeitos de direito internacional. Nestes termos: As definições clássicas de soberania não mais prevalecem no Estado de Direito imposto pela nova ordem global, vez que os diversos Mercados de Bloco, notadamente a União Européia, e organismos internacionais, como a ONU, a OMC ou a OIT, têm como característica a transferência ou o compartilhamento de parcelas da soberania em determinadas matérias sujeitas a regras aceitas23. Depreende-se, portanto, que a soberania foi perdendo certas características, outrora considerada absoluta, ao longo do tempo e, principalmente diante do contexto atual, não tem o condão de impedir a existência de todo e qualquer tipo de integração: seja econômica, seja política, seja jurídica, seja cultural, fruto da globalização dos mercados e da consciência cooperativa dos Estados. 1.1.2 Globalização Financeira Desde o século XVII, o capitalismo mercantil se consolidou em função das grandes navegações; estas concentradas nas mãos dos povos português e 23 Finkelstein, Cláudio. Jus Cogens Como Paradigma do Metaconstitucionalismo de Direito Internacional. 263f. Livre-Docência em Direito Internacional Público. Pontifícia Universidade Católica: São Paulo, 2010, p. 113. 29 espanhol, por conta das especiarias que eles revendiam para outros países europeus. Paralelamente, o resto da Europa sofria com o feudalismo, com exceção da Holanda que se preocupava mais em simplesmente não desaparecer24. Leciona Alexandre Versignasse25 que, no caso da Holanda, “o modelo feudal de trabalhar na terra em troca de casa e comida não pegou. Boa parte do trabalho, afinal, era tirar a própria Holanda debaixo d’água para ter onde plantar e criar gado”. Assim, ao invés do escambo, os holandeses trabalharam em troca de um salário, trazendo um efeito colateral: o comércio. Assim, ao passo que em muitos países da Europa o dinheiro era escasso, na Holanda, o dinheiro era o centro de sua economia. Angus Maddison26 relata que: Herring fisheries were an important part of Dutch shipping activity. The herring were sold fresh or lightly salted near to the ports or were processed and barrelled for international trade. Before 1400, herring shoals best suited for salting were off the Swedish coast, but in the fifteenth century, they migrated into the North Sea, so the bulk of the catch was taken by Dutch ships. A technological breakthrough increased productivity substantially. Dutch shipyards developed a new type of factory ship (a herring “buss”), with nets, rigging and processing facilities which permitted crews of 18 to 30 men to gut, 24 Alexandre Versignasse leciona que a Holanda sofria com as enchentes, já que ficava “encurralada entre o mar do norte e a boca de dois rios gigantes, o Reno, que desce da Alemanha, e o Mosa, que chega da França. O delta dos dois se junta no Leste dos Países Baixos, formando um labirinto de rios menores” (Versignasse, Alexandre. Crash – Uma Breve História da Economia: Da Grécia Antiga ao Século XXI. Editora Leya: São Paulo, 2011, p. 114). 25 Versignasse, Alexandre. Crash – Uma Breve História da Economia: Da Grécia Antiga ao Século XXI. Editora Leya: São Paulo, 2011, p. 114. 26 Tradução livre da autora: “A pesca de arenques foi uma parte importante da atividade de transporte marítimo holandês. Os arenques eram vendidos frescos ou levemente salgados perto dos portos ou eram processados e envasilhados para o comércio internacional. Antes de 1400, cardumes de arenques mais adequados para salgar estavam fora da costa sueca, mas no século XV, eles migraram para o Mar do Norte, de modo que a maior parte da captura foi efetuada por navios holandeses. A inovação tecnológica aumentou substancialmente a produtividade. Estaleiros holandeses desenvolveram um novo tipo de navio-fábrica (um arenque buss), com redes, equipamentos e instalações de processamento que permitiram tripulações de 18 a 30 homens destripar, limpar, salgar e envasilhar o arenque, ainda em alto-mar. Embarcações deste tipo poderiam fazer três viagens por ano de cinco a oito semanas durante a estação aberta de junho a dezembro. Em meados de 1560, havia 400 embarcações holandesas deste tipo operando desde a província da Holanda, com propriedade concentrada em investidores urbanos” (Maddison, Angus. The World Economy: A Millenial Perspective. OECD Publishing: Paris, 2001, p. 80). 30 clean, salt and barrel the herring whilst at sea. Vessels of this type could make three trips a year of five to eight weeks during the open season from June to December. By the 1560s there were 400 Dutch vessels of this type operating from the province of Holland, with ownership concentrated on urban investors. Diante desse cenário, a Holanda não queria ficar de fora do comércio de especiarias, tendo em vista seu potencial lucrativo. Para fugir do método tradicional empreendido à época para financiar as navegações, ou seja, se capitalizar via instituições financeiras, a história nos ensina que a Holanda deu os primeiros passos para o que hoje conhecemos como mercado financeiro. O governo holandês teve a iniciativa, ensina Alexandre Versignasse 27, de unir as Companhias das Índias da Holanda, formando uma grande empresa estatal, chamada Vereennigde Nederlandsche Oostindische Compagnie (Companhia Unida Holandesa das Índias Orientais), e convidou os cidadãos para tornarem-se acionistas. Ao convidar os cidadãos a empreender junto ao Estado, o governo holandês dividiu-a em partes (ações) e as vendeu. Para que essa captação fosse possível criou-se, no centro de Amsterdam, um local para que essas ações pudessem ser negociadas. Esse local passou a ser chamado de Bolsa de Valores. De fato, quando da análise da alocação de fatores de produção em termos globais, com vistas à obtenção de lucro, José Cretella Neto 28 leciona que “os primeiros exemplos de empresas ‘multinacionais’, dotadas de alguns dos traços que ainda hoje possuem, somente possam ser localizados na Idade Moderna, no Ocidente, quando floresceu o capitalismo”, citando como marco referencial a criação da Companhia das Índias Inglesas (1600) e da Companhia Unida Holandesa das Índias Orientais (1602). Para tanto, organizavam-se em formas de sociedades anônimas, cujos mecanismos de concentração do capital para investimentos, bem 27 Versignasse, Alexandre. Crash – Uma Breve História da Economia: Da Grécia Antiga ao Século XXI. Editora Leya: São Paulo, 2011, p. 117. 28 Cretella Neto, José. Curso de Direito Internacional Econômico. Editora Saraiva: São Paulo, 2012, p. 743 e ss. 31 como a repartição de riscos financeiros era favorável para viabilizar a atividade econômica29. A vantagem desse tipo de estrutura é a diluição de riscos, tornando-o mais atraente para investidores comuns fazer parte dessa iniciativa governamental. Em contrapartida, recebiam os dividendos prometidos. A despeito do surgimento do mercado financeiro, restou evidente o aparecimento de outra figura: a do capital especulativo. Verifica-se, pois, que este modelo de financiamento de atividades econômicas não é diferente da realidade atual. Quando uma empresa abre seu capital para ser negociado em bolsa de valores, ou até mesmo quando uma empresa decide se capitalizar via securitização de recebíveis30 com emissão pública ou privada de valores mobiliários31, nada mais, nada menos está convidando o público (investidores pessoas físicas, fundos de private equity32 e/ou investidores institucionais33) a fazer parte dos objetivos sociais dessa empresa, oferecendo a eles 29 Diferentemente do que ocorre com as empresas nos dias de hoje, referidas Companhias, “conquanto tivessem natureza jurídica de sociedades de Direito Privado, detinham uma série de privilégios, tais como a concessão de cartas que lhes garantiam a propriedade de terras no além-mar, a faculdade de promulgar normas jurídicas sobre os territórios em que exerciam domínio, bem como mantinham exércitos, frota marítima militar e portos fortificados próprios, ou seja, uma infraestrutura operacional da qual, nos dias de hoje, somente Estados poderiam dispor” (Cretella Neto, José. Curso de Direito Internacional Econômico. Editora Saraiva: São Paulo, 2012, p. 745). 30 A expressão “securitização de recebíveis” teve origem a partir da tradução do termo “security” do direito norte-americano, que não corresponde integralmente ao conceito de valor mobiliário do direito brasileiro. O correto seria a utilização da expressão “titularização de recebíveis”, na medida em que apenas títulos ou valores mobiliários são passíveis de negociação em bolsas de valores e equivalentes. 31 Nos termos do artigo 2° da Lei n° 6.385/1976, que dispõe sobre o mercado de valores mobiliários e cria a Comissão de Valores Mobiliários, são valores mobiliários: “I - as ações, debêntures e bônus de subscrição; II - os cupons, direitos, recibos de subscrição e certificados de desdobramento relativos aos valores mobiliários referidos no inciso II; III - os certificados de depósito de valores mobiliários; IV - as cédulas de debêntures; V - as cotas de fundos de investimento em valores mobiliários ou de clubes de investimento em quaisquer ativos; VI - as notas comerciais; VII - os contratos futuros, de opções e outros derivativos, cujos ativos subjacentes sejam valores mobiliários; VIII - outros contratos derivativos, independentemente dos ativos subjacentes; e IX - quando ofertados publicamente, quaisquer outros títulos ou contratos de investimento coletivo, que gerem direito de participação, de parceria ou de remuneração, inclusive resultante de prestação de serviços, cujos rendimentos advêm do esforço do empreendedor ou de terceiros”. 32 São fundos que investem em pessoas jurídicas diversas, objetivando atuar como gestores de seus objetivos sociais, impulsionando seu faturamento. Após um determinado período de tempo, referidos fundos realizam os chamados desinvestimentos, isto é, a venda de suas participações acionárias. 33 De acordo com a Comissão de Valores Mobiliários, os “investidores institucionais” são os profissionais da aplicação de poupança de terceiros. Nessa categoria, estão incluídos os fundos mútuos de investimento em ações, as companhias seguradoras, as entidades fechadas de previdência privada – os chamados fundos de pensão, entre outros. Disponível em: 32 uma contraprestação, sob a forma de juros, remuneração, dividendos, a depender do disposto nos negócios jurídicos celebrados entre as partes envolvidas. Nesse momento da História, no entanto, não há que se falar em globalização, econômica ou financeira. Os países europeus estavam direcionados em aumentar suas riquezas internas, e as instituições financeiras intermediavam essas “operações” que se davam por meio das navegações e conquista de novos territórios. Maurice Obstfeld e Alan M. Taylor34 esclarecem que: Prior to the nineteenth century, the geographical scope for international finance was relatively limited compared to what was to come. Italian banks of the Renaissance financed trade and government around the Mediterranean, and, as trade expanded within Europe, financial innovations spread farther north through the letters of credit developed at the Champagne Fairs and the new bank in North Sea ports such as Bruges and Antwerp. Later, London and Amsterdam became the key center, and their currencies and financial instruments were the principal focus of market players. As the industrial revolution gathered force and radiated out from Britain, the importance of internacional financial markets became more apparent in both public and private sphere. <http://www.cvm.gov.br/port/protinv/caderno1(new).asp>. Acesso em 12 de maio de 2014. Não se confundir, portanto, com o conceito de investidor qualificado, nos termos do artigo 109 da Instrução CVM n° 476/2009, a saber: “I – instituições financeiras; II – companhias seguradoras e sociedades de capitalização; III – entidades abertas e fechadas de previdência complementar; IV – pessoas físicas ou jurídicas que possuam investimentos financeiros em valor superior a R$300.000,00 (trezentos mil reais) e que, adicionalmente, atestem por escrito sua condição de investidor qualificado; V – fundo de investimentos destinados exclusivamente a investidores qualificados; VI – administradores de carteira e consultores de valores mobiliários autorizados pela CVM, em relação a seus recursos próprios; e VII – regimes próprios de previdência social instituídos pela União, pelos Estados, pelo Distrito Federal ou por Municípios”. 34 Tradução livre da autora: “Antes do século XIX, o escopo geográfico para financiamento internacional foi relativamente limitado em comparação com o que estava por vir. Bancos italianos do Renascimento financiavam o comércio e governo em torno do Mediterrâneo, e, como o comércio expandiu na Europa, as inovações financeiras espalharam mais para o norte por meio das cartas de crédito desenvolvidas nas feiras de Champagne e dos novos bancos nos portos do Mar do Norte, como Bruges e Antuérpia. Mais tarde, Londres e Amsterdã tornaram-se principais centros financeiros, e suas moedas e instrumentos financeiros eram o foco principal dos agentes do mercado. Como a revolução industrial ganhou força e irradiava para fora da Grã-Bretanha, a importância do mercado financeiro internacional tornou-se mais evidente nas esferas pública e privada” (Obstfeld, Maurice; Taylor, Alan M. Globalization and Capital Markets. In: Globalization in Historial Perspective, 2002, Santa Barbara, May 4-5, 2001). 33 Então, o século XIX, notadamente no pós-Revolução Industrial, com todas as suas inovações proporcionou um avanço não somente na área da tecnologia, mas no campo das telecomunicações e, principalmente, no sistema bancário e monetário mundiais, com o advento do padrão-ouro35 (gold standard). Iniciava-se, assim, no campo financeiro, um período de laisser faire virtual e de especulações, na medida em que o sistema bancário passou a ser tornar um importante instrumento do comércio internacional e o dinheiro passou a ser menos físico. Contudo, esse novo regime monetário não foi capaz de sobreviver às guerras mundiais e as consequências econômicas advindas da Grande Depressão, não obstante ter sido um mecanismo de ajustamento de desequilíbrios externos. A esse respeito, Dani Rodrik36 esclarece que: The rules meant that changes in the domestic supply of money were tightly linked to movements in gold reserves. A country with a deficit on its foreign balance of payments would lose gold to its trade partners, and experience a reduction in its money supply. These gold flows would in turn trigger corrections in economic conditions which economists call the “automatic adjustment mechanism”. In a deficit country, tight money and credit would result in a combination of rising interest rates and falling domestic prices. These in turn would lead to reduced spending and improved trade competitiveness, restoring 35 Esse período foi marcado pela determinação de uma taxa fixa de câmbio. Por meio de um acordo informal – já que nenhum tratado internacional foi efetivamente assinado – foi determinado que a moeda de um país teria seu valor atrelado a certa quantidade de ouro e cabia aos respectivos bancos centrais efetuar tal conversão, de modo a manter o fluxo de capitais entre os países. 36 Tradução livre da autora: “As regras significavam que mudanças na oferta interna de dinheiro estavam fortemente ligadas aos movimentos de reserva de ouro. Um país com déficit em sua balança de pagamento externa perderia ouro para seus parceiros comerciais, e experimentariam uma redução na oferta de dinheiro (dinheiro circulante). Esses fluxos do ouro, por seu turno, acionaria o gatilho de correções nas condições econômicas que os economistas chamam de ‘mecanismo de ajuste automático’. Em um país deficitário, a falta de dinheiro e crédito resultaria em aumento das taxas de juros e a queda de preços internamente. Estes fatos, por sua vez, levariam a uma redução de gastos e melhoria da competitividade do comércio, restabelecendo o equilíbrio dos pagamentos externos. Segundo as regras do padrão-ouro, o governo não tem capacidade de interferir na política monetária com vistas a alterar as condições de crédito no mercado interno, porquanto o abastecimento monetário interno era unicamente determinado pelo ouro e fluxos de capital por meio das fronteiras nacionais. Em princípio, os bancos centrais tinham pouca autonomia, a não ser emitir ou retirar moeda, na medida em que houve flutuação do preço do ouro. O sistema tinha regras claras, universais e não discricionárias. O regime financeiro minimizava custos de transação para além das fronteiras nacionais. Financiadores e investidores tinham que se contentar com nenhuma surpresa ou controle na fronteira” (Rodrik, Dani. The Globalization Paradox: Why Global Markets, States and Democracy Can´t Coexist. Oxford University Press: London, 2011, p. 35). 34 equilibrium on external payments. Under gold standard rules, government had no ability to muck around with monetary policy to alter domestic credit conditions, because domestic money supplies were solely determined by gold and capital flows across national borders. In principal, central bankers had little to do besides issuing or retiring domestic currency as the level of gold in their vaults fluctuated. The system had clear, universal, and non-discretionary rules. The financial regime minimized transaction costs across national boundaries. Financiers and investors had to content with neither surprises nor controls at the border. Pelas razões acima expostas, referido regime monetário foi, então, substituído por um período de intenso nacionalismo (conhecido também como beggar-thy-neighbor policy), resultando em políticas de controle do fluxo de capital, de desvalorização cambial e alterações na estrutura política de diversos países 37, de modo a permitir a reconstrução dos países afetados pelas guerras e recessões econômicas. Inclusive, com a Grande Depressão, o sistema capitalista liberal vigente (de economia de mercado) foi fortemente questionado, momento em que novas teorias econômicas passaram a ser desenvolvidas, dentre as quais, se o Estado deveria exercer um papel principal e efetivo na economia, e não ser simplesmente um coadjuvante e à mercê de interesses meramente privados. Os Estados Unidos, por exemplo, para restaurar a confiança na economia, por meio de seu presidente, Franklin Roosevelt, lançou o famoso New Deal, “a presidential barrage of ideas and programmes unlike anything known to American history. The immediate result of this frenetic activism was a tremendous upsurge in confidence”38. Nesse momento, buscava-se uma alternativa à Adam Smith e uma fuga aos pensamentos socialistas e comunistas, tal como os de Karl Marx e Oskar Lange, respectivamente. E essa alternativa teve em John Maynard Keynes seu precursor, 37 Por exemplo, a Revolução Russa criou o governo bolchevique, a Itália seguiu as idéias fascistas, a Alemanha, as socialistas, etc. 38 Tradução livre da autora: “uma barragem presidencial de ideias e programas jamais visto na história americana. O resultado imediato desse ativismo frenético foi um tremendo aumento na confiança” (Skidelsky, Robert. The Economist as Saviour. Macmillan, 1994, p. 490). 35 sendo considerado um dos mais importantes economistas do século XX, trazendo consigo uma versão menos radical do capitalismo e dando ao governo um papel central na economia. De fato, John Maynard Keynes compreendia os problemas que a economia de mercado trazia em termos de política macroeconômica, notadamente no que diz respeito a uma melhor alocação de recursos e fatores de produção. Para ele39, (…) I see no reason to suppose that the existing system seriously misemploys the factors of production which are in use. There are, of course, errors of foresight; but these would not be avoided by centralizing decisions. When 9,000,000 men are employed out of 10,000,000 willing and able to work, there is no evidence that the labour of these 9,000,000 is misdirected. The complaint against the present system is not that these 9,000,000 men ought to be employed on different tasks, but that tasks should be available for the remaining 1,000,000 men. A Grande Depressão causou altas taxas de desemprego e uma grande quantidade de capital ocioso e o mercado, por si só, não foi capaz de corrigir a situação, não prescindindo da intervenção governamental para estabilizar novamente a economia, como veremos nos Capítulos 3 e 4, como forma de mitigar efeitos adversos, tais como mais crises e recessões. Uma lição experimentada com a Grande Depressão demonstrou que as necessidades internas de cada país colidem com os requisitos de uma economia global, sempre prevalecendo àquelas em detrimento dessas (e mesmo a crise subprime de 2008 não nos deixa afirmar o contrário). Tanto é assim que John 39 Tradução livre da autora: “Eu não vejo razão alguma para supor que o sistema existente efetivamente emprega de forma errada os fatores de produção disponíveis. Existem, naturalmente, os erros de previsão, mas estes não poderiam ser evitados por decisões centralizadas. Quando 9.000.000 entre 10.000.000 homens dispostos e aptos para o trabalho são empregados, não há qualquer evidência de que a alocação do trabalho para estes 9.000.000 homens está equivocada. A denúncia contra o atual sistema não é que esses 9.000.000 homens deveriam ser empregados em tarefas diferentes, mas que trabalhos estejam disponíveis para o restante dos 1.000.000 homens” (Keynes, John Mayard. The General Theory of Employment, Interest and Money. Macmillan, 1936, p. 379). 36 Maynard Keynes40, em 1933, preconizou que “I sympathize, therefore, with those who would minimize, rather than those who would maximize, economic entanglement among nations. Ideas, knowledge, science, hospitality, travel – these are the things which should of their nature be international. But let goods be homespun whenever it is reasonably and conveniently possible, and, above all, let finance be primarily national”. De toda forma, sua inclinação ideológica – em conjunto com outro economista, Harry Dexter White – ajudou a desenhar um regime monetário internacional alternativo que vigeria pelos próximos 30 (trinta) anos após a Segunda Grande Guerra, a saber: o Acordo de Bretton Woods. E juntamente com este último, foram criadas 02 (duas) organizações internacionais importantes, não obstante muito controversas, no cenário internacional: o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial para Reconstrução e Desenvolvimento. No âmbito do comércio internacional, iniciaram-se as negociações que culminaram no Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio, surgindo, tempos depois, a Organização Mundial do Comércio. Finalmente chegou-se a conclusão de que a paz é melhor do que a guerra, e, portanto, reestabeleceu-se a idéia de cooperação mundial. Porém, em outros termos: a política econômica mundial deveria ser subserviente às políticas de interesse nacional (pleno emprego, crescimento econômico, equidade, bem-estar social, dentre outros) e não o contrário, como gostariam os países industrializados. Afinal de contas, a esta altura, voltar aos padrões liberais clássicos era quase impossível, porquanto “os Estados já haviam estruturado um sistema jurídicoinstitucional mais apto a controlar com rigor os movimentos de capitais, as tentativas de concentração de mercado e as práticas anticoncorrenciais”41. Assim, ao invés de uma globalização selvagem e desenfreada, preferiu-se uma globalização moderada, ainda que com um mínimo de intervenção estatal. No 40 Tradução livre da autora: “Eu simpatizo, portanto, com aqueles que minimizam, ao invés daqueles que maximizam, o entrelaçamento econômico entre as nações. Idéias, conhecimento, ciência, hospitalidade, viagens – estas são as coisas que devem ser – por sua natureza – internacionais. Mas deixem que os bens sejam domésticos, sempre que for razoável e convenientemente possível, e, acima de tudo, deixe que as finanças sejam essencialmente nacionais” (Keynes, John Mayard. National Self-Sufficiency. The Yale Review. Vol. 22. N.4. Junho 1933, pp. 755-769). 41 Cretella Neto, José. Curso de Direito Internacional Econômico. Editora Saraiva: São Paulo, 2012, p. 71. 37 entanto, essa moderação durou até meados da década de 1970, com a quebra do Acordo de Bretton Woods42, momento em que o Fundo Monetário Internacional, influenciado pela ideologia econômica norte-americana, passou a ser um forte adepto de uma nova liberação do mercado, inclusive o financeiro. Ensinam Maurice Obstfeld e Alan M. Taylor43 que “industrial-countries governments no longer need capital control as a tool to help preserve a fixed exchange-rate peg, since the peg was gone”. A era pós-Bretton Woods pode ser descrita como um período de crises econômicas e baixas taxas de crescimento, trazendo consigo um cenário de estagflação (ou seja, altos índices inflacionários e ausência de crescimento econômico), típico de países que enfrentam problemas de recessão. Se não bastasse, os países exportadores de petróleo começaram a agir como um cartel, impondo significativos aumentos no preço do petróleo. Os importadores dessa commodity, por outro lado, experimentaram altos níveis inflacionários. Como resultado e sob influência do pensamento de Milton Friedman, a partir de 1980, as políticas keynesianas foram sendo lentamente substituídas pelas políticas de Margaret Thatcher (Inglaterra) e Ronald Reagan (Estados Unidos), consolidando não só a globalização econômica (livre circulação de bens e serviços), como também a globalização financeira (livre circulação de capitais). 42 Ocorre que no pós-Segunda Guerra Mundial e a Guerra Fria, os Estados Unidos deixaram de ser os maiores devedores mundiais para serem os maiores credores, razão pela qual se tornou a maior potência de todos os tempos. No entanto, conforme esclarece Ricardo Dathein, “os investimentos externos, a ajuda financeira a outros países e os gastos militares no exterior afetavam negativamente o balanço de pagamentos dos EUA, o que era compensado pelo saldo positivo da balança comercial. No entanto, desde o final dos anos 1950, este último saldo reduzira-se, pois se completava a reconstrução da Europa e do Japão, que construíram uma estrutura industrial nova, com alta produtividade, podendo agora competir com os EUA. Sem os excedentes comerciais, os EUA teria que garantir a paridade do dólar vendendo ouro. Esta evolução econômica fez a escassez inicial de dólares em termos internacionais ser substituída por seu excesso, o que aumentou o risco de movimentos especulativos contra o dólar”, o que de fato aconteceu, e o Federal Reserve (banco central norte-americano) teve de agir para evitar uma crise financeira em decorrência de movimentos especulativos. Tais movimentações já demonstravam, nesse momento, o potencial destrutivo da especulação e a fragilidade do sistema financeiro (Dathein, Ricardo. Sistema Monetário Internacional e Globalização Financeira nos Sessenta Anos de Bretton Woods. Revista da Sociedade Brasileira de Economia Política, Rio de Janeiro. N. 16. Junho de 2005, pp. 51-73). 43 Tradução livre da autora: “o governo dos países industrializados, já não precisavam controlar o fluxo de capitais como uma ferramenta para ajudar a preservar a taxa de câmbio fixa, uma vez que o lastro [ouro] já não mais existia” (Obstfeld, Maurice; Taylor, Alan M. Globalization and Capital Markets. In: Globalization in Historial Perspective, 2002, Santa Barbara, May 4-5, 2001). 38 Adicionalmente, o contínuo avanço nas telecomunicações aproximou ainda mais os sistemas bancários e o mercado financeiro. O dinheiro, hoje, é praticamente virtual. O regime monetário está intrinsecamente ligado à livre mobilidade de capitais e taxas de câmbio flexíveis. Vê-se que, na maioria – senão a totalidade – dos países industrializados, o regime econômico é diametralmente oposto ao que acordado em Bretton Woods, primando à ordem econômica internacional em detrimento da doméstica. No entanto, e em certa medida, alerta Dani Rodrik44, que “floating currencies became a source of instability for the international economic system rather then a safety valve”. Ainda, acrescenta o autor que o maior problema da globalização financeira do século XXI “(...) is the ‘excessive’ mobility of private financial capital. National economies and national governments are not capable of adjusting to massive movements of funds across the foreign exchanges, without real hardship and without significant sacrifice of the objectives of national economic policy with respect to employment, output, and inflation”45. Logo após a crise subprime de 2008, um estudo realizado por Luc Leaven e Fabian Valencia46, identificou 124 (cento e vinte e quatro) crises bancárias, 208 (duzentas e oito) crises cambiais e 63 (sessenta e três) crises decorrentes de endividamento externo (emissão de títulos da dívida pública) entre 1970 a 2008, período marcadamente neoliberal. Como consequência da globalização financeira, os países – industrializados ou não – estão mais suscetíveis a riscos, sem ao menos uma contrapartida. De fato, o fluxo de capitais pode ser benéfico em algumas circunstâncias, como, por exemplo, determinado país com diversas oportunidades de investimento e 44 Tradução livre da autora: “moedas flutuantes tornaram-se uma fonte de instabilidade para o sistema econômico internacional ao invés de uma válvula de segurança” (Rodrik, Dani. The Globalization Paradox: Why Global Markets, States and Democracy Can´t Coexist. Oxford University Press: London, 2011, pp. 106-107) 45 Tradução livre da autora: “(...) é a mobilidade ‘excessiva’ do capital financeiro privado. Economias e os governos nacionais não são capazes de se ajustar aos movimentos maciços de fundos por meio das bolsas estrangeiras, sem sofrimento real e sem sacrifício significativo dos objetivos da política econômica nacional no que diz respeito ao emprego, à produção, e a inflação”. 46 Leaven, Luc; Valencia, Favian. Systemic Bank Crisis: A New Database. International Monetary Fund. Working Paper WP/08/224, Setembro de 2008. 39 pouca disponibilidade de poupança interna, minando quaisquer investimentos em infraestrutura. Como regra, o investidor não apenas injeta dinheiro na economia desse país. Paralelamente, esse dinheiro vem acompanhado de outros atributos, como know-how, conhecimento do mercado, tecnologia, etc., o que impulsiona o crescimento econômico. Entretanto, pode também produzir resultados desastrosos. A mesma lógica utilizada no comércio internacional pode – e deve – ser aplicada ao mercado financeiro. Ou seja, no comércio, uma “troca” considerada lucrativa entre as partes envolvidas tem de levar em conta, quando da formação do preço, todos os custos (de oportunidade) sociais. Nesta esteira, quando um investidor decide investir em um papel qualquer (seja um valor mobiliário, seja um título da dívida pública), ele realmente é conhecedor de todos os riscos envolvidos, ou, ainda, os rendimentos refletem o risco assumido? Quando uma instituição financeira empresa dinheiro a alguém, a taxa de juros deste empréstimo reflete os custos (de oportunidade) sociais e fiscais necessários para eventual socorro (bailout), em virtude da inadimplência no cumprimento das obrigações? Fato é que nem a Economia, nem o Direito conseguem fixar condutas apropriadas com vistas à solução desses problemas da forma como deveriam. O Direito não consegue acompanhar a constante, intensa e rápida alteração diante deste frenético mundo financeiramente globalizado. Por sua vez, a Economia não consegue endereçar a questão de forma pontual, na medida em que as políticas fiscais, monetárias e cambiais não conseguem mais estar dissociadas às expectativas do mercado e dos respectivos investidores. Parece-nos que a sociedade atual e seus respectivos governos vivem em um constante dilema entre crescimento e desenvolvimento econômicos e movimentos especulativos. 1.1.3 Outros Tipos de Globalização Seria um equívoco entender que a globalização está restrita apenas aos campos econômico e financeiro, muito embora sejam suas fontes originárias. A 40 abertura decorrente desse fenônemo possibilitou também uma maior integração social, cultural e ambiental. Do ponto de vista sociocultural, a internet passou a ser o instrumento pelo qual se intercambia conhecimentos e hábitos de consumo. Basta um clique que é possível ter acesso a diversas produções científicas de universidades ao redor do mundo, ou acesso a produtos e serviços estrangeiros, que são entregues sem que o consumidor precise sair de seu domicílio. Nessa mesma esteira, as redes sociais (tais como Facebook, Linkedin, entre outros) inovaram sobremaneira a forma pela qual as pessoas interagem. Todavia, a globalização cultural não está alheia às críticas. Relaciona-se a globalização cultural como uma forma de perda ou destruição de identidades culturais, vítimas da invasão acelerada de uma homogeneizada e ocidentalizada cultura de consumo. Os ativistas da antiglobalização tendem a interpretar a globalização como uma extensão do imperialismo cultural ocidental47, notadamente norte-americano, se levarmos em consideração que em qualquer parte do globo, é possível encontrar uma garrafa de Coca-Cola ou um restaurante de fast food Mc Donalds, por exemplo. Mas a globalização cultural pode ser realmente interpretada como um processo geral de perda da identidade ou diversidade cultural, ou, como um processo de criação e proliferação da identidade cultural? Anthony Giddens entende que a globalização não só é uma forma de preservação da identidade cultural, como também um fenômeno bastante íntimo. Em suas palavras48: É um erro pensar que a globalização só diz respeito aos grandes sistemas, como a ordem financeira mundial. A globalização não é apenas mais uma coisa que “anda por aí”, remota e afastada do indivíduo. É também um fenômeno “interior”, que influencia aspectos íntimos e pessoais de nossas vidas. Por exemplo: o debate que 47 Nesse sentido, ver: Shepard, Benjamin; Hayduk, Ronald. From ACT Up to the WTO: Urban Protest and Community Building in the Era of Globalization. Verso: London, 2002. 48 Giddens, Anthony. O Mundo na Era da Globalização. Tradução de Saul Barata. Editorial Presença: Lisboa, sem ano, pp. 23-24. 41 decorre em muitos países acerca dos valores da família parece ter pouco a ver com as influências da globalização. Mas tem. Os sistemas tradicionais da família estão a transformar-se, ou estão sujeitos a grandes tensões, em diversas partes do mundo, em especial sempre que as mulheres exigem maior igualdade de direitos. (...). Trata-se de uma revolução global na vida corrente, cujas consequências se estão a fazer sentir em todo o mundo, em todos os domínios, do local de trabalho à política. Do ponto de vista do meio ambiente, a Revolução Industrial e a globalização trouxeram um problema ambiental global: o meio ambiente foi se tornando cada vez mais pobre, perdendo sua estabilidade e afetando o meio ambiente vizinho. Sob esse aspecto, entendemos que a atuação do direito internacional em colaboração com o direito doméstico tem um importante e vital papel em matéria de proteção ambiental. Suas contribuições são muitas e das mais variadas, fazendo parte de um conjunto de regras e princípios com vistas ao cumprimento de sua finalidade. Historicamente, a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente Humano, em 1972, em Estocolmo, denominada de direito ambiental de primeira geração, incorporou uma abordagem ambiental no âmbito do direito internacional. Diante dos problemas enfrentados pela sociedade industrial moderna, a Resolução n° 2398 (XXIII) da Organização das Nações Unidas, que convocou os países para a referida Conferência, preconizou as profundas mudanças nas relações entre o homem e o meio ambiente em decorrência do desenvolvimento científico e tecnológico, (…) noting, in particular, the continuing and accelerating impairment of the quality of the human environment caused by such factors as air and water pollution, erosion and other forms of oil deterioration, waste, noise and the secondary effects of biocides, which are accentuated by rapidly increasing population and accelerating urbanization (...)”49. 49 Tradução livre da autora: “observando, em especial, o contínuo e acelerado desequilíbrio da qualidade do meio ambiente humano causado por fatores tais como poluição do ar e da água, 42 Ao final desta Conferência foram aprovados os seguintes documentos internacionais: (i) a Declaração da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano (com 26 princípios) e (ii) o Plano de Ação para o Meio Ambiente Humano (com 109 recomendações). Entretanto, a delegação brasileira estava voltada à pauta da temática “desenvolvimento” (econômico) como solução para os problemas envolvendo o meio ambiente. Por tal razão é que Vera Pedrosa50 leciona que “travava-se uma batalha para impedir que os interesses conservadores dos países desenvolvidos, no sentido da manutenção do status quo econômico mundial, se valessem da ‘via ambiental’ para tentar justificar procedimentos e estratégias imobilistas”. De acordo com o Relatório da Delegação do Brasil à Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente: cumpria (...) à Delegação brasileira orientar sua atuação no sentido de evitar que as medidas e decisões a serem adotadas em Estocolmo: (i) limitassem com formulações jurídicas e outras, como o chama do “direito de consulta”, o direito soberano de cada país de explorar seus recursos, de acordo com os seus próprios interesses e prioridades; (ii) favorecessem o estabelecimento de “padrões” universais de produção que obstruam o processo de desenvolvimento econômico dos países em desenvolvimento, com exigências estabelecidas segundo um critério equalizador de custos que não se poderia justificar em termos puramente ecológicos, à vista da maior capaidade de absorção do meio ambiente nas regiões menos desenvolvidas; (iii) incentivassem a adoção de padrões de consumo que se pudessem converter em obstáculos às exportações dos países em desenvolvimento, como uma alternativa ecológica para as barreiras alfandegárias já existentes51. erosão e outras formas de deterioração do óleo, resíduos, ruído e os efeitos secundários de biocidas, que são acentuadas pelo rápido aumento da população e da urbanização acelerada (...)”. 50 Pedrosa, Vera. O Meio Ambiente Dez Anos Após Estocolmo: A Perspectiva Brasileira. Paris: VIII Curso de Altos Estudos do Instituto Rio Branco, 1984, p. 29. 51 Disponível em: <http://www.cetesb.sp.gov.br/userfiles/file/mudancasclimaticas/proclima/file/publicacoes/conferencia_i nternacional_c_e_p/estocolmo_72_Volume_I.pdf>. Acesso em 13 de maio de 2014. 43 Essas contribuições, no entanto, restaram limitadas em se tratando de responder aos desafios que foram tornando-se cada vez mais complexos, principalmente após a década de 1980. Assim, outras convenções internacionais sobre questões ambientais fizeram-se necessárias, traduzindo-se em uma segunda geração do direito internacional ambiental. Alguns fenômenos como, por exemplo, a deterioração da camada de ozônio, o efeito estufa, a extinção sistemática da biodiversidade de espécies, a desertificação, dentre outros, precisavam ser compreendidos sob uma ótica global. A partir do Relatório Brundtland (1987) foi lançada a idéia de “futuro comum”, na qual se pregava que o planeta Terra não era capaz de suportar um alto nível de exploração de seus recursos naturais. A Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada em 1992, no Rio de Janeiro (também conhecida como Cúpula da Terra ou Rio-92), nesse sentido, precisava enfrentar um desafio consistente em proteger o meio ambiente como um todo, por ser bem único e indivisível, ou seja, não conhecendo fronteiras territoriais. Pela primeira vez na História foi introduzida a expressão “desenvolvimento sustentável” nos documentos elaborados durante essa Conferência52. Entretanto, o Relatório Brundtland já havia definido “desenvolvimento sustentável” como sendo o desenvolvimento que atende às necessidades do presente sem comprometer a capacidade das gerações futuras de atender suas próprias necessidades. E tal preceito é igualmente previsto em nossa Constituição Federal de 1988, em seu artigo 225, in verbis: “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações”. 52 Ao final desta Conferência foram aprovados os seguintes documentos internacionais: (i) a Agenda 21 (Plano de Ação global para promover o desenvolvimento sustentável); (ii) a Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (definindo uma série de direitos e responsabilidades dos Estados concernentes ao meio ambiente); e (ii) a Declaração de Princípios sobre Florestas. Ademais, outros dois instrumentos foram abertos para ratificação dos Estados participantes: (i) a ConvençãoQuadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas; e (ii) a Convenção sobre a Diversidade Biológica. 44 Segundo Egon Becker53, (...) the career of “sustainable development” as a key word for a new understanding of the modern world results from its function as a link between two different crisis discourses – one being on the environment and the other on development; and the tacit promise of a possible rescue from both crises. A importância da expressão ora proposta – desenvolvimento sustentável – refere-se à relação que se busca entre o econômico, social e ambiental (também conhecida como a teoria do desenvolvimento integral), na tentativa de equilibrar os interesses de todos os países envolvidos. O Brasil, no entanto, manteve a mesma postura da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente Humano, no sentido de defender o desenvolvimento econômico como o melhor caminho para lidar com os problemas ambientais. Acresce-se o fato de que a posição do Brasil quanto à questão da soberania sobre seus próprios recursos naturais manteve-se indiscutível54. No entanto, o grande desafio para o século XXI será a implementação e o cumprimento do corpus juris ambiental internacional. Por tal razão, é que foi convocada a Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável, em 2002, em 53 Tradução livre da autora: “(...) a trajetória do ‘desenvolvimento sustentável’ como expressão-chave para uma nova compreensão do mundo moderno resulta de sua função como vínculo entre dois diferentes discursos em crise – um, o do meio ambiente, e outro, o do desenvolvimento – e como promessa de um possível resgate dessas crises” (Becker, Egon. Fostering Transdisciplinary Research into Sustainability in an Age of Globalization: A Short Political Epilogue. In: Becker, Egon and Jahn, Thomas (Eds). Sustainability and the Social Sciences, p. 287). 54 O pano de fundo para essa assertiva brasileira residia no fato de que, considerando o desprezo pelos acontecimentos na Floresta Amazônica, considerada o pulmão do mundo, os países desenvolvidos entendiam que a Floresta Amazônica deveria ser considerada um patrimônio da humanidade, em decorrência do direito de ingerência, que pode ser entendido como o direito de intervir – ou limitar a soberania de um país, caso este não parecesse capaz de defender sua população ou preservar o meio ambiente. Como resposta, Francisco Rezek discursa que “não pretendemos, e isso deve ficar bem claro, fugir das responsabilidades que nos cabem no tocante à manutenção do equilíbrio ambiental planetário. Estamos dispostos, para essa finalidade, a trabalhar intensamente com os países de todas as outras regiões em busca de soluções para os grandes problemas que afetam o meio ambiente global” (Discurso na Reunião Preparatória da América Latina e do Caribe, Cidade do México, 05 de março de 1991). Disponível em: <http://www.maxwell.lambda.ele.puc-rio.br/15465/15465.PDF>. Acesso em 13 de maio de 2014. 45 Joanesburgo55 (igualmente conhecida como Rio+10 ou Cúpula do Milênio). À época, o Secretário-Geral das Nações Unidas, Kofi Annan, reconheceu que “the record in the decade since the Earth Summit is largely one of painfully slow progress and a deepening global environmental crisis”56. No entanto, verificaram-se poucos resultados práticos, se comparados com a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. O que se pode dizer da Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável é que, às duras penas, conseguiu-se elaborar um Plano de Implementação, não vinculativo, sem o peso e a legitimidade da Agenda 21. Internamente, contudo, o Brasil foi um dos únicos países a formular uma legislação ambiental concisa e pontual, incluindo a Política Nacional do Meio Ambiente. Em uma última tentativa de implementação dos tratados internacionais ambientais, em 2012, realizou-se a Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável (a chamada Rio+20), almejando a renovação do compromisso político internacional com o desenvolvimento sustentável, por meio de avaliações das ações implementadas e de discussões acerca de desafios emergentes. Primou-se pela busca de novos alicerces: o multilateralismo e a cooperação, como forma de alcançar uma economia verde, pautada no respeito ao meio ambiente. Graças aos países em desenvolvimento, na qual podemos citar o Brasil como sujeito ativo dessa mudança de paradigma, e ao surgimento do conceito de desenvolvimento sustentável, as Nações perceberam que a questão ambiental estava diretamente relacionada a elementos não só econômicos, como também sociais. Ou seja, era preciso dar um enfoque mais abrangente à temática, inclusive com relação aos atores envolvidos na discussão. Não é por outro motivo que empresas, organizações não governamentais e os próprios indivíduos passaram a atuar ativamente na defesa do desenvolvimento sustentável. 55 Não foi por outra razão que a Resolução n° 55/199 das Nações Unidas foi intitulada como “Revisão Decenal do Progresso Alcançado na Implementação dos Resultados da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento”. 56 Tradução livre da autora: “O registro da década desde a Cúpula da Terra é principalmente uma demonstração de progresso penosamente lento e de uma crise ambiental que se aprofunda” (TIME, World Summit Special Report, de 26 de agosto de 2002, p. 22). 46 2 GLOBALIZAÇÃO, MERCADO FINANCEIRO E DIREITO INTERNACIONAL O encurtamento da distância entre os povos evidencia ainda mais as diferenças e desigualdades entre os países industrializados e os menos desenvolvidos e os emergentes. Tal fato é revelado por Peter Häberle quando da construção da sua teoria do Estado Constitucional Cooperativo. Para ele57, À distância, de fato cada vez mais crescente, entre países ricos e pobres (“widening gap”) se opõe a exigência, sempre representada incondicionalmente por parte dos países em desenvolvimento, de uma igualdade econômica internacional em uma nova economia mundial. Intensiva cooperação entre os Estados, no sentido descrito, é a única alternativa para se evitar uma inevitável confrontação face a esse conflito. Tendências que justificam essa necessidade são comprováveis tanto no desenvolvimento do Direito Internacional como, também, no desenvolvimento do Direito Constitucional em vários Estados. O reconhecimento da responsabilidade social dos Estados, interna e externamente, se encontra no ponto central de um dos princípios de mudança fundamental já realizado nas relações (jurídicas) entre os Estados. Vislumbra-se, atualmente, uma exponente importância do direito internacional público, quer atuando por meio das organizações internacionais, cada uma cumprindo com os objetivos pelas quais foram criadas, quer pela consciência de cooperação entre os Estados, buscando regular objetivos em comum, não só de comunidades internacionais, mas da sociedade internacional como um todo. Em verdade, o próprio direito internacional público tem como peculiaridade uma relação de horizontalidade entre os seus sujeitos e destinatários, de modo que a palavra “cooperação”, em seu sentido mais amplo, deve ser a ordem do dia. A ideia de Estado aterritorial proveniente da globalização financeira deveria 57 Häberle, Peter. Estado Constitucional Cooperativo. Tradução por Marcos Augusto Maliska e Elisete Antoniuk. Editora Renovar: Rio de Janeiro, 2007, pp. 23-24. 47 tomar uma nova forma: a de Estado cooperativo, por seus próprios reflexos transfronteiriços. O Estado cooperativo de Peter Häberle, embora voltado à seara constitucional, necessita de uma reformulação ou extensão com vistas a englobar questões extra e infraconstitucional. A ausência de cooperação entre os Estados no que diz respeito a assuntos de cunho financeiro também tem o condão de impactar profundamente os direitos fundamentais (ou os direitos humanos). A esse respeito, o documento constitutivo da Organização das Nações Unidas já proclamava em 1945 que um dos propósitos desta organização internacional é “conseguir uma cooperação internacional para resolver os problemas internacionais de caráter econômico, social, cultural e humanitário, e para promover e estimular o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião” (artigo 1°, item 3). Mais adiante, em seu artigo 56, prescreve que os membros da Organização das Nações Unidas se comprometem a agir em cooperação, conjunta ou separadamente. Mas até que ponto é possível essa atuação conjunta diante de um cenário de crises e recessões? É sabido que o Acordo de Bretton Woods trouxe consigo novas regras para a ordem econômica internacional. Para evitar um colapso econômico ainda maior e não permitir a ascensão de novas ideologias alheias ao capitalismo foi instituído pela sociedade internacional 03 (três) grandes organizações internacionais, que serviram como alicerce para o atual direito econômico internacional. Entretanto, no que concerne ao mercado financeiro e de capitais, tem-se um grande desafio, na medida em que “financial globalization generates new challenges for unilateral action, and national regulatory power remains an important aspect of financial statecraft, even at international level”58. Com isso, quer-se dizer 58 Tradução livre da autora: “a globalização financeira gera novos desafios para uma ação unilateral, e o poder regulatório nacional permanece como um importante aspecto de estratégia financeira, 48 que em um mundo multipolarizado como o atual (em contraste à época da Guerra Fria) vem prevalecendo um posicionamento bastante conservador no que concerne a aspectos regulatórios em detrimento de um movimento cooperativo internacional. Por tal razão, o presente Capítulo tem como objetivo entender o papel das organizações internacionais no atual contexto mundial e, especificamente, a agenda das principais organizações internacionais voltadas às áreas do comércio internacional e financeira. No caso específico dos mercados financeiro e de capitais, buscar-se-á entender o racional, ou melhor, a natureza jurídica por detrás das recomendações da Organização Internacional das Comissões de Valores Mobiliários (International Organizations of Securities Commissions). Adicionalmente, e diante do fato de as organizações internacionais serem os principais instrumentos de formação de um corpus juris internacional, relevante explorar acerca da extensão do conceito de governança global, expressão cada vez mais presente no âmbito internacional. 2.1 O PAPEL DAS ORGANIZAÇÕES INTERNACIONAIS EM UM MUNDO GLOBALIZADO O surgimento das organizações internacionais tem relação direta com o crescente desenvolvimento do próprio direito internacional público e das relações internacionais entre os Estados. Muito embora a Paz de Vestefália (1648) seja considerada um importante documento no que diz respeito ao desenvolvimento do direito internacional público, não criou uma organização internacional. Apenas contribuiu para a existência do conceito de Estado-Nação. Entre o Congresso de Viena de 1815 e a Primeira Guerra Mundial, fruto de necessidades pontuais, foi surgindo “organizações internacionais”, como, por exemplo, a Comissão Central para a Navegação do Reno criada pela Convenção de mesmo internacionalmente” (Brummer, Chris. Soft Law and The Global Financial System: Rule Making in the 21st Century. Cambridge University Press, 2012, p. 58). 49 Mayence de 1831. Ainda, ao longo desse período, foram criadas as chamadas “uniões administrativas” (tal como a União Telegráfica Internacional, a União Geral dos Correios, o Bureau Internacional dos Pesos e Medidas, dentre outros) que mais são entendidas como entidades de cooperação no domínio administrativo do que organizações internacionais propriamente ditas. Isso porque leciona Paul Reuter apud Celso D. de Albuquerque Melo59 que: (...) estas uniões administrativas tinham um aspecto “rudimentar” como organizações internacionais. A competência delas era de ordem administrativa e estavam baseadas, de um modo geral, no princípio da unanimidade. Elas se caracterizam por não ter objetivos políticos. A sua permanência era assegurada por uma secretaria. As organizações internacionais, como nós as entendemos hoje (com fins políticos, modos de decisão pela maioria, com poder regulamentar e personalidade jurídica, etc.), só começaram a se desenvolver após a 1° Guerra Mundial, com a criação da Liga das Nações. Indiscutível, portanto, que a atribuição de personalidade e capacidade jurídicas internacionais é uma das condições para a caracterização de uma organização internacional, tal como explicitado, em 1949, pela Corte Internacional de Justiça, no Parecer Consultivo sobre a Reparação de Danos Sofridos a Serviço das Nações Unidas60. Muito embora o questionamento desse Parecer teve como pano de fundo a determinação de responsabilidade internacional, referida Corte enfrentou a questão da existência (ou não) de personalidade e capacidade jurídicas internacionais das organizações internacionais, notadamente da Organização das Nações Unidas. De fato, referida Corte reconheceu que essa capacidade era inerente aos Estados, porquanto sujeitos, por excelência, de direito internacional. Mas e com relação às organizações internacionais? Equivaleria dizer que elas possuem personalidade internacional, ou seja, as organizações internacionais teriam aptidão 59 Mello, Celso D. de Albuquerque. Curso de Direito Internacional Público. Vol. 1. 13.ed. Editora Renovar: Rio de Janeiro, 2001, pp. 596-597. 60 Disponível em: <http://www.icj-cij.org/docket/files/4/1837.pdf>. Acesso em 03 de junho de 2014. 50 para serem sujeitos de direitos e deveres? Por unanimidade, entendeu a Corte que sim, sob pena de não lhe possibilitar o cumprimento das finalidades pelas quais foram criadas. Não obstante a Corte não ter se debruçado mais sobre a questão, é preciso esclarecer que a personalidade jurídica das organizações internacionais é derivada, surgindo a partir da conjugação de vontade de um determinado número de Estados. Em função disso, Francisco Rezek61 entende que a organização internacional “é apenas uma realidade jurídica: sua existência não encontra apoio senão no tratado constitutivo, cuja principal virtude não consiste, assim, em disciplinar-se o funcionamento, mas em haver-lhe dado vida (...)”. De forma similar, entende Ricardo Seitenfus62 que “elas existem a partir da materialização de uma vontade cooperativa dos Estados, sendo sujeitos mediatos ou secundários do Direito Internacional, porque dependem da vontade de seus membros para a sua existência e para a concretitude e eficácia dos objetivos por ela perseguidos”. A capacidade e a personalidade jurídicas das organizações internacionais advêm do documento que a constituiu. Diferencia-se, portanto, da personalidade originária dos Estados, que ostenta algumas características essenciais, tais como um povo, um território e um governo soberano. Ainda que não seja escopo da presente dissertação tratar de forma detalhada acerca da teoria e dos elementos do Estado, torna-se imprescindível traçar breves comentários sobre uma dessas características essenciais, a saber: a soberania, na medida de sua correlação com o constante crescimento do número de organizações internacionais desde a criação da Organização das Nações Unidas. Internamente, a soberania sofreu uma relativização em função da instituição de um Estado Democrático de Direito em detrimento do modelo absolutista e, consequentemente, da instituição de um modelo tripartite de divisão de 61 Rezek, Francisco. Direito Internacional Público: Curso Elementar. 10.ed. Editora Saraiva: São Paulo, 2005, p. 152. 62 Seitenfus, Ricado. Manual das Organizações Internacionais. Livraria do Advogado: Porto Alegre, 1997, pp. 53-54. 51 poderes. Dalmo de Abreu Dallari63 esclarece que “o sistema de separação dos poderes, consagrado nas Constituições de quase todo o mundo, foi associado à ideia de Estado Democrático e deu origem a uma engenhosa construção doutrinária, conhecida como sistema de freios e contrapesos”. Externamente, a soberania, enquanto qualidade do Estado em poder “decidir em última instância, sobre a atributividade das normas, vale dizer, sobre a eficácia do direito”64, também vem sendo relativizada principalmente no pósSegunda Guerra Mundial. Antônio Augusto Cançado Trindade65 ressalta que “o modelo wesphaliano do ordenamento internacional, marcado pela visão puramente interestatal das relações internacionais, não resistiu aos desafios dos novos tempos”, desafios esses decorrentes da globalização, da preocupação com o meio ambiente, com os direitos humanos, bem como do aparecimento de blocos econômicos e organizações supranacionais. Sem dúvidas, a Organização das Nações Unidas pode ser considerada um divisor de águas em se tratado da perspectiva dada ao Estado em suas relações internacionais. O comportamento dos Estados está cada vez mais limitado como decorrência de suas obrigações prescritas em documentos de caráter universal ou regional. Como dito, embora existentes tão-somente em função de uma manifestação de vontade dos Estados, atualmente: As mais importantes intervenções políticas ocorrem, em alguns casos, por solicitações dos próprios países abalados por comoções internas, na maioria das vezes por exércitos formados por determinação da ONU, chamados comumente de “força internacional de paz” ou Missão de Estabilização, como ocorreu no Haiti. Outras vezes ocorrem por legitimação outorgada a um ato de ocupação ou invasão, praticado por um ou vários países contra o outro, como 63 Dallari, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 29.ed. Editora Saraiva: São Paulo, 2010, p. 220. 64 Dallari, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 29.ed. Editora Saraiva: São Paulo, 2010, p. 80. 65 Trindade, Antônio Augusto Cançado. Direito das Organizações Internacionais. 4.ed. Del Rey: Belo Horizonte, 2009, p. 528. 52 ocorreu no Iraque, e outras, ainda, por imposição de sanções econômicas e comerciais com finalidades coercitivas66. Fruto do insucesso da Liga das Nações e sua incapacidade de prevenir a Segunda Guerra Mundial, a Organização das Nações Unidas surge em um contexto de devastação na Europa. Não foi por outra razão que seus principais objetivos foram – e ainda são – a manutenção da paz e cooperação internacionais, bem como a promoção do desenvolvimento econômico e social e o respeito pelos direitos humanos. Para a consecução das finalidades inseridas em sua carta constitutiva, a Organização das Nações Unidas conta com a ajuda de tantas outras organizações internacionais, igualmente de caráter universal, conforme demonstrado na ilustração abaixo, que reflete a atual estrutura da mais importante organização internacional já criada: FIGURA 1 – SISTEMA DAS NAÇÕES UNIDAS Fonte: http://www.onu.org.br/img/organograma.png 66 Maluf, Sahi. Teoria Geral do Estado. 30.ed. Editora Saraiva: São Paulo, 2010, p. 46. 53 De fato, esse conglomerado de organizações internacionais e a crescente interdependência na relação entre estas e os Estados facilitou a subsistência de uma estrutura global, desafiando a abordagem centrada somente no Estado como formulador de políticas internacionais. Entretanto, tal relação é passível de críticas e elogios, e buscaremos abordar essa questão mais aprofundadamente ao longo do presente Capítulo. Por um lado, Antônio Augusto Cançado Trindade67 entende que “os Estados passaram a delas [organizações internacionais] necessitar para sua própria convivência internacional, e nelas visualizaram um veículo apropriado de expressão da solidariedade internacional”. E é, nesse sentido, que as organizações internacionais também podem ser consideradas como fóruns de discussão para, juntamente com os Estados, elaborar políticas cooperativas68. Por outro lado, Alexander Andreev69 leciona que as organizações internacionais são “basically a reflection of the distribution of power in the world. They are based on the self-interested calculations of the great powers, and they have no independent effect on state behavior. (…). The UN Security Council can be normally taken as an example relevant for this approach. Thus, IOs appear as instruments for state interests from this perspective”70. Essa visão é ainda mais reforçada em função do poder de tomada de decisões detido pelas organizações internationais, surgindo o “problema de agência”, expressão alcunhada por Michael 67 Trindade, Antônio Augusto Cançado. Direito das Organizações Internacionais. 4.ed. Del Rey: Belo Horizonte, 2009, p. 533. 68 Esse entendimento é um dos fundamentos da teoria do institucionalismo neoliberal que entende que as organizações internacionais tornam-se cada vez mais indispensáveis, como instrumento diplomático internacional e por meio de uma atuação conjunta entre organizações internacionais universais e regionais. Nesse sentido, ver lições de: Cassese, Antonio. International Law. New York: Oxford University Press, 2005, p. 338. 69 Tradução livre da autora: “basicamente um reflexo da distribuição do poder no mundo. Elas são baseadas em premissas de interesse individual das grandes potências, e não têm qualquer efeito independente no comportamento do Estado. (...). O Conselho de Segurança das Nações Unidas pode ser normalmente tomado como exemplo dessa abordagem. Assim, as OIs aparecem como instrumento de interesse dos Estados” (Andreev, Alexander. To What Extent Are International Organizations (IOs) Autonomous Actors in World Politics? Disponível em: <http://www.ucl.ac.uk/opticon1826/archive/issue2/VfPS_HS_International_Organisations.pdf>. Acesso em 03 de junho de 2014). 70 A opinião expressa corresponde a principal ideia da teoria neo-realista que entende que as organizações internacionais serão sempre ineficientes, na medida em que não conseguem impedir o sistema anárquico de auto-interesse dos Estados. Nesse sentido, ver lições de: Mearsheimer, John J. The False Promise of International Institutions. International Security 19, n. 3, 1994, p. 13. 54 C. Jensen e William H. Meckling71, quando do estudo da relação entre principal (acionistas) e agente (administradores) nas sociedades anônimas. Muito embora o artigo tenha se voltado ao estudo da estrutura acionária e o poder de controle, deu novos contornos à ideia de governança corporativa e aos problemas decorrentes de sua ausência, e que podem ser aplicadas às organizações internacionais estudadas neste Capítulo. Contudo, seja qual for o entendimento do papel das organizações internacionais, não se olvida retirar-lhes a importância: seja no desenvolvimento do direito internacional público (por meio da celebração de tratados internacionais ou por meio de decisões judiciais), seja na manutenção da paz e estabilidade (econômica, social ou até mesmo política) internacionais, seja atuando no interesse da sociedade internacional (voltando-se, por exemplo, a questões ambientais). Por tal razão e por ser um fenômeno que atinge a sociedade internacional como um todo, trazendo externalidades e reflexos, positivos ou negativos, a forma como atuam as organizações internacionais são de extrema importância, porquanto influenciam o rumo da globalização do século XXI. 2.2 A GLOBALIZAÇÃO NA AGENDA DAS ORGANIZAÇÕES INTERNACIONAIS A cooperação dos e entre os sujeitos de direito internacional público surge das mais diversas formas e nas mais diversas áreas. A atividade legislativa da Organização das Nações Unidas e de outras organizações internacionais coligadas a ela, “adquire claros contornos com as declarações e pactos para a segurança coletiva dos direitos humanos, assim como os esforços pela solidariedade econômica e social internacionais”72. Reitera-se, pois, a importância da terceira dimensão de direitos preconizada pela Revolução Francesa. 71 Jensen, Michael C; Meckling, William H. Theory of the Firm: Managerial Behavior, Agency Cost and Ownership Structure. Journal of Financial Economics, vol. 3, n. 4, out., pp. 305-360, 1976. 72 Häberle, Peter. Estado Constitucional Cooperativo. Tradução por Marcos Augusto Maliska e Elisete Antoniuk. Editora Renovar: Rio de Janeiro, 2007, p. 29. 55 A ordem jurídica internacional é composta por regras (englobando a ideia de normas jurídicas e princípios73) e recomendações com o objetivo de regular as relações entre os sujeitos do direito internacional público. Para fins meramente didáticos, dividiremos a ordem jurídica internacional em direito internacional público propriamente dito e direito econômico internacional, não obstante partilhamos o entendimento da unidade do direito internacional público. No que diz respeito à primeira divisão, ou seja, a ordem jurídica de direito internacional público, a Conferência de Dumbarton Oaks reuniu os principais líderes internacionais com o intuito de tornar realidade o disposto no parágrafo 4° da Conferência de Moscou de 1943, ou seja, a Organização das Nações Unidas, após a derrocada da Liga das Nações. Preconiza referido artigo que os Estados “recognize the necessity of establishing at the earliest practicable date a general international organization, based on the principle of the sovereign equality of all peace-loving states, and open to membership by all such states, large and small, for the maintenance of international peace and security”74. Tal Conferência possuía, assim, uma perspectiva política, vislumbrando a manutenção da paz e segurança internacionais entre os Estados por meio da atuação de uma organização internacional central e universal. Quanto à segunda divisão – a ordem jurídica de direito econômico internacional – esta teve seu surgimento no Acordo de Bretton Woods, cujo escopo 73 No que diz respeito aos diferentes conceitos e consequências entre normas e princípios, ver lições de: Alexy, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2001, pp. 81-87. Em breves linhas, esclarece o autor que: “Desde luego, con mayor frecuencia se subraya el carácter de principios de las normas de derechos fundamentales de una manera no tan directa. Como habrá de mostrarse, esto se realiza cuando, por ejemplo, se habla de valores, de objetivos, de fórmulas abreviadas o de reglas de carga de la prueba. En cambio, se hace referencia al carácter de reglas de las normas de derechos fundamentales cuando se dise que la Constitución debe ser tomada en serio como ley o cuando se señala la posibilidad de una fundamentación deductiva, también en el âmbito de los derechos fundamentales” (Tradução livre da autora: “É claro que, na maioria das vezes, o caráter de princípios de normas de direitos fundamentais, de uma forma não tão direta, é enfatizada. Como será mostrado, este é realizado quando, por exemplo, falamos de valores, propósitos, fórmulas abreviadas ou de regras com força probatória. No entanto, se faz referência ao caráter de regras das normas de direitos fundamentais quando se diz que a Constituição deve ser levada a sério enquanto lei, ou quando se nota a possibilidade de um raciocínio dedutivo, inclusive no âmbito dos direitos fundamentais”). 74 Tradução livre da autora: “reconhecer a necessidade de se estabelecer, o mais rápido possível, uma organização internacional geral, com base no princípio da igualdade soberana de todos os Estados amantes da paz, e aberto à participação de todos esses estados, grandes e pequenos, para a manutenção da paz e segurança internacionais”. 56 era lidar com questões econômicas mundiais por meio da criação de organizações internacionais específicas, a saber: (i) a Organização Mundial do Comércio; (ii) o Fundo Monetário Internacional e (iii) o Banco Mundial, que passaremos a tratar a seguir. 2.2.1 Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio/Organização Mundial do Comércio Por muito tempo e, principalmente, durante o período pós-Segunda Guerra Mundial, a cooperação era escassa e o protecionismo vigente, porquanto a Europa se via em ruínas. À época, os Estados Unidos emergiram como uma grande potência mundial e, portanto, a questão da liberalização dos mercados não era sua prioridade, já que acabou por ser o grande financiador da reconstrução da Europa (Plano Marshall75). Com o advento da Grande Depressão e o fracasso do Smoot Hawley Act76, que acabou por aprofundar ainda mais os efeitos da recessão econômica, os Estados Unidos assumiram uma postura de liderança. E, juntamente com a Inglaterra, propôs ao Conselho Econômico e Social da Organização das Nações Unidas, um texto com regras multilaterais para o comércio internacional, tomando forma então o conhecido Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio. Confeccionado para ser um tratado multilateral provisório, enquanto não criada a Organização Internacional do Comércio77, conforme previsto no Acordo de Bretton Woods, o Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio previa aos signatários um acesso mais equitativo aos mercados, por meio da diminuição das barreiras 75 Também conhecida como Plano de Recuperação da Europa, o Plano Marshall visava reconstruir, primeiramente, as economias da Europa ocidental. George Marshall, autor intelectual do plano em 1947, estava convencido que a estabilidade política era a chave para o restabelecimento do espírito colaborativo na região. Inclusive, a prosperidade econômica liderada pelas indústrias do aço e do carvão ajudarou a moldar o que hoje conhecemos por União Europeia. Disponível em: <http://www.marshallfoundation.org/TheMarshallPlan.htm>. Acesso em 16 de maio de 2014. 76 Lei norte-americana, de iniciativa do Senador Reed Smoot e do Deputado Willis C. Hawley que, de maneira recorde, elevou as tarifas de mais de 20.000 (vinte mil) produtos importados. Como efeito colateral, outros países passaram a impor, cada vez mais, barreiras comerciais sobre os produtos estrangeiros. 77 A criação da Organização Internacional do Comércio não foi ratificada pelos Estados Unidos, apesar das diversas negociações na Conferência de Havana de 1948. 57 comerciais. Não se tratava necessariamente da promoção do livre comércio. Mas seus idealizadores entendiam que tal comprometimento cooperativo seria capaz de aumentar a interdependência entre os países e, consequentemente, ajudaria a reduzir os riscos de uma nova guerra mundial78. Fato é que referido tratado internacional vigeu por um longo período (entre 1948 e 1994), tornando-se um documento referência para a atividade comercial internacional. Diversas “rodadas”79 (negociações) foram realizadas, inserindo certos compromissos e obrigações entre os Estados signatários, dentre os quais citamos: medidas anti-dumping, propriedade intelectual, reduções tarifárias, barreiras comerciais não-tarifárias, produtos agrícolas, prestação de serviços, mecanismos de solução de controvérsias, entre outros. Não obstante, uma das rodadas mais expressiva foi a do Uruguai, iniciada em 1986 e concluída em 1994, com o advento do Acordo de Marraqueche, e que culminou com o surgimento da Organização Mundial do Comércio (World Trade Organization), em 01 de janeiro de 1995, e consoante artigo 1° deste Acordo essa organização internacional era incumbida de administrar o sistema multilateral de comércio80. Observou-se, nesse desiderato, o desejo em “contribuir para a consecução desses objetivos mediante a celebração de acordos destinados a obter, na base da reciprocidade e de vantagens mútuas, a redução substancial das tarifas aduaneiras e dos demais obstáculos ao comércio, assim como a eliminação do tratamento discriminatório nas relações comerciais internacionais”. 78 Nesse sentido, ver lições de: Hoekman, Bernard; Kostecki, Michael. The Political Economy of the World Trading System: From GATT to WTO. Oxford University Press: Oxford, 1995, p. 13 e ss. 79 Até a data de fechamento da presente dissertação foram realizadas 09 (nove) rodadas, a saber: (i) Genebra (1948); (ii) Annecy (1949); (iii) Torquay (1950); (iv) Genebra (1955); (v) Dillon (1960/1961); (vi) Kennedy (1964/1967); (vii) Tóquio (1973/1979); (viii) Uruguai (1986/1994); e (ix) Doha (desde 2001 e ainda não concluída). 80 Compreendido estruturalmente da seguinte forma: (i) Anexo 1A (que trata dos princípios e questões pontuais, tais como: agricultura, medidas de investimento, aplicação de medidas sanitárias e fitossanitárias, anti-dumping, regras de frete, subsídios e medidas compensatórias e salvaguardas); (ii) Anexo 1B (que trata do Acordo Geral sobre o Comércio de Serviços – GATS); (iii) Anexo 1C (que trata do Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual – TRIPS); (iv) Anexo 2 (que trata das Normas e Procedimentos sobre Soluções de Controvérsias); (v) Anexo 3 (que trata sobre os mecanismos de Exame de Políticas Comerciais; e (vi) Anexo 4 (que trata de acordos plurilaterais diversos envolvendo questões sobre: comércio de aeronaves civis, sobre compras governamentais, sobre produtos lácteos e sobre carne bovina, e cuja adesão é opcional, mas, desde que expressamente aceito, passa a ser obrigatória sua observância e cumprimento entre os membros que o aceitaram). 58 Em outras palavras, a Organização Mundial do Comércio assume como foco as diretrizes do Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio, no que diz respeito à observância do princípio da não discriminação, por meio da concretização das seguintes regras: (i) da nação mais favorecida e (ii) do tratamento nacional. Sintaticamente, a cláusula I trata do princípio da nação mais favorecida, articulando que “todas as partes contratantes têm que conceder a todas as demais partes o tratamento que concedem a um país em especial”. Ou seja, nenhum país poderá conceder vantagens especiais ou discriminatórias a outros países, no contexto do comércio internacional. Por sua vez, a cláusula III cuida do tratamento nacional, dispondo que “os bens importados devem receber o mesmo tratamento concedido a produto equivalente de origem nacional”. A partir disso, Asif H. Qureshi e Andreas R. Ziegler 81 sumarizaram os propósitos e objetivos da Organização Mundial do Comércio, a saber: Firstly, the WTO provides a substantive code of conduct directed at the reduction of tariffs and other barriers to trade, and elimination of discrimination in international trade relations. Secondly, the WTO provides the institutional framework for the administration of the substantive code. (…) Thirdly, the WTO ensures the implementation of the substantive code. It provides a forum for dispute settlement in international trade matters, and conducts surveillance of national trade policies and practices in order to prevent disputes and contribute to increased transparency and efficiency. Fourthly, the WTO acts as a medium for the conduct of international trade relations amongst Member States both bilaterally and multilaterally. (...) Finally, the WTO is expected to engage in the achievement of greater 81 Tradução livre da autora: “Em primeiro lugar, a OMC prevê um código principal de conduta dirigida à redução de tarifas e outras barreiras ao comércio, e a eliminação da discriminação nas relações comerciais internacionais. Em segundo lugar, a OMC prevê o quadro institucional para a administração do código de conduta. (...). Em terceiro lugar, a OMC garante a implementação do código de conduta. Ele fornece um fórum para a resolução de controvérsia em matéria de comércio internacional, e conduz a vigilância das políticas e práticas comerciais nacionais, a fim de evitar litígios e contribuir para uma maior transparência e eficiência. Em quarto lugar, a OMC funciona como um meio para a condução das relações comerciais internacionais entre os Estados-Membros nos âmbitos bilateral e multilateral. (...). Por fim, à OMC é esperado participação na realização de uma maior coerência na elaboração de políticas econômica global por meio da cooperação com o FMI e o Banco Mundial, mas também outras instituições e atores” (Qureshi, Asif H.; Ziegler, Andreas R. International Economic Law. 2.ed. Sweet & Maxwell, 2007). 59 coherence in global economic policy-making by co-operating with the IMF and the World Bank Group, but also other institutions and actors. Não resta dúvida que a Organização Mundial do Comércio foi uma importante inovação no cenário internacional, levando-se em consideração que o multilateralismo dotou essa instituição de personalidade jurídica, legitimidade, autonomia e poder fiscalizatório. E, diferentemente do que ocorreu com as demais organizações internacionais decorrentes do Acordo de Bretton Woods, a Organização Mundial do Comércio “tem por ativos principais não seus recursos, mas suas normas, razão pela qual os Membros se esforçam por manter a sólida credibilidade erga omnes da organização”82. Por conseguinte, buscou disciplinar as práticas comerciais internacionais com vistas a evitar o nefando aumento do protecionismo, propiciando que os países em desenvolvimento e os emergentes desfrutem de mecanismos de proteção contra arbitrariedades cometidas a seus produtos e/ou serviços 83. A existência de um sistema de solução de controvérsias, um dos grandes destaques da Organização Mundial do Comércio, eficaz e transparente, é condição sine qua non para a manutenção de uma economia aberta. Com isso, evita-se que os produtores domésticos afetados pela concorrência desleal de alguns produtos importados pressionem por medidas de proteção incompatíveis com as regras da Organização Mundial do Comércio. Na era do Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio o poder fiscalizatório (ou os mecanismos de solução de controvérsias) era demasiado deficiente, na medida em que para se levar um litígio a um painel, por exemplo, era necessária a aprovação de todos os signatários do tratado internacional, inclusive do próprio 82 Cretella Neto, José. Curso de Direito Internacional Econômico. Editora Saraiva: São Paulo, 2012, p. 387. 83 O Brasil já se beneficou desse mecanismo para defesa de seus interesses, notadamente com relação aos Estados Unidos (gasolina, suco de laranja, algodão), à União Europeia (produtos avícolas, frangos desossados congelados, café e pneus reformados), Canadá (aeronaves civis), Peru (ônibus), Argentina (algodão), dentre outros. 60 demandado, o que não fazia o menor sentido pelo evidente conflito de interesse e, conseguintemente, pela impossibilidade de resolução de eventuais lides. Desde 2001, no entanto, busca-se concluir as negociações em Doha, outra rodada de grande expressividade, compreendendo diversas áreas do comércio, sendo consideradas as mais importantes: (i) agricultura (subsídios e auxílios em geral); (ii) serviços (desregulamentação); (iii) ajuda ao desenvolvimento; e (vi) facilitação de intercâmbios (redução de barreiras fronteiriças). A Rodada Doha, também conhecida como Agenda de Desenvolvimento, teve como preocupação melhorar as perspectivas comerciais dos países em desenvolvimento e emergentes no sistema multilateral do comércio, não somente do ponto de vista econômico, mas também sob o ponto de vista socioambiental. E esse fato é notório quando da abertura da Rodada Doha por meio da Declaração Ministerial de 14 de novembro de 2001: We seek to place developing countries’ needs and interests at the heart of the Work Programme adopted in this Declaration. (…). We shall continue to make positive efforts designed to ensure that developing countries, and especially the least-developed among them, secure a share in the growth of world trade commensurate with the needs of their economic development. In this context, enhanced market access, balanced rules, and well targeted, sustainably financed technical assistance and capacity-building programmes have important roles to play84. Entretanto, a crise subprime de 2008 e os reflexos negativos nas economias norte-americanas e europeias se tornaram o maior entrave para a continuidade dessa Rodada. Como em todo cenário de instabilidade econômica, 84 Tradução livre da autora: “Procuramos colocar as necessidades e interesses dos países em desenvolvimento no centro do Programa de Trabalho adotado na presente Declaração. (...). Vamos continuar fazendo esforços positivos para assegurar que aos países em desenvolvimento e, especialmente, os menos desenvolvidos dentre eles, seja garantida uma participação no crescimento do comércio mundial proporcional às necessidades de seu desenvolvimento econômico. Neste contexto, o reforço ao acesso ao mercado, regras equilibradas e bem orientadas, financiadas sustentavelmente por meio de programas de assistência e capacitação técnica, têm papéis importantes a desempenhar” (Disponível em: <http://www.wto.org/english/tratop_e/dda_e/dda_e.htm>. Acesso em 16 de maio de 2014). 61 medidas protecionistas pelos países desenvolvidos tendem a ser a ordem do dia. E, como consequência, a Organização Mundial do Comércio não fez jus às promessas de desenvolvimento aos países menos desenvolvidos e emergentes, porquanto ainda subsistem subsídios agrícolas e políticas econômicas protecionistas, principalmente na União Europeia. Adicionalmente, as 88 (oitenta e oito) propostas de “tratamentos diferenciados e especiais” aos países menos desenvolvidos e emergentes ainda não foram implementadas, por ausência de clareza e operacionalidade. 2.2.2 Fundo Monetário Internacional O contexto pelo qual surgiu o Fundo Monetário Internacional (International Monetary Fund) não diferiu da criação do Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio. Em primeiro lugar, o pós-Grande Depressão assolou diversos países em função da recessão econômica, forçando a adoção de medidas protetivas, o aumento de barreiras comerciais e a desvalorização das moedas para aumento de competividade no mercado exportador, para citar apenas alguns exemplos. É uma tendência autodestrutiva, na medida em que houve um decréscimo no comércio internacional (conforme ilustração abaixo), aumento do desemprego em massa e uma consequente diminuição na qualidade de vida dos indíviduos: FIGURA 2 – POLÍTICA PROTECIONISTA DURANTE A GRANDE DEPRESSÃO Fonte: Kindleberger, Charles P. The World in Depression 1929-1939. 62 Em segundo lugar, era preciso substituir “uma estrutura arcaica, incapaz de fazer frente às necessárias liquidez, estabilidade e adequada movimentação financeira, próprias de um verdadeiro sistema financeiro internacional, inexistente antes de 1944”85. Diante desse cenário surge o Fundo Monetário Internacional, em 1945. Inicialmente, sua função era reconstruir as economias dos países da Europa Ocidental acometidas pela Segunda Guerra Mundial. Mais adiante, em 1989, notadamente após a Queda do Muro de Berlim, o Fundo Monetário Internacional passou a auxiliar a transição dos países da ex-União Soviética de uma economia planejada (central planning) a uma economia de mercado (market oriented). Em 1997, concedeu empréstimo aos países do sudeste asiático (Tailândia e Indonésia, por exemplo) que passavam por uma profunda crise econômica, em função da depreciação de suas moedas e na diminuição do valor dos ativos no mercado de capitais. Desde responsabilidades, 2012, o Fundo desempenhando Monetário funções de Internacional supervisão, ampliou suas emprestador e prestador de serviços de assistência técnica, “trabalhando para promover a cooperação monetária global, assegurar a estabilidade financeira, facilitar o comércio internacional, promover um alto nível de emprego e o crescimento econômico sustentável e reduzir a pobreza em todo o mundo”86. Partiu-se da premissa de que uma ação coletiva e cooperativa dos Estados era necessária. Tanto é esse o entendimento que o capital social do Fundo Monetário Internacional é constituído por meio de integralizações de cada um dos Estados-membros, proporcionalmente ao tamanho de sua economia. No entanto, diante da crise subprime de 2008, é possível afirmar que o Fundo Monetário Internacional cumpriu com os objetivos pelos quais foi criado? Referida crise, apesar de ter se pautado em movimentos especulativos no mercado 85 Cretella Neto, José. Curso de Direito Internacional Econômico. Editora Saraiva: São Paulo, 2012, p. 496. 86 Disponível em: <http://www.imf.org/external/about.htm>. Acesso em 16 de maio de 2014. 63 de capitais, propiciou um debate bastante profundo acerca da eficácia do Fundo Monetário Internacional na consecução de seus objetivos. Até mesmo se cogitou pensar que a maior potência mundial exercia sua influência nos demais países por meio do Fundo Monetário Internacional, incutindoos ou obrigando-os a moldar um sistema econômico similar ao seu. Jeffrey Sachs87 salienta que “from the start, the IMF has lived with a particular tension. It is an international organization with 184 member countries, and the IMF Articles of Agreement call on it to represent all of its constituent members. Yet the fund is governed by rich nations, foremost among them the United States”. Sob outro enfoque, Joseph Stiglitz88 leciona que: The ideas and intentions behind the creation of the international economic institutions were good ones, yet they gradually evolved over the years to become something very different. The Keynesian orientation of IMF, which emphasized market failures and the role for government in job creation, was replaced by the free market mantra of 1980s, part of a new “Washington Consensus” – a consensus between the IMF, the World Bank, and the US Treasury about the “right” polices for developing countries – that signaled a radically different approach to economic development and stabilization. Assim, sob a perspectiva do Fundo Monetário Internacional, todos os países devem ser tratados de forma igualitária, sem que se atente, no entanto, a 87 Tradução livre da autora: “desde o início, o FMI tem vivido uma tensão particular. É uma organização internacional, com 184 Estados-membros, e o acordo constitutivo do FMI preconiza que ele representa todos os seus membros constituintes. No entanto, o fundo é regido por nações ricas, sobretudo os Estados Unidos” (Sachs, Jeffrey. How to Run the Internacional Monetary Fund. Foreign Policy, n. 143, jul./ago. 2004, pp. 60-64). Vale abrir um parêntese na referência em questão para informar que, até o fechamento da presente dissertação, o número correto de Estados-membros do Fundo Monetário Internacional são 188 (cento e oitenta e oito) Estados-membros. 88 Tradução livre da autora: “As idéias e intenções por trás da criação das instituições econômicas internacionais foram boas, mas elas evoluíram gradualmente ao longo dos anos e se tornaram algo muito diferente. A orientação keynesiana do FMI, que enfatizou as falhas de mercado e o papel do governo na criação de emprego, foi substituído pelo mantra do mercado livre de 1980, parte de um novo ‘Consenso de Washington’ – um consenso entre o FMI, o Banco Mundial e o Tesouro dos EUA sobre as políticas "certas" para os países em desenvolvimento – que sinalizaram uma abordagem radicalmente diferente para o desenvolvimento econômico e para a estabilização” (Stiglitz, Joseph. Globalization and Its Discontents. Penguim Books: Nova Iorque, 2002, p. 16). 64 características peculiares – em termos de sistemas econômicos (capitalista, socialista, comunista, etc.), ou até mesmo sem distinguir os diferentes estágios de desenvolvimento ou de transição de um sistema para outro – de cada um dos países. Tem-se, pois, um problema de governança e de agência, na qual quem decide a direção a ser seguida são os representantes dos países desenvolvidos89, sem muita transparência e controle. Para corroborar ainda mais com a assertiva acima, em 1996, o Fundo Monetário Internacional, em colaboração com o Banco Mundial, lançou um programa denominado Iniciativa em Favor dos Países Pobres Altamente Endividados (Debt Relief under the Heavily Indebted Poor Countries)90, que acabou por conferir maiores poderes para o Fundo Monetário Internacional para ditar as políticas econômicas e monetárias dos países que buscam auxílio. Em verdade, enquanto o Fundo Monetário Internacional for dirigido por pessoas que desacreditam nas instituições públicas domésticas e, em contrapartida, depositam um alto nível de confiança no mercado para correção de ineficiências e falhas, entendemos que há um grande dilema a ser resolvido, dilema este que não se coaduna com a ideia de cooperação internacional. 2.2.3 Banco Mundial Quando de sua concepção, em 1944, o Banco para a Reconstrução e Desenvolvimento (International Bank for Reconstruction and Development) tinha como propósito prover ajuda financeira para a reconstrução da Europa no pósSegunda Guerra Mundial. Ao longo dos anos, suas competências e estrutura foram 89 Vale ressaltar que, por tradição, o presidente do Fundo Monetário Internacional será sempre um cidadão europeu, ao passo que o presidente do Banco Mundial será sempre um cidadão norteamericano. E, de acordo com José Cretella Neto, “a indicação do nome do Presidente incumbe aos EUA e não é passível de contestação, nem se requer aceitação expressa dos demais Estadosmembros” (Cretella Neto, José. Curso de Direito Internacional Econômico. Editora Saraiva: São Paulo, 2012, pp. 512-513). 90 Complementado, em 2005, pela Iniciativa para o Alívio da Dívida Multilateral (The Multilateral Debt Relief Initiative), objetivando acelerar o progresso em direção ao cumprimento dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (Millennium Development Goals), programa este de iniciativa da Organização das Nações Unidas. Para maiores informações sobre os programas, bem como os critérios de eligibilidade para alívio de dívidas, ver: <http://www.imf.org/external/np/exr/facts/hipc.htm>. Acesso em 15 de janeiro de 2014. 65 sendo lentamente remoldadas, de modo que, a partir de meados de 1980, adotou como missão acabar com a pobreza extrema (por meio de empréstimos e financiamentos a juros baixos concedidos a países em desenvolvimento) e aumentar a prosperidade da sociedade internacional. Atualmente, o Banco para a Reconstrução e Desenvolvimento é órgão integrante do Grupo do Banco Mundial (World Bank Group), cujos acionistas são os Estados-membros, da qual fazem parte também: (i) a Associação Internacional do Desenvolvimento (International Development Association); (ii) a Corporação Financeira Internacional (International Finance Corporation); (iii) a Agência Multilateral de Garantia dos Investimentos (Multilateral Investment Guarantee Agency); e (iv) o Centro Internacional para a Arbitragem de Disputas sobre Investimentos (International Centre for Settlement of Investment Dispute). Para ser membro do Grupo do Banco Mundial, o país, necessariamente, tem que ser membro do Fundo Monetário Internacional, o que denota que ambos possuem as mesmas ideologias em termos de políticas econômica e monetária. Portanto, as mesmas críticas realizadas para o Fundo Monetário Internacional aplicam-se ao Grupo Banco Mundial. Ao conceder um empréstimo ou financiamento aos mutuários, o Banco Mundial (assim como nos contratos celebrados com o Fundo Monetário Internacional) insere em seus contratos diversas cláusulas impondo condições para liberação das parcelas. Cláusulas essas que seguem as diretrizes do Consenso de Washington, ou seja, de liberalização (do comércio, de investimentos e do setor financeiro), de desregulamentação e de privatização das indústrias, sem, contudo, atentar ao estágio de desenvolvimento desses mutuários. E não só, Peter Chowla91, em artigo escrito para o sítio do Bretton Woods Project, expõe um dado estarrecedor, e se verdadeiro, constitui um evidente desvio de finalidade do Grupo Banco Mundial. Sua pesquisa revelou que, durante os anos 91 Chowla, Peter. Can Development Really Be Delivered by Investing in Private Banks? Disponível em: <http://www.brettonwoodsproject.org/2014/04/can-development-really-delivered-investing-privatebanks>. Acesso em 04 de junho de 2014. 66 fiscais de 2010 a 2013, alguns órgãos do Grupo Banco Mundial priorizou o setor financeiro em detrimento de outras áreas, conforme ilustração abaixo: FIGURA 3 – GRUPO BANCO MUNDIAL PRIORIZANDO O SETOR FINANCEIRO AO INVÉS DA POBREZA (ANO FISCAL 2010-2013) Fonte: www.brettonwoodsproject.org Diante desse cenário, o autor levantou o seguinte questionamento: que tipo de desenvolvimento é possível atingir com o investimento no setor financeiro? Muito embora não tenha dado uma resposta assertiva, podemos chegar a uma conclusão: a erradicação da pobreza ou o aumento da prosperidade não se dá por meio de concessão de mais poderes ao setor financeiro, ainda que na forma de empréstimos ou investimentos. Veremos, mais adiante, no Capítulo 4, que os intermediários financeiros nem sempre se pautam pelas melhores práticas de governança, ou buscam suprir os interesses da sociedade. Nestes termos, a agenda do Banco Mundial – como também da Organização Mundial do Comércio e do Fundo Monetário Internacional – para o século XXI, é permanecer interferindo na soberania dos países de um modo arbitrário e irresponsável, perdendo, assim, uma grande oportunidade de buscar auxiliá-los na construção de um arcabouço regulatório apropriado ou de bases 67 sólidas para a concretização do desenvolvimento sustentável. Em termos de governança92, também não podem ser considerados os melhores exemplos a serem seguidos. 2.3 O SISTEMA FINANCEIRO GLOBAL COMO SOFT LAW Durante 02 (duas) décadas após o período pós-Guerras Mundiais, as crises financeiras e as repercussões delas decorrentes eram exclusivamente domésticas (internas), talvez em função da mentalidade protecionista que vigia em torno da década de 1930. Entretanto, de meados de 1980 até os dias atuais, as crises financeiras tomaram proporções globais, com efeitos avassaladores sob o ponto de vista socieeconômico. A partir do momento em que o comércio estreita ligações com o fenômeno da globalização passa a prevalecer uma nova ordem mundial, na qual, não menos verdade, passa a integrar essa nova ordem os sistemas financeiro e bancário. Operações essencialmente de mútuo realizados por instituições financeiras passam a ter estruturas mais elaboradas, envolvendo inclusive intermediários financeiros estrangeiros. Surgem, então, as inovadoras e transfronteiriças operações de securitização como forma de capitalização das empresas, impulsionadas pela dinâmica da desregulamentação e das transformações financeiras e tecnológicas. Esse cenário trouxe à baila uma nova preocupação internacional e que ainda hoje pouca atenção se dá: o estudo do direito financeiro internacional. Essa disciplina não deve ser confundida com o estudo do direito financeiro propriamente dito, ramo do direito tributário (direito público interno). Pelo contrário, o direito financeiro internacional vem surgindo, aos poucos, como uma disciplina autônoma, objetivando estabelecer padrões e práticas que regem as 92 Em outro artigo, publicado em 2013 no sítio do Bretton Woods Project, a organização não governamental britânica Global Witness revelou que a Cooperação Financeira Internacional, um dos órgãos do Grupo Banco Mundial, foi responsável por alguns investimentos, por meio de aporte em fundos de private equity, no Vietnã, com vistas a extração ilegal de madeiras no Camboja e Laos. Para maiores informações, disponível em: <http://www.brettonwoodsproject.org/2013/06/art-572643/>. Acesso em 04 de junho de 2014. 68 transações no mercado financeiro e de capitais, na tentativa de criar um corpus juris capaz de proporcionar uma maior estabilidade econômica no âmbito internacional. A complexidade no que diz respeito ao estudo dessa recente ciência é esclarecida por Chris Brummer93: The contribution of academic writers to the study of international financial law have been similarly mixed. Understanding the supervision and oversight of the internacional financial system involves many disciplines, including international law, political science, and “corporate law” (which depending on one’s views can itself entails a variety of fields like finance, securities, insurance, and banking). This complexity makes international financial law tough both to teach and to write about and often leads to a variety of disciplinary biases (…). Esclarece o autor ainda que muitos acadêmicos voltam-se ao estudo desse tema apenas dentro de suas próprias jurisdições, sob a justificativa de que: (i) a maioria dos acordos internacionais são dependentes de ratificação dos governos para sua implementação94; (ii) o direito financeiro internacional não poderia ser considerado um direito propriamente dito por não possuir uma autoridade centralizada, o que retiraria sua legitimidade; e (iii) diferentemente do que acontece com outras áreas do direito, tal como comércio, tributação, dentre outros, tratados internacionais voltados ao direito financeiro internacional não assumem a forma de 93 Tradução livre da autora: “A contribuição da doutrina para o estudo do direito financeiro internacional tem sido amplamente mista. Compreender a supervisão e fiscalização do sistema financeiro internacional envolve muitas disciplinas, incluindo o direito internacional, ciência política, e "legislação societária" (que dependendo do ponto de vista, pode acarretar em uma variedade de áreas, como finanças, valores mobiliários, securitária e bancária). Esta complexidade torna o estudo do direito financeiro internacional difícil, tanto para ensinar e escrever e, muitas vezes, leva a uma série de preconceitos disciplinares (...)” (Brummer, Chris. Soft Law and The Global Financial System: Rule Making in the 21st Century. Cambridge University Press, 2012, p. 3). 94 De fato, no Brasil, para que haja observância de um tratado internacional se faz necessária a ratificação do mesmo por quem detém competência constitucional para tanto, bem como posterior promulgação por meio de decreto presidencial. A incorporação de um determinado tratado internacional no ordenamento jurídico brasileiro se dá por meio de sua publicação no Diário Oficial da União, momento em que passa a ser equiparado à lei infraconstitucional (com exceção de tratados internacionais envolvendo direitos humanos, que obedecem à sistemática introduzida pela Emenda Constitucional n° 45/2004). 69 documentos juridicamente vinculativos, por serem meras recomendações (soft law)95. A pensar dessa forma e fugir à responsabilidade de olhar sob o prisma internacional seria um retrocesso aos avanços já conquistados pelo direito internacional público. Inclusive, entendemos que tal entendimento segue caminho oposto à ideia de cooperação entre Estados e o reconhecimento que cabe a eles uma espécie de responsabilidade social96 perante os indivíduos de sua jurisdição e perante a sociedade internacional. Porém, no âmbito do direito financeiro internacional, a realidade é que acordos celebrados pelas organizações internacionais juntamente com agentes reguladores estatais e/ou privados não possuem especificamente uma autoridade formal, com vistas a uma eventual supervisão supranacional, tal como ocorre com a Organização Mundial do Comércio, o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial. É uma espécie de acordo de cavalheiros (gentleman’s agreement), que foge ao conceito clássico de tratado internacional97. Pelo contrário, esses “regramentos” têm o condão de oferecer apenas um padrão mínimo de qualidade e liquidez internacional, tendo um caráter extremamente facultativo. Esse caráter facultativo, no entanto, é essencialmente psicológico, na medida em que os princípios de governança global acabam por ter um peso moral tão importante quanto às demais regras internacionais. Ao observar tais regras – cuja dinâmica assemelha-se às regras ambientais internacionais – as empresas passam a deter o selo de “politicamente corretas”. Em resumo, a nova ordem internacional nesse mundo globalizado não se subsume apenas à formalização de tratados internacionais entre os sujeitos de direito internacional público. A tendência predominante nesta seara, notadamente a 95 Brummer, Chris. Soft Law and The Global Financial System: Rule Making in the 21st Century. Cambridge University Press, 2012, p. 3. 96 A responsabilidade social é resultado do que se convencionou chamar de “tripé de sustentabilidade” (triple bottom line), compreendendo aspectos econômicos, sociais e ambientais. 97 Tratado internacional é “todo acordo formal concluído entre pessoas jurídicas de direito internacional público, e destinados a produzir efeitos jurídicos” (Rezek, Francisco. Direito Internacional Público: Curso Elementar. 10.ed. Editora Saraiva: São Paulo, 2005, p. 14). 70 do direito financeiro internacional, é a inexistência de um sistema fechado e rígido, como, por exemplo, de um determinado país, mas de um sistema mais aberto e flexível, capaz de lidar com o novo, o imprevisível98. Todavia, fato é que a noção de cooperação internacional e de responsabilidade social deve abranger, principalmente diante de um mundo interconectado financeiramente, aspectos sociais “privados”, notadamente da atuação dos intermediários financeiros (instituições financeiras, sociedades corretoras, agência de rating, etc.), para formação de um corpus juris regulatório internacional no campo dos mercados financeiro e de capitais. Vale lembrar que com a substituição do Acordo de Bretton Woods pelo atual sistema monetário internacional, a partir de 1973, mesmo com toda sua fragilidade, bancos centrais e autoridades regulatórias bancárias dos 10 (dez) países mais ricos do mundo (G-10) uniram-se para criação do Banco de Compensações Internacionais (1930). A partir de então, estabeleceram o Comitê de Supervisão Bancária de Basiléia (1975) para, cooperativamente, tornar pública a Convergência Internacional de Mensuração de Capital e Padrões de Capital (International Convergence of Capital Measurement and Capital Standards), também conhecido como Acordo de Basiléia (1988). Referido Acordo tem como objetivo fornecer diretrizes e recomendações a toda e qualquer instituição bancária, com vistas a melhorar a qualidade do sistema bancário e financeiro internacionais. Adicionalmente, em 1983, durante uma reunião em Quito, no Equador, surgiu a Organização Internacional das Comissões de Valores Mobiliários (International Organization of Securities Commissions), sob a iniciativa da Corporação Financeira Internacional, órgão responsável pelos financiamentos e empréstimos ao setor privado do Grupo do Banco Mundial. Inicialmente confeccionada para servir como um fórum de discussão dos países das Américas, 98 Iudica, Giovanni. Law and Globalization. In: WALD, Arnoldo (coord.). Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais. Vol. 34. Editora Revista dos Tribunais: São Paulo, 2007, p. 431. 71 acabou sendo transformada em uma organização com atuação global 99, cujos principais objetivos são: (i) Cooperar no desenvolvimento, implementação e promoção da adesão às normas internacionalmente reconhecidas e padrões consistentes de regulação, supervisão e fiscalização, a fim de proteger investidores, manter mercados justos, eficientes e transparentes, e procurar abordar os riscos sistêmicos; (ii) Melhorar a proteção dos investidores e promover a confiança do investidor na integridade do mercado de valores mobiliários, por meio de troca de informação e cooperação contra má conduta e na supervisão dos mercados e dos intermediários do mercado; e (iii) Trocar informações, global e regionalmente, com relação às respectivas experiências, a fim de apoiar o desenvolvimento dos mercados, fortalecer a infraestrutura do mercado e implementar uma regulamentação adequada. Contudo, apenas em 1998, a Organização Internacional das Comissões de Valores Mobiliários aprovou um conjunto de princípios – no total, 30 (trinta) – agrupados em 08 (oito) categorias, a saber: (i) relativos ao regulador; (ii) para autoregulação; (iii) relativos ao cumprimento da regulação sobre valores mobiliários; (iv) para cooperação quanto à regulação; (v) relativos ao emissor; (vi) para investimento coletivo; (vii) para intermediários do mercado; e (viii) para mercados secundários100. Em 2005, foi assinado um Memorando de Entendimentos Multilateral sobre Consulta e Cooperação e Troca de Informações (Multilateral Memorandum of Understanding Concerning Consultation and Cooperation and the Exchange of Information)101, com o objetivo de estabelecer a maneira pela qual os seus 99 A natureza jurídica desta organização internacional é atípica, na medida em que não existe um tratado internacional constitutivo. Em verdade, entendemos que por tal razão não se trata de uma organização internacional de caráter público e sim privado, formado, entretanto, por autoridades públicas (em sua maioria) dos Estados-membros, com vistas à cooperação e troca de informações envolvendo valores mobiliários e o mercado de capitais. 100 Para a integral visualização dos princípios, ver: <http://www.iosco.org/library/pubdocs/pdf/IOSCOPD386.pdf>. Acesso em 15 de janeiro de 2014. 101 Para a integral visualização do memorando, ver: <http://www.iosco.org/library/pubdocs/pdf/IOSCOPD154.pdf>. Acesso em 15 de janeiro de 2014. 72 integrantes devem consultar, cooperar e trocar informações, de modo que seja viável uma eficiente regulação do mercado de valores mobiliários. Conforme disposto no parágrafo 4, as atividades abrangidas no âmbito do referido Memorando de Entendimentos são as seguintes: a. insider dealing, market manipulation, misrepresentation of material information and other fraudulent or manipulative practices relating to securities and derivatives, including solicitation practices, handling of investor funds and customer orders; b. the registration, issuance, offer, or sale of securities and derivatives, and reporting requirements related thereto; c. market intermediaries, including investment and trading advisers who are required to be licensed or registered, collective investment schemes, brokers, dealers, and transfer agents; and d. markets, exchanges, and clearing and settlement entities102. Reiterando, entretanto, o que já dissemos alhures, referida organização internacional é notadamente atípica. Voltada à autoridades públicas e intermediários financeiros, é uma organização internacional regulada por uma espécie de acordo de cavalheiros que, como sabemos, não compromete o Estado. Não obstante, sua valia repousa no seguinte fato: Through the “enough disclosure” and “exchange of information” paradigm, IOSCO “regulations” aim at establishing an efficient transnational market by eliminating the externalities generated out of information asymmetries that are likely to distort financial transactions103. 102 Tradução livre da autora: “a. abuso de informação privilegiada, manipulação de mercado, falsificação de informações relevantes e outras práticas fraudulentas ou de manipulação relativos a valores mobiliários e derivativos, incluindo práticas de solicitação, manipulação de fundos de investidores e pedidos dos clientes; b. o registro, emissão, oferta ou venda de valores mobiliários e derivativos, e requisitos de informação relacionadas com o mesmo; c. intermediários do mercado, incluindo consultores de investimento e comerciais que são obrigados a ser licenciados ou registrados, organismos de investimento coletivo, corretores, distribuidores e agentes de transferência, e d. mercados, intercâmbios e as entidades de compensação e liquidação”. 103 Tradução livre da autora: “Por meio de ‘suficiente divulgação’ e ‘troca de informações’, as regulações da IOSCO visam estabelecer um mercado transnacional eficiente, eliminando as externalidades geradas por conta das assimetrias de informações que são susceptíveis em distorcer 73 No Brasil, a Comissão de Valores Mobiliários, que também é membro da Organização Internacional das Comissões de Valores Mobiliários, utiliza desse mecanismo na elaboração de suas instruções normativas, na medida em que antes da edição das mesmas, como costume, abre-se audiência pública104 aos intermediários financeiros e as entidades autoregularas para que possam elaborar comentários e/ou sugerir inclusões, exclusões e modificações na minuta apresentada. O que difere, no entanto, o regime jurídico interno do internacional é que o ordenamento jurídico brasileiro outorga a esta autarquia federal, vinculada ao Ministério da Fazenda, a função de regular, observada a política definida pelo Conselho Monetário Nacional e pelo Banco Central do Brasil, as matérias do seu âmbito de atribuições dadas pela Lei n° 6.385/1976 (Lei do Mercado de Capitais) e pela Lei n° 6.404/1976 (Lei das Sociedades Anônimas), tornando-as mandatórias depois de editadas. Adicionalmente, a Comissão de Valores Mobiliários tem a função de fiscalizar as atividades desenvolvidas no mercado de capitais e as informações veiculadas por seus participantes. Importa relembrar que a própria Constituição Federal de 1988 legitima a criação de órgãos reguladores, consoante dispõe o já mencionado artigo 174. Assim, no caso específico das atribuições da Comissão de Valores Mobiliários, há, digamos, uma legitimidade tanto constitucional quanto infraconstitucional no processo de elaboração de suas normas. 2.4 GOVERNANÇA GLOBAL Como pensar em governança diante da ausência de um governo? Não obstante terem o mesmo radical, não são sinônimos: as transações financeiras” (Marcacci, Antonio. IOSCO: The World Standard Setter for Globalized Financial Markets. Richmond Journal of Global Law & Business. Vol. 12:1. 2012, pp. 23-43). 104 O artigo 8°, § 3° da Lei n° 6.385/1976, dispõe que: “Em conformidade com o que dispuser seu regimento, a Comissão de Valores Mobiliários poderá: I – publicar projeto de ato normativo para receber sugestões de interessados; e II – convocar, a seu juízo, qualquer pessoa que possa contribuir com informações ou opiniões para o aperfeiçoamento das normas a serem promulgadas”. 74 Governo sugere atividades sustentadas por uma autoridade formal, pelo poder de polícia que garante a implementação das políticas devidamente instituídas, enquanto governança refere-se a atividades apoiadas em objetivos comuns, que podem ou não derivar de responsabilidades legais e formalmente prescritas e não dependem, necessariamente, do poder de polícia para que sejam aceitas e vençam resistências105. Esse é um dos grandes problemas enfrentados pelo direito internacional público, na medida em que a estrutura global atual imprescinde de um governo central; tampouco, um modelo de divisão de poderes. Para o Banco Mundial, a governança é definida “as the manner in which power is exercised in the management of a country’s economic and social resources for development” 106. Sob essa perspectiva, a governança está intrinsecamente relacionada com a forma pela qual o governo exerce o poder dentro de sua jurisdição, notadamente quanto à formulação e implementação de políticas públicas. Nesse contexto, partimos da premissa de que o Estado deve ter um papel preponderante tanto na elaboração de regras para o funcionamento eficiente do mercado quanto na interferência quando houver falhas em seu funcionamento, para fins do exercício de uma boa governança. As globalizações econômica e financeira, entretanto, alteraram o modo pelo qual se passou a entender a governança, não mais estritamente interna para se tornar uma preocupação internacional, na medida em que cresce o número de atores no cenário internacional, no momento posterior à Paz de Vestefália. Isso porque entendemos que não houve uma efetiva “governança global” durante o sistema vestifaliano. A um, porque os Estados eram os únicos tomadores de decisão, os únicos destinatários de suas decisões e os únicos responsáveis por observar o cumprimento de suas decisões. A dois, porque eventuais arranjos de 105 Rosenau, James N. Governança, Ordem e Transformação na Política Mundial. In: Rosenau, James N.; Czempiel, Ernst-Otto. Governança Sem Governo: Ordem e Transformação na Política Mundial. Ed. Unb: Brasília, 2000. p. 15. 106 Tradução livre da autora: “como a maneira pela qual o poder é exercido na administração dos recursos econômicos e sociais de um país para o desenvolvimento” (World Bank. Governance and Development. Washington: The World Bank, 1992). 75 governança criados pelo Estado visavam apenas reduzir os atritos decorrentes de transações externas107, salvo ações relativas a ameaças à paz, ruptura da paz e atos de agressão em que a Organização das Nações Unidas poderia intervir108. O conjunto de regras formuladas no âmbito do direito internacional público deriva da vontade dos Estados em transferir parcela de sua soberania quando da constituição de uma organização internacional, universal ou regional, como instrumento de aproximação pacífica e de cooperação internacional, observadas as finalidades para as quais foram criadas. Antônio Augusto Cançado Trindade é enfático ao dispor que “os Estados perderam o monopólio da condução das relações internacionais e não podem ignorar ou negligenciar os esforços de tais organizações em assegurar o respeito e a observância das normas de Direito Internacional”109. Ainda assim, não há um “poder central” universal. A governança chamada global, em nosso entendimento, vai além da produção de normas ou códigos de conduta e mecanismos de observância deles. Vai além também da mera atividade regulatória. Nos dizeres de Thomas G. Weiss e Ramesh Thakur110: Global governance – which can be good, bad, or indifferent – refers to existing collective arrangements to solve problems. Adapting our definition of governance, “global governance” is the sum of laws, norms, policies, and instruments that define, constitute, and mediate relations among citizens, society, markets, and the state in the 107 Nesse sentido, ver lições de: Weiss, Thomas G.; Thakur, Ramesh. Global Governance and the UN: An Unfinished Journey. United Nations Intellectual History Project Series, 2010, p. xvi. 108 O artigo 1, item 7 da Carta das Nações Unidas dispõe que “nenhum dispositivo da presente Carta autorizará as Nações Unidas a intervir em assuntos que dependam essencialmente da jurisdição de qualquer Estado ou obrigará os Membros a submeterem tais assuntos a uma solução, nos termos da presente Carta; este princípio, porém, não prejudicará a aplicação de medidas coercitivas constantes no Capítulo VII”. 109 Trindade, Antônio Augusto Cançado. Direito das Organizações Internacionais. 4.ed. Del Rey: Belo Horizonte, 2009, p. 530. 110 Tradução livre da autora: “A governança global – que pode ser bom, ruim, ou indiferente – referese a acordos coletivos existentes para resolver problemas. Adaptando a nossa definição de governança, "governança global" é a soma de leis, normas, políticas e instrumentos que definem, constituem e medeiam as relações entre os cidadãos, a sociedade, os mercados e o Estado na arena internacional – detentores e sujeitos de poder público internacional. Mesmo na ausência de uma autoridade central abrangente, os arranjos coletivos existentes trazem maior previsibilidade, estabilidade e ordem aos problemas transfronteiriços” (Weiss, Thomas G.; Thakur, Ramesh. Global Governance and the UN: An Unfinished Journey. United Nations Intellectual History Project Series, 2010, p. 6). 76 international arena – the wielders and objects of international public power. Even in the absence of an overarching central authority, existing collective arrangements bring more predictability, stability, and order to transboundary problems. Para Debora D. Avant, Martha Finnemore e Susan K. Sell 111, a governança global “is the result of a political process and is shaped by power, access, mobilization, leadership, and other political variables”. De forma complementar, James N. Rosenau112 entende que a governança “abrange as instituições governamentais, mas implica também mecanismos informais, de caráter não-governamental, que fazem com que as pessoas e as organizações dentro da sua área de atuação tenham uma conduta determinada, satisfaçam suas necessidades e respondam às suas demandas”. A governança global, portanto, vai além do entendimento da imprescindibilidade de um governo, porquanto é possível a utilização de meios diplomáticos, meios pacíficos de solução de controvérsias, dentre outros, como meio de produção de resultados eficazes no que diz respeito ao cumprimento das regras de direito internacional público. Reiterando essa assertiva, o Relatório elaborado, em 1995, pela Comissão sobre Governança Global da Organização das Nações Unidas definiu a governança global como “a soma dos diversos meios pelas quais os indivíduos e as instituições, públicas e privadas, administram seus problemas em comum. É um processo contínuo nas quais interesses conflitantes ou diversos podem ser acomodados e ações de cooperação podem ser desenvolvidas”. Por tal razão, a Organização das Nações Unidas, muito embora à época tenha sofrido diversas críticas, inclusive de tentar suprimir a autoridade soberana dos Estados, buscando “construir” um federalismo mundial, entende que, nas relações internacionais, não basta tão-somente à atuação dos Estados e das organizações internacionais. É preciso a união de forças entre estes e organizações 111 Tradução livre da autora: “é o resultado de um processo político e é moldada pelo poder, acesso, mobilização, liderança e outras variáveis políticas” (Avant, Debora D; Finemore, Martha; Sell, Susan K. Who Governs the Globe? Cambrige University Press: Cambridge, 2010, p. 7). 112 Rosenau, James N. Governança, Ordem e Transformação na Política Mundial. In: Rosenau, James N.; Czempiel, Ernst-Otto. Governança Sem Governo: Ordem e Transformação na Política Mundial. Ed. Unb: Brasília, 2000. pp. 15-16. 77 não governamentais, empresas transnacionais, intermediários financeiros, dentre outros. Em se tratando do sistema financeiro internacional, tornar realidade às melhores práticas de governança parece ainda mais uma utopia. Parece-nos que falta coerência e adequação na atuação das organizações internacionais. Voltemos à questão referente aos problemas de agência referidos anteriormente que estão no cerne do exercício das boas práticas de governança. Os problemas de agência decorrem de um desalinhamento de interesses na relação entre agente-principal. E essa relação entre agente-principal, conforme Michael C. Jensen e William H. Meckling113, é definida como “a contract under which one or more persons (the principal(s)) engage another person (the agent) to perform some service on their behalf which involves delegating some decision making authority to the agent”. Resguardadas as devidas ressalvas entre as relações de poder nas sociedades anônimas e no direito internacional público, às organizações internacionais em estudo (agente), como regra, são delegadas autoridades (pelos Estados, ou seja, o principal) para a tomada de certas decisões. Decisões essas que nem sempre se coadunam com os melhores interesses do principal, podendo ser citado, por exemplo, o caso e o contexto dos Acordos de Basiléia, editados pelo Comitê de Supervisão Bancária de Basiléia. O processo de tomada de decisão é secreto, desprovido de transparência e elaborados por um limitado grupo de autoridades de bancos centrais, que “exercises either direct or indirect influence over the development of banking law for most countries”114. 113 Tradução livre da autora: “um contrato no qual uma ou mais pessoas (o principal) empregam outra pessoa (o agente) para desempenhar alguma tarefa a seu favor, envolvendo delegação de autoridade para a tomada de decisão pelo agente” (Jensen, Michael C; Meckling, William H. Theory of the Firm: Managerial Behavior, Agency Cost and Ownership Structure. Journal of Financial Economics, vol. 3, n. 4, out., 1976, p. 308). 114 Tradução livre da autora: “exerce tanto direta quanto indiretamente influência sobre o desenvolvimento do direito bancário de muitos países” (Alexander, Kern; Dhumale, Rahul; Eatwell, John. Global Governance of Financial Systems: The International Regulation of Systemic Risk. Oxford Press University: Oxford, 2006, p. 37). 78 Pode-se argumentar que os Acordos de Basiléia são uma espécie de soft law e, portanto, não obrigatórios, podendo o Estado que não aceitar suas proposições, simplesmente, desconsiderá-las. E a esse respeito devemos observar o mercado financeiro e de capitais como um todo. De fato, por serem meras recomendações não estão os Estados “obrigados” a observá-las. Mas os mercados financeiro e de capitais envolvem outros agentes tão importantes quanto os emissores de valores mobiliários (empresas, securitizadoras, o próprio Estado, dentre outros), o público em geral (que compram esses valores mobiliários) e as instituições financeiras (que geralmente intermedeiam a emissão de valores mobiliários): as agências de classificação de risco (ou também conhecidas como agências de rating). As agências de classificação de risco exercem um papel relevante ao classificar, como o próprio nome sugere, ou “dar notas” não somente aos valores mobiliários colocados no mercado, mas também aos governos e instituições financeiras. Influenciam sobremaneira, ainda que não diretamente, na compra (ou não) de produtos financeiros estruturados, por meio da análise da chamada “qualidade de crédito” e “qualidade do mercado”. E quanto mais “politicamente correto”, ou seja, quanto mais se atende às regras internacionalmente reconhecidas (ou melhor, elaborada pelos países mais desenvolvidos), maior a nota. Mas também se pode perguntar: mas qual a relação dessa teoria agenteprincipal com a governança global? A governança global é um conceito em constante evolução, com relação direta à noção de democracia. Reflete sincronia no que diz respeito às transformações estruturais, na medida em que o mundo multipolarizado exige movimentos cooperativos e confiança no sistema internacional. Confiança essa que nem sempre é alcançada e que motiva ou reafirma as críticas existentes com relação à hegemonia dos países mais desenvolvidos na dinâmica das principais organizações internacionais. Tomemos como exemplo, a tentativa de, em 2010, reformar o sistema de quotas do Fundo Monetário Internacional (Quota and Governance Reform), e que acabou por não acontecer pela inércia do Congresso norte-americano. Outro exemplo envolvendo também o Fundo Monentário Internacional é que, 79 recentemente, alargou seus objetivos iniciais, especialmente com o fito de estabelecer padrões para o controle de riscos sistêmicos. Falhou: tanto na crise asiática (na década de 1990), quanto na crise subprime (2008). Por tal razão é que se propõe a criação de um Conselho Global de Governança Financeira, de natureza participativa de todos os Estados e não de apenas alguns, observando os principais princípios que regem a governança, a saber: responsabilidade, prestação de contas, transparência e equidade. 80 3 O PAPEL DO ESTADO CONTEMPORÂNEO DIANTE DA GLOBALIZAÇÃO FINANCEIRA O presente Capítulo tem como propósito analisar a evolução do Estado, segundo o nível de envolvimento deste com a sociedade, como também quanto à sua organização econômica. A valia deste Capítulo consiste em compreender a postura de um ou outro Estado no que diz respeito ao grau de intervenção no domínio econômico. Com isso, ressaltaremos que mesmo no Estado Liberal é possível vislumbrar certa intromissão na economia de mercado, intromissão essa, porém, sob a forma de autoregulação (privada). Buscar-se-á, assim, contemplar os modelos político-econômicos mais importantes, na tentativa de testar a hipótese de um Estado necessário para lidar com a insuficiência de respostas para os problemas do século XXI. Adicionalmente, dar-se-á igual enfoque à evolução do Estado brasileiro que, frente à globalização e a partir da década de 1990, passou de Estado-empresário para um Estado regulador. Antes de adentrarmos na análise das principais características desses modelos políticos-econômicos, entendemos necessário elaborar um breve intróito acerca da existência do próprio Estado. É possível aferir que o Estado, enquanto organismo político-jurídico organizado, teve origem a partir do surgimento do Estado Moderno115, fundado em teorias contratualistas que entendiam ser elementos essenciais do Estado: a soberania, a população e o território. Outrora, não se 115 Não obstante, leciona Paulo Bonavides que: “Para adentrarmos na tormentosa discussão sobre o surgimento do Estado, temos que nos debruçar sobre as três teorias que tentam explicar seu surgimento: 1) Para alguns teóricos o Estado sempre existiu, tal como a sociedade, sendo esta impensável sem a existência daquele. Observe-se que, se adotada essa concepção, teremos que o Estado e a sociedade surgiram concomitantemente, e seria inconcebível a existência de uma sociedade sem Estado; 2) A maioria dos autores adota a tese de que o Estado é fruto da sociedade, tendo esta existido muito tempo sem aquele. Decorre daí ser possível a sociedade vir a prescindir do Estado. Este surgiu em razão do conflito de interesses dentro de um grupo social, o que possibilitou ao chefe primitivo, que dispunha de prestígio no grupo e que por suas atitudes desempenhava um papel de liderança, ver-se transformado em chefe político, em caráter permanente, e com autoridade para manter a ordem interna e fixar diretrizes; e 3) Uma terceira corrente apenas visualiza o Estado caso seja dotado de certas características que despontam na transição entre o Feudalismo e o Absolutismo, o que denominam Estado Moderno. Também nessa hipótese temos que é possível a sociedade sobreexistir sem o Estado” (Bonavides, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. 6.ed. Editora Forense: Rio de Janeiro, 1980, p. 19). 81 concebia a existência do Estado propriamente dito, mas de diversas “sociedades independentes”, nos dizeres de Jean-Jacques Rousseau116: A mais antiga de todas as sociedades, e a única natural, é a da família. Ainda assim, as crianças apenas permanecem ligadas ao pai o tempo necessário que dele necessitam para a sua conservação. Assim que cesse tal necessidade, dissolve-se o laço natural. As crianças, eximidas da obediência devida ao pai, o pai isento dos cuidados devidos aos filhos, reentram todos igualmente na independência. Se continuam a permanecer unidos, já não é naturalmente, mas voluntariamente, e a própria família se mantém por convenção. Esta liberdade comum é uma consequência da natureza do homem. Sua primeira lei consiste em proteger a própria conservação, seus primeiros cuidados os devidos a si mesmo, e tão logo encontre o homem na idade da razão, sendo o único juiz dos meios apropriados à sua conservação, torna-se por si seu próprio senhor. É a família, portanto, o primeiro modelo das sociedades políticas; o chefe é a imagem do pai, o povo a imagem dos filhos, e havendo nascido todos livres e iguais, não alienam a liberdade a não ser em troca da sua utilidade. Toda a diferença consiste em que, na família, o amor do pai pelos filhos o compensa dos cuidados que estes lhe dão, ao passo que, no Estado, o prazer de comandar substitui o amor que o chefe não sente por seus povos. Vê-se uma alteração de paradigma, na medida em que houve um distanciamento da visão teleológica da política (de Jean Bodin, por exemplo, que entendia que a soberania era um poder perpétuo e tão somente limitado em função da lei divina ou do direito natural) para uma abordagem mais racionalista. Essa racionalidade se dá por meio de um consenso entre os indivíduos em organizar-se, em contraposição ao estado de natureza, que prevaleceu a “lei do mais forte”117. 116 Rousseau, Jean-Jacques. Do Contrato Social. Tradução de Rolando Roque da Silva, 1762, Livro 1, Título II. 117 Para Rousseau, “(…) porque tão logo seja a força a que faz o direito, o efeito muda com a causa; toda força que sobrepuja a primeira sucede a seu direito. Assim que se possa desobedecer impunemente, pode-se fazê-lo legitimamente, e, uma vez que o mais forte sempre tem razão, trata-se de cuidar de ser o mais forte, Ora, que é isso senão um direito que perece quando cessa a força? Se é preciso obedecer pela força, não é necessário obedecer pelo dever, e se não mais se é forçado a 82 Nem o Estado medieval, sequer o Estado absolutista, podem se enquadrar nos critérios acima apontados. O primeiro, uma sociedade baseada em relações servis; o segundo, o poder é centralizado nas mãos de um monarca, que decidia ao seu bel prazer os rumos a serem tomados sobre todo e qualquer assunto envolvendo seu domínio. O Estado de polícia a que se denominam esses Estados “tinham como escopo a concentração dos poderes nas mãos do monarca. Daí porque os poderes atribuídos ao chefe de Estado serem os mais amplos possíveis, na medida em que se buscava tão-somente o desenvolvimento do próprio Estado”118. Em ambos os casos, inexistente qualquer tipo de proteção legal no que diz respeito à atividade econômica. A atuação estatal, no Estado absolutista principalmente, se resumia em suprir as necessidades dos monarcas e se suprindo essas necessidades resultasse alguma utilidade para seus súditos, ótimo. Entretanto, é certo que o exercício do poder em seu extremo, sem limitações, causa revolta principalmente nas classes sociais (burguesia) que viam o comércio como fonte de renda para sua própria subsistência. 3.1 ESTADO LIBERAL Enquanto a Revolução Industrial deu início a um processo de rápida acumulação de capitais, por meio da evolução tecnológica, social e econômica, e em função dos novos padrões de produção, a Revolução Francesa119 também mudou o contexto socioeconômico, influenciado pelos ideais burgueses do Iluminismo e da Independência Americana, especialmente em se tratando da abolição da escravidão e da proclamação dos princípios universais da Liberté, Egalité e Fraternité. obedecer, não se é a isso mais obrigado. Vê-se, pois, que a palavra direito nada acrescenta à força; não significa aqui coisa nenhuma” (Rousseau, Jean-Jacques. Do Contrato Social. Tradução de Rolando Roque da Silva, 1762, Livro 1, Título III). 118 Casagrande Filho, Ary. Estado Regulador e Controle Judicial. Quartier Latin: São Paulo, 2007, p. 29. 119 Lembrando que a consequência mais importante da Revolução Francesa foi o advento da Declaração Universal dos Direito do Homem e do Cidadão (1948). 83 A queda da Bastilha, que historicamente inicia à Revolução Francesa em 1789, representou uma mudança nos cenários político, econômico e também jurídico. Na política, influenciado pela Teoria da Separação de Poderes de Montesquieu, do Contrato Social de Jean-Jacques Rousseau e do Segundo Tratado sobre o Governo Civil de John Locke; na economia, em função do advento da doutrina de Adam Smith (Uma Investigação sobre a Natureza e as Causas da Riqueza das Nações); e no Direito, pela promulgação de cartas constitucionais pelas nações soberanas, com vistas a garantir direitos fundamentais básicos e introduzir práticas democráticas: surge o Estado liberal. Verifica-se, pois, que o Estado liberal rompeu drasticamente com a cultura feudal e absolutista de outrora trazendo benefícios para a sociedade. Para evitar quaisquer tipos de abusos de autoridade, buscou-se ampliar o conceito de liberdade, que foi completamente tolhida dos indivíduos no Estado absolutista. Por tal razão, a liberdade (direito de primeira geração) abrangia não somente liberdade individual, mas também liberdades econômica, religiosa, política, dentre outras. Entende-se, pois, que o fundamento do liberalismo está enviesado no senso da liberdade total. Nesse sentido, o Estado liberal correspondia exatamente aos ideais que empolgaram o mundo nas épocas das revoluções inglesas, norte-americana e francesa: soberania nacional exercida através do sistema representativo de governo; regime constitucional com a soberania da lei e a limitação do poder de mando; divisão dos poderes em Legislativo, Executivo e Judiciário, com limitações recíprocas garantidoras das liberdades públicas; completa divisão entre direito público e privado; neutralidade do Estado em matéria de fé religiosa; liberdade no sentido de não ser o homem obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei; igualdade jurídica de todos os cidadãos, sem distinção de classe, raça, cor, sexo, crença, etc.; igual oportunidade de riqueza e acesso aos cargos públicos e à cultura universitária, a todos; não intervenção do govêrno na economia popular120. 120 Maluf, Sahid. Teoria Geral do Estado. 30.ed. Editora Saraiva: São Paulo, 2010, p. 57. 84 O abstenceísmo estatal é uma característica do liberalismo. A atuação estatal se resume na manutenção da ordem pública (interna e internacional) por meio do poder de polícia e a preservação de sua soberania. A famosa idéia de mercado livre de Adam Smith reinou neste período. Preconiza-se que a atividade econômica é capaz de ser regida por sua própria dinâmica ("mãos invisíveis"), entendimento estendido também aos mercados financeiro e de capitais. E por conta dessa filosofia liberal, vimos uma das mais graves crises no século XX: a Grande Depressão, a partir da quebra da Bolsa de Nova Iorque em 1929. Ainda, se prega que com a lei da oferta e da procura, por si só, isto é, livre da atuação do Estado no domínio econômico, poder-se-ia atingir o bem-estar coletivo. Que a melhor forma de aperfeiçoamento recíproco era o antagonismo, “ou seja, tencionava-se o conflito interindividual (concorrência, disputa, competição)”121. Não contavam seus defensores, no entanto, com a natureza egoísta e ambiciosa do ser humano. Não é por outro motivo que Plauto já utilizava à máxima Lupus est homo homini non homo, popularizada por Thomas Hobbes, em O Leviatã, por meio da expressão “o homem é o lobo do homem”. Assim, os benefícios experimentados pelo liberalismo foram gradualmente revelando-se prejudiciais, não pelos seus fins, mas pelos seus meios. Deu-se inicio à industrialização. Surgiu a classe média. Acumulou-se riqueza (capital), mas também houve a concentração do poder econômico nas mãos da classe dominante que não tinha capacidade de distribuir equitativamente a riqueza gerada. Cria-se, portanto, um desequilíbrio social. O trabalho humano tornou-se uma commodity. Reitere-se que neste momento o Estado é desprovido de poderes para corrigir tais imperfeições, ou seja, de adotação de uma postura negativa (de não fazer), salvo se eventual intervenção tivesse como condão a proteção e preservação da própria liberdade do mercado. A título exemplificativo, citamos a edição do Sherman Antitrust Act pelo Congresso norte-americano, em 1890, exprimindo, desde então, desgosto às práticas anticompetitivas, tal como monopólios e cartéis. 121 Feitosa, Maria Luiza Pereira de Alencar Mayer. Paradigmas Inconclusos: Os Contratos entre a Autonomia Privada, a Regulação Estatal e a Globalização dos Mercados. Editora Coimbra: 2007, p. 153. 85 Referidas práticas prejudicam a liberdade do mercado, porquanto a concorrência é um dos corolários do liberalismo. A ausência do Estado liberal para mediar às relações privadas, por assim dizer, o levou a derrocada. As consequências advindas da Grande Depressão, aliada a devastação da Europa em função das Guerras Mundiais 122, contribuíram para que novos contornos do Estado fossem repensados. Corroborando com esse entendimento, Celso Ribeiro Bastos123 leciona que: A causa mais importante – e portanto não a única – foi sem dúvida a ocorrência no século XX de crises econômicas que, provocando a recessão e o desemprego, demonstravam ser os mecanismos autoreguladores da economia insuficientes para promover harmonicamente o desenvolvimento da riqueza nacional. A presença do Estado se fazia, pois, imprescindíveis para corrigir os profundos desequilíbrios a que foram levadas as sociedades ocidentais que não disciplinavam a sua economia por meio de um planejamento centralizado, como se dava nos países comunistas. E, assim, o Estado passa a ser um agente mais ativo dentro de sua jurisdição, editando normas, protagonizando a atividade econômica e corrigindo falhas do mercado, não em seu benefício, mas com vistas à proteção dos indivíduos economicamente mais fracos. Fora de sua jurisdição, a ideia de cooperação floresce. O caos econômico mundial instaurado na década de 1930 exemplificou a desilusão quanto à autoregulação, no que diz respeito aos processos econômicos, financeiros e do mercado de capitais. Utilizando-se ainda os Estados Unidos como exemplo, em 1933, quando assumiu a presidência, Franklin Roosevelt deu início a determinadas reformas que alcunhou de New Deal. A despeito da criação das chamadas agências federais – 122 A Primeira Guerra Mundial destruiu o parque industrial europeu, que ainda não era tão relevante se compararmos com o período que antecedeu a Segunda Guerra Mundial. No entanto, em ambos os casos teve efeitos severos, no que diz repeito à capacidade produtiva (principalmente de abastecimento) e de estabilidade macro-econômica (pagamento pela guerra, processo de ajustes, incertezas políticas, dentre outros). 123 Bastos, Celso Ribeiro. Curso de Teoria do Estado e Ciência Política. Editora Saraiva: São Paulo, 1999, p. 142. 86 uma versão das agências reguladoras brasileiras – foram adotadas outras medidas tais como “mecanismos de controle de crédito, abriu um banco para financiar as exportações, fixou salários-mínimos, limitou a jornada de trabalho e ampliou o sistema de previdência social”124, objetivando a promoção, pelo Estado, do desenvolvimento econômico e social. Tal modelo acabou por influenciar a política econômica brasileira na época de Getúlio Vargas. 3.2 ESTADO SOCIAL OU WELFARE STATE Como resultado dessa mudança na sociedade, o Estado social surgiu e difundiu-se, sob as premissas keynesianas, “que acentuam a interdependência entre a política fiscal/financeira e a economia política, com vistas ao desenvolvimento social”125. Ressalte-se que o cerne principal deste modelo era melhorar as condições de vida da classe trabalhadora e erradicar a pobreza gerada pelo liberalismo por meio de intervenções estatais e elaboração de políticas públicas. Ou seja, inicialmente, buscou-se equilibrar as adversidades nas relações entre o poder e o capital humano. A ideia, portanto, repousava-se em afastar a predominância do individualismo liberal. Pois, nos dizeres de Karl Marx e Friedrich Engels 126, “para que uma classe possa ser oprimida, é necessário garantir-lhe as condições que lhe permitam, pelo menos, sobreviver em sua existência servil”. E tal garantia se daria na forma de prestações positivas que reconhecessem os interesses dos proletariados, entendidos por eles como “a classe dos modernos trabalhadores 124 Feitosa, Maria Luiza Pereira de Alencar Mayer. Paradigmas Inconclusos: Os Contratos entre a Autonomia Privada, a Regulação Estatal e a Globalização dos Mercados. Editora Coimbra: 2007, p. 186. 125 Feitosa, Maria Luiza Pereira de Alencar Mayer. Paradigmas Inconclusos: Os Contratos entre a Autonomia Privada, a Regulação Estatal e a Globalização dos Mercados. Editora Coimbra: 2007, 156. 126 Marx, Karl; Engels, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. 1.ed. Revisão por Miguel Cavalcanti Yoshida, Geraldo Martins de Azevedo Filho e Ricardo Nascimento Barreiros. Editora Expressão Popular, 2002, p. 28. 87 assalariados que, não possuindo meios de produção, dependem da venda de sua força de trabalho para sobreviver”127. Enfatizem-se, nesse sentido, os direitos sociais (direitos de segunda geração), sem que isso, entretanto, significasse a extirpação do mercado em si. Isso pode ser observado no Manifesto do Partido Comunista que afirmou que: Durante sua dominação, que ainda não completou um século, a burguesia desenvolveu forças produtivas mais maciças e colossais que todas as gerações anteriores. Dominação das forças da natureza, maquinaria, aplicação da química na indústria e na agricultura, navegação a vapor, estradas de ferro, telégrafo elétrico, desbravamento de regiões inteiras, adaptação dos leitos dos rios para a navegação, fixação de populações vindas não se sabe bem de onde – que séculos anteriores poderiam imaginar quanta força produtiva se escondia no seio do trabalho social?128. O Estado social, portanto, tem seu fundamento em um estado de bemestar (welfare state), na qual a coordenação da economia não deve mais estar nas mãos do mercado. Deve ser equilibrada com a intervenção máxima do Estado. A um, porquanto agora responsável pela distribuição de riquezas e por prover aos mais necessitados (suposta efetivação do princípio da igualdade da Revolução Francesa), inclusive por meio de benefícios sociais e assistência social. A dois, porque o Estado era o representante democrático da vontade coletiva. Deu-se início, nesse modelo, a “processos de nacionalização de empresas privadas expandindo consideravelmente o setor público empresarial, consolidando a figura do Estado gestor direto da economia”129, fenômeno este também denominado de estatização, na qual “alguns setores econômicos deveriam 127 Marx, Karl; Engels, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. 1.ed. Revisão por Miguel Cavalcanti Yoshida, Geraldo Martins de Azevedo Filho e Ricardo Nascimento Barreiros. Editora Expressão Popular, 2002, p. 64, nota de rodapé 1. 128 Marx, Karl; Engels, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. 1.ed. Revisão por Miguel Cavalcanti Yoshida, Geraldo Martins de Azevedo Filho e Ricardo Nascimento Barreiros. Editora Expressão Popular, 2002, p. 16. 129 Feitosa, Maria Luiza Pereira de Alencar Mayer. Paradigmas Inconclusos: Os Contratos entre a Autonomia Privada, a Regulação Estatal e a Globalização dos Mercados. Editora Coimbra: 2007, p. 156. 88 ser retirados do mercado, não só por causa das deficiências dos mercados, mas porque indústrias fundamentais para o interesse nacional não deveriam ficar em maõs privadas”130. Em linhas gerais, Asa Briggs131 leciona que: A welfare state is a state in which organized power is deliberately used (through politics and administration) in an effort to modify the play of market forces in at least three directions – first, by guaranteeing individuals and families a minimum income irrespective of the market value of their work and their property; second, by narrowing the extent of insecurity by enabling individuals and families to meet certain ‘social contingencies’ (for example, sickness, old age or unemployment) which lead otherwise to individuals and families crises; and third, by ensuring that all citizens without distinction of status or class are offered the best standards available in relation to a certain agreed range of social services. The first and the second of these objectives may be accomplished, in part at least, by what used to be called a ‘social service state’, a state in which communal resources are employed to abate poverty and to assist those in distress. It brings in the idea of the ‘optimum’ rather than the older idea of the ‘minimum’. It is concerned not merely with abatement of class differences or the needs of scheduled groups but with equality of treatment and the aspirations of citizens and voters with equal shares of electoral power. 130 Giddens, Anthony. A Terceira Via: Reflexões sobre o Impasse Político Atual e o Futuro da Social Democracia. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. Record: Rio de Janeiro, 1999, p. 20. 131 Tradução livre da autora: “O welfare state é um Estado no qual se usa deliberadamente o poder organizado (por meio da política e da administração) em um esforço para modificar o jogo das forças do mercado em no mínimo três direções: primeiro, garantindo aos indivíduos e às famílias uma renda mínima, independentemente do valor de mercado de seu trabalho ou de sua propriedade; segundo, reduzindo a exposição à insegurança, colocando os indivíduos e famílias em condições de enfrentar certas contingências sociais (por exemplo, doença, velhice ou desemprego) que, de outro modo, levariam a crises do indivíduo ou de sua família; e terceiro, assegurando que a todos os cidadãos, sem distinção de status ou classe, sejam oferecidos os mais altos padrões de um conjunto reconhecido de serviços sociais. O primeiro e o segundo desses objetivos podem ser realizados, pelo menos em parte, com o que costuma ser chamado de um "estado de serviço social", um estado em que são empregados os recursos comuns para diminuir a pobreza e ajudar as pessoas em dificuldades. Ele traz a idéia de 'melhor' do que a antiga idéia do ‘mínimo’. Ele está preocupado não apenas com a redução das diferenças de classe ou as necessidades de determinados grupos, mas com igualdade de tratamento e às aspirações dos cidadãos e eleitores com igualdade de poder eleitoral” (Briggs, Asa. The Welfare State in Historical Perspective. In: Pierson, C.; Castles, F. (Org.). The Welfare State Reader. 2. ed. Cambridge: Polity Press, 2006, p. 16). 89 No entanto, tais mudanças só se efetivaram após a Primeira Guerra Mundial, com a Constituição de Weimar de 1919 (Weimarer Verfassung), inspirada na Constituição Mexicana de 1917, garantindo um novo movimento constitucionalista que consagrou, não apenas os direitos de primeira geração (em especial, à livre iniciativa e a propriedade privada), mas também os direitos de segunda geração, a fim de viabilizar aos cidadãos a concretização do princípio da dignidade humana, ignorado pelo capitalismo liberal. Nos Estados Unidos, refrise-se, as premissas do Estado social foram implementadas por Franklin Roosevelt por meio do New Deal, trazendo para si maiores responsabilidades sociais. Como parte do New Deal, também foi promulgado o National Industrial Recovery Act (1933) que, dentre outros aspectos, permitiu não só o estabelecimento de sindicatos, mas também a regulação de padrões de trabalho. Nesse mesmo período, o Reino Unido “impôs controles rigorosos sobre transações cambiais – não apenas em conta capital, mas também em transações correntes. Sob o governo trabalhista de Harold Wilson, a certa altura, ninguém podia sair do país com mais de £50, mesmo para férias no exterior”132. Notadamente no Brasil, a Era Vargas marcou o início da industrialização, marcadamente protecionista. Amado Luiz Cervo e Clodoaldo Bueno133 prescrevem que “a estrutura internacional deteriorava-se nas áreas política e econômica, com a rebipolarização e o protecionismo, a instabilidade cambial e a ‘oligarquização dos foros decisórios’”, o que afetou diretamente a política econômica brasileira. A pressão quanto à industrialização brasileira na Era Vargas teve como pano de fundo o reaparelhamento das forças armadas. A crise do petróleo de 1929, bem como a Revolução brasileira de 1930, no entanto, ajudou o desenvolvimento de outros setores da indústria, na medida em que as dificuldades para importação de bens de consumo, diante de um cenário de crise e recessão mundiais, favoreceram 132 Wolf, Martin. A Reconstrução do Sistema Financeiro Global. Tradução de Afonso Celso da Cunha Serra. Elsevier: Rio de Janeiro, 2009, prefácio. 133 Cervo, Amado Luiz; Bueno, Clodoaldo. História da Política Exterior do Brasil. 3.ed. Editora UnB: Brasília, 2010, p. 428. 90 o melhor desenvolvimento da produção interna134. Assim, a ordem do dia era dar enfoque à indústria nacional; portanto, não podíamos inferir sobre a existência de abertura de mercado à competitividade internacional. O governo de Juscelino Kubitschek, na década de 1950, deu continuidade ao processo de industrialização por meio da edição do Plano Nacional de Metas, contendo 30 (trinta) objetivos135 com o intuito de desenvolver diversas indústrias nacionais. Ao contrário do que ocorreu na Era Vargas, o pano de fundo do Plano Nacional de Metas consistia em diminuir a desigualdade social gerando riquezas internas e, conseqüentemente, fortalecendo a economia nacional, sob as bases lançadas pela escola cepalina136. O precursor dessa escola foi Raúl Prebisch quando publicou um estudo intitulado de O Desenvolvimento Econômico da América Latina e Alguns de seus Principais Problemas (1949), trazendo a teoria desenvolvimentista para o contexto dos países periféricos, reconhecendo a existência de desigualdades estruturais entre os países mais desenvolvidos e os menos desenvolvidos. Diante desse contexto, tornou-se uma escola de pensamento latino-americano tendo: (i) a planificação como melhor maneira de neutralizar não somente crises econômicas como instabilidades decorrentes das leis de mercado e (ii) buscado soluções visando superar o atraso dos países menos desenvolvidos via industrialização e investimento em infraestrutura. 134 Foi neste momento que as maiores empresas siderúrgicas (Companhia Siderúrgica Nacional), mineradoras (Vale do Rio Doce, atualmente apenas Vale), petrolíferas (Petrobras) e hidrelétricas (Afonso Pena) foram criadas, bem como houve a expansão de ferrovias e rodovias em função de questões de logística e infraestrutura. 135 O trigésimo primeiro objetivo era a construção de Brasília e a transferência da capital federal. 136 A Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe é um órgão regional da Organização das Nações Unidas, com o objetivo de promoção de políticas públicas para desenvolvimento dos países latino-americanos e caribenho, a partir da identificação de características estruturais que os distinguem de outras regiões. Por isso, o pensamento dessa escola também é chamado de corrente estruturalista. Referida Comissão iniciou suas atividades no Brasil em função de um acordo, em 1952, com o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, sob a liderança de Celso Furtado. Para maiores informações, disponível em: <http://www.onu.org.br/onu-no-brasil/cepal/>. Acesso em 12 de junho de 2014. 91 Nesse sentido, esclarece Ricardo Bielschowsky137 que “a teorização cepalina iria cumprir esse papel na América Latina. Seria a versão regional da nova disciplina que se instalava com vigor no mundo acadêmico anglo-saxão na esteira ‘ideológica’ da hegemonia heterodoxa keynesiana, ou seja, a versão regional da teoria do desenvolvimento”. Paulatinamente, foi-se abrindo as fronteiras nacionais, permitindo, em especial, o investimento estrangeiro. Por outro lado, foi um período de bastante intervenção, haja vista a necessidade de regular a entrada desse capital. É cediço também o início do histórico endividamento externo brasileiro e um ambiente interno extremamente inflacionário, culminando em crises econômicas sem precedentes decorrentes, principalmente, da segunda crise do petróleo (1979). Nesse sentido: Após os choques do petróleo, o serviço da dívida cresceu ainda mais porque os juros aumentaram, e como a alta do petróleo reduziu a disponibilidade de saldos comerciais, os países endividados tiveram que recorrer a novos empréstimos, dando início ao processo de endividamento por bola-de-neve138. Fato é que o problema com o pensamento do Estado social, que culminou com a sua queda, no Brasil e no mundo, foi que as liberdades pessoais e econômicas não eram suas maiores preocupações. A luta de classes era a bandeira defendida. Em sede constitucional, não era suficiente apenas a garantia formal de direitos sociais; era preciso meios eficazes para que tais direitos pudessem ser colocados em prática. É sábido que no Brasil logo foi instaurada a ditadura militar que basicamente dissolveu o Congresso Nacional e retirou dos cidadãos os direitos conquistados. Adicionalmente, o Estado social não foi capaz de proporcionar os investimentos necessários para um efetivo desenvolvimento, porquanto dependia essencialmente de receitas tributárias ou outras receitas fiscais, que nem sempre 137 Bielschowsky, Ricardo. Cinquenta Anos de Pensamento na CEPAL – Uma Resenha. In: Ricardo Bielschowsky (Org.). Cinquenta Anos de Pensamento na CEPAL. Tradução de Vera Ribeiro. Record: Rio de Janeiro: 2000, p. 24. 138 Kucinski, Bernardo; Brandford, Sue. A Ditadura da Dívida: Causas e Consequências da Dívida Latino-Americana. Brasiliense: São Paulo, 1987, p. 124. 92 eram suficientes. Mesmo no período ditatorial, permitiu-se a emissão de títulos públicos com o objetivo de financiar os gastos públicos, mas a instabilidade inflacionária era um risco que os investidores não queriam correr. E faz sentido, uma vez que o aumento nos gastos do governo é o caminho oposto para o controle da inflação. Esses fatores em conjunto culminaram no que Paulo Bonavides 139 denominou de “terceira crise do Estado constitucional” (ou “crise da inconstitucionalidade”) ou no que Maria Luiza Pereira de Alencar Mayer Feitosa 140 denominou de “crise de governabilidade”. Por tal razão, o pensamento clássico do liberalismo ressurgiu agora alcunhado de neoliberalismo, porquanto dotado de características diferenciadas. Buscava-se uma postura intermediária entre o Estado liberal e o Estado social, ou seja, uma gradativa redução da intervenção do Estado, desde que possível preservar os direitos sociais outrora conquistados. 3.3. O NEOLIBERALISMO E O ESTADO MÍNIMO A crise econômica enfrentada pelo Brasil durante a década de 1980 impôs a necessidade de reorientação de suas políticas internas, sob pena de exclusão como integrante do comércio internacional (reforçamos, pois, o quanto dito acerca das medidas impostas especialmente pelo Fundo Monetário Internacional no Capítulo 2). A liberação da economia e a implementação das teorias de livre comércio eram necessárias para, no entendimento de certas organizações internacionais, alcançar um desenvolvimento econômico saudável, uma melhoria na qualidade de vida e uma alocação eficiente dos fatores de produção. Em verdade, somente a partir de 1990, o Brasil assume um modelo neoliberal, no plano internacional, como forma de mudança de paradigma em face 139 Bonavides, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 5.ed. Malheiros Editores: São Paulo, 1994, p. 353. 140 Feitosa, Maria Luiza Pereira de Alencar Mayer. Paradigmas Inconclusos: Os Contratos entre a Autonomia Privada, a Regulação Estatal e a Globalização dos Mercados. Editora Coimbra: 2007, p. 159. 93 da década de 1980, marcada pela estagnação econômica. Inclusive, diz-se que a década de 1980 é considerada uma “década perdida”. Leciona Fernanda Steiner Perin141 que somente a partir de 1990 que: o Brasil deixou de contar com leis protecionistas e adotou a abertura comercial regida pela Organização Mundial do Comércio (OMC). A empresa brasileira passou a sofrer as conseqüências da concorrência mundial dentro do mercado nacional. A então frágil economia brasileira do início dos anos 1990 alimentou a concorrência estrangeira dentro de casa. O crescimento do fluxo de IED no Brasil foi de 83,7% em 2007, o maior já observado, em 2008 o fluxo cresceu 30%. A estratégia passou a ser a internacionalização com o objetivo de se ter uma visão de longo prazo. No âmbito interno foi promulgada a Lei n° 8.031/1990142, que dispunha sobre o Programa Nacional de Desestatização, sob a responsabilidade do então presidente Fernando Collor de Mello. Ato contínuo, referido Presidente, objetivando controlar a economia brasileira, adotou 02 (dois) planos de estabilização: (i) o Plano Collor I (1990) e (ii) o Plano Collor II (1991). Tais planos, ao final, revelaram-se prejudiciais à atividade econômica, resultado das políticas fiscais e monetárias adotadas. Sob o ponto de vista do comércio internacional, a política brasileira pós1990 estava focada em estratégias bilaterais e multilaterais de inserção internacional. Sob o ponto de vista da política fiscal, medidas foram tomadas no sentido de diminuir as barreiras não tarifárias e a redução de alíquotas de importação. Em 1995, foram realizadas diversas reformas constitucionais (principalmente as de n° 05, 06, 07, 08 e 09), a fim de permitir privatizações em setores da economia cujo monopólio era do Estado. Infraconstitucionalmente, foram 141 Perin, Fernanda Steiner. Processo de Internacionalização de Empresas Brasileiras: Um Estudo Sobre o Investimento Direto Externo, 2001-2008. Florianópolis, 2010. 117f. Monografia (Bacharel em Ciências Econômicas) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2010, p. 16. 142 Posteriormente revogada pela Lei n° 9.491/1997, que alterou os procedimentos relativos ao referido Programa. 94 regulamentados institutos constitucionalmente previstos, tais como a concessão, permissão e autorização de serviços públicos (artigo 175 da Constituição Federal de 1988), o uso de bem público e as parcerias público-privadas. Assevera José Virgílio Lopes Enei143 que tais medidas eram necessárias, porque (...) embora o Estado possa contar em tese com o regime da licitação de obra pública para, suprindo a falta de interesse da iniciativa privada, contratar a construção de obras prioritárias para depois explorá-las diretamente segundo suas políticas públicas, o fato é que o Estado não dispõe de recursos orçamentários para assumir tais compromissos no curto prazo. Convém lembrar que, à luz da Lei de Responsabilidade Fiscal, o Estado já não pode assumir endividamentos acima de certos limites para aumentar suas disponibilidades de curto prazo. Em 1994, a adoção do Plano Real proporcionou estabilidade dos preços, ou seja, um controle da inflação. Ao mesmo tempo, intensificou a abertura dos mercados, com a valorização do câmbio e o aumento da demanda por produtos nacionais. Diante desse cenário, a partir de 1995, a política governamental do então presidente Fernando Henrique Cardoso prestigiou ainda mais a privatização de empresas estatais, especialmente nos setores petrolíferos, de energia elétrica e de telecomunicações. Partiu-se do pressuposto de que tais privatizações acarretariam em um aumento dos investimentos estrangeiros em determinados setores econômicos e melhoria na prestação de serviços aos consumidores. Os governos seguintes, em especial de Luis Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, seguiram a mesma linha. Na infraestrutura, por exemplo, permitiu-se a outorga de concessões portuárias para exploração de terminais privados. Da mesma forma, as parcerias público-privadas de rodovias e privatização de aeroportos (muito embora ainda haja participação estatal, mas não mais como acionista controlador). Viu-se nesse período, como consequência, a entrada de capital estrangeiro; porém, sob a forma de investimentos, na qual “a participação do capital estrangeiro foi 143 Enei, José Virgílio Lopes. Project Finance – Financiamento com Foco em Empreendimentos (Parcerias Público-Privadas, Leveraged Buy-Outs e Outras Figuras Afins). Editora Saraiva: São Paulo, 2007, p. 405. 95 bastante significativo no período 1995-2002, atingindo 53% do total arrecadado com todas as desestatizações realizadas no Brasil” 144. Contudo, a captação de recursos via mercado de capitais era incipiente, senão inexistente145. Argumenta Antônio Corrêa Lacerda146 que: Na fase anterior à vigência do Plano Real, quer o risco de hiperinflação, quanto às políticas econômicas adotadas e a incerteza do ambiente econômico, significavam sempre uma contraposição ao crescimento sustentado. (...) No início da década, as políticas de estabilização adotadas levaram o País a uma recessão, somente superada anos mais tarde, em 1993 e 1994, já na fase preparatória e início do Plano Real. (...) Na fase pós-Real, a inflação caiu, o ambiente econômico adquiriu maior previsibilidade, mas a equação básica do crescimento não foi solucionada. Como a capacidade instalada não cresce tanto quanto deveria, qualquer movimento de crescimento de consumo é abortado através de medidas de restrição de crédito, elevação dos juros e aumento dos compulsórios, de forma que o crescimento se torna um subproduto, e não o objetivo principal da política econômica. O Estado neoliberal enseja facilitar a competitividade econômica. Tanto é assim que, pelo menos, até 2003147, o governo brasileiro incentivou a expansão de empresas brasileiras. Essa expansão viabilizaria sua competitividade no mercado internacional de bens, serviços e capitais, com apoio logístico do Estado, como 144 Informações disponíveis em: <http://www.bndes.gov.br/SiteBNDES/export/sites/default/bndes_pt/Galerias/Arquivos/conhecimento/e special/Priv_Gov.PDF>. Acesso em 14 de janeiro de 2014. 145 Entre 1995 e 2003, por exemplo, houve apenas 06 (seis) ofertas públicas iniciais de empresas brasileiras, segundo a Bolsa de Valores, Mercadorias e Futuros de São Paulo. Disponível em: <http://www.valor.com.br/sites/default/files/bmfbovespa_2_0.pdf>. Acesso em 14 de junho de 2014. 146 Lacerda, Antônio Corrêa. O Impacto da Globalização na Economia Brasileira. 4.ed. São Paulo: Editora Contexto, 1994, p. 114. 147 Em sentido contrário às políticas de governo do Fernando Henrique Cardoso, os governos de Luis Inácio Lula da Silva (2003 a 2010) e Dilma Rousseff (2011 até o presente momento) criaram cerca de 10 (dez) empresas estatais, além de aumentar a quantidade de Ministérios sob o comando do chefe do Poder Executivo. A consequência dessas medidas: (i) aumento nas contas públicas; (ii) menos espaço para investidores particulares (nacionais ou estrangeiros) e (iii) retrocesso ao modelo de Estado que já se provou irrealizável. 96 também por meio de financiamento de instituições financeiras nacionais, tais como o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social148. Percebe-se, pois, as relevantes diferenças entre o liberalismo clássico e o neoliberalismo, como também entre este e o papel do Estado no auge do Estado social. Doutrina trazida pela primeira-ministra da Inglaterra e pelo presidente dos Estados Unidos (consubstanciada no Consenso de Washington), respectivamente, Margareth Thatcher e Ronald Reagan, o neoliberalismo pregava: (i) programas de desestatização; (ii) descentralizações de poder; (iii) centralização de programas sociais focados apenas aos grupos mais carentes da população; (iv) parcerias entre o Estado e investidores/empreendedores privados; e (v) desregulamentação (comercial e financeira). Não é outro o entendimento de Maria Luiza Pereira de Alencar Mayer Feitosa149 que leciona que: Esse Estado híbrido que resultou das reformas e se encontra em processo de adaptação às novas realidades deve ser aquele que procura conviver com a iniciativa privada, estimulando-a e subsidiando-a, sem, entretanto, descurar-se de impor certas limitações sobre os poderes econômicos privados, da regulação das atividades econômicas e sociais e da tutela dos menos favorecidos. O que se verifica com o neoliberalismo é uma espécie de reforma do Estado social, em decorrência de uma crise de paradigma que mais não comportava, no plano jurídico-político, a sobrecarga de atribuições, inclusive constitucionais, ao próprio Estado. Já não era possível conceber que as 148 As empresas brasileiras com sede e administração no Brasil, de controle nacional e com potencial de inserção no mercado internacional contam com o incentivo do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, por meio de apoio a investimentos ou projetos a serem realizados no exterior, desde que contribuam para o desenvolvimento econômico e social do Brasil. Para tanto, os empreendimentos apoiados serão aqueles em que os investimentos das empresas brasileiras estejam relacionados à construção de novas unidades, aquisição, ampliação ou modernização de unidades instaladas e participação societária, bem como necessidades de capital de giro, desde que associadas a esses investimentos. 149 Feitosa, Maria Luiza Pereira de Alencar Mayer. Paradigmas Inconclusos: Os Contratos entre a Autonomia Privada, a Regulação Estatal e a Globalização dos Mercados. Editora Coimbra: 2007, p. 111. 97 necessidades individuais fossem sacrificadas em detrimento do Estado. Ou seja, os indivíduos não podiam subsistir para financiar o aparelhamento estatal que não era – e continua não sendo – capaz de prover retornos eficientes. O Estado neoliberal permitiu uma nova perspectiva acerca do papel do Estado diante da sociedade e do mercado. O próprio prefixo “neo” já denota que não há que se falar em um retorno do liberalismo clássico. Aqui, há que se falar em transformações estruturais, leia-se, uma reforma nas estruturas de gestão do Estado. Isso porque, Margareth Thatcher defendia a liberdade para inovar ao invés de um planejamento econômico central e burocrático. Por tal razão, seria mais adequado tratar o Estado como uma espécie de regulador do mercado, com vistas a prevenir falhas e deficiências, sob pena de não se compreender as propostas e inovações trazidas pelo thatcherismo. Vale lembrar que a premissa do Estado liberal baseava-se na “mão invisível” do mercado, e a única intervenção possível eram dos próprios agentes do mercado. Ao Estado, cabiam algumas funções residuais, como, por exemplo, dar andamento a projetos ou obras públicas que não eram de interesse dos particulares, preservar a columidade do próprio mercado, a defesa interna. Por outro lado, o Estado social se viu cada vez mais enfraquecido pelo fracasso do modelo da exUnião Soviética, assumindo o total controle das atividades econômicas e, assim, tornando-se responsável pela distribuição da riqueza produzida internamente entre os cidadãos. O Estado neoliberal busca equilibrar os interesses do mercado com os interesses sociais. Substitui-se a economia de mercado a uma economia social de mercado. E tais objetivos acabaram por ser incorporados nas constituições contemporâneas, inclusive na Constituição Federal de 1988150. O Estado mínimo 150 Tal entendimento é corroborado a partir das lições de Daniel Sarmento que leciona que: “Com efeito, nossa Constituição, que consagra um modelo de Estado do Bem-Estar Social, fortemente intervencionista, foi pega no contrapé pela onda neoliberal que varreu o mundo na fase final do séc. XX. Assim, a partir de 1995, o governo federal, (...) iniciou um ciclo de reformas na ordem envolvendo a extirpação de certas restrições existentes ao capital estrangeiro (EC n. 6 e 7) e a flexibilização de monopólios estatais sobre o gás canalizado, as telecomunicações e o petróleo (EC n. 5, 8 e 9)” (Sarmento, Daniel. Os Direitos Fundamentais nos Paradigmas Liberal, Social e Pós-Social – (Pós- 98 que defende o neoliberalismo, ao nosso entendimento, tem importante correlação ao New Deal norte-americano nos seguintes termos: instituíram as técnicas do neoliberalismo de regulamentação, e as reformas constitucionais e políticas pós-Consenso de Washington, as do neoliberalismo de regulação. O primeiro neoliberalismo exigiu um Estado Social, cuja atuação no domínio econômico se dava diretamente (via empresa pública, sociedade de economia mista e fundações) e indiretamente (mediante rígidas normatizações), tudo em nome do desenvolvimento ou do crescimento. O segundo se realiza no Estado Democrático de Direito, e as intervenções diretas passam a ser minimizadas e priorizam-se a intervenção indireta (normas) e a intermediária (eis que aparecem no cenário jurídico as Agências Reguladoras)151. E a partir desse momento, ou seja, com a reforma da máquina administrativa estatal surge o conceito de Estado mínimo, cujo funcionamento passa, necessariamente, por medidas de delegação legislativa para as denominadas agências reguladoras independentes152. Entretanto, a esse respeito, surge uma questão acerca da legitimidade democrática, que afronta (ou não) a teoria da tripartição de poderes, em função de um deslocamento da atividade típica desenvolvida pelo Poder Legislativo a autarquias ligadas a algum ministério da Administração Pública federal, assunto esse que voltaremos a tratar no Capítulo 4. Não se olvida, no entanto, sua característica paraestatal eivada de certo tecnicismo. Modernidade Constitucional?. In: Sampaio, José Adércio Leite (coord.). Crises e Desafios da Constituição. Del Rey: Belo Horizonte: 2004, p. 401). 151 Clark, Giovani; Nascimento, Samuel Pontes do; Corrêa, Leonardo Alves. Estado Regulador: Uma (Re)Definição do Modelo Brasileiro de Políticas Públicas Econômicas. Disponível em: <http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/salvador/giovani_clark-1.pdf>. Acesso em 15 de junho de 2014. 152 Até o fechamento desta dissertação, o Estado brasileiro possui as seguintes agências regulatórias criadas ao longo do tempo e com o objetivo de regular setores da economia: (i) Agência Nacional de Águas; (ii) Agência Nacional de Aviação Civil; (iii) Agência Nacional de Telecomunicações; (iv) Agência Nacional do Cinema; (v) Agência Nacional de Energia Elétrica; (vi) Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis; (vii) Agência Nacional de Saúde Suplementar; (viii) Agência Nacional de Transportes Aquários; (ix) Agência Nacional de Transportes Terrestres; (x) Agência Nacional de Vigilância Sanitária; (xi) Agência Nacional de Mineração; (xii) Agência Espacial Brasileira; (xii) Comissão Nacional de Energia Nuclear; (xiii) Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis; e (xiv) Comissão de Valores Mobiliários. 99 3.4 ESTADO DEMOCRÁTICO E SOCIAL DE DIREITO O Estado de Direito é uma concepção advinda de uma construção constitucional153, fruto do Estado moderno. Antonio Carlos de Almeida Diniz154, olhando em restrospectiva o cenário europeu leciona que: (...) o século XIX é considerado o século da hegemonia da lei e do “Estado de Direito” (Rechtstaat, em alemão). A fórmula “Estado de Direito” é usualmente empregada para designar um “Estado sob o império do Direito”, no que diferencia de outras formas de Estado, como o Machtstaat, “Estado sob regime de força”, o Estado absolutista típico do século XVIII, e do Polizeistaat, “Estado sob o regime de polícia”, designativo do Estado do Despotismo esclarecido característico do século XVIII. O Estado de Direito, em seus primórdios, remonta à ideia de Estado liberal, porquanto apenas declarava e garantia os direitos individuais. Ademais, o Estado de Direito traz consigo a premissa de que as decisões do Estado serão supervisionadas de acordo com o espírito das leis. A essência do Direito natural passa a ser juridicamente positivada. Quer-se dizer com isso que impensável a existência de outro direito a não ser aquele posto, previsto nos textos constitucionais, ainda que possua raízes jusnaturalistas. Muito embora não seja o foco da presente dissertação, a esse desiderato, importa mencionar a “teoria pura do direito”, elaborada por Hans Kelsen, que foi a base do positivismo jurídico do século XIX, mas que parece estar perdendo força em função do surgimento do Estado Democrático de Direito. 153 A esse respeito, Vladmir Oliveira da Silveira leciona que “o constitucionalismo foi um movimento político que, inspirado no racionalismo da doutrina liberal pós-renascimento, tinha como objetivos principais a organização do Estado e a limitação do poder estatal, por intermédio da fixação de direitos e garantias fundamentais e, de certa forma, deu contornos teóricos e práticos para a formação do Estado Liberal” (Silveira, Vladmir Oliveira da. O Poder Reformador na Constituição Brasileira de 1988 e os Limites Jurídicos às Reformas Constitucionais. RCS: São Paulo, 2009, p. 9). 154 Diniz, Antonio Carlos de Almeida. Teoria da Legitimidade do Direito e do Estado: Uma Abordagem Moderna e Pós-Moderna. Landy Editora: São Paulo: 2006, p. 95. 100 Desde logo, Hans Kelsen155 afirma que “a Teoria Pura do Direito é uma teoria do Direito positivo – do Direito positivo em geral, não de uma ordem específica”, querendo dizer com isso que a sua teoria não busca fornecer uma exegese de normas jurídicas particulares. Ainda, continua o autor que a teoria é pura na medida em que “exclui deste conhecimento tudo quanto não pertença ao seu objeto, tudo quanto não se possa, rigorosamente, determinar como Direto”. Diferencia, pois, o “ser” do “dever-ser”. Em suma, teoriza Hans Kelsen que a ordem jurídica tem validade em uma norma superior, que também está vinculada a outra norma superior, até que esta norma superior encontre sua limitação em uma norma pressuposta, ou seja, a Constituição (Grundnorm). O fundamento de validade das normas, para ele, consistiria na adequação destas com os procedimentos formais de sua criação ou, até mesmo, que não seja conflitante com a norma hierárquia superior que a criou. Observadas essas premissas a norma jurídica produz efeitos no ordenamento jurídico (é, pois, dotada de eficácia). É de se verificar o enquadramento das normas jurídicas sob um aspecto estritamente formal, isto é, desprovido de conteúdo valorativo. Neste mister, Admitindo-se, com Kelsen, que apenas são legítimas as modificações da Constituição vigente, ou sua substituição por uma nova Carta Magna, operadas consoante regras e procedimentos nela previstos, quaisquer alterações constitucionais sobrevindas por força de revolução, a reboque de procedimentos imprevistos na ordem normativa existente, são tidas por ilegítimas156. Ilegítimo também seria o modelo de Estado Democrático de Direito brasileiro, por exemplo, com um viés social (muito embora não explícito 157), fruto de 155 Kelsen, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução de João Batista Machado. Martins Fontes: São Paulo: 1999, p. 1. 156 Diniz, Antonio Carlos de Almeida. Teoria da Legitimidade do Direito e do Estado: Uma Abordagem Moderna e Pós-Moderna. Landy Editora: São Paulo: 2006, p. 139. 157 Apenas para diferenciar, no entanto, da Constituição espanhola, por exemplo, que é explícita, em seu artigo 1°, item 1 que dispõe que “España se constituye en un Estado social y democrático de Derecho, que propugna como valores superiores de su ordenamiento jurídico la libertad, la justicia, la igualdad y el pluralismo político” (Tradução livre da autora: “A Espanha se constitui em um Estado social e democrático de Direito, que propugna como valores superiores de sua ordenamento jurídico a liberdade, a justiça, a igualdade e o pluralismo político”). 101 um resgate das bases democráticas usurpadas do povo brasileiro pela dituratura militar instalada. Ainda, não se pode dissociar a ideia de democracia sem a realização de valores, tais como a liberdade, a igualdade, a justiça social, a dignidade da pessoa humana, dentre outros; valores esses não admitidos pela teoria pura do Direito. Porém, tanto o preâmbulo quanto o artigo 1° da Constituição Federal de 1988 não nos permite chegar à outra conclusão. Sobre o Estado Democrático e Social de Direito é de se observar que não há que se falar em volta do Welfare State, como bem alerta Paulo Bonavides158. A Alemanha nazista, a Itália fascista ou até o mesmo o Brasil até a Revolução de 1930 foram considerados “Estados sociais” e conclui que “o Estado social compadece com regimes políticos antagônicos, como sejam a democracia, o fascismo e o nacional-socialismo”. Entretanto, o Estado social, a partir do momento em que se adiciona a qualificação como “democrático”, por meio do qual “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição” (artigo 1°, parágrafo único da Constituição Federal de 1988), diferencia-se dos Estados acima comentados. Em verdade, o Estado de Direito, ou seja, aquele sob o domínio da lei, e em especial o Estado Democrático de Direito, após a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, passou por diversas transformações dinamogênicas, nas lições de Vladmir Oliveira da Silveira e Maria Mendez Rocasolano159, “em virtude de novas necessidades e reclamos sociais, até chegar a seu estágio atual de Estado Democrático e Social de Direito”. Nesta esteira dinamogênica dos direitos fundamentais, portanto, o Estado Democrático e Social de Direito acaba por contemplar também os direitos chamados de terceira dimensão, compreendendo, principalmente os direitos coletivos e difusos, consubstanciados ao respeito do meio ambiente, a busca do direito à paz, a realização do direito ao desenvolvimento, dentre outros. Diante desta perspectiva, 158 Bonavides, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. 6.ed. Editora Forense: Rio de Janeiro, 1980, pp. 205-206. 159 Silveira, Vladmir Oliveira da; Rocasolano, Maria Mendez. Direitos Humanos: Conceitos, Significados e Funções. Editora Saraiva: São Paulo, 2010, p. 78. 102 pugna-se por uma maior participação e interação popular, reafirmando a possibilidade do exercício da cidadania de forma plena160. Devido à globalização e consequente interdependência dos Estados, os problemas internos de outrora devem ser analisados sob o enfoque da fraternidade (ou solidariedade). Isso porque – em termos econômicos, monetários, financeiros e ambientais – as medidas adotadas por determinado Estado tem efeitos globais e os Estados devem ter para si certo tipo de consciência social, com vistas a um desenvolvimento sustentável. É por isso que Jónatas E. M. Machado161 entende que “a regulação das relações económicas internacionais, nos seus aspectos financeiros e comerciais, levanta algumas questões cruciais no plano da chamada governança global. É esse o sentido do direito internacional da regulação”. Todavia, a governança deve ser analisada não somente no âmbito internacional, mas também internamente. Informamos anteriormente que a governança reflete a forma como o governo exerce o poder dentro de sua jurisdição. E, para tanto, imprescindível sua atuação com vistas ao pleno funcionamento da iniciativa privada e do mercado financeiro, regulando-os apenas em hipóteses de distorções, e não com medidas paliativas. No pós-crise subprime de 2008, cujos efeitos são sentidos até hoje, ao passo que o resto do mundo buscou elaborar um corpus juris mínimo na tentativa de prevenir novos desastres econômicos e sociais, o Brasil, nesta esteira, deixou a desejar. Tratou os efeitos da crise subprime de 2008 por meio de diversas intervenções do Banco Central do Brasil162 na economia para cortar taxas de juros 160 E sob essa justificativa, a atual presidente Dilma Rousseff promulgou o Decreto n° 8.243/2014 instituindo a Política Nacional de Participação Social, “com o objetivo de fortalecer e articular os mecanismos e as instâncias democráticas de diálogo e a atuação conjunta entre a administração pública federal e a sociedade civil” (artigo 1°). Não cumpre, todavia, em virtude do escopo do presente dissertação, tecer comentários mais aprofundados a respeito do tema. Mas vale mencionar que referido Decreto está sendo altamente contestado no âmbito do Congresso Nacional e alguns partidos políticos já peticionaram para que seja votado, em regime de urgência, um decreto legislativo com o fito de anular seus efeitos, por entenderem ser contrários à ideia de democracia e participação popular. 161 Machado, Jónatas E. M. Direito Internacional do Paradigma Clássico ao Pós-11 de Setembro. 3.ed. Coimbra Editora: Coimbra, 2006, p. 445. 162 A independência do Banco Central do Brasil é um tema de longa data e as consequências entre uma e outra posição são distintas. Os que defendem a dependência do Banco Central do Brasil ao Poder Executivo argumentam que o Brasil é um país preocupado com as questões sociais que 103 básicos. A taxa SELIC (equivalente à taxa do Sistema Especial de Liquidação e Custódia) chegou ao patamar de 7,5% (sete e meio por cento), patamar jamais visto, tudo para aquecer o consumo que, diga-se de passagem, já estava retraído por conta das facilidades de acesso ao crédito. Adicionalmente, adotou medidas de isenções fiscais (como, por exemplo, o Imposto sobre Operações Financeiras e o Imposto sobre Produtos Industrializados) e interferências na política cambiária, prejudicando os exportadores. Sem a intenção de adentrar em aspectos puramente econômicos, tais medidas são tão devastadoras em se tratando dos efeitos de uma crise econômica: (i) afugenta investidores para projetos de infraestrutura, tão necessários para o desenvolvimento do país (veja, como exemplo, a ausência de interessados em participar do processo licitatório para tornar realidade o trem-bala e, por isso, o governo federal teve que adiar e alterar, por diversas vezes, o edital); (ii) cria problemas na comercialização de títulos públicos federais (considerando que o pagamento dos juros é pautado na referida taxa SELIC e eventual queda nesta taxa retira sua atratividade aos olhos dos investidores, principalmente estrangeiros); (iii) mina a reputação duramente conquistada em termos macroeconômicos e (iv) questiona a credibilidade das instituições públicas. A esse respeito, a governança deve ser traduzida como o modo pela qual se estabelecem medidas duradouras e consistentes, com instituições comprometidas com o efetivo desenvolvimento econômico, social e ambiental, sob pena de o Brasil ficar refém da volatilidade dos mercados internacionais mais desenvolvidos. assolam o país, fruto do período de industrialização. Nesse sentido, a inflação é o grande vilão dessa estória. Sendo considerada como a perda do poder de compra da moeda, seus efeitos acabam por prejudicar as classes mais pobres de uma sociedade. E como compatibizar esse fator em um país que busca aumentar seus indicadores sociais? Por outro lado, os que defendem a independência preconizam que seria o auge da consolidação da democracia, porquanto retiram o “caráter político” da moeda e trás para essa seara o princípio constitucional de “freios e contrapesos”, ou seja, o Banco Central do Brasil seria uma forma de freiar políticas irresponsáveis do Ministro da Fazenda (por exemplo, o aumento de gastos públicos por meio de uma política de juros instável). Acerca dessa discussão, vide: Oliveira, Marcos Cavalcante de. Moeda, Juros e Instituições Financeiras: Regime Jurídico. 2.ed. Editora Forense: Rio de Janeiro, 2009, pp. 86-87. 104 3.4.1 A Ideia de um Estado Necessário E é por tal razão que a presente dissertação tem como intuito reiterar a importância do Estado necessário. Necessário, inclusive, quanto à observância dos princípios de governança outrora elencados, a saber: responsabilidade, transparência, prestação de contas e equidade, imprescindíveis para uma atuação governamental consciente. A responsabilidade deve ser analisada no sentido de se buscar um planejamento de longo prazo, com metas factíveis e exequíveis. A transparência é traduzida a partir da revelação das efetivas intenções por detrás das medidas adotadas, inclusive as de curto prazo, com vistas ao cumprimento do princípio da moralidade, corolário da Administração Pública. A prestação de contas objetiva reafirmar o comprometimento da Administração Pública com a sociedade, evitandose, assim, a abertura de brechas para a corrupção. E, por fim, a equidade também é relevante porquanto as medidas adotadas pela Administração Pública não privilegie um segmento da sociedade em detrimento de outro. O dinamismo da globalização e a necessidade cada vez maior de cooperação prescrevem novas maneiras de se pensar o papel do Estado no século XXI. Já se provou verdade que o Estado liberal não foi a melhor saída para resolver problemas socioeconômicos. O mercado, por si só, não foi capaz de mediar seus próprios interesses, promovendo o crescimento e o desenvolvimento econômicos. Pelo contrário, agravou ainda mais as desigualdades entre os cidadãos. O que, por sua vez, o Estado social buscou remediar. O excesso de zelo, por assim dizer, aliado ao fato de o Estado ter se sobrecarregado de responsabilidade na condução de certas atividades – não somente econômicas, mas também de cunho social e assistencialista – acabou por tornar o aparato governamental demasiado burocrático e ineficiente. A ausência de democracia e liberdades pessoais também culminou para sua falência. 105 Buscou-se, assim, novas alternativas viáveis para a consecução da proteção ao cidadão em seus direitos e garantias, conforme propostas pela teoria do contrato social em contraposição ao estado de natureza, consubstanciado simplesmente na ideia de autoregulação ou na regulação extrema. O Estado neoliberal propiciou a subsistência de um mercado livre aliado a permissivos intervencionistas estatais. Afinal de contas, a lei da oferta e da procura é de difícil revogação. Por sua vez, o Estado necessário está ligado à ideia de economia social de mercado (Soziale Marktwirtschaft), que tomou forma na Alemanha Ocidental em meados de 1990 (embora concebida bem antes, em 1947). Tal terminologia foi atribuída por Alfred Müller-Armack em sua obra Wirtschaftslenkung und Marktwirtschaft, defendendo o princípio da liberdade no mercado, respeitado, entretanto, o princípio da justiça social. Sintetiza Marcelo F. Resico163 que: El sistema de la Economía Social de Mercado surge del intento consciente de sintetizar todas las ventajas del sistema económico de mercado: fomento de la iniciativa individual, productividad, eficiencia, tendencia a la auto-regulación, com los aportes fundamentales de la tradición social cristiana de solidariedade y cooperación, que se basean necesariamente en la equidad y justicia en una sociedad dada. En este sentido propone un marco teórico y de política económico-institucional que busca combinar la liberdad de acción individual dentro de un orden de responsabilidad personal y social. Correlacionada com a abordagem do Estado Democrático e Social de Direito, a economia social de mercado seria a opção para uma melhor alocação de 163 Tradução livre da autora: “O sistema de economia social de mercado surge da tentativa consciente de sintetizar todas as vantagens do sistema da economia de mercado: a promoção da iniciativa individual, a produtividade, a eficiência, a tendência para a autoregulação, com as contribuições fundamentais da tradição social cristã de solidariedade e cooperação, que se baseiam necessariamente na equidade e justiça em uma dada sociedade. Neste sentido propõe um marco teórico e uma política econômica-institucional que procura combinar a liberdade de ação individual inserido numa ordem de responsabilidade pessoal e social” (Resico, Marcelo F. Introducción a la Economía Social de Mercado. Fundación Konrad Adenauer: Edición Latinoamericana, p. 108. Disponível em: <http://www.kas.de/wf/doc/kas_29112-1522-4-30.pdf?111103181408>. Acesso em 16 de junho de 2014). 106 recursos, na medida em que é caracterizada por uma minuciosa divisão de trabalho e, em determinados setores e sob certas circunstâncias, permite a intervenção do Estado para promoção da equidade social. Referida divisão de trabalho pode ser traduzida como tanto sob a chancela de direitos sociais quanto sob a forma de regulação, por meio de agências regulatórias independentes. Urge-se, portanto, que o Estado tenha uma função subsidiária, no sentido de maior descentralização de suas atividades. Isso porque entende Maria Sylvia Zanella Di Pietro164 que referida função está embasado em três princípios fundamentais: 1. Primazia da iniciativa privada sobre a iniciativa estatal; 2. Atuação do Estado voltada para fomentar, coordenar e fiscalizar a iniciativa privada, de forma a permitir aos particulares sucessos na condução de seus empreendimentos; 3. Incremento da parceria entre público e privado. Desvincula-se, pois, o Estado necessário da ideia de apenas preservar direitos sociais, para alargar seu campo de ampliação, de modo que sejam cumpridas as suas funções de auxílio, coordenação, fiscalização e fomento. E esclarece Priscila Simões Garcia Oliveira que “a subsidiariedade não desobriga o Estado de intervir sempre que necessário, a fim de suprir as deficiências sociais, devendo apenas não opor obstáculos à atuação privada espontânea”165. Seria então uma resposta ao novo ambiente político, social e econômico, na qual se prestigia uma ordem administrativa descentralizada adequada aos imperativos do Estado Democrático e Social de Direito, que acompanha e monitora o livre mercado por meios das agências regulatórias independentes. 164 Pietro, Maria Sylvia Zanella Di. Parcerias na Administração Pública. 4.ed. Editora Atlas: São Paulo, 2002, p. 25. 165 Garcia, Patrícia Simões Oliveira. O Direito Econômico Brasileiro Tridimensional. Araçatuba, 2010. 153f. Dissertação (Mestrado em Direito – Área de Concentração: Prestação Jurisdicional no Estado Democrático de Direito) – Centro Universitário Toledo, Araçatuba, 2010, p. 40. 107 3.4.2 A Terceira Via O debate acerca da Terceira Via surge no início da década de 1990, na Inglaterra. Porém, suas ideias são difundidas apenas em 1992 com a eleição de Bill Clinton para a presidência dos Estados Unidos. E, finalmente, são consolidadas no rescaldo da crise asiática em 1997. Tem como marco teórico a renovação dos valores da social democracia. Anthony Giddens, o criador intelectual desse pensamento político, via na Terceira Via uma possibilidade de ruptura de Tony Blair (ex-primeiro-ministro e executor desse pensamento na Inglaterra) com o velho Trabalhismo e a insurgência de novos democratas nos Estados Unidos. Se durante a Guerra Fria, a política era dividida entre o liberalismo americano e o comunismo soviético, nos dias atuais, uni-se a esse cenário as ideologias democratas e trabalhistas: Os partidos social-democratas surgiram originalmente como movimentos sociais no final do século XIX e princípio do século XX. Hoje, além de sofrerem suas crises ideológicas, eles se veem flanqueados por novos movimentos sociais e, como outros partidos, surpreendidos numa situação em que a política ficou desvalorizada e o governo aparentemente esvaziado de poder. O neoliberalismo empreendeu uma crítica constante do papel do governo na vida social e econômica, crítica que parece encontrar ressonância em tendências do mundo real166. A Terceira Via é um pensamento ainda em fase de maturação, com contornos nem tão bem definidos, mas sua essência é realista no sentido de fornecer um olhar sobre as situações fáticas do século XXI, ou seja, a globalização e as consequentes transformações na vida do indivíduo. Por tal razão é que a Terceira Via não está limitada à apenas uma única versão. O pano de fundo da Terceira Via, diz Anthony Giddens, “não é mais ou menos governo, mas o reconhecimento de que a governação deve se ajustar às 166 Giddens, Anthony. A Terceira Via: Reflexões sobre o Impasse Político Atual e o Futuro da Social Democracia. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. Record: Rio de Janeiro, 1999, p. 56. 108 novas circunstâncias da era global; e de que a autoridade, inclusive a legitimidade do Estado, tem que ser ativamente renovada”167. Em outras palavras, o Estado não deve nem dominar o mercado, nem os indivíduos, “embora precise regular e intervir em ambos”. A recíproca entre os indivíduos (sociedade civil a que Anthony Giddens se refere) e o Estado segue o mesmo raciocínio. Isso porque: Por mais importantes que sejam os grupos cívicos, os grupos de interesse especial, as organizações voluntárias e outros, eles não constituem um substituto do governo democrático. Grupos de interesse e organizações não governamentais podem desempenhar um papel significativo ao levar questões à agenda política e assegurar sua discussão política. Uma sociedade, no entanto, não pode ser regida por uma reunião de tais grupos, não apenas por eles não serem eleitos, mas porque os governos e a lei precisam julgar as reivindicações rivais que eles fazem168. O advento de ferramentas tecnológicas, por exemplo, a internet, permite a inclusão de pessoas no processo de modernização. Também permite a associação de pessoas com os mais diversos fins. Nesta esteira, a Lei n° 12.965/2014, conhecida como Marco Civil da Internet, propicia um ambiente inclusivo, mas sob “vigilância” do Estado em caso de abuso no exercício dos direitos fundamentais, ou seja, do direito à privacidade em detrimento à liberdade de expressão e vice-versa. Outro exemplo ocorrido recentemente foi à intervenção do Estado, por meio do Poder Judiciário, com vistas a declarar abusiva a greve dos metroviários, visto que prejudiciais à consecução de forma razoável dos serviços públicos. Denota-se, portanto, que o Estado brasileiro tem um papel que vai além de mero controlador ou interventor na economia. Porém, nos exemplos citados, entendemos que a sua atuação está em conformidade com o seu papel de garantidor dos direitos fundamentais. Adicionalmente, dentre as linhas de pensamento da social democracia, talvez a Terceira Via é a única vertente que traz uma preocupação legítima no que 167 Giddens, Anthony. A Terceira Via: Reflexões sobre o Impasse Político Atual e o Futuro da Social Democracia. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. Record: Rio de Janeiro, 1999, p. 82. 168 Giddens, Anthony. O Debate Global sobre a Terceira Via. Tradução de Roger Maioli dos Santos. Editora Unesp: São Paulo, 2007, p. 25. 109 diz respeito ao meio ambiente. Por isso, a Terceira Via valoriza o senso de comunidade e fraternidade. A esse respeito, o Partido Trabalhista britânico, por exemplo, em 1995, reviu os termos de seu documento constitutivo, no que diz respeito aos seus objetivos e valores, o que denota uma expressiva alteração de valores: The Labour Party is a democratic socialist party.It believes that by the strength of our common endeavour we achieve more than we achieve alone, so as to create for each of us the means to realise our true potential and for all of us a community in which power, wealth and opportunity are in the hands of the many, not the few, where the rights we enjoy reflect the duties we owe, and where we live together, freely, in a spirit of solidarity, tolerance and respect169. A Terceira Via não tem repulsa ao capitalismo; mas entende que ele deve ser responsável, enfatizando os custos sociais e ambientais que as empresas podem imputar à sociedade. Por exemplo, nada impede o lucro na Terceira Via. Inclusive, o lucro é almejado, desde que haja uma espécie de retorno. Em termos sociais, por meios de programas de benefício à comunidade local. Em termos ambientais, buscar um processo de produção menos poluidor possível. Sob o ponto de vista de politicas públicas se afasta exclusivamente da questão da “luta de classes” e das relações entre o Estado e a economia para concentrar o papel do Estado como agente de fomento (ou criador) de riqueza, não como um mero distribuídor dela. Repudia, pois, um Estado sobrecarregado e burocrático, incapaz de prover bons serviços públicos170. 169 Tradução livre da autora: “O Partido Trabalhista é um partido socialista democrático. Acreditamos que pela força do nosso esforço comum podemos alcançar mais do que sozinhos, de modo a criar para cada um de nós os meios para realizar nosso verdadeiro potencial e para todos nós uma comunidade em que o poder, a riqueza e as oportunidades estão nas mãos de muitos, não de poucos, na qual os direitos que disfrutamos refletem os deveres que devemos, e que possamos viver, livremente, em um espírito de solidariedade, tolerância e respeito”. 170 Asserta Anthony Giddens que “na prática, reformar o Estado está longe de ser fácil, mas a meta deve ser tornar o governo e a agências estatais transparentes, voltadas ao consumidor e ágeis” (Giddens, Anthony. O Debate Global sobre a Terceira Via. Tradução de Roger Maioli dos Santos. Editora Unesp: São Paulo, 2007, p. 23). 110 É notório, portanto, que a Terceira via procura conciliar as principais características do capitalismo, ou seja, a liberdade dos mercados e a democracia liberal, com as do socialismo (neste caso, a solidariedade). Na defesa da Terceira Via, Joseph Stiglitz deixa claro que: “while neo-liberals worry about excessive government, weak government impedes growth because weak states cannot provide law and order, cannot enforce contracts, and cannot ensure a safe, sound banking system. (…). The question should not have been about how to deregulate quickly, but about how to develop the right regulatory framework”171. Diante do que foi aqui exposto, o Estado necessário pode ser considerado uma versão da Terceira Via, primando por uma economia social de mercado mais responsável. A desregulamentação é perigosa. A regulação em excesso engessa. Há que haver um equilíbrio de modo que haja uma redução de controle governamental centralizado no mercado. Como reiteradamente refrisamos, o Estado necessário deve se fazer presente para alcançar o desenvolvimento sustentável por meio de políticas sociais e inclusivas. O Estado necessário deve se preocupar em construir instituições políticas e democráticas sólidas e confiáveis. O Estado necessário deve, por fim, ser o primeiro a respeitar as melhores práticas de governança. 171 Tradução livre da autora: “enquanto os neoliberais se preocupam com um governo excessivo, os governos fracos impedem o crescimento porque estados fracos não conseguem propiciar a lei e a ordem, não conseguem cumprir os contratos, e não conseguem garantir um sistema bancário seguro. (...). A questão não deveria ter sido sobre como desregular rapidamente, mas sobre como desenvolver um ambiente regulatório correto” (Stiglitz, Joseph. To a Third Way Consensus. Disponível em: <http://www.project-syndicate.org/print/to-a-third-way-consensus>. Acesso em 16 de junho de 2014). 111 4 O MERCADO FINANCEIRO E AS CONSEQUÊNCIAS DO CAPITAL ESPECULATIVO Como ponto de partida para a construção dos argumentos da presente dissertação, imprescindível entender não só os acontecimentos que precederam a crise subprime de 2008, bem como se comportou os mercados a partir do momento em que se deram conta da complexidade das operações financeiras estruturadas criadas no mercado imobiliário norte-americano. É notório que os efeitos da crise subprime de 2008 não tiverem a mesma proporção ou extensão no Brasil como nos Estados Unidos ou na União Europeia ou no Leste Asiático (notadamente a China, devido suas relações comerciais com os Estados Unidos). O governo brasileiro agiu na medida de suas possibilidades, intervindo na economia e adotando certas medidas paliativas que ajudaram no curto prazo, mas insuficientes no longo prazo. Isso porque “são respostas providenciais de expansão monetária e fiscal contra o risco de depressão, mas que geram dúvidas quanto ao futuro, suscitando questões controvérsias sobre a possibilidade de um longo período de estagnação, sob ameaça de pressões inflacionárias mais adiante”172. Para corroborar esse entendimento, basta notar que como resultado dessas medidas paliativas, vivenciamos atualmente um cenário de baixo crescimento econômico e de altas inflacionárias. De acordo com o último boletim Focus, relatório elaborado e divulgado semanalmente pelo Banco Central do Brasil contendo uma série de projeções em relação à economia brasileira, estima-se um crescimento de apenas 0,97% (zero vírgula noventa e sete por cento) do produto interno bruto em 2014. No que diz respeito à inflação, o Comitê de Política Monetária do Banco Central do Brasil já sinalizou um Índice de Preços ao Consumidor Amplo acima do teto da meta estabelecido pelo governo. 172 Barros, Octavio de; Giambiagi, Fábio. Brasil Pós-Crise: Seremos Capazes de Dar um Salto?. In: Barros, Octavio de; Giambiagi, Fábio (orgs.). Brasil Pós-Crise: Agenda para a Próxima Década. 2.reimp. Elsevier: Rio de Janeiro, 2009, pp. 5-6. 112 O sistema financeiro é alimentado pela confiança e disponibilidade de crédito, o que, nos parece, permanecerá congelado por certo período de tempo para que o sistema como um todo consiga recuperar o fôlego. Por isso, a par dessas medidas no curto prazo, a atuação do governo deveria ter focado em investimentos, por exemplo, em infraestrutura e, consequentemente, aquecendo a economia interna. Mas, contrariamente, o Banco Central do Brasil continuamente busca formas artificiais de aquecimento da economia e, desta vez, por meio de mudanças nas regras de recolhimento do depósito compulsório. Sobre sua importância trataremos mais adiante neste Capítulo. É verdade que a crise subprime de 2008 não foi – e nem poderia ser – considerada uma crise do sistema bancário propriamente dito; mas do sistema financeiro global173, expondo sobremaneira sua fragilidade, questionando-se, naquele momento, quanto à possibilidade de um risco sistêmico no mercado internacional e, também, se o expoente desenvolvimento do setor financeiro tornaria o mundo mais suscetível às especulações por parte de bancos de investimentos e investidores inclinados à assunção de altos riscos. José Virgílio Lopes Enei174 prescreve a importância do capital: (...) como as decisões empresariais, cada vez mais livres do poder intervencionista dos Estados e das barreiras legais ou tecnológicas ao fluxo monetário internacional, obedecem preponderantemente à lógica do capitalismo, da competitividade e da perseguição do lucro, e como as empresas transnacionais175 necessitam de volumes cada 173 Muito embora Octavio de Barros e Fábio Giambiagi entendam que a crise “não tem nada a ver apenas com sérios problemas de regulação bancária, de má gestão de bolhas de ativos ou mesmo de inadequação de política monetária nos Estados Unidos. A crise bancária global, a despeito de seus elementos específicos e fortes o suficiente para serem sistematicamente impactantes, deveria ser caracterizada essencialmente como a forma extrema adquirida pelos desequilíbrios que se acumularam em décadas de reciclagem do excesso de poupança majoritariamente asiática nos Estados Unidos e em outros países, gerando problemas crônicos no balanço de pagamentos global” (Barros, Octavio de; Giambiagi, Fábio. Brasil Pós-Crise: Seremos Capazes de Dar um Salto?. In: Barros, Octavio de; Giambiagi, Fábio (orgs.). Brasil Pós-Crise: Agenda para a Próxima Década. 2.reimp. Elsevier: Rio de Janeiro, 2009, p. 5) 174 Enei, José Virgílio Lopes. Project Finance – Financiamento com Foco em Empreendimentos (Parcerias Público-Privadas, Leveraged Buy-Outs e Outras Figuras Afins). Editora Saraiva: São Paulo, 2007, p. 121. 175 Assim entendida como a empresa que não possui nacionalidade e não conhece fronteiras, diferentemente da empresa multinacional. A empresa transnacional é aquela que constitui uma rede 113 vez maiores de capital para alcançar a economia de escala, financiar seus empreendimentos espalhados pelo globo e fazer frente aos seus incessantes gastos em pesquisa e desenvolvimento tecnológico, tão necessários à preservação de sua vantagem competitiva, o capital financeiro assume importância suprema. É por tal razão que Francesco Galgano refere-se à economia atual como “sociedade das finanças”. Francesco Galgano176 afirma que “what is new is not only how the goods are produced (with machines controlled by computers and not people) but also what is produced. The word ‘product’, originally used to designate material goods, has now become a metaphor used to indicate ‘financial products’”. E aqui vale fazer um parêntese para esclarecer que, não obstante a utilização ao longo desta dissertação do termo “produtos financeiros”, o correto seria a utilização da expressão “prestação de serviços bancários”, sendo o objeto desta prestação a venda dos produtos financeiros. Todavia, a diferença é que os “produtos financeiros” não geram e sequer são capazes de distribuir riquezas. Como bem destacou Richard Posner177, “when A sells B stock worth $10 a share, and the next day it is worth $15, the country is not $5 richer, though B is”. Não buscamos, entretanto, retirar a importância do mercado financeiro ou o de capitais; apenas resta incerto o valor agregado de movimentos estritamente especulativos, seja na economia, seja para a sociedade. Nouriel Roubini, economista-sênior do Conselho de Assessores Econômicos (Council of Economic Advisers) dos Estados Unidos entre 1998-2000, de unidades ou divisões produtivas, distribuidoras e de venda espalhada pelo mundo e alcançada por meio de filiais, holdings, subsidiárias, joint ventures, coligações, grupo de sociedades, contratos de parceria, terceirização e outros instrumentos adotados em contexto global. 176 Tradução livre da autora: “o que é novo não é apenas a forma como os bens são produzidos (com máquinas controladas por computadores e não por pessoas), mas também o que é produzido. A palavra ‘produto’, originalmente usada para designar bens materiais, agora se tornou uma metáfora para indicar ‘produtos financeiros’” (Galgano, Francesco. The New Lex Mercatoria. Annual Survey of International & Comparative Law. Vol. 2, 1995. Disponível em: <htpp://digitalcommons.law.ggu.edu/annlsurvey/vol2/iss1/7>. Acesso em 20 de julho de 2013). 177 Tradução livre da autora: “quando A vende a B ações com valor de mercado de $10 por ação, e no dia seguinte vale $15, o país não é $5 mais rico, muito embora B seja” (Posner, Richard. A Failure of Capitalism: The Crisis of ’08 and the Descent into Depression. Harvard University Press: Cambridge, 2009, pp. 295-296). 114 em entrevista para o documentário Trabalho Interno178, estima que considerando o custo da destruição da riqueza em ações, imóveis, renda, 50 (cinquenta) milhões de pessoas no mundo outra vez ficariam abaixo da linha da pobreza; estimativa essa que pode aumentar ao longo dos anos subsequentes. Em um contexto de globalização e integração em que nos vemos influenciados pela criação de novos e sofisticados produtos financeiros (como a securitização de créditos, por exemplo, prática pouco usual até meados da década de 1980), uma maior cautela deve ser tomada de modo a mitigar os impactos adversos ou externalidades não só na economia, mas, sobretudo, sobre a sociedade. O trânsito ilimitado de capitais entre os países, seja por meio de operações financeiras diretas (bolsa de valores ou mercado de balcão), seja por meio de distribuição de títulos públicos pelos governos para financiamento de suas dívidas públicas ou a emissão de títulos e valores mobiliários para captação de recursos, seja por meio da atuação de intermediários financeiros, aliado ao fato da evolução tecnológica ter acelerado o ritmo dos negócios financeiros 179, o entrelaçamento entre os mercados é evidente e necessária. Assim, o processo de globalização financeira tem levado a um sistema mais complexo e interdependente das economias mundiais, urgindo uma atuação mais eficaz não só dos Estados, mas também de organizações internacionais. Não apenas do ponto de vista do mercado financeiro norte-americano, cujos reflexos de uma má-condução político-econômica ecoaram em todos os cantos do mundo, mas também com vistas a colaborar para a criação de uma estrutura regulatória eficiente para o mercado financeiro e de capitais brasileiro, não obstante a já atuação do 178 TRABALHO Interno. Direção: Charles H. Ferguson. Produção: Charles H. Ferguson e Audrey Marrs. Narrador: Matt Damon. Intérpretes: George Soros; Barney Frank; Lee Hsien Loong; Christine Lagarde; Eliot Spitzer e outros. Roteiro: Charles H. Ferguson. Música: Alex Heffes. Estados Unidos da Amércia: Sony Pictures Classics, 2010. 1 DVD (120MIN), Color. Produzido por Sony Pictures Classics. 179 A esse respeito, sugiro que assistam ao documentário entitulado Quants – Os Alquimistas de Wall Street, que ilustra como mentes brilhantes (matemáticos e programadores de computador) projetam os produtos financeiros utilizados em Wall Street. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=kdMEdGbmZAE>. Acesso em 23 de junho de 2014. 115 Conselho Monetário Nacional, do Banco Central do Brasil e da Comissão de Valores Mobiliários. Isso porque, em nosso entendimento, novas crises financeiras continuarão a deflagar as economias mundiais, conquanto haja mercados e instituições financeiras. Reiterando esse entendimento, Hank Paulson, até então Secretário do Tesouro dos Estados Unidos acerca da bolha imobiliária 180, disse: I get asked all the time what is the likelihood of another financial crisis. And I begin by saying it’s a certainty. As long as we have markets, as long as we have banks, no matter what the regulatory system is, there’ll be flawed government policies. Those policies will create bubbles, they will manifest themselves in the financial system, no matter how it’s structured and how it’s regulated. But the key thing is to have the tools and the political will to act forcefully to limit a crisis181. Os agentes desse tipo de mercado, também conhecidos como “intermediários financeiros” têm como principal propósito identificar as melhores oportunidades de retorno sobre o investimento e, nos dizeres de Ricardo Dathein 182: 180 Richard Posner conceitua uma “bolha” como sendo: “a steep rise in the value of some class of assets that cannot be explained by a change in any of the economic fundamentals that determine value, such as increased demand due to growth in population or to improvements in product quality. But often a bubble is generated by a belief that turns out to be mistaken that fundamentals are changing – that a market, or maybe the entire economy, is entering a new era of growth, for example, because of technological advances”. Tradução livre da autora: “um aumento acentuado no valor de alguma classe de ativos que não pode ser explicado por uma alteração em qualquer dos fundamentos econômicos que determinam o valor, como o aumento da demanda devido ao crescimento da população ou em função da melhoria da qualidade do produto. Mas muitas vezes uma bolha é gerada por uma crença que acaba por ser equivocada de que os fundamentos estão mudando – que um mercado, ou talvez toda a economia, está entrando em uma nova era de crescimento, por exemplo, por causa de avanços tecnológicos” (Posner, Richard. A Failure of Capitalism: The Crisis of ’08 and the Descent into Depression. Harvard University Press: Cambridge, 2009, p. 10). 181 Tradução livre da autora: “Me perguntam o tempo todo qual é a probabilidade de uma nova crise financeira. E começo por dizer que é uma certeza. Enquanto tivermos mercados, enquanto tivermos bancos, não importa qual o sistema regulatório vigente, haverá políticas governamentais defeituosas. Essas políticas vão criar bolhas, que vão se manifestar no sistema financeiro, não importa como ele é estruturado e como ele é regulado. Mas o importante é ter as ferramentas e a vontade política para agir com força para limitar uma crise” (HANK: Cinco Anos Depois do Colapso. Direção: Joe Berlinger. Intérprete: Hank Paulson. Estados Unidos da Amércia, 2013. 85MIN, Color). 182 Dathein, Ricardo. Sistema Monetário Internacional e Globalização Financeira nos Sessenta Anos de Bretton Woods. Revista Sociedade Brasileira de Economia Política, Rio de Janeiro, n. 16, pp. 5173, jun/2005. 116 “estaria ocorrendo, assim, um processo que poderia ser qualificado como financeirização da riqueza, em que uma lógica financeira, e não produtiva, é que determinaria a dinâmica econômica”. Contudo, ainda em que termos bastante simplórios, a existência de uma estrutura produtiva depende necessariamente da disponibilidade de crédito que, sem dúvida, é e sempre será a mola propulsora do desenvolvimento econômico de um país. Por isso, conclui o autor que “em uma situação de economia globalizada com predominância financeira, por outro lado, nas políticas em que o mercado (ou o ‘Consenso de Washington’) impõe, questões como a busca do pleno emprego ou do bem-estar social via políticas econômicas estão fora de discussão”183. Sem pestanejar, a sobrevivência da sociedade do século XXI depende de vontade política para realizar mudanças que prestigiem a efetivação de um Estado necessário, afastando-se, pois, de premissas (ou ideologias) de extrema direita (que se provaram falíveis) ou de extrema esquerda (utópicas). A crise subprime de 2008 deu vazão para o questionamento da continuidade do capitalismo nos termos formulados por Adam Smith e largamente defendido por alguns partidos políticos norte-americanos. Por outro lado, modelos como os dos soviéticos, chineses ou cubanos também não demonstraram sucesso. Dogmas devem ser refutados, razão pela qual se busca na presente dissertação testar a viabilidade do Estado necessário, por meio de sugestões de ações positivas do Estado – muito embora a intenção não seja esgotar todas as possibilidades existentes – na tentativa de confirmar se é possível conciliar o mercado financeiro e de capitais com o desenvolvimento em seu sentido mais amplo (econômico, social e ambiental). Giorgio Di Giorgio, Carmine Di Noia e Laura Piatti184 lecionam que “the regulation of the financial system can be viewed as a particularly important case of 183 DATHEIN, Ricardo. Sistema Monetário Internacional e Globalização Financeira nos Sessenta Anos de Bretton Woods. Revista Sociedade Brasileira de Economia Política, Rio de Janeiro, n. 16, p. 51-73, jun/2005. 184 Tradução livre da autora: “A regulação do sistema financeiro pode ser vista como um caso particularmente importante de controle público sobre a economia. A acumulação de capital e a alocação de recursos financeiros constituem um aspecto essencial no processo de desenvolvimento econômico de uma nação” (Di Giorgio, Giorgio; Di Noia, Carmine; Piatti, Laura. Financial Market 117 public control over economy. The accumulation of capital and the allocation of financial resources constitute an essential aspect in the process of economic development of a nation”. Portanto, e em relação aos intermediários financeiros, uma regulação/fiscalização eficiente e uma descentralização administrativa se faz necessária. Regulação essa não com o intuito de impossibilitar o livre mercado; mas em um formato assemelhado à atuação do Conselho Administrativo de Defesa Econômica, por exemplo. Trata-se, pois, de uma reorganização do sistema, uma intervenção racional. É preciso, também, criar mecanismos de controle sobre o fluxo de capitais internacionais, ou melhor, criar mecanismos que não estimulem uma alavancagem anormal das instituições financeiras. Esses mecanismos, no entanto, devem ser capazes de desestimular movimentos especulativos – ainda que em um primeiro momento se pense ser uma atividade impossível –, uma vez que desestabiliza diversas economias, afetando toda a sistemática interna de um país e trazendo prejuízos e conseqüências incalculáveis à sua população. Muitos governos emitem títulos públicos para financiar suas dívidas internas. Tais títulos são comprados por investidores em todo o mundo com uma taxa de juros muito atrativa. Durante a crise subprime de 2008, os governos americanos185 e europeus186 ajudaram diversas instituições financeiras para não irem à falência. Assim, a fim de salvá-los, os governos realizaram operações de resgate, injetando recursos públicos em instituições financeiras, aumentando, portanto, as suas dívidas internas. E não só, medidas de incentivo187 foram aprovadas para aquecimento da economia, mas, refrise-se, não são sustentáveis no longo prazo. Regulation: The Case of Italy and a Proposal for the Euro Area. Disponível em: <http://fic.wharton.upenn.edu/fic/papers/00/0024.pdf>. Acesso em 20 de junho de 2013). 185 Algumas instituições financeiras norte-americanas foram praticamente nacionalizadas (Fannie Mae e Freddie Mac, por exemplo). Outras, forçadas a realizar operações de fusões e aquisições (Merrill Lynch sendo comprado pelo Bank of America) ou a receber socorros financeiros (injeção de recursos pelo Federal Reserve no American Internacional Group). 186 O Banco Central europeu injetou capital no banco francês BNP-Paribas, em função das perdas em fundos de hedge (em vernáculo, fundo multimercado, combinando investimentos de curto e longo prazos, como uma forma de garantir uma cobertura do seu portifólio). 187 Tal como no Brasil, com isenção de impostos, com vistas a aumentar o consumo; redução da alíquota referente ao depósito compulsório, ou seja, aqueles valores em que as instituições financeiras não podem emprestar; redução da taxa de juros básicas, etc. 118 O problema se agrava mais na zona do euro do que nos Estados Unidos, na medida em que 100% (cem por cento) das dívidas deste último são em dólares – e, portanto, sua emissão é de responsabilidade do Federal Reserve – banco central norte-americano. Na União Europeia, diferentemente, as instituições financeiras e os governos precisam de reservas em dólares, mas suas dívidas são em euros. Adicionalmente, a moeda é emitida pelo Banco Central europeu. Tais fatores comprometem demasiadamemte a balança de pagamento dos países. A conclusão é que um governo que tenha uma dívida em sua própria moeda tem um menor risco de inadimplência. Isso ocorre porque determinado país pode decidir sobre a emissão de mais moeda para pagar suas dívidas, mesmo que isso acarrete em aumento da inflação. Por isso, a dificuldade de a União Europeia se reeguer no pós-crise. É inevitável que o risco sistêmico seja igualmente um fator a ser considerado. Por esta razão, as autoridades, nacional e internacional, devem prestar atenção para o fato de que a liberdade sem restrições (ou o mínimo de interferência) legais tendem a ser extremamente destrutivas. E nesse diapasão, o Fundo Monetário Internacional188 tem a ciência de que: (...) imbalance could not have caused the crisis without the creative ability of financial institutions to develop new structures and instruments to cater to investors’ demand for higher yields. These instruments turned out to be more risky than they appeared. Investors, overly optimistic about continued rises in asset prices, did not look closely into the nature of the assets that they bought (…). This ‘failure of market discipline’ (…) played a big role in the crisis. Martin Sandbu189, em artigo publicado no Financial Times, fazendo referência à crise da zona do euro, diz que “today’s debt crisis, too, arises from 188 Tradução livre da autora: “(…) desequilíbrios não seriam capazes de causar a crise, se não contassem com a capacidade criativa das instituições financeiras em desenvolver novas estruturas e instrumentos para atender a demanda dos investidores por maiores rendimentos. Esses instrumentos acabaram sendo mais arriscados do que pareciam. Os investidores, excessivamente otimistas sobre aumentos contínuos nos preços dos ativos, não olharam atentamente para a natureza dos ativos que compraram (...). Esta “falha em disciplinar o mercado” (…) desempenhou um grande papel na crise”. (Disponível em: <http://shareholdersunite.com/2009/03/07/imf-regulation/>. Acesso em 20 de junho de 2013). 189 Tradução livre da autora: “a atual crise da dívida decorreu também de decisões de investimento privadas que podem fazer sentido individualmente, mas são coletivamente irracionais. Os políticos 119 private investment decisions that may make individual sense but are collectively irrational. Politicians are unable to solve it because they have succumbed to the same irrationality”. Como conseqüência, a fraca regulação dos mercados financeiro e de capitais, aliada a alta interconexão dos intermediários financeiros – e ainda há quem diga que os economistas e a própria população também foram os responsáveis pelo inchaço da bolha imobiliária190 –, em nosso entendimento, foram os grandes culpados pela crescente fragilidade de muitas economias. Mesmo com a ocorrência de uma crise de tal magnitude ainda não há qualquer apoio político ou consentimento para promover as mudanças necessárias. O presente Capítulo buscará, portanto, entender, qual a dinâmica dos mercados financeiro e de capitais, ou seja, por que existe, qual a sua estrutura, para, na sequência, entender a relação entre o capital especulativo e as crises, em especial, a subprime de 2008. Esta dissertação não estaria completa se não fizéssemos uma análise da relação entre a teoria econômica do direito (alternativamente chamada de teoria econômica aplicada ao direito) e o mercado financeiro, porquanto imprescindível para corroborar a instituição de um Estado necessário em detrimento à autoregulação, muito embora não a refutamos por completo conforme trataremos mais adiante neste Capítulo. 4.1 DINÂMICA DO MERCADO FINANCEIRO Ab initio, é preciso esclarecer que o termo “investimento” pode ter significados diversos, dependendo do contexto em que é utilizado. Um deles é o contexto jurídico, na qual investimento está relacionado à propriedade e as regras relativas a esse instituto jurídico. Outro, um viés econômico. Neste caso, pode tomar são incapazes de solucionar a crise porque sucumbiram à mesma irracionalidade” (Sandbu, Martin. A Cure for the Eurozone’s Lehman Syndrome. Available at: <http://www.ft.com/cms/s/0/fe52b940-d59c11e1-af40-00144feabdc0.html#axzz21z3014CZ>. Acesso em 20 de junho de 2013). 190 Nesse sentido, recomendamos a leitura da seguinte obra: Posner, Richard. A Failure of Capitalism: The Crisis of ’08 and the Descent into Depression. Harvard University Press: Cambridge, 2009, pp. 75-116 e pp. 252-268. 120 forma de investimento direto (em fatores de produção, por exemplo). Por fim, tem-se uma perspectiva jurídico-econômica que envolve o processo de investimento em instrumentos financeiros, os intermediários financeiros e as normas jurídicas associadas. Para esta dissertação nos interessa a análise deste último. Outro ponto a ser esclarecido é que ao longo desta dissertação buscamos tratar o mercado financeiro como sinônimo de mercado de capitais. Entretanto, em realidade, o mercado de capitais é parte integrante do mercado financeiro, juntamente com o mercado de crédito, o mercado monetário e o mercado cambial. Mas a ideia por detrás desse tratamento colocando-os no mesmo patamar é que, como veremos, a ausência de credibilidade no mercado financeiro, responsável pela disponibilização de crédito, afeta diretamente o desempenho das ações das sociedades anônimas de capital aberto nas bolsas de valores. Em ambos os casos – mercado financeiro ou de capitais – as instituições financeiras possuem uma grande importância. Nos termos do artigo 17 da Lei n° 4.595/1964, serão consideradas instituições financeiras “as pessoas jurídicas públicas ou privadas, que tenham como atividade principal ou acessória a coleta, intermediação ou aplicação de recursos financeiros próprios ou de terceiros, em moeda nacional ou estrangeira, e a custódia de valor de propriedade de terceiros”, sendo equiparadas a estas “as pessoas físicas que exerçam qualquer das atividades referidas neste artigo, de forma permanente ou eventual” (artigo 17, parágrafo único). Diante dessa conceituação, as instituições financeiras no âmbito do direito brasileiro podem ser categorizadas conforme tabela abaixo: FIGURA 4 – CLASSIFICAÇÃO DAS INSTITUIÇÕES FINANCEIRAS Modalidades Admitidas no Direito Brasileiro Instituições Captadoras - Bancos Múltiplos com de Depósitos à Vista Carteira Comercial - Bancos Comerciais - Caixas Econômicas - Cooperativas de Crédito Instituições de - Bancos de Investimento Investimento - Fundos Mútuos - Clubes de Investimento - Carteiras de Investidores Categorias Funções Adquirem parte substancial de seus recursos mediante depósito à vista junto ao público em geral. Captam recursos mediante a venda ao público de ações e documentos 121 Estrangeiros Administradoras de Consórcio Bancos de Desenvolvimento - Sociedades de Crédito, Financiamento e Investimento - Sociedades de Crédito Imobiliário Companhias Hipotecárias Associações de Poupança e Empréstimos - Agências de Fomento - Sociedades de Crédito ao Microempreendedor Instituições Contratuais - Sociedades Seguradoras - Entidades Fechadas de Previdência Privada - Entidades Abertas de Previdência Privada Sociedades de Capitalização Sociedades Administradoras de Seguro-Saúde Instituições de - Bolsa de Valores Liquidação e Custódia - Bolsas de Mercadorias e Futuros - Sociedades Corretoras de Títulos e Valores Mobiliários Sociedades de Arrendamento Mercantil - Sociedades Corretoras de Câmbio - Agentes Autônomos de Investimento Representações de Instituições Financeiras Estrangeiras (em alguns casos) representativos de dívidas e investem mediante aquisição de ações, títulos de renda fixa e outros títulos e valores mobiliários, que podem ou não ser posteriormente comercializados no mercado secundário. Atraem fundos pela oferta de contratos de proteção de risco. Atuam com registro, processamento e liquidação das transações feitas entre as demais instituições financeiras. Fonte: Oliveira, Marcos Cavalcante de. Moeda, Juros e Instituições Financeiras: Regime Jurídico, pp. 100-101. Pela estrutura do mercado financeiro brasileiro percebe-se uma divisão no que diz respeito à delimitação do objeto de cada uma das instituições financeiras, diferentemente do que ocorre, por exemplo, nos Estados Unidos, na qual uma única 122 instituição financeira pode prestar um ou mais tipos de serviços bancários, principalmente após o Gramm-Leach-Blitey Act. 4.1.1 O Mercado Financeiro Desde o momento em que há em uma sociedade pessoas que gastem mais do que ganham (tomadores) ou que gastem menos do que ganham (poupadores) existirá um mercado financeiro, intermediado por uma instituição financeira. Os poupadores confiam seu dinheiro às instituições financeiras com a expectativa de, em troca, receber de volta, em data futura, com juros. Por outro lado, os tomadores demandam dinheiro para, no futuro, igualmente devolver com juros. Não é por outra razão que a lei faz referência à intermediação ou aplicação de recursos financeiros de terceiros. Dificilmente, uma instituição financeira intermedeia ou aplica recursos próprios. Com o passar do tempo e o desenvolvimento das atividades comerciais, as instituições financeiras passaram a ter um maior leque de responsabilidades. Por exemplo, o artigo 3° do Decreto-Lei n° 7.293/1945 instituiu o chamado depósito compulsório, com vistas ao controle de volume de créditos disponível no mercado, evitando, assim, o chamado efeito multiplicador da moeda escritural 191. Serve também como uma forma de combate à inflação (na medida em que diminui, de certa forma, a disponibilidade de dinheiro circulante na economia), um problema que sempre esteve presente, assombrando a economia brasileira por um longo período de tempo. 191 O efeito multiplicador, também denominado como o processo de criação de moeda pelas instituições financeiras comerciais, pode ser assim exemplificado: “suponhamos que um indivíduo deposite, em papel-moeda, um determinado valor em sua conta corrente. Para que isso fosse possível, naturalmente o Banco Central foi responsável por essa emissão de papel-moeda. O banco comercial, ao acolher esse depósito, por uma questão de probabilidade, sabe que pode emprestar parte desse dinheiro a um tomador final. Esse, por sua vez, ao receber o dinheiro, vai depositá-lo no mesmo banco ou em qualquer outro banco comercial. O banco que receber esse depósito, da mesma forma que o primeiro, pode emprestar uma parte do montante para outro tomador e assim sucessivamente. Ao final desse processo verificaremos que o montante inicial depositado em papelmoeda se multiplicou dentro da estrutura das instituições financeiras bancárias” (Passos, Carlos Roberto Martins; Nogami, Otto. Princípios de Economia. 5.ed.rev. Cengage Learning Edições: São Paulo, 2005, p. 486). 123 Com as Reformas Bancária (Lei n° 4.595/1964) e do Mercado de Capitais (Lei n° 4.728/1965, revogada integralmente pela Lei n° 6.385/1976), buscou-se contemplar tanto o modelo bancário europeu, ou seja, as instituições financeiras tem como função a captação e repasse de recursos, quanto o modelo bancário norteamericano, voltado à especialização (como se verifica, por exemplo, com os bancos de investimentos, de desenvolvimento, de fomento). E a vantagem deste último modelo é a impossibilidade de captação de recursos junto ao público em forma de depósitos à vista por algumas instituições financeiras. Seja por meio de financiamento às empresas para obtenção de fatores de produção, desenvolvimento de novos projetos ou até mesmo para adimplir com suas obrigações operacionais diárias, seja por meio de mútuo às pessoas físicas, o mercado financeiro visa exclusivamente aplicar o excedente de crédito na economia, estimulando o consumo pessoal e a produção e, consequentemente, promovendo o crescimento econômico. A instituição financeira, neste caso, é remunerada por meio do spread. Como corolário dessa atividade de empréstimo, as instituições financeiras podem eventualmente sofrer problemas de liquidez, afetando todo o sistema bancário (principalmente em função dos chamados certificados de depósitos interbancários192), na medida em que o prazo de maturação de seus passivos (dinheiro dos poupadores), como regra, são maiores do que seus ativos (dinheiro emprestado aos tomadores). A falta de liquidez no sistema financeiro por advir também em função da prática bancária de geração de crédito, que se utiliza da reserva fracionária como meio de criação de dinheiro (efeito multiplicador). Nessa mesma esteira, surge outro problema que diz respeito à alavancagem. E a alavancagem pode ser definida como razão ou índice de dívida das instituições financeiras e de seu patrimônio líquido. 192 Leciona Eduardo Fortuna que os certificados de depósitos interbancários “são títulos de emissão de instituições financeiras monetárias e não-monetárias que lastreiam as operações do mercado interbancário. Suas características são idênticas às de um CDB, mas sua negociação é restrita ao mercado interbancário. Sua função é, portanto, transferir recursos de uma instituição financeira para outra. Em outras palavras, para que o sistema seja mais fluido, quem tem dinheiro sobrando empresta para quem não tem” (Fortuna, Eduardo. Mercado Financeiro: Produtos e Serviços. 17.ed.rev. atual. Qualitymark: Rio de Janeiro, 2010, pp. 117-118). 124 E sob esse aspecto alerta Marcos Cavalcante de Oliveira que “quando os empréstimos de um banco começam a crescer muito mais rapidamente que seu patrimônio líquido, ou seja, quando aumenta a alavancagem do sistema financeiro, diminui a rede protetora dos depositantes contra as perdas eventuais, e, disso, novamente, podem advir crises de liquidez com destruição da moeda nacional” 193. Nesse ponto, ousamos discordar do referido autor, porquanto no auge das operações financeiras estruturadas imobiliárias nos Estados Unidos, algumas instituições financeiras estavam alavancadas na razão de 1:33, o que significa dizer que o valor dos seus ativos era 33 (trinta e três) vezes maior que seu patrimônio líquido. Qualquer queda significativa no lastro desses ativos, já possibilitaria um eventual problema de insolvência (e não de iliquidez). Assim, não obstante o exposto acima, diversas são às causas que podem levar ao colapso de uma instituição financeira, que, prima facie, possui uma responsabilidade social perante a sociedade, uma vez que tem um dever fiduciário perante o poupador. Essas causas podem ser originadas por conta de uma mágestão de sua carteira de ativos, ou, pela corrida bancária, ou pela má-gestão administrativa (fraude, geralmente inflando demonstrações financeiras), ou, principalmente, em apostas em mercados de alto risco (porém, com altos retornos sobre o investimento), cuja complexidade da operação impede o conhecimento exato das consequências de eventual inadimplemento. O Estado de Direito vigente no Brasil permite inferir que todos estão submetidos ao império da lei, inobstante as premissas constitucionais da livre iniciativa e da liberdade. A todos cabe o cumprimento da lei, observada as competências legislativas determinadas pela Constituição Federal de 1988. E a esse respeito, como órgãos máximos (normativos) dos agentes do mercado financeiro de crédito194, foi delegada a competência para editar normas de comportamento ao Conselho Monetário Nacional, “com a finalidade de formular a política de moeda e do crédito” (artigo 2° da Lei n° 4.595/1964). 193 Oliveira, Marcos Cavalcante de. Moeda, Juros e Instituições Financeiras: Regime Jurídico. 2.ed. Editora Forense: Rio de Janeiro, 2009, p. 105. 194 Como órgãos normativos colegiados também têm-se o Conselho Nacional de Seguros Privados e o Conselho de Gestão da Previdência Complementar, mas suas funções fogem do objetivo da presente dissertação. Por tal razão, não serão objeto de aprofundamento. 125 E para que sejam cumpridas suas finalidades, o Conselho Monetário Nacional deve, dentre seus principais objetivos com relação às instituições financeiras: (i) zelar pela sua liquidez e solvência; (ii) coordenar a política de crédito; (iii) regular sua constituição, funcionamento e fiscalização; (iv) determinar a percentagem máxima de empréstimo a um mesmo cliente ou grupo de empresas; (v) expedir normas de contabilidade; e (vi) delimitar seu capital mínimo (artigo 3° combinado com o artigo 4° da Lei n° 4.595/1964). No campo do mercado de capitais, a Lei n° 6.385/1976 dota o Conselho Monetário Nacional e o Banco Central do Brasil de certos poderes específicos na definição das políticas a serem seguidas pela Comissão de Valores Mobiliários. Em razão da importância das instituições financeiras, na medida em que proporcionam o equilíbrio do sistema financeiro como um todo, assevera Marcos Cavalcante de Oliveira195 que “poucos setores da atividade econômica são supervisionados tão de perto pelo Poder Público”, sendo objeto específico de “sete unidades especializadas na supervisão, auditoria e fiscalização das atividades exercidas pelos agentes do mercado financeiro: COAF – Conselho de Controle de Atividades Financeiras, CRSFN – Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional, BACEN – Banco Central do Brasil, CVM – Comissão de Valores Mobiliários, SUSEP – Superintendência de Seguros Privados, IRB – Brasil Re e SPC – Secretaria de Previdência Complementar”. O Conselho de Controle de Atividades Econômicas surgiu por meio da Lei n° 9.613/1998, com a finalidade de disciplinar, aplicar penas administrativas, receber, examinar e identificar as ocorrências suspeitas de atividades ilícitas. Basicamente, inseriu no ordenamento jurídico brasileiro o crime de lavagem de dinheiro, cujo tipo penal é consubstanciado nas condutas previstas no artigo 1°, caput, e §§ 1° e 2°, com nova redação dada pela Lei n° 12.683/2012. Por sua vez, o Conselho de Recursos do Sistema Financeiro é o órgão responsável por julgar, em segunda e última instância, os recursos interpostos das 195 Oliveira, Marcos Cavalcante de. Moeda, Juros e Instituições Financeiras: Regime Jurídico. 2.ed. Editora Forense: Rio de Janeiro, 2009, p. 70. Vale dizer que todas essas entidades supervisoras editam normas que se acumulam com os órgãos normativos, notadamente o Conselho Monetário Nacional no âmbito das instituições financeiras. 126 decisões relativas à aplicação de penalidades administrativas (artigo 1° do Decreto n° 91.152/1985). O Banco Central do Brasil, criado a partir da promulgação da Lei n° 4.595/1964 e substituindo a Superintendência da Moeda e do Crédito, é uma autarquia federal integrante do Sistema Financeiro Nacional. A par de seu poder normativo, referida Lei confere ao Banco Central do Brasil alguns deveres, a saber: (i) recolher os depósitos compulsórios e os depósitos voluntários à vista das instituições financeiras; (ii) exercer o controle sobre o crédito; (iii) exercer a fiscalização das instituições financeiras e aplicar as penalidades previstas; (iv) exercer permanente vigilância nos mercados financeiros e de capitais sobre empresas que, diretamente ou indiretamente, interfiram nesses mercados e em relação às modalidades ou processos operacionais que utilizem, dentre outros (artigo 10 combinado com o artigo 11 da Lei n° 4.595/1964). Além disso, ainda na seara de supervisão bancária, porém, no âmbito internacional, o Brasil, representado pelo Banco Central do Brasil196, é membro efetivo do Comitê de Basiléia (Basel Committee), órgão do Banco de Compensações Internacionais. Subscreveu os Princípios Fundamentais para uma Supervisão Bancária Eficaz (Core Principles for Effective Banking Supervision)197. Tais princípios foram primeiramente publicados pelo referido Comitê em 1997, em Hong Kong, tendo sido complementado ao longo do tempo, principalmente após a crise subprime de 2008. Na Conferência Internacional de Supervisores Bancários realizada em 2012, na Turquia, os bancos centrais aprovaram sua nova revisão, aumentando o número de princípios de 25 (vinte e cinco) para 29 (vinte de nove). 196 Muito embora há que entenda que o Conselho Monetário Nacional, o Banco Central do Brasil e a Comissão de Valores Mobiliários não são consideradas agências reguladoras, senão vejamos: “As leis que criaram tais entidades visaram a operacionalizar as diretrizes do Governo federal e conferir agilidade à sua atuação, no que diz respeito à matéria específica a elas outorgada. Porém, não buscaram o verdadeiro conceito contemporâneo de ‘agências reguladoras’ que, certamente, vai muito além da desconcentração e descentralização. Os limites dos atributos legalmente conferidos a CMN, Bacen e CVM não possibilitam que sejam qualificados de ‘agências administrativas reguladoras’” (Moreira, Egon Bockmann. Conselho Monetário Nacional, Banco Central do Brasil e Comissão de Valores Mobiliários. Revista de Direito Bancário, n. 6. Editora Revista dos Tribunais: São Paulo, set./dez. 1999, p. 150). 197 Referido documento também foi subscrito por outros 60 (sessenta) bancos centrais. Para ver a relação completa: <http://www.bis.org/about/orggov.htm#P24_1838>. Acesso em 24 de junho de 2014. 127 Não obstante seu caráter de soft law, os Princípios Fundamentais para uma Supervisão Bancária Eficaz buscam estabelecer um conjunto de padrões e regras de conduta mínimos no que diz respeito tanto à supervisão bancária quanto à regulação bancária mundiais, de modo que seja possível minimizar os impactos ou, ainda, reduzir a probabilidade de colapsos dos sistemas financeiros globais. Vê-se que, no âmbito internacional, também se busca elaborar ações positivas do Estado, por meio de suas agências regulatórias. Todavia, o documento estabelece algumas pré-condições e, sem elas, dificilmente, os governos serão capazes de responder de forma eficaz às condições externas que podem afetar negativamente não só suas instituições financeiras como também o sistema bancário. São elas: (i) politicas macroeconômicas sólidas e sustentáveis; (ii) infraestrutura bem desenvolvida para a formulação de políticas de estabilidade financeira; (iii) infraestrutura pública bem desenvolvida; (iv) procedimentos claros para a gestão de crises, recuperação e resolução de problemas; (v) nível apropriado de proteção sistêmica (ou rede de segurança pública); e (vi) efetiva disciplina do mercado. Vale mencionar, por fim, que a Resolução do Conselho Monetário Nacional n° 2.197/1995, autorizou a “constituição de uma entidade privada, sem fins lucrativos, destinada a administrar mecanismos de proteção a titulares de crédito contra instituições financeiras” (artigo 1°), até o valor máximo de R$20.000,00 (vinte mil reais), observados os critérios estabelecidos nas alíneas do artigo 2°, § 2° do Anexo II à Resolução do Conselho Monetário Nacional n° 2.211/1995. Surge, então, no cenário financeiro o Fundo Garantidor de Crédito198, na qual todas as “instituições financeiras e as associações de poupança e empréstimo em funcionamento no País que: (i) recebem depósitos à vista, a prazo ou em contas de poupança; (ii) efetuem aceite em letras de câmbio; e (iii) captam recursos através da distribuição de letras imobiliárias e letras hipotecárias” (artigo 6° da Resolução do Conselho Monetário Nacional n° 2.211/1995), serão associadas da entidade e dela 198 Em verdade, o Fundo Garantidor de Crédito apenas tomou contornos com o advento da Resolução do Conselho Monetário Nacional n° 2.211/1995, com a aprovação do seu Estatuto e Regulamento. 128 participarão como contribuintes, exceto as cooperativas de crédito e as seções de crédito das cooperativas. Contudo, nem todos os créditos serão objeto de garantia proporcionada pelo Fundo Garantidor de Crédito. Estão incluídos desse regime somente: (i) os depósitos à vista ou sacáveis mediante aviso prévio; (ii) os depósitos de poupança; (iii) os depósitos a prazo, com ou sem emissão de certificado; (iv) as letras de câmbio; (v) as letras imobiliárias; e (vi) as letras hipotecárias. O gatilho para utilização dos recursos arrecadados pelo Fundo Garantidor de Crédito será ativado na hipótese de decretação da intervenção, liquidação extrajudicial ou falência de instituições financeiras ou se reconhecido, pelo Banco Central do Brasil, o estado de insolvência de instituições que não estejam sujeitas ao regime de administração especial temporária das instituições financeiras, nos termos da Lei n° 2.321/1987. Não obstante toda a supervisão e regulação do sistema financeiro, restou notório alguns efeitos da crise subprime de 2008 no Brasil, na medida em que algumas instituições financeiras viram-se obrigadas a realizar operações societárias diversas199, aumentando ainda mais a aglomeração das atividades bancárias nas mãos de um pequeno grupo de instituições financeiras. Como consequência, concentra-se ainda mais os riscos do setor financeiro brasileiro, cenário pouco vantajoso mesmo sob a ótica interna (ausência de concorrência, por exemplo), na medida em que restou-se comprovado que nenhuma empresa é grande demais para quebrar. 4.1.2 O Mercado de Capitais A Comissão de Valores Mobiliários é o órgão responsável pela disciplina e fiscalização do mercado de capitais brasileiro, ou como prefere Nelson Eizirik 200, mercado de valores mobiliários. Entretanto, muito se debate acerca da legalidade 199 Por exemplo, a fusão entre o Banco Itaú e o Unibanco, ou a aquisição do Banco ABN AMRO pelo Banco Santander, ou, ainda, a incorporação da Nossa Caixa pelo Banco do Brasil. 200 Eizirik, Nelson. Reforma das S.A. e do Mercado de Capitais. 2.ed. Renovar: Rio de Janeiro, 1998, p. 161. 129 das regras por ela emanadas, em virtude do que estabelece o artigo 84, inciso IV da Constituição Federal. Seria, portanto, privativa do chefe do Poder Executivo a competência de “sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução”. Em assim sendo, a leitura da Constituição Federal de 1988 seria uma leitura bastante limitada, restritiva e pontual, sem se atentar a hermêneutica jurídica, uma vez que “além do decreto regulamentar, há outras formas de expressão de sua competência normativa, tais como resoluções, portarias, deliberações, instruções etc.”, ainda que “os efeitos destes últimos atos, diferentemente do regulamento, se restringem ao âmbito de atuação do órgão que os expede”201. O ordenamento jurídico brasileiro é um conjunto de regras interligadas umas as outras e, portanto, imprescindível uma análise sistemática e valorativa. Já mencionamos outrora que a ordem constitucional prestigia a liberdade econômica, ou seja, a livre iniciativa e o livre mercado, respeitados, entretanto, os valores sociais inseridos na Carta Magna. E uma forma de respeito desses valores sociais reside na existência de um Estado necessário, atuando de forma descentralizada, enquanto agente regulador, fomentador, fiscalizador e inibidor de abusos. A esse respeito, lecionam Alexandre Pinheiro dos Santos, Julya Sotto Mayor Wellisch e José Eduardo Guimarães Barros202 que: (...) uma vez retirado o caráter mítico e absoluto da ideia clássica da separação de poderes, a complexidade e autonomia das competências conferidas aos órgãos reguladores em nada contraria a divisão de funções estabelecida pelas constituições contemporâneas e os valores do Estado de Direito que, afinal constituem o principal parâmetro da admissibilidade ou não do exercício de distintas funções pelo mesmo órgão ou entidade pública. As complexas competências normativas das quais a CVM e diversos outros órgãos reguladores (...) são dotados fortalecem o Estado de Direito, uma vez que, ao retirar do emaranhado das lutas políticas a 201 Nohara, Irene Patrícia. Direito Administrativo. 3.ed. Atlas: São Paulo, 2009, p. 33. Santos, Alexandre Pinheiro; Wellisch, Julya Sotto Mayor; Barros, José Eduardo Guimarães. Notas sobre o Poder Normativo da Comissão de Valores Mobiliários: CVM na Atualidade. In: WALD, Arnoldo (coord.). Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais. Vol. 34. Editora Revista dos Tribunais: São Paulo, 2007, p. 26. 202 130 regulação de importantes atividades sociais e econômicas, atenuando a concentração de poderes na Administração Pública Central, alcançam, com melhor proveito, o escopo maior da separação dos poderes, qual seja, o de garantir eficazmente a segurança jurídica, a proteção da coletividade e dos indivíduos empreendedores de tais atividades ou por elas atingidos, mantendose sempre a possibilidade de interferência do Legislador. Superada essa controvérsia, a Comissão de Valores Mobiliários regula e fiscaliza o mercado de capitais, que, da mesma forma que o mercado financeiro, depende do regular funcionamento das instituições financeiras. Pedro Carvalho de Mello203, acerca do mercado financeiro e sua capacidade de contribuir com o desenvolvimento do mercado de capitais de um país, entende que ambos são importantes nas seguintes medidas: (i) contribuem para a expansão do volume total de poupança do país, na medida em que a intermediação financeira pode criar para o público instrumentos de poupança atraentes com respeito a prazo e liquidez; e (ii) torna mais eficiente a transformação dos fundos poupados em capital produtivo, a partir de uma (a) alocação mais eficiente do total da riqueza, por meio de mudanças na sua composição e propriedade, ocasionando um fortalecimento da produtividade do estoque existente de capitais e (b) pelo incentivo a uma alocação mais eficiente dos novos investimentos, permitindo a transferência de recursos para os setores produtivos nos quais exista grande capacidade empresarial. No entanto, diferentemente do mercado financeiro, o mercado de capitais conta com a atuação de múltiplos intermediários financeiros (diferente, refrise-se da ideia de intermediação financeira), como agências de rating, fundos de investimentos de qualquer espécie e seguradoras de valores mobiliários, com vistas a efetuar: operações que não apresentam a natureza de negócios creditícios, mas que visam, basicamente, a canalizar recursos para as entidades emissoras – principalmente sociedades anônimas abertas –, através de capital de risco, mediante a emissão pública de valores 203 Mello, Pedro Carvalho de. Mercado de Capitais e Desenvolvimento Econômico. In: Castro, Hélio Oliveira Portocarrero de (coord.). Introdução ao Mercado de Capitais. IBMEC: Rio de Janeiro, 1979, pp. 26-27. 131 mobiliários. Enquanto nas operações bancárias típicas são realizadas operações de financiamento, de empréstimos, no mercado de capitais ocorrem principalmente negócios de “participação”, uma vez que o retorno do investimento por parte do acionista está em regra relacionado à lucratividade da companhia emissora de títulos204. Ainda que a diferenciação acima delineie alguns traços diferenciadores do mercado financeiro e do mercado de capitais, restringi apenas na comercialização de ações, também considerados valores mobiliários. Mas o mercado de capitais vai além de simples negociações de ações. Há uma efetiva negociação de valores mobiliários, nos termos do artigo 2° da Lei n° 6.385/1976, com custos operacionais menores e sem intermediação bancária. A ausência de intermediação bancária, importante ressaltar, não significa dizer que não há atuação de instituições financeiras (em realidade, podem atuar como underwritters, ou seja, como responsáveis pela colocação dos valores mobiliários no mercado205 e, em função disso, são remunerados). De fato, a participação de instituições financeiras em operações públicas206 no mercado de capitais é obrigatória, nos termos do artigo 19, § 4° da Lei 6.385/1976 e do artigo 3°, § 2° da Instrução da Comissão dos Valores Mobiliários n° 400/2003. 204 Eirikiz, Nelson; Gaal, Ariádna B.; Parente, Flávia; Henriques, Marcus de Freitas. Mercado de Capitais: Regime Jurídico. 3.ed.rev.atual. Renovar: Rio de Janeiro, 2011, p. 8. 205 Essa colocação pode ser dar de 03 (três) formas, a saber: (i) melhores esforços; (ii) firme e (iii) do tipo standby. 206 Nos termos do artigo 3° da Instrução da Comissão dos Valores Mobiliários n° 400/2003: “são atos de distribuição pública a venda, promessa de venda, oferta à venda ou subscrição, assim como a aceitação de pedido de venda ou subscrição de valores mobiliários, de que conste qualquer um dos seguintes elementos: I – a utilização de listas ou boletins de venda ou subscrição, folhetos, prospectos ou anúncios, destinados ao público, por qualquer meio ou forma; II – a procura, no todo ou em parte, de subscritores ou adquirentes indeterminados para os valores mobiliários, mesmo que realizada através de comunicações padronizadas endereçadas a destinatários individualmente identificados, por meio de empregados, representantes, agentes ou quaisquer pessoas naturais ou jurídicas, integrantes ou não do sistema de distribuição de valores mobiliários, ou, ainda, se em desconformidade com o previsto nesta Instrução, a consulta sobre a viabilidade da oferta ou a coleta de intenções de investimento junto a subscritores ou adquirentes indeterminados; III – a negociação feita em loja, escritório ou estabelecimento aberto ao público destinada, no todo ou em parte, a subscritores ou adquirentes indeterminados; ou IV – a utilização de publicidade, oral ou escrita, cartas, anúncios, avisos, especialmente através de meios de comunicação de massa ou eletrônicos (páginas ou documentos na rede mundial ou outras redes abertas de computadores e correio eletrônico), entendendo-se como tal qualquer forma de comunicação dirigida ao público em geral com o fim de promover, diretamente ou através de terceiros que atuem por conta do ofertante ou da emissora, a subscrição ou alienação de valores mobiliários”. 132 Outra diferença entre os mercados financeiros e mercados de capitais é que, como regra, neste último, o emissor do valor mobiliário não tem a obrigação de restituir o investidor pelos recursos empreendidos. Sua obrigação é remunerá-lo, conforme estabelecido em contrato (em caso de emissão particular) ou prospecto (em caso de emissão pública), e nos limites do sucesso do empreendimento. Por isso que se atribuiu ao mercado de capitais a característica de um mercado de risco, porquanto não se pode prever o resultado financeiro do empreendimento. A remuneração do investidor pode ser fixa ou variável. Será fixa nas hipóteses de emissão de títulos de dívida. Ou seja, ao subscrever a escritura de emissão de debêntures, por exemplo, o debenturista é titular dos créditos subscritos e desde já conhece os termos e condições sob as quais foram emitidas, incluindo a quantidade, a destinação dos recursos, o pagamento da remuneração e a periodiciodade de pagamento dos juros, prazo das debêntures, as garantias em caso de inadimplência e, em certos casos, os fatores de risco. Por sua vez, a remuneração variável ocorrerá: (i) nos casos envolvendo negociação de ações em bolsa de valores, sujeitas à flutuação de suas cotações ou também (ii) nas hipóteses de pagamento de dividendos das sociedades anônimas, na medida em que seus detentores tornam-se acionistas destas sociedades. Se não bastasse, o mercado de capitais também procura diluir o risco do financiamento entre todos os investidores, o que não ocorre no mercado financeiro. Adicionalmente, os valores mobiliários são, via de regra, padronizados (ainda que haja a possibilidade de emissão dos valores mobiliários em diferentes classes ou séries) passíveis de negociações em massa no mercado secundário207, não havendo qualquer ingresso de recursos na sociedade emissora. 207 Difere, portanto, do mercado primário na medida em que é nesse ambiente que “ocorrem as emissões públicas de novos valores mobiliários, mediante a mobilização da poupança popular. É no mercado primário que se atende à finalidade principal do mercado de capitais, que é a de permitir a captação de recursos do público. Os recursos são canalizados diretamente para as entidades emissoras, que poderão, então, utilizá-los em seus projetos de investimentos” (Eirikiz, Nelson; Gaal, Ariádna B.; Parente, Flávia; Henriques, Marcus de Freitas. Mercado de Capitais: Regime Jurídico. 3.ed.rev.atual. Renovar: Rio de Janeiro, 2011, p. 10). 133 Diante dessa dinâmica dos mercados de capitais, é que à Comissão de Valores Mobiliários, orientada pelo interesse público, persegue a proteção dos investidores, porquanto são os quem aplicam seus recursos nos valores mobiliários. E é por isso que, principalmente nas emissões públicas, a Comissão de Valores Mobiliários, por meio de suas instruções normativas, prestigia a transparência, a divulgação de fatos relevantes no que diz respeito à sociedade emissora, a divulgação dos possíveis fatores de risco que possam prejudicar os rendimentos dos investidores, além de coibir a prática de atos de manipulação do mercado, por meio da utilização de informações privilegiadas, ou de “vendas casadas”, impondo, assim, a segregação de atividades dentro de uma mesma instituição financeira (mais conhecido como chinese wall). A regulação, todavia, não significa eliminação de todos os riscos, porquanto é inerente ao mercado de capitais; mas, de certa forma, pretende proteger sua capacidade funcional, por meio da manutenção de instituições confiáveis, buscando construir um mercado eficiente. Nesse sentido, Siegfried Kümpel argumenta que: A proteção da capacidade funcional visa à eficiência das instituições ligadas ao Mercado de Capitais, bem como dos mecanismos de realização das operações com valores mobiliários. Ela também se refere à proteção da confiança dos investidores na capacidade funcional do mercado e de sua integridade. Esta proteção da confiança é necessária para a preservação e o aumento de capitais para investimento nas bolsas, por sua vez necessários para os investimentos na economia208. Não obstante a atuação dos órgãos regulatórios, o capital especulativo ainda é bastante presente no mercado de capitais, principalmente nas economias de mercado consideradas essencialmente livres, colaborando ainda mais para a existência de crises. 208 Kümpel, Siegfried. Direito do Mercado de Capitais: Do Ponto de Vista do Direito Europeu, Alemão e Brasileiro – Uma Introdução. Renovar: Rio de Janeiro, 2007, pp. 21-22. 134 4.2 CAPITAL ESPECULATIVO E SUA RELAÇÃO COM AS CRISES É possível inferir que a especulação é um fenômero que surgiu no momento em que houve a ruptura do padrão-ouro – padrão monetário adotado internacionalmente –, passando a viger o regime de flutuação cambial? Ou será que tal fenômeno é resultado de um processo de abertura dos mercados e a transformação nas estruturas societárias das empresas? Realmente é uma tarefa bastante difícil determinar qual a real causa da origem da especulação209, mas entendemos que o capital especulativo (portanto, não especulação) está diretamente relacionado com a transformação societária das empresas que viram no mercado de capitais uma grande oportunidade de capitalização, sem a necessária intermediação financeira e os custos de capital decorrentes. De fato, com a abertura dos mercados, os países se sentiam à vontade em acolher companhias multinacionais e investidores estrangeiros que buscavam investimentos de longo prazo. Diferentemente, investimentos de curto prazo e fluxo de portfólios (também chamados de hot money) era compreendidos de forma completamente diferente, isto é, como uma forma ou fonte de instabilidade ao invés de um efetivo crescimento econômico. E por isso que Amartya Sen disse em uma entrevista a Giuliano Guandaline que “o crescimento não deve ser um fim em si mesmo, mas um meio de alcançar avanços sociais e beneficiar a população”210. A eclosão da Primeira Guerra Mundial e a necessidade de financiamento do conflito armado – feito, diga-se de passagem, por meio de emissão de papel209 Nas lições de Marcos Cavalcante de Oliveira, a especulação “é a assunção de riscos mediante a aquisição de instrumentos financeiros para revendê-los com lucro”, assumindo “riscos com o seu patrimônio, mas ele não adquire o título ou valor mobiliário porque deseja o fluxo de caixa prometido no instrumento. Ele compra porque espera que o valor desse título suba em tempo tal que possa ser vendido por um preço que lhe permita realizar o lucro desejado. Ou, então, vende, porque aposta que o preço vai cair e quer se ver livre do papel enquanto consegue preço maior. O especulador no mercado financeiro assume o risco de que os preços irão mover-se numa direção que lhe permita obter lucros rápidos, graças à habilidade de conhecer melhor os mercados do que a maioria dos outros agentes” (Oliveira, Marcos Cavalcante de. Moeda, Juros e Instituições Financeiras: Regime Jurídico. 2.ed. Editora Forense: Rio de Janeiro, 2009, p. 45). 210 Guandalini, Giuliano. Mercados, Justiça e Liberdade. Veja. pp. 17-21, 02 de maio de 2012. 135 moeda sem lastro no ouro – alterou o regime internacional permitindo taxas de câmbio flutuantes para conter a alta dos preços e a inflação. Sem muito mistério, as taxas de câmbio flutuantes trazem movimentos especulativos interessantes se pensar que se aposta em ganhos (valorização) ou em perdas (desvalorização) da moeda de um determinado país. Entretanto, esse assunto é inerente ao mercado cambiário e, portanto, fora do escopo da presente dissertação. Por tal razão, limitarnos-emos apenas em realizar apenas esses comentários. A transformação das limited liability companies (equivalente às sociedades limitadas brasileiras) em public-held companies (equivalente às sociedades anônimas abertas brasileiras) nos Estados Unidos – e em menor grau no Brasil – permitiu que o capital-dinheiro passasse a ter contornos de capital-fictício, personalizado a partir da oferta pública inicial (initial public offer) e, posteriormente, eventual emissão de outros valores mobiliários. De certa forma, a especulação cambial assemelha-se ao capital especulativo, quando valores mobiliários são negociados, principalmente, no mercado secundário. Senão vejamos. Após a oferta pública inicial de ações, cujo prospecto determina o valor nominal de venda das ações, o valor das ações será formado conforme variação de preço na bolsa de valores (valor de mercado), o que estimula movimentos especulativos. Assim, por exemplo, uma sociedade anônima querendo alavancar seu patrimônio por meio do aumento no valor de mercado de suas ações, divulga alguma descoberta ou um investimento ao mercado. Muitos investidores, provavelmente, comprarão ações dessa sociedade anônima com vistas a lucrar com a venda dessas ações após um determinado aumento. Concretamente, podemos mencionar a Óleo e Gás Participações S.A. (mais conhecida como OGX), empresa do Grupo EBX, de Eike Batista, atuando nas áreas de exploração e produção de petróleo e gás natural, que se capitalizou e valorizou suas ações a partir da “venda” de expectativas ao público, cenário este revertido no momento em que, após o período exploratório concedido pela Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis, descobriu-se um emaranhado de poços secos, o que fez com que esta e outras empresas do Grupo EBX perdessem valor de mercado. 136 Para ilustrar outro caso real, bancos de investimentos tais como Goldman Sachs, Deustche Bank e Morgan Stanley, ao perceberem que o mercado imobiliário norte-americano iria entrar em colapso, passaram a comprar instrumentos financeiros (credit default swaps) para se proteger contra (bet against) as obrigações de dívidas de crédito (colaterallized debt obligations) que eles mesmos vendiam a seus clientes211. Essa operação, na linguagem financeira, é conhecida por “venda a descoberto”, que, diga-se de passagem, não há qualquer regulação específica, nem mesmo no Brasil. Acerca desses produtos financeiros, trataremos mais detalhadamente no item a seguir. A consequência disso, ou seja, do capital especulativo é bastante esclarecida por David F. Carvalho212, nos seguintes termos: Acontece que o movimento autônomo do valor dos títulos de propriedade em geral – sejam públicos ou privados – reforça a aparência deles constituírem capital real ao lado do capital fictício ou do direito que possam configurar. Na verdade, com o desenvolvimento dos mercados financeiros organizados e regulados, os títulos de propriedade em geral circulam como se fossem mercadorias, com os seus preços de mercado sendo determinados diversamente do nominal – sem que isso altere o valor do capital real, embora se modifique sua valorização – já que os preços de mercado dos ativos flutuam com o nível e o grau de confiança sobre as expectativas dos rendimentos a que os títulos dão direito. 211 Manzie Chinn e Jeffry Frieden narram que: “On April 16 2010 the SEC charged Goldman Sachs with working together with hedge fund manager John Paulson to create securities designed to fail if the housing market declined, so that Paulson could bet against them. Goldman Sachs then sold those securities to its clients (…) without disclosing that the securities were in fact expected to fail”. Tradução livre da autora: “Em 16 de abril de 2010, a SEC multou o Goldman Sachs por ter trabalhado em conjunto com o administrador de um fundo de hedge, John Paulson, para criar valores mobiliários desenhados para falhar se o mercado imobiliário entrasse em colapso, de modo que Paulson poderia apostar contra eles. O Goldman Sachs, em seguida, vendeu esses valores mobiliários aos seus clientes (...) sem revelar que os valores mobiliários iriam, de fato, falhar” (Chinn, Manzie; Frieden, Jeffry. Lost Decades: The Making of America´s Debt Crisis and the Long Recovery. WW Norton & Company: New York, 2011, p. 95). 212 Carvalho, David F. Globalização Financeira, Mercados Especulativos e Crescimento Econômico em Marcha Lenta. Disponível em: <http://www.naea.ufpa.br/novosite/paper/114>. Acesso em 25 de junho de 2014. 137 O que se extrai do capital especulativo é que ele não se reveste em contrapartida produtiva, em termos de geração de riqueza para a sociedade. Pelo contrário, a crescente valorização artificial do capital fictício é uma das causas das maiores crises financeiras dos últimos tempos, porquanto “as mesmas forças de mercado que impulsionam a expansão valorativa do capital fictício na fase da prosperidade, são também vulneráveis a choques e reversões da acumulação real na fase de crise, desaceleração e depressão”213. Ainda mais depois da crise subprime de 2008, resta indagar-nos: quem precisa do mercado de capitais? 4.2.1 A Crise Subprime de 2008 A crise subprime de 2008, de fato, não teve apenas consequências negativas. O lado positivo da crise foi revelar a fragilidade do sistema financeiro internacional e a urgência no desapego da ideologia capitalista do laissez-faire. Nos Estados Unidos, foi promulgado o Dodd-Frank Wall Street Reform and Consumer Protection Act, de 21 de julho de 2010. No Brasil, foram editadas algumas medidas fiscais e monetárias esparsas, conforme já tivemos a oportunidade de apontar anteriormente neste Capítulo. Já no âmbito da União Europeia promulgou-se: (i) o Regulamento das Infraestruturas do Mercado Financeiro (2012) e (ii) a Diretiva dos Mercados de Instrumentos Financeiros (2014), mais conhecida como DMIF II, ainda pendente de aprovação final pelo Parlamento Europeu e pelo European Securities and Markets Authority – órgão regulatório do mercado de capitais da União Europeia. Vale dizer, que a DMIF I está disposta na Diretiva 2004/39/CE de 21 de abril (e entrou em vigor em 2007). Mas com a crise subprime de 2008, ela foi "reformulada". Assim, em 2011, a Comissão Europeia propôs uma nova revisão desta Diretiva, ou seja, a DMIF II, com implementação prevista para 2017. 213 Carvalho, David F. Globalização Financeira, Mercados Especulativos e Crescimento Econômico em Marcha Lenta. Disponível em: <http://www.naea.ufpa.br/novosite/paper/114>. Acesso em 25 de junho de 2014. 138 Entretanto, para se chegar a esse “nível” de regulação – inclusive no âmbito internacional com a aprovação do Acordo de Basiléia III do Banco de Compensações Internacionais – foi preciso uma crise que culminou no colapso dos mais importantes conglomerados financeiros norte-americanos (sendo o Lehman Brothers o primeiro deles – os demais, em decorrência de corridas bancárias, tanto no sentido de saque generalizado dos depósitos à vista quanto no sentido de venda dos valores mobiliários). Não obstante as peculiaridades do ordenamento jurídico norte-americano, procuraremos aqui expor os principais acontecimentos desse episódio fatídico. Em verdade, a crise subprime de 2008 não foi a única crise com desastrosa magnitude. A Grande Depressão, em 1929, causou bastante estrago na economia norte-americana, mas sem a mesma dimensão da de 2008, porquanto naquela época os mercados em geral não era tão dependentes uns dos outros. Como resposta imediata à Grande Depressão, o Congresso aprovou o Glass Steagall Act (Banking Act of 1933), visando regular o setor financeiro. O maior triunfo dessa lei foi à proibição da especulação com a poupança dos clientes das instituições financeiras. Em outras palavras, o Glass Steagall Act impediu que os bancos comerciais negociassem valores mobiliários com os depósitos à vista de seus clientes (Seções 19 e 21), com exceção de investimentos em títulos da dívida pública federal. Essa incumbência passou a ser exclusiva dos bancos de investimentos e das sociedades corretoras de valores mobiliários. E a preocupação dessa segregação parecia clara para os responsáveis pela sua elaboração: evitar eventuais conflitos de interesse214. Nestes termos, Glass and Steagall, as well as others, accused banks of partnering with affiliates which later sold securities to repay banks’ debts, or accepted loans from banks to buy securities. They also worried that 214 Para evitar outras formas de conflito de interesses, a Seção 32 do Glass Steagall Act dispôs que: “officers and directors of commercial banks (banks part of the Federal Reserve System) were barred from holding advisory positions in companies whose primary purpose was trading securities” (Tradução livre da autora: “administradores e diretores de bancos comerciais (bancos integrantes do Sistema do Banco Central) ficaram impedidos de assumir cargos de consultoria em empresas cujo objetivo principal era negociar valores mobiliários”). 139 banks engaged in risk-taking speculation, rather than investing in corporations to promote growth215. Adicionalmente, o Glass Steagall Act criou uma espécie de fundo garantidor (Federal Deposit Insurance Corporation), com vistas a proteger os bancos comerciais (e, portanto, sociedades corretoras de valores mobiliários e bancos de investimentos estariam excluídos dessa proteção) contra as chamadas corridas bancárias216. Entretanto, quando Ronald Reagan assumiu a presidência dos Estados Unidos, na década de 1980, iniciou-se um movimento de desregulamentação da “indústria” financeira, como se referiam a Wall Street naquela época. E esse período de desregulamentação durou cerca de 30 (trinta) anos. Contrariando o disposto no Glass Steagall Act nomeou como Secretário do Tesouro norte-americano, o então presidente do banco de investimento Merill Lynch, Donald Regan, que acabou influenciando a promulgação, pelo presidente Bill Clinton, do Gramm-Leach-Blitey Act (Financial Services Modernization Act of 1999), revogando parcialmente o Glass Steagall Act. Algumas foram às consequências dessa nova legislação, a saber: (i) permitiu a consolidação dos bancos comerciais, bancos de investimentos, sociedades corretoras de valores mobiliários e companhias seguradoras217; (ii) retirou da agência reguladora norte-americana ou qualquer outra agência reguladora do setor financeiro, a competência de regulá-lo; e (iii) permitiu operações de derivativos, como forma de deixar o mercado financeiro mais seguro 218. Não 215 Tradução livre da autora: “Glass e Steagall, assim como outros, acusaram os bancos de parceria com afiliadas que mais tarde venderiam valores mobiliários para pagar dívidas dos bancos, ou empréstimos recebidos dos bancos para comprar valores mobiliários. Eles também temiam que os bancos se envolvessem em especulações de risco, ao invés de investir em empresas para promover o crescimento”. Disponível em: <http://www.nerdwallet.com/blog/banking/glass-steagall-actexplained/>. Acesso em 25 de junho de 2014. 216 Diferentemente do Brasil, o fundo garantidor norte-americano, atualmente, garante depósitos até o montante de US$250,000 (duzentos e cinquenta mil dólares). 217 Com isso, a fusão entre as empresas Citigroup (banco comercial) e Travellers Group (companhia seguradora), ocorrida antes da vigência do Gramm-Leach-Blitey Act, foi considerada legal. 218 Inclusive, e corroborando a ideologia de desregulamentação norte-americana, em 2000, também sob a presidência de Bill Clinton, foi promulgado o Commodities Futures Modernization Act. Essa lei dispôs sobre os derivativos over-the-counter (mercados de balcão), prescrevendo que operações de derivativos entre “partes sofisticadas” (possivelmente entre instituições financeiras e fundos de 140 obstante, manteve a regra sobre as instituições financeiras que seriam garantidas pelo governo norte-americano, por meio do Federal Deposit Insurance Corporation. Ao tempo em que George W. Bush assumiu a presidência dos Estados Unidos, em 2001, os intermediários financeiros (os conglomerados financeiros e outras companhias garantidas pelo governo norte-americano para concessão de empréstimos imobiliários), as seguradoras de títulos e valores mobiliários, as corretoras de valores mobiliários e as agências de rating eram responsáveis por grande parte das operações no mercado imobiliário. O que era uma simples relação de empréstimo entre mutuante e mutuário acabou por se tornar uma complexa e estruturada operação financeira, que, a princípio, não parecia inofensiva e dentro da legalidade: FIGURA 5 – OPERAÇÃO FINANCEIRA ESTRUTURADA Pela sistemática regular de mercado, quando um indivíduo tem interesse em se tornar proprietário de um bem imóvel e não há recursos próprios e suficientes para tanto, esse indivíduo recorre a empréstimos bancários. Após a análise para a concessão do crédito para a compra da casa própria (american dream), a instituição investimentos) não serão consideradas como “futuro” ou “valores mobiliários”, sendo regulada pelas agências privadas (autoregulação). 141 financeira (mutuante) firmava um contrato de mútuo com o mutuário, utilizando-se uma hipoteca como garantia de pagamento das prestações219, tornando-se, assim, credora hipotecária do mutuário. Na hipótese de inadimplência do devedor hipotecário, a instituição financeira iniciava um processo de tomada da posse do imóvel hipotecado (foreclosure) para, posteriormente, revendê-lo, na tentativa de recuperar o valor mutuado. Todavia, a desvantagem de um empréstimo de longo prazo (geralmente em torno de trinta anos) é que a instituição financeira diminui sua capacidade de realizar mais empréstimos e, conseguintemente, obter mais lucros. A ausência de regulação (ou desregulamentação) dos mercados financeiro e de capitais norteamericano estimulou a capacidade inovativa e criativa dos intermediários financeiros. E essa capacidade trouxe consigo a falta de transparência, ou como prefere dizer alguns doutrinadores220, pelo erro de cálculo quanto à segurança desses novos instrumentos financeiros, ou, ainda, pela imprudência dos mutuários em não entender os riscos envolvidos nos contratos de empréstimos. Assim, como concomitantemente, forma transferir de o se risco capitalizar de em inadimplência curto –, prazo os – e, mutuantes “empacotaram” as hipotecas (mortgage-backed securities) em diferentes camadas (vide ilustração abaixo), cedendo-as aos bancos de investimentos, que passaram a ser os credores do fluxo de pagamento das hipotecas. FIGURA 6 – FLUXO DE PAGAMENTO DAS HIPOTECAS 219 Nos termos do artigo 1.419 do Código Civil, “nas dívidas garantidas por penhor, anticrese ou hipoteca, o bem dado em garantia fica sujeito, por vínculo real, ao cumprimento da obrigação”. 220 Nesse sentido ver: Posner, Richard. A Failure of Capitalism: The Crisis of ’08 and the Descent into Depression. Harvard University Press: Cambridge, 2009, p. 76. 142 Os cessionários221, ou seja, os bancos de investimentos criaram derivativos extremamente complexos (lembre-se que era proibida sua regulação), in casu, as obrigações de dívidas de crédito, lastreadas nas hipotecas compradas dos cedentes e passaram a vender aos investidores (fundos de hedge, fundos de pensão, outros bancos de investimentos e até mesmo governos de outros países), sob a promessa de altos retornos. Isso porque o mercado imobiliário norteamericano estava bastante aquecido à época e um constante aumento no preço dos imóveis se observava, porquanto imóveis são bens escassos, a procura era relativamente alta e o crédito disponível. Com o mercado aquecido, com a alta demanda por empréstimos hipotecários e com uma legislação favorável, o governo cada vez mais encorajava empresas como a Fannie Mae e o Freddie Mac a realizar mais e mais empréstimos, inclusive para os mais necessitados, chamados de empréstimos NINJA (no income, no job, no assets222). Tais empréstimos eram concedidos para indivíduos sem histórico de crédito ou altamente endividados. Por isso, foram denominados como subprime. Como consequência, estavam sujeitos a taxas de juros diferenciados e flutuantes, indexadas às taxas de juros pagas pelo governo federal em seus títulos de dívida pública. A desvantagem dessa indexação, por óbvio, causou oscilação nos valores mensais a serem pagos pelos indivíduos. Adicionalmente, lhes eram prometidos isenção da incidência de juros sobre o empréstimo por um período de tempo (entre dois a três anos). Referidas instituições financeiras, que eram garantidas pelo governo norte-americano, passaram a “empacotar” esses empréstimos nas operações de securitização de créditos223 em conjunto com os demais créditos considerados 221 Nos termos do artigo 286 do Código Civil, “o credor pode ceder o seu crédito, se a isso não se opuser a natureza da obrigação, a lei, ou a convenção com o devedor; a cláusula proibitiva da cessão não poderá ser oposta ao cessionário de boa-fé, se não constar do instrumento da obrigação”. 222 Tradução livre da autora: “sem renda, sem trabalho e sem bens”. 223 A securitização pode ser conceituada como um “processo através do qual uma variedade de ativos financeiros e não-financeiros (vamos chamá-los de ativos-base) são ‘empacotados’ na forma de Títulos (títulos financeiros negociáveis) e então vendidos a investidores. Os fluxos de caixa gerados pelos ativos-base são usados para pagar o principal e os encargos das securities além das despesas da operação. As securities, por seu lado, são lastreados pelos ativos e são conhecidas por ‘Asset Backed Securities’ (‘ABS’, expressão em inglês que significa Securities Lastreada por Ativos)” (Machado, Tiziane. Securitização de Recebíveis – O Que Tem de Atrativo?. Disponível em: 143 “bons” (vide ilustração acima). E para dar credibilidade a esses ativos, os bancos de investimentos contratavam agências de rating, para classificar os riscos de inadimplência desses ativos. A despeito de um patente conflito de interesses, a classificação desses ativos em sua pontuação mais alta (por exemplo, AAA224), os transformou em uma espécie de santo graal dos investimentos, especialmente para alguns fundos, cuja política de investimento restringe a aquisição de ativos abaixo de determinada nota. Quanto maior a nota de um ativo, menor a chance de inadimplência (menor risco de crédito), maior a demanda dos investidores e, portanto, maior receita aos bancos de investimentos (por meio do pagamento de comissões pelo seu papel de underwritter) e menor remuneração do capital investido aos investidores. Nesse sentido, as agências de rating falharam em não separar o joio do trigo (os “ativos bons” dos “ativos tóxicos”). Buscando oportunidades de negócios, as seguradoras de títulos de valores mobiliários criaram uma espécie de seguro contra a inadimplência dos muturários chamados de troca de créditos padrão (credit default swap). Assim, aqueles que detêm as obrigações de dívidas de crédito, podiam contratar com as seguradoras essas “garantias”, mediante pagamento de um prêmio trimestral. Isso porque os investidores passam a ser os legítimos credores dos mutuários. Nos termos do artigo 757 do Código Civil, “pelo contrato de seguro, o segurador se obriga, mediante o pagamento do prêmio, a garantir interesse legítimo do segurado, relativo a pessoa ou a coisa, contra riscos predeterminados”. Depreende-se, pois, que: (i) havia o pagamento do prêmio pelos investidores (ainda que trimestralmente); (ii) havia um interesse legítimo do segurado (proteção contra perdas futuras); e (iii) havia um risco predeterminado (inadimplência do mutuário). Vale dizer que o pagamento da remuneração aos investidores era realizado normalmente, desde que houvesse o pagamento regular do contrato de <http://www.animainfo.com.br/site/wp-content/uploads/2007/11/securitizacao.pdf>. Acesso em 25 de junho de 2014). 224 Cada agência de rating tem seu método de classificação próprio. 144 mútuo pelos mutuários. Em contrapartida, a remuneração do mutuante e dos bancos de investimentos era paga antecipadamente, ou seja, quando da assinatura do contrato de mútuo ou quando da securitização dos créditos, respectivamente 225. Havia, portanto, grande incentivo para uma atuação irresponsável. O mesmo raciocínio pode ser aplicado às agências de rating, uma vez que também não eram – e ainda continuam não sendo – reguladas. Como imputar responsabilidade nesses casos? Percebe-se que o mercado financeiro e de capitais norte-americano – muito embora, não seja estruturalmente diferente no Brasil – é singularmente segmentado, na qual cada intermediário financeiro desempenha um papel nas operações de securitização. E Liza Keyfetz226 discorre que: The mortgage industry argues that such segmentation creates benefits for lenders, investors, and borrowers. For lenders, securitization serves as a leveraging tool, allowing the mortgage originator to receive immediate repayment on loan originations from which to originate new loans. For investors, securitization of a subprime mortgage creates a new, diverse asset class with varied sensitivity and correlation to changes in interest rates. For borrowers, the increased liquidity of mortgages combined with access to a new 225 E a esse respeito, diversas foram as críticas quanto às formas de remuneração ou compensação dos executivos dos intermediários financeiros. Como foge ao escopo da presente dissertação, não vamos nos aprofundar nesse assunto. Mas o entendimento prevalecente era que “if shareholders want the CEO to take really enourmous risks, they will have to pay him really enourmous compensation to make his expected compensation equal to that of this peers”. Tradução livre da autora: “se os acionistas querem que o CEO assumam riscos realmente grandes, eles terão de pagarlhe uma indenização realmente vantajosa para fazer com que sua expectativa de compensação seja igual ao de seus pares” (Posner, Richard. Economic Analysis of Law. 8.ed. Aspen Publishers: New York, 2010, p. 564). 226 Tradução livre da autora: “A indústria da hipoteca argumenta que essa segmentação cria benefícios para credores, investidores e mutuários. Para os credores, a securitização serve como uma ferramenta de alavancagem, permitindo que o originador receba o pagamento imediato da originação dos empréstimos, a partir da qual se originam novos empréstimos. Para os investidores, a securitização de hipotecas subprime cria uma nova, diversificada classe de ativos, com sensibilidade variada e coligada às alterações nas taxas de juros. Para os mutuários, o aumento da liquidez das hipotecas combinadas com o acesso a uma nova fonte de capital permite, sem dúvida, um acesso ao crédito mais generalizado a juros baixos” (Keyfetz, Liza. The Home Ownership and Equity Protection Act of 1994: Extending Liability for Predatory Subprime Loans to Secondary Mortgage Market Participants. Disponível em: <http://www.kttlaw.com/images/news/keyfetz_home_ownership_equity_protection.pdf>. Acesso em 25 de junho de 2014). 145 source of capital arguably allows for more widespread access to credit and low interest. Contudo, a segmentação em comento provocou uma lacuna regulatória, culminando na crise subprime. No caso norte-americano, a lacuna se sentiu justamente pela ausência de regulação. Analisando o contexto brasileiro, a segmentação torna a regulação complexa, por conta da atuação conjunta de 03 (três) órgãos diferentes na produção normativa (Conselho Monetário Nacional, Banco Central do Brasil e Comissão de Valores Mobiliários). E, esse cenário reflete a teoria das escolhas trágicas, desenvolvida por Guido Calabresi e Philip Bobbitt 227. Ou seja, ao escolher uma situação “x”, desiste-se da situação “y” e essa desistência acarreta em um custo. Esse custo é a ausência de escolha pela parte vencida que não vê outra opção a não ser respeitar o Direito. Portanto, tendo em vista a fragilidade dos mercados financeiro e de capitais, o legislador brasileiro prestigiou a regulação em detrimento da liberdade sem limites, porquanto a alternativa disponível não era satisfatória. O endividamente excessivo e desnecessário dos indivíduos de uma sociedade – e que acabaram por perder suas residências para pagar o débito contraído junto às instituições financeiras – é apenas uma maneira superficial de promoção do crescimento econômico e do desenvolvimento social. Em entrevista para o documentário Trabalho Interno228, George Soros chegou à conclusão de que a desregulamentação do setor financeiro contou com significante apoio financeiro e intelectual, porquanto os intermediários financeiros apenas a defendiam em benefício próprio. 227 Para aprofundar no tema, recomendamos as seguintes leituras: Calabresi, Guido; Bobbitt, Philip. Tragic Choices. WW Norton & Co.: New York, 1978 e Holes, Stephen; Sustein, Cass R. The Cost of Rights: Why Liberty Depends on Taxes. WW Norton & Co.: New York, 1999. Criticando a teoria das escolhas trágicas, ver: Barry, Brian. Tragic Choices. Disponível em: <http://www.jstor.org/discover/10.2307/2380518?uid=3737664&uid=2134&uid=2&uid=70&uid=4&sid= 21104489584783>. Acesso em 14 de julho de 2014. 228 TRABALHO Interno. Direção: Charles H. Ferguson. Produção: Charles H. Ferguson e Audrey Marrs. Narrador: Matt Damon. Intérpretes: George Soros; Barney Frank; Lee Hsien Loong; Christine Lagarde; Eliot Spitzer e outros. Roteiro: Charles H. Ferguson. Música: Alex Heffes. Estados Unidos da Amércia: Sony Pictures Classics, 2010. 1 DVD (120MIN), Color. Produzido por Sony Pictures Classics. 146 No final das contas, a única conclusão que se chega é a total desconsideração do setor financeiro com o impacto que seus atos têm sobre a sociedade. No momento em que se percebeu uma queda vertiginosa nos preços das residências e os mutuários se viram com uma dívida maior que o valor de sua propriedade, os intermediários financeiros mantiveram suas operações em alta, entretanto, protegendo-se a si próprios, por meio de derivativos disponíveis no mercado (o tal do betting against). Por outro lado, os mutuantes simplesmente abandonaram os seus imóveis por insuficiente capacidade de adimplir com suas obrigações hipotecárias. Internamente tem-se a seguinte equação: com a inadimplência, o crédito tornou-se escasso. Reduziu-se tanto o consumo quanto à capacidade produtiva das atividades econômicas geradoras de riqueza. E, como em um círculo vicioso, uma alta taxa de desemprego. A poupança pessoal seria o modo pela qual esse círculo vicioso seria interrompido. Entretanto, a poupança pessoal, em especial os depósitos bancários (lembrando que outra forma de poupança pessoal é ser titular de ações de sociedades anônimas listadas em bolsa de valores), em grande parte, foi utilizada como capital especulativo das instituições financeiras. O resultado não poderia ser mais óbvio: When stock prices and specially housing prices plummet after their steep ascent fueled by cheap credit (as they had to do eventually because they had been driven up not by fundamentals economic changes but expectations that turned out to be mistaken), the market value of personal savings, concentrated in those risky assets, plummet too229. Externamente, os efeitos foram sentidos por conta da globalização. Sistemas bancários interconectados, venda de valores mobiliários a instituições financeiras e fundos de investimentos por meio de filiais dos intermediários 229 Tradução livre da autora: “Quando os preços das ações e, especialmente, os preços da habitação despencaram após uma alta elevada alimentada pelo crédito barato (como teria de ser, eventualmente, porquanto aumentaram não por mudanças nos fundamentos econômicos, mas em virtude de expectativas que acabaram por ser errôneas), o valor de mercado da poupança pessoal, concentrado nesses ativos de risco, também despencaram” (Posner, Richard. A Failure of Capitalism: The Crisis of ’08 and the Descent into Depression. Harvard University Press: Cambridge, 2009, p. 34). 147 financeiros ao redor do mundo e uma estrutura de pagamento das hipotecas em tranches, na qual quanto mais arriscado o investimento, maior o retorno; porém, menores as chances de ganhos reais na hipótese de inadimplência. A complexa teia formada ao redor das hipotecas não previu – ou preferiseu à omissão – que o mercado financeiro não suportaria uma inadimplência generalizada e que o nível de alavancagem das instituições financeiras, mea culpa do capital especulativo, não era suficiente para conter a crise que estava por se instaurar. A noção de que o mercado financeiro é racional, se esvaire a partir do entendimento de que um comportamento individual pode acarretar péssimos resultados quando coletivamente considerados. O que poderia ter sido uma mera recessão nos Estados Unidos acabou por alastrar em diversos países. 4.3 A RELAÇÃO DA LAW & ECONOMICS COM O MERCADO FINANCEIRO Não há como negar a influência que o Direito exerce sobre os fatores econômicos e vice-versa. E a evidência mais clara dessa assertiva pode ser exemplificada com a crise subprime de 2008. Mas será que a relação entre Direito e Economia é sempre de colaboração, de unidade de objetivos e percepções? O conflito entre Direito e Economia é explicado por Bruno Meyerhof Salama 230, conforme transcrito abaixo: Enquanto o Direito é exclusivamente verbal, a Economia também é matemática; enquanto o Direito é marcadamente hermenêutico, a Economia é marcadamente empírica; enquanto o Direito aspira ser justo, a Economia aspira ser científica; enquanto a crítica econômica se dá pelo custo, a crítica jurídica se dá pela legalidade. Isso torna o diálogo entre economistas e juristas inevitavelmente turbulento, e geralmente bastante destrutivo. 230 Salama, Bruno Meyerhof. O Que É “Direito e Economia”? In: Timm, Luciano Benetti (org.). Direito e Economia. Editora Livraria do Advogado: Porto Alegre, 2008, p. 49. 148 Enquanto a Economia prega princípios tais como valor, utilidade e 231 eficiência , o Direito dá ênfase à idéia de justiça social. O sistema jurídico pretende garantir a dignidade da pessoa humana por meio da justiça social de modo a alcançar os direitos fundamentais. Pela teoria econômica aplicada ao Direito, este deveria ser orientado à maximização da riqueza. De fato, a eficiência talvez seja uma das mais significativas premissas da análise econômica de um sistema jurídico. E uma das maiores contribuições da teoria econômica aplicada ao estudo do Direito é instigar a investigação sobre a forma pela qual as normas são produzidas dentro de um sistema jurídico como critério de avaliação de sua eficácia social. Richard Posner, juiz norte-americano responsável pelo surgimento da Law and Economics como disciplina autônoma, além de ser membro da Escola de Chicago, foi o autor de um livro chamado Economic Analysis of Law. Esse livro busca afirmar que a economia é uma poderosa ferramenta de análise de uma ampla gama de questões jurídicas e, portanto, seria possível sistematizar a aplicação do postulado econômico para todos os ramos do conhecimento jurídico. Entretanto, Richard Posner ressalva que “because economics cannot tell us whether the existing distribution of income and wealth is good or bad, just or injust – although it can tell us a great deal about the costs altering the existing distribution – the economists cannot issue mandatory prescriptions of social change”232. Assim, basicamente esta teoria prega que o Direito deve convergir com a racionalidade econômica, definindo direitos de propriedade e reduzindo os custos de transação. E a racionalidade econômica é uma ciência que estuda as escolhas racionais, na qual os recursos são limitados em relação às necessidades humanas. Isto significa que na busca incessante da satisfação dos desejos e interesses 231 Após ser severamente criticado por tal teoria, Richard Posner tornou-se pragmático reconhecendo que, “por mais que se tente justificar a defesa das liberdades individuais com base em critérios de eficiência (por exemplo, sustentando que no longo prazo o Estado Democrático de Direito promove o desenvolvimento econômico e as liberdades individuais), haverá casos em que a repulsa ao trabalho escravo, à exploração de menores, à tortura, às discriminações raciais, religiosas ou sexuais, etc. terá de ser feitas em bases outras que não a eficiência” (Salama, Bruno Meyerhof. O Que É “Direito e Economia”? In: Timm, Luciano Benetti (org.). Direito e Economia. Editora Livraria do Advogado: Porto Alegre, 2008, p. 59). 232 Tradução livre da autora: “porque a economia não pode nos dizer se a atual distribuição de renda e riqueza é boa ou má, justa ou injusta – muito embora ela possa dizer muito sobre os custos de alterar a distribuição existente – o economista não pode emitir prescrições imperativas para mudança social” (Posner, Richard. Economic Analysis of Law. 8.ed. Aspen Publishers: New York, 2010, p. 19). 149 individuais233, tal indivíduo vai se tornar parte no cenário social e harmonizar com os interesses de terceiros, gerando, portanto, benefícios coletivos. Por essa teoria, quando os Estados intervêem além de certos limites, isso gera, na solução de externalidades, custos tanto privados quanto sociais. Referidos custos serão certamente e significativamente injustos em determinadas situações, devido à natural ineficiência econômica da intervenção, que não permite o exercício da racionalidade econômica. Para comprovar sua hipótese, Richard Posner nos remete à teoria dos jogos, exemplificando com uma lei norte-americana que permite que as universidades disponibilizem o histórico escolar de seus alunos a potenciais empregadores, se o estudante assim autorizar a divulgação. Discorrendo sobre o caso, o autor chegou à conclusão que: If no student gave permission, an employer considering a job application from a college student would assume that the student had average grades – what else could he assume? Students with aboveaverage grades would be hurt by this assumption, so they would begin giving permission to their schools to release their transcripts. Eventually all students with grades above the midpoint would grant such permission. So now when an employer received an application from a student who had not released his transcript, the employer would assume that the student was in the middle of the lower half of the grade-point distribution, because everyone in the upper half would have released his grades. So every student in the third quartile (that is, in the upper half of the lower half of the grade distribution) would be disadvantaged by nondisclosure and would reveal his grades. Eventually only the student with the very lowest grades would have nothing to gain from disclosure – and his failure to disclose would reveal his rank as unerringly as if he had disclosed it234. 233 Importante ressaltar que o sentido de “interesses individuais” dado por Richardo Posner reflete o entendimento de que é tarefa da economia explorar as implicações de assumir que o homem é um maximizador racional de seus objetivos e satisfações na vida. (Posner, Richard. Economic Analysis of Law. 8.ed. Aspen Publishers: New York, 2010, p. 3). 234 Tradução livre da autora: “se nenhum aluno der permissão, o empregador ao considerar um pedido de emprego por um estudante universitário suporia que o aluno teve notas médias – o que mais ele poderia supor? Alunos com notas acima da média ficariam ressentidos por essa suposição, por isso, eles iriam começar a dar permissão para as suas escolas liberar seus históricos. Eventualmente, todos os alunos com notas acima da média concederiam tal permissão. Agora, 150 Richard Posner visa revelar que o estudo de comportamentos estratégicos evita que pessoas com preferências distintas ajam de forma diferente. Contudo, esclarece Lawrence E. Mitchell235 que: But this premise underlying the modern economic analysis of law – that efficiency for one is efficiency for all – may be overstated, at least in times of change and stress. Certainly it has been called into question by economic collapse following an era of substantial deregulation in which individuals and institutions were free to pursue their self-interest with a vengeance. The traditional economic analysis of law, by providing much of the intellectual underpinning for this deregulation, helped to lead to bad results because of its failure to question whether, how, and when microefficiency really does produce socially desirable economic results. Mas qual a relação de tudo isso com o mercado financeiro e de capitais? Ora, conforme dissemos no tópico anterior, a teia complexa e organizada das operações financeiras estruturadas baseou-se tão somente no instituto jurídico das hipotecas. De fato, a hipoteca é um instituto exclusivamente jurídico e disciplinado pelo Código Civil, principalmente nos artigos 1.419 a 1.430. E, nos termos do artigo 1.225, a hipoteca é um direito real. Portanto, sua força jurídica, enquanto garantia de negócios jurídicos, é inquestionável. Só que veremos que não é bem assim. quando um empregador recebe um pedido de emprego de um estudante que não deu autorização para a divulgação de seu histórico, o empregador suporia que o estudante estava na metade inferior da distribuição de notas, porque todo mundo na metade superior divulgaram suas notas. Assim, cada aluno do terceiro quadrante (ou seja, na metade superior da metade inferior da distribuição de notas) estaria em desvantagem em função do sigilo e, assim, passaria a revelar suas notas. Eventualmente, apenas o aluno com as notas muito mais baixas não teria nada a ganhar com a divulgação – e a falta de divulgação revelaria sua posição como infalivelmente como se ele tivesse revelado” (Posner, Richard. Economic Analysis of Law. 8.ed. Aspen Publishers: New York, 2010, p. 25). 235 Tradução livre da autora: “Mas essa premissa subjacente à análise econômica do direito moderno – que a eficiência para um é a eficiência para todos – pode ser exagerada, pelo menos em tempos de mudança e estresse. Certamente ela foi posta em cheque pelo colapso econômico seguido de uma era de substancial desregulamentação em que os indivíduos e as instituições eram livres para perseguir seus próprios interesses com uma vingança. A tradicional análise econômica do direito, fornecendo a maior parte do suporte intelectual para esta desregulamentação, ajudou a levar a maus resultados por causa de seu fracasso em questionar se, como e quando a microeficiência realmente produz resultados econômicos socialmente desejáveis” (Mitchell, Lawrence E. Toward a New Law and Economics: The Case of the Stock Market. Disponível em: <http:sstn.com/abstract=1557730>. Acesso em 20 de junho de 2013). 151 A hipoteca pode também ter contornos econômicos, muito embora sua natureza seja jurídica. Mas como? Pois bem. A hipoteca – e isso também serve para o cenário brasileiro –, enquanto garantidora de negócios jurídicos, como regra, é utilizada, no caso de instituições financeiras, como forma de tornar o crédito mais barato (lógica econômica da hipoteca), ou, como afirma Luiz Kleber Zanchim, “reforçar a expectativa do credor de receber os recursos emprestados” 236. Em outras palavras, para aplicar a teoria do Richard Posner, a hipoteca é uma forma de reduzir os custos de transação (por exemplo, diminuindo os juros incidentes em uma dada operação) e, de certa forma, definir os direitos de propriedade. A hipoteca trouxe, em um primeiro momento, segurança jurídica e confiança às operações de empréstimo, até o momento em que não trouxe mais. Ou seja, quando os imóveis garantidos por hipoteca passaram a perder valor, as chances de os mutuantes recuperarem a totalidade do valor mutuado eram bastante irrisórias, senão ínfimas, se levarmos em consideração igualmente, que do outro lado da corda, havia também um devedor em estado de quase insolvência. Ainda que se queira argumentar que a crise subprime de 2008 decorreu ou por iliquidez ou por insolvência dos intermediários financeiros, a hipoteca acabou por perder sua função social, notadamente a de garantir o adimplemento da obrigação. Diante dessa circunstância, conclui Luiz Kleber Zanchim 237 que essas assertivas simplesmente demonstram que “precisamos enxergar as figuras jurídicas por múltiplos pontos de vista. Se o imóvel hipotecado não tem liquidez, de que serve a hipoteca? Para quem concede crédito (...) ter garantia não significa apenas a possibilidade de obter uma decisão favorável de um juiz. O credor quer também condições de, em concreto, recuperar o dinheiro que emprestou”. Não buscamos aqui refutar o instituto das hipotecas. Apenas demonstrar que há efetivamente uma tensão em tentar sobrepor ciências com objeto diferentes, não obstante possam andar lado-a-lado. Adicionalmente, buscamos demonstrar aqui que o sistema – jurídico e econômico – é falível, de modo que se pretende o 236 Zanchim, Luiz Kleber. Crise e Conflito entre Direito e Economia. Valor Online. 11 de março de 2009. 237 Zanchim, Luiz Kleber. Crise e Conflito entre Direito e Economia. Valor Online. 11 de março de 2009. 152 desenvolvimento de técnicas ou ferramentas mitigadoras dos riscos decorrentes de crises financeiras. É possível concluir a partir dos mais recentes eventos financeiros e a tendência de mínima interferência, que a saúde econômica não pode autosustentarse, quando se trata da dinâmica da economia às demandas sociais. Sempre haverá externalidades e cumpre ao Estado necessário buscar meios de mitigar tais efeitos. Ao passo que uma indústria, por exemplo, polui o meio ambiente de um lado, de outro, emprega pessoas, paga impostos, contribui com o desenvolvimento do país, etc. Entretanto, a legislação ambiental instituiu o princípio do poluidor-pagador238 (artigo 4°, inciso VII da Lei n° 6.938/1981, que instituiu a Política Nacional do Meio Ambiente), a fim de mitigar os efeitos nocivos da atividade econômica. O direito ao desenvolvimento, a ser tratado no próximo Capítulo, ficaria parcialmente ou totalmente comprometido sem a mão visível do Estado necessário. 4.4 ESTADO NECESSÁRIO OU AUTOREGULAÇÃO? Quando da desregulamentação do mercado financeiro nos Estados Unidos, ou seja, com a entrada em vigor do Gramm-Leach-Blitey Act, restou entendido que os “bankers could be trusted as a matter of their own self-interest to avoid taking excessive risks, for they well understood the inherent riskiness of their business”239. Entretanto, vislumbrou-se que a racionalidade humana não acarreta, necessariamente, uma eficiência econômica. Por vezes, questiona-se o papel do Direito nas “sociedades das finanças”, marcado pelos seguintes fatores não exaustivos, a saber: (i) o acúmulo de volume 238 Referido princípio é também encontrado no artigo 225, § 3° da Constituição Federal de 1988, como também no princípio 16 da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (1992). 239 Tradução livre da autora: “banqueiros se podiam confiar por questões de interesse próprio, a fim de evitar a tomada de riscos excessivos, porquanto eles bem entendem os riscos inerentes ao seu próprio negócio” (Posner, Richard. Economic Analysis of Law. 8.ed. Aspen Publishers: New York, 2010, p. 616). 153 crescente de riqueza monetária, na forma de ativos financeiros (títulos e valores mobiliários) com diferentes graus de liquidez e em diferentes moedas; (ii) a mobilidade crescente desses ativos, de forma que seu movimento foge ao controle dos bancos centrais; e (iii) a ausência de uma lógica territorial (ou, em outros termos, a existência de diversidade geográfica) desses ativos financeiros240. O descompasso entre o Direito posto e a realidade que se pretende regular é visível. Como regular esse mercado sem comprometer, todavia, o próprio mercado financeiro e de capitais e a efetividade do direito ao desenvolvimento? A ausência de uma regulação estatal abre espaço para a atuação de fontes alternativas de Direito de natureza privada (autoregulatória) ou até mesmo de direito internacional público por meio de organizações internacionais, em especial, o Banco de Compensações Internacionais241 e a Organização Internacional das Comissões de Valores Mobiliários242. A autoregulação, entretanto, não é necessariamente sinônimo de ausência de regulação e tal entendimento é expresso conforme segue: Três traços caracterizam a auto-regulação: (i) é uma forma de regulação e não ausência desta, isto é, a auto-regulação é uma espécie de gênero regulação; (ii) é uma forma de regulação coletiva, pois não existe auto-regulação individual; e (iii) é uma forma de regulação não estatal podendo também ser definida como regulação não pública. Aplicada ao sistema econômico, a expressão autoregulação pode ser utilizada com três sentidos diferentes: (i) como 240 Nesse sentido, ver lições de Corazza, Gentil. Globalização Financeira: A Utopia do Mercado e a Re-Invenção da Política. Disponível em: <http://www.seer.ufu.br/index.php/revistaeconomiaensaios/article/view/1544/1370>. Acesso em 25 de junho de 2013. 241 Nesta seara, podemos citar o já mencionado Acordo de Basiléia. O Acordo de Basiléia I (1988) definiu mecanismos para mensuração do risco de crédito e estabeleceu a exigência de capital mínimo para suportar riscos. O Acordo de Basiléia II (2004) teve como principais objetivos: (i) promover a estabilidade financeira; (ii) fortalecer a estrutura de capital das instituições financeiras; (iii) favorecer a adoção das melhores práticas de gestão de risco; e (iv) estimular maior transparência e disciplina de mercado. O Acordo de Basiléia III (2010) pretendeu proporcionar um conjunto de iniciativas para reestabelecer o sistema financeiro após a crise subprime de 2008, forçando as instituições financeiras aumentar sua reserva de capital, a fim de se proteger contra futuras crises (de 2% para 7% do total de suas reservas). 242 Organismo internacional voltado especificamente para o mercado de capitais internacionais, em maio de 2008, por meio de um Comitê Técnico criado especificamente para estudar a crise subprime de 2008 e seus efeitos, emitiu apenas um relatório com recomendações aos órgãos regulatórios, com vistas à proteção dos efeitos colaterais provenientes de eventuais problemas sistêmicos. Referido relatório, em sua íntegra, pode ser encontrado no seguinte sítio: <http://www.iosco.org/library/pubdocs/pdf/IOSCOPD273.pdf>. Acesso em 23 de junho de 2013. 154 capacidade de funcionamento equilibrado da economia, sem necessidade de normas exteriormente impostas aos agentes econômicos; (ii) como regulação de um determinado grupo de meio de normas voluntárias e autovinculação voluntária; e (iii) como capacidade de um determinado grupo de se regular a si mesmo mediante reconhecimento oficial e com meios de direito público243. Verifica-se, pois, que o fato de existir autoregulação não torna o sistema mais fraco; sequer é um aspecto negativo. O Brasil, a despeito das agências regulatórias vinculadas ao Ministério da Fazenda e já comentadas anteriormente, permite a atuação de entidades privadas dos mercados financeiro e de capitais. A própria Lei n° 6.385/1976, em seu artigo 8°, § 1° combinado com o artigo 17, conferiu poderes e autonomia às seguintes entidades: (i) Bolsa de Valores; (ii) Bolsa de Mercadorias e Futuros244; (iii) entidades do mercado de balcão organizado 245; e (iv) entidades de compensação e liquidação246. Dispôs também, referida Lei, que tais entidades atuarão como órgãos auxiliares da Comissão de Valores Mobiliários, fiscalizando seus respectivos membros e as operações com valores mobiliários nelas realizadas. Por sua vez, atuando no interesse dos intermediários financeiros, a Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiros e de Capitais, por meio de seu Código ANBIMA de Regulação e Melhores Práticas, estabelece normas, parâmetros e princípios a serem observados pelos intermediários financeiros, contribuindo para uma constante melhoria dos padrões éticos e operacionais envolvendo os mercados financeiro e de capitais. Na mesma esteira, a 243 Moreira, Vital. Auto-Regulação Profissional e Administração Pública. Almedina: Coimbra, 1997, pp. 52-53. 244 Em 2008, a Bolsa de Valores de São Paulo funde com a Bolsa de Mercadorias e Futuros, surgindo, pois, a Bolsa de Valores, Mercadorias e Futuros de São Paulo. 245 Entidades participantes do sistema brasileiro de distribuição de valores mobiliários, tais como sociedades corretoras, sociedades distribuidoras e bancos de investimentos. A negociação é feita de forma “privada”, porquanto realizada fora do ambiente das bolsas de valores, mas são fiscalizadas pelas entidades administradoras, pela Comissão de Valores Mobiliários e pelo Banco Central do Brasil. Há um intermediário especial (chamado de “formador de preço”), que será responsável pela liquidez dos títulos, executando ordens de compra e venda por parte dos investidores, sendo remuneração por meio de spread. 246 Por exemplo, o Sistema Especial de Liquidação e Custódia – SELIC (processando a emissão, o resgate, o pagamento de juros e a custódia de títulos públicos federais) e a Câmara de Custódia e Liquidação – CETIP (responsável pelo registro de títulos escriturais e a liquidação financeira dos títulos por ela custodiados). 155 Bolsa de Valores, Mercadorias e Futuro de São Paulo regula, por exemplo, os diferentes níveis de governança corporativa das sociedades ali listadas247. Seria incabível, portanto, apontar apenas a falta de regulação – ou a existência de uma autoregulação – como culpado exclusivo pelo colapso dos intermediários financeiros no contexto da crise subprime de 2008. Todos os envolvidos têm a sua parcela de culpa. Os governos por suas omissões; os intermediários financeiros pela forma agressiva de atuar nos mercados financeiro e de capitais; a população em geral, que também se aproveitou da situação para especular no mercado imobiliário. De certa forma, também tem uma parcela de culpa as organizações internacionais, em especial o Banco de Compensações Internacionais, que permitiu – e ainda permite – alta alavancagem das instituições financeiras (se se pensar que antes da crise recomendava-se reservas de 2% sobre o patrimônio líquido e, no póscrise, elevou esse percentual para apenas 7%). Não obstante, seria ingênuo pensar sobre uma eventual substituição do sistema capitalista para qualquer outro modelo. Mesmo o colapso dos mercados com a crise subprime de 2008 o capitalismo será o sistema econômico vigente. O mesmo raciocínio pode ser aplicado aos mercados financeiro e de capitais. Impossível pensar o retorno a um sistema de escambo em pleno século XXI. Ademais, o mercado de capitais é uma forma relativamente segura de financiamento de empreendimentos produtivos, desde que devidamente regulamentado. E para sua devida regulamentação, adverte John H. Welch248 que as agências regulatórias deverão se ater a certos axiomas comportamentais dos intermediários financeiros, a saber: 247 Nesse sentido, ver: Fernandes, Ana Carolina Souza. A Poison Pill Como Mecanismo Contratual de Defesa Contra Tomada de Controle em Companhias com Dispersão Acionária. São Paulo, 2013. 128f. Monografia (LL.M em Direito dos Contratos e Direito Societário) – Insper Instituto de Ensino e Pesquisa, São Paulo, 2013, pp. 100-108. 248 Welch, John H. Futurologia Financeira Global: Implicações do Pós-Crise. In: Barros, Octavio de; Giambiagi, Fábio (orgs.). Brasil Pós-Crise: Agenda para a Próxima Década. 2.reimp. Elsevier: Rio de Janeiro, 2009, p. 43. 156 (i) se as instituições financeiras e os investidores puderem aumentar a alavancagem, elas certamente o farão; (ii) se as instituições financeiras puderem transferir o risco para o governo a um custo baixo, elas o farão e irão alavancar esse risco; (iii) quanto mais regras, maiores serão as oportunidades de ocultar coisas dos reguladores e investidores; (iv) se os investidores perderem dinheiro, eles tentarão recuperá-lo através dos intermediários e do governo; e (v) se as instituições financeiras puderem se tornar grandes demais (ou complicadas demais) para falir, assim o farão. Em outras palavras, quer-se dizer que as instituições financeiras buscarão potencializar todos os frutos de um investimento e socializar todas as perdas e tais axiomas deverão ser levados em consideração quando da elaboração de normativos por parte do Conselho Monetário Nacional, do Banco Central do Brasil e da Comissão de Valores Mobiliários. Não se olvida que o Brasil, após o processo de abertura de sua economia, modificou qualitativamente sua posição no cenário internacional. Estima o Fundo Monetário Internacional, que, em 2014, o Brasil manterá sua posição de 7° (sétima) maior economia do mundo, produzindo cerca de US$2,215 trilhões em produtos e serviços, não obstante a pífia estimativa de crescimento. Dentre todas as variáveis que contribuíram para esse crescimento econômico, podemos destacar o aumento dos investimentos externos diretos (ilustração abaixo) e o desenvolvimento do mercado de capitais doméstico249. 249 Recentemente, o Ministro da Fazenda, Guido Mantega, anunciou medidas de aquecimento do mercado de capitais doméstico, de modo a incluir empresas de pequeno porte nesse nicho, seja abrindo o capital, seja emitindo valores mobiliários. Disponível em: <http://www.bmfbovespa.com.br/pt-br/noticias/2014/Ministro-Guido-Mantega-anuncia-medidas-deestimulo-ao-mercado-de-capitais-na-BMFBOVESPA-2014-06-16.aspx?tipoNoticia=1&idioma=pt-br>. Acesso em 30 de junho de 2014. 157 FIGURA 7 – RANKING DE INVESTIMENTOS ESTRANGEIROS (EM US$ BILHÕES) Fonte: sítio do G1 Desde a Constituição Federal de 1988, o Brasil adotou uma postura de economia social de mercado, prestigiando o princípio do livre comércio e da iniciativa privada, sem descuidar dos aspectos sociais como forma de promover o crescimento econômico e o desenvolvimento sustentável do país. O Estado, portanto, se faz necessário, muito embora tal ideia não seja compartilhada por todos, cujo principal argumento resume em dizer que se os mercados são imperfeitos, os reguladores também o serão, porquanto estão sujeitos às influências políticas250. O Estado, pois, é necessário no sentido de equilibrar os valores preponderantes na sociedade (justiça social), e não determinar o rumo das atividades econômicas, ou até mesmo ser o detentor de todos os fatores de produção. Nesse sentindo, a intervenção no domínio econômico pode se dar de 02 (duas) maneiras, ou seja, direta ou indiretamente. 250 Nesse sentido: Soros, George. Financial Turmoil: In Europe and in United States. Publicaffairs: New York, 2012, p. 47. Em sentido contrário, Juarez Freitas afirma que a “regulação é tarefa, dever do Estado e não de governo, independente, autônomo e duradouro, sem favoristismo, partidarismos ou tendências governamentais, sendo vista como a tarefa das agências regulatórias” (Freitas, Juarez. Parcerias Público-Privadas (PPPs): Natureza Jurídica. In: Cardoso, José Eduardo Martins; Queiroz, João Eduardo Lopes; Santos, Márcia Walquiria Bastos dos (org.). Curso de Direito Administrativo Econômico. Vol. I. Malheiros Editores: São Paulo, 2006, p. 715). 158 A intervenção indireta está consubstanciada no artigo 174 da Constituição Federal de 1998, ao passo que a intervenção direta encontra fundamento nos artigos 173 e 175 deste mesmo diploma legal. Diferencia-se uma intervenção da outra, porquanto, na primeira, ao Estado cumpre normatizar e regular a atividade econômica, por meio de agências regulatórias com vistas ao atendimento do interesse público, sendo indicativo para o setor privado e determinante para o setor público. Na segunda, por sua vez, o Estado atua ativamente no domínio econômico, podendo-se dizer que há uma “competição” entre o setor público e o setor privado (por exemplo, na área de óleo e gás), ou, senão, o Estado atuará de forma monopolista (em se tratando de petróleo e atividades nucleares, por exemplo). Conforme dito anteriormente, a presente dissertação não tem a pretensão de elaborar uma fórmula assertiva de como solucionar futuras crises financeiras, que também depende de definições de políticas regulatórias, monetárias e econômicas de outros países e dos responsáveis internacionais por definir padrões mínimos de conduta. Mas, ao menos no âmbito do ordenamento jurídico interno, buscaremos apontar os equívocos e, assim, indicar possíveis atuações dos órgãos regulatórios de forma a mitigar externalidades negativas para a própria sociedade brasileira. Isso porque “(...) qualquer banco trabalha com recursos de terceiros, de milhões de depositantes, poupadores, aplicadores que têm vários tipos de aplicações no sistema bancário. São esses recursos de terceiros que qualquer Governo do mundo tem a obrigação de preservar”251. Como vimos na crise subprime de 2008, a combinação de política monetária equivocada (refrise-se que o governo norte-americano atuava como se houvesse uma crise de liquidez e não de insolvência dos intermediários financeiros) e a lassidão regulatória criou um ambiente em que a concorrência obrigou os intermediários financeiros a assumir riscos que, embora acreditassem inofensivos, quando materizalizados, acabaram por fragilizar diversas economias, em especial, aquelas que apostavam na estabilidade do mercado norte-americano. 251 Malan, Pedro Sampaio. Direito, Economia e o Papel dos Bancos no Cenário Econômico-Social. Revista de Direito Bancário, n. 28. Editora Revista dos Tribunais: São Paulo, abr./jun. 2005, p. 302. 159 Assim, em um primeiro momento, entendemos necessária a atuação do Banco Central do Brasil, com vistas a controlar o percentual das chamadas reservas bancárias, ou seja, dos depósitos compulsórios, que, atualmente, está em torno de 40% (quarenta por cento) do valor total dos depósitos à vista; contudo, os depósitos a prazo inexistem regras para os depósitos compulsórios. E a consequência dessa não regulação é a expansão do crédito. Por exemplo, determinada instituição financeira convence seu cliente – ou um cliente de outra instituição financeira – em aplicar em títulos com altas taxas de retorno. Já que não há obrigatoriedade do compulsório, há mais dinheiro para ser circulado na economia, e menor o “colchão” de segurança bancária. Adicionalmente, a Resolução do Conselho Monetário Nacional n° 3.490/2007 e as Circulares do Banco Central do Brasil n° 3.477/2009 e 3.644/2013, dispondo sobre a apuração do patrimônio de referência e gestão de riscos, determinou um percentual de alavancagem de 11% (onze por cento) para as instituições bancárias. Não obstante seja um percentual de alavancagem pequeno, em nosso entendimento, ainda assim é maior do que o exigido pelo Acordo de Basiléia III, cujo percentual – que mede o grau de solvência das instituições financeiras – é de 7% (sete por cento). Em contrapartida, em 2014, o Board of Governors (uma espécie de diretoria do banco central norte-americano nomeada pelo Presidente e confirmada pelo Senado para um mandato de quatorze anos) em conjunto com o Federal Deposit Insurance Corporation, preparou uma proposta de regulamentação bancária chamada de Enhanced Supplementary Leverage Ratio, aumentando para 5% (cinco por cento) o percentual de alavancagem de suas instituições financeiras 252. Outra sugestão é aumentar as exigências de transparência, não só dos balanços patrimoniais das instituições financeiras (atuação conjunta do Conselho Monetário Nacional e do Banco Central do Brasil), ou seja, a forma como os valores mobiliários são contabilizados; como também das operações no mercado de capitais 252 Para aprofundamento, recomendamos a leitura desse sítio: <http://www.federalreserve.gov/newsevents/press/bcreg/20140408a.htm>. Acesso em 26 de junho de 2014. 160 pelos intermediários financeiros (incumbência da Comissão de Valores Mobiliários). E, neste último caso, e para não se repetir o ocorrido nos Estados Unidos, buscando sobrepor o interesse público ao privado, a Comissão de Valores Mobiliários, em 2008, abriu audiência pública n° 07253, fundamentada no documento elaborado pela Organização Internacional das Comissões de Valores Mobiliários (Corporate Governance in Emerging Markets – Reports from Emerging Markets Committee of IOSCO), com vistas a, dentre outros aspectos, ouvir o mercado acerca do nível adequado de transparência sobre a remuneração dos administradores. No âmbito administrativo, a maioria dos intermediários financeiros participantes da audiência pública entendeu que a inclusão desse requisito nas instruções normativas da Comissão de Valores Mobiliários resultaria em infração a direitos constitucionalmente garantidos, ou seja, o direito à intimidade e o direito à privacidade (artigo 5°). Não obstante, a Comissão de Valores Mobiliários entendeu que a divulgação dessas informações nos formulários de referência era imprescindível para o mercado de capitais brasileiros, que, assim, se tornaria um ambiente mais seguro e compatível com as recomendações do órgão regulatório internacional, bem como das práticas internacionais. A decisão desse impasse, todavia, foi decidida pelas vias judiciais, saindo vencedores os intermediários financeiros254. Não se sabe a extensão da capacidade inventiva dos intermediários financeiros. E, nos termos do artigo 5°, inciso II da Constituição Federal de 1988, “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Isso quer dizer que se não há uma exigência legal – comissiva ou omissiva – 253 O prazo para o término da audiência pública terminou em 30 de março de 2009 e culminou com a Instrução da Comissão de Valores Mobiliários n° 480/2009, que entrou em vigor em 01 de janeiro de 2010. Entretanto, para se entender a preocupação da Comissão de Valores Mobiliários, remetemos o leitor ao item 11.8 da referida audiência pública. 254 O Instituto Brasileiro dos Executivos de Finanças entrou com um processo judicial na 5° Seção Judiciária do Rio de Janeiro (Processo n° 0002888-21.4.02.5101), objetivando anular respectiva obrigação de divulgação de informação detalhada no formulário de referência, disposta no item 13.1. Acabaram vitoriosos em todas as instâncias judiciais, inclusive no Superior Tribunal de Justiça. Por essa razão, as sociedades emissoras de valores mobiliários simplesmente inserem informações sobre as remunerações de seus executivos, diretores e conselhores de forma genérica, nos termos dos seus respectivos documentos societários. Lembrando que a Lei n° 6.404/1976, em seu artigo 152, determina que “a assembleia-geral fixará o montante global ou individual da remuneração dos administradores, inclusive benefícios de qualquer natureza e verbas de representação, tendo em conta suas responsabilidades, o tempo dedicado às suas funções, sua competência e reputação profissional e o valor dos seus serviços no mercado”. 161 ainda que genérica, uma prática financeira está dentro da legalidade. É sabido que não é possível prever todas as condutas sociais. Mas tais agências regulatórias não tem o condão apenas de regular. Complementarmente, também têm o dever de fiscalizar, inclusive o contéudo dos documentos que suportam uma emissão pública. Tanto é assim que praticamente todas as operações sob responsabilidade da Comissão de Valores Mobiliários não são aprovadas tão logo protocoladas; voltam aos underwritters para cumprimento das exigências tantas vezes quanto for necessário para que as instruções normativas da Comissão de Valores Mobiliários sejam cumpridas em sua integralidade. Assim, observados certos padrões de conduta dos intermediários financeiros, as agências regulatórias têm o dever de agir, de forma a não incentivar abusos, conforme o caso concreto. Foi exatamente o que não aconteceu nos Estados Unidos conforme indica Richard Posner255: Even the regulatory agencies lacked access to much crucial information about the financial system, because of limitations on the authority that were thought appropriate in an era of triumphal deregulation. Lacking authority to regulate new derivatives, financial regulators could not force disclosure of information that might have revealed how risky the financial system had become. Ainda com relação aos deveres das agências regulatórias, e, em especial, a Comissão de Valores Mobiliários, resta claro, pelos normativos por ela expedidos, que há uma clara proteção aos investidores. Mas, teria a Comissão de Valores Mobiliários competência (ou vontade) para legislar eventual proteção aos consumidores, que é a parte mais fraca de uma relação financeira? Tomemos como exemplo novamente a crise subprime de 2008. Mutuários genuínos das instituições financeiras acabaram por perder suas residências, simplesmente pelo fato de os intermediários financeiros terem resolvido fazer dos mercados financeiro e de 255 Tradução livre da autora: “mesmo as agências reguladoras não tinham muito acesso a informação crucial sobre o sistema financeiro, por conta de limitações na autoridade que pensaram apropriada em uma era de desregulamentação triunfal. A falta de autoridade para regular os novos derivativos, reguladores financeiros não podia forçar a divulgação de informações que poderiam ter revelado quão arriscado o sistema financeiro havia se tornado” (Posner, Richard. A Failure of Capitalism: The Crisis of ’08 and the Descent into Depression. Harvard University Press: Cambridge, 2009, p. 144). 162 capitais um cassino, um centro de apostas. A despeito dos socorros financeiros realizados em Wall Street, o que foi efetivamente feito em Main Street? Sob esse aspecto, defendemos um posicionamento bastante conservador das agências regulatórias em favor desse tipo de consumidor. A um, porque houve um evidente desvio de finalidade dos agentes intermediários, ou seja, ao invés de promover o crédito para fomento da economia e do consumo, otimizando e melhorando a condição de vida dos indivíduos, foi utilizado para enriquecimento pessoal. A dois, em função do dever de fidúcia que compete aos intermediários financeiros. É verdade que os mercados financeiro e de capitais se debruçam na assimetria de informações, isto é, na falta de conhecimento de todos os riscos do mercado (seja operacional, seja regulatório, seja de crédito ou de qualquer outra natureza) para obtenção de ganhos. Nada ilegal nisso, uma vez que é inerente à atividade econômica e até mesmo para a existência de uma concorrência saudável. Entretanto, quando os intermediários financeiros utilizam tais informações apenas em benefício próprio, devem ser penalizados porquanto caracteriza uma conduta, no mínimo, antiética. A partir do momento em que o intermediário financeiro toma ciência de algum risco adverso que posso impactar negativamente o mercado (incluindo consumidores no sentido caracterizado acima) e não faz o respectivo disclosure, deve ser responsabilizado, na medida de sua ilicitude. A Lei 6.404/1976, no que diz respeito às obrigações dos administradores das sociedades anônimas, obriga as sociedades anônimas a divulgar informações, seja por meio de “fato relevante”, seja por meio de “comunicado ao mercado”, nos seguintes termos (artigo 157, § 4°): Os administradores da companhia aberta são obrigados a comunicar imediatamente à bolsa de valores e a divulgar pela imprensa qualquer deliberação da assembléia-geral ou dos órgãos de administração da companhia, ou fato relevante ocorrido nos seus negócios, que possa influir, de modo ponderável, na decisão dos 163 investidores do mercado de vender ou comprar valores mobiliários emitidos pela companhia. Mas como se pode perceber a obrigação refere-se à emissão de valores mobiliários da própria sociedade anônima e não a uma sociedade anônima atuando como intermediário financeiro. Aquele que causa dano a outrem tem o dever de reparar (artigo 186 combinado com artigo 927, parágrafo único do Código Civil). Outro aspecto regulatório de grande importância no mercado de capitais remete-nos ao montante de capital mínimo obrigatório às sociedades securitizadoras. Esse também foi um dos grandes problemas que contribuiu para a crise subprime de 2008, porquanto todos os intermediários financeiros que não fossem enquadrados nos conceitos de bancos comerciais na legislação norteamericana, não eram exigidos capital mínimo ou reservas bancárias. Em virtude disso, desde 2010, o Banco Central do Brasil – muito embora, no que diz respeito às sociedades securitizadoras, é responsabilidade da Comissão de Valores Mobiliários regular a questão – vem sinalizando preocupação a esse respeito, em especial, em relação às emissões de certificados de recebíveis imobiliários256. A emissão desses valores mobiliários desempenha cada vez mais papel fundamental na cadeia de crédito imobiliário. Não obstante as emissões contarem com a existência de um patrimônio de afetação, ou seja, um patrimônio distinto da securitizadora, nada impede um inadimplemento em massa comprometendo não só a longevidade das sociedades securitizadoras, mas um prejuízo para os investidores e para a sociedade. Ainda que no caso de falência de uma sociedade securitizadora, e por conta do regime fiduciário a que se submete, os investidores passam a ser titulares desses títulos. Mas qual a vantagem de ter um título ilíquido, ou seja, incapaz de se monetarizar, ou que não corresponde ao valor investido? Com relação à sociedade, bem, as consequências nós conhecemos bem. Além disso, a questão da alavancagem desregulada, como já vimos, é deveras prejudicial. 256 Não obstante, as securitizadoras são permitidas à emissão de debêntures, bem como de certificados de recebíveis do agronegócio. 164 Conforme ilustração abaixo, o mercado de emissão de valores mobiliários é bastante concentrado e o capital social das sociedades securitizadoras excede, em muito, o volume financeiro das emissões: FIGURA 8 – CAPITAL SOCIAL DAS SECURITIZADORAS X VOLUME DE EMISSÕES Fonte: Comissão de Valores Mobiliários: data-base 2010. Por mais que as emissões sejam garantidas em regime fiduciário, refrisese, muitos profissionais da área entendem que em função da constituição do capital social (ou patrimônio inicial), regular a alavancagem das sociedades securitizadoras seria o mesmo que levantar uma barreira para novas operações. Consectário da sugestão acima mencionada e também a título contributivo para ações positivas do Estado, via agências regulatórias, entendemos por bem tratarmos a questão do risco moral. O risco moral257 ocorre sempre que um 257 Nos dizeres de Richard Posner, o “moral hazard is the tendency to engage in risky behavior if one is insured against the consequences of the risks’ materializing”. Tradução livre da autora: “o risco moral é a tendência em se engajar em comportamentos arriscados se entendem estar segurados contra as consequências da materialização do risco” (Posner, Richard. A Failure of Capitalism: The Crisis of ’08 and the Descent into Depression. Harvard University Press: Cambridge, 2009, p. 236). 165 intermediário financeiro, e não regulado, tem a expectativa de se ver protegido pelo governo (no caso do Brasil, pelo Fundo Garantidor de Crédito ou outra entidade equivalente; e no caso específico da crise subprime havia uma expectativa de socorro financeiro às instituições bancárias e sociedades corretoras258), em casos de falha de mercado. Essa expectativa criada incorre(u) em investimentos de maior risco. O fato de o governo norte-americano, seja via Federal Reserve, seja via Secretário do Tesouro, já ter socorrido anteriormente instituições financeiras (lembre-se da crise das associações de savings and loans de 1984), ou mesmo a ajuda financeira para evitar falência de empresas durante a crise subprime de 2008 (como a General Motors e a Chrysler) contribuiu para a ocorrência de irresponsabilidades financeiras. De fato, por fim, não há que se comparar o Brasil com os Estados Unidos, em termos de estruturas societárias. São inversamente proporcionais, em realidade, se fizermos uma análise quantitativa entre sociedades limitadas e sociedades anônimas nos respectivos mercados. A cultura norte-americana é propensa à dispersão acionária, que não ocorre no Brasil, que prefere a concentração acionária259. E esse fato reflete diretamente no volume de operações nos mercados financeiro e de mercado de capitais. Talvez, por essa razão é que o Brasil não seja tão vulnerável as volatilidades do mercado ou eventual crise restrinja-se tão somente ao território nacional. 258 O que, de fato, ocorreu, por exemplo, com a Fannie Mae, o Freddy Mac e o American International Group, com tomada de controle (hostile takeover) pelo governo federal norte-americano e, posteriormente, com a aprovação do Troubled Asset Relief Program, em 2008, na qual concedia ao Secretário do Tesouro norte-americano poderes para comprar ativos tóxicos dos intermediários financeiros, injetando capital nas instituições problemáticas. Entretanto, em realidade, o que ocorreu foi um desvirtuamento do programa em referência. Dotado de poderes, com anuência do Congresso norte-americano, o Secretário de Tesouro entendeu melhor tão somente injetar capital nas instituições problemáticas, dando a elas um “conforto” financeiro. Por conta do uso indevido do dinheiro, inicialmente aprovado no valor de US$700 bilhões de dólares, este foi reduzido para US$475 bilhões de dólares, com o advento do Dodd-Frank Wall Street Reform and Consumer Protection Act of 2010. 259 Eduardo Secchi Munhoz leciona que “(...) no sistema de controle diluído, o poder de controle é passível de disputa no mercado acionário, enquanto que, no sistema de controle concentrado, ele permanece bloqueado com o controlador, de forma que somente pode ser negociado diretamente com este. Daí decorre uma série de conseqüências que hão de ser tomadas em conta pela regulação” (Munhoz, Eduardo Secchi. Desafios do Direito Societário Brasileiro na Discipina da Companhia Aberta: Avaliação dos Sistemas de Controle Diluído e Concentrado. In: CASTRO, Rodrigo R. Monteiro de; ARAGÃO, Leandro dos Santos de (coord.). Direito Societário: Desafios Atuais. Editora Quartier Latin: São Paulo, 2009, p. 124). 166 Ainda assim, não se quer dizer que não deva estar sob vigilância das agências regulatórias, ainda que em conjunto com as entidades privadas (autorreguladoras), porquanto, conforme mencionado anteriormente, o artigo 8°, § 3° da Lei n° 6.385/1976, permite a participação dos intermediários financeiros no processo de elaboração de suas normas, por meio de audiências públicas. Regular um setor da economia ou um determinado mercado pode até parecer desnecessário porquanto não ocorreram crises. Partindo desse pressuposto, e sob o argumento de excesso de zelo, legisladores tendem a flexibilizar a regulação do mercado. Entretanto, falham em considerar que a inexistência de crises pode ser, em parte ou em sua totalidade, justamente por causa da regulação. A experiência norte-americana é uma lição a ser aprendida por nós também, que, como vimos, temos grandes brechas regulatórias. 167 5 O DIREITO AO DESENVOLVIMENTO COMO DIREITO HUMANO É inconteste para nós a afirmação de que a globalização, enquanto expressão das forças e dos interesses meramente privados, não se afirmará como ordem maior. A crise subprime de 2008 demonstrou a incapacidade de o mercado se autorregular. E os governos interviram para ajustar tal incapacidade. Entendemos que os argumentos expostos nos Capítulos anteriores ratificaram tal afirmativa. A maneira como os mercados funcionam em um determinado país é imprescindível para garantir a concretização dos valores almejados pela sociedade. Arranjos políticos e macroeconômicos afetam o modo como o poder e a renda são distribuídos. A preocupação com a distribuição da renda é, entretanto, recente, tendo início com o advento do Plano Real em 1994, se pensarmos o contexto econômico inflacionário de outrora que refreava políticas de longo prazo. E ao longo dos anos essa preocupação social foi se aprimorando, muito embora ainda não tenhamos alcançado o estágio ideal. Atualmente, há uma crise institucional que instaura um dilema politico de difícil solução. Por outro lado, não podemos deixar de mencionar que a globalização, notadamente financeira, pode trazer benefícios à sociedade. A oferta de capital pode: (i) aumentar a disponibilidade da poupança interna; (ii) proporcionar maior eficiência dos investimentos, especialmente em projetos de infraestrutura; e (iii) financiar os deficits fiscais, não dependendo, apenas, do capital interno. Esses 03 (três) fatores por si só denotam a importância dos mercados financeiro e do mercado de capitais, não só do ponto de vista econômico, mas também social, na medida em que o Estado também incorpora ganhos, podendo revertê-los à sociedade, tal como almejado pelo Estado Democrático e Social de Direito. Nesse sentido, Vladmir Oliveira da Silveira e Maria Mendez Rocasolano260 observam que: 260 Silveira, Vladmir Oliveira da; Rocasolano, Maria Mendez. Direitos Humanos: Conceitos, Significados e Funções. Editora Saraiva: São Paulo, 2010, p. 87. 168 Embora imponha realidades vinculadas principalmente ao plano da economia, a globalização ora em curso não inviabiliza a ética humanista. Ainda que inegáveis, os valores mercantilistas do capital econômico não podem preponderar sobre os valores humanos compartilhados pela comunidade internacional. É bem verdade que ainda restam divergências quanto à fundamentação dos direitos humanos (...), mas elas não são menos relevantes do que a defesa e efetividade desses direitos. Para os fins da presente dissertação, consideramos os direitos econômicos, sociais e ambientais, em sua acepção mais ampla, como meio e fim para a consecução do direito ao desenvolvimento no contexto do século XXI, sendo este um dos pilares dos direitos da terceira dimensão. Ações positivas por parte dos governos (por exemplo, investimentos em infraestrutura como já tivemos oportunidade de esclarecer), em conjunto com as organizações internacionais (como forma de incorporação de normativos internacionais no ordenamento jurídico pátrio), são fatores essenciais e determinantes para um desenvolvimento eficiente. O desafio consiste em saber reinventar formas de regulação diante da globalização financeira, já que a história nos ensinou que o capitalismo se desenvolve melhor quando é social e politicamente regulado. No contexto social, porquanto quem sofre as consequências das irresponsabilidades financeiras são os indivíduos. São eles os diretamente afetados (seja pela inflação, seja pela diminuição de sua riqueza pessoal). É possível aprender com as crises financeiras passadas o perigo da globalização em termos de instabilidade econômica e custos sociais 261. Estes últimos, por exemplo, exemplifica Ricardo Hasson Sayeg262, são realizados por meio de cortes de direitos sociais, “tais como: alimentação, saúde, educação, moradia, previdência e assistência social, especialmente ao idoso e à criança, bem como se 261 Nesse sentido, ver relatório da Organização das Nações Unidas sobre a Crise Financeira e Seus Impactos nos Países em Desenvolvimento. Disponível em: <http://mdgpolicynet.undg.org/ext/economic_crisis/UNDP_-_The_Financial_C.pdf>. Acesso em 30 de junho de 2014. 262 Sayeg, Ricado Hasson. Capitalismo Humanista Diante da Crise Global, na Visão de 2012. In: Campello, Lívia Gaigher Bósio; Santiago, Mariana Ribeiro. Capitalismo Humanista e Direitos Humanos. Conceito Editorial: Florianópolis, 2013, p. 26. 169 flexibilizam os direitos trabalhistas, aumenta-se a carga tributária direta contra os cidadãos, aumenta-se os juros e socorrem-se apenas os Bancos e as grandes empresas frente a um Estado mínimo e omisso”. Nesse sentido, se faz necessário contextualizar a globalização financeira sob uma ótica dos direitos humanos, na tentativa de efetivar e concretizar o direito ao desenvolvimento, de acordo com a Declaração das Nações Unidas sobre o Direito ao Desenvolvimento (1986) e outros documentos internacionais equivalentes, anteriores ou posteriores. O Estado necessário, portanto, aliará a principal característica do capitalismo liberal (prevista nos artigos 1°, inciso IV combinado com o artigo 170 da Constituição Federal de 1988) à mão visível do governo em prol da proteção dos direitos de seus cidadãos (Estado do Bem-Estar social). Ao longo da presente dissertação, por diversas vezes, mencionamos a globalização como forma de crescimento e desenvolvimento econômicos. Por muito tempo, referidos termos eram considerados sinônimos, especialmente após o boom proporcionado pela abertura dos mercados ao comércio internacional. Neste Capítulo, buscaremos esclarecer que, não obstante os efeitos positivos trazidos no que diz respeito ao crescimento (econômico), não necessariamente refletem um cenário positivo ao tratarmos de desenvolvimento (sustentável). O Brasil, não obstante se posicionar como 7° (sétima) economia mundial, ocupa a 79° (septuagésima nona) posição no Índice de Desenvolvimento Humano263 (conforme Relatório de Desenvolvimento Humano 2014), denotando, talvez, certa indiferença ou falta de apetite político para a real solução dos problemas centrais brasileiros; afinal de contas, é possível argumentar, há um constante crescimento da demanda dos produtos e serviços domésticos e incentivos recentes à inclusão de novos atores no mercado de capitais brasileiro, em especial as empresas de pequeno porte. Da mesma forma que defendemos ao longo da presente dissertação, a instauração de um Estado necessário, complacente com o livre comércio, à 263 Disponível em: <http://www.pnud.org.br/arquivos/Nota%20T%C3%A9cnica%20Brasil.pdf>. Acesso em 27 de julho de 2014. 170 propriedade privada e a liberdade econômica, buscaremos nesse Capítulo argumentar que somente haverá justiça social, ou melhor, a concretização dos fundamentos do Estado necessário se tais direitos forem conjugados com a concretização do direito ao desenvolvimento. Nesta esteira, não só não temos calibre para um Estado liberal extremo, como não seria conveniente para nós, brasileiros, “especialmente pelo fato da nossa pobreza; da concentração de renda; enfim, dos enormes déficits na concretização dos direitos humanos de segunda e terceira dimensão, com destaque aos direitos sociais da alimentação, do emprego, da saúde, da moradia, da educação, da previdência e assistência social; em face de nossas contas públicas”264. Não basta ser uma Nação rica, todavia com uma grande parte da população à beira da miséria. Não basta ser uma Nação rica, porém com uma população em constante “luta de classes”. Portanto, não basta construir uma Nação rica, se não se souber realizar a justiça social. O contrato social do Estado brasileiro, por seu próprio compromisso constitucional de construir uma sociedade fraternal, pluralista e sem preconceito, há que pensar coletivamente265, afastando-se da mão invisível de Adam Smith e aproximando-se da ideia de Estado necessário. Relativamente independente dos “poderes” diretivos do Fundo Monetário Internacional ou do Banco Mundial, conforme críticas realizadas ao longo do Capítulo 2, o Brasil do século XXI é capaz de perseguir seus próprios caminhos rumo ao desenvolvimento pleno e sustentável, com consequente diminuição do custo-Brasil, “assegurando as condições mínimas para a perpetuação da vida presente (aqui o conceito de mínimo existencial) e futura (no que se inclui a preservação do meio ambiente)”266. Também nos cumpre argumentar nesse Capítulo, apoiando-nos nos ensinamentos de Amartya Sen, que a efetivação do direito ao desenvolvimento é 264 Sayeg, Ricado Hasson. Capitalismo Humanista Diante da Crise Global, na Visão de 2012. In: Campello, Lívia Gaigher Bósio; Santiago, Mariana Ribeiro. Capitalismo Humanista e Direitos Humanos. Conceito Editorial: Florianópolis, 2013, p. 45. 265 Não por outra razão que a terceira dimensão dos direitos humanos trata especificamente dos direitos difusos e coletivos, porquanto o caráter universal desses direitos. 266 Castilho, Ricardo. Refundação do Direito Econômico sob a Égide dos Direitos Humanos: O Capitalismo Humanista. In: Campello, Lívia Gaigher Bósio; Santiago, Mariana Ribeiro. Capitalismo Humanista e Direitos Humanos. Conceito Editorial: Florianópolis, 2013, p. 76. 171 condição sine qua non para a concretização dos demais direitos proclamados pela Revolução Francesa. Sem a possibilidade de a sociedade se desenvolver dignamente, não há que se falar em liberdade, sequer a existência de igualdade. Sem uma articulação coletiva, não há que se falar em fraternidade. O preenchimento das dimensões dos direitos humanos é o culme da dignidade da pessoa humana e, por conseguinte, um ideal a ser perseguido pelo Estado necessário. 5.1 CRESCIMENTO E DESENVOLVIMENTO: UMA SUPERAÇÃO CONCEITUAL Inicialmente cumpre esclarecer que não há que se falar em desenvolvimento restringindo-se apenas à capacidade de geração de riqueza, se ela não é eficientemente distribuída aos que dela necessitam para viver de forma digna. Em outras palavras, o desenvolvimento que aqui se busca é o desenvolvimento do indivíduo enquanto ser humano dotado de dignidade267. Nesse sentido, Os instrumentos de promoção do desenvolvimento devem atender os princípios norteadores do Direito e insculpidos na Constituição Federal, mas tendo-se em consideração os direitos fundamentais, ou mesmo aquele “mínimo vital” de que o cidadão necessita para viver com dignidade, é de se reconhecer a importância do desenvolvimento para a consecução desses objetivos268. Ainda não se sabe efetivamente qual seria o “mínimo vital” 269 para o desenvolvimento do indivíduo, mas programas federais como o Bolsa-Família, por exemplo, programa de transferência direta de renda com condicionalidades, é uma política social positiva como forma de inclusão social. Existem outros programas de 267 Nesse sentido, ver: Relatório do Desenvolvimento Humanos de 1996 elaborado pela Organização das Nações Unidas, momento em que faz a diferenciação entre crescimento econômico e desenvolvimento humano (Disponível em: < http://www.pnud.org.br/HDR/RelatoriosDesenvolvimento-Humano-Brasil.aspx?indiceAccordion=2&li=li_RDHBrasil>. Acesso em 14 de julho de 2014). 268 Ishikawa, Lauro. O Direito ao Desenvolvimento como Concretizador do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. São Paulo, 2008. 147f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2008, p. 120. 269 Seria o salário-mínimo uma referência ao mínimo vital, considerando o conteúdo do disposto no artigo 7°, inciso IV da Consituição Federal? 172 iniciativa federal que, ilustrativamente e não exaustivamente, podemos mencionar: (i) Programa Merenda Escolar; (ii) Programa Minha Casa Minha Vida; (iii) Benefício de Prestação Continuada; (iv) Seguro-Desemprego, dentre outros. Mesmo assim, remanesce aqui o mesmo sentimento expresso por Norberto Bobbio270, qual seja: “o problema grave de nosso tempo, com relação aos direitos do homem, não era mais fundamentá-los, e sim protegê-los” e que “com efeito, o problema que temos diante de nós não é filosófico, mas jurídico e, num sentido mais amplo, político”. Político porque depende de uma atuação governamental. E mais, político porquanto é preciso estabelecer metas – e, de fato, condicionalidades – para que essas políticas positivas sejam instrumento de desenvolvimento de capacidades e habilidades e não de dependência. Afinal de contas, um ser livre é um ser capaz de decidir a maneira pela qual ele gostaria de viver e, portanto, a liberdade humana é um fim e um meio do desenvolvimento271. Em termos econômicos, trataremos de crescimento. Crescimento como toda a forma de progresso econômico, ou, até mesmo, como forma de aferição da distribuição de renda na forma de produto per capita. Ou, nas palavras de Eros Roberto Grau272: (...) a ideia de desenvolvimento supõe dinâmicas mutações e importa em que se esteja a realizar, na sociedade por ela abrangida, um processo de mobilidade social contínuo e intermitente. O processo de desenvolvimento poderia levar a um salto, de uma estrutura social para outra, acompanhado de elevação do nível econômico e do nível cultural-intelectual comunitário. Daí por que, importando a consumação de mudanças de ordem não apenas quantitativa, mas também qualitativa, não poderia o desenvolvimento ser confundido 270 Bobbio, Norberto. A Era dos Direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. 11.ed. Campus: Rio de Janeiro, 1992, p. 25. 271 Amartya Sen leciona que são pelo menos 05 (cinco), os diferentes tipos de liberdades instrumentais, a saber: (i) liberdade política; (ii) facilidades econômicas; (iii) oportunidades sociais; (iv) garantias de transparência; e (v) segurança protetiva. Nesse sentido, referido autor esclarece que essas liberdades instrumentais aumentam diretamente as capacidades individuais, e, ao mesmo tempo, reforçam umas as outras (Sen, Amartya. Development as Freedom. Oxford University Press: Oxford, 1999, pp. 38-41). 272 Grau, Eros Roberto. Elementos do Direito Econômico. RT: São Paulo, 1981, pp. 7-14. 173 com a ideia de crescimento. Este último, meramente quantitativo, compreenderia uma parcela da noção de desenvolvimento. Ainda que se busque negar, crescimento e desenvolvimento são conceitos bastante interligados a ponto de José Afonso da Silva273 tratá-los como princípios de integração, “porque todos estão dirigidos a resolver os problemas da marginalização social ou regional”, ou seja, na defesa de diversos interesses, como, por exemplo, do consumidor, do meio ambiente, da busca do pleno emprego, dentre outros. Mesmo na atualidade o mais importante método de medição do desenvolvimento humano não conseguiu excluir o fator “renda” de sua análise, senão vejamos. 5.1.1 O Índice de Desenvolvimento Humano Superada a questão conceitual entre crescimento e desenvolvimento, o nível de desenvolvimento de um país não pode – e nem deve – restar pautada simplesmente no produto interno bruto. O fato de o produto interno bruto representar a soma dos bens e dos serviços produzidos em um país em um determinado período de tempo revela tão somente um indicador macroeconômico e não de distribuição (equitativa) de riqueza. Não se olvida que os recursos e a renda que os indivíduos podem gerar são deveras importantes, mas se não analisados sob outros aspectos (por exemplo, das capacidades e das oportunidades que o indivíduo possui ao longo de sua vida), não refletem o real desenvolvimento de um país. Por tal razão, Carla Abrantkoski Rister274 entende que: Assim, a própria inclusão ou exclusão de certas categorias na definição do PNB é arbitrária, como a não-inclusão do tempo destinado ao lazer dos trabalhadores, bem como a exclusão do autoconsumo e do auto-investimento, tal como do trabalho 273 Silva, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição. Editora Malheiros: São Paulo, 2005, p. 713. 274 Rister, Carla Abrantkoski. Direito ao Desenvolvimento: Antecedentes, Significados e Consequências. Renovar: Rio de Janeiro, 2007, p. 3. 174 doméstico. Os números do PNB também não tomam em consideração a deteriorização do meio ambiente resultante da atividade econômica necessária para obter tal produto. Além disso, cogita-se que o alto PNB de alguns países seria obtido à custa do esgotamento dos recursos de outros, que, desse modo, não teriam grandes possibilidades de progresso. Assim, partindo-se da premissa de que o crescimento econômico não era o parâmetro mais adequado para se medir o desenvolvimento sustentável, em meados de 1990, o índice de desenvolvimento humano adotado nos relatórios sobre desenvolvimento no âmbito do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento passou a ser referência-padrão para medição da qualidade de vida dos indivíduos. Criado pelos economistas Mahbub ul Haq e Amartya Sen, referido índice buscou uma alteração de perspectiva, tendo o ser humano como centro das atenções. Esclarece Vladmir Oliveira da Silveira que o “IDH é um indicador de bemestar humano que confronta a situação relativa do desenvolvimento dos países, e cujo principal objetivo é oferecer um contraponto ao tradicional instrumento utilizado como indicador, qual seja, o PIB per capita que, habitualmente, é utilizado para a medição do crescimento da riqueza econômica”275. Atualmente, o índice de desenvolvimento humano tem como principais pilares a saúde, a educação e a renda, mensuradas da seguinte forma276: (i) a saúde, ou seja, o direito a uma vida longa e saudável é medida em função da expectativa de vida; (ii) a educação, consubstanciada no acesso ao conhecimento, é medida por: (a) média de anos de educação de adultos, que é o número médio de anos de educação recebidos durante a vida por pessoas a partir de 25 (vinte e cinco) anos; e (b) expectativa de anos de escolaridade para crianças na idade de iniciar a vida escolar, que é o número total de escolaridade que uma criança na idade de iniciar a 275 Silveira, Vladmir Oliveira da. O Direito ao Desenvolvimento na Doutrina Humanista do Direito Econômico. São Paulo, 2006. 382f. Tese (Doutorado em Direito) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2006, p. 181. 276 Para maior aprofundamento, ver: <http://www.pnud.org.br>. Acesso em 30 de junho de 2014. 175 vida escolar pode esperar receber se os padrões prevalecentes de taxas de matrículas específicas por idade permanecerem os mesmos durante a vida da criança; e (iii) a renda, enquanto padrão de vida, é medida pela renda nacional bruta per capita expressa em poder de paridade de compra constante, em dólar, tendo 2005 como ano de referência. Por meio da apuração de dados estatísticos colhidos entre os países participantes277, envolvendo os 03 (três) pilares acima mencionados, o resultado pode variar entre 0 (zero) e 1 (um), sendo que quanto mais próximo de 1 (um), maior a qualidade de vida dos indivíduos. A ilustração abaixo demonstra a evolução do índice de desenvolvimento humano no Brasil, que cresceu de 0.545 para 0.744, em um período de 33 (trinta e três) anos278: FIGURA 9 – EVOLUÇÃO DO ÍNDICE DE DESENVOLVIMENTO HUMANO Fonte: Nota Técnica brasileira ao Relatório do Desenvolvimento Humano 2014 A partir de 2010, novos indicadores foram incorporados ao índice de desenvolvimento humano, na qual podemos citar os seguintes: (i) o índice de 277 Até a conclusão da presente dissertação, o índice de desenvolvimento humano mediu a qualidade de vida de 187 (cento e oitenta e sete) países. 278 Em termos comparativos, e de acordo com a atual posição no índice de desenvolvimento humano, o Brasil teve o melhor desempenho que a média dos BRICS, cujo índice foi de 0.697. A Rússia ficou em 57° (quincagésimo sétimo) lugar com 0.788; a China ficou em 91° (nonagésimo primeiro) lugar com 0.719; a África do Sul ficou em 118° (centésimo octagésimo oitavo) lugar com 0.658; e a Índia ficou em 135° (centésimo trigésimo quinto) lugar com 0.586 (Disponível em: <http://www.pnud.org.br/arquivos/Nota%20T%C3%A9cnica%20Brasil.pdf>. Acesso em 27 de julho de 2014). 176 desenvolvimento humano ajustado à desigualdade; (ii) o índice de desigualdade de gênero; e (iii) o índice de pobreza multidimensional. O índice de desenvolvimento humano ajustado à desigualdade se tornou um importante elemento para se chegar ao índice real do desenvolvimento humano (em contrapartida a um percentual potencial fornecido pelo índice de desenvolvimento humano), na medida em que “leva em consideração a desigualdade entre as 03 (três) dimensões do índice de desenvolvimento humano ‘descontando’ o valor médio de cada dimensão de acordo com seu nível de desigualdade”. Nesse sentido, o Índice de Desenvolvimento Humano do Brasil após tal ajuste cai de 0,744 para 0,542, representanto, assim, uma perda de 27% (vinte e sete por cento). Por sua vez, o índice de desigualdade de gênero leva em consideração 03 (três) fatores, a saber: (a) saúde reprodutiva. (b) autonomia; e (c) atividade econômica. E, de acordo com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, “a saúde reprodutiva é medida pelas taxas de mortalidade materna e de fertilidade entre as adolescentes; a autonomia é medida pela proporção de assentos parlamentares ocupados por cada gênero e a obtenção de educação secundária ou superior por cada gênero; e a atividade econômica é medida pela taxa de participação no mercado de trabalho para cada gênero”. De acordo com o Relatório do Desenvolvimento Humano 2014, o Brasil tem um Índice de Desigualdade de Gênero equivalente a 0,441 colocando-o na 85° (octagésimo quinto) posição de 149 (cento e quarenta e nove) países avaliados. Por fim, o índice de pobreza multidimensional identifica as “privações múltiplas em educação, saúde e padrão de vida nos mesmos domicílios”. Ou seja, tem como objetivo acompanhar a pobreza que vai além da pobreza de renda, sendo medido em função da população que vive abaixo de poder de paridade de compra de US$1,25 (um dólar e vinte e cinco centavos) por dia. A última medição deste Índice no Brasil foi em 2012, na qual se apurou que 3,1% (três vírgula um por cento) da população é multidimensionalmente pobre, enquanto 7,4% (sete vírgula quatro por cento) estão próximos da pobreza multidimensional. A taxa de privação das 177 pessoas em situação de pobreza multidimensional no Brasil é de 40,8% (quarenta vírgula oito por cento). Mas o que vale ressaltar para os fins da presente dissertação é que o Brasil, conforme mencionamos no início deste Capítulo, apesar de muito bem colocado economicamente no cenário internacional, ocupa uma posição não muito privilegiada em termos de desenvolvimento humano. Ainda assim, não podemos deixar de observar um grande avanço nos últimos tempos, principalmente com a Constituição Federal de 1988, que criou um sistema de proteção de direitos sociais relativamente sólidos. Ademais, atribuiu ao Estado o dever de garantir o desenvolvimento social, de erradicar a pobreza e combater desigualdades (artigo 3°, incisos II, III e IV). A crise subprime de 2008 não teve os mesmos reflexos no Brasil, se comparados com os Estados Unidos e alguns países da União Europeia, cujos efeitos se alastram até hoje, quase 06 (seis) anos após o estouro da bolha imobiliária. Isso restou claro. E a “marola” que se abateu no país se deve muito mais à instauração de políticas sociais inclusivas aliadas ao fato de possuir um ambiente regulatório que se mostrou eficiente, embora ainda haja muito que se fazer, além do que simples edição de medidas paliativas implementadas pelo governo pelas razões já explicitadas no Capítulo anterior. Reitere-se que o desenvolvimento não tem início com a produção de bens ou inovação de produtos financeiros; tem como origem as pessoas e suas potencialidades ou deficiências. E saber enxergar essas deficiências é o cerne do direito ao desenvolvimento, e que permite a elaboração de políticas públicas eficientes e direcionadas. 5.1.2 O Índice do Bom País Recentemente, foi divulgado o primeiro relatório utilizando o Índice do Bom País. Desenvolvido por Simon Anholt e construído por Robert Govers, esse Índice tem como principal característica mensurar a contribuição de cada país ao bem-estar mundial e ao desenvolvimento do ser humano, a partir da análise de 178 diversas variáveis conjuntamente. Seu criador se afastou da premissa de mensurar o quão bem um determinado país está se saindo. Ao invés disso, procurou aliar em seu Índice todos os aspectos que entende importante: Because the biggest challenges facing humanity today are global and borderless: climate change, economic crisis, terrorism, drug trafficking, slavery, pandemics, poverty and inequality, population growth, food and water shortages, energy, species loss, human rights, migration (…) the list goes on. All of these problems stretch across national borders, so the only way they can be properly tackled is through international efforts. The trouble is, most countries carry on behaving as is they were islands, focusing on developing domestic solutions to domestic problems. The Good Country Index isnt’t interested in how well countries are doing, it’s interested in how much they are doing279. A intenção do Índice do Bom País, portanto, procura entender o impacto global de certos comportamentos individuais (ou seja, de cada país), a fim de entender a contribuição de cada um para o progresso da humanidade. Ou, nas palavras de Simon Anholt, o Índice do Bom País pretende “encouraging populations and their governments to be more outward looking, and to consider the international consequences of their national behavior”280. E aqui reiteramos no âmbito do direito ao desenvolvimento o ponto que defendemos no Capítulo anterior com relação ao mercado de capitais: de que escolhas individuais podem ter resultados coletivos catastróficos. 279 Tradução livre da autora: “Porque os maiores desafios que a humanidade enfrenta hoje são globais e sem fronteiras: mudança climática, crise econômica, terrorismo, tráfico de drogas, escravidão, pandemias, pobreza e desigualdade, crescimento populacional, escassez de alimentos e de água, energia, perda de espécies, direitos humanos, migração (... ) a lista continua. Todos esses problemas se estendem para além das fronteiras nacionais, por isso, a única maneira que eles podem ser adequadamente tratados é por meio de esforços internacionais. O problema é que a maioria dos países continuam se comportando como se fossem ilhas, com foco no desenvolvimento de soluções nacionais para problemas domésticos. O Índice do Bom País não está interessado em como os países estão se saindo, mas sim o quanto eles estão fazendo” (Disponível em: <http://www.goodcountry.org>. Acesso em 09 de julho de 2014). 280 Tradução livre da autora: “incentivando as populações e os seus governos a ser voltar para fora, e considerar as consequências internacionais do seu comportamento nacional” (Disponível em: <http://www.goodcountry.org>. Acesso em 09 de julho de 2014). 179 Seguindo a mesma lógica do Índice de Desenvolvimento Humano, o Índice do Bom País entende que a busca constante do crescimento econômico per se não deve se dar em detrimento de custos sobre o meio ambiente ou do bem-estar de outrem. O Brasil, dentre os 125 (cento e vinte e cinco) países analisados, se encontra na 49° (quadrigésima nona) posição. Referido Índice leva em consideração variáveis como: (i) Ciência e tecnologia: que avalia questões como estudantes internacionais, exportação intelectual, publicações internacionais, prêmios Nobel e patentes (75° lugar); (ii) Cultura: que avalia questões como exportações de bens e serviços inovadores; liberdade de movimentação, liberdade de imprensa e atraso em termos de educação (49° lugar); (iii) Paz e segurança internacionais: que avalia questões como tropas de paz, violentos conflitos internacionais, exportação de armas, segurança na internet e dívidas em atraso para os orçamentos de manutenção da paz da Organização das Nações Unidas (83° lugar); (iv) Ordem internacional: que avalia questões como doações de caridade, hospedagem de refugiados, criador de refugiados, crescimento populacional e quantidade de tratados internacionais assinados junto à Organização das Nações Unidas (37° lugar); (v) Planeta e clima: que avalia questões como reserva de biodiversidade, exportação de lixo tóxico, emissão de poluentes orgânicos na água, emissão de gás carbônico e outras emissões de gases de efeito estufa (5° lugar); (vi) Prosperidade e igualdade: que avalia questões como liberalização do comércio, voluntários da Organização das Nações Unidas no exterior, tamanho do mercado, fluxo de investimento externo direto e assistência ao desenvolvimento (123° lugar); e 180 (vii) Saúde e bem-estar: que avalia questões como ajuda alimentar, exportação farmacêutica, doações e ajudas humanitárias, apreensões de drogas, e doações voluntárias para a Organização Mundial do Comércio (52° lugar). Esse Índice é de suma importância porquanto mais abrangente que o Índice de Desenvolvimento Humano, trazendo consigo uma valia inestimável para uma atuação governamental positiva e assertiva no âmbito interno, a saber: aponta as deficiências e as potencialidades brasileiras em diversos setores em detrimento de outros países analisados. 5.2 O DIREITO AO DESENVOLVIMENTO COMO DIREITO HUMANO Entender o desenvolvimento como um direito humano imprescinde, antes de qualquer coisa, fazer uma diferenciação quanto o conteúdo e a extensão de 02 (duas) expressões que, por vezes, são indevidamente tidas como sinônimas. São elas: o direito ao desenvolvimento e o direito de desenvolvimento281. Leciona Vladmir Oliveira da Silveira282 que: Partir-se-á do princípio da diferenciação, pois o direito ao desenvolvimento é um direito inerente ao homem, aos Estados e aos povos, em contrapartida do direito do desenvolvimento, que é um inerente apenas aos Estados. Sendo, assim, verifica-se que o direito ao desenvolvimento é um direito de titularidade coletiva que atende aos anseios tanto das nações, como também dos indivíduos, enquanto o direito do desenvolvimento foi idealizado para ser essencialmente interestatal. 281 Foi em 1972, ao ministrar um curso de Direitos Humanos no Instituto Internacional dos Direitos Humanos, que o jurista senegalês Etiene Keba M’Baye, diferenciou tais expressões entre le droit du développement e o le droit au développement. E, na língua inglesa, respectivamente, entre o the law of development e o the right to development (Bunn, Isabella D. The Right to Development and International Economic Law: Legal and Moral Dimensions. Hart Publishing: Oxford, 2012, p. 41). 282 Silveira, Vladmir Oliveira da. O Direito ao Desenvolvimento na Doutrina Humanista do Direito Econômico. São Paulo, 2006. 382f. Tese (Doutorado em Direito) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2006, p. 182. 181 Pode-se dizer que o direito ao desenvolvimento está diretamente relacionado ao direito internacional dos direitos humanos, pois por princípio, todos os seres humanos, sem qualquer tipo de distinção, têm direito ao conhecimento e realizar-se enquanto ser de dignidade especial. Nesse sentido, possuem aptidão para terem assegurados os mesmos tipos de valores (valores do homem) sobre os elementos essenciais da vida, uma vez que são portadores de um referencial comum que os caracteriza como membros da humanidade. Sob um prisma diferente, Cláudia Perrone-Moisés283 difere o direito ao desenvolvimento do direito do desenvolvimento da seguinte forma: “no primeiro caso, trata-se de um dos direitos humanos na concepção das Nações Unidas, e, no segundo, de um conjunto de normas jurídicas, ora consideradas como um ramo do direito internacional, ora como um método de investigação, e que têm como característica principal procurar eliminar a diferenças de desenvolvimento, tanto no plano interno como no internacional”. E em função dessa diferenciação é que a Organização das Nações Unidas preferiu a preposição ao e não de para acompanhar a declaração sobre desenvolvimento de 1986, classificando-o como direitos humanos284. Não obstante, seu contexto político data de muito antes. O período subsequente à Segunda Guerra Mundial, que culminou com o surgimento da Organização das Nações Unidas, caracterizou-se pelo estabelecimento de uma nova era baseada na cooperação internacional, ou seja, na fraternidade. A própria Carta das Nações Unidas, embora não faça qualquer tipo de referência ao direito ao desenvolvimento propriamente dito, traz seus contornos básicos, na medida em que traz para si, e para os seus membros, uma 283 Perrone-Moisés, Cláudia. Direito ao Desenvolvimento e Investimentos Estrangeiros. Oliveira Mendes: São Paulo, 1998, p. 49. 284 Dispõe o artigo 1°, item 1 que: “o direito ao desenvolvimento é um direito humano inalienável em virtude do qual toda pessoa humana e todos os povos estão habilitados a participar do desenvolvimento econômico, social, cultural e político, a ele contribuir e dele desfrutar, no qual todos os direitos humanos e liberdades fundamentais possam ser plenamente realizados”. Já o item 2 desse mesmo artigo, remete o direito ao desenvolvimento à ideia de autodeterminação, in verbis: “o direito humano ao desenvolvimento também implica a plena realização do direito dos povos de autodeterminação que inclui, sujeito às disposições relevantes de ambos os Pactos Internacionais sobre Direitos Humanos, o exercício de seu direito inalienável de soberania plena sobre todas as suas riquezas e recursos minerais”. 182 responsabilidade colaborativa de favorecer os “níveis mais altos de vida, trabalho efetivo e condições de progresso e desenvolvimento econômico e social” (artigo 55, alínea “a”). A Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, por sua vez, proclama o reconhecimento dos direitos naturais como inalienáveis e sagrados do homem, cujo reconhecimento e observância deve ser feita por meio de medidas (jurídicas) tanto domésticas quanto internacionais. As décadas de 1950 e 1960 foram simbólicas para a construção das bases do desenvolvimento que, fundada na solidariedade, tinha como premissa que “o que era bom para os ricos deve ser bom para os pobres”, sob uma perspectiva de países mais ou menos industrializados. Atualmente, o parâmetro de distinção entre os países utilizam expressões como “países mais desenvolvidos”, “países em desenvolvimento” e “países emergentes”. Muitos dos documentos elaborados nesse período, no entanto, também acabaram por não fazer referência direta ao direito ao desenvolvimento 285, como, por exemplo, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ambos adotados, em 1966, pela Organização das Nações Unidas. O cenário jurídico no âmbito da Organização das Nações Unidas voltavase à proteção de direitos humanos e o estabelecimento de uma nova ordem jurídica internacional. Somente em 1977, a Comissão de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas solicitou ao Secretário Geral um estudo aprofundado acerca das dimensões internacionais do direito ao desenvolvimento enquanto direito do ser humano, dando especial atenção aos obstáculos enfrentados pelos países em desenvolvimento em seus esforços para assegurar o gozo desse direito. O estudo desenvolvido pela Comissão de Direitos Humanos acabou por culminar na Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento (1986), não obstante as objeções 285 Muito embora há quem entenda que a Organização das Nações Unidas ao adotar a Declaração sobre a Concessão da Independência aos Países e Povos Coloniais de 1960, acabou por erigir o direito à autodeterminação como uma fonte importante do direito do desenvolvimento. Nesse sentido, ver: Bunn, Isabella D. The Right to Development and International Economic Law: Legal and Moral Dimensions. Hart Publishing: Oxford, 2012, p. 35. 183 realizadas pelos Estados Unidos, que, diga-se de passagem, foi o único país a rejeitar o texto da referida Declaração: Unlike the Universal Declaration of Human Rights, the declaration on the right to development just adopted by the Committee was imprecise and confusing. Development, which the declaration defined as the constant improvement of the well-being of the entire population, was not assured by governmental promises but by performance. References to the human rights of peoples were inconsistent with the proper concept of human rights as rights of the individuals. Her delegation took exception to the connection drawn between disarmament and development and disagreed with the view that development was to be principally achieved by transfers of resources from the developed to the developing world. Lastly, it was to be feared that the declaration on the right to development would tend to dilute and confuse the existing human rights agenda of the United Nations, already filled to overflowing with issues posed by numerous failures to respect the Universal Declaration of Human Rights286. Mas qual é, em realidade, o conteúdo por detrás do direito ao desenvolvimento? Como tornar o direito ao desenvolvimento exequível? A resposta à primeira pergunta será mais bem desenvolvida no tópico seguinte, uma vez que não é possível dissociar uma acepção moral, com raízes jusnaturalistas287, do conceito do direito ao desenvolvimento. Porém, é imprescindível levar em consideração que a Declaração em referência elevou o indivíduo como peça chave 286 Tradução livre da autora: “Ao contrário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, a Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento adotada pelo Comitê é imprecisa e confusa. O desenvolvimento, que a Declaração define como a constante melhoria do bem-estar de toda a população, não foi assegurada por promessas governamentais, mas por sua performance. As referências aos direitos humanos dos povos são inconsistentes com o próprio conceito de direitos humanos como direito dos indivíduos. Sua delegação excepcionou à conexão estabelecida entre desarmamento e desenvolvimento e em desacordo com a visão de que o desenvolvimento seria principalmente alcançado por meio da transferência de recursos dos países desenvolvidos para países em desenvolvimento. Por último, era de se recear que a declaração sobre o direito ao desenvolvimento tenderia a diluir e confundir a agenda de direitos humanos existente das Nações Unidas, já transbordada com as questões colocadas por inúmeras falhas que dizem respeito à Declaração Universal dos Direitos Humanos”. 287 Para apronfundamento no tema, ver: Tuck, Richard. Natural Rights Theories Origins and Development. Cambridge: London, 1979. 184 no processo de desenvolvimento e não simplesmente como um mero fator de produção. De certa forma, a segunda pergunta é passível de solução com a resolução da primeira. Mas, tendo em vista que a Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento prestigia uma atuação positiva e colaborativa entre os países, os indivíduos e a coletividade, há que se ter uma coordenação entre os órgãos participantes do Sistema das Nações Unidas (universal ou regional), organizações não governamentais e o próprio governo. Nesse sentido, adverte Carla Abrantkoski Rister288 que: (…) deve ser oferecida [a cooperação internacional] em condições favoráveis para assegurar o pleno exercício do direito ao desenvolvimento, pois, caso contrário, ela se transforma em um simples financiamento capaz de acarretar o endividamento de países em vias de desenvolvimento e aumentar o seu grau de dependência econômica. Por isso, assume maior relevância a atuação das organizações internacionais que objetivam promover e fomentar as atividades econômicas e financeiras em geral, tal como a Organização Mundial do Comércio, o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial289, na medida em que, reitere-se, o direito ao desenvolvimento vai além de questões econômicas, englobando, também, aspectos relativos ao meio ambiente, à justiça social, à democracia, etc. A esse respeito, Pelo processo dinamogênico, os direitos fundamentais, que na ideologia da primeira dimensão fundamentava-se na liberdade e na ideia de justiça comutativa, avançaram, na segunda dimensão, para o estabelecimento da igualdade e da justiça distributiva, chegando 288 Rister, Carla Abrantkoski. Direito ao Desenvolvimento: Antecedentes, Significados e Consequências. Renovar: Rio de Janeiro, 2007, p. 3. 289 Remetemos o leitor às críticas realizadas por nós no Capítulo 2 com relação às referidas organizações internacionais que, em nosso ponto de vista, por vezes, segue em direção contrária ao direito ao desenvolvimento. Entretanto, vale mencionar a atuação da Organização Mundial do Comércio, por meio da Rodada de Doha, que volta suas atenções ao desenvolvimento sustentável. Infelizmente, dentre outras razões, a crise suprime de 2008 impediu sua conclusão. 185 hoje a uma perspectiva altamente diferenciada, mas somadas àquelas das dimensões anteriores, desta vez focada na justiça social, que busca garantir ao gênero humano o direito a um ambiente justo e propício ao desenvolvimento pleno de todos, notadamente do futuro da humanidade290. O crescimento econômico, portanto, passa a ter uma nova perspectiva finalística, a saber: o crescimento sustentável, preservando não somente os direitos da presente geração, mas também os direitos das gerações futuras. 5.2.1 Acepção Moral e Ética Restou determinado, principalmente após a Segunda Conferência Mundial da Organização das Nações Unidas sobre Direitos Humanos em Viena, em 1993, que o direito ao desenvolvimento é um direito humano, ou seja, inerente e indissociável a todo e qualquer ser humano. E algumas são as premissas 291 para se chegar a essa assertiva, que pretendemos desenvolver nessa seção, buscando preencher o conteúdo do direito ao desenvolvimento. Uma delas se refere à indispensabilidade, ou seja, o direito ao desenvolvimento é indispensável ao exercício de outros direitos. Seria, nos dizeres de Georges Abi-Saab, “a necessary precondition for the satisfaction of the social and economic rights of individuals”292. Ou, nas palavras de Arjun Sengupta293, “o direito humano ao desenvolvimento é um direito a um processo particular de desenvolvimento no qual todos os direitos humanos e liberdades fundamentais podem ser totalmente realizados – o que quer dizer que combina todos os direitos 290 Cardoso, Alenilton da Silva. O Problema Social da Indiferença o Contexto Ético da Solidariedade. In: Campello, Lívia Gaigher Bósio; Santiago, Mariana Ribeiro. Capitalismo Humanista e Direitos Humanos. Conceito Editorial: Florianópolis, 2013, pp. 130-131. 291 Bunn, Isabella D. The Right to Development and International Economic Law: Legal and Moral Dimensions. Hart Publishing: Oxford, 2012, pp. 79-91. 292 Tradução livre da autora: “uma necessária precondição para a satisfação dos direitos social e econômico dos indivíduos” (Abi-Saab, Georges. The Legal Formulation of a Right to Development. In: Dupuy, René-Jean (ed.). Hague Academy of International Law Colloquium on the Right to Development at the International Level. Sijthoff & Noordhoff: The Netherlands, 1980, p. 172). 293 Sengupta, Arjun. O Direito ao Desenvolvimento como um Direito Humano. Social Democracia Brasileira. Março de 2002, p. 69. 186 apresentados em ambos acordos e cada um dos direitos deve ser exercido com liberdade”. Outra é corolário da Revolução Francesa, na qual o direito ao desenvolvimento “em paralelo com a liberdade implica em livre, efetiva e total participação de todos os indivíduos implicados no processo decisório e na implementação do processo”, sendo que este “deve ser transparente e passível de avaliação”, na qual “os indivíduos devem ter oportunidades iguais de acesso aos recursos para o desenvolvimento e receber distribuição justa dos benefícios do desenvolvimento (e renda)”294. Inserido no conceito de solidariedade, encontramos como fundamento a cooperação internacional em todos os níveis. Diferentemente do que ocorre em se tratando dos direitos de primeira e segunda dimensões que podem ser preenchidos por ações estatais no contexto jurídico doméstico. Uma terceira e última premissa seria considerar o direito ao desenvolvimento como uma espécie de “núcleo duro” dos demais direitos humanos, o que nos remete à crítica, nesse aspecto, repousada no fato de o direito ao desenvolvimento – portanto, os direitos humanos – estar sendo constantemente violado em caso de inércia governamental de prover aos seus indivíduos mecanismos de realização de suas liberdades instrumentais. Adicionalmente, cria uma espécie de hierarquia de direitos, que violaria o caráter indivisível e interdependente dos direitos humanos atribuído pela Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento (1986). A verdade é que talvez não se tenha tido a intenção de preencher efetivamente o conceito de desenvolvimento, na medida em que, em função do direito à autodeterminação dos povos (não só previsto constitucionalmente, como em diversos documentos internacionais), cada Nação é responsável por definir suas próprias políticas de desenvolvimento, a partir da percepção das deficiências – atuais ou futuras – de sua população. E, internacionalmente, os Estados se comprometem 294 a envidar esforços de cooperação junto aos países em Sengupta, Arjun. O Direito ao Desenvolvimento como um Direito Humano. Social Democracia Brasileira. Março de 2002, p. 69. 187 desenvolvimento e emergentes e as organizações internacionais, com os meios adequados para a consecução do desenvolvimento integral (triple bottom line). Corroborando esse entendimento, muito embora fazendo referência aos que criticam a classificação do direito ao desenvolvimento como direito humano – na medida em que o direito ao desenvolvimento seria um direito coletivo e o direito humano seria um direito natural individual –, Arjun Sengupta295 argumenta que “o direito ao desenvolvimento como um direito humano traz à tona questões sobre as quais o mundo tem estado fundamentalmente dividido – tais como as relacionadas às ideias de justiça, igualdade e prioridades da política internacional”. E essa divisão, surgida pela tensão e bipolarização decorrente da Guerra Fria, nos parece não ter mais sentido nos dias atuais. Entendemos não ser pretensão da Organização das Nações Unidas elaborar um plano uniforme de desenvolvimento universal. Tanto é assim que a própria Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento destaca quem são os sujeitos ativos e passivos do direito ao desenvolvimento e as premissas sobre as quais ele deve ser desenvolvido. Ademais, não imputa quaisquer sanções aos países que deixam de observar suas recomendações. Sem contar que por mais que o direito ao desenvolvimento seja geralmente aceito e reconhecido na sociedade internacional, ele é, em nosso entendimento, mais pragmático do que juridicamente vinculativo. Assim, objetiva a Organização das Nações Unidas incentivar uma ação coletiva e colaborativa com vistas a proporcionar uma igualdade de oportunidades de desenvolvimento, em um contexto multidimensional (social, econômico, cultural, civil, político e ambiental). 295 Sengupta, Arjun. O Direito ao Desenvolvimento como um Direito Humano. Social Democracia Brasileira. Março de 2002, p. 66. 188 5.3 O DESENVOLVIMENTO COMO LIBERDADE A liberdade é uma das prerrogativas conquistadas pelos indivíduos a partir da Revolução Francesa e tornou-se peça fundamental no processo de desenvolvimento, na medida em que o desenvolvimento integral somente será possível a partir da remoção das principais fontes de privação de liberdade, tais como: pobreza, tirania, insuficientes oportunidades econômicas, restrições sociais, negligência dos serviços públicos, etc. A liberdade, portanto, daria a possibilidade a todo e qualquer indivíduo viver a vida que melhor lhe aprouver, o que equivale dizer que “the usefulness of wealth lies in the things that it allow us to do – the substantive freedom it helps us to achieve”296. E essa liberdade vai além de meros indicadores macroeconômicos, ou seja, a acumulação de riqueza e aumento do produto interno bruto. Nesses termos, o desenvolvimento como liberdade deve ser entendido de 02 (duas) formas, a saber: (i) os processos que permitem a liberdade de ação e decisão e (ii) as reais oportunidades oferecidas aos indivíduos, dadas suas circunstâncias pessoais e sociais. Sob essas perspectivas, Amartya Sen, em seu livro Development as Freedom, chama a atenção para o papel dos mercados no contexto das liberdades, afirmando que “a denial of opportunities of transaction, through arbitrary controls, can be a source of unfreedom itself”297. Em outras palavras, negar arbitrariamente os mecanismos de mercado – impondo restrições excessivas ao seu regular funcionamento – também é uma forma de não liberdade, porquanto pior seria a sua ausência. 296 Tradução livre da autora: “a utilidade da riqueza está nas coisas que ela nos permite fazer – a liberdade substantiva que nos ajuda a alcançar” (Sen, Amartya. Development as Freedom. Oxford University Press: Oxford, 1999, p. 14). 297 Tradução livre da autora: “uma negação de oportunidades de transação, por meio de controles arbitrários, pode ser em si mesma uma forma de não liberdade”. Muito embora reconheça que o mercado, por vezes, pode ser contraprodutivo, especialmente em se tratando dos movimentos especulativos do mercado financeiro (Sen, Amartya. Development as Freedom. Oxford University Press: Oxford, 1999, p. 25). 189 Entretanto, isso não significa que regular um determinado segmento do mercado, por exemplo, os mercados financeiros e de capitais, é uma forma de privar o indivíduo de liberdade. Pelo contrário, deve entendida como a melhor maneira de prestigiar a liberdade individual contra agentes maus intencionados. Como exemplo, podemos citar a atuação do Conselho Administrativo de Defesa Econômica contra eventuais abusos dos agentes econômicos, infringindo o direito concorrencial. Em um sistema de economia de mercado, a competição é elemento essencial que permite às empresas, além da sobrevivência, a ampliação de seu mercado. E nesse cenário, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica passa a ser o órgão responsável pela análise de eventual concentração de mercado por setor produtivo. A cautela para a aprovação de eventuais operações societárias (fusão e aquisição) é necessária em decorrência do risco de redução da concorrência ou falta de concorrência entre empresas, impactando gravemente a elasticidade da demanda na economia do país. Ou seja, sem competitividade no mercado interno, a empresa poderá cobrar preços exorbitantes por um produto ou serviço e, muitas vezes, em sendo um bem ou serviço essencial, o valor terá de ser suportado pelo consumidor final298. Ademais, é a indispensabilidade de um Estado necessário que compensa as desigualdades econômicas por meio de um adequado suporte social. Assim, por exemplo, o desemprego causado pela crise subprime de 2008. A perda da renda de diversos indivíduos por conta das demissões foi compensada, ainda que parcial e temporariamente, pela existência de benefícios sociais (seguro-desemprego). Entretanto, contra-argumenta, Amartya Sen299 que: 298 Vide caso, por exemplo, da fusão entre a Sadia S.A e Perdigão S.A. que originou a BR Foods S.A., ou, mais recentemente, a fusão entre a Kroton Educacional S.A. e a Anhanguera Educacional Particiações S.A. Em ambos os casos, houve intervenção do Conselho Administrativo de Defesa Econômica para que fosse evitada uma concentração de mercado, prejudicando o consumidor. Como condição para aprovação de ambas as operações, determinou-se a venda de certos ativos em prazo determinado pelo respectivo órgão regulatório. 299 Tradução livre da autora: “Há muitas evidências de que o desemprego tem muitos outros efeitos de longo alcance do que a simples perda de renda, incluindo dano psicológico, perda de motivação no trabalho, competência e autoconfiança, aumento do número de doença e morbidade (e até mesmo as taxas de mortalidade), o rompimento de relações familiares e da vida social, o endurecimento da 190 There is plenty of evidence that unemployment has many farreaching effects other than loss of income, including psychological harm, loss of work motivation, skill and self-confidence, increase in ailment and morbidity (and even mortality rates), disruption of family relationships and social life, hardening of social exclusion and accentuation of racial tension and gender asymmetries. E, de certa forma, há uma razão em seu contraponto, na medida em que, conforme tratamos do assunto anteriormente neste Capítulo, não basta simplesmente à concessão de benefícios sociais que compensem a perda de renda, se outros tipos de liberdades foram privados aos indivíduos. A melhoria na qualidade de vida seria, deste modo, limitada, porquanto tais benefícios não são – e nem deveriam ser – ad eternum. O que se quer dizer com isso, e corroborando as ideias já apresentadas, é que ações governamentais – ou o debate político a respeito do assunto junto à sociedade – dá uma ênfase quase que exclusiva à desigualdade de renda (ou a desigualdade em sua distribuição), em detrimento à privação de outras variáveis que envolvem a temática do direito ao desenvolvimento. E é por isso que: The issue of public discussion and social participation is thus central to the making of policy in a democratic framework. The use of democratic prerrogatives – both political liberties and civil rights – is a crucial part of the exercise of economic policy making itself, in addition to other roles it may have. In a freedom-oriented market approach, the participatory freedoms cannot be but central to pubic policy analysis300. A falta dessa percepção dá espaço para outros tipos de ideologias (por vezes, um tanto quanto radicais), sem que tenha havido uma análise mais exclusão social e acentuação de tensões raciais e assimetrias de gênero” (Sen, Amartya. Development as Freedom. Oxford University Press: Oxford, 1999, p. 94). 300 Tradução livre da autora: “A questão da discussão pública e participação social é fundamental para a elaboração de políticas em um cenário democrático. O uso de prerrogativas democráticas – tanto as liberdades políticas quanto os direitos civis – é uma parte crucial do exercício de elaboração de políticas econômicas, além de outros papéis que ela possa ter. Em uma abordagem de mercado orientada para a liberdade, liberdades participativas devem estar no centro da análise das políticas públicas” (Sen, Amartya. Development as Freedom. Oxford University Press: Oxford, 1999, p. 110). 191 aprofundada acerca do impacto dessas propostas alternativas, que podem conduzir a falhas ainda maiores do que a abordagem orientada ao mercado livre. A grande verdade é que o contrato social firmado entre os indivíduos e o Estado faz com que as instituições que o cerceiam (ou que o suportam) sejam as únicas formas de promover para as liberdades individuais. As contribuições dos mercados em termos de aumento de utilidade são incontestáveis, ainda que tais utilidades não garantam uma distribuidade equitativa. Cumpre, entretanto, às instituições democráticas estender tal utilidade às liberdades individuais, no sentido de que, não basta simplesmente a criação de uma rede de proteção social. É imprescindível uma atuação adicional (políticas públicas) com vistas a criar efetivas oportunidades sociais básicas voltadas à equidade e justiça sociais. 5.4 O DIREITO AO DESENVOLVIMENTO E O DIREITO ECONÔMICO INTERNACIONAL A abertura dos mercados, a ausência de barreiras fronteiriças e a maior conectividade entre os países caracterizam o processo de globalização. E esse processo fornece uma nova perspectiva no momento em que interliga a questão do direito ao desenvolvimento às políticas inseridas no contexto do direito econômico internacional. Para Joseph Stiglitz, o problema não é a globalização propriamente dita, mas a maneira pela qual ela é conduzida internacionalmente. Para ele301, “part of the problem lies with the international economic institutions, with the IMF, World Bank, and WTO, which help set the rules of the game”. Nesse sentido, o maior desafio é mudar a abordagem orientada a interesses estritamente financeiros dessas organizações internacionais, para uma 301 Tradução livre da autora: “parte do problema encontra-se nas instituições econômicas internacionais, como o FMI, o Banco Mundial, e a OMC, que ajudam a definir as regras do jogo” (Stiglitz, Joseph. Globalization and Its Discontents. Penguim Books: Nova Iorque, 2002, p. 214). 192 abordagem que prestigie questões envolvendo o meio ambiente, a possibilidade de maior engajamento político e democrático dos países menos desenvolvidos e emergentes no processo de tomada de decisão e um melhor ambiente competitivo. Isso porque, conforme leciona William Greider302: The global system of finance and commerce is in a reckless footrace with history, plunging toward some sorte of dreadful reckoning with its own contradictions, pulling everyone else along with it. (…). The first imperative is to impose some order on the global marketplace to make both finance and commerce more accountable for the consequences of their actions and to give hostage societies more ability to determine their own futures. É um projeto ambicioso, se pensarmos que essas 03 (três) organizações internacionais sofrem bastante influência ideológica de países como os Estados Unidos e Inglaterra, maiores quotistas dessas instituições. Entretanto, determinar o próprio futuro está diretamente relacionado à questão da liberdade como desenvolvimento. E a avidez financeira e sem o devido controle destrói quaisquer probabilidades individuais e tornam impotentes as instituições democráticas. Refrise-se que a crítica refere-se à ausência de uma regulação eficiente e não ao sistema capitalista em si. Acreditamos no poder do mercado. O mercado, devidamente regulado e administrado, tem externalidades positivas. Cabe ao mercado gerar a riqueza produzida. Aos governos, distribuí-la observados certos parâmetros de inclusão social (que não corresponde a assistencialismo social). Às organizações internacionais, cabe adotar uma postura de sensibilidade (ou responsabilidade) social. Um maior engajamento entre as organizações internacionais, sem distinção de escopo, torna-se, no século XXI, uma 302 Tradução livre da autora: “O sistema global das finanças e do comércio está em uma corrida imprudente com a história, mergulhando em direção a algum tipo de acerto de contas terrível com suas próprias contradições, puxando todo mundo junto com ele. (...). O primeiro imperativo é impor alguma ordem no mercado global para fazer tanto as finanças quanto o comércio mais responsáveis pelas conseqüências de suas ações e de proporcionar às sociedades reféns mais capacidade de determinar seu próprio futuro” (Greider, William. One World, Ready or Not: The Manic Logic of Global Capitalism. Simon & Schuster: New York, 1997, pp. 316-317). 193 ferramenta imprescindível para se alcançar qualquer resultado significativo com relação ao direito ao desenvolvimento. E é nesse sentido que buscou a Organização das Nações Unidas com a adoção da Resolução n° 64/172303, em 2009, com a premissa de que a globalização, não obstante ofereça oportunidades e desafios, ainda se mantém deficiente em alcançar os objetivos de integração, cuja lacuna entre os países mais desenvolvidos e os países em desenvolvimento e emergentes ainda é demasiadamente grande, comprometendo a efetividade do direito ao desenvolvimento, principalmente em tempos de crises financeiras. Os países, atingidos pelas crises, tendem a retornar a uma política mais protecionista (beggar-thy-neighbour policy). Em vista disso, a Resolução adotada expressa preocupação com o fraco desempenho da sociedade internacional no cumprimento das metas estabelecidas na Declaração do Milênio da Organização das Nações Unidas (2000) e conta com os sujeitos internacionais para dar mais ênfase ao princípio da cooperação internacional, porquanto “only through broad and sustained efforts to create a shared future, based upon common humanity in all its diversity, can globalization be made fully inclusive and equitable”304. A Declaração do Milênio da Organização das Nações Unidas acabou por estabelecer certos objetivos, os chamados Objetivos de Desenvolvimento do Milênio305 – no total 08 (oito), de acordo com a ilustração abaixo –, impulsionados pelos dispositivos constantes na Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento. Ou seja, partiu-se do pressuposto que a concretização de tais objetivos somente será 303 Disponível em: <http://www.un.org/en/ga/search/view_doc.asp?symbol=A/RES/64/172>. Acesso em 01 de julho de 2014. 304 Tradução livre da autora: “somente por meio de esforços amplos e sustentáveis para criar um futuro comum, baseado na humanidade comum em toda a sua diversidade, pode a globalização se tornar totalmente inclusiva e equitativa” (preâmbulo da Declaração do Milênio da Organização das Nações Unidas). 305 Considerando que o prazo para o cumprimento desses Objetivos de Desenvolvimento do Milênio findará em 2015, a Organização das Nações Unidas já está realizando debates para estabelecer novos objetivos, denominados de Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Alguns desses novos objetivos estão sendo veementes contestados pelo governo brasileiro. Para maiores informações sobre os novos objetivos, que incluem governança, transparência governamental e acesso à justiça, ver: <http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2014/06/140627_objetivos_onu_ms.shtml>. Acesso em 01 de julho de 2014. 194 possível se observados os princípios fundamentais para a realização do direito ao desenvolvimento no contexto do direito econômico internacional. FIGURA 10 – OBJETIVOS DE DESENVOLVIMENTO DO MILÊNIO Fonte: www.pnud.org.br Entretanto, para os fins do presente item, focaremos no objetivo de número 8 (oito), que busca, sobretudo, implementar o direito ao desenvolvimento no âmbito do direito econômico internacional306. São eles: (i) avançar no desenvolvimento de um sistema comercial e financeiro aberto, baseado em regras previsíveis e não discriminatórias: a ideia é incluir nos sistemas comercial e financeiro internacionais um compromisso com as boas práticas de governança internacional; (ii) atender às necessidades especiais dos países menos desenvolvidos: ou seja, introduzir307: (a) um regime isento de tarifas e quotas para as exportações de países menos desenvolvidos (no âmbito do Sistema Geral de Preferência da Organização Mundial do Comércio, afastando, por exemplo, a cláusula da nação 306 Uma análise mais abrangente dos demais objetivos, ver: <http://www.pnud.org.br/ODM.aspx>. Acesso em 01 de julho de 2014. Aconselhamos também a seguinte leitura: Bunn, Isabella D. The Right to Development and International Economic Law: Legal and Moral Dimensions. Hart Publishing: Oxford, 2012, pp. 166-174. 307 A esse respeito, a Resolução da Organização das Nações Unidas n° 64/172 conclama aos países desenvolvidos que cumpram suas metas de separar 0,7% (zero vírgula sete por cento) de seu produto interno bruno para assistência aos países em desenvolvimento e 0,15% (zero vírgula quinze por cento) a 0,2% (zero vírgula dois por cento) de seu produto interno bruno para os países emergentes. 195 mais favorecida); (b) um programa de redução de dívidas de países altamente endividados, além de cancelar eventuais dívidas bilaterais oficiais; (c) uma ajuda pública aos países empenhados na luta contra a pobreza; e (d) um programa direcionado aos países em desenvolvimento de modo a tornar sua dívida sustentável em longo prazo; e (iii) atender às necessidades especiais de países sem acesso ao mar e de pequenos Estados insulares em desenvolvimento: mediante o Programa de Ação para o Desenvolvimento Sustentável. Depreende-se, pois, que as perspectivas no contexto do direito ao desenvolvimento dependem, necessariamente, da atuação ativa e coletiva não só dos sujeitos do direito internacional público, mas também das empresas transnacionais e da sociedade civil. E dada à natureza multidimensional do conteúdo do direito ao desenvolvimento à sua realização, ou melhor, à sua concretização somente será possível se for levado em consideração que os direitos humanos precedem à lei, porquanto estão fundamentados no conceito de dignidade humana. Nesse sentido, asserta Isabella D. Bunn308 que: While the right to development may never serve as a key catalyst in rewriting the rules of economic order, it can play a constructive role in ensuring that the legal and institutional frameworks for global economic activity take into account the demands of both human rights and development. O papel do direito econômico internacional atual (e de suas organizações internacionais, em especial, a Organização Mundial do Comércio, o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional), com vistas a contemplar o direito ao desenvolvimento em sua integralidade, portanto, é se afastar de certos estigmas de liberação e desregulamentação dos mercados, permitindo que cada país seja capaz 308 Tradução livre da autora: “Enquanto o direito ao desenvolvimento pode não servir como um catalisador-chave para reescrever as regras da ordem econômica, pode desempenhar um papel construtivo no sentido de garantir que os cenários legal e institucional para a atividade econômica global levem em conta as exigências tanto dos direitos humanos quanto do desenvolvimento” (Bunn, Isabella D. The Right to Development and International Economic Law: Legal and Moral Dimensions. Hart Publishing: Oxford, 2012, p. 285). 196 de escolher livremente o sistema econômico que melhor atenda os interesses de sua população, sem qualquer tipo de interferência, pressão ou restrição externa de qualquer natureza, bem como de determinar livremente seu próprio modelo de desenvolvimento. 5.5 CONCRETIZAÇÃO DO DIREITO AO DESENVOLVIMENTO ENQUANTO DIREITO HUMANO Não resta dúvida a veracidade do brocado ex facto oritur jus, o que equivale dizer que o direito é gerado dos fatos. A construção de um ordenamento jurídico baseia-se a partir das experiências vividas. A evolução do direito se processa em velocidade relativamente mais lenta do que aquela em que se processa a evolução dos fatos sociais. Os direitos de primeira dimensão, vale dizer, os direitos civis e políticos, foram conquistados a partir do momento em que se instarou o Estado de Direito, sendo materializados, principalmente na Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem (1776) e na Declaração Universal dos Direitos Humanos (1789). Por sua vez, os direitos de segunda dimensão, ou seja, os direitos econômicos, sociais e culturais, foram sendo desenhados a partir da Revolução Industrial, na qual se notou um claro abuso do poder econômico. O Estado deixou de ser omisso para ser interventor. Tais direitos foram inicialmente materializados na Constituição mexicana (1917) e na Constituição de Weimar (1919), muito embora apenas formalmente. Nesta esteira, Vladmir Oliveira da Silveira 309 leciona que: Pode-se dizer que no século XX se solidifica a luta pela garantia material da segunda dimensão dos direitos fundamentais, ou seja, dos direitos econômicos, culturais e sociais, como, por exemplo, a educação, a saúde e o trabalho. As reivindicações pretendiam transcender as liberdades formais com as concretas, isto é, 309 Silveira, Vladmir Oliveira da. O Direito ao Desenvolvimento na Doutrina Humanista do Direito Econômico. São Paulo, 2006. 382f. Tese (Doutorado em Direito) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2006, p. 167. 197 materializar no direito as prestações sociais devidas pelo Estado aos indivíduos. Os direitos de terceira dimensão envolvendo, dentre outros, o direito ao desenvolvimento encontra-se na seara da proteção e tutela de direitos coletivos e difusos com grande interligação com o direito de autodeterminação. A Constituição Federal de 1988 e, por consequências, as legislações infraconstitucionais e, até mesmo regulatórias, adotou uma postura de prevalência dos direitos coletivos (ou de interesse público) em detrimento dos interesses simplesmente individuais. Basta, para tanto, analisar o conteúdo dos incisos do artigo 170 do referido diploma legal. E esse entendimento também se faz presente no próprio âmbito do objeto de estudo da presente dissertação. Seja na defesa do interesse dos consumidores em geral, seja na defesa do interesse dos investidores, seja na defesa do direito dos acionistas, a Lei n° 6.404/1976 (artigo 117, § 1°, alíneas “b” e “c”, artigo 157, § 4°), a Lei n° 6.385/76 (artigo 4°, inciso IV e artigo 22, § 1°, inciso VI) e as diversas instruções normativas editadas sob a responsabilidade da Comissão de Valores Mobiliários buscam manter a lisura dos mercados financeiro e de capitais. No contexto do direito internacional público, ainda é incipiente a construção de um direito financeiro internacional, que se assemelha bastante às recomendações formuladas no âmbito do direito ambiental internacional. Não obstante seu caráter de soft law, conforme tratamos no Capítulo 2, os agentes reguladores, atuando como representantes do Estado brasileiro em organizações internacionais específicas das áreas de mercado financeiro e de capitais, em suas relações com órgãos reguladores de outros países, acabam por incorporar as experiências internacionais, na medida de sua conveniência e compatibilidade com o ordenamento jurídico pátrio. A incorporação no ordenamento jurídico dos Acordos de Basiléia, ainda que por meio de resoluções do Banco Central do Brasil e não por meio de um processo legislativo, consoante artigo 49, inciso I da Constituição Federal de 1988, é passível de ser considerado um exemplo. O que se pretende apontar com essas assertivas é que a concretização do direito ao desenvolvimento enquanto direito humano na seara dos mercados 198 financeiro e de capitais difere um pouco da forma como outros direitos humanos são inseridos no ordenamento jurídico brasileiro. Primeiro porque, com o advento da Emenda Constitucional n° 45/2004, o Brasil assumiu uma postura ainda mais significativa em prol da proteção dos direitos humanos. Incluiu no artigo 5°, o § 3° elevando os tratados internacionais de direitos humanos à categoria de emenda constitucional, nos seguintes termos: “Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”. E ao fazer isso agiu de acordo com o artigo 4°, inciso II da Constituição Federal de 1988, ou seja, reiteirou a prevalência dos direitos humanos em suas relações internacionais. Salienta, nesse desiderato, Flávio Piovesan310 que: Logo, por força do art. 5°, §§ 1° e 2°, a Carta de 1988 atribui aos direitos enunciados em tratados internacionais a natureza de norma constitucional, incluindo-se constitucionalmente garantidos, no que elenco apresentam dos direitos aplicabilidade imediata. Conclui-se, portanto, que o direito brasileiro faz opção por um sistema misto, que combina regimes jurídicos diferenciados: um regime aplicável aos tratados de direitos humanos e um outro aplicável aos tratados tradicionais. Enquanto os tratados internacionais de proteção dos direitos humanos – por força do art. 5°, § 2° – apresentam natureza de norma constitucional os demais tratados internacionais apresentam natureza infraconstitucional. Segundo porque, ainda que implicitamente, a Constituição Federal de 1988 recepciona o direito ao desenvolvimento como um direito humano, com base no artigo 5°, § 2°, não obstante preveja no artigo 3°, inciso II, que cumpre ao Estado brasileiro “garantir o desenvolvimento nacional”, por meio da erradicação da 310 Piovesan, Flávia. Reforma do Judiciário e Direitos Humanos. In: Tavares, André Ramos; Lenza, Pedro; Alarcón, Pietro de Jesús Lora. Reforma do Judiciário. Emenda Constitucional 45/2004, Analisada e Comentada. Método: São Paulo, 2005, p. 71. 199 pobreza, redução das desigualdades e promoção do bem de todos, sem distinção de qualquer natureza e, por conseguinte, objetiva proporcionar a todos os seus cidadãos uma digna existência. Logo, se alinha à própria ideia de desenvolvimento humano, isto é, o direito ao desenvolvimento, previsto nos documentos internacionais. No caso dos mercados financeiros e de capitais, a concretização do direito ao desenvolvimento, em nosso entendimento, se dá pela incorporação, digamos, indireta, no ordenamento jurídico nacional dos normativos internacionais. Indireta, porquanto não é objeto de processo legislativo previsto constitucionalmente. Indireta, também, na medida em que adentra no ordenamento jurídico em função da capacidade regulatória desses agentes descentralizados da Administração Pública federal. Ou seja, as agências regulatórias (em especial, o Banco Central do Brasil e a Comissão de Valores Mobiliários), ao representar o Brasil em suas respectivas organizações internacionais (Banco de Compensações Internacionais e Organização Internacional das Comissões de Valores Mobiliários, respectivamente) absorvem as experiências internacionais no ordenamento jurídico, com vistas a uma melhor proteção dos ambientes financeiro e do mercado de capitais. No que diz respeito ao Banco Central do Brasil, já fizemos menção os Acordos de Basiléia. O Acordo de Basiléia I foi implementado no Brasil por meio da Resolução do Banco Central do Brasil n° 2.099/2004. O Acordo de Basiléia II ainda não foi integralmente implementado. No entanto, o Comunicado do Banco Central do Brasil n° 12.746/2004, fornece um cronograma com as fases a serem seguidas para sua concretização. Por outro lado, no que diz respeito à Comissão de Valores Mobiliários, citamos, no Capítulo 4, a iniciativa de obrigar os executivos, diretores e administradores de sociedades anônimas abertas a divulgar as informações referentes ao seu pacote de remuneração (incluindo salários, bônus, gratificações, dentre outros) nos formulários de referência para emissão de valores mobiliários, que acabou por ser impedido pelo Poder Judiciário. 200 Enfim, para que haja uma efetiva concretização do direito ao desenvolvimento, implementar políticas públicas torna-se mais importante do que a obrigatoriedade. Obrigatoriedade essa no sentido de, por ser um direito inerente ao ser humano, desenhar um programa de ação que contribua para sua realização é a melhor forma de resolver a questão do que apenas tentar legislar sobre esses direitos. Deve-se prezar por sua materialização eficaz, ao invés de garanti-los apenas formalmente. 201 CONCLUSÃO A presente dissertação teve um propósito bastante claro: entender o papel do Estado em meio a um novo contexto, marcado por 02 (dois) aspectos que se revelaram contraditórios. De um lado, tem-se a globalização; do outro lado, insurge-se pela defesa do direito ao desenvolvimento. E nada melhor do que uma crise econômica para servir como referência a essa análise. Em nosso entendimento, referida crise não deve ser vista apenas com olhos negativos, em razão das discussões que trouxemos à baila. Primeiramente, a crise subprime de 2008 propiciou o entendimento de que o sistema financeiro é frágil. E é ainda mais frágil se pensarmos globalmente em função da alta interconectividade entre os países, que contribuiu para a ocorrência de um efeito dominó, com perdas financeiras e sociais inestimáveis. Em segundo lugar, porque a crise subprime de 2008 questionou certos dogmas, notadamente o modelo econômico liberal. E, em terceiro lugar, pautou ainda mais as relações econômicas internacionais a partir daquele momento, no sentido ser colocado em discussão à função social das organizações internacionais. Tendo em mente essas considerações preliminares buscou-se nesta dissertação tratar dos principais componentes desta equação. Estruturamente, foi preciso entender a globalização como um fenômeno atual, mas não completamente irreversível. Chegou-se à conclusão de que a globalização – seja ela econômica, seja ela financeira – é conveniente a todos, na medida em que haja algum tipo de ganho ou benefício. Cessadas suas benesses, em função de externalidades diversas, há uma propensão na adoção de um modelo protecionista (beggar-thyneighbour policy) até o restabelecimento da normalidade. Adicionalmente, a globalização acabou por evidenciar a desigualdade entre os povos e países, aumentando o grau de importância das organizações internacionais, principalmente aquelas inseridas no sistema da Organização das Nações Unidas. As organizações internacionais passaram, assim, a ter um papel 202 ativo, voltado à consecução de objetivos cooperatistas, na medida em que passou a almejar a regulação de objetivos comuns (universais ou regionais). Essa vontade coletiva, entretanto, acaba sendo interrompida, por vezes, em razão de cenários de estresse. No que diz respeito ao comércio internacional e os mercados financeiros e de capitais, o Acordo de Bretton Woods pode ser considerado uma quebra de paradigma, trazendo não só novas regras para a ordem econômica internacional, mas também alterando as relações de poder (horizontalidade em detrimento da verticalidade). Regras emanadas pela Organização Mundial do Comércio, pelo Fundo Monetário Internacional e pelo Banco Mundial dotadas de conteúdo liberal são, por conseguinte, bastante conservadoras quanto a aspectos regulatórios. A Organização Mundial do Comércio disciplina práticas anticomerciais ou anticoncorrenciais, ou seja, prestigia o livre comércio isento de medidas protecionistas. Não é por isso que seu principal princípio é o da não discriminação (artigo I do Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio que trata da cláusula da nação mais favorecida). Ademais, criou um mecanismo de solução de controvérsias deveras eficiente e transparente. Entretanto, a Organização Mundial do Comércio não foi capaz de cumprir com suas promessas de crescimento econômico e desenvolvimento sustentável. Exemplo disso, citamos a suspensão das negociações da Rodada de Doha, em função do advento da crise subprime de 2008, ainda que tal crise não tenha sido o único obstáculo para a conclusão desta Rodada. O Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial, nesse diapasão, são as organizações internacionais mais criticadas, porquanto se afastam sobremaneira de condutas imparciais. O Fundo Monetário Internacional surge, em princípio, para ajudar na reconstrução da Europa no pós-Segunda Guerra Mundial. Posteriormente, alarga seu âmbito de atuação com vistas a auxiliar a transição de modelos econômicos socialistas para modelos econômicos liberais e atuar, em última análise, como emprestador de última instância (lender of last resort). Já o Banco Mundial, em meados da década de 1980, passou a ter como missão extinguir a pobreza extrema e contribuir para a prosperidade da sociedade internacional. 203 Para a existência de ambas as organizações internacionais mencionadas, cada Estado-membro deve contribuir para a formação do capital social. Entretanto, essa contribuição deve ser equilavente à economia de cada Estado-membro. Evidente, pois, a existência de um conflito de interesses, sem mencionar o desvirtuamento da teoria da agência, na medida em que um ou poucos países deterão poderes suficientes para determinar os objetivos a serem perseguidos por tais organizações internacionais. Há um ponto interessante a se notar acerca de quão prejudicial pode ser a falta de comprometimento com a coletividade. Se tomarmos novamente como paradigma a crise subprime de 2008, muitos dos responsáveis por apoiar os ideais liberais e a desregulamentação dos mercados (leia-se, os lobistas e os executivos do setor bancário) vieram a se tornar Secretários do Tesouro norte-americano, decidindo, pois, acerca das políticas fiscais, monetária e de orientação do mercado. Agiam de acordo com o que entendiam por melhor caminho ao crescimento econômico e desenvolvimento sustentável de uma Nação. Entretanto, o ponto nodal por detrás disso não era o bem-estar social. Pelo contrário, volta-se a interesses exclusivamente pessoais. Prevalencendo, pois, uma ideologia maquiavélica, ela se alastrou pelas principais organizações internacionais de cunho econômico, que acabaram por difundir ao mundo práticas que se revelaram prejudiciais à economia mundial, destoando-se da ideia de cooperação internacional, porquanto se encontra diametralmente oposta a interesses meramente privados. É preciso exercitar e concretizar o conceito de governança global, de democratização e de responsabilidade social no âmbito dessas organizações internacionais, cujo papel está além da defesa dos interesses das grandes potências. Enquanto houver esse desalinhamento de interesses, dificilmente objetivos comuns, amplamente defendidos por outras organizações internacionais da Organização das Nações Unidas, serão conquistados nesta seara. A partir do momento em que um Estado cede uma parcela de soberania às organizações 204 internacionais, é esperada uma atuação de acordo com a responsabilidade destas, sob pena de desacreditamento no sistema internacional. Portanto, no que diz respeito ao papel das organizações internacionais econômicas diante do atual estágio de desenvolvimento do direito internacional público, está aquém da atuação de outras tantas organizações internacionais. Sob o enfoque do papel do Estado dentro de sua jurisdição, ou seja, de acordo com o seu grau de envolvimento com a sociedade, buscamos analisar a evolução do Estado, e, em especial, a do Estado brasileiro, que sofreu influência da escola cepalina (protecionista) e, posteriormente, adotou um modelo mais liberal imposto pelo Fundo Monetário Internacional para liberação de empréstimos para conter o endividamento externo brasileiro. Não obstante, com o advento da Constituição Federal de 1988, o Brasil assumiu uma postura social de mercado, pautada pela defesa de preceitos democráticos, em face da queda do regime ditatorial. Prestigiu-se a defesa de valores inerentes ao indivíduo, tais como liberdade, igualdade, justiça social, proteção da dignidade humana, etc. insculpidos, por exemplo, nos artigos 1°, 5°, 6° e 7°. O Estado Democrático e Social de Direito brasileiro é, portanto, fruto de uma constante evolução dinamogênica dos direitos humanos. Por outro lado, a Constituição Federal de 1988 também privilegiou a livre iniciativa, o livre comércio e mais alguns outros preceitos de ordem econômica, porém, em menor quantidade. Isso quer dizer que caberá ao Estado não só a defesa dos direitos sociais, mas também sua concretização por meio de políticas públicas inclusivas, que não devem ser confundidas com assistencialismo, permitindo-se a liberdade econômica, desde que não prejudicial à consecução dos direitos sociais. A crise subprime de 2008 foi um divisor de águas no que concerne ao papel do Estado, enquanto interventor na dinâmica econômica. Por tal razão, ao longo da presente dissertação buscamos testar a hipótese de um Estado necessário como modo alternativo de atuação do Estado, isto é, nem tão omisso, nem tão 205 onipresente. O estado de natureza (autoregulação ou regulação excessiva) não se coaduna com os princípios firmados no contrato social brasileiro. O Estado necessário tem como objetivo primordial a promoção e a defesa da equidade e justiça sociais. E assim alcançará seu objetivo por meio de uma divisão de trabalho coerente e descentralizada, inclusive sob o permissivo intervencionista, por meio de agências regulatórias. Em outras palavras, ao Estado compete à função de auxílio, fomento e fiscalização da economia, e não de intervenção, no sentido de impor obstáculos ao seu regular funcionamento. À época da crise subprime de 2008, por diversas vezes, o governo federal se viu obrigado – e ainda se vê – a adotar medidas, a fim de conter estragos na economia brasileira. Não há dúvidas que tais medidas foram benéficas em curto prazo, na medida em que houve um estímulo na economia, muito embora um desaquecimento quanto aos investimentos estrangeiros, com as sucessivas quedas na taxa SELIC. Preocupado em fornecer respostas prontas e rápidas à sociedade, o governo brasileiro não voltou sua atenção no longo prazo. Hoje, sofremos as consequências dessas medidas, se observarmos: (i) a queda na produção industrial; (ii) a diminuição do consumo; (iii) o aumento da inflação bem acima da meta estabelecida e (iv) o endividamento da população. Ao invés de ter intervindo tanto na economia, cuja responsabilidade deveria ter sido deixada aos órgãos regulatórios desse setor (Conselho Monetário Nacional, Banco Central do Brasil e Comissão de Valores Mobiliários), o governo deveria ter investido o dinheiro público em obras de infraestrutura, gerando empregos, fomentando investimentos, arrecadando impostos e mantendo o consumo equilibrado. Ou seja, aquecendo e fomentando a economia interna. Novas crises haverão e é preciso entender como tirar o melhor proveito, ou seja, que seus efeitos não recaiam exclusivamente sobre os cidadãos, que se veem completamente desamparados. Não tem como mudar o fato de que o capital financeiro tornou-se mais importante que o capital humano. O capital financeiro não 206 se preocupa nem com a geração, nem com a distribuição de riqueza, senão com a geração e distribuição de riqueza entre seus pares, ou seja, os intermediários financeiros em operações estruturadas nos mercados financeiros e de capitais. Essa responsabilidade recai no Estado necessário, de modo que se consiga equilibrar as forças do mercado com o direito ao desenvolvimento tão perseguido no âmbito doméstico e internacional. Por mais que os mercados financeiro e de capitais brasileiro sejam altamente fiscalizados pelos órgãos regulatórios competentes, vimos que ainda há diversas lacunas regulatórias, que abre espaço para inovações, porquanto o que não é proibido é permitido. Defendemos aqui, não se engane, um modelo que preserve a lisura desses mercados, bem como a responsabilidade por decisões levianas tomadas pelos intermediários financeiros e a obrigatoriedade de cumprimento das melhores práticas de governança (global ou corporativa). Não defendemos uma regulação que inviabilize o desenvolvimento desses mercados, que, como vimos, possui características positivas. O mercado de capitais aumenta a oferta de capital, aumenta a poupança interna, financia déficits fiscais. A pensar dessa forma, seria tão prejudicial quanto à autoregulação. O que não se pode permitir é que uma pequena parcela da atividade econômica seja responsável pela devastação de uma economia inteira. Aquele que causou dano, refrise-se, tem o dever de reparar. Mas nos parece que esse preceito não se aplica aos intermediários financeiros, no contexto dos mercados financeiro e de capitais, conforme retratado ao longo da presente dissertação. Pelo contrário, os executivos e administradores norte-americanos, por exemplo, foram altamente bonificados por suas performances especulativas. E a mesma tendência pode ser vista no Brasil, a partir do momento em que o Poder Judiciário entendeu que a divulgação de certas informações desses profissionais violava o direito de sigilo, o direito à intimidade e o direito à privacidade. Parece-nos um contrassenso, porquanto está se prestigiando o individual ao coletivo, este último corolário de um sentimental fraternal. 207 Não basta a previsão formal dos direitos humanos na Constituição Federal de 1988. É imprescindível a existência de instituições democráticas que concretizem o direito ao desenvolvimento, na medida em que este conjuga todas as demais dimensões dos direitos humanos. Assim, reiteramos o entendimento de que o problema atual dos direitos humanos não é o seu reconhecimento, mas a falta de preenchimento, que, imprescinde, por conseguinte, de vontade política. Por isso, resta indagar como concretizar o direito ao desenvolvimento em momentos de estresse. Adicionalmente ao papel do Estado necessário em suas atividades regulatórias, cumpre também a ele entender as deficiências e as potencialidades de sua população. O Índice de Desenvolvimento Humano ou, alternativamente, o Índice do Bom País, são indicadores capazes de direcionar políticas públicas internas eficazes e duradouras. 208 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Fontes Eletrônicas Disponível em: <http://shareholdersunite.com/2009/03/07/imf-regulation/>. Acesso em 20 de junho de 2013. Disponível em: <http://www.iosco.org/library/pubdocs/pdf/IOSCOPD273.pdf>. Acesso em 23 de junho de 2013. Disponível em: <http://www.forex.in.rs/the-process-of-internationalization-ofcompanies-in-todays-globalized-and-competitive-world/>. Acesso em 02 de agosto de 2013. DisponíveL em: <http://www.bndes.gov.br/SiteBNDES/export/sites/default/bndes_pt/Galerias/Arquivo s/conhecimento/especial/Priv_Gov.PDF>. Acesso em 14 de janeiro de 2014. Disponível em: <http://www.imf.org/external/np/exr/facts/hipc.htm>. 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