O Filtro do Caso e os Objetos Cognatos com Verbos Inacusativos em PB Ana Paula Scher1, Renata T. F. Leung2 1 Departamento de Lingüística – FFLCH – Universidade de São Paulo (USP) [email protected] 2 Departamento de Lingüística – FFLCH – Universidade de São Paulo (USP) [email protected] Resumo: Neste trabalho pretendemos mostrar que a explicação para a ocorrência de sentenças com objetos cognatos a verbos inacusativos no português do Brasil pode estar na definição do estatuto sintático desse “objeto” associada a uma reformulação do filtro do Caso que vincula Caso a papel temático. Palavras-chave: objeto cognato, argumento evento, verbos inacusativos, Caso Abstract: In this paper we intend to account for the occurrence of cognate object sentences with unacusative verbs in Brazilian Portuguese taking into consideration the associatin of the syntactic status of this “object” and a reformulation of the Case Filter that links Case to Theta Role assignment. Key-words: cognate object, event argument, unacusative verbs, Case Introdução As construções com objetos cognatos (COCs) são definidas usualmente pelas quatro propriedades que seguem (Cf. Jones 1988, Massam 1990, Mittwoch 1997, Pereltzvaig 2001): (i) os objetos cognatos (OCs) são sintagmas que contêm um nome morfologicamente relacionado ao verbo; (ii) o sintagma OC será opcionalmente modificado por um adjetivo; (iii) o sintagma OC ocorre em posição pós-verbal; (iv) o sintagma OC só ocorre em sentenças com verbos inergativos ou transitivos opcionais. A sentença em (1), no entanto, desafia a correção de, pelo menos, duas dessas propriedades: nela, a modificação adjetival não é opcional e, além disso, nesta sentença, tem-se a co-ocorrência entre um verbo inacusativo e um objeto cognato a ele, opção não contemplada pelo item (iv) da descrição acima. 1) A Maria sumiu um sumiço *(misterioso). Estudos Lingüísticos XXXIV, p. 927-932, 2005. [ 927 / 932 ] Neste trabalho, discutiremos a questão da existência de COCs com verbos inacusativos no Português do Brasil (PB). Outras línguas, tais como o hebraico ou o russo (Cf Pereltzvaig, 2001), também exibem essa possibilidade. A afirmação de que a co-ocorrência entre OCs e verbos inacusativos não é possível é coerente dentro do modelo de Regência e Ligação, parte do arcabouço teórico da Gramática Gerativa, que sustenta este trabalho. Raposo (1992) aponta que o fato de os OCs poderem ocorrer com verbos inergativos, mas não com inacusativos (como normalmente descrito) serve de evidência adicional para a correção da generalização de Burzio (Burzio, 1986) que diz, grosso modo, que um verbo que não atribui papel θ a um argumento externo também não atribui Caso a seu argumento interno. Sendo assim, a ocorrência de um objeto associado a um verbo inacusativo, além do argumento interno que é realizado na posição de sujeito, deve ser impossível. No entanto, essa descrição das COCs não tem correspondido à realidade, como vimos em (1). Esse problema está diretamente relacionado à questão do Filtro do Caso, princípio que exige que a todo NP foneticamente realizado e com conteúdo semântico seja atribuído um Caso. Ora, se o NP segue um verbo inacusativo como em (1), tal atribuição não pode, em princípio, se realizar. O trabalho está assim organizado: nas seções 1 e 2, apresentam-se as sugestões de tratamento do sintagma OC como argumento temático e como adjunto, respectivamente. A hipótese de que sejam argumentos-evento é descrita na seção 3 e a seção 4 conclui este trabalho, explicando a ocorrência de OCs em sentenças em que sua marcação com Caso não é possível. 1. O estatuto controverso dos OCs A natureza do sintagma OC não está totalmente esclarecida e nós acreditamos que definir o real estatuto desses elementos nos ajudará a solucionar ou esclarecer algumas questões relacionadas a Caso nas COCs com inacusativos. Autores como Massam (1990) ou Hale & Keyser (1993) afirmam que os OCs são argumentos temáticos do verbo. No entanto, tal proposta traz problemas teóricos e empíricos. Os primeiros são relacionados ao Filtro do Caso e ao Critério θ. O problema do Caso já foi apontado acima. No que concerne ao Critério θ, a ocorrência de OCs com verbos inergativos e inacusativos também representa um problema, dado que o único papel θ que estes verbos têm deverá ser atribuído para o argumento realizado na posição de sujeito da sentença. Empiricamente falando, a hipótese de que os OCs são objetos temáticos também não se verifica com facilidade, já que, muitas vezes, eles não se comportam como tal. Por exemplo, eles não podem ser passivizados, topicalizados ou pronominalizados, e, além disso, não aceitam determinantes fortes: 2) a. Ela sonhou um sonho horrível b. Passivização: *Um sonho horrível foi sonhado (por ela). c. Topicalização: *Um sonho horrível, fui eu que sonhei. Estudos Lingüísticos XXXIV, p. 927-932, 2005. [ 928 / 932 ] d. Pronominalização: * Um sonho horrível, eu o sonhei esta noite. e. Determinantes fortes: *Eu sonhei o/ todos os/ este sonho horrível. Vale notar que alguns OCs, em particular, os que ocorrem com verbos transitivos e transitivos opcionais, se comportam como objetos temáticos. Por causa de espaço, não faremos os testes aqui, mas verbos como dançar, construir, entre outros, formam COCs desse tipo. Além disso, o fato de estes OCs ocorrerem com verbos transitivos, não traz problemas para o Critério θ ou para o Filtro do Caso. Assim, sugerimos que alguns OCs do PB, de fato, sejam objetos temáticos, comportando-se como objetos diretos. O PB se caracteriza, então, por exibir OCs de naturezas distintas. Resta-nos definir o estatuto dos demais sintagmas OCs, ou seja, dos que ocorrem com verbos intransitivos, já que não é possível tratá-los como objetos temáticos. Na seção 2, observaremos uma proposta que analisa os OCs como adjuntos. 2. OCs como adjunto Tentando solucionar o problema relacionado ao Critério θ colocado pelos OCs em construções monoargumentais, alguns autores, como Jones (1988), propõem que os OCs sejam adjuntos, ou seja, constituintes não-temáticos. No entanto, o problema do Filtro do Caso continua, na medida em que este princípio não se refere a constituintes selecionados ou não pelo verbo, mas a qualquer DP com conteúdo fonético. O autor propõe, então, a reformulação do Filtro do Caso (RCF), descrita em (3): o RCF não se refere a DPs, mas às projeções lexicais máximas com papel θ. 3) *X [ + Projeção Máxima Lexical, α papel θ, –α CASO] Parece que tratar OCs como adjuntos é uma boa solução teórica para o problema do Caso: se os OCs não necessitam de Caso, podem ocorrer com verbos inacusativos. Esta abordagem é compatível com a Condição de Visibilidade de Chomsky (1981), segundo a qual, Caso é um “recurso” sintático, cuja função é tornar visível o papel θ. O problema com essa análise, porém, é de natureza empírica. Em muitos aspectos os OCs não se comportam como adjuntos. Por exemplo, eles não co-ocorrem com um objeto direto, diferentemente dos advérbios, que são adjuntos estruturais. 4) 5) *Mordred killed the knight a gruesome kill. Mordred matou o cavaleiro uma repulsiva morte Mordred killed the knight gruesomely. matou o cavaleiro repulsivamente Mordred (Massam, 1990) (idem) ‘Mordred matou o cavaleiro repulsivamente’. Estudos Lingüísticos XXXIV, p. 927-932, 2005. [ 929 / 932 ] 3. A Realização Sintática do Argumento Evento Dentro da perspectiva teórica que acabamos de apontar, assumir que OCs são argumentos não-temáticos também explica as questões relativas a Caso, já que só as projeções máximas lexicais argumentais, isto é, que recebem papel θ, receberão Caso. Assim, pode-se sugerir que os OCs sejam objetos não-temáticos que realizam na sintaxe a posição evento davidsoniana. Davidson (1967) buscava a forma lógica para as sentenças de ação. Um dos problemas era que uma ação pode ser descrita de várias formas. Sendo assim, era preciso encontrar uma única forma lógica que pudesse representar o significado da sentença de ação, independentemente das formas em que ela pudesse ser descrita. Para isso, Davidson criou um quantificador existencial que liga uma variável de ação (ou variável de evento). Então, uma sentença como (6) tem a forma lógica em (7): 6) Amundsen flew to the North Pole in May 1926. (Davidson, 1967) ‘Amundsen voou para o Pólo Norte em Maio 1926’ 7) (∃x) (x is an event that consists in the fact that Amundsen flew to the North Pole and x took place in May 1926) ‘(∃x) (x é um evento que consiste no fato de que Amundsen voou para o PóloNorte e x aconteceu em Maio de 1926)’ Assim, “evento” é descrito como uma posição na estrutura argumental dos verbos de ação, que permanece oculta, ou seja, que não é realizada sintaticamente. O fato de ser uma entidade semântica, no entanto, sugere a existência de um correlato sintático para esta posição. Por isso, se conseguirmos demonstrar que os OCs que ocorrem com verbos intransitivos são eventivos, conseguiremos também uma evidência empírica para a existência desta posição. Alguns fatos nos permitem pensar que, na realidade, os OCs podem ser a realização do argumento evento: a) OCs só ocorrem com verbos de ação: COCs com verbos estativos são agramaticais: 8) a. * O professor conhece um conhecimento profundo deste assunto. b. * A Maria ama um amor abnegado. b) a co-ocorrência entre objetos temáticos e OCs é impossível: mostramos, na seção 1, que OCs a verbos transitivos devem ser tratados como objetos temáticos comuns: 9) a. Eles construíram uma bonita construção. b. O caminhão está carregando um carregamento pesado. 10) a. * Eles construíram o prédio uma bonita construção. b. * O caminhão está carregando a carga um carregamento pesado. Estudos Lingüísticos XXXIV, p. 927-932, 2005. [ 930 / 932 ] (9) e (10) mostram que eles não co-ocorrem com outro objeto. Além disso, se os objetos uma bonita construção, em (9)a, e um carregamento pesado, em (9)b, forem nãotemáticos, o verbo não poderá descarregar um de seus papéis θ, violando o Critério θ. É interessante notar, também, que esses objetos apresentam uma leitura de entidade, e não de evento. Quando o objeto tem uma leitura eventiva, a formação de COCs não é possível, como podemos ver no contraste em (11) e nos dados em (12): 11) a. O João comprou uma compra enorme – leitura de entidade. b. * O João comprou uma compra demorada – leitura de evento. 12) a. * O goleiro derrubou uma derrubada proposital. b. * O Corinthians eliminou uma eliminação vergonhosa. Veja que, quando o OC ocorre com um verbo transitivo, ele precisa ter leitura de entidade ((9) e (11)a); se ele for eventivo, a sentença é agramatical ((11)b). Isso pode ser uma evidência para a hipótese de que OCs eventivos são argumentos não-temáticos: visto que realizam a posição evento, não podem receber papel θ do verbo. Além disso, se dissermos que os OCs são adjuntos não saberemos explicar porque, quando têm uma leitura de entidade a sentença é bem formada ((11)a), mas quando têm uma leitura de evento, é ruim ((11) b). c) Um outro dado interessante é a restrição à formação de passivas com o OC na posição de sujeito. Observe os dados em (13) e (14): 13) a. O carro foi comprado pelo João. b. Uma compra enorme foi comprada pelo João. 14) a. A matéria foi apresentada pelo professor. b. * Uma apresentação clara do assunto foi apresentada pelo professor. O fato de a passivização ser possível com objetos temáticos, mas não com OCs eventivos mostra que, de fato, eles são de natureza diferente: por serem não- temáticos, não podem acontecer em posições para as quais seja atribuído Caso e, portanto, não podem passivizar, já que neste processo eles são movidos para uma posição em que é atribuído Caso Nominativo. 4. Conclusão Neste trabalho, vimos que a descrição corrente das COCs tem sido desafiada, em alguns aspectos, por dados de línguas como o PB. Um deles é a ocorrência de OCs com verbos inacusativos. Os OCs têm sido descritos como não podendo ocorrer com inacusativos, mas dados como morrer um morte trágica, chegar uma chegada triunfal, sumir um sumiço misterioso, entre outros, mostram que isto não é verdade. Por outro lado, tais dados trazem problemas para a Teoria do Caso, dentro do modelo de Regência Estudos Lingüísticos XXXIV, p. 927-932, 2005. [ 931 / 932 ] e Ligação, na medida em que verbos inacusativos são incapazes de atribuir Caso Acusativo para seu argumento interno. Vimos também que a forma como os OCs são definidos pode ajudar a solucionar este problema. Partindo da hipótese de que Caso é algo relacionado a uma função argumental, e portanto, nem todo DP precisa de Caso, mas apenas aqueles que têm papel θ (Filtro do Caso Reformulado), poderíamos encontrar uma solução propondo que os OCs são adjuntos, constituintes não-temáticos. Contudo, alguns dados mostraram que o comportamento dos OCs é incompatível com o dos adjuntos. Associar o RCF a uma visão eventiva dos OCs pode nos levar a uma boa conclusão. O problema teórico do Critério θ e do Filtro do Caso não se coloca mais, por se tratar de um argumento não-temático. Além disso, o comportamento dos OCs, tanto em termos semânticos quanto sintáticos, é compatível com uma natureza eventiva, ao contrário do argumentos temáticos e dos adjuntos. A nossa proposta é a de que há duas classes de OCs: (i) OCs temáticos, que ocorrem com verbos transitivos e denotam uma entidade; (ii) OCs não-temáticos, que ocorrem com verbos monoargumentais (inergativos e inacusativos) e denotam um evento, pois realizam a posição evento na sintaxe aberta. Pensamos que este trabalho pode ajudar a esclarecer o estatuto dos OCs no PB, bem como trazer sua contribuição para a discussão sobre a realização sintática do argumento evento, outro tema ainda bem controverso na literatura. Referências BURZIO, L (1986) Italian Syntax: A Government-Binding Approach. Dordrecht: Kluwer CHOMSKY, N. (1981) Lectures on government and binding, Foris Publications, Dordrecht. DAVIDSON (1967) The Logical Form of Action Sentences. In N. Rescher (ed.) The Logic of Decision and Action. Pittsburgh: University of Pittsburgh press. Reimpresso em D. Davidson (1980) Essays on Actions and Events. Oxford: Claredon Press, pp. 105-148. HALE, K & S. J. KEYSER. 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