RUAS SINCRÉTICAS 1 SINCRETIC STREETS Valdenise Leziér Martyniuk 2 Resumo: As ruas de São Paulo foram figurativizadas em duas produções audiovisuais de Destinadores distintos, com a intencionalidade de fazer aderir aos seus objetos de valor: uma marca de automóveis e um discurso popular. O texto discute semelhanças e diferenças nas estratégias de construção de cada discurso, a partir da teoria semiótica, com ênfase nos conceitos de figuratividade, sincretismo e interação. Aponta a mudança dos papéis temáticos e subjetivos exercidos pela ação publicitária e pelos consumidores no ambiente atual, que permite acesso ás competências necessárias para produzir tais discursos. Palavras-Chave: Sociossemiótica. Sincretismo. Publicidade. Abstract: São Paulo streets were used as scene in two different Destinators audiovisual productions, with the intent of making connect to its value objects: an automotive brand and a community discours. The text discusses likenesses and differences in its building strategies, based on semiotics theory, specially the concepts of figurativity, syncretism and interaction. It indicates the changes in the subject roles performed by advertising procedures and by customers in the current environment, which allows access to the necessary competences to produce this kind of discours. Keywords: Sociossemiotics. Sincretism. Advertisement. 1. Identidades em relação na dinâmica do marketing O marketing, disciplina e atividade empresarial, abarca todas as responsabilidades que estabelecem e mantêm a presença das marcas no mercado, respondendo por seu resultado econômico. No universo das grandes marcas, já se estabeleceu que a disputa pela liderança no marketing está baseada no conceito de brand equity, o qual foi definido como valor patrimonial da marca, por David Aaker (1998). Em análise posterior, Andrea Semprini (2006) adicionou ao sentido do termo o valor simbólico da marca, instaurando-a como uma 1 Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Práticas Interacionais e Linguagens na Comunicação do XXIII Encontro Anual da Compós, na Universidade Federal do Pará, Belém, de 27 a 30 demaio de 2014. 2 Doutora em Comunicação e Semiótica, professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e pesquisadora do Centro de Pesquisas Sociossemióticas – PUC/SP. Email: [email protected]. 1 entidade semiótica. Em geral as grandes organizações nacionais e transnacionais praticam o modelo projetado por Aaker (2000, p. 23): O modelo emergente pode ser parcialmente capturado pela justaposição de imagem de marca e brand equity. A imagem de marca é tática – um elemento que impulsiona resultados de curto prazo e que pode ser tranquilamente deixado a cargo de especialistas em propaganda e promoção. O brand equity, por outro lado, é estratégico3 – um ativo que pode construir a base da vantagem competitiva e da lucratividade de longo prazo e, portanto, necessita ser monitorado de perto pela alta gerência da organização. A meta da liderança de marca é criar valores de marca e não apenas gerenciar imagens de marca. Em paralelo a essa operação de peso, existe uma enorme quantidade de empresas regionais, de marcas de pequeno porte, as que servem como complemento de port-folio para as donas de grandes marcas, ou aquelas ocupam os terceiros e quartos lugares na preferência dos consumidores. Esses negócios mantêm uma visão tática, e é natural que dêem mais atenção à lucratividade que aos ganhos simbólicos de suas marcas. No primeiro caso, das grandes marcas, as construções de sentidos são de ordem durativa, enquanto nos últimos são de ordem incoativa e reside nessa diferença também uma distinta abordagem do que sejam os seus valores de troca. Quais são os valores sobre os quais se estruturam as bases de trocas instaladas nas relações intersubjetivas de marcas e consumidores? O que caracteriza essas interações e que modelos teóricos seriam eficazes para sua compreensão enquanto fenômeno social típico da contemporaneidade? Obviamente, antes do marketing, desde que foi instalado o conceito de comércio, os dois lados de uma relação estão interessados em valores (mesmo que estivessem tratando de uma saca de trigo por uma saca de sal). Considerando os aspectos durativo e incoativo citados acima, encontramos valores de base e valores de uso, que são correspondentes às dimensões que Aaker coloca: brand equity e imagem de marca (os valores de base de uma marca só prometem eficácia se os destinatários a eles aderem). Por exemplo, a situação na qual um comprador adquire um bem considerado barato, de marca pouco conhecida, acreditando ter feito um bom negócio porque obteve a funcionalidade desejada por um preço justo, poderia ser tomada por nós como uma relação baseada no valor de uso. Enquanto um outro sujeito compra um bem cuja marca é carregada de status e fama, com custo bem mais alto e justificase dizendo que fez uma escolha sustentada na confiança da marca, mas também na imagem 3 O termo estratégia empregado pelo autor é empregado para diferenciar, na atividade empresarial, as ações de longo prazo e amplo impacto, daquelas táticas, mais pontuais. O mesmo termo denominará um dos regimes de sentido e de interação proposto no modelo teórico de Eric Landowski na sociossemiótica. 2 que constrói de si mesmo, num querer-ser-visto4 (Landowski, 1992) que o instala diante de outras pessoas conforme os valores subjetivos que quer projetar. Esses valores são duradouros, profundos, relacionados à identidade, por isso podemos afirmar que correspondem a valores de base. Mas, voltando ao primeiro caso, ao tomar a decisão pelo produto de marca desconhecida, esse indivíduo não está construindo sua identidade como um comprador inteligente? Pode mesmo dizer aos seus amigos: “Vejam que bom negócio eu fiz”. E não seria essa inteligência, um valor de base? Entendemos que, num caso como no outro, pessoas compram segundo sua identidade, ou, ao menos, em função da identidade na qual acreditam e é esse sistema de valores que interessa à atividade de marketing. Nossa hipótese é de que a sociossemiótica situe as explicações do marketing como fenômeno que atua no social e por ele, considerando assim os sujeitos das narrativas, nos seus papéis temáticos e nas manifestações que operam, construtoras de sentidos e valores. Na análise das comunicações do marketing e dos consumidores, segundo o modelo, poderíamos então, compreender as axiologias vigentes no cenário. Nos deparamos assim, com duas identidades: a da marca e do consumidor - correspondentes no compartilhamento da axiologia, nem herméticas nem fixas, pois estão inseridas no contexto social, em uma vasta rede de informações e trocas, que as contaminam num fazer contínuo e em transformação. Observaremos a seguir duas manifestações midiáticas que ocorreram no mesmo período, utilizando-se de expressão e figuratividade semelhante, mas que, em sua composição narrativa e contextualização, fizeram ver valores e sentidos particulares, além de apontar peculiaridades sobre o exercício dos papéis temáticos de cada uma dessas identidades: o anúncio da marca Fiat publicado em maio de 2013, intitulado “Vem pra rua”; e a sua releitura, feita por populares e divulgada no site Youtube, convocando cidadãos para participar do movimento contra o aumento das tarifas de transporte público ocorrido em junho de 2013. 2. As ruas no discurso da marca de automóveis No mês de maio de 2013, a Fiat, grande corporação do setor automotivo, construiu uma campanha publicitária, ancorada no sistema de valores de sua marca e, como é recomendado à ação mercadológica, nos acontecimentos do contexto social, que estimulam a lembrança do 4 Segundo o conceito dos regimes de visibilidade. Eric Landowski, A Sociedade Refletida, Tradução de Eduardo Brandão, São Paulo, EDUC, 1992. 3 público. A produção audiovisual5 conta com música produzida para a ação e gravada pelo grupo Rappa, cujo refrão insiste: “Vem pra rua porque a rua é a maior arquibancada do Brasil.” A campanha insere a marca na ambientação de três eventos esportivos seqüenciais e de grande monta no Brasil: a Copa das Confederações em 2013, a Copa do Mundo de Futebol de 2014 e as Olimpíadas de 2016. Utilizando o mote do esporte, a empresa faz a associação entre os produtos vendidos (os automóveis), referenciados no final do anúncio em texto verbal impresso (em tinta verde, como que pintado a mão em um muro) e oralizado: “Vem com quem mais entende de rua. Vem com a Fiat”. Esta chamada afirma a competência do Destinador, o seu saber-fazer, e instaura a rua como lugar de euforia. As imagens do texto começam mostrando ruas de São Paulo vazias, enquanto torcedores, em silêncio concentrado, acompanham um jogo de futebol, em diferentes lugares: residência, bar, campo, praia. Gradativamente, são vistas pessoas correndo pelas ruas, viadutos, uma viela, a escadaria de um edifício, e o ritmo vibrante de seu movimento vai ganhando volume com o acompanhamento da música, enquanto umas contagiam às outras e uma massa vai se formando na cidade. Uns poucos veículos (de marca Fiat, obviamente) são vistos em meio à festa. A comemoração de uma suposta vitória do time brasileiro de futebol toma corpo e se estende pela noite, com muitos corpos suados e molhados em festa, observada a aspectualização manifesta no vídeo. Figuras femininas aparecem em destaque no vídeo, na sua dança alegre e sensual. As mulheres (embora o vídeo traga imagens de muitos homens e crianças), são os únicos sujeitos vistos de frente, em olhar direto para o enuncitário, num processo de embreagem. O convite verbalizado pelo vocalista Marcelo Falcão, do grupo Rappa, em operação sincrética com as imagens das cinco mulheres cujos rostos são enquadrados nas cenas, soam como a chamada para aquele que assiste o vídeo, convocando-o para sair do assento passivo de sua casa para a arquibancada da rua, viva e vivida na euforia. Desse modo, o espaço eufórico é na rua, fora das paredes, mesmo local da performance do automóvel, donde reside o prazer da comemoração na coletividade. Conforme teoriza Oliveira (2009, p.82): O tratamento das homologações dos dois planos de um objeto sincrético, considerando que só há conteúdo manifesto em uma expressão, nos permitiu depreender como se situa nas figuras da expressão a heterogeneidade de termos ou formantes que são reunidos por uma grandeza sincretizada. Manifestada na reunião de feixes de formantes intersistêmicos ou de figuras intersistêmicas, essas partes 5 http://www.youtube.com/watch?v=SxMIwZZPlcM, consultado em janeiro de 2014. 4 vão coexistir em distintas simultaneidades na materialização significante do significado. Figura 1 – Recorte da cena do vídeo na qual a figura feminina vira o corpo em direção contrária à do fluxo de pessoas e dirige o olhar para o enunciatário. Fonte: http://www.youtube.com/watch?v=SxMIwZZPlcM Na análise das categorias, percebe-se que algumas oposições da expressão correspondem a similares no conteúdo, colocando em operação o sistema semi-simbólico do texto. À oposição vazio x cheio correspondem, respectivamente, os valores de tensão x distensão, os primeiros disfóricos e os segundos, eufóricos. Correlação semelhante se dá no tratamento do espaço no anúncio – a horizontalidade das ruas é eufórica, enquanto que a verticalidade (da escada, do prédio, dos satélites – estes últimos situados temporalmente antes da realização da performance do time) permanece no eixo da disforia. Situação semelhante opõe o alto ao baixo – local onde a festa ocorre, no chão, na rua. Assim, descer a ladeira, ou descer a escada do prédio, é a realização da performance de vir para a rua, de encontrar-se com o objeto de valor, protagonizado pela marca. O mesmo ocorre com a oposição interior x exterior – estar na rua, fora de casa, é fazer parte da festa, enquanto o interior é a passividade disfórica da qual procura-se tirar o Destinatário, na concretização do programa narrativo da manipulação. Observa-se que o espaço não assume apenas a função de aspectualização da cena enunciativa, ao lado do espaço e da pessoa, mas como figura de conteúdo, que tem na expressão sincrética 5 das escolhas imagéticas do vídeo, acompanhadas da sonorização, o sentido que leva à estrutura fórica do fazer narrativo do texto, conforme resumo do quadro abaixo: TABELA 1 - Categorias do espaço operando em conformidade com categorias de conteúdo em sistema semissimbólico. Categorias da expressão espacial Conteúdo eufórico Conteúdo disfórico Exterior Interior Baixo Alto Horizontal Vertical Cheio Vazio Cinético Estático FONTE: elaborado pela autora A seguir, observaremos como um texto distinto, mas que se aproveita de expressão semelhante, estabelece sua enunciação, operando em intertexto que ressignifica o discurso. 3. As ruas no discurso da manifestação popular No mês de junho de 2013, uma grande mobilização popular tomou conta das ruas de muitas cidades brasileiras, das quais elegemos São Paulo como foco de análise. Dentre diversas comunicações propostas pelos manifestantes – faixas, cartazes, site do Movimento Passe Livre na internet, blogs, etc – uma foi o recurso da paródia. Parte do anúncio da marca Fiat, em especial sua música, foi empregada como hino da mobilização em alguns vídeos produzidos por cidadãos, que no entanto, construíram edições diversas, tendo como tema a mobilização popular pela redução de tarifas. Tendo sido um evento de grande complexidade, conflitos e apoios entre diversos atores na cidade – manifestantes participantes, simpatizantes, vozes contrárias ao movimento, pode público, agentes da polícia, imprensa – foram vistos. Portanto, o uso da música da campanha ganhou nova roupagem, interferindo na comunicação da marca, que optou por tirar a campanha do ar (declarando não ter sido motivada pelo fato). Conforme dissemos antes, o marketing é uma atividade social, portanto faz uso de elementos do cotidiano para manter seu discurso em conformidade com as expectativas dos consumidores, bem como familiarizado com os assuntos do dia-a-dia. Ao deparar-se com a situação contrária, ou seja, uma apropriação de parte do seu discurso, nos 6 instiga a investigação. Várias paródias foram feitas nesse mesmo episódio, dado que a campanha conta com música muito contagiante, como bem ensinam as práticas da propaganda. Destas, elegemos uma das duas versões que possuem maior número de visualizações na rede YouTube6, sendo a escolhida a mais longa, com duração de dois minutos e quarenta e seis segundos. Ao contrário da produção anterior, as imagens do vídeo começam já com as ruas cheias, dando a ver muitos manifestantes nas ruas, portanto suas bandeiras (do Brasil e com as frases reivindicatórias que foram amplamente vistas na cobertura jornalística do fato, como: “Se a tarifa não baixar a cidade vai parar”, “Por uma vida sem catracas”, além de referências ao valor do aumento da tarifa para uso dos ônibus, aos gastos com a realização da Copa do Mundo, aos problemas nacionais de educação e saúde. Emergem da leitura, portanto, que a figurativização escolhida no novo discurso, ressignifica a idéia da rua mencionada na música que aqui se repete. Os eventos esportivos, antes muito euforizados, transmutam-se em motivos de revolta e fúria. As imagens destacam a violência, sem no entanto, disforizá-la totalmente. Há presença da violência da polícia e dos manifestantes – porém a primeira destaca ações contra pessoas e a segunda, contra mobiliário urbano, em uma operação que parece querer suavizar o efeito da ação. O vídeo persiste com muitas imagens de fogo em sacos de lixo e outros objetos, luz que ilumina a visão noturna quase permanente no texto. Ao final, mostra-se a rua vazia, e reconhece-se, em meio às notas finais da música, vozes que rejeitam a violência. Portanto, na aspectualização, o texto faz caminho contrário ao primeiro antes analisado, dado que começa com a rua cheia que termina vazia e onde predomina o escuro da noite, horário que concentrou a maior parte das manifestações naquele mês. Ambos os vídeos (da marca e sua paródia) tratam da mobilidade urbana e, embora o automóvel possa parecer, em um primeiro momento, inimigo do transporte público, não foi desse modo que a voz popular se apropriou do discurso. Algumas cenas do vídeo flagram veículos parados em meio à manifestação popular e à ação policial – na imobilidade a que são submetidos no caos da cidade durante a intervenção. Ainda sobre as oposições do espaço, o ponto de vista do enunciador é a rua, o chão, numa predominância da horizontalidade. O alto aparece poucas vezes, e dá a ver outros sujeitos presentes na cena – como o helicóptero da imprensa, por exemplo, o que ressalta uma 6 http://www.youtube.com/watch?v=i3lCMiUAJ90 (assinado por www.treta.com.br). 7 intencionalidade do discurso do movimento em se tornar notícia para mobilizar a opinião pública. O destaque para a figura feminina também é dado, assim como no primeiro texto, porém desta vez, o sujeito mulher, manifestante, volta a cabeça para trás, não para chamar o enunciatário, mas como que para conferir se está sendo perseguida. E ao virar-se, visualiza-se que usa máscara contra o gás disparado pelos policiais para conter a movimentação dos manifestantes. A rua figurativizada nesta versão do vídeo é, portanto, o mesmo lugar da performance do primeiro texto, porém sua construção inverte elementos da figuratividade. Nota-se que a mesma homologação entre categorias da expressão e categorias do conteúdo (Figura 2) válida para o anúncio do automóvel pode ser usada para o vídeo dos manifestantes. TABELA 2 – Figuratividade e diferentes efeitos de sentido Figura Sentido no anúncio do automóvel Sentido no vídeo de protesto Eventos esportivos Vitória e motivo do festejo Derrota e mau uso do recurso público Automóveis Partícipes da festa Vítimas da imobilidade Figura feminina Sedutora e alegre Heroína engajada Rua Local do encontro Local do confronto Fonte: Elaborado pela autora Das duas obras analisadas, pudemos compreender a significação e ressignificação que se opera no sincretismo de linguagens, provando que, apesar de se utilizar da mesma composição musical, o sentido só faz pelo todo, na conjunção dos sistemas de linguagens (assim como é diverso o resultado quando se escuta separadamente a mesma música performada pelo Rappa e descontextualizada das situações observadas). 4. As interações entre identidades O estudo das manifestações aponta também que o fazer publicitário é uma prática da qual, na atualidade, consumidores e usuários comuns da Internet acabam por se apropriar, operando por regime de sentido e de interação da estratégia (Landowski, 2006), na tentativa de persuadir seus destinatários, em procedimento baseado na intencionalidade. Além disso, a produção, no caso analisado, se utilizou do sucesso do anúncio publicitário como argumento para aumentar sua popularidade, em uma inversão de papéis, dado que esta é uma prática 8 recorrente da atividade publicitária. Desse modo, dá-se a ver ainda que a publicidade, assim como as ações que envolvem o marketing e o consumo, configuram-se como práticas corriqueiras do social, não apenas se aproveitando de seus fenômenos, como ela mesma sendo parte desses fenômenos, ou um agente que se situa no mesmo patamar de importância que seus consumidores. Em contrapartida, a prática de tentar controlar os acontecimentos da comunicação, como é de praxe no marketing e na publicidade, encontra novas questões que colocam sua regularidade em xeque. O fenômeno do big data7, por exemplo, a grande vedete da prática contemporânea do marketing, reitera sua posição controladora, programadora de rotinas de um consumidor com as marcas. Ao monitorar as navegações, conversas entre amigos, buscas realizadas por um internauta e rearquitetá-las em bancos de dados inteligentes, é uma poderosa ferramenta de controle que permite às empresas conhecer o seu consumidor mais do que este conhece os meandros da marca. Tal transparência do indivíduo que se deixa ver em suas práticas cotidianas é o mesmo procedimento de uma marca que quer instituir seus valores e para isso manifesta-se em discursos diversos aos seus consumidores. A diferença entre o primeiro e o segundo caso está nos regimes de visibilidade, também ancorados na sociossemiótica. Os consumidores, em grande parte de suas atitudes nas redes sociais, por exemplo, atuam segundo um procedimento de “não-querer-não-ser-visto”8, e as marcas atuam por um modelo de “querer-ser-visto”. O que resulta dessas situações é que o marketing que vê o sujeito, a ele responde com manifestações cuidadosamente planejadas, em sistemas de valores que lhe dizem respeito ou correspondem aos seus anseios, continuando um processo manipulatório que já tinha lugar nas mídias de massa e hoje opera nas mídias digitais e nas manifestações experienciais proporcionadas pelas marcas aos seus consumidores. Schmitt (2003) define um modelo de gestão de marketing, denominado Customer Experience Management (CEM): O processo de gerenciar estrategicamente a experiência completa de um consumidor com um produto ou empresa, procedimento que se daria em cinco etapas: análise do mundo experiencial do consumidor (o contexto sociocultural no qual os consumidores atuam incluindo suas necessidades e desejos de experiência e seus estilos de vida); a construção de uma plataforma de experiências, o desenho da experiência de marca (em produtos, imagens e vivências), a estruturação da 7 Não há uma só definição para o termo, que em geral é postulado como uma grande quantidade de dados armazenados, mas que na prática do marketing implica no uso desses dados coletados a partir de diferentes fontes, como dispositivos móveis e redes sociais, em tempo real, para a proposição de produtos, serviços, publicidade, etc, de modo a conquistar a atenção dos consumidores por conta da precisão e velocidade entre a obtenção da informação e as ações. 9 interface com o consumidor e a inovação contínua para manter o engajamento do consumidor. O modelo traz ganhos ao entender que um conjunto de experiências produzidas e sentidas no domínio do ambiente social compartilhado, mais que comunicações da marca, conduz ao sentido. Reforça a idéia de continuidade e permanência, dada pela renovação das experiências, provocada pelas marcas, reiterando o que dissemos antes sobre o caráter durativo da visão estratégica do marketing. Ainda, ao considerar a etapa do desenho da experiência de marca dará grande ênfase ao componente sensível, levando em conta que qualquer experiência humana se dá na percepção integrada dos cinco sentidos e de sua interpretação inteligível. O que parece falhar no modelo acima, no entanto, é o fato de que a construção da plataforma de experiências, apesar de ser seguida pelo monitoramento das interfaces com o consumidor, mantém o marketing no papel temático de controlador da relação e das experiências de um consumidor com a marca, ou seja, permanece na dêixis da segurança. As interações entre esses agentes não se limitam ao universo de proposições que o marketing sugere, nem ao conjunto de experiências do modelo CEM de Schmitt – uma série de outras situações pode povoar a vivência de um consumidor, amparado pelas novas tecnologias da informação e da comunicação em rede que promovem trocas multilaterais, mesmo que monitoradas. Há que se considerar a intervenção de terceiros envolvidos na relação inicialmente bilateral entre marca e consumidor, os quais podem gerar situações inesperadas, características do acaso, como amigos, concorrentes, analistas, pesquisadores, críticos, blogueiros, etc. Esse consumidor, no entanto, não possui um único papel temático: ele é também cidadão, trabalhador e, nos dias atuais, comunicador, dado que o acesso aos meios de produção da comunicação, democrarizados pelo avanço tecnológico, lhe confere essa competência, conforme visto no exemplo do audiovisual aqui estudado. Nesse ambiente, uma teoria como a da sociossemiótica, abrangente e que dá conta do enunciado, da enunciação e, principalmente, da produção de sentido nas relações intersubjetivas em ato, vai sustentar a compreensão dessas manifestações tão presentes no cenário contemporâneo. Referências 10 AAKER, D. Marcas: brand equity, gerenciando o valor da marca. Tradução de André Andrade. São Paulo: Negócio Editora, 1998. AAKER, D. e JOACHIMSTHALER, e. Como construir marcas líderes. Tradução de Bazán Tecnologia e Linguística. São Paulo: Futura, 2000. CIACO, J. B. S. Inovação em Discursos Publicitários – comunicação, semiótica e marketing. São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2013. FLOCH, J.M. Sémiotique, marketing et communication: sous les signes, les strategies. Paris: PUF, 1990. LANDOWSKI, E. A Sociedade Refletida. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: EDUC, 1992. ______________. Les intéractions risquées. Limoges: Pulin, 2006. MARTYNIUK, V.L. 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