A Censura em Cena: o arquivo Miroel Silveira

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A Ce nsu ra e m Ce na : o a rq uivo Miro el Silv eira
A complexidade das atribuições dos departamentos e das intervenções censórias fica evidente no
trabalho de catalogação da documentação do Arquivo Miroel Silveira, onde foram encontrados
documentos e certificados de diferentes origens referentes ao mesmo período. Esta é a lista de
órgãos que aparecem na documentação das peças de 1930 a 1968:
Órgão Censor
___ Período___
1
Ministério da Justiça e Segurança Pública, Depart.
1932
de Investigações, Divisão de Diversões Públicas
___________________________________________________________________
2
Delegacia de Costumes, Censura Theatral
1934
___________________________________________________________________
3
Censura Theatral
1934
___________________________________________________________________
4
Departamento Estadual de Imprensa e Propaganda,
1941 á 1944
Divisão de Turismo e Diversões Públicas
___________________________________________________________________
5
Interventoria Federal, Departamento Estadual de
1945 á 1946
Imprensa e Propaganda, Divisão de Turismo
e Diversões Públicas
___________________________________________________________________
6
Secretaria da Segurança Pública, Departamento de
1947
Investigações, Divisão de Diversões Públicas.
___________________________________________________________________
7
Secretaria de Estado dos Negócios da Segurança
Pública, Departamento de Investigações, Divisão de
Diversões Públicas
___________________________________________________________________
8
Secretaria da Segurança Pública, Departamento
1949
de Investigações
___________________________________________________________________
9
Secretaria de Estado dos Negócios da Segurança
1956 á 1960
Pública, Setor de Órgãos Auxiliares Policiais, Secretaria
da Segurança Pública
___________________________________________________________________
10
Divisão de Diversões Públicas, Setor de Órgãos
1960 á 1961
Auxiliares Policias, Secretaria da Segurança Pública
___________________________________________________________________
11
Secretaria da Segurança Pública, Setor de Órgãos
1961 á 1967
Auxiliares Policiais, Divisão de Diversões Públicas,
Serviço de Teatro e Diversões em Geral
___________________________________________________________________
12
Ministério da Justiça e Negócios Interiores,
1967
Departamento Federal de Segurança Pública,
Seção de Censura Federal
___________________________________________________________________
13
Serviço de Censura de Diversões Públicas, Seção
1967
de Censura Federal – DR/SP
___________________________________________________________________
14
Serviço de Censura de Diversões Públicas (SCDP),
1968
Departamento de Polícia Federal (DPF),
Censura Federal, Teatro.
Como é possível perceber, há contradições quanto às atribuições dos órgãos, bem como quanto à
jurisdição federal e estadual da censura. Supõe-se que um mesmo espetáculo tivesse que ser
submetido a diferentes órgãos, mas percebe-se uma nítida tendência à federalização e à
centralização da censura ao longo do período estudado.
Além dos diferentes órgãos responsáveis pela censura, havia ainda no decreto nº 24.911, de 1948,
abertura para que outras entidades participassem do processo. Diz o artigo nº 134:
O Ministro de Estado da Justiça e Negócios Interiores poderá autorizar a assistência aos
trabalhos de censura prévia, em caráter permanente ou ocasional, e representantes de
entidades especializadas, e de fins educativos ou morais, interessadas na elevação do
nível dos espetáculos públicos, sem ônus para o Tesouro, e sem que isto importe em
qualquer intervenção nos trabalhos da censura.
A Secretaria do SCDP comunicará, com a devida antecedência, às entidades de que trata
este artigo, o horário e local das exibições e dos ensaios gerais.
Assim se referendava uma tradição que vinha dos tempos coloniais e que tivera início com a
repressão policialesca dos espetáculos em nome da Monarquia, da religião, da metrópole, da
língua, da família e dos bons costumes. Adquiriu no Império um tom mais intelectual, à medida
que se organizava o campo artístico e que se criavam instituições artísticas e culturais, a partir do
desenvolvimento de uma política cultural por parte do Estado. Instaurava-se aí a censura prévia e
a nomeação de censores com certo verniz cultural, capazes de referendar as decisões da
Monarquia.
Com a República e o desenvolvimento dos meios de comunicação, a censura se torna mais
rotineira, impessoal e burocratizada. Surge o conflito entre a Federação e os Estados e entre
órgãos estatais - educação, cultura, polícia e juizado de menores - requerendo seus direitos ao
controle das artes e das comunicações.
E, embora se sucedam leis e decretos, de uma maneira geral permaneceu inalterado o ritual da
censura referente ao teatro - apresentação de textos para censura prévia, presença da censura nos
ensaios gerais, censura de material impressos e de divulgação.
O resultado de tudo isso podia ser a liberação integral, a liberação para uma faixa etária do
público, cortes de diálogos que podiam ir de palavras a páginas, modificações em personagens e
situações ou proibição da peça.
Depois do veredicto, ainda era passível alguma negociação — os artistas procuravam os censores
ou seus superiores para convencê-los da necessidade de manter a integridade do texto. Nessa
negociação mantinham-se alguns cortes e, se o autor ou diretor tivesse sorte, prestígio, ou fosse
bom argumentador, conseguia-se certa liberação para o texto e certa autonomia para o autor. Esse
ritual permaneceu o mesmo da década de quarenta até 1964, quando teve início a ditadura militar.
Os trâmites dos processos eram claramente definidos. A partir de 1942, a censura implicava em
um processo que era aberto junto ao:
DEPARTAMENTO ESTADUAL DE IMPRENSA E PROPAGANDA - DIVISÃO
DE DIVERSÕES PÚBLICAS
Setor de Órgãos Auxiliares Policiais
Secretaria de Segurança Pública
São Paulo – Brasil
Algumas capas dos prontuários dos processos existentes no Arquivo Miroel Silveira registram
outros órgãos, como por exemplo:
SECRETARIA DE ESTADO DOS NEGÓCIOS DA SEGURANÇA PÚBLICA -
DIVISÃO DE DIVERSÕES PÚBLICAS
Os documentos e trâmites legais eram os seguintes:
1 - Carta dirigida ao Diretor do órgão com informações acerca dos empresários interessados na
liberação, nome(s) e endereço da peça a ser encenada, título, autor, gênero, número de atos e, do
espetáculo, local e data. Informações sobre cobrança de ingressos também aparecem;
2 - Reconhecimento de firma do requerente;
3 - Protocolo do Órgão com número do processo;
4 - Encaminhamento do processo pelo Diretor ao funcionário que deverá expedi-lo ao censor;
5 - Despacho do funcionário ao censor;
6 - Decisão do censor: veto, cortes ou liberação da peça;
7 - Recibo do Certificado e de uma das cópias da peça pelo requerente;
8 - Guia de Recolhimento do ImpostoSelo;
9 - Certificado de censura com validade de três anos;
10 - Na maioria das peças brasileiras, Autorização emitida pelo Serviço de Defesa do Direito
Autoral – SBAT;
11 - Duas cópias do texto a ser apresentado, sendo que uma é arquivada junto com o processo e
outra é devolvida ao requerente com o Certificado.
Esses despachos podiam ser feitos a mão no verso da carta de encaminhamento ou através de
carimbos preenchidos a mão com data e assinatura do responsável.
No Prontuário de número 10, há uma lista de ações escritas a mão, sob o título de Resumo que
parece explicar os trâmites do processo:
1 - Informação do funcionário;
2 - Representação do sr. Assistente Técnico ao sr. Diretor;
3 - Despacho do sr. Diretor;
4 - Desentranhamento e arquive-se do Assistente Técnico;
5 - Informação do funcionário dando cumprimento às determinações do sr. Assistente Técnico.
Alguns casos são de revisão, ou seja, uma peça proibida ou com cortes pode ser revisada, com
vistas a nova censura e possibilidade de liberação.
Além dos documentos, há vários carimbos do órgão, inclusive nas páginas do texto
Há também, por vezes, nos casos de companhias de teatro profissionais, despacho solicitando
informações sobre a regularidade funcional da empresa no Departamento.
Nas décadas seguintes, o número de pessoas envolvidas aumenta e com ele a quantidade de
carimbos. Percebe-se uma preocupação maior com os aspectos burocráticos:
os carimbos raramente aparecem com espaços em branco e os processos estão mais completos.
Aos poucos, desaparecem as anotações a mão e todas as informações passam a ser datilografadas.
Dez anos depois, na década de 50, o processo é quase o mesmo em termos burocráticos e de
censura, mas há mais organização nos trâmites do processo, o qual é constituído por:
1 - Entrada do requerimento da empresa interessada na apresentação do espetáculo;
2 - Requerimento recebe carimbo em vermelho assinado pelo Secretário, contendo a data de
recebimento (impressão mecânica) e o número do processo;
3 - Carimbo do Diretor assinando e escrevendo a mão a data de recebimento do processo. O
carimbo vinha com as palavras: Como requer;
4 - Carimbo do Diretor encaminhando o processo ao Censor. Esse carimbo em tinta azul também
era assinado e datado a mão;
5 - Exame da peça, no qual o Censor decidia sobre a liberação da peça e sobre a faixa etária a que
estava proibida e colocava no documento seu carimbo com tinta vermelha. Para isso o Censor
completava a frase: Esta peça foi por mim censurada, podendo ser representada ... Quando não
houvesse nenhuma restrição, escrevia-se Livre. Alguns processos contêm mais de uma assinatura.
Em casos de corte, o censor escrevia: respeitados os cortes nas páginas...
6 - Recibo do requerente, assinado e datado, onde afirma ter recebido uma das cópias da peça e o
certificado;
7 - Finalmente, carimbo do Diretor em azul e a ordem de “Arquive-se” – assinada e datada;
8 - Certificado de Censura assinado pelo Escriturário, pelo Chefe de Secção, pelo Censor
Responsável e pelo Diretor da Divisão. Havia cobrança de taxas referentes aos selos;
8 - Autorização da Sociedade Brasileira de Autores Teatrais – SBAT – assinada, datada e
carimbada;
9 - Carimbos nas páginas censuradas e, nos locais dos cortes, riscos com lápis vermelho, e
carimbo com a palavra “censurada”;
10 - Outro documento opcional era o Certificado do Tradutor Juramentado no qual identificava o
idioma da peça e resumia seu conteúdo.
Apesar de todo esse rigor, houve quem propusesse mudanças na censura estadual.
Um de nossos entrevistados – Coelho Neto – foi ator de teatro amador na década de 1950, tendo
contracenado até com Paulo Autran, quando este iniciava sua carreira, acabando por ser eleito
presidente da Federação Paulista de Teatro Amador. Foi nessa condição que propôs modificações
na censura estadual de São Paulo que, segundo ele, não eram profissionais.
Vejamos como narra esse episódio:
Eu levantei e disse que, se era para haver censura, que fosse uma censura policial e outra
artística. Seria, por exemplo, se o ator não estava pronunciando os verbos direito, se não
estava conjugando os verbos direito, aquelas coisas todas, que a Secretaria de Educação
que tinha a ver com esse tipo de coisa. E a minha tese foi aprovada. Terminado o
Congresso, então, houve a idéia de ir ao governador do Estado. A minha tese era que
deviam ser universitários, de curso universitário, escolhi-dos por concurso público,
ingressando exatamente naquela época. Fomos ao governador Hélio Garcez. Uma
comissão formada - não foi nada de oficial nesse negócio - era o Clóvis Garcia, o Miroel
Silveira, o Sérgio Cardoso, eu, Décio. Fomos lá conversar com o governador.
(...) O Garcez terminou o governo e entrou o Jânio Quadros, mais contido. Até que saiu o
concurso e eu fiz. Não, eu ainda fiz o concurso durante o Garcez. Eu tirei o primeiro
lugar. Não tinha erro, porque eu estava treinado para dar aula para os delegados. Então,
para mim, era brincadeira esse negócio. Tirei primeiro lugar no concurso e fiquei três
anos aguardando que fosse criado um cargo.
(...) Aí foi o Jânio Quadros. Um dia me telefonaram para casa dizendo que eu tinha sido
nomeado. Tinha saído no Diário Oficial que eu tinha sido nomeado. Entrei para a
censura... entrei e me adaptei àquele tipo policialesco que tinha ali.
Como se vê, a censura resistiu aos diferentes governos, aos vários presidentes e governadores de
Estado, manteve sua estrutura burocrática, institucionalizou-se e permitiu a interveniência de
outras organizações da sociedade fossem elas religiosas, educacionais, artísticas ou políticas,
como previa o artigo nº 134 do decreto nº 24.911.
As mudanças que as peças sofreram nesse processo resultaram de modificações da conjuntura
social e política e do amadurecimento do teatro no Brasil, que, progressivamente, deixa de ser
uma mera diversão pública para se tornar uma forma de expressão social e de identidade
nacional.
O Arquivo Miroel Silveira permitirá que apuremos essa prática censória em suas minúcias,
possibilitando que, além de informações acerca dos espetáculos, possamos detectar as
transformações no teatro — o desenvolvimento da preocupação política e social que marcou os
anos 50 e 60 — e na censura, até 1968, quando a Censura Estadual foi encampada pela Polícia
Federal, acabando com o Serviço de Censura de Diversões Públicas do Estado de São Paulo.
O ano de 1964 e, depois, 1968 foram divisores de águas no Brasil, como relatam nossos
depoentes. Coelho Neto explica:
Porque, nesse período, que era só estadual, eu fiz miséria, eu liberei, mesmo durante e
depois de 64. Em 64, por exemplo, eu perdi a virada do dia 30 de março para 1º de abril.
Foi quando deu o levante. Eu só fui saber no dia seguinte que tinha acontecido, porque,
neste dia, eu estava ensaiando, montando e estreando a peça, Hello Dolly . Eu estava
estreando a peça no Taibi com o grupo da colônia judaica e, então, passei três dias
mergulhado dentro do teatro. No dia seguinte, quando eu levantei, soube o que tinha
acontecido e estranhei que o teatro não ficou tão cheio naquele dia, não foi gente,
porque, normalmente, uma estréia de teatro amador e grupos assim que a gente via,
fulano via, os críticos ajudavam bastante. Miroel fez uma campanha muito boa. O
espetáculo era para ser uma grande coisa e, assim, tinha metade da casa. Eu falei: “Mas
que coisa esquisita”. No dia seguinte, eu soube o porquê.
Continuando, ele acrescenta:
O Brasil já era outro. Amanheceu. Aí o general me falou que estava sendo criada então
censura federal, ia unificar todas as censuras estaduais, que ainda estavam
fazendo os primeiros arranjos e me pediu se eu podia, sigilosamente, escolher entre os
membros da censura estadual, indicar alguém para eles convocarem para que se
estabelecesse oficialmente a censura federal. Em São Paulo, já tinha um núcleo de
censores. Eu ouvi aquilo, fiquei quieto. Dois dias depois, o diretor da censura estadual
convocou todos os censores para uma reunião e nessa estava, o diretor, que era o exchefe de gabinete do Jânio Quadros em Brasília. O Jânio já estava pê da vida, porque ele
soube por via transversas que estavam destituindo a principal função da divisão que ele
era diretor.
(...) No dia seguinte, eu saí e pedi para voltar para a censura estadual, para o
departamento, porque eu era lotado no meu Estado, eu recebia do Estado. Voltei para o
Estado e ali fiquei. Uma vez por mês, eu ia ver um joguinho de bilhar ou qualquer coisa.
Aí me seguraram. Saí da censura federal. Até que me reconvocaram. Aí o que que eu fiz?
Eu pedi uma licença não-remunerada de três meses e esqueci de voltar. Um mês depois,
apareceu uma viatura para me prender em casa, porque era abandono de função pública.
Montaram um julgamento e puseram um advogado lá. Eu falei: “Eu não quero, não
quero, não quero”. Saí, nunca mais mexi com o negócio, até hoje eu sou proibido de
exercer função pública, porque eu fui condenado lá por ter abandonado, o funcionalismo
público.
Os processos de censura de peças teatrais que deveriam ser encenadas no Estado de São Paulo
após 1968, não estão no Arquivo Miroel Silveira. Neste projeto não poderemos analisar como os
anos de chumbo ocorreram, mas temos diversos depoimentos e outras referências bibliográficas
para estudar também essa época. O Arquivo poderá contar é como tudo isso começou e como se
formou a base que serviu de apoio para a época de maior violência vivida pelo teatro brasileiro.
Poderemos interpretar como a prática censória legitimou as arbitrariedades e como o teatro,
apesar de tudo, amadureceu e efetivamente se tornou uma prática artística profissional, regular e
libertária.
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