A "Antropologia Social" de Edmundo Leach A l c id a R . R a m o s Se fôssemos qualificar o livro mais recente de Leach* com uma única palavra, talvez a mais apropriada fosse "dispensá­ vel” . São raros os momentos neste livro que lembram a vitali­ dade intelectual dos trabalhos mais notáveis de Leach, como Sistemas Politicos de la Alta Birmania (originalmente publicado em 1954) e Repensando Antropologia (1961). Como foi dito uma vez sobre o velho Picasso, o mestre plagia-se a si mesmo e pa­ rece viver num mundo todo seu, involucrado numa sincronia ultrapassada. Com a arrogância que caracteriza as vacas mais sagradas de Oxbridge, de uma penada, Leach declara irrelevante pratica­ mente tudo aquilo que ele percebe como divergindo da sua an­ tropologia social. Entretanto, o leitor com certa prática de tex­ tos mais cosmopolitas reconhece a cada passo idéias já antes por outros exploradas, sem que estas venham acompanhadas de qualquer reconhecimento ou crédito por parte de Leach. Par­ ticularmente ignorados são os antropólogos norte-americanos (para não falar no total silêncio sobre o Terceiro Mundo). A velha atitude insular da antropologia social britânica tradicional torna-se aqui caricatural, quando Leach pinta o seu quadro da antropologia cultural norte-americana. Caracterizando os antro­ pólogos culturais como descendentes de Tylor “ que mantive­ ram um desejo pela reconstrução histórica” (: 24), Leach, ao mesmo tempo que os deprecia, aborda questões e oferece so­ luções idênticas às já anteriormente colocadas por “ culturalistas” americanos, sem, no entanto, lhes creditar as idéias. Te­ remos mais adiante oportunidade de apontar alguns exemplos dessa omissão. * Edmund Leach, Social Anthropology, New York: Oxford University Press, 1982, 254 p. 295 Vejamos, primeiramente, em que consiste o livro em suas linhas mais gerais, para então proceder a um exame mais de­ talhado de seu conteúdo. A linha mestra que parece sustentar as argumentações de Leach foi traçada em torno do tema continuídade/descontinuidade. A partir dessa oposição, Leach separa os vários ramos da Antropologia, define-se a si mesmo como um antropólogo so­ cial funcionalista fertilizado pelo estruturalismo de Lévi-Strauss, enfurece-se com a sociobiologia, borboleteia sobre questões de identidade (nós versus os outros), explora uma visão eletrifi­ cada e anglicizada de poder extraída de sua formação de enge­ nheiro, roda pelo circuito do kula, sobe às alturas da hierarquia, descansa no parentesco, passa por questões cosmológicas e, em quatro páginas de conclusão, desculpa-se por cobrir tão pouco terreno, aproveitando a oportunidade para declarar que bruxaria é o oposto de legitimidade. Segue-se um glossário no qual encontramos que, por exemplo, totemismo é “ a adoração de animais e plantas” , notas de pé-de-página e uma bibliografia que surpreende pela economia de referências. Na introdução, Leach desperta o leitor para a relação ma­ temática entre + , — e 0 e sua aplicabilidade no estudo de sociedades humanas. Essa relação é rapidamente explicada mas sua aplicabilidade não chega a ser demonstrada nem aí nem no resto do livro. No primeiro capítulo, A Diversidade da Antropologia, Leach critica, com razão, a distinção entre sociedades “ tradicionais", “ mitopaicas” , “ ágrafas” , “ estáticas” e sociedades “ modernas” , “ históricas", “ progressistas” (: 17), o que dá a impressão de endossar o estudo antropológico de toda e qualquer sociedade, inclusive ocidental. Essa impressão se desfaz no decorrer do volume. Para Leach, o objeto privilegiado do antropólogo social ainda são as sociedades não-ocidentais. Ainda neste capítulo, Leach traça uma trajetória algo demorada da antropologia so­ cial britânica, parodia rapidamente a antropologia cultural nor­ te-americana, para ele consistindo em variações entre dois extremos — Marvin Harris e David Schneider — e insiste em que a distinção entre antropologia social e antropologia cultu­ ral não só é válida como necessária. Ao afirmar que os antro­ pólogos norte-americanos tomam cultura e sociedade como coincidentes e indiferenciados, Leach revela mais desinforma­ ção do que perspicácia transatlântica. Além do mais, talvez sem perceber, Leach iguala-se a um “ culturalista” ; note-se, por exemplo, o seguinte trecho: “ A antropologia social não é, nem deve ter por objetivo ser uma “ ciência” no sentido da ciência natural. A ser algo, ela é uma forma de arte" (: 52). Isto dito em Í296 1982 não soa muito original, depois que Clifford Geertz já vem batendo há tempo nessa mesma tecla (Vide Geertz 1973). O capítulo 2, a Unidade do Homem, dedica-se à crítica da idéia de que existe O Homem como ser culturalmente indiferenciável. São alvo especial dessa crítica os iluministas e os marxistas e suas propostas de igualitarismo nas sociedades hu­ manas. Se entendo bem o tom da exposição, Leach parece de­ fender duas noções simultaneamente: a diversidade e relati­ vismo culturais e a universalidade da hierarquia. A primeira no­ ção, obscurecida pelo vaivém do argumento altamente discur­ sivo, que inclui desde exemplos de etnocentrismo europeu pré-colombiano até incursões filosóficas de Michel Foucault (diga■se, de passagem, mal interpretadas por Leach), surgem com mais clareza no capítulo seguinte, quando o autor discorre so­ bre continuidade biológica e descontinuidade cultural. De qual­ quer modo, é uma noção bastante corriqueira na antropologia. A segunda, entretanto, representa uma tendência relativamente recente na disciplina. Hierarquia como princípio organizador das sociedades humanas está ainda em fase de competição aca­ dêmica com a noção de reciprocidade que tem orientado os trabalhos estruturalistas de Lévi-Strauss, a partir de Mareei Mauss. Leach, porém, aborda o problema num vácuo teórico, não havendo qualquer referência ao trabalho de Louis Dumont (mencionado apenas como fonte de uma citação de Tocqueville), o maior articulador da "teoria da hierarquia” . Leach toma hierar­ quia como sendo virtualmente inevitável nas sociedades hu­ manas: “ Na grande maioria dos casos a desigualdade hierár­ quica é tida como parte da ordem natural das coisas. Isso não é bem surpresa, pois sem hierarquia não pode haver legitimidade e sem legitimidade não pode haver ordem social persistente . . . Numa sociedade em que se leva a sério noções igualitárias cada indivíduo se vê a sí mesmo como sendo pessoalmente inspirado diretamente pela fonte divina última de moralidade. Minhas ações são a sua maior justificativa. Não reco­ nheço nenhuma autoridade moral humana exterior ao meu eu existencial. Não há alocação de legitimidade a outros. A autoridade humana é, pois, um mal em si mesma e as relações sociais que constituem a trama da sociedade são constantemente dissolvidas. Portan­ to, toda doutrina igualitária é fundamentalmente milenarista, revolucionária e transitória." (: 79) 297 Se por hierarquia Leach quer dizer diferenciação de papéis, então sua caracterização tem validade, embora a nível trivial — jovens versus velhos, mulheres versus homens, não iniciados versus iniciados. Mas se o conceito de hierarquia implica em desigualdade necessária entre os homens, baseada em acesso diferencial a importantes recursos da sociedade, então a gene­ ralização de Leach deixa a desejar. É interessante notar que um dos temas que percorre todo o livro, e que considero a sua maior qualidade, é a idéia de que em antropologia é fútil buscar-se leis, pois a diversidade cultural é tamanha que há sem­ pre exceções que contradizem tais leis. Essa diversidade, ima­ ginação e criatividade humanas que desafiam a capacidade sin­ tética da ciência é o que fascina Leach e muitos outros, dentre os quais eu me incluo. Entretanto, na discussão sobre hierar­ quia, Leach parece negar a possibilidade de alternativas não-hierárquicas na humanidade. Casos discordantes são empurra­ dos para o lado como sendo raras exceções. Uma leitura mais assídua do material etnográfico do Novo Mundo talvez conven­ cesse Leach de que o número de “ exceções” é suficientemente grande para questionar a sua generalização. O tema da diversidade cultural é retomado no capítulo 3, Humanidade e Animalidade. Na verdade, este assunto é u tili­ zado como veículo de contestação da sociobiologia. Pelos mean­ dros desse ataque (em si mesmo bastante justificado), Leach chega à conclusão de que os seres humanos são diferentes dos animais, que há continuidade biológica entre os homens — afi­ nal, somos todos Homo sapiens — e descontinuidade cultural — os ingleses são diferentes dos trobriandeses. E. O. Wilson, o papa da sociobiologia, é chamado de antropológicamente in­ competente (: 89), porém Leach não demonstra suficientemente as falácias dessa abordagem. Muito mais satisfatório é o tra­ balho de Sahlins (1977), outro “ culturalista” norte-americano, cujo livro refutando a sociobiologia não é reconhecido por Leach. No quarto capítulo, Meu Tipo de Antropologia, Leach de­ clara-se antropólogo social que estuda sociedades “ primitivas” e generaliza: "O que fazem realmente os antropólogos sociais? . . . A resposta é que eles passam uma boa parte do tem­ po observando como e quando e onde as relações de parentesco são acionadas e tentando entender as dis­ criminações que marcam a fronteira entre as relações de parentesco e as relações de não-parentesco ” (: 139) 298 Para um antropólogo que se dedica ao estudo das relações de trabalho no meio urbano, ou de relações interétnicas, essa caracterização de seu métier parece tirada dos idos anos 40. O quinto capítulo é considerado por Leach como o núcleo de seu pensamento expresso no livro. Intitula-se Dívida, Rela­ ção, Poder. Aqui o autor retoma a temática da hierarquia no contexto económico-político, depois de alertar para a complexi­ dade das categorias sociais, as quais devem ser sempre toma­ das em polaridade. Por exemplo, pai é um feixe de relações diádicas: pai/feto (sic), pai/bebê, pai/filho, pai/filha (: 151). A sensação de déjá vu que chega ao leitor advém do fato de que, em 1965, já outro “ antropólogo cultural” norte-americano, Goodenough, abordava extensa e compreensivamente esse as­ sunto num dos volumes da série britânica da ASA. Embora suas idéias houvessem assim atravessado o Atlântico, Leach nem por isso lhe faz referência. Essa sensação continua através da discussão do kula como sistema de troca desigual (lembrando, inevitavelmente, o estu­ do de Mauss sobre a dádiva, também invisível no livro de Leach). É dado crédito a Lévi-Strauss como fonte de inspiração de Leach em sua tentativa de associar as trocas econômicas dos circuitos do kula como as trocas matrimoniais assimétricas estudadas por Lévi-Strauss. Leach utiliza a noção de reciproci­ dade, ou melhor, de sua quebra, para chegar a uma fórmula de poder: o estado de dívida é o que deflagra uma relação social. Igualdade de pagamentos não gera poder (equacionado com a própria relação social), pois são os pagamentos assimétricos que produzem desigualdade de status, quando “ o poder flui do ‘mais alto’ para o ‘mais baixo’ ” (: 159), como na relação entre doadores de esposas versus receptores de esposas. Através dessa formula, Leach parece pretender estabelecer uma ponte com os marxistas, a quem evoca freqüentemente no livro em suas várias facetas: vulgares, ortodoxos, ou simplesmente “ Marxista” . É neste capítulo que Leach apresenta a sua inusi­ tada concepção de poder. Depois de descrever a relação de poder como envolvendo pessoas numa hierarquia composta de devedores e credores, o autor diz o seguinte: “ Mas em inglês o conceito de poder tem uma conota­ ção física além de metafísica; assim, falamos de ‘water power’, ‘steam power', 'electrical power' e assim por diante. Na linguagem dos engenheiros, dizs e que o poder ‘flu i’ sempre que o ‘potencial' é desi­ gual nos dois extremos de um canal . . . A razão desta analogia é que, desde que os dois pólos estejam se- 299 parados, não há relação entre eles; nenhum poder flui; não há perigo. Mas assim que os dois pólos são pos­ tos em contato por um ‘power conductor’, o potencial relativo nos dois extremos do 'conductor' gera um fluxo de poder. Quanto maior a diferença em poten­ cial, maior o fluxo de poder e maior o perigo para o condutor de poder. E é assim também com assuntos humanos. Se uma ‘relação de pessoa a pessoa' conduz um ‘fluxo de poder’ grande demais, da posição domi­ nante para a subordinada, a conexão entre elas prova­ velmente resultará em violência.” (: 157-8). Deixando de lado o etnocentrismo lingüístico que toma a acepção inglesa de energia como se fosse universalmente re­ conhecida pelo termo “ poder” , a crueza e o mecanismo da ana­ logia (falsa, afinal) reduzem-na a uma curiosidade mental sem maiores conseqüências para a compreensão do fenômeno po­ lítico. O capítulo 6, Casamento, Legitimidade, Aliança, repete, essencialmente, o refrão da antropologia tradicional voltada para estudos de parentesco, tais como considerações sobre preço da noiva, dote, aquisição de direitos sobre a prole, “ teo­ ria da descendência” versus “ teoria da aliança” . O ponto alto do capítulo é a contextualização que Leach faz das práticas se­ xuais dos Nayar, subcasta matrilinear da índia, tornando-as muito mais inteligíveis ao considerá-las em relação a outras castas vizinhas, como a dos Nambudiri, casta patrilinear. No capítulo 7, Alguns Aspectos de Cosmología, Leach resume alguns pontos de ligação entre religião e estrutura so­ cial Kachin, através de uma descrição do arranjo domiciliar de um chefe. O termo cosmología é utilizado propositalmente para evitar o termo religião, o qual Leach reserva para a realidade inglesa, com igreja constituída a sacerdotes profissionais. Por ser “ muito menos usada por falantes comuns da língua inglesa comum” (: 133), a palavra cosmología é então eleita pelo autor para se referir a “ religião prim itiva” (: 228-9, 236). Em outras palavras, Leach propõe uma descontínuidade abismal, a meu ver desnecessária, senão mesmo etnocêntríca, entre as práticas religiosas de sua sociedade e as de sociedades ditas “ primi­ tivas” . Finalmente, a breve conclusão começa com algumas consi­ derações sobre a natureza da bruxaria como atividade antile­ gítima e termina com uma justificativa do por quê de Leach preferir o estática à dinâmica social. Novamente, ele lança mão de seu passado de engenheiro: 300 "Na teoria elementar de construções de engenharia, aprendi primeiro sobre 'estática' e depois sobre ‘di­ nâmica’, mas resultou que, de tudo aquilo, a teoria realmente básica estava no volume sobre ‘estática e que a ‘dinâmica’ era uma espécie de lustro suplemen­ tar sobre o que já havia aprendido." (: 224) A antropologia social é, pois, para Leach, o “ estudo da estática de sistemas sociais” , mesmo reconhecendo que no mundo real essa estática não existe. Perplexo, o leitor então se pergunta: 1) que relação tem essa postura com a fertilidade metodológica de Sistemas Políticos da Alta Birmânia, onde Leach propôs que sociedade seja entendida como uma totalidade detectável no tempo mais do que no espaço; que estranha trajetória levou-o a retroceder a um funcionalismo imobilizante? 2) Com seu re­ petido apelo ao modelo da Engenharia, que sentido faz caracte­ rizar a antropologia como uma forma de arte? Em suma, Social Anthropology é um livro sem novidades teóricas, poucas surpresas empíricas e bastantes percalços me­ todológicos. É um quebra-cabeça cujas peças não se ajustam. Sendo que, como o próprio autor admite na primeira página, este livro não se dirige nem a principiantes, nem a profissio­ nais da antropologia, em vez de se constituir em veículo de co­ municação, ele mais parece um monólogo representado em frente ao espelho. Voltado para si e sua ilha, Leach é, ao mesmo tempo, seu próprio interlocutor e sua platéia. BIBLIOGRAFIA GEERTZ, Clifford. Tke Interpretation of Cultures. New York, Basic Books, 1973. GOODENOUGH, Ward. '‘Rethinking ‘status’ and ‘role’: toward a general model of the cultural organization of social relationships” In: The Rele­ vance of Models for Social Anthropology. ASA Monograph N.° 1, p. 1-24. New York, Frederick A. Praeger, 1965. SAHLINS, Marshall. The Use and Abuse of Biology. An Anthropological Critique of Sociobiology. London, Tavistock Publications, 1977. 3Qt1