1. INTRODUÇÃO As doenças não neoplásicas do tubo digestivo alto, incluindo a esofagite, a gastrite, a duodenite e a úlcera péptica, esofágica, gástrica e duodenal acometem cerca de 10% da população dos países ocidentais em algum momento da vida. Até o final da década de 1970, essas doenças, em particular a doença ulcerosa, eram atribuídas basicamente a fatores ambientais e psicossomáticos e o tratamento definitivo baseava-se quase que exclusivamente em procedimentos cirúrgicos. Posteriormente, a introdução progressiva de medicamentos capazes de inibir a produção de ácido pelo estômago mudou de forma radical a perspectiva terapêutica dessas doenças sendo o procedimento cirúrgico uma forma cada vez mais rara de tratamento até que, nos dias atuais, esse procedimento fica exclusivamente reservado a formas complicadas da doença que ou alteram drasticamente a anatomia do esôfago, estômago e duodeno ou quando há presença de perfurações ou sangramentos (Coelho e Castro, 2006; Chinzon et al., 2009). Medicamentos que inicialmente eram antiácidos, depois bloqueadores dos receptores da histamina (H2) foram se aperfeiçoando, passando pelos derivados de prostaglandina até que nos dias atuais os poderosos inibidores de bomba protônica (IBP) transformaram a doença péptica em uma entidade nosológica de tratamento quase que exclusivamente clínico (Chinzon et al., 2009). Mesmo diante de arsenal terapêutico tão eficiente e eficaz, uma parcela considerável dos doentes apresentava refratariedade ao tratamento e recidivas a intervalos extremamente curtos (Coelho e Castro, 2006; Chinzon et al., 2009). A partir dos estudos de Robin Warren, que vieram a público em 1979, e, a seguir, da série de investigações deste em parceria com Barry Marshall, que se iniciou em 1981, houve uma total mudança de rumo no que se refere ao entendimento da etiologia destas doenças e, portanto, em relação ao seu tratamento. Esses dois investigadores foram os responsáveis pela identificação do Helicobacter pylori e sua relação com a doença péptica, bem como com os tumores do estômago. Esses estudos foram de tal importância que renderam à dupla o Prêmio Nobel de Medicina e Biologia de 2005 (Coelho e Castro, 2006). O Helicobacter pylori é um bacilo gram-negativo, multiflagelado, microaerofílico, que vive na superfície das células epiteliais da mucosa gástrica, logo abaixo da camada de muco do antro, porção final do estômago (Czesnikiewicz-Guizik et al., 2004; Eisig e Ferreira, 2009; Röesler, 2011). O H. pylori rompe a barreira da mucosa do estômago através de toxinas, enzimas e mediadores da inflamação, provocando dano celular epitelial, alteração do fluxo sanguíneo na mucosa, alteração do muco e da liberação de gastrina (Leme, Bove e Silva, 2003). Essa bactéria tem sido encontrada em cerca de 50% ou mais da população nas várias partes do mundo onde sua prevalência foi estudada (Coelho e Castro, 2006; Eisig e Ferreira, 2009). Estudos epidemiológicos têm demonstrado que em países em desenvolvimento a infecção é adquirida precocemente na infância, quando a maioria dos indivíduos já se encontra infectada (Parente et al., 2006). Já nos países desenvolvidos, ocorre progressivo aumento da prevalência dessa infecção que acaba por acometer cerca de 50% da população quando atinge a velhice. No Brasil, apesar de não existirem estudos com grandes amostras populacionais, a prevalência dessa infecção varia de 40 a 80% da população e está diretamente relacionada ao nível socioeconômico. Não existe ainda na literatura consenso ou hipótese consistente que expliquem os fatores de risco para a infecção bem como a época da vida em que a aquisição da bactéria é mais acentuada. Não se conhecem outros reservatórios para o Helicobacter pylori que não seja o ser humano, apesar de que estudos recentes indiquem a presença deste patógeno no estômago de cães e gatos (Coelho e Castro, 2006). Tais dados sugerem fortemente que este seja um patógeno humano estrito transmitido de pessoa para pessoa por via oral-oral, fecal-oral, ou ambas, ou mesmo gastro-oral (Coelho e Castro, 2006; Chinzon et al., 2009) Estas formas de transmissão explicariam a infecção em gatos e cães por se tratarem de animais de estreito convívio doméstico. Por outro lado, a prevalência da infecção em estratos populacionais de baixo nível socioeconômico sugere que, ainda considerando os mecanismos básicos de transmissão já citados, o preparo de alimentos e o consumo de água em baixas condições de higiene bem como sua conservação inadequada possam facilitar esta infecção (Coelho e Castro, 2006). Também têm sido descritos como fatores de risco e desencadeantes da doença péptica, fatores ambientais que interferem nos mecanismos de funcionamento gástrico, isto é, que de alguma forma provoquem um desequilíbrio entre os mecanismos de agressão e defesa. Entenda-se por agressão as secreções digestivas gástricas que, em face da não-presença ou alterações da composição da barreira de proteção celular do estômago, podem levar à agressão das células provocando a doença péptica. Dentre esses fatores ambientais têm destaque os hábitos alimentares, composição dos alimentos e o abuso de drogas como os antiinflamatórios não-hormonais. Da complexa interação entre esses fatores resulta a manifestação da doença (Chinzon et al., 2009; Eisig e Ferreira, 2009). Como já discutido, estima-se que 50% da população mundial esteja infectada pelo Helicobacter pylori, e que 10% dela desenvolva a doença péptica em algum momento da vida. A infecção pela bactéria está presente em 90% das úlceras duodenais e 80% das úlceras gástricas (Röesler, 2011). Isto nos permite concluir que a maioria dos indivíduos infectados não necessariamente desenvolve a doença. Essa discrepância entre o número de infectados e o número de doentes sugere fortemente que algum fator intrínseco ao hospedeiro humano esteja na base da proteção contra o H. pylori (Eisig e Ferreira, 2009). Esta afirmação adquire ainda maior evidência quando se considera o fato de que essa bactéria habita a superfície do epitélio raramente sendo observada além deste (Chinzon et al., 2009; Coelho e Castro, 2009; Eisig e Ferreira, 2009). Sabe-se, entretanto, que quando um paciente tem úlcera duodenal e presença dessa bactéria, sua erradicação leva à cicatrização da lesão ulcerada. Existem evidências sugerindo que fatores imunológicos estejam intimamente relacionados à proteção contra a infecção profunda desta bactéria. Estudos recentes apontam que fatores relacionados à imunidade celular (mediada por linfócitos T) estejam na raiz do desenvolvimento do processo que permite ou não o surgimento da doença. Acredita-se que fatores imunogenéticos relacionados a antígenos de superfície e, portanto, ao desencadeamento da resposta imunológica do hospedeiro (HLA – Antígenos Leucocitários Humanos) possam explicar como alguns indivíduos infectados desenvolvem a doença e outros não e como algumas cepas da bactéria podem e outras não desenvolver úlceras (Eisig e Ferreira, 2009; Wex et al., 2009; Röesler, 2011). Para que ocorra a resposta imunológica adquirida, é necessário que antígenos sejam reconhecidos pelos receptores dos linfócitos. Neste sentido, há diferenças significativas entre os linfócitos B (que desencadeiam a resposta de base humoral) e T (que desencadeiam a resposta de base celular). A maior parte dos linfócitos T reconhece antígenos que estão ligados a e são apresentados pelas moléculas do complexo de histocompatibilidade maior (MHC) das células apresentadoras de antígenos (APCs), que capturam antígenos microbianos e os apresentam para serem reconhecidos pelos linfócitos T. O MHC é um locus gênico cujos produtos desempenham o papel de moléculas apresentadoras de peptídeos no sistema imunológico. Os linfócitos T só reconhecem os peptídeos quando estes são apresentados pelas moléculas do MHC (Abbas e Lichtman, 2007). Os antígenos protéicos dos patógenos que entram no corpo são capturados pelas APCs, o que desencadeia a resposta imunológica nos órgãos linfóides periféricos. Todas as interfaces entre o corpo e o ambiente são revestidas por um epitélio contínuo, que fornece uma barreira física à infecção, além de conter uma população de APCs que expressam receptores de membrana que se ligam aos micro-organismos por meio de receptores de membrana, promovendo sua captura e endocitose dos antígenos microbianos. Ao mesmo tempo, os micro-organismos estimulam as reações da imunidade inata ligando-se aos receptores Toll-like nas APCs, assim como nas células epiteliais e macrófagos residentes nos tecidos. Isso resulta na produção de citocinas inflamatórias, como o fator de necrose tumoral (TNF) e interleucina-1 (IL-1) (Abbas e Lichtman, 2007). As moléculas do MHC são proteínas presentes na membrana das APCs que apresentam antígenos peptídicos para reconhecimento pelos linfócitos T; o locus do MHC é uma coleção de genes encontrada em todos os mamíferos. As proteínas do MHC humanas são chamadas de antígenos leucocitários humanos (HLA), pois foram descobertas em linfócitos que podiam ser identificados com anticorpos específicos. Os genes que codificam essas moléculas formam o locus do HLA. O locus do MHC possui dois conjuntos de genes altamente polimórficos, da classe I (HLA-A, HLA-B e HLA-C) e II (HLADR, HLA-DQ, HLA-DP), que codificam as moléculas do MHC das classes I e II, responsáveis por apresentar os peptídeos às células T. As proteínas extracelulares que são internalizadas em vesículas pelas APCs são processadas e apresentadas por moléculas do MHC da classe II, enquanto as proteínas no citosol de células nucleadas são processadas e apresentadas por moléculas do MHC da classe I. Ao segregar as vias da classe I e II de processamento antigênico, o sistema imunológico é capaz de responder a micro-organismos extracelulares e intracelulares da melhor forma para combatê-los (Abbas e Lichtman, 2007). Isso pode explicar a associação da infecção por Helicobacter pylori apenas à expressão das moléculas do MHC da classe II, descrita em diversos estudos (Kunstmann et al, 2002). 2. JUSTIFICATIVA Muito se estudou até o presente momento a respeito do Helicobacter pylori e seu comportamento biológico, seu perfil genético e sua classificação em cepas, fatores determinantes de sua infectividade. Também muito se tem estudado a respeito dos fatores ambientais indutores ou, como preferem alguns, desencadeantes do processo doença. No entanto, os estudos que se preocupam em conhecer quais os fatores genéticos, fisiológicos, ou seja, qual ou quais os fatores biológicos inerentes ao hospedeiro são relativamente escassos (Kunstman et al., 2002; Wex et al., 2009). Considerando-se que, do conhecimento adquirido do comportamento biológico do Helicobacter pylori, pode-se afirmar com certeza que este é capaz de produzir citocinas e interleucinas, imunomoduladores presentes nas células de defesa e intimamente relacionados ao sistema HLA. Pode-se inferir, de maneira indireta, que cepas específicas de H. pylori são capazes de emular reações próprias do sistema imunológico, permitindo sua penetração na intimidade da estrutura celular da mucosa. Outra possível hipótese a ser discutida é que a não-expressão de determinados genes que codificam diferentes HLA no hospedeiro podem levar ao não-reconhecimento do Helicobacter pylori como agente agressor. Essa hipótese justifica a realização do presente estudo cujo objetivo se descreve a seguir. 3. OBJETIVO Considerando-se que alguns estudos desenvolvidos até o presente momento identificam a presença de vários tipos de HLA na etiopatologia da infecção por H. pylori enquanto outros identificam a ausência de determinados tipos de HLA nessa mesma doença, o presente estudo visa determinar a relação entre a expressão do HLA do hospedeiro e a infecção por H. pylori na etiopatologia da úlcera duodenal na região Sudeste do Brasil.