>>Atas CIAIQ2016 >>Investigação Qualitativa em Saúde//Investigación Cualitativa en Salud//Volume 2 O Sentido da Maternidade em Gestantes Portadoras de Transplante Renal: Uma Abordagem Fenomenológica. 1 1 2 1 Vera Lucia Lotufo Belardi Neto , Jussara Sato , Maria Anita Viviani Martins , Nelson Sass 1 Universidade Federal de São Paulo – EPM UNIFESP,[email protected]; 2 [email protected].; [email protected]. Pontifícia Universidade Católica – PUC/SP. [email protected] Resumo. O atual avanço na área de transplante de órgãos aumentou a qualidade de sobrevida de pacientes com doenças renais crônicas e, verifica-­‐se um número crescente de gestação em mulheres portadoras de transplante renal. Daí a necessidade de humanizar cada vez mais a relação dessas pacientes, com as equipes de várias especialidades. Na perspectiva da Pesquisa Qualitativa de modalidade Fenomenológica Hermenêutica, este estudo teve como objetivo compreender como o sentido da maternidade se desvela para gestantes transplantadas renais. Foram atendidas e entrevistadas 14 gestantes transplantadas renais do Ambulatório de Hipertensão Arterial e Nefropatias na Gravidez da Escola Paulista de Medicina – Universidade Federal de São Paulo (EPM-­‐UNIFESP). Utilizou-­‐se a Análise Hermenêutica do Discurso de todas as gestantes pesquisadas. As pacientes estudadas referem à dimensão precária da existência humana e a esperança no desejo de viver uma vida normal, saudável, de poder formar uma família e conceber nova vida no próprio corpo. Palavras-­‐chave: gestantes transplantadas renais; fenomenologia hermenêutica; pesquisa qualitativa; psicologia. The sense of motherhood for a pregnant women with kidney transplantation: a phenomenological approach. Abstrat. The current advance in organ transplant area increased the quality of patient survival with chronic kidney disease, and there is a growing number of pregnancy in women with kidney transplantation. Hence the need to humanize increasingly the relationship of these patients, with teams of different specialties. From the perspective of Qualitative Research Phenomenological Hermeneutics mode, this study aimed to understand how the meaning of motherhood is revealed for kidney transplanted pregnant. We interviewed 14 pregnant kidney transplant, the Hypertension Clinic and Kidney Diseases in Pregnancy Paulista Medical School -­‐ Federal University of São Paulo (UNIFESP). We used the Hermeneutics Discourse Analysis of all women surveyed. Patients referred to the precarious dimension of human existence and hope in the desire to live a normal, healthy life, to be able to form a family and to conceive new life in the body Keywords: Keywords: kidney transplanted pregnant women; hermeneutic phenomenology; qualitative research; psychology. 1 Introdução O atual avanço das tecnologias no campo da Medicina e da Biologia Molecular tem mostrado novos modos de tratar doenças antes incuráveis e novas perspectivas de vida, o que aumentou as chances de sobrevida com qualidade, diminuindo o sofrimento das pessoas com doenças avançadas. Isso traz novos paradigmas de tratamento e da visão do adoecer humano. Apesar disso, é preciso facilitar à aceitação e adaptação às mudanças radicais, que um transplante de órgão provoca no corpo da mulher e ajudá-­‐la a viver com qualidade. Embora a tecnologia tenha avançado grandemente nesses últimos anos, ela não é suficiente para abarcar as mais profundas necessidades humanas. 1593 >>Atas CIAIQ2016 >>Investigação Qualitativa em Saúde//Investigación Cualitativa en Salud//Volume 2 A doença crônica é uma enfermidade que exige desafios em relação à mudança de hábitos, dietas, exercícios físicos e controle de medicação, e, necessita de equipe multiprofissional que ajude os pacientes a enfrentarem essa realidade. Os profissionais que lidam com a saúde são confrontados a humanizar cada vez mais as relações com seus clientes. Para isto as gestantes submetidas a transplante renal requerem acompanhamento de médicos, psicólogos, enfermagem, fisioterapia, e outros, para dar informações pré concepcional e às complicações mais frequentes. Os primeiros transplantes renais em seres humanos aconteceram na segunda metade do século XX e, a partir de 1978, houve a introdução da ciclosporina como uma poderosa arma no controle da rejeição celular e assim outras drogas imunossupressoras surgiram. (Ramalho et al., 2003) Dados do Ministério da Saúde (2015) revelam que o Brasil possui hoje um dos maiores programas público de transplantes de órgãos e tecidos do mundo e só perde para os Estados Unidos em número de transplantes. Em quantidade e investimento o Sistema Único de Saúde (SUS) financia 95% desses procedimentos. Dados de 2015 do Ministério da Saúde nos últimos dez anos o número de transplantes de órgãos cresceu 63,8% em relação ao ano de 2014. No entanto, dados da Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos (ABTO) informa que houve uma queda de 6% no número de transplantes de rim, comparada com 2014, bem como a diminuição de doadores devido a elevada taxa de recusa familiar à doação de órgãos da ordem de 44%. Esses dados mostram a importância cada vez maior de estudos interdisciplinares na área de transplantes de órgãos, bem como atenção especial à saúde psíquica, equilíbrio emocional daquelas pessoas que viverão com um órgão que foi de outra pessoa. A análise da literatura referente às pesquisas com gestantes transplantadas renais (TX), na área da psicologia, é bastante escassa, uma vez que a possibilidade de engravidar dessas mulheres é recente, graças ao avanço da Medicina. Procuraremos desenvolver e descrever neste estudo, a experiência que estamos adquirindo e compartilhando com essas mulheres, durante o atendimento psicológico no ambulatório de gestantes transplantadas renais. Existem poucos trabalhos na área da Psicologia referentes à saúde mental e fantasias sobre gravidez e maternidade de gestantes transplantadas renais no mundo. Em termos físicos e psíquicos torna-­‐se importante a compreensão da história de vida dessas pacientes que trazem nos seus antecedentes o enfrentamento da doença renal crônica. O sofrimento em face da doença avançada e a piora progressiva dos sintomas. A luta para salvar a própria vida, o risco de morte iminente e os distúrbios de ansiedade e sono causados pela espera do doador. O tratamento dialítico é doloroso e desconfortável, as pacientes revelam que quando vêm a “máquina de diálise” assustam-­‐se com a “quantidade de fios” e muitas pensam em desistir. Outro aspecto a considerar é a fístula causada pela diálise no braço da paciente. As mulheres referem ter vergonha do aspecto que ela causa e muitas delas relatam que a escondem dos companheiros, usando blusas de mangas compridas. Algumas não contam a eles que fazem diálise, com medo de perdê-­‐los, fato de que se queixam frequentemente. Outro aspecto a considerar trata da viabilização do doador, quem será ele? Será um cadáver ou algum familiar? As questões de compatibilidade do órgão a ser transplantado, bem como o enfrentamento psíquico para aceitar e adaptar-­‐se a uma mudança tão radical do corpo. Além disso, a questão do controle da rejeição pela eficiência das drogas imunossupressoras. A ideia de possuir um órgão de outra pessoa é constrangedora, na medida em que se pensa no fato de que alguém vai morrer para doar vida à outra pessoa. Questões psicológicas aqui pesam a razão 1594 >>Atas CIAIQ2016 >>Investigação Qualitativa em Saúde//Investigación Cualitativa en Salud//Volume 2 e a fantasia. A razão compreende que o desejo de viver não mata ninguém, mas quando a fantasia predomina no receptor podem surgir feições psicóticas, de caráter paranóico, despersonalizante, que requer acompanhamento psicoterápico ou até mesmo psiquiátrico. (Pereira, 2008). Moretto (2006) afirma que a questão fundamental do ponto de vista psíquico é que perder o órgão não parece tão complicado quanto receber o enxerto, “presentificando e materializando, assim, o ‘outro em si’”. A sensação do “outro em si” tem um registro no imaginário do receptor, criando um problema de identidade, pois o órgão doado é um estrangeiro dentro de seu corpo e a introjeção e incorporação psíquica do órgão não se dá de imediato. Ao contrário do que ocorre na cirurgia de transplante, em que é restaurada a parte anatômica e fisiológica e o rim entra imediatamente em funcionamento. O cirurgião percebe a passagem da urina pelo ureter do “novo rim” no momento que o paciente ainda encontra-­‐se com o abdômen aberto. Moretto (2006) revela ainda que psicólogos que trabalham na UTI com pacientes transplantados, referem que muitos deles acordam logo após a cirurgia e perguntam: “E agora, como eu sou?”; “o que vai ser de mim?”; “quem sou eu agora”? E, por fim, a questão da decisão de engravidar, mesmo sabendo dos riscos que serão enfrentados devido à gravidez de alto risco, como: morte, pré-­‐eclâmpsia ou do bebê nascer com baixo peso, como já foi descrito. As grávidas que fizeram transplante renal estiveram muito perto da morte, antes do transplante, grande parte delas, precisaram se submeter à diálise normalmente três a quatro vezes por semana, durante meses ou anos, até conseguirem a doação de um rim. Elas esperam anos na fila de transplante de órgãos, algumas delas recebem órgãos de cadáveres e outras de algum familiar que seja compatível. Embora o órgão desse familiar venha a ser compatível, essas pessoas precisam aguardar até que esse familiar esteja pronto, psicologicamente, para doar o seu rim. É um período longo e muito doloroso, pois envolve o luto pelo órgão perdido, a culpa gerada pela perda do órgão do familiar e o medo desse familiar ter alguma sequela proveniente da doação do órgão, bem como a expectativa da possibilidade da proximidade da morte. A gestante transplantada renal sofre duplamente, pois além das dúvidas normais a que estão sujeitas, existe o risco real de ocorrerem problemas do enxerto, além do receio quanto ao parto, se será vaginal ou cesárea. De maneira que o processo de gestação é vivido com muita angústia, por isso objetivamos responder qual o sentido da maternidade para mulheres que sofreram tanto para enfrentar um transplante de rim e ter a vida preservada. E que questões existenciais permeiam o desejo e a realização da viabilização da maternidade. Depois de enfrentar anos de dificuldades, como os transtornos da diálise, a espera de um doador compatível, o risco de rejeição do órgão e a possibilidade da morte, o que levaria uma mulher ao desejo de engravidar? 2 Metodologia Esse estudo enquadrou-­‐se dentro dos fundamentos e princípios epistemológicos da Fenomenologia Hermenêutica, abrindo-­‐se em direção a um enquadramento na abordagem qualitativa da pesquisa intervenção, com base no pensamento de Husserl, Ricoeur, Gadamer, Heidegger e Merleau-­‐Ponty e na discussão dos achados com base no pensamento fenomenológico de Hanna Arendt, Edith Stein e na interlocução com outros autores como Donald Winnicott e 1595 >>Atas CIAIQ2016 >>Investigação Qualitativa em Saúde//Investigación Cualitativa en Salud//Volume 2 Gilberto Safra. É um estudo transversal, qualitativo com gestantes transplantadas renais, a partir da 20ª semana de gestação. A população do estudo é composta de 14 gestantes hipertensas transplantadas renais, atendidas no Ambulatório de Hipertensão Arterial e Nefropatias na Gestação da EPM -­‐ UNIFESP. Os critérios de inclusão abordaram gestantes a partir da 20ª semana de gestação; as que se submeteram a transplante renal de doadores familiares ou de cadáver, aquelas sem hipertensão na gravidez e pacientes que tiveram pelo menos três atendimentos psicológicos. Como critérios de exclusão aquelas com doenças que contribuíssem como variáveis que viessem a interferir nos resultados da pesquisa, como cardiopatias, doenças metabólicas, doenças psiquiátricas severas, alcoolismo, problemas neurológicos, tabagismo e outras. A Pesquisa Qualitativa de natureza fenomenológica é um modo de investigação que difere das “posturas clássicas”, que se caracterizam por utilizar métodos empíricos e testes de natureza indutiva e lógico-­‐dedutiva, que são submetidos ao rigor da prova verificadora e generalizadora. Na Pesquisa Qualitativa o investigador busca a compreensão do “fenômeno” situado no tempo e no espaço tal como ele é descrito pelo sujeito que o vivencia, que não está estritamente ligado ao racional, mas ao homem situado no mundo-­‐com-­‐os-­‐outros, ou seja, vivendo com outros humanos, numa relação da qual faz parte, não podendo dissociar-­‐se dela. Para Martins e Bicudo (1989) o fenomenólogo segue critérios científicos que diferem daqueles trabalhados pelas Ciências Naturais. Esses critérios são levantados, passando a ser considerados a partir dos dados obtidos, na experiência vivida pelo sujeito que a descreve. Neste sentido não há neutralidade do pesquisador, pois o critério é esse perceber a si mesmo da realidade que o cerca. A fenomenologia busca que se descreva a percepção de si mesmo, de fenômenos e não fatos. Fatos distinguem-­‐se dos fenômenos porque são eventos objetivos passíveis de ser mensuráveis e por isso distinguimos do fenômeno. O procedimento de coleta de dados foi feito através dos registros transcritos dos discursos espontâneos colhidos nos atendimentos das 14 gestantes transplantadas renais e a análise qualitativa dos dados através da hermenêutica de sentido. O desenvolvimento da pesquisa ocorreu através da análise dos discursos espontâneos em que gestantes transplantadas renais responderam à psicóloga sobre o tema da interrogação: “Qual o sentido da maternidade para você?”. Evitamos gravar as entrevistas, pois a maioria delas não se sentia bem ao lembrar-­‐se do processo de formação de fístula a que foram submetidas para fazer a hemodiálise, bem como a recordação de “colegas de percurso” que haviam falecido durante o tratamento dialítico. Uma das gestantes revela: “não gosto de lembrar essas coisas... todo mundo que tava comigo morreu... esperando um rim” (sic). Outra paciente disse: ... “É como se não fosse eu... eu sinto que eu perdi a minha essência” (sic). Não utilizamos critério de saturação porque a intenção foi coletar a resposta de todas as gestantes TX atendidas entre período de 2011 a 2012. As entrevistas foram realizadas a sós, na sala do Anfiteatro do Ambulatório de Hipertensão e sempre do mesmo modo. Deixava-­‐se um espaço livre para a paciente falar de sua demanda e em seguida solicitava-­‐se que respondesse as informações da ficha de características da população. Quando percebíamos que a paciente estava mais a vontade fazíamos a pergunta de pesquisa. Após as explicações da psicóloga sobre a pesquisa e sua finalidade, entregou-­‐se o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido para fosse assinado. A coleta de dados teve inicio a partir da aprovação do Projeto pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UNIFESP. 1596 >>Atas CIAIQ2016 >>Investigação Qualitativa em Saúde//Investigación Cualitativa en Salud//Volume 2 Análise Ideográfica dos Discursos. Recolhidas as descrições das verbalizações das gestantes transplantadas renais seguiu-­‐se o momento da análise ideográfica e nomotética dos discursos. A palavra ideográfica refere-­‐se à representação de ideias por meio de símbolos gráficos do sistema de escrita em que os grafemas se reportam a noções e não a porções fônicas da cadeia falada. É a maneira de ver, de sentir e reagir própria de cada pessoa. Em psicologia a ideografia trata da análise que permeia as descrições ingênuas do sujeito. É a particularidade psíquica de um indivíduo. Ao fazer isso o pesquisador está separando as “unidades de significado” para fazer a sua análise psicológica. Martins e Bicudo (1989) destacam a importância de o pesquisador buscar as descrições bem organizadas da experiência vivida pelo sujeito e para isso são necessárias algumas operações: 1) O pesquisador deve ler e reler a descrição da experiência vivida pelo sujeito e familiarizar-­‐se com o texto. Nesse momento deve-­‐se colocar no lugar do sujeito, não como um mero espectador, mas alguém que procura chegar aos significados atribuídos pela vivência do sujeito; 2) O pesquisador destaca os significados atribuídos pelo sujeito na descrição. Não em unidades comportamentais, mas respostas para suas interrogações; 3) Desse modo pesquisador obtém as “unidades de significado”, ou seja, parte da descrição que evidenciam momentos distinguíveis da totalidade da discussão; 4) O pesquisador reagrupa as partes indispensáveis que compõe o discurso para chegar a uma análise do fenômeno. No caso da presente pesquisa a análise do discurso das 14 gestantes TX resultou em 39 Asserções Articuladas, que são as compreensões que resultam da seleção das unidades de significado. Para tanto elas são agrupadas em categorias abertas mediante as reduções. O passo seguinte é fazer a análise nomotética. Análise Nomotética. Recolhidas as descrições é o momento de fazer a análise nomotética (Garnica, 1997) O termo nomos, significa uso de leis. Nomotético indica a elaboração de leis ou princípios gerais originados do conhecimento de fatos anteriores. A análise Nomotética indica a passagem do individual para o geral, para buscar as convergências dos discursos das gestantes Tx e compreender o que é investigado. Formula-­‐se as generalidades do fenômeno, que são descritas em formas de proposições, iluminando uma de suas perspectivas, que na verdade são inesgotáveis. O objetivo dessa análise é encontrar a abertura para o novo que está escondido na diversidade da experiência e nas sombras da consciência. O resultado da análise das asserções articuladas dá origem às categorias que resumem o significado das respostas dadas pelas gestantes transplantadas renais. Nesta análise das generalizações o movimento da Psicologia sai do aspecto individual para o aspecto geral da manifestação do fenômeno estudado. Comparam-­‐se os diversos casos individuais articulando-­‐os aos aspectos gerais, resultando as convergências e divergências que resumem o significado das respostas dadas pelas quatorze gestantes transplantadas renais . 3 Resultados e Discussão Como resultado da análise ideográfica dos discursos, daremos um exemplo do discurso da Paciente nº 2, que segue abaixo: 1597 >>Atas CIAIQ2016 >>Investigação Qualitativa em Saúde//Investigación Cualitativa en Salud//Volume 2 Tabela 1. Discurso paciente 2 – Amarílis (nome fictício) Discurso na linguagem do sujeito Unidades de Significado Asserções articuladas 1)”Eu não queria engravidar... mas Deus permitiu. 1) A gravidez foi uma permissão de Deus (1,2) 1) O engravidar e a gravidez foi uma permissão de Deus. (1) 2) Achava que nunca ia ficar grávida. 2) Engravidar traz felicidade, mas insegurança, medo, inquietação. (3) 2) Engravidar traz sentimentos simultâneos de felicidade, insegurança, medo e inquietação. (2) 3) A maternidade faz superar o sofrimento e a valorização da vida (4,5) 3) A maternidade traz a ideia de superação, de ir além, e valorização da vida. (3) 3) Fiquei feliz, fiquei insegura... os médicos do rim assustam a gente.... a gente fica com medo. 4) A maternidade é super normal.... valorizo muito mais a vida. 5) É bom viver sem sofrimento, hoje eu não tenho sofrimento”. Procedemos da mesma maneira, na análise do discurso das outras treze pacientes pesquisadas. O estudo mostrou que 78,57% das mulheres afirmaram que as gestações não foram planejadas, observou-­‐se que das 14 gestantes transplantadas renais pesquisadas, 11 disseram que sempre tiveram vontade de serem mães, que a maternidade faz parte da vida da mulher, que realiza a mulher, que tinham necessidade de gerar um filho do próprio corpo e desejo de formar uma família. Fato que indica que a gravidez embora não tivesse sido planejada, resultou de uma escolha mais ou menos consciente. Haveria também a alternativa de adotar uma criança, porém nenhuma das pesquisadas buscou essa opção. 71,42% das gestantes tinha nível de instrução entre o II e III Graus de Ensino e uma delas pós-­‐graduação em psicopedagogia. Evidenciou-­‐se que 42,85% das gestantes transplantadas renais encontravam-­‐se na primeira gestação, mas a maior parte delas, ou seja, 64,23% estavam na segunda e terceira gestação, o que denota que embora revelassem medo da morte e medo da perda do enxerto, ainda assim arriscaram-­‐se a ter mais um filho. Uma delas teve quatro gestações após o transplante renal, sendo o primeiro um aborto espontâneo e outras três gestações a termo. Todas as pacientes responderam à pergunta de pesquisa: Qual o sentido da maternidade para você? Ao perguntar sobre o sentido da maternidade tivemos a intencionalidade de compreender o modo como as gestantes TX se colocavam frente à responsabilidade de gerar um novo ser e a perspectiva de futuro em relação à própria vida. A interrogação de pesquisa ajuda-­‐nos a alcançar os objetivos a que se propõe este estudo, que é compreender e identificar o sentido psicológico da maternidade para as gestantes TX. Safra G. (2006) assinala que sentido não é o mesmo que significado (p.123). O sentido é a possibilidade de destinar algo, como por exemplo, quando se consegue dar sentido para a existência, isso passa a ser um dos eixos da constituição de significado de mundo para cada um de nós. O significado é tudo aquilo que foi vivido (passado), o sentido é o que a pessoa espera viver (futuro). Ocorre que a grande maioria das gestantes do estudo respondeu à questão de pesquisa com afirmações como: “queria ficar grávida”, “engravidar trouxe felicidade para todos os familiares”, “senti tristeza quando o médico disse que eu não poderia engravidar”. 1598 >>Atas CIAIQ2016 >>Investigação Qualitativa em Saúde//Investigación Cualitativa en Salud//Volume 2 As diferenças léxicas das duas palavras, maternidade e engravidar (gestação), do ponto de vista psíquico mostram uma preocupação maior com o aspecto biológico do funcionamento do organismo. Poder engravidar significa possuir um corpo saudável, sem doença. Aqui não se aplica nenhum juízo de valor, mas uma abertura a compreensão do discurso, pois como já dissemos do ponto de vista psicológico, a construção de sentidos permite a atribuição de significados pessoais e a hermenêutica nos ajuda a interpretar o texto, protegendo-­‐nos do senso comum. Como nos ensina Husserl (2008) é necessário voltar o olhar para “as coisas mesmas”, para assegurar o caráter científico do termo. De forma que num primeiro momento observamos que as gestantes estão preocupadas com a questão de poderem engravidar, de possuírem um corpo cujo funcionamento é saudável a ponto de poderem gerar outro ser. As análises ideográficas e nomotética resultaram em 39 asserções articuladas que correspondem a quatro categorias, a saber: I -­‐ “Engravidar é permissão de Deus” – as gestantes afirmam: “Eu não queria engravidar, mas foi Deus que permitiu”, “Deus preparou tudo para eu engravidar” -­‐ não se trata de interrogar a existência ou não de Deus por meio da razão, mas a compreensão que o ser manifesta sobre si mesmo, as outras pessoas e o mundo, uma verdade iluminada pela fé; II – “Ambivalência – sentimentos de felicidade e medo da morte”-­‐ as pacientes referem: “ Fiquei feliz, fiquei insegura....os médicos do rim assustam a gente....a gente fica com medo” – a felicidade resulta da alegria de poder gerar um novo ser, e, a tristeza e insegurança resultam de que a morte é uma possibilidade que se revela para a existência humana e a ideia da morte traz angústia ; III – “Engravidar potencializa o poder da mulher” – as pesquisadas revelam: “Meu marido dizia que eu não tinha capacidade de engravidar, por isso eu quis...”, ou “minhas amigas diziam que eu era estéril...” -­‐ o discurso revela que a responsabilidade de serem mães confere poder, respeitabilidade e um status de família e sociedade e, por fim, IV – “Engravidar traz sentimento de grandeza e poder” – uma das gestantes afirma: “É uma criança nova que está vindo ao mundo”, outra refere “Tá trazendo uma nova vida” -­‐ o nascimento de uma criança é um acontecimento que dá sentido a um projeto de vida, casamento e família, associado a ideia de sobrevivência da doença renal crônica e superação através da maternidade. Uma das limitações dessa pesquisa consiste na falta de comparações entre grupos de gestantes transplantadas renais (e outros tipos de transplante) com grupos de outras patologias, como por exemplo, gestantes diabéticas ou grupos de gestantes fisiológicas. 4. Conclusão Obtiveram-­‐se como resultado da avaliação qualitativa dos discursos, as seguintes análises: Engravidar é permissão Divina esteve presente em 7 dos discursos, representando 50% das asserções. As gestantes transplantadas renais atravessam a experiência de “encantamento” após a doença renal e o transplante, vivem experiências singulares que trazem o sagrado como questão fundamental. Essa é uma perspectiva com a qual nos deparamos em diversos caminhos entre nossos analisados e que possibilitam um gesto com um sentido na direção de futuro. Vimos que no contínuo da vida, o ser humano busca em Deus, sentido para suas experiências vividas. Ambivalência apareceu em 8 dos discursos, representando 60% das afirmações. Revela como o homem pode ser um ser paradoxal. Ao mesmo tempo em que as gestantes transplantadas renais imprimem o gesto de criar (ação de engravidar) no mundo e sentem-­‐se felizes, ao mesmo tempo vivem o terror de que aquele gesto possa se transformar na sua própria destruição. O medo da morte é próprio do ser humano, mas cotidianamente fugimos da angústia que dela advém. Para 1599 >>Atas CIAIQ2016 >>Investigação Qualitativa em Saúde//Investigación Cualitativa en Salud//Volume 2 concretizarem o desejo de serem mães, tão sonhado desde a infância, as gestantes TX vivem esse paradoxo. Engravidar potencializa o poder da mulher apareceu em 4 dos discursos, representando 28,5% das afirmações. O que confere um status de normalidade na sociedade e força feminina, evidenciando que são capazes de gerar filhos do próprio corpo e superar a doença. Engravidar traz sentimento de grandeza e felicidade apareceu em 12 dos discursos das gestantes TX, representando 85,71 das asserções. Esta categoria mostra que embora essas mulheres passem toda a gravidez com medo de alguma intercorrência clínica, ainda assim sentem-­‐se felizes pela ideia de superação do sofrimento na esperança de terem filhos sadios, pela renovação da vida, pela construção de um vínculo familiar, por “darem” um filho ao marido. O sentido psicológico da maternidade vivenciado pelas gestantes transplantadas renais demonstrou o desejo de viver uma vida normal, saudável, de formar uma família e poder conceber uma nova vida no próprio corpo. A história da doença renal até o transplante informa à pessoa da paciente a suscetibilidade frente a dimensão precária da existência humana. A experiência do transplante parece ser o ponto do percurso em que compreendem o sentido de existir e a esperança renovadora da vida constitui um projeto de futuro. Embora passem grande parte da gestação com medo de perder a vida, o enxerto, ou o bebê, fortalecem-­‐se no encontro com o Sagrado. Esperam potencializar o poder da mulher de “dar a luz” e reafirmar a identidade feminina e a força que exercem na sociedade. Tudo isso exerce um sentido de felicidade e a compreensão que a “vida é digna de ser vivida”! Referências Brasil. Ministério da Saúde (2015). Secretaria de Atenção à Saúde. Brasil avançou mais em transplantes de maior complexidade [texto internet]. Brasília (DF); 2015 abril 29 [citado em 2015 jun17]. Disponível em: http:www.portal.saude.gov.br/index.php/cidadão/principal/agencia-­‐saude/12437-­‐brasil. Gadamer, H.G. (2012). Verdade e Método I. Tradução de Flávio Paulo Meurer, revisão da tradução de Enio Paulo Giachini, 12ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes. Garnica, A.V.M. (1997). Algumas notas sobre a Pesquisa Qualitativa em Fenomenologia. Rev. Interface – Comunicação, Saúde, Educação. Husserl, E. (2008). A Ideia da Fenomenologia. Lisboa, Pt: Edições 70. Martins, J. & Bicudo, M.A.V. (1989). A Pesquisa Qualitativa em Psicologia: Fundamentos e Recursos Básicos. 1ª ed. 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