REABILITAÇÃO PSICOSSOCIAL NA PERSPECTIVA DA REFORMA PSIQUIÁTRICA Francisca Bezerra de Oliveira Professora da Universidade Federal de Campina Grande; doutora em Enfermagem pela USP. Maria Lucinete Fortunato Professora da Universidade Federal de Campina Grande; doutora em História pela UNICAMP. Resumo Este trabalho tem como objetivo discutir sobre a reabilitação psicossocial na perspectiva da reforma psiquiátrica, com base em abordagens que trafegam pela História da Loucura (Foucault), pelo paradigma “ético-estético” (Guattari) e pelo pensamento complexo (Morin). Pensa vários conceitos que transcendem o paradigma psiquiátrico tradicional, como “ética”, “cidadania” e “autonomia”. Inscreve a loucura na ordem do sentido e da história, resgatando a sua complexidade como fenômeno biológico, político e sociocultural, como expressão complexa da existência humana. Revela a diversidade e a subjetividade do sujeito com transtorno mental visando contribuir para o debate sobre as novas formas de cuidar em saúde mental, numa perspectiva ético-estético-política. Palavras-chave: loucura; reabilitação psicossocial; reforma psiquiátrica. Abstract This work has the objective of discussing about psychosocial rehabilitation from a psychiatric reformation perspective. It debates the central ideas in the psycosocial rehabilitation process through discussions which involves Foucault's history of madness, Guatarri's 'ethic and aesthetic paradigm' and Morin's complex thought. It thinks several possible concepts which transcend the traditional psychiatric paradigm, such as ethic, citizenship and autonomy. It places madness in the order of sense and history, in order to restore its complexity as a biological, political and sociocultural phenomena, and as a complex expression of human existence. It reveals the diversity and subjectivity of the person who has mental problems, trying to contribute for the debate on the new ways of taking care in mental health, in an ethic-aesthetic-political perspective. 155 Keywords: madness; psychosocial rehabilitation; psychiatric reformation. n. 32 2007 p. 155-161 “Não existe cultura que não seja sensível, na conduta e na linguagem dos homens, a certos fenômenos com relação aos quais a sociedade toma uma atitude particular: estes homens não são tratados nem completamente como doentes, nem completamente como criminosos, nem feiticeiros, nem inteiramente também como pessoas comuns. Há neles algo que fala da diferença e chama a diferenciação”. (Foucault, Doença mental e psicologia). Introdução Ao escrever História da Loucura (1978), Foucault inaugurou a possibilidade para o entendimento de que o conhecimento de um objeto complexo como a loucura, os saberes e as práticas em saúde mental não podem ser avaliados a partir de critérios ancorados na racionalidade, científica constitutiva da ciência moderna. Com efeito, essa racionalidade, cuja concepção de sujeito foi fundada na consciência, desenvolveu-se na tradição ocidental, com a filosofia de Descartes, sendo aprofundada pelo pensamento iluminista. Ao longo dos séculos a loucura manteve um parentesco com as culpas morais e sociais que parece longe de ser rompido, permanecendo nas representações sociais, no imaginário, e contribuindo para o processo de estigmatização do louco. No debate sobre a assistência, o louco trazia o estigma da periculosidade social, herdeiro natural do internamento, devido à incapacidade para o trabalho e à impossibilidade do tratamento em domicílio. No final do século XVIII e início do século XIX, a loucura adquire um novo status, com o surgimento do asilo, das práticas psiquiátricas e sua transformação em doença mental. Com Pinel representando o pensamento de sua época, a loucura passou a receber o estatuto de alienação mental. A alienação, compreendida como um estado de contradição da alma, não significa perda total da razão, mas perda parcial. Por isso Pinel acreditava que o internamento por si só tinha o poder de cura. A partir da segunda metade do século XIX, a psiquiatria buscou uma nova explicação para a loucura, calcada no modelo biológico, de matriz positivista. Pautando-se nesse modelo, objetivou constituir-se em saber científico, em sua pretensão de neutralidade, objetividade e descoberta dos distúrbios mentais, mediante relações de causalidade. Nesse sentido, a loucura foi considerada um efeito de perturbações no psiquismo produzidas no registro do organismo. 156 No final do século XIX, no mundo ocidental, a função puramente disciplinar do asilo e o abandono de suas funções terapêuticas passaram a ser denunciadas. Começou a delinear-se, a partir do discurso freudiano, um novo saber no campo da psiquiatria, determinando uma ruptura com a abordagem biológica, organicista, e propondo problematizar a loucura noutros termos. A loucura se inscreveu então na ordem do sentido e da história, na subjetividade do sujeito, não configurando mais um efeito de perturbações no registro do corpo biológico. No Brasil, o quadro da assistência psiquiátrica, até os anos 50 do século XX, era lamentável: era exercida quase exclusivamente no interior dos manicômios, organizados como dispositivos de controle político e social. O louco era “tratado” em muitos hospitais psiquiátricos como um ser “menor”, excluído, segregado do tecido social. n. 32 2007 p. 155-161 No final dos anos 1970, paralelamente à luta pela redemocratização e reorganização da sociedade civil brasileira, intensificaram-se no país os debates e as reflexões sobre a assistência à saúde mental. Influenciados pelo movimento sanitário e pelos projetos de reforma psiquiátrica, desenvolvidos nos Estados Unidos e em países da Europa, como Inglaterra, França e Itália, profissionais, estudantes e setores da sociedade civil brasileira articularam discussões a respeito do significado do processo saúde-doença, das condições de trabalho, do papel dos profissionais nos serviços públicos e da qualidade da assistência prestada, frente às reais necessidades da população. Nesse contexto, surgiram diversos movimentos sociais, entre os quais o Movimento de Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM), que passou a ser o ator privilegiado na formulação das críticas ao paradigma psiquiátrico dominante e na construção da reforma psiquiátrica. O percurso da reforma não é linear e a compreensão por parte dos atores sociais que o compõem não é homogênea ou consensual. A expressão reforma psiquiátrica é, conceitualmente, problemática. Para muitos, ela reduz o raio de ação do movimento, limitando-o a transformações superficiais, acessórias no campo da saúde mental, em vez de estimular transformações mais profundas na ordem social. Mas, o plano institucional da reforma é “[...] o plano das políticas públicas, e sua premissa, o direito à população de ter um atendimento de qualidade, que respeite seus direitos e sua cidadania. Esse é o norte ético da reforma: o direito de demandar e de ter uma resposta adequada, eficiente e suficiente na rede pública de atendimento” (Delgado, 2001, p.153). A reforma psiquiátrica significa uma nova forma de tratar e acolher o doente mental. Ela nega a internação compulsória e, sobretudo, o isolamento como forma de tratamento. Visa, portanto, dar ao problema da “loucura” uma determinada resposta social, por meio da reorganização de práticas e instituições de tratamento da loucura e de uma proposta de investimento desejante por parte dos agentes do cuidado. Está relacionada às condições política, econômica, histórica e cultural que caracterizam as diferentes regiões do país e possibilitam o exercício de práticas singulares. Constrói estratégias para desmistificar a idéia do “louco” como ameaça, como “periculosidade social”, e considera a diversidade, o “olhar” que vê no diferente a possibilidade de agenciamento de experiências subjetivas. Entendida como movimento social, a reforma apresenta uma composição heterogênea, que inclui atores socais diversificados e configura um processo social complexo e permanente. Articula dimensões epistemológicas (questões teórico-conceituais referentes à “doença mental” e ao “saber fazer” no campo da saúde mental), técnico-assistenciais (métodos terapêuticos); jurídicopolíticas (relações de poder e cidadania); e culturais (preceitos orientadores da conduta moral e do lugar social da loucura). Este trabalho tem como objetivo discutir sobre a reabilitação psicossocial no contexto da reforma psiquiátrica, com base em abordagens que trafegam pela História da Loucura, de Foucault (1978), pelo paradigma “ético-estético” formulado por Guattari (1996) e pelo “pensamento complexo” proposto por Morin (1996; 1997), como forma de contribuir para o debate sobre as novas maneiras de cuidar em saúde mental numa perspectiva ético-estético-política. n. 32 2007 p. 155-161 157 Dentre os enunciados que definem a reforma psiquiátrica, um conceito fundamental é o de “reabilitação psicossocial”, definida como atitude estratégica cujo princípio fundamental é a construção da cidadania plena, como “uma vontade política, uma modalidade compreensiva, complexa e delicada de cuidados para pessoas vulneráveis aos modos de sociabilidade habituais que necessitam de cuidados igualmente complexos e delicados” (Pitta, 1996, p.21). Reforma psiquiátrica e reabilitação psicossocial Félix Guattari, entre outros estudiosos, propôs a substituição do paradigma técnico-científico, que norteou historicamente a compreensão sobre a loucura, por um novo “paradigma”, que ele denominou de estético, também conhecido como ético-estético. Essa abordagem tem caráter processual e “implicações ético-políticas, porque quem diz criação diz responsabilidade da instância criadora com respeito ao criado, inflexão do existente, bifurcação além dos esquemas preestabelecidos [...]” (Guattari, 1996, p.127). O paradigma ético-estético no trato da loucura e da cultura de um modo geral passa necessariamente pelo encontro com a desrazão; ou seja, compreendese que a loucura, apesar de inscrita no universo da diferença simbólica, deve ser reconhecida como enunciadora de verdade. A idéia de loucura também se inscreve no desafio da complexidade moriniana – “complexus: 'o que tece em conjunto', e responde ao apelo do verbo latino complexere: 'abraçar'” (Morin, 1997, p.11). De acordo com essa concepção, a loucura se insere num amplo terreno de questões que dizem respeito à vida, à verdade produzida pela ciência moderna, e problematiza os registros da verdade e a separação rígida entre sujeito e objeto, teoria e prática, ciência e ética, loucura e razão. Para esse autor, não existe uma verdade na ciência, mas verdades que se combatem e são sempre provisórias (Morin, 1996). De acordo com essa concepção, a complexidade não é complicação, não é um fim, mas um meio necessário para se conceber o emergente, o ser, a invenção. A complexidade conserva sempre a circularidade, que comporta no seu seio paradoxos e incertezas. É, portanto, desafio, e não resposta. Refletir sobre a concepção de reabilitação psicossocial, no campo da saúde mental e/ou psiquiátrica, a partir do paradigma ético-estético-político, é pensar sobre a desconstrução de práticas silenciadoras e a (re)construção de práticas voltadas para as reais necessidades de pessoas com problemas severos e persistentes de saúde mental. Implica, pois, pensar uma multiplicidade possível que transcende o paradigma psiquiátrico tradicional, cujo princípio fundamental é a idéia de que o “louco” deve ser isolado da sociedade. Tal multiplicidade revela a complexidade, a diversidade, a subjetividade – compreendida como polissêmica, como algo que se produz por meio de relações e de experiências estabelecidas no cotidiano – e a arte – entendida como capacidade de inventar coordenadas mutantes, de engendrar qualidades desconhecidas, jamais vistas, jamais pensadas (Oliveira, 2002). 158 A reabilitação psicossocial, no contexto da reforma, passa pela idéia de desinstitucionalização, como forma de desconstrução do paradigma asilar e de invenção de novas modalidades de atendimento em saúde mental, fundamentadas não mais no objeto fictício “doença”, mas na “existência-sofrimento” do paciente e na sua relação com a sociedade. O conceito de “desinstitucionalização”, assim pensado, possibilita novas práticas e conceitos para se lidar com o paciente, que sejam instrumentos de produção de vida, de solidariedade e trocas sociais, e resgata a complexidade do fenômeno da loucura como aspecto biológico, político e sociocultural, como expressão complexa da existência humana. Nesse sentido, o processo de desinstitucionalização vai de encontro a toda política de abandono, de desassistência, de sucateamento dos serviços públicos. Exige a criação de serviços de atenção em saúde mental (CAPS, NAPS e residências terapêuticas, entre outros) e, por ser um processo complexo, multidimensional, não produz verdades: traz mais perguntas do que respostas. n. 32 2007 p. 155-161 Em saúde mental a busca da verdade deve estar a serviço da tolerância, da solidariedade e da liberdade. Nessa perspectiva, a reabilitação psicossocial remete ao debate acerca da ética e da cidadania. A ética guia não apenas o comportamento das pessoas, como também o dos saberes que norteiam suas práticas sociais. Reafirma a concepção de ser humano como um conjunto de possibilidades históricas. Ela não tem objetividade natural, e sim objetividade social: depende das ações dos homens e se refere a tudo aquilo que é considerado como belo, justo e adequado. Estimula, dessa forma, o diálogo decorrente da vontade de conhecer para compreender, ao invés de conhecer para dominar ou para ditar um conjunto de regras e preceitos orientadores da conduta moral. E aponta a necessidade da construção de saberes que não se pautem por paradigmas racionalistas, mas por um pensamento flexível e aberto, que privilegie o intercâmbio entre vidas e idéias. A cidadania refere-se a um conjunto de direitos e deveres do cidadão, e pressupõe igualdade, tendo como pedra angular o direito da pessoa de ser diferente das demais e de ser respeitada, em sua diversidade. No discurso neoliberal, o respeito à diversidade se configura em indiferença frente ao sofrimento psicossocial do outro. Assim, “a afirmação da cidadania do louco se consubstancia numa nova dimensão da assistência, trata-se não de deixar o louco viver a sua loucura, de ser indiferente ao seu sofrimento e a sua fragilidade, mas de proporcionar-lhe o direito a um tratamento de qualidade, tendo como eixo norteador o aumento do grau de sua autonomia e liberdade” (Oliveira, 2002, p.200). Dizer que “o louco é cidadão” equivale a dizer “o louco é sujeito desejante”; é reconhecer “novos sujeitos de direito, novos direitos para os sujeitos, novas subjetivações daqueles que seriam objetivados pelos saberes e práticas científicas [...]” (Amarante, 1996, p.121). Partindo desses pressupostos, amplia-se a noção conceitual de “reabilitação psicossocial” para além do sentido instrumental. A definição passa a ser complexa, multifacetada e processual. Reabilitar implica trabalhar com o “olhar” voltado para o sujeito, e não para a doença; trabalhar com o sofrimento, a fragilidade, e não com a incapacidade; e buscar a produção de novas subjetividades, e não a “cura”. De acordo com Saraceno; Asioli e Tognoni (1994, p.31), todo trabalho sobre os aspectos de incapacidade do paciente constitui reabilitação. No contexto da reforma psiquiátrica, a reabilitação atravessa, pois, todos os momentos do percurso terapêutico do paciente, incluindo desde psicoterapias individuais/grupais, medicação, aprendizagens de novas formas de convivência, até o (re)aprender a “cuidar de si”. É um processo que aumenta a capacidade do sujeito de estabelecer trocas sociais e afetivas em diversos cenários: na rede social, no trabalho e em casa. É um percurso que possibilita ao paciente resgatar sua autonomia, através do aumento do poder de contratualidade psicológica e social. “Autonomia” é outro conceito-chave para a prática de reabilitação e está diretamente ligada à idéia de circularidade, de movimento reflexivo, como também à noção de liberdade, de possibilidade de escolha entre diversas alternativas. n. 32 2007 p. 155-161 159 Para reabilitar, é necessário oferecer diariamente um tratamento de qualidade cujo objetivo básico seja a criação de um espaço de sentido, de vínculos afetivos e acolhimento para a família e para as pessoas com transtornos mentais, que alimente o desejo de todos de buscarem menos sofrimento para si e para o outro, impedindo-os de separar espaços de cidadania na vida cotidiana. “Um projeto de reabilitação não se traduz em percurso linear, em modelos ideais, normativos, em papéis cristalizados, em procedimentos codificados, mas vai sendo tecido cotidianamente, em permanente transformação, feita de dúvidas, incertezas, erros e aprendizagens” (Oliveira, 2001, p.60). Daí a importância de uma “clínica da escuta comprometida”, porque, quanto maior for a oferta de dispositivos de atenção proporcionados pelo serviço ao paciente, privilegiando a sua singularidade e a sua inserção social, maior será o seu grau de liberdade de escolha, o que, possivelmente, aumentará a sua autonomia. De acordo com essa compreensão, o processo de reabilitação psicossocial envolve a subjetividade, envolve idéia de autonomia, liberdade, autoreflexividade, auto-responsabilidade, materialidade de um corpo, particularidades, potencialidades infinitas que conferem cunho próprio e único à personalidade (Santos, 1995), a partir de possibilidades relacionais e do grau de liberdade, indeterminação e tensão entre valores histórico-culturais. Trabalhar com base nos princípios da reabilitação psicossocial requer a compreensão de que “O consenso mínimo entre os profissionais que atuam nesse campo do saber pode ser estabelecido em função da noção de sujeito, compreendido numa perspectiva multidimensional como um ser plural, biológico, lingüístico, histórico, cultural e social. O sujeito é ao mesmo tempo sapiens e demens, ativo e passivo, dependente e autônomo; é um ser ambíguo e incerto, que ama e odeia. O sujeito é criação permanente, é um ser de necessidades, de desejos e de crenças, que se concretiza por meio da linguagem na relação que estabelece com o outro. O ser humano é a condição de mutabilidade permanente” (Oliveira; Fortunato; Farias, 2005, p.7). Frente ao enigma da loucura, não há um saber único, como também não há uma resposta única. Sendo assim, as formas de acesso ao “sofrimentoexistência” devem ser as mais diversificadas possíveis, levadas a cabo pela multiplicidade de “olhares” e de “vozes” dos diferentes profissionais: enfermeiro, médico, terapeuta ocupacional, psicólogo, assistente social, técnico em enfermagem, pacientes e familiares, entre outros. É nessa diversidade que podem ser construídas práticas que ousem imaginar o ainda não imaginado e o ainda não experimentado. Portanto a importância da interdisciplinaridade, tema complementar ao conceito de “reabilitação psicossocial” no campo da saúde mental, decorre do fato de que o “adoecer psíquico” não é um fenômeno simples, mas complexo. Mas, mesmo reconhecendo-se as competências disciplinares, é preciso assegurar o espaço entre saberes e práticas para dar conta, ao mesmo tempo, da singularidade e da complexidade do real. 160 Reflexões finais A reabilitação psicossocial, no contexto da reforma psiquiátrica, pressupõe a articulação de diferentes linguagens e estratégias, exigindo uma trama plural, com múltiplas problemáticas. Isso não significa cair no relativismo; implica estabelecer um consenso mínimo entre a equipe terapêutica, para que se possam desenvolver projetos voltados para as necessidades cotidianas do paciente, por meio da construção de saberes que não se coadunam com paradigmas racionalistas. n. 32 2007 p. 155-161 Libertar o pensamento dessa racionalidade fechada é tarefa tão urgente quanto libertar a sociedade das instituições manicomiais. É preciso romper com procedimentos codificados, desmontar a forma hegemônica de racionalidade que ignora os seres, a subjetividade, a afetividade, a criatividade, a vida, tornando-se uma “racionalidade irracional”. Isso implica abrir-se ao diálogo, às múltiplas vozes, às incertezas, às emergências simultâneas de “si mesmo” e das relações sociais. Em saúde mental, ter a compreensão da prática como invenção permanente, como produção de novas formas de abordagem e de novos vocabulários é indispensável, pois as práticas cotidianas em saúde mental devem ser construídas não baseadas em verdades científicas, mas em função de eficiências ético-estético-existenciais. É importante, ao invés de se questionar se um determinado tipo de atendimento é “verdadeiro” ou “falso”, mais científico ou menos científico, questionar-se: Essa prática, ou essa forma de cuidar, faz as pessoas mais felizes, livres, ou não? É transformadora, libertadora ou excludente? Tornar-se consciente disso significa desconstruir o medo de se deparar com o acaso, a desordem, o imprevisível e o incontrolável que emergem na loucura. Só assim será possível construir práticas fundamentadas num cuidar competente, ético, estético, criativo e solidário. REFERÊNCIAS AMARANTE, Paulo. O homem e a serpente: outras histórias para a loucura e a psiquiatria. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 1996. DELGADO, Pedro Gabriel. O tratamento a partir da reforma psiquiátrica. In: QUINET, Antônio. (Org.). Psicanálise e psiquiatria: controvérsias e convergências. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2001. FOUCAULT, Michel. História da loucura. São Paulo: Perspectiva, 1978. GUATTARI, Félix. O novo paradigma estético. (121-133). In: SCHNITMAN, Dora Fried. (Org.). Novos paradigmas, cultura e subjetividade. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996. MORIN, Edgar. Abertura. (11-12) In: CASTRO, Gustavo de et al. (Orgs.). Ensaios de complexidade. Porto Alegre: Sulina, 1997. MORIN, Edgar. Ciência com consciência. 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