1 UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ JANINE PIRES BERGOLD A RELIGIÃO COMO ALTERNATIVA NA RESSOCIALIZAÇÃO DO PRESO Monografia apresentada como requisito parcial para obtenção de título de Bacharel em Direito, na Universidade do Vale do Itajaí - Centro de Educação São José. Orientador: Prof. MSc Alceu de Oliveira Pinto Júnior São José 2008 2 JANINE PIRES BERGOLD A RELIGIÃO COMO ALTERNATIVA NA RESSOCIALIZAÇÃO DO PRESO Esta Monografia foi julgada adequada para a obtenção do título de Bacharelem Direito e aprovada pelo Curso de Direito da Universidade do Vale do Itajaí, Centro de Educação de São José. Área de Concentração: Direito Penal – Política Criminal e Segurança Pública Florianópolis, 18 de junho de 2008. Prof. MSc. Alceu de Oliveira Pinto Júnior UNIVALI – CE de São José Orientador Prof. MSc. Luiz César Silva Ferreira UNIVALI – CE de São José Membro Prof. MSc. Artur Jenichen Filho UNIVALI – CE de São José Membro 3 AGRADECIMENTOS Agradeço a Deus pelo dom da vida e pela capacidade de raciocínio, mediante a qual me faz refletir e expressar a imensa gratidão que dirijo ao meu marido Wagner, às minhas filhas Lindsay e Evelyn, à minha mãe Celina, aos meus sogros Harry e Dalka e aos amigos, cujos nomes não conseguiria enumerar, pelas palavras amigas e de incentivo dirigidas a mim durante esta jornada acadêmica, que me proporcionaram força e coragem para conquistar esta vitória. 4 “As impossibilidade humanas são as possibilidades para Deus.” (Autor desconhecido) 5 RESUMO O instituto da pena, desde os seus primórdios, vem sendo utilizado como meio de punição, tendo como objetivo nos últimos tempos, também, a ressocialização do preso, conforme previsto, no Brasil, na Lei de Execução Penal. Em razão de inúmeros fatores, tais como ambientes sujos e superlotados, pessoal administrativo não capacitado, ociosidade, entre outros, o anseio da legislação vigente não tem sido concretizado. O ambiente carcerário atual tem contribuído para a reprodução da criminalidade. A sensibilidade humana tem aflorado diante das informações veiculadas nos meios de comunicação, dando conta da situação de descaso em que se encontram os apenados. Visando amenizar a humilhação imposta aos condenados, além do que lhe é devido, ou seja, a privação da liberdade, a sociedade tem buscado meios para disseminar entre os mesmos o respeito a si próprio e ao próximo, resgatando com isto a sua dignidade. A alternativa abordada neste trabalho é a religião. Acredita-se que o preso, ao receber uma orientação religiosa, reconhecerá seus defeitos de caráter e, ao vislumbrar a possibilidade de sua transformação, passará, ou melhor, buscará ter comportamentos mais dignos, o que contribuirá para a sua ressocialização, capacitando-o para um convívio normal e aceitável junto à sociedade. Palavras-chave: pena, prisão, ressocialização, religião. 6 SUMÁRIO INTRODUÇÃO .......................................................................................... 7 1 O ORDENAMENTO JÚRIDICO E A RESSOCIALIZAÇÃO ..................... 10 1.1 O INSTITUTO DA PENA E AS SUAS FUNÇÕES .................................... 10 1.2 PRINCÍPIOS NORTEADORES DA EXECUÇÃO PENAL ........................ 17 1.2.1 Princípio da Legalidade .......................................................................... 18 1.2.2 Princípio da Culpabilidade ..................................................................... 19 1.2.3 Princípio da Isonomia ............................................................................. 20 1.2.4 Princípio da Intervenção Mínima ........................................................... 20 1.2.5 Princípio da Jurisdicionalidade ............................................................. 21 1.2.6 Princípio da Humanidade ....................................................................... 22 1.2.7 Princípio da Pessoalidade e Individualização da Pena ....................... 22 1.3 O INSTITUTO DA RESSOCIALIZAÇÃO E A SUA INSERÇÃO NO DIREITO PENAL BRASILEIRO................................................................ 22 2 SISTEMA PENITENCIÁRIO ..................................................................... 29 2.1 SURGIMENTO E FUNÇÕES DA PRISÃO................................................ 29 2.2 AS PRISÕES ............................................................................................ 31 2.3 REALIDADE PENITENCIÁRIA BRASILEIRA ........................................ 36 3 RESSOCIALIZAÇÃO E RELIGIÃO COMO ALTERNATIVA ................... 46 3.1 FATORES IMPEDITIVOS À RESSOCIALIZAÇÃO ................................. 46 3.2 FATORES CONTRIBUTIVOS À RESSOCIALIZAÇÃO ............................ 50 3.3 RELIGIÃO NOS PRESÍDIOS .................................................................... 56 CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................... 68 BIBLIOGRAFIA ..................................................................................... 73 7 INTRODUÇÃO A escolha do tema do presente estudo, envolvendo religião e presídio, teve origem quando do conhecimento, através de relatos pessoais, de experiências vividas e os resultados alcançados junto aos presos, mediante o trabalho realizado por voluntários junto aos estabelecimentos prisionais. Outro fato que ratificou a intenção de uma pesquisa sobre o assunto, foi a exibição de um filme na televisão, intitulado “Os últimos Passos de Um Homem”1, que narrava a história de um condenado à morte, acusado de ter estuprado uma moça que estava em uma floresta com o seu namorado e em seguida ter matado os dois. A intervenção de uma freira junto a ele, dedicando-lhe tempo e carinho, bem como o incentivo à leitura da Bíblica, culminou na sua confissão, tão almejada pela justiça. Apesar de sua execução ter sido mantida, ele se demonstrou, ao final, um homem transformado, arrependido e sensível. Movida pela curiosidade, a princípio o estudo tinha por finalidade verificar a porcentagem sobre os resultados auferidos mediante este trabalho, e assim diagnosticar o grau de aceitabilidade da religião dentro das prisões, tanto pelos presos como pela parte administrativa, bem como a sua eficácia, isto por meio da realização de pesquisa “in loco”. Porém, após orientação e ponderação, o estudo foi direcionado para uma pesquisa da legislação vigente, doutrinas e outras fontes, objetivando apenas uma reflexão sobre a questão. Desse modo, pretende-se apresentar aqui a forma como se davam as primeiras penas, sua evolução no tempo, bem como a origem das prisões. Além disso, buscar-se-á fazer uma análise sobre as mudanças ocorridas no sistema prisional, verificando se melhoraram ou pioraram e qual a reação da sociedade em geral em relação ao tratamento dado ao preso. Constata-se, através da televisão e dos jornais, que a situação dos presídios, com mais evidências no Brasil, não corresponde ao que se espera, no entanto, é 1 Mais informações podem ser colhidas no site do em:<www.cineplayers.com/filme.php?id=1019>. Acesso em: 18/04/08. Cine Players. Disponível 8 salutar pesquisar a respeito, visto que nem sempre as informações veiculadas pela mídia são retratos da verdade, em razão da necessidade de sensacionalismo. O grande número de pessoas que são levadas às prisões é alarmante, porém, em uma percepção pessoal, não na mesma proporção em que o crime se dissemina pela sociedade. Tem-se conhecimento de que há leis próprias, que regulamentam a convivência em sociedade, bem como aquelas que objetivam punir os que nela não se enquadram, no entanto, não se entende como os fatos revelam uma convivência tão desordenada entre os homens e a falta de respeito entre os mesmos. A Constituição da República Federativa do Brasil2 assegura em seu artigo primeiro, inciso III, a dignidade da pessoa humana, como o maior dos fundamentos da República, pois funciona como princípio basilar para a interpretação de todos os direitos e garantias individuais, no entanto, o que se tem notado é que as pessoas submetidas ao cumprimento de uma sentença condenatória têm sido usurpadas de seus direitos fundamentais. Por isso, pretende-se pesquisar quais os direitos que o preso perde durante o período em que cumpre a pena e quais permanecem e como podem ser invocados. A Lei de Execução Penal3 é o instrumento que tem em seu escopo o cumprimento da sentença condenatória, que, na teoria, deve preservar os direitos dos presos e proporcionar-lhes a ressocialização, ou seja, prepará-los para o retorno ao convívio em sociedade. O que se constata, no entanto, é que os presos, ao que parece, tornam-se mais revoltados e agressivos, comportamentos estes demonstrados através de motins e rebeliões. Portanto, este estudo tem também o intuito de esclarecer no que consiste exatamente a ressocialização, como ela se dá, e verificar se as condições dos presídios são favoráveis para tal. Não é pretensão do presente trabalho, apesar do desejo íntimo, que se apresente uma solução pronta e infalível, e sim fazer com que se reflita sobre a 2 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. 5 de outubro de 1988. Vade Mecum, 2007, p. 43, doravante denominada de Constituição Federal. 3 BRASIL. Código de Execução Penal. Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984. Vade Mecum, 2007, doravante será denominada de LEP. 9 responsabilidade que cada cidadão tem, em razão de sua convivência em comum. Não só no que diz respeito a sua vida, mas também em relação a todos os demais que fazem parte da sociedade em que vive. 10 1 O ORDENAMENTO JURÍDICO E A RESSOCIALIZAÇÃO 1.1 O INSTITUTO DA PENA E SUAS FUNÇÕES Na pesquisa realizada, através de variadas alternativas disponíveis, percebese que a pena, no Direito Penal, tem sido tema de estudo não só de diversos juristas e filósofos, mas também de um grande número de acadêmicos em seus trabalhos de conclusão de curso. Num desses trabalhos, Ferreira4 diz que a pena, para os criacionistas, foi imposta aos primeiros habitantes da terra por Deus, quando estes transgrediram uma de suas ordens, recebendo, cada qual, a punição pela sua desobediência5. Independentemente do ponto de partida, constata-se que ao longo do tempo, muitas mudanças ocorreram, em especial na forma da aplicação da pena. Para fins didáticos, os autores identificam a primeira fase de transformações dividindo-a em períodos, quais sejam: Período da Vingança Privada, Período da Vingança Divina, Período da Vingança Pública, Período Humanitário, Período Científico e Período Atual6. Adverte o autor que a mudança de um período para o outro ocorreu cronologicamente de forma imperceptível, pois mesmo em um determinado período havia características de um outro. Resumidamente, conforme explana o autor referido, pode-se dizer que o Período da Vingança Privada caracterizava-se pelo fato de que a pena era uma punição imposta exclusivamente como revide, sem preocupação com a pessoa do criminoso ou mesmo com a emenda em relação ao crime cometido. A punição alcançava inclusive seus familiares. Era uma pena abusiva, totalmente desregrada. O Período da Vingança Divina não difere muito do anterior, a não ser pelo fundamento agora alegado, ou seja: a vontade divina, insinuando-se que a punição tinha o objetivo de “aplacar a ira divina e regenerar ou purificar a alma do delinqüente”. 4 FERREIRA, Gilberto. Aplicação da pena. Editora Forense, Rio de Janeiro, 1998, p. 5. BÍBLIA. Português. A Bíblia Sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. Brasília: Sociedade Bíblica do Brasil, 1969, Gênesis 3:9-19. 6 FERREIRA, Gilberto. Ibid., p. 7-17. 5 11 Ferreira7 ainda ensina que, quanto ao Período da Vingança Pública, pode-se dizer que, diante da crueldade e falta de critérios de justiça adotados nos períodos anteriores, o Estado atrai para si a responsabilidade em punir, pois da forma como vinha sendo exercida não trazia proveito algum, muito pelo contrário. A diferença entre este período e os que o antecederam não estava no tipo de punição, mas sim na identificação física de quem detinha o poder para punir, pois a crueldade ainda prevalecia. Narra o autor8 que os intelectuais da época, espectadores inoperantes até então, estavam revoltados e sabiam que tinham algum poder de mexer com a opinião pública. Diante de tanta insensibilidade, iniciaram um combate à maldade ímpar que era chamada de justiça, dando surgimento então ao Período Humanitário. Marcado pela manifestação expressiva do autor Cesare Bonesane, marquês de Beccaria. Em sua marcante obra Dos Delitos e das Penas, Beccaria9 prolata: Contudo, os dolorosos gemidos do fraco, que é sacrifício à ignorância cruel e aos ricos covardes; os tormentos terríveis que a barbárie inflige em crimes não provados, ou em delitos quiméricos; a aparência repugnante dos xadrezes e das masmorras, cujo horror é ainda aumentado pelo suplício mais insuportável para os desgraçados, que é a incerteza; tantos métodos odiosos, difundidos por toda parte, teriam por força que despertar a atenção dos filósofos, essa espécie de magistrados que orientam as opiniões humanas. Era veemente o discurso de Beccaria10 sobre os métodos de punir da época, assim, afirmava: “Entre as penalidades e no modo de aplicá-las proporcionalmente aos delitos, é necessário, portanto, escolher os meios que devem provocar no espírito público a impressão mais eficaz e mais durável e, igualmente, menos cruel no corpo do culpado.” O Período Humanitário caracterizou-se pelo clamor de que a pena aplicada ao delinqüente deve ser prevista em lei, sem cometer abusos, o que influenciou o surgimento dos artigos 7° e 8°da Declaração dos Dir eitos do Homem e do Cidadão11. 7 FERREIRA, Gilberto. Ibid, p. 8-9. FERREIRA, Gilberto. Ibid, p. 12. 9 BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas. São Paulo: Martin Claret Ltda, 2007, p. 16-17. 10 BECCARIA, Cesare. Idib, p. 51. 11 Art. 7° Ninguém pode ser acusado, preso ou detido, senão nos casos determinados pela lei e segundo as formas por ela prescritas. Os que solicitam, expedem, executam ou fazem executar atos arbitrários 8 12 Esclarece Ferreira12 que foi a partir daí que a pena de morte passou a ser abolida, bem como os flagelos corporais, principalmente as torturas físicas, sempre concomitantes com as de natureza moral. Aos poucos estas vão desaparecendo, e o objetivo de se estabelecer a nova ordem social, no que diz respeito à punição do delinqüente, vai cedendo lugar às privativas de liberdade. Surge, então, a necessidade de construir mais presídios. A luta agora continua com a humanização junto do tratamento aos usuários dos presídios. Com isso, a pretensa teoria humanitária, fundamentalmente bem-intencionada, continua ganhando novos adeptos. O autor13 anteriormente referido ainda prolata que, no período conhecido pela denominação Científico, a pena passa a ser considerada como um remédio e não mais como um castigo. Cesare Lombroso, mediante pesquisa, entendia que o delinqüente era portador de uma tendência criminógena, identificada por características físicas, detectadas a partir de análise do seu crânio. Assim, a sanção a ele aplicada seria um meio de defesa da sociedade e não uma punição. Apesar do seu equívoco, Lombroso abre as portas a novos estudos voltados ao criminoso, ao crime e suas causas. Ferreira14 continua sua narrativa, ensinando que, no começo do século passado, antes da Primeira Guerra Mundial surge o movimento denominado Defesa Social, iniciado pelos estudos de três intelectuais: August Roedder, Pedro Garcia de Dorado Montoro e Concepción Arenales. Em seguida surge a obra de Filippo Gramattica, seguido pelo magistrado francês Marc Ancel. Este período, agora chamado de Movimento da Nova Defesa Social, ganha novos adeptos e evolui consideravelmente, preocupando-se tanto com a humanização das instituições como a recuperação social do delinqüente. O autor15 ainda prossegue, dizendo: O Movimento de Defesa Social não quer a extinção do direito penal ou do sistema penitenciário de forma radical, como a princípio se possa parecer. Deseja, em verdade, que devem ser punidos, mas todo cidadão chamado ou atingido pela lei deve obedecer imediatamente, tornando-se culpado pela resistência. Art. 8° A lei só deve estabelecer penas estrita e evidentemente necessárias. Ninguém pode ser punido senão em virtude de uma lei estabelecida e promulgada anteriormente ao delito e legalmente aplicada. 12 FERREIRA, Gilberto. Ibid, p. 14. 13 FERREIRA, Gilberto. Ibid, p. 16. 14 FERREIRA, Gilberto. Ibid., p. 17. 15 FERREIRA, Gilberto. Ibid., p. 19. 13 isto ocorra lentamente, aos poucos, através de uma transformação que dê um verdadeiro sentido à punição do delinqüente, ressocializando-o, de modo a proteger não só os direitos humanos, a dignidade do homem em si, mas a sociedade como um todo. Quanto às críticas sobre a pena privativa de liberdade na fonte retro citada16 é declarado que o sistema carcerário não regenera, ao contrário, “perverte, corrompe, destrói, aniquila a saúde, a personalidade, estimula a reincidência e onera sensivelmente o Estado, sendo uma verdadeira escola do crime, paga e manipulada pelos cofres públicos”. Com base nisso, pode-se dizer que a discussão sobre o tema está longe de se estabilizar. Constantes transformações vêm ocorrendo, tanto no comportamento humano como nas normas que visam seu comportamento, porém, percebe-se que nem tudo ocorre conforme o desejado. Nessa busca incessante de se encontrar o método certo e eficaz, o Estado tem adotado medidas que visam combater o crime. No entanto, a coação é o meio pelo qual o Estado se estruturou, pois ela é a força advinda do exercício legítimo dos poderes constituídos, diz Max Weber17. Para sedimentar o argumento o autor menciona ainda Kelsen, que afirma que “o teor fundamental da coação é a aplicação de um mal ao destinatário mesmo contra a sua vontade, empregando a força física, se necessário”. Aliás, a expressão mal é utilizada em quase todos os conceitos de pena apresentado por Ferreira18. Outras expressões negativas também são adotadas, como: perda, diminuição, privação, sanção aflitiva, entre outras. Quanto a isto, é de se pensar se realmente a pena tem sido adotada ou entendida como algo que vá trazer resultados positivos ao caráter do seu destinatário. O que se tem ante a realidade fática, é a demonstração que a pena pretende não servir somente para punir19, mas fazer com que a punição sirva para intimidar20 a realização de novos crimes21, no que não tem sido bem sucedida. 16 FERREIRA, Gilberto. Ibid, p. 34. WEBER, Max. Apud CARVALHO, Salo de. Penas e Garantias. Rio de Janeiro: Lunen Júris, 2003, p.117. 18 FERREIRA, Gilberto. Ibid., p. 3 e 4. 19 Gilberto Ferreira classifica como Teoria absoluta: O fundamento da punição é exclusivamente moral e ético. Não há preocupação quanto à sua utilidade. Ibid. p. 25. 17 14 Segundo Leal22, hodiernamente faz-se referência a quatro principais funções (ou fins) da pena de prisão: a) retribuição - não só priva o preso de sua liberdade, mas também o castiga, pois faz com que perca, num ambiente hostil de tensões e promiscuidade moral, a segurança, a privacidade, a intimidade, a capacidade de autopromoção, a identidade social, subordinação... b) intimidação – como o próprio autor explica, se a função intimidativa fosse eficaz, a criminalidade seria menor onde há a pena de morte. c) ressocialização – sobre este aspecto, o autor cita o renomado penitenciarista Eugênio Raúl Zaffaroni, que adverte: “La prisión o ‘jaula’ es uma instituición que se comporta como uma verdadera máquina deteriorante: genera uma patologia cuya característica más saliente es la regresión, lo que no es difícil de explicar...”. Engana-se, aquele que pensa que a prisão pode almejar, ou melhor, alcançar tal objetivo, ensinando no cativeiro a viver em liberdade. d) incapacidade – busca-se, com a clausura, impedir que o preso cometa novos delitos, se livre estivesse. Seja qual for o seu objetivo, apesar dos esforços dos legisladores, a pena não tem cumprido o seu papel, pois, como pode-se observar, o número de criminosos é crescente, superlotando os ambientes carcerários e tornando impossível o tratamento esperado a ser dado ao delinqüente, qual seja, respeito a sua dignidade e sua recuperação. Evandro Lins e Silva, no prefácio da obra de Leal23 afirma que; “Não é com a severidade das penas que se combate ou extingue a criminalidade. Se assim fosse, bastava estabelecer a pena de morte que os crimes desapareciam com a só ameaça de sua aplicação.” 20 Gilberto Ferreira classifica como Teoria relativa: o fundamento da pena está em evitar que o delinqüente volte a delinqüir ou que incentive outros a fazê-lo. Ainda há a Teoria mista, que abrange os dois fundamentos. 21 Conforme o Dicionário de Plácido & Silva, “...no conceito do Direito Penal, a pena é a expiação ou o castigo, estabelecido por lei, no intuito de prevenir e de reprimir a prática de qualquer ato ou omissão de fato que atente contra a ordem social, o qual seja qualificado como crime ou contravenção.” 22 LEAL, César Barros. Prisão: crepúsculo de uma era. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p. 38-41. 23 LEAL, César Barros. Ibid p.23. 15 Assim, é correto afirmar que algo está errado e deve ser mudado. Nesse entendimento, ensina Falconi24, “Quer-se, isto sim, um outro sistema de sanções, que venha a proporcionar muito mais do que mera punição, como ocorre no momento, que nada realiza além da vendeta, promovida pelo Estado padrasto e perverso.” Defendendo a idéia de que a pena é aplicada com o escopo de vingança, e assim de nada serve, pois o que deve ser combatido é o crime e não o criminoso, o autor retro citado faz menção à idéia de Concepción Arenal: “Afirmava ela não haver criminosos incorrigíveis, mas criminosos incorrigidos, sustentando que a recuperação está precisamente no tratamento adequado para cada delinqüente; nunca, porém, na aplicação pura e simples da pena tal como conhecemos.” A esse respeito o autor francês Michel Foucault25 assevera que: “A arte de punir deve portanto repousar sobre toda uma tecnologia da representação. [...] Encontrar para um crime o castigo que convém é encontrar a desvantagem cuja idéia seja tal que torne definitivamente sem atração a idéia de um delito.” O Estado, detentor do direito de punir, aplica ao delinqüente a norma posta, entretanto, ao que se conclui, mediante os fatos, é que a pena aplicada funciona apenas como um castigo, que não se limita à privação de liberdade, mas sujeita o delinqüente, ainda, a condições desumanas e degradantes, em razão é claro, do próprio sistema carcerário existente, que não apresenta condições favoráveis à sua integração social, o que deveria, conforme prevê o art. 1° da LEP 26. Beccaria27 , a respeito, há muito já prolatava: “[...] a origem do direito de punir é a segurança geral da sociedade. A aplicação das penas não deve traduzir vingança coletiva, mas, antes, ter em mira a justiça, a prevenção do crime, e a recuperação do criminoso.” Infelizmente, a punição, que se diz necessária, sempre haverá, pois, segundo 28 Ferreira , a sua ausência “só ocorrerá quando os homens alcançarem um estágio tal 24 FALCONI, Romeu. Reabilitação Criminal. São Paulo: Ícone, 1995, p. 36. FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Rio de Janeiro: Vozes, 1997, p. 87. 26 Art. 1º - A execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado. 27 BECCARIA, Cesare. Ibid, p. 126. 28 FERREIRA, Gilberto. Ibid., p. 6 25 16 de evolução, que a pena se torne completamente desnecessária. Nesse dia, por certo, já não existirão mais juízes, cadeias, hospitais, médicos...” Enquanto este dia não chega, no bom dizer de Falconi29, “impõem-se modificações, para sobreviver. Haveremos de mudar, mercê da qualidade dos nossos intelectuais”. Após estas considerações, denota-se que a pena, em cada período apresentado, estava voltada a um objetivo: ora para punir, ora como remédio, ora para intimidar, ora para a integração social, ora para a recuperação do delinqüente. Hoje em dia, propõe-se que a finalidade da pena tenha estes objetivos de forma concomitante, é o que esclarece Thompson30. São eles: “- punição retributiva do mal causado pelo delinqüente; - prevenção da prática de novas infrações, através da intimidação do condenado e de pessoas potencialmente criminosas; regeneração do preso, no sentido de transformá-lo de criminoso em não-criminoso.” O autor entende que este conceito de tríplice finalidade: punir, intimidar e reformar é “enganosa pureza”, pois entende que a punição e a intimidação “são reconhecidamente impeditivas de levar ao sucesso uma ação pedagógica.” No Brasil, desde 1940, quando foi instituído o Código Penal31 brasileiro, normas foram imposta quanto à pena a ser aplicada aos condenados. Conforme estabelece o Código Penal, em seu artigo 32, as penas, em relação à espécie, são classificadas em: I – privativas de liberdade; II – restritivas de direitos; III – de multa. Para fins deste estudo, destaca-se a pena privativa de liberdade, que pode ser de reclusão ou detenção. Prescreve o artigo 33 que “a pena de reclusão deve ser cumprida em regime fechado, semi-aberto ou aberto. A de detenção, em regime semi-aberto ou aberto, salvo necessidade de transferência a regime fechado.” Esclareça-se que, o foco deste trabalho são os presos cuja condenação foi para cumprimento de pena privativa de liberdade, especialmente em regime fechado, 29 FALCONI, Romeu. Ibid., p 38. THOMPSON, Augusto. A Questão Penitenciária. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 3. 31 BRASIL. Código Penal. Decreto-Lei n. 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Vade Mecum. São Paulo: Rideel, 2007, p. 441, doravante denominado de Código Penal. 30 17 ou ainda aqueles que se encontram presos a espera de seu julgamento, pois são estes os mais afetados pela discriminação e os que sofrem com os infortúnios da convivência em estabelecimentos prisionais. Prescreve, ainda, o artigo 38, que:.“ O preso conserva todos os direitos não atingidos pela perda da liberdade, impondo-se a todas as autoridades o respeito à sua integridade física e moral.” Artigo este amparado pela Constituição Federal, que estabelece, como garantia individual, entre outras, que “é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral;”. A Constituição Federal garante, também, que não haverá penas cruéis (art.5., XLVII,”e”), no entanto, o que se constata, é que o preso é submetido às maiores crueldades físicas e morais, que pode suportar um ser humano, em razão das péssimas condições dos presídios, como se tem notícias. Constata-se, então, que a falta de normas não é a razão dos problemas detectados. A discussão sobre o assunto é vasta, e o que se pretende, neste estudo, é pesquisar sobre a possibilidade de recuperação do preso neste meio em que ele é submetido. Não se pode simplesmente isolá-lo em um ambiente carcerário, a fim de que cumpra a pena a ele imposta. Esta pena não pode estar limitada apenas à punição. Acredita-se que se fosse somente este o seu objetivo, de nada adiantaria. É preciso prepará-lo para a sua volta ao meio em que se encontrava antes, ou aonde se pretende (re)inseri-lo. 1.2 PRINCÍPIOS NORTEADORES DA EXECUÇÃO PENAL Refletindo a respeito do que já foi relatado, pode-se dizer que não basta existir a norma, é preciso que ela seja aplicada, e de forma correta. Outra fator que deve ser levado em consideração, para uma aplicação adequada do Direito, são os Princípios Constitucionais Fundamentais, que são garantias do cidadão frente ao Poder Punitivo Estatal. 18 A respeito, prolata Bittencourt32: As idéias de igualdade e de liberdade, apanágios do Iluminismo, deram ao Direito Penal um caráter formal menos cruel do que aquele que predominou durante o Estado Absolutista, impondo limites à intervenção estatal nas liberdades individuais. Muitos desses princípios limitadores passaram a integrar os Códigos Penais dos países democráticos e, afinal, receberam assento constitucional, como garantia máxima de respeito aos direitos fundamentais do cidadão. Todos esses princípios, hoje inseridos, explícita ou implicitamente, em nossa constituição (art.5º) têm a função de orientar o legislador ordinário para a adoção de um sistema de controle penal voltado para os direitos humanos, embasado em um Direito Penal da culpabilidade, um Direito Penal mínimo e garantista. É redundante dizer que o processo penal deve ser justo, porém, muitos têm entendido a justiça como austeridade desenfreada, indo além do verdadeiro objetivo da pena. Assim, como garantias constitucionais, os princípios a seguir identificados visam frear os abusos de poder das autoridades que o detém. A doutrina aponta diversos princípios, porém, para efeitos deste estudo, serão apresentados, de forma sintética, aqueles que se coadunam com a execução penal. 1.2.1 Princípio da Legalidade O princípio da legalidade garante que nenhum fato pode ser considerado crime e nenhuma pena criminal pode ser aplicada, sem que antes desse mesmo fato tenham sido instituídos por lei o tipo delitivo e a pena respectiva. Este princípio não é algo novo e há muito é considerado. Sobre isto, ensina Goulart33: O princípio da legalidade se deu no Brasil na Constituição do Império de 1824, que inscreveu o princípio em seu art. 179, § 11, o que dispunha que “ninguém será condenado senão em virtude da lei anterior, e na forma por ella prescripta”. Por sua vez, o Código Criminal de 1830, disciplinava em seu art. 1º que, “Não haverá crime ou delicto (palavras synonimas neste Código) sem uma lei anterior, que o qualifique”. 32 BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual de Direito Penal. Parte Geral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p.35. 33 GOULART, José Eduardo. Princípios Informadores do Direito da Execução Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994 , p. 87. 19 Na Constituição Federal, a legalidade tem sua diretriz inserida no artigo 5º, inciso XXXIX, que diz: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garandindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] XXXIX – Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal. O Código Penal, resguardando o que diz a Carta Magna, prescreve em seu artigo 1º: “Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal”. Nota-se que este princípio busca resguardar o indivíduo, a fim de que não seja acusado indevidamente, bem como não receba, no caso de uma condenação, uma pena injusta, ou seja, fora do que está estabelecido em lei. O princípio da legalidade é, portanto, um princípio orientador e regulador, conferindo ao ordenamento jurídico estabilidade e dignidade. 1.2.2. Princípio da Culpabilidade Em pesquisa realizada, encontrou-se um princípio denominado de princípio da proporcionalidade, o que leva a crer, através da leitura, que se trata da denominação deste sub-título. Ambos os princípios pesquisados tem como característica a orientação de que a pena não pode ser superior ao grau de responsabilidade pela prática do fato, ou seja, a pena deve ser medida pela culpa do autor. Há um alerta, neste aspecto, para que não haja excesso, conforme informa o artigo 185 da LEP: “Haverá excesso ou desvio de execução sempre que algum ato for praticado além dos limites fixados na sentença, em normas legais ou regulamentares.” Considerando-se a pena como de caráter retributivo, fica mais claro o entendimento, pois, admitir-se-á que a retribuição para o mal praticado deva ser estritamente proporcional ao comportamento do delinqüente. O complicador, ao que parece, é identificar a medida exata que identifique essa proporcionalidade. Esclarece Goulart34, que essa proporcionalidade, na execução penal, será estabelecida através de classificação do condenado, de maneira a estabelecer 34 GOULART, José Eduardo. Ibid, p. 109. 20 correspondência entre este e o modo pelo qual a pena lhe foi imposta, para que venha a ser adequadamente executada, após o exame de sua personalidade e o fato a ele imputado. 1.2.3. Princípio da Isonomia Este princípio está inserido na Constituição Federal, no caput do art. 5°, que trata dos Direitos e Garantias Fundamentais, declarando que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. Entende-se que, tanto no momento da aplicação da lei, quanto no cumprimento da mesma, não deve haver qualquer tipo de tratamento diferenciado entre os acusados, seja para melhor ou para pior. Em conformidade com o que preceitua a Carta Magna, a LEP, no parágrafo único do artigo 3°, assim prescreve: “Não haverá qu alquer distinção de natureza racial, social, religiosa ou política.” É entendimento, portanto, que o preceito legal deve ser respeitado, o que nos remete ao princípio da legalidade, pois como visto antes, deve-se aplicar o que diz a lei. Não seria incorreto afirmar que este último é o que norteia todos os demais. 1.2.4 Princípio da Intervenção Mínima Lopes35 informa que a origem do referido princípio encontra-se no artigo 8º da Declaração dos Direitos Humanos e do Cidadão, de 1789, que dispões: “a lei deve estabelecer penas estrita e evidentemente necessárias.” Este princípio visa impor limites ao arbítrio judicial. O juiz, ao prolatar a sentença, deve se ater à pena inerente ao tipo penal. Assim estabelece o Código Penal em seu artigo 53: “As penas privativas de liberdade têm seus limites estabelecidos na sanção correspondente a cada tipo legal de crime.” Ensina Munhoz36 que: “De acordo com o princípio da intervenção mínima, o direito penal só deve intervir nos casos de ataques graves aos bens jurídicos mais importantes. As perturbações leves da ordem jurídica devem ser objeto de outros ramos do direito.” 35 LOPES, Apud MOURA, Genney Randro. Breves Anotações Sobre o Princípio da Insignificância. Disponível em: <http//:www.praetorium.com.br> Acesso em: 03/03/2008. 36 MUNHOZ, Apud MANÃS, Carlos Vico. O Princípio da Insignificância no Direito Penal. Disponível em: <http://http://www.mt.trf1.gov.br/judice/jud4/insign.htm> Acesso em: 04/03/2008. 21 Este ramo do Direito é um dos meios de controle social, cuja função precípua consiste na proteção de bens essenciais ao indivíduo ou à sociedade. Porém, a sua intervenção só deve acontecer na ausência ou ineficácia dos outros ramos do Direito, porquanto os pressupostos políticos do Estado de direito constitucional impedem que as medidas punitivas do Direito Penal interfiram desnecessariamente na liberdade do indivíduo. Esclarece Manãs37 que, na realidade, vê-se a dignidade da pessoa humana como um valor a ser perseguido pelo Estado, que para tanto constituiu o direito à liberdade como uma das suas maiores expressões. Assim, a intervenção do Direito Penal somente deve ocorrer na constatação de que a restrição ao direito de ir e vir se faz necessário para o restabelecimento da ordem pública, do contrário estar-se-ia utilizando o Direito contra os seus próprios fundamentos - o ideal do justo - constituindose, desta maneira uma ameaça à paz pública. O princípio da intervenção mínima é utilizado como uma forma de impedir que condutas sem nenhum critério de periculosidade social sejam legalmente instituídas como crimes. 1.2.5 Princípio da Jurisdicionalidade Este princípio estabelece que o juiz não se limita ao julgamento do acusado, mas se estende à execução da pena imposta ao condenado. O artigo 2° da LEP assim prescreve: “A jurisdição p enal dos juízes ou tribunais da justiça ordinária, em todo o território nacional, será exercida, no processo de execução, na conformidade desta Lei e do Código de Processo Penal.” Errado é, portanto, pensar que a justiça penal termina com o prolatar da sentença condenatória. Ela tem o poder de decidir o conflito entre o direito público de punir e os direitos concernentes à liberdade do cidadão. Conforme ensina Mirabete38, o aspecto da jurisdicionalização do procedimento executório é um dos pontos fundamentais do diploma (art.2° da LEP), pois define o caráter complexo da execução que vinha sendo considerada como de natureza meramente administrativa. 37 38 MANÃS, Carlos Vico. Ibid. MIRABETE, Julio Fabbrini. Execução Penal. São Paulo: Atlas, 2006, p. 33. 22 1.2.6 Princípio da Humanidade A Constituição Federal consagrou em diversos dispositivos o princípio da humanidade. No inciso XLIX do art. 5º está disposto que é “assegurado aos presos o respeito, à integridade física e moral”; e no inciso seguinte está previsto que “às presidiárias serão asseguradas as condições para que possam permanecer com seus filhos durante o período da amamentação”. Este princípio assume mais relevância no inciso XLVII do mencionado artigo 5º que determina que não haverá penas: a) de morte salvo em caso de guerra declarada nos termos do artigo 84, XIX; b) de caráter perpétuo; c) de trabalhos forçados; d) de banimento; e) cruéis. Apesar do que preceitua o princípio da humanidade, bem como inegável é que deva subsistir, ele não deve, como ressalta Luisi39, “obscurecer a natureza aflitiva da sanção penal”. O condenado deve sim responder pelo que fez, desde que respeitados os seus direitos não atingidos pela pena. 1.2.7 Princípio da Pessoalidade e Individualização da Pena É o princípio pelo qual se orienta que a pena deve atingir apenas a pessoa do sentenciado. Como foi visto no início deste estudo, houve época em que a pena podia se estender aos familiares do criminoso, ou atingir seus bens. O princípio da pessoalidade refuta, de forma sensata, que as conseqüências penais de um ato criminoso recaia sobre outra pessoa que não o cometeu. Assim, a pena deve ser imposta somente ao autor da infração penal, no limite de sua pessoa. A Constituição Federal contém esta norma no inciso XLV, do artigo 5º: “Nenhuma pena passará da pessoa do condenado...” Os princípios, em geral, nem sempre estão inscritos nas leis, mas, porque servem de base ao Direito, são tidos como preceitos fundamentais para a prática do Direito e proteção aos direitos. 1.3 O INSTITUTO DA RESSOCIALIZAÇÃO E SUA INSERÇÃO NO DIREITO PENAL BRASILEIRO 39 LUISI, Luis. Os Princípios Constitucionais Penais. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 2002, p.50. 23 Antes de adentrar no assunto proposto, é mister entender o significado da palavra ressocialização. O prefixo “re” tem o significado de “voltar a”, desta feita, conclui-se que ressocializar implica em voltar a ser social ou voltar a socializar-se40. No caso dos presos, pode-se dizer que na sua maioria já se encontravam, antes de irem para os presídios, à margem da sociedade, ou seja, não estavam nela inseridos. Este comentário faz com que se reflita se a expressão ressocializar é a mais correta a ser empregada àquele que está cumprindo pena de privação de liberdade e que mais tarde será solto. Estaria ele sendo “devolvido” à sociedade ressocializado? Na sua obra Penologia I, Goulart41 usa a expressão “reeducação” para se referir ao tratamento indispensável ao delinqüente condenado. Ele afirma: Reeducar, em sentido amplo, significa educar novamente ou aperfeiçoar. A expressão “reeducar”, como ensina Manoel P. Pimentel, pressupõe a existência de uma educação anterior. Todas as pessoas são educadas, mas nem sempre o são adequadamente. Nesse sentido é possível dizer-se que o criminoso também foi educado, embora seja socialmente reprovado o resultado dessa educação. Nota-se aqui um significado mais próprio, pois o autor fala em “aperfeiçoar”, o que parece, neste contexto, mais próprio ao que se pretende. Comenta Thompson42 que a partir do século passado esta questão já merecia ênfase especial, inclusive as suas variadas designações: “...terapêutica, cura, recuperação, regeneração, readaptação, ressocialização, reeducação e outras correlatas...” Talvez o importante não seja procurar saber qual a expressão mais adequada a ser dada à intenção de colaborar com o preso, visando a sua inserção na sociedade e evitando que volte a delinqüir, mas sim, buscar meios eficazes para que isto aconteça. 40 MICHAELIS. Moderno Dicionário da Língua Portuguesa. São Paulo: Companhia Melhoramentos, 1998, p. 1830. 41 GOULART, Henny. Penologia I. São Paulo: Editora Brasileira de Direitos Ltda, 1975?, p. 81-82. 42 THOMPSON, Augusto. Ibid, p. 3. 24 Muitos métodos são utilizados a fim de exercer influência na ressocialização dos presidiários: são políticas de trabalho, extinção do analfabetismo, prática de esportes, oficina de artes, entre outros. Propõe-se que haja uma integração do governo e da sociedade, com o objetivo de abrir caminhos para diminuir os efeitos negativos que envolvem a vida do preso no sistema carcerário, e prevenir a reincidência criminal quando for colocado fora dele. A preocupação com esta questão não é recente, mas no Brasil ela fica mais evidente a partir da instituição da LEP. O primeiro artigo declara qual a sua intenção: “A execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado”. Vê-se, aqui, duas ordens de finalidades. A primeira para efetivamente cumprir o que foi decido, ou seja, a realização penal concreta, e a segunda para oferecer meios ao apenado, objetivando sua participação construtiva na comunhão social.43 Contempla o artigo 4° da LEP que o Estado não estar á sozinho nessa empreitada, afirmando que: “O Estado deverá recorrer à cooperação da comunidade nas atividades de execução da pena e da medida de segurança.” Reconhece-se, neste dispositivo, que a comunidade pode desempenhar um papel importante na tarefa difícil de facilitar a futura reinserção do condenado à vida social. Para Miguel Reale Júnior44 a colaboração da comunidade é como um “sopro da vida livre” à rigidez da administração penitenciária, agindo como fiscal ou assistindo ao encarcerado. Porém, somente o artigo 10 da supracitada Lei é que aborda efetivamente os meios pelos quais se poderão obter a harmônica integração social mencionada no primeiro artigo. Reza a Lei: “A assistência ao preso e ao internado é dever do Estado, objetivando prevenir o crime e orientar o retorno à convivência em sociedade.” Mais uma vez se percebe a preocupação do legislador no objetivo da pena em transformação e não somente de punição do criminoso. Quer-se que o preso 43 44 MIRABETE. Julio Fabbrini. Ibid, p. 28. REALE JÚNIOR, Apud MIRABETE, Julio Fabbrini. Ibid, p. 45. 25 adquira a capacidade de respeitar normas e regras, e, na medida do possível, que ele desenvolva o respeito por si mesmo e pelos seus semelhantes, objetivando o convívio em sociedade. A assistência que se refere tal dispositivo tem dois sentidos: um de conservar e outro de reeducar. A conservação é o que diz respeito à vida e a saúde do recluso, enquanto a reeducação visa a personalidade do mesmo.45 A LEP segue, descrevendo no artigo 11, no que consiste essa assistência: “A assistência será: I – material; II – à saúde; III – jurídica; IV- educacional; V – social; VI – religiosa.” Afirma Mirabete46 que a adoção deste rol se deu em obediência aos princípios e regras internacionais sobre os direitos da pessoa presa, previstos nas Regras Mínimas da ONU, que diz: [...]para obter a reinserção social do condenado, o regime penitenciário deve empregar, conforme as necessidades do tratamento individual dos delinqüentes, todos os meios curativos, educativos, morais, espirituais, e de outra natureza e todas as formas de assistência de que pode dispor (n.59). A autor mencionado acima classifica, ainda, esta assistência em 3 (três) espécies, quais sejam: assistência religiosa e moral, adotado nos primeiros tempos da existência das penas privativas de liberdade, que consistia em alcançar um resultado reformador do preso, com base em leituras bíblicas e meditação a respeito; assistência pela educação intelectual, que visa proporcionar, àqueles que necessitem, a instrução elementar; e assistência social, objetivando manter laços que mantenham unidos o preso e seu mundo familiar e social. Como se pode observar, esta explicação resumida da assistência ao detento induz ao pensamento de que tudo tem um objetivo único, qual seja: cuidar para que o mesmo se mantenha em condições físicas e mentais favoráveis, durante sua permanência na prisão e também após, quando de seu retorno à sociedade, de onde foi retirado. 45 46 MIRABETE, Julio Fabbrini. Ibid , p. 62. MIRABETE, Julio Fabbrini. Ibid, p. 65-66. 26 Ressalta-se que dessas assistências, a religiosa é a que mais importa para este estudo, e será objeto de análise apresentada mais adiante. O legislador ainda contempla, em mais um dos dispositivos da LEP, a questão da ressocialização. É o que se percebe no conteúdo do artigo 25, que prescreve: “A assistência ao egresso consiste: I – na orientação e apoio para reintegrálo à vida em liberdade;” Essa assistência, no entanto, é temporária, de responsabilidade do Estado, mas que também pode ser oferecida pela comunidade. Na realidade, o trabalho efetivo a ser realizado em prol da ressocialização do preso deve ocorrer quando ele ainda está recluso, pois, neste momento final, de que trata o art. 25 da LEP, os esforços são canalizados para a concretização do que foi conquistado até então. A LEP é muito mais abrangente, com certeza, mas para o estudo em questão, estes dispositivos resumem a tarefa do Estado, em conjunto com a comunidade, que é efetivamente de fazerem cumprir a decisão judicial que levou o condenado a um estabelecimento prisional, possibilitando seu retorno à sociedade, se possível, em condições tais, para que esta última não o rejeite, ou melhor, que ele se sinta parte integrante dela. Não se pode esquecer, também, que o Brasil é signatário da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), promulgada no País pelo Decreto n° 678, de 06/11/92, segundo o qu al “as penas privativas de liberdade devem ter por finalidade essencial a reforma e a readaptação dos condenados” (art. 5.6)47. Percebe-se, então, que doutrinadores e legisladores visualizaram que não basta somente o cumprimento da pena imposta ao apenado. Ele, apesar de estar nesta condição, por desrespeitar um dever à sociedade, tem direitos, e isto não lhe pode ser negado, porque a própria lei que impõe a punição, prevê os direitos. Ainda mais, são estes direitos, permitidos que sejam usufruídos, que poderão fazer a diferença na transformação do caráter destes internos, em especial quando voltarem a conviver em sociedade. 47 MIRABETE, Julio Fabbrini. Ibid, p. 28. 27 Não é o fato de estar trancafiado, excluído, que vai fazer do preso uma pessoa melhor, esperando que ao sair de lá se comporte de forma desejável, ou pelo menos, dentro dos padrões aceitáveis de convívio em sociedade, mesmo que tenha um bom comportamento dentro da prisão. Thompson48 ressalta essa questão, afirmando: “É difícil encontrar outra justificativa para a admissão pacífica de tão formidável paralogismo: julgar que o criminoso, por submisso às regras intramuros, comportar-se-á como não-criminoso, no mundo livre.” O mesmo autor49, citando Bernard Shaw, afirma: “Para punir um homem retributivamente é preciso injuriá-lo. Para reformá-lo, é preciso melhorá-lo. E os homens não são melhoráveis através de injúria.” Os autores espanhóis Ilhescas e Genovés50 , envolvidos também com este estudo, têm analisado e concluído que: “El encarcelamiento es en si mismo causa de frustración y sufrimiento, de ansiedad y hostilidad; estados que predisponen a reacciones de agresividad...” Como se percebe, não é tarefa fácil fazer com que a lei se cumpra. Não se resume apenas em trancafiar um criminoso, mas também, em recuperá-lo e restituí-lo à sociedade. No entanto, o que se constata é um verdadeiro descrédito no êxito do que determina a lei. Os autores supra citados51 comentam a respeito: Los criminólogos y penalistas de la corriente crítica o radical, al referirse a la pena privativa de liberdad, concluyen que el fin de la reinserción social es un mito y el tratamiento penitenciario algo inútil y reaccionario, al ser contradictorio con el respeto de las liberdades del hombre y constituir un instrumento al servicio de las clases opresoras a fin de mantener el status quo. Thompson52 afirma que até os otimistas partidários do tratamento penitenciário reconhecem que o cárcere não tem obtido o resultado esperado, ou seja, transformar o delinqüente em um não-delinqüente. 48 THOMPSON, Augusto. Ibid, p. 11. BERNARD SHAW, Apud THOMPSON, Augusto. Ibid, p. 5. 50 GARRIDO GENOVÉS, Vicente; REDONDO ILHESCAS, Santiago. La Intervencion Educativa en el Medio Penitenciario – Una decada de reflexion. Madrid: Editorial Diagrama, 1992, p. 54-55. 51 GARRIDO GENOVÉS, Vicente; REDONDO ILHESCAS, Santiago. Ibid, p. 59. 52 THOMPSON. Augusto. Ibid, p. 15. 49 28 Damásio de Jesus, ao fazer a apresentação da obra de Leal53, afirma: “Realmente, a pena privativa de liberdade, como sanção genérica, está falida. Não readapta o delinqüente. Ao contrário, perverte-o.” O que se percebe, na verdade, é que a pena privativa de liberdade estigmatiza o recluso, ao invés de ressocializá-lo, o que acaba impedindo sua plena reincorporação ao meio social. Apesar do descrédito e das fortes evidências, o Estado e a sociedade não podem e não devem renunciar às suas obrigações. O esforço para a ressocialização é “como uma faculdade que se oferece ao delinqüente para que, livremente, ajude a si próprio...”54 E não importa, neste caso, qual a expressão correta a ser empregada neste processo: ressocializar, reinserir, reintegrar, reeducar... O que importa é que haja um trabalho, com técnica e dedicação. É importante lembrar que, na área jurídica, cerne deste estudo, o objetivo principal da ressocialização é que o dito “delinqüente” se torne um cidadão, apto a gozar de seus direitos e a cumprir com os seus deveres, evitando-se a reincidência no crime. Resta saber, entretanto, se a situação do ambiente carcerário no Brasil oferece condições para tal trabalho. É o que será analisado no capítulo seguinte. 53 54 LEAL. César Barros. Ibid, p.33-38. MIRABETE, Julio Fabbrini. Ibid, p. 26. 29 2 SISTEMA PENITENCIÁRIO 2.1 SURGIMENTO E FUNÇÕES DA PRISÃO Este capítulo visa conhecer, ainda que superficial, o aparecimento e a forma como ocorreu o surgimento do cárcere junto à humanidade. Assim como não se pode afirmar com precisão quando foi instituída a pena, o mesmo acontece com relação ao surgimento das primeiras prisões. Em pesquisa sobre prisões, Oliveira55 relata que os povos primitivos ignoravam quase que completamente a pena privativa de liberdade, bem como as prisões. Assim, quando era necessária uma punição, a pena de morte era utilizada e nos casos de crimes considerados graves e atrozes, os culpados eram submetidos a suplícios adicionais, como relatados no início do primeiro capítulo. A autora supra citada ainda esclarece que “a detenção inicialmente aparece como medida simplesmente preventiva e só mais tarde toma um caráter repressivo e torna-se um tipo de penalidade”. Nesse mesmo sentido, ensina Leal56, que a prisão na Roma Antiga era utilizada apenas enquanto o acusado aguardava seu julgamento ou a execução da pena, não representando um espaço de cumprimento de uma pena, enquanto, na Grécia, a prisão servia como custódia, para evitar a fuga dos devedores, até que saldassem suas dívidas. Sobre o surgimento das prisões, relata Carneiro 57: O Império Romano abrangia vastíssima região da Europa, África e Ásia e que antes do Imperador Constantino, os cristãos eram perseguidos, presos e lançados às feras, mas após a conversão de Constantino à fé cristã e o reconhecimento da Igreja pelo Estado, a situação se inverteu e todos os que não admirassem à fé católica, ou que praticassem atos contrários à moral religiosa, passaram a ser considerados não só pecadores mas também criminosos. A Igreja formou um poder punitivo. Erigiu em crime o infanticídio, o aborto, o homossexualismo, o rapto, o adultério, a blasfêmia, o sacrilégio, a apostasia, a heresia, a bruxaria, a feitiçaria, etc. Chegou a incluir também o crime 55 OLIVEIRA, Odete Maria. Prisão: Um Paradoxo Social. Florianópolis: UFSC, 1984, p, 29. LEAL, César Barros. Ibid, p.33-38. 57 CARNEIRO Apud FARIAS JUNIOR, João. Manual de Criminologia. Curitiba: Juriá, 1996. 56 30 de lesa-majestade no elenco de crimes religiosos porque o poder do Príncipe ou do Rei, era considerado divino. O delito se confundia com o pecado. Para manter presos, suplicar e mandar os seus delinqüentes para a fogueira, a Igreja passou a construir prisões apropriadas. Essas prisões tiveram o nome de Penitenciários. Leal58 ainda prolata que, na Idade Média, a Igreja usava este sistema para castigar seus monges rebeldes ou infratores, a fim de que se recolhessem às suas celas, para meditação e oração. Ensina Miotto59 que os locais de onde os condenados ficavam para pagar suas penitências, denominados de penitenciários, tinham como função o recolhimento dos mesmos para reflexão, a fim de se redimirem de seus erros e analisarem seus atos para depois poder voltar à liberdade. Assim escreveu: No entendimento da Igreja, já desde os seus primeiros tempos, a pena devia servir para a penitência, consistindo essa na “volta sobre si mesmo”, com espírito de compunção, para reconhecer os próprios pecados (delitos), abominá-los, e propor-se a não tornar a incorrer neles (isto é, não reincidir). A pena devia consistir, pois, em atos ou atividade e situações capazes de estimular a penitência, como, por exemplo (não exclusivo) o recolhimento a locais adequados, ditos penitenciários, cujo ambiente, suficientemente austero, favorecesse o necessário espírito de compunção com que haviam de ser praticados semelhantes atos e exercidas semelhantes atividades. Esclarece Leal60 que a Europa passa a adotar a prisão, no século XVI, para recolher mendigos, vagabundos, prostitutas e jovens delinqüentes, oriundos de problemas econômicos da época, o que ocasionou a necessidade de construções de várias prisões, que tinham por objetivo, com sua disciplina rígida, emendar o preso. No ensinamento de Murray61, a primeira prisão celular foi criada em 1677, na cidade de Florença, por Felipe Franci e que, em 1703, foi criada a primeira prisão celular na cidade de Roma, pelo Papa Clemente XI, considerada um grande progresso para na penologia, pois a situação da época não era nada apreciável. Ele relata que: 58 LEAL, César Barros. Ibid, p. 33. MIOTTO, Armida Bergamini. Temas Penitenciários. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992, p.25. 60 LEAL, César Barros. Ibid, p. 33. 61 MURRAY. Apud CASTIGLIONE, Teodolindo. Estabelecimentos Penais Abertos e Outros Trabalhos. São Paulo: Saraiva, 1959, p. 8. 59 31 ...Uma das primeiras prisões americanas foi uma mina abandonada no Connectcut. Os prisioneiros eram mantidos ali, num subterrâneo, na escuridão e na humidade. As primeiras prisões criadas nos Estados Unidos não eram muito melhores. De um modo geral, os prisioneiros de todas as categorias eram atirados juntos, sem discriminação de sexo ou idade, num só compartimento ou edifício. [sic] Pode-se notar, então, que o problema nas prisões, que se quer discorrer neste capítulo, já existia deste seu surgimento. Conforme ensina Leal62, antes disso não se falava em sistema penitenciário, algo que começou a tomar forma nos Estados Unidos e na Europa, a partir da contribuição de um grupo de estudiosos, entre eles, o monge Benedito Jean Mabillon, Cesare Beccaria, John Howard, Jeremias Bentham. As idéias destes idealizadores, que criticavam a opressão e incentivavam métodos de reabilitação do preso, associadas à segurança, foram inspiração para o sistema penitenciário moderno. Dos sistemas apresentados pelo autor63 supracitado, objetos de evolução ao longo do tempo, é interessante mencionar o do Coronel Manuel Montesinos y Molina, na Espanha, pois “preocupava-se em promover um tratamento humanitário, com trabalho remunerado, sem castigos corporais e com aplicação de regras orientadoras da execução, precursoras dos códigos e regulamentos penitenciários da atualidade”, diferentemente dos demais sistemas, caracterizados pelo isolamento e castigos corporais. O professor conclui que o conhecimento destes sistemas dá a compreensão da pena privativa de liberdade dos dias de hoje. Iniciou-se como custódia e termina como uma pena propriamente dita, em razão das mudanças sofridas ao longo do tempo. 2.2 AS PRISÕES A expressão prisão, hodiernamente, é usada tanto no sentido de ato de aprisionar, bem como o local para onde o preso deverá ser encaminhado. 62 63 LEAL, César Barros. Ibid, p. 34. LEAL, César Barros. Ibid, p. 36. 32 Sobre a primeira, conforme ensinamento de Mirabete64, “em sentido jurídico, é a privação da liberdade de locomoção, ou seja, do direito de ir e vir, por motivo ilícito ou por ordem legal”. Explica, ainda, o autor, que o termo tem significados vários no direito pátrio pois pode significar a pena privativa de liberdade (“prisão simples” para autor de contravenções; “prisão” para crimes militares, além de sinônimo de “reclusão” e detenção”), o ato da captura (prisão em flagrante ou em cumprimento de mandado) e a custódia (recolhimento da pessoa ao cárcere). Assim, embora seja tradição no direito objetivo o uso da palavra em todos esses sentidos, nada impede se utilize os termos “captura” e “custódia”, com os significados mencionados em substituição ao termo “prisão”. Em continuidade, esclarece o supra-citado doutrinador65, que: Rigorosamente, no regime de liberdades individuais que preside o nosso direito, a prisão só deveria ocorrer para o cumprimento de uma sentença penal condenatória. Entretanto, pode ela ocorrer antes do julgamento ou mesmo na ausência do processo por razões de necessidades ou oportunidade. Essa prisão assenta na Justiça Legal, que obriga o indivíduo, enquanto membro da comunidade, a se submeter a perdas e sacrifícios em decorrência da necessidade de medidas que possibilitem ao Estado prover o bem comum, sua vítima e principal finalidade. Por isso foi ela prevista nas Constituições de 1924, 1891, 1934, 1937, 1946, 1967, 1988... Sobre o segundo sentido da palavra prisão, como local onde serão recolhidos os sujeitos que sofreram a prisão, referida nas primeiras linhas, tem-se a dizer o se segue. Havendo a necessidade de recolher alguém ao cárcere, seja pelo período de averiguação e julgamento ou para cumprir a pena condenatória, Thompson66 apresenta os seguintes tipos de estabelecimentos prisionais, com as respectivas características, que deveriam atender às disposições legais: Prisão comum – aquela destinada a recolher o indivíduo por um curto período de tempo, para averiguações preliminares no que diz respeito à administração policial. 64 MIRABETE, Julio Fabbrini. Ibid, p. 359-360. 65 MIRABETE, Julio Fabbrini. Ibid, p. 362. THOMPSON, Augusto. Ibid, p. 99-100. 66 33 São os conhecidos xadrezes das delegacias, cadeias públicas, cadeias de comarca, e similares. A legislação não impõe a observância de quaisquer requisitos especiais, quer quanto ao tipo de acomodações quer quanto ao regime de operação. Presídios – aqueles destinados a abrigarem os suspeitos cujo julgamento ainda não ocorreu e que gozam da presunção de inocência. Estes locais têm finalidade meramente custodial. O conforto, no que diz respeito a acomodações deve ser levado em consideração, visto que a estada do detento pode se prolongar, até mesmo por anos. Prisão especial ou seção especial de prisão comum – destina a receber os culpados da prática de contravenções. “Sem rigor penitenciário, quanto ao regime, está dispensada de dispor de cubículos individuais e de oferecer ocupação laborial aos internos.” Comenta, ainda, o autor que a lei parece atribuir-lhe finalidade punitiva e intimidativa – ausente nos tipos anteriores – isenta de propósito reeducacionais...” Penitenciária ou, para condenados à detenção, seção especial de prisão comum – Seu objetivo estaria direcionado às três funções da pena, ou seja, punir retributivamente, prevenir pela intimidação e regenerar através da ressocialização. Para isso, a lei exige, entre outras, que estas acomodações tenham cubículos individuais para repouso noturno e seja oferecido trabalho remunerado, o que implica em circulação intramuros. O autor67 ainda faz uma comparação da passagem dos presos por esses tipos de prisão, ou seja, o sistema prisional, com o sistema educacional. Comenta que, assim como os estudos se iniciam pela escola primária, passando pelas outras séries, até à faculdade, assim ocorre com os presos ao percorrerem os presídios, iniciam pela prisão comum, até chegarem à penitenciária. Como ocorre no sistema educacional, nem todos chegam ao final da jornada, por inúmeras razões, mas diferente deste, bom é que a saída ocorra bem cedo, ou melhor, que nem se inicie. Sá68 refere-se a uma jornada empreendida pelo preso, denominando-a de sistema progressivo, ou seja, aquele adotado pelo Código Penal Brasileiro, promulgado 67 THOMPSON, Augusto. Ibid, p. 101. SÁ, Geraldo Ribeiro de. A Prisão dos Excluídos – origem e reflexão sobre a pena privativa de liberdade. Rio de Janeiro: Diadorim, 1996, p. 134. 68 34 em 1940, e levada a efeito pela LEP, esclarecendo que se trata de um sistema que adota os regimes previstos em lei, quais sejam, fechado, aberto e semi-aberto. Estes seriam, então, etapas pelos quais os presos passariam, até serem postos em liberdade, mediante critérios legais e seus méritos, ou seja, por bom comportamento. Percebe-se aqui, a trajetória inversa explanada anteriormente por Thompson. Ainda sobre os tipos de prisão, Goulart69 apresenta outra classificação, tendo em vista as condições de segurança e as classes de delinqüentes. São elas: Prisões de segurança máxima, prisões de segurança média e prisões de segurança mínima, esta também chamada de prisão aberta, que, em linhas gerais, são assim identificadas: Prisões de segurança máxima – caracterizada por construções maciças, erguidas com materiais sólidos, com altos muros, torres com refletores e guardas armados. A vigilância é constante, o que propicia uma tensão tanto para os presos como para o pessoal administrativo. O custo de sua manutenção é elevado. São estabelecimentos destinados para os delinqüentes de alta periculosidade e agressividade, porém, como ressalta o autor, “essa forma de reclusão apresenta caráter excepcional, devendo ser aplicado como primeiro estágio do cumprimento da pena para os perigosos e não como forma integral da execução”, pois o que se espera, é que o preso seja transferido para outro estabelecimento, tão logo obtenha nova e mais favorável classificação. As penitenciárias são, quase sempre, prisões de segurança máxima. Prisões de segurança média – estas não têm, como as prisões de segurança máxima, meios de segurança próprios. Sua estrutura arquitetônica não é tão marcante e a disciplina é menos rígida e o seu custo é bem menor. Destinam-se aos delinqüentes de periculosidade média. Esclarece o autor70, que “na verdade, o que predomina hoje na grande maioria dos países é a prisão de segurança média, onde a reeducação dos delinqüentes se desenvolve com mais ampla facilidades.” Presídios de segurança mínima – também conhecidas como prisões abertas, essas instituições vêm se apresentando em modalidades diversas, tais como fazendas, 69 70 GOULART, Henny. Ibid, p. 114-117. GOULART, Henny. Ibid, p. 116. 35 áreas de trabalho agrícolas e criação, oficinas variadas, propiciando a diversificação de aprendizagem. Esclarece Goulart71, que no entender de Neuman, a prisão aberta assinala “o aparecimento e um novo tipo de estabelecimento penitenciário informado por uma filosofia essencialmente precentiva e ressocializadora”. O que se espera, do condenado que nela permanece, que não se sinta retido pelo constrangimento físico, mas pela própria vontade, até que dure a pena imposta ou receba algum benefício legal, pois como afirma Paul Cornil72, o fundamento básico do chamado regime aberto é despertar no condenado, “pela confiança que nele é depositada, o sentido de auto-disciplina e o sentimento da própria responsabilidade, como meio poderoso de se obter sua reincorporação social.” Apesar de ser entendimento do autor que a prisão aberta é a melhor opção para o cumprimento de uma sentença condenatória, ela tem sido alvo de diversas críticas, em razão da possibilidade de fugas, acesso ao mundo exterior, facilitando uso e contrabando de bebidas, drogas, entorpecentes, armas... o que pode ser determinante para a execução de novos crimes. O mencionado doutrinador73 esclarece que a penologia moderna, visando o cumprimento da pena dentro de sua função precípua, a de reeducar e ressocializar, “vem procurando na prática eliminar essas diferenças, no intuito de que um sempre crescente número de condenados possam ser incluídos em institutos de segurança mínima, em condições o mais semelhantes possível com a vida livre.” Não se pode relatar, no momento, por falta de informação, quais os índices ou porcentagens de presos encaminhados para cada um desses mencionados tipos de prisão, mas o que se sabe, por percepção pessoal, é que nos locais onde se encontram recolhidos para averiguações ou em cumprimento da pena, após serem condenados, os presos vão passar pela experiência desagradável de se ver tolhido da liberdade e passar a conviver com a realidade dos cárceres. Mesmo nas prisões abertas, onde se apresentam evidentes vantagens para o preso, a liberdade do mesmo não é completa, pois, como se diz, é uma liberdade vigiada, havendo restrições para o ir e vir. 71 GOULART, Henny. Ibid, p. 116. CORNIL, Paul. Apud GOULART, Henny. Ibid, p. 117. 73 GOULART, Henny. Ibid, p. 114. 72 36 2.3 REALIDADE PENITENCIÁRIA BRASILEIRA A mídia, veículo de grande repercussão dos tempos atuais, tem tentado mostrar ao seu público, de forma fiel, através de filmes e reportagens jornalísticas, a realidade do ambiente carcerário brasileiro, e o que se pode constatar é que não corresponde, em nada, ao que se espera. Dia após dia constata-se a detenção de novos delinqüentes que, ao serem condenados ou mesmo na espera de julgamento, são colocados em um sistema penitenciário inadequado, gerando a superpopulação carcerária com gravíssimas conseqüências, como se observa pelas sucessivas rebeliões de presos. A superpopulação é uma realidade presente na maioria das prisões brasileiras. Torna-se origem imediata de muitos problemas, sobretudo a promiscuidade que promove toda sorte de contaminação. Prolata Thompson74 que o limite de capacidade da população carcerária geralmente extrapola o permitido, ou melhor, o aceitável. Relata que, onde o ideal é cinco camas por alojamento, são utilizados beliches e o número de presos é aumentado para doze; ou para vinte e seis, se todos os mobiliários forem retirados e utilizado um estrado inteiriço, a cobrir toda a extensão da cela – sistema este utilizado no Presídio de Água Santa, no Rio de Janeiro. Outra situação também mencionada é a que ocorria em 1967, no antigo Galpão, hoje Instituto Presídio Evaristo de Morais, onde o local, com capacidade para cinqüenta alojamentos, com dez presos em cada um, passou a abrigar mil e quinhentas ou duas mil pessoas, em razão das autoridades terem se limitado a cercar a área com arame farpado, deixando que os residentes se amontoassem, dormindo no chão puro. Comentando sobre os limites aceitáveis da população carcerária, por estabelecimento, Mirabete75 prolata: No Brasil, porém, tais limitações não têm sido obedecidas, exemplificando-se com a Casa de Detenção de São Paulo, que, antes de sua desativação, abrigava mais de 5.500 pessoas. A superpopulação dos presídios no Brasil constitui um dos mais graves problemas penitenciários, longe de ser 74 75 THOMPSON, Augusto. Ibid, p. 102. MIRABETE, Julio Fabbrini. Ibid, p. 257. 37 resolvido, pois a par do incremento da criminalidade violenta, a construção de novos estabelecimentos penais não se tem mostrado suficiente para reduzir o déficit prisional no país. Esse quadro agrava-se devido ao expressivo contingente de população. O número de presos, a cada dia, cresce e o que se vê é a impotência dos diretores de presídios diante da situação caótica. Medidas alternativas vão sendo buscadas, a fim de se controlar a situação, mas não solucioná-la. Thompson76 exemplifica estas alternativas, dizendo que, com o número reduzido de guardas para cuidar de centenas ou milhares de preso, o jeito é mantê-los confinados em suas celas dia e noite. No caso da alimentação, se só há comida para quinhentos, para duas refeições ao dia, alimentase o dobro com uma única refeição diária. O grande problema, há que se concordar, é a superpopulação carcerária. Damásio de Jesus, na apresentação da obra de Leal77 relata que o autor, em observação pessoal às instituições penitenciárias superlotadas de todos os Estados da Federação, “demonstra o descompasso entre a Constituição Federal, a Lei de Execução Penal e a realidade penitenciária do País.” Sobre a Casa de Detenção de São Paulo, um exemplo marcante no Brasil, 78 Varella relata que o estabelecimento foi construído para albergar apenas presos à espera de julgamento, no entanto, ladrões primários condenados a poucos meses conviviam com criminosos condenados a mais de um século. Uma área abrangendo 9 pavilhões, abrigava mais de 7.200 homens, na época em que começou seu trabalho voluntário de prevenção à AIDS. No pavilhão Cinco, explana, “é o pavilhão mais abarrotado da cadeia. Movimento intenso nos corredores. Há momentos em que não se consegue alojar um preso a mais sequer. Moram ali 1.600 homens, o triplo do que o bom senso recomendaria para uma cadeia inteira”. Em outro momento, o autor descreve as condições em que muitos presos dormiam, diante da situação premente: Nos grandes xadrezes coletivos, como os de Triagem, com sessenta, setenta pessoas, as camas são substituídas por colchonetes de espuma de borracha, dispostos lado a lado 76 THOMPSON, Augusto. Ibid, p. 103. LEAL, César Barros. Ibid, p. 17. 78 VARELLA, Drausio. Estação Carandiru. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 20 e 27. 77 38 no chão. A redução do espaço pode ser tal que os homens dormem invertidos, os pés de um no rosto do companheiro: - Que não tem cabimento ficar dois malandros esfregando o nariz de um no outro. Os menos afortunados sequer têm acesso ao pequeno conforto da espuma, pois os tais colchõezinhos faltam ou são vendidos para pagar dívidas, como é rotina entre os craqueiros. Nesta situação, deitam-se sobre cobertores ou pedaços de papelão, a sandália de dedo como travesseiro. Essa superpopulação gera promiscuidade sexual, que por sua vez gera doenças, associadas à dor e degradação, atingindo a integridade física e moral do preso, é o que, de forma unânime, narram as supra citadas obras. A respeito ensina Costa79: Com o crescimento da população carcerária e com a falta de recursos públicos para investimento na área, o problema atualmente, manifesta-se na forma de violentas rebeliões nos presídios e penitenciárias, comumente divulgadas pela imprensa. Alunos do Curso de Direito da Grande Porto Alegre, em visita acadêmica a algumas instituições prisionais locais, constataram o mesmo problema ora estudado. Um deles, Lima80, relata o seguinte: A superlotação é talvez o mais grave e crônico problema que amargura o sistema prisional brasileiro. Há mais de uma década, autoridades prisionais do Brasil estimaram que o país necessitava de 50.934 novas vagas para acomodar a população carcerária existente. Desde então, embora alguns esforços tenham sido realizados para resolver o problema, a disparidade entre a capacidade instalada e o número atual de presos tem apenas aumentado. Até o ano de 1997, com crescimento do número de presos, o déficit na capacidade instalada dos presídios era oficialmente estimada em 96.010. Em outras palavras, para cada vaga nos presídios, havia 2,3 presos. A capacidade real de uma prisão é difícil de ser objetivamente estimada e, como resultado disso, é fácil de ser manipulada. [...] Como todos os administradores prisionais sabem, prisões superlotadas são extremamente perigosas: aumentam as tensões, elevando a violência entre os presos, estimulam tentativas de fuga e ataques aos 79 COSTA, Alexandre Marino. O Trabalho Prisional e a Reintegração Social do Detento. Florianópolis: Insular, 1999, p. 16. 80 LIMA, Fabio Bastos. Realidade Prisional Gaúcha. Ensino Jurídico e Realidade Prisional: impressões dos acadêmicos de Direito do UniRitter sobre presídios gaúchos. Porto Alegre: UniRitter, 2005, p.36-37. 39 guardas. Não é surpresa que uma parcela dos incidentes de rebeliões, greves de fome e outras formas de protesto nos estabelecimentos prisionais do país sejam diretamente atribuídos à superlotação. Em suma, os presos vivem em condições subumanas, o que propicia a violência. Esse panorama é que torna a vida nos presídios incerta e insegura. Outra questão a ser levada em consideração, além do aspecto físico das prisões, é o que diz respeito à capacitação da parte do contingente administrativo. Abordando este assunto, ensina Goulart81: Modernamente, não subsiste qualquer dúvida de que os funcionários dos estabelecimentos prisionais podem ser agentes muito eficazes na reeducação dos condenados, pela estreita convivência que com eles mantém, e se acreditarmos nisso chegaremos à conclusão que nem os programas mais elaborados, nem os estabelecimentos mais perfeitos, poderão obter essa reforma sem um pessoal devidamente preparado. No entanto, fazendo comentários sobre o panorama brasileiro Goulart82, relata: A preparação do pessoal encarregado das prisões [...] é setor dos mais importantes, não mereceu ainda, no campo brasileiro, a atenção que se faz mister. Não contamos com centros de formação ou seleção, quer no plano federal, quer no estadual, para especialização ou profissionalização do pessoal de que tanto necessitamos. Thompson83, que teve uma intensa convivência com os presos, primeiro como advogado dos mesmos e depois como Superintendente do Sistema Penal do Estado da Guanabara (1965), diz conhecer os dois lados, dentro e fora dos muros da prisão. Decepcionado, confessa não acreditar que possa haver, dentro do sistema carcerário, a possibilidade de recuperação do preso. A respeito, relata: Ora, apesar de existir uma distância bastante grande entre o escalão mais alto da administração e a classe mais inferior dos internos, a só circunstância de estarem vinculados, no âmbito estreito da prisão, faz com que se estabeleça uma interação entre eles, com conseqüente influência recíproca. 81 GOULART, Henny. Ibid, p. 134. GOULART, Henny. Ibid, p. 140. 83 THOMPSON, Augusto. Ibid, p. 25-26. 82 40 Intrigante é a sua explicação sobre o assunto. Diz ele que a convivência acaba por proporcionar uma adaptação ao meio, referindo-se especialmente à transformação sofrida pelo pessoal da parte administrativa, o que talvez explicaria as agressões físicas a que são submetidos os presos quando violam algum regulamento interno, como ser encontrado com uma dose de cachaça ou coisa parecida. Na sua obra Estação Carandiru, Varella84 relata, com muita propriedade, situações vividas na Casa de Detenção de São Paulo, hoje extinta, mas que retrata com certeza o tratamento dispensado aos presos pelos agentes na maioria dos estabelecimentos prisionais ainda existentes: “- Vocês estão chegando na Casa de Detenção de São Paulo para pagar uma dívida com a sociedade. Aqui não é a casa da vovó e nem da titia, é o maior presídio da América Latina. Aqueles que forem humildes e respeitarem a disciplina, podem contar com os funcionários para ir embora do jeito que a gente gosta: pela porta da frente, com a família esperando. Agora, o que chega dizendo que é do Crime, sangue nos olhos, que é com ele mesmo, esse, se não sair no rabecão do Instituto Médico legal, pode ter certeza que vamos fazer de tudo para atrasar a vida dele. Gente assim, nós temos mania de esquecer aqui dentro.” Varella85 ainda comenta: “Dadas as condições do presídio, é impossível acabar com as agressões, porque no convívio com os ladrões alguns funcionários se embrutecem de tal modo que não enxergam outra alternativa para impor ordem.” Observa-se, então, que deve haver um pacto entre eles, para que o preso possa ter uma estada satisfatória na prisão, como se eles não tivessem direitos a serem velados. Sá86 também aborda este tema, relatando sua pesquisa de campo no Presídio Santa Terezinha: De um lado, o preso obtém certa conivência dos guardas em troca da colaboração do interno nos serviços essenciais e na manutenção da ordem. De outro, o preso concorda em colaborar, mas troca de certo grau de “tolerância” por parte do custodiador. Dessa forma, presos e guardas, ao satisfazer seus interesses, perpetuam a “paz”, no cotidiano prisional. 84 VARELLA, Drausio. Ibid, p. 22. VARELLA, Drausio. Ibid, p, 115. 86 SÁ, Geraldo Ribeiro de. Ibid, p. 171 e 172. 85 41 De um lado, os presos obtêm cuidados do custodiador, fazendo cessar o espancamento e garantindo a presença da mulher e de outros entes queridos durante a visita. De outro lado, o custodiador evita motins, garante a “ordem” da cadeia atendendo solicitações do custodiado. O que se espera, na verdade, é que os presos, considerados eles os criminosos, sejam influenciados para o bem, pelos agentes prisionais, mas ao que parece, isso não ocorre. Esclarece o autor que a administração dos presídios encontra-se despreparada, desqualificada, e até desestimulada (em razão dos baixos salários), impedindo que haja a recuperação dos detentos, acreditando que seu papel é, única e exclusivamente, evitar fugas e manter a ordem interna, a qualquer custo. Goulart87 aborda o assunto que trata sobre as principais categorias profissionais que atuam junto às penitenciárias e ressalta a dificuldade de pessoal qualificado e bem remunerado. Suas palavras a respeito são: Por fim, ponto importante a ser considerado é a remuneração adequada para todo o pessoal encarregado das prisões, retribuição que deve ser digna e suficiente para atrair pessoas capacitadas, que desejem realmente dedicarse a trabalho tão relevante. Varella, em suas crônicas na obra anteriormente citada, reserva um espaço para contar um pouco sobre a vida, também difícil, dos funcionários da Casa de Detenção de São Paulo. Ele relata: A vida que levam é dura. Para sobreviver dignamente, o salário não dá. Os que teimam na honestidade, fazem bico como segurança em banco, supermercado, loja, boate ou casa de tolerância. [...] A jornada de trabalho é interminável. Os que dão plantão noturno saem à sete da manhã, diretamente para o bico. Cama, somente na noite seguinte, quando folgam na cadeia. Não resta dúvida que os profissionais, sejam eles técnicos ou administrativos, precisam estar engajados no trabalho de reeducação do preso, pois são eles que têm o contato diário com os mesmos, para isso precisam estar preparados e motivados. 87 GOULART, Henny. Ibid, p. 138-139. 42 Outra questão importante, que não se pode deixar de lado, é a ociosidade. Varella88 narra: “Mente ociosa é moradia do demônio, a própria malandragem reconhece”. Sobre este assunto, explana Sá89: A ociosidade, eleita e imposta como valor pelo próprio Estado aos membros da “sociedade prisional”, é suportada por esses através do emprego das estratégias do jogo, tóxido e sono, entre outros. Portanto, ao escolher e fixar a ociosidade como valor, o Estado, não em nível de discurso, mas de prática, está impondo hábitos, isto é, maneiras de ser e de agir delinqüentes a uma população infratora e delinqüente, com o qual o próprio poder público assumiu o compromisso de ressocialização, isto é de transformar em trabalhadores honestos, ao mesmo tempo que os pune. [...] A mesma ociosidade, que propicia certa tranqüilidade ao preso na vida carcerária e relativa facilidade no percurso dos circuitos da vida criminal, garantirá seu envolvimento com a prática delinqüente dentro e fora do espaço prisional. Indiscutível é a percepção de que se tem que o preso dispõe de tempo, em abundância. Isso, neste cenário deplorável, é uma ameaça para o que se pretende com relação à sua recuperação. Em sua pesquisa, analisando o tempo que o preso dispõe dentro dos presídios, Lima90 desabafa: As oportunidades de educação e treinamento são escassas, oferecendo aos detentos poucas válvulas de escape construtivas para suas energias. Em algumas prisões até mesmo a recreação é limitada. A preguiça e o tédio daí resultantes agravam as tensões entre os detentos e os agentes penitenciários e policiais militares. Constata-se, assim, a importância de se manter o preso ocupado, seja com trabalho, esporte, leitura, enfim, algo que possa ser de proveito para ele, no sentido de fazer com que se desenvolva, física e mentalmente. Após viagens pelos Estados brasileiro, na condição de Professor de Direito Penitenciário da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará, Leal91 relatou: 88 VARELLA, Drausio. Ibid, p. 141. SÁ, Geraldo Ribeiro de. Ibid, p.179. 90 LIMA, Fábio. Ibid, p. 32. 91 LEAL, César Barros. Ibid, p. 57-58. 89 43 “... tive a chance de ver, pessoalmente, o desamparo dos estabelecimentos penais, convertidos em sua maioria, em redutos de promiscuidade e violência.” O autor cita, então, para reflexão, o item 100 da LEP: É de conhecimento que ‘grande parte da população carcerária está confinada em cadeias públicas, presídios, casas de detenção e estabelecimentos análogos, onde prisioneiros de alta periculosidade convivem em celas superlotadas com criminosos ocasionais, de escassa ou nenhuma nocividade, e pacientes de imposição penal prévia (presos provisórios ou aguardando julgamento), para quem é um mito, no caso, a presunção de inocência. Neste ambiente de estufa, a ociosidade é a regra; a intimidade inevitável e profunda’. Esta realidade emperra a tarefa daqueles que desempenham suas atividades junto aos presídios. Sá92 fala que é difícil a tarefa, na maioria tentativas frustradas, em se chegar a um consenso entre os terapeutas, assistentes sociais e agentes prisionais, a fim de conciliar as suas atividades. Uns pensando na recuperação, outros na punição, sem que haja a fusão das duas. A situação constatada não é privilégio dos dias atuais. Exemplo disto, é o relato apresentado pelo professor Castiglione93, ao escrever sua obra em 1959, onde prolata: Quando se afirma que as prisões, no seu feitio tradicional, estão em declínio, é possível haja quem suponha que os males, que se lhes apontam, surgiram recentemente, como frutos que se deterioraram neste ou no século passado. Nada mais ilusório. O autor, na verdade, quer sugerir que a situação anterior era pior do que o tempo em que ele estava vivendo, alegando que a conscientização humana, quanto aos males infligidos ao preso, estava melhorando. Quanto a isto ele afirma: Em outros tempos, as prisões eram piores, e as censuras menores e menos generalizadas. Não foram as prisões que pioraram, mas os laços de solidariedade humana que, desenvolvendo-se, pouco a pouco perceberam as deficiências dos lugares em que se 92 93 SÁ, Geraldo Ribeiro de. Ibid, p. 47. CASTIGLIONE, Teodolindo. Ibid, p. 7. 44 expiam crimes. Se os homens, a despeito das objurgatórias dos pessimistas, não se tivessem tornado, em linhas gerais, mais compreensivos e melhores, a ferocidade dos velhos castigos ainda seria admitida. Infelizmente, apesar dos clamores da sociedade em geral, em prol de tratamento digno ao presos, constata-se que a situação vai de mal a pior. Esse entendimento é da maioria dos autores. Como exemplo, ainda, temos a citação de Goulart94, referindo-se aos estabelecimentos prisionais brasileiros: A quase totalidade dos nossos presídios está rotulada como deficiente ou muito ruim, não apresentando qualquer estrutura onde trabalho, instrução ou tratamento médico possam ser adequadamente praticados, quer pela deficiência das construções, aparelhamento e pessoal, quer pela constante super-população. Nesse mesmo sentido, ensina Costa95: A experiência mostra que os presos não são recuperados no atual modelo praticado pelas instituições prisionais. Há falta de recursos, infra-estrutura das instalações e inexistência de prioridade para com o desenvolvimento da cidadania do preso. Pode-se dizer que esta é a situação encontrada na maioria dos casos, porém, tem-se conhecimento da existência de estabelecimentos prisionais que estão colocando em prática o que tanto se almeja. Conforme relato de Alceu96, orientador deste estudo, há um presídio no município de Joinville-SC, onde a higiene e ordem são características fundamentais do ambiente. Somente o diretor é agente do Governo Estadual, sendo que os demais, responsáveis pela limpeza, lavanderia, cozinha, guarda... são terceirizados. Explica que o preso, ao ingressar neste estabelecimento, recebe alguns pares de alpargatas e roupas com seus respectivos nomes para identificação. Seus cabelos são cortados da mesma forma e a barba não é permitida, dando-lhes uma aparência asseada e uniforme. Não é permitido fumar no local e tão pouco a entrada de 94 GOULART, Henny. Ibid, p. 104. COSTA, Alexandre Marino. Ibid, p. 17. 96 OLIVEIRA JR, Alceu. Coordenador do Curso de Direito da Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI São José. 95 45 alimentos. Isso impede que haja uma alternativa de “moeda de troca” a circular entre os presos, o que garante a igualdade entre eles, sem poder de barganha ou chantagem. Há de se reconhecer que tal relato representa uma ilha num vasto oceano, mas, como se pode observar, é possível mudar a situação que foi apresentada no início deste tópico, porém, não é este o objetivo do presente estudo. O que se quer mostrar é que existe, também, apesar de insignificante, estabelecimentos prisionais que fogem à regra, ou seja, a maioria esmagadora. Muitos são os relatos sobre a péssima situação dos cárceres e, pelo visto, ela não difere de um país para outro. Exemplo disto, é o comentário realizado por autores espanhóis97, conforme segue: Lá sórdida historia de la prisión revela que ésta ha sido instrumento de vulneración de otros derechos fundamentales distintos del de la libertad [...] Nuevas razones vienen suministradas por la dinámica actual de la cárcel configurada como una institución deliberadamente dirigida a la sumisión y sometimiento del interno y en la que existe un absoluto desequilíbrio entre las fuerzas que conviven, esto es, todo el aparato de castigar y de reeducar de un lado y do otro, el individuo en tanto que sujeto receptor del dolor y de valores frecuentemente ajenos. Após estas considerações, constata-se que o ambiente carcerário, seja ele nacional ou estrangeiro, conforme os países citados anteriormente, não tem favorecido à efetiva aplicação do que estabelece a lei, em especial, no Brasil, a LEP. Apesar deste cenário sombrio, em que a prisão intensifica sua face corruptora, estimulando a criminalidade e a reincidência, pessoas, do setor público e privado, não têm se deixado esmorecer diante do caos. É o que será apresentado no próximo capítulo, tentando mostrar, ao leitor deste estudo, que as tentativas são válidas e devem ser perseveradas. 97 BACHS I ESTANY, Josef María. BALAGUER I SANTAMARÍA, Javier. GISBERT I GISBERT, Antonio. SÁEZ, José Antonio Rodríguez. Coordenador: Inãki Rivera Beiras. Cárcel y Drechos Humanos. Un enfoque relativo a la defensa de los derechos fundamentales de los reclusos. Barcelona: J.M. Bosch Editor, 1992, p. 93-94. 46 3 RESSOCIALIZAÇÃO E RELIGIÃO COMO ALTERNATIVA 3.1 FATORES IMPEDITIVOS À RESSOCIALIZAÇÃO Diante desse quadro, apresentado no capítulo anterior, é difícil, ou quase impossível, acreditar que surta efeito positivo um trabalho, qualquer seja, que tenha por objetivo a ressocialização do preso. Como visto, o ambiente carcerário não é propício para a ressocialização do preso. Tudo está errado, ambientes físicos inadequados, convivência com os não criminosos sem caráter (não dando exemplo de honestidade), promiscuidade, ociosidade, onde se ensina e se aprende novas técnicas para a prática dos tão conhecidos e inúmeros crimes. Um local corrompido, onde tudo contribui para o mal – mal pensamento, mal comportamento. Como já visto anteriormente, no primeiro capítulo, as penas eram mais severas e até mesmo irracionais, porém, se forem levadas em consideração as condições dos presídios atuais, concluir-se-á que as conseqüências, advindas das penas cruéis ou da convivência nos presídios, não vão diferir em muito, pois, ambas, atingem a dignidade e integridade humana. Neste sentido, ensina LEAL98, que a prisão atinge o condenado ou o preso preventivamente em sua integridade física e em sua integridade moral. Afirma que ela “leva à submissão passiva ou, ao contrário, a um estado de revolta que se traduz por uma agressividade crescente e pelo recurso à violência, de que as sublevações penitenciárias são a expressão”. Está evidenciado que a LEP não está sendo aplicada como deveria, deixando de cumprir com os seus propósitos, em especial, a ressocialização. Esta situação não é um privilégio da atualidade, Castiglione99, citando Murray, na sua obra escrita em 1953 declara: 98 99 MARC ANCEL. Apud LEAL. César Barros, Ibid, p. 21 CASTIGLIONE, Teodolindo. Ibid, p. 12. 47 As prisões ainda brutalizavam e degradavam um número tão grande dos seus habitantes, que só com muito esforço de imaginação podem chamar-se lugares de regeneração. [...]Prisões assim não educam: corrompem; não diminuem: aumentam os reincidentes; não elevam a conduta de criminosos: rebaixam, aviltam; não robustecem a fôrça moral que, pequena que seja, se esconde em todos os homens; dificultam uma possível recuperação; não preparam uma reintegração harmônica na sociedade e , por vêzes, chegam a esfacelar a personalidade do delinqüente. [sic] Esta preocupação com a recuperação do preso não existia há muitos anos atrás. Ensina Goulart100, que durante muito tempo não houve maior preocupação com o tipo ou a forma de estabelecimento prisional, sendo suficientes as condições de segurança que apresentasse, assim, gêneros diversos de construções, como torres, castelos e velhos conventos foram constantemente utilizados como prisões. No entanto, acrescenta o autor, quando, a prisão deixa de ser um local apenas de guarda do condenado, passando a ser considerada como pena principal, a segurança dos estabelecimentos prisionais, para evitar possíveis fugas, cresce de importância. E a partir do século XVI, a idéia de recuperação dos condenados à prisão é intensificada, delineando-se tipos de estabelecimentos prisionais, com a construção das chamadas “casas de correção”, na Holanda, Inglaterra e Alemanha, fixados em linhas mais precisas com a criação dos reformatórios americanos. Afirma Castiglione101 que o tratamento do preso mudou “porque se começou a compreender que no criminoso também havia um homem...”. A perda de liberdade, como pena imputada ao criminoso, é, por si só, a punição prevista em lei, no entanto, ao que se percebe, a avalanche de conseqüências inerente ao cárcere que lhe sobrevém, é considerada por muitos, como merecida e aceitável. Por outro lado, pensamentos racionais têm se disseminado pelo mundo, em prol dos direitos do preso, visando a sua justa e correta punição, dentro dos princípios que norteiam o direito. Em sua reflexão, prolata ainda Leal102 que: 100 GOULART, Henny. Ibid, p. 113 e 114. CASTIGLIONE. Ibid, p. 8. 102 LEAL, César Barros. Ibid, p. 6-7. 101 48 É inadmissível, sob todos os aspectos, o generalizado desprezo, sobretudo das elites, pela condições humana do recluso, obrigado a viver em completo isolamento ou na convivência promíscua de outras pessoas, sem a separação que se exige como condição prévia para a individualização da execução da pena, em prisões superlotadas, num flagrante desrespeito à conquistas, duramente obtidas neste campo, no curso de séculos. Continua, afirmando que: “Impõe-se um esforço comum, universalizado, com o objetivo de tornar a prisão, ainda largamente empregada [...], menos artificial, ou, em outras palavras, mais humana.” Não se quer dizer que a prisão deva ser banida, mas sim que seja utilizada da forma adequada, obedecidos os critérios estabelecidos em lei. Nesse mesmo sentido, ensina Mirabete103 A ressocialização não pode ser conseguida numa instituição como a prisão. Os centros de execução penal, as penitenciárias, tendem a converter-se num microcosmos no qual se reproduzem e se agravam as graves contradições que existem no sistema social exterior (...). A prisão não cumpre uma função ressocializadora. Serve como instrumento para a manutenção da estrutura social de dominação. A opinião entre os doutrinadores é unânime, todos afirmam ser impossível ressocializar o preso no ambiente que hoje se conhece. Damásio de Jesus, na apresentação da obra de Leal104, escreve que o inconformismo aponta “para a necessidade de conscientização pública acerca da importância da humanização do sistema penitenciário, esclarecendo-se que a cidadania somente se preserva num modelo que corrija as distorções existentes, sob pena de perpetuar-se uma falácia”. Para se obter bons resultados, em qualquer situação, exige-se interesse e preparo, ou seja condições favoráveis a fim de que se alcance o desejado. Evandro Lins e Silva, no prefácio da obra referida acima105, faz uma afirmação interessante: “...o gênero humano deve ser tratado com compreensão e inteligência. Para os seus erros e as suas fraquezas, a violência e o rigor demasiado 103 MIRABETE, Julio Fabbrini. Apud BITENCOURT, Cezar Roberto. Ibid, p. 250. LEAL, César Barros. Ibid, p. 17. 105 LEAL, César Barros. Ibid, p. 19. 104 49 das sanções jamais foram formas hábeis ou racionais de corrigir eventuais desvios de conduta.” Como afirmou o insigne Evandro Lins e Silva106: (...) é de conhecimento geral que a cadeia perverte, deforma, avilta e embrutece. É uma fábrica de reincidência, é uma universidade às avessas, onde se diploma o profissional do crime. A prisão, essa monstruosa opção, perpetua-se ante a insensibilidade da maioria como uma forma ancestral de castigo. Positivamente, jamais se viu alguém sair de um cárcere melhor do que quando entrou. [...] A concorrer para essa ultrajante realidade estão a incúria do governo, a indiferença da sociedade, a lentidão da justiça, a apatia do Ministério Público e de todos os demais órgãos da execução penal incumbidos legalmente de exercer uma função fiscalizadora, mas que, no entanto, em decorrência de sua omissão, tornam-se cúmplices do caos. Espera-se, apesar de parecer uma utopia, que a prisão seja uma passagem do criminoso por um estágio de reflexão e transformação. Deseja-se que o condenado passe por ela sem que a ela retorne. Nesse sentido ensina Garrido Genovez107: <Reeducación>, <reinserción social>, <llevar en el futuro en responsabilidad social una vida sin delitos>; en una palabra: <resocialización del delincuente>. De un modo u otro, todas estas expressiones coinciden en asignar a la ejucución de las penas y medidas penales privativas de libertad una misma función primordial: una función reeducadora y correctora del delincuente. Una función que ya desde los tiempos de von Liszt y de los correccionalistas españoles, se considera por un sector de los penalistas como la función más elevada y principal que se puede atribuir a todo sistema penitenciario moderno. No entanto, as considerações apresentadas levam ao entendimento que o sistema penitenciário, há muito, não vem correspondendo ao que se espera, como já se afirmou anteriormente. Na obra de Goulart108 esta situação já era prevista: 106 LEA, César Barros. Ibid, p. 65 – 71. GARRIDO GENOVES, Vicente. REDONDO ILHESCAS, Santiago. La Intervencion Educativa en el Médio Penitenciário. Una década de reflexion. Madrid: Editorial Diagrama, 1992, p. 174. 107 50 Por outro lado, considerando o estado lamentável em que se encontra quase todo o sistema penitenciário do país, especialmente a super-lotação de bom número de presídios, que não oferecem a menor condição para qualquer tipo de tratamento e onde os condenados se encontram sem possibilidade de isolamento noturno, sem aprendizagem ou aperfeiçoamento de ofício, sem remuneração...sem a devida separação entre condenados de maior ou menor periculosidade, pois na quase totalidade dos casos esta não é pesquisada ou levantada de forma técnica, só podemos concluir que o novo Estatuto não vigorará na prática tão cedo pois lhe falta a base ou alicerce seguro para aplicação dos mencionados dispositivos. As evidências são fortes e claras e não se pode discordar da necessidade premente em mudar, urgentemente, a fim de se evitar que mais mal possa se desenvolver neste cenário caótico, se é que pior possa ficar. Autoridades constituídas, detentoras do poder e intermediárias para a realização de mudanças, têm que ser admoestadas, pela sociedade ou/e pelo judiciário, para que algo seja feito com o intuito de proporcionar condições para que a legislação brasileira seja posta em prática de forma eficiente e eficaz. 3.2 FATORES CONTRIBUTIVOS À RESSOCIALIZAÇÃO Para dar início a essa questão, torna-se importante esclarecer que, apesar do preso sofrer restrições de direitos e lhe serem impostos deveres, ele ainda possui direitos, que a própria LEP estabelece, em seu artigos 40 a 43, os quais, para melhor entendimento, passa-se a transcrever: Art. 41. Constituem direitos do preso: I – alimentação suficiente e vestuário; II – atribuição de trabalho e sua remuneração; III – previdência social; IV – constituição de pecúlio; V – proporcionalidade na distribuição do tempo para o trabalho, o descanso e a recreação; VI – exercício das atividades profissionais, intelectuais, artísticas e desortivas anteriores, desde que compatíveis com a execução da pena; 108 GOULART, Henny. Ibid. p, 109. 51 VII – assistência material, à saúde, jurídica, educacional, social e religiosa; VIII – proteção contra qualquer forma de sensacionalismo; IX – entrevista pessoal e reservada com o advogado; X – visita do cônjuge, da companheira, de parentes e amigos em dias determinados; XII – chamamento nominal; XII – igualdade de tratamento salvo quanto às exigências da individualidade da pena; XIII – audiência especial com o diretor do estabelecimento; XIV – representação e petição a qualquer autoridade, em defesa de direito; XV – contato com o mundo exterior por meio de correspondência escrita, da leitura e de outros meios de informação que não comprometam a moral e os bons costumes; XVI – atestado de pena a cumprir, emitido anualmente, sob pena de responsabilidade da autoridade judiciária competente. Parágrafo único. Os direitos previstos nos incisos V, X e XV poderão ser suspensos ou restringidos mediante ato motivado do diretor do estabelecimento. Art. 42. Aplica-se ao preso provisório e ao submetido à medida de segurança, no que couber, o disposto nesta Seção. Art. 43. É garantida a liberdade de contratar médico de confiança pessoal do internado ou do submetido a tratamento ambulatorial, por seus familiares ou dependentes, a fim de orientar e acompanhar o tratamento. Parágrafo único. As divergências entre o médico oficial e o particular serão resolvidas pelo juiz da execução. Em primeira análise já se pode afirmar, pelo que foi exposto no capítulo anterior e nas considerações iniciais deste, que estes direitos, em quase sua totalidade, não estão sendo respeitados. Ao passo que se tem registro de tanto descaso e violação dos direitos do preso, registra-se também um forte movimento que busca a reversão desta situação. Ensina Leal109, que diversos documentos têm sido firmados pelas Nações, invocando a proteção dos direitos humanos. Entre estes, está o Pacto Internacional de Direitos Civil e Políticos (1966), que entrou em vigor em 23/03/1976, cujo artigo 7o. proíbe a tortura e penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes. O artigo 10, item 3 determina que “o regime penitenciário consistirá em um tratamento cujo 109 LEAL, César Barros. Ibid, p. 51-52. 52 objetivo principal seja a reforma e reabilitação moral dos prisioneiros [...]. Mesmo teor é contemplado pelo Pacto de San José da Costa Rica, em seu artigo 5o, item 6. : “As penas privativas de liberdade devem ter por finalidade essencial a reforma e a readaptação social dos condenados”. Relata o supracitado autor110 que a partir de 1955, iniciou-se, sem interrupção até a presente data, congressos qüinqüenais das Nações Unidas sobre Prevenção do Delito e Tratamento do Delinqüente, o primeiro dos quais foi em Genebra [...], em cuja programação constavam cinco temas gerais: a) regras mínimas para o tratamento dos presos; b) seleção e formação do pessoal penitenciário; c) estabelecimentos penais e correcionais abertos; d) trabalho penitenciário; e) prevenção da delinqüência de menores. As Regras Mínimas, em número de 92, na opinião do autor111, é o mais importante documento produzido na área penitenciária. Dada a sua importância, elas foram aprovadas pelo Conselho Econômico e Social, em suas Resoluções 663 C, de 31/07/57 e 2.076, de 13/05/77, porém, não têm como objetivo: “definir em detalhe um sistema modelo de instituições penais. Procuram, apenas, a partir do consenso geral do pensamento contemporâneo e dos elementos essenciais dos mais adequados sistemas modernos, estabelecer o que é geralmente aceito como bons princípios e boa prática quanto ao tratamento dos presos e à administração penitenciária. As Regras Mínimas estão divididas e dois blocos: Regras de aplicação geral e Regras aplicáveis a categorias especiais. O primeiro bloco é composto de regras que tratam da administração das unidades penais e aplicam-se a todas as categorias de presos, são elas: princípios básicos, registros, separação de categorias, acomodações, higiene pessoal, vestuário e repouso noturno, alimentação, exercício e esporte, serviços médicos, disciplina e punição, instrumentos repressivos, informações aos presos e suas queixas, contatos com o mundo exterior, livros, religião, retenção de bens dos presos, notificação de morte, doença, transferência, remoção de presos, quadro institucional, e inspeção. Exemplos: 110 111 LEAL, César Barros. Ibid, p. 44. LEAL, César Barros. Ibid, p. 45. 53 9.1. Sendo as acomodações de repouso noturno em celas ou quartos individuais, à noite cada preso ocupará sozinho a cela ou o quarto. Se, por motivos especiais, como sobrelotação temporária, tornar-se necessário à administração da prisão abrir exceção a esta regra, não é aconselhável manter dois presos numa mesma cela. 31. Castigo cruel, reclusão em cela escura e todas as formas cruéis, inumanas e degradantes de punião devem ser inteiramente proibidas como castigos por infrações disciplinares. O segundo grupo de regras versa sobre a categoria especial a que se refere cada seção, anotando-se que as aplicáveis aos sentenciados se estendem às demais categorias, desde que não se choquem com as regras que lhes são pertinentes e venham a beneficiá-los. Exemplos: 60.1. O regime da instituição deverá procurar minimizar quaisquer diferenças entre a vida na prisão e a vida em liberdade que tendam a diminuir a responsabilidade dos presos ou o respeito devido à sua dignidade como seres humanos. 65. O tratamento de pessoas condenadas à pena de prisão ou a medidas semelhantes terá por objetivo, tanto quanto a extensão da sentença o permitir, incutir nelas o desejo de levar vida de respeito à lei e de prover a própria subsistência após sua liberdade, e prepará-las para assim procederem. O tratamento será de forma a estimular seu respeito próprio e seu senso de responsabilidade. Outros exemplos são citados, que poderiam contribuir significantemente para este estudo, mas, para que não se torne extenso, é interessante ressaltar esse último, pois, acredita-se que através da religião os valores referidos são estimulados. Esclarece, Leal112, que “estas Regras, em seu todo, representam as condições mínimas admitidas pela ONU, mas há a compreensão de que não se pode exigi-las em sua totalidade e indistintamente, pois tudo depende da diversidade social, econômica e geográfica existentes no mundo...” O referido autor, na sua descrição de documentos importantes ligados aos direitos do preso, ainda cita o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, ratificado 112 LEAL, César Barros. Ibid, p. 49 54 pela Resolução 2.200-A da Assembléia Geral das Nações Unidas, que entrou em vigor em 23/03/76. Transcreve-se a seguir parte dele: Art. 10. 1. Toda pessoa privada de sua liberdade deverá ser tratada com humanidade e respeito à dignidade inerente à pessoa humana. 3. O regime penitenciário consistirá em um tratamento cujo objetivo principal seja a reforma e reabilitação moral dos prisioneiros. Outro documento importante citado é a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José), aprovada em 22/11/1969, que prescreve em seu artigo 5º o seguinte: Art. 5º 1. Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua integridade física, psíquica e moral. 2. Ninguém deve ser submetido à tortura nem a penas ou tratos cruéis, desumanos ou degradantes. [...] 6. As penas privativas de liberdade devem ter por finalidade essencial a reforma e a readaptação social dos condenados. O autor113 tece a seguinte consideração: A proclamação universal desses direitos, inobstante o descompasso entre seu ideário e a realidade, é necessária para o aperfeiçoamento da legislação interna de cada país e a persistente busca de modificação das políticas públicas que, deliberadamente ou por omissão, são responsáveis, em grande parte, pelas profundas deficiências da execução penal. Entende-se, então, que apesar dos obstáculos encontrados, deve-se persistir na busca da aplicação dos direitos a que tem os presos, até que se torne a realidade esperada, pois a execução penal tem como propósito não apenas efetivar as disposições da sentença ou decisão criminal, mas também proporcionar a harmônica integração social do condenado e do internado, é o que diz o artigo 1º da LEP. Nas palavras de Mirabete114, em seus Comentários à Lei de Execução Penal: 113 114 LEAL, César Barros, Ibid, p. 53. MIRABETE. Apud LEAL, César Barros. Ibid, p. 71. 55 A doutrina penitenciária moderna, com acertado critério, proclama a tese de que o preso, mesmo após a condenação, continua titular de todos os direitos que não foram atingidos pelo internamento prisional decorrente da sentença condenatória em que se impôs uma pena privativa de liberdade. Cria-se, com a condenação, especial relação de sujeição que se traduz em complexa relação jurídica entre o Estado e o condenado em que, ao lado dos direitos daquele, que constituem os deveres do preso, se encontram os direitos deste, a serem respeitados pela Administração. Por estar privado de liberdade, o preso encontra-se em uma situação especial e condiciona uma limitação dos direitos previstos na Constituição Federal e nas leis, mas isso não quer dizer que perde, além da liberdade, sua condição de pessoa humana e a titularidade dos direitos não atingidos pela condenação. Seja no aguardo de seu julgamento ou no cumprimento de sua pena, o preso já está sendo “punido”, mediante sua privação de liberdade e isolamento da família, sem contar com a vida promíscua que lhe é imposta em celas superlotadas. É inadmissível que se pense, ou pior, se aja, acreditando que o mesmo não mereça respeito, e que esteja destituído de dignidade humana. Cita-se aqui, como exemplo, o direito que o preso tem ao chamamento nominal e a respeito ensina Mirabete115: O sentido de ressocialização do sistema penitenciário exige que o preso seja tratado como pessoa e não coisa, com rótulos que têm, por si mesmo, conteúdo vexatório e humilhante. Trata-se, portanto, de um direito que corresponde ao preso como pessoa, em razão da dignidade inerente a tal condição. Não se ignora, portanto, apesar do motivo que o levou à prisão, que o preso tem seus direitos e não deve ser impedido de usufruí-lo. Reconhece-se, no entanto, que pela situação fática, os presídios não têm proporcionado o gozo destes direitos. Esses direitos se resumem, entre outros, na sua ressocialização ou reeducação. Nesse sentido ensina Goulart116 que “A execução da pena, quaisquer que sejam os tipos de instituições adotados pelo sistema penitenciário de um país, deve sempre ter por base o tratamento ou reeducação do delinqüente condenado.” 115 MIRABETE, Julio Fabbrini. Ibid, p. 127. 56 Todas as pessoas são educadas, mas nem sempre a educação que ela recebeu é aquela aceitável pela sociedade em que vive, é o que se constata da educação recebida por um criminoso. Às vezes teve a educação adequada mas foi desvirtuada pela influência do meio em que vive. A educação aqui tratada não se refere à formação intelectual, pois sabe-se que os presídios estão cheios de criminosos de todas as classes sociais e intelectuais. Quando se fala em reeducação do preso, objetiva-se fazer com que ele passe a agir de forma aceitável pela sociedade. Se houve um desvio de percurso na sua educação ou se não a recebeu, deve-se buscar meios pelos quais ele passe a pensar e agir de forma correta. Apesar das dificuldades, econômicas e políticas de que se tem conhecimento, impeditivas ao trabalho de ressocialização, não se pode ficar de braços cruzados, pois são vidas humanas que estão em jogo. Vera Lúcia Teixeira, no prefácio à obra de Costa117 disse: “É dever de toda a sociedade, auxiliar os Detentos, não permitindo que os temporais da violência ameacem o céu de suas vidas, para que a paz seja o seguro abrigo de seus caminhos.” A LEP prescreve que o Estado deve recorrer à cooperação da comunidade. Entende-se que esta cooperação pode e deve ser relacionada, também, à recuperação do preso. Como alternativa, considerada talvez paliativa, a comunidade em geral, ciente da sua parcela de responsabilidade, tem buscado aproveitar as oportunidades existentes nesse meio tão hostil. Oportunidades estas que estão diretamente ligadas ao tempo disponível que há no ambiente carcerário. Entre elas está a prática de esportes, trabalho e leitura. 3. 3 RELIGIÃO NOS PRESÍDIOS 116 GOULART, Henny. Ibid, p. 81 COSTA, Alexandre Marino. O Trabalho Prisional e a Reintegração Social do Detento. Florianópolis: Insular, 1999, p. 12. 117 57 Ao condenado, ao adentrar no presídio, nada mais resta a não ser cumprir a pena que lhe foi imposta, mas o que se pretende, no entanto, é que ele não volte a delinqüir, após sair dele. O que se tem constatado, no entanto, em razão das condições desfavoráveis dos presídios é que a reincidência é fato notório. A respeito ensina Oliveira118: O desejado sentido ressocializador da pena, na verdade, configura apenas um fantástico discurso retórico para manter o sistema, o que, na realidade, traduz um evidente malogro, um desperdício de tempo para o preso e um gasto inútil para o Estado, que retira da sociedade um indivíduo por apresentar comportamento desviante e o transforma num irrecuperável, pois a reincidência atinge o alarmante índice de setenta por cento no país. Daí dizer-se que a prisão fabrica o reincidente. Sobre este assunto relata Goulart119: A reincidência tem constituído, segundo a maioria da doutrina, a melhor prova de que o trabalho de reeducação realizado não surtiu o desejado efeito, motivo pelo qual devem ser procurados os seus defeitos e imperfeições a fim de que as diretrizes antes estabelecidas sejam modificadas ou retificadas. De um ponto de vista mais apurado, entretanto, verifica-se que a prisão continua sendo a grande impulsionadora de reincidência, que vem aumentando continuamente e se agravando nas formas perigosas da habitualidade e da profissionalidade, o que torna necessário o tratamento especializado dos multi-reincidentes e não o simples aumento da pena de prisão, pois a reincidência muitas vezes não é representativa da periculosidade do seu autor. Não se consegue transformar uma pessoa se não for dispensado a ela respeito. Deve-se levar em conta as características do indivíduo, suas aptidões e o ambiente onde terá de viver. Para tanto, deve-se usar meios universalmente reconhecidos como idôneos e previstos em lei, como o trabalho, a educação intelectual, moral, cívica e religiosa, as práticas esportivas e o tratamento médico em geral, proporcionando-lhe condições 118 119 OLIVEIRA, Odete Maria de. Ibid. p. 227. GOULART. Henny. Ibid, p. 92. 58 mínimas para o cumprimento da pena e concomitantemente preparando-o para viver harmonicamente na comunidade social, sem que volte a delinqüir. Trocar a ociosidade por leitura é uma alternativa. Mediante a leitura, veículo de comunicação extraordinário, o homem conhece lugares, pessoas, adquire conhecimento, e porque não dizer, transforma seus pensamentos e maneira de agir. A leitura da Bíblia tem esse poder. Aquele que a lê, despojado de qualquer preconceito, encontra razões para refletir sobre sua vida – seus atos. Através dela o homem encontra uma religião. A religião nada mais é que uma expressão do encontro do homem com Deus. Não é a religião, sinônimo de participante de uma congregação e freqüentador de um templo, que transforma o homem, mas sim o seu reconhecimento da existência de um Ser que o ama e deseja seu bem. O que se quer, sociedade e autoridades, é que o preso ao sair da prisão, não retorne para dentro dela. Isso só irá acontecer se o condenado sair da prisão diferente de como ele entrou, ou melhor, transformado, recuperado. Apesar de se relatar tanto sobre as condições físicas e morais dos ambientes carcerários, elas não são as responsáveis pela transformação de caráter do preso. A esse respeito ensina Thompson120, quando diz que, mesmo investindo-se fortunas, o que seria necessário para corrigir os absurdos constatados nestes estabelecimentos, o resultado não seria, provavelmente, o esperado. Ele afirma que o sistema sueco, que “se distancia alguns anos-luz em termos de sofisticação, apresenta taxas de reincidência com respeito a seus egressos de 70%.” O que se quer dizer, é que o preso pode, com boas instalações e alimentação saudável, ter uma estada mais confortável no cumprimento de sua pena, mas ela não terá alcançado seus objetivos precípuos, que se acredita ter: punir, intimidar e ressocializar. O referido autor121 ainda prolata: “...punição e tratamento deveriam ser vistos como os extremos de uma série contínua, com variações intermediárias, as diversas partes a se imbricarem harmoniosamente, sem fraturas.” 120 121 THOMPSON, Augusto. Ibid, p. 109. THOMPSON, Augusto. Ibid, p. 3. 59 Neste sentido, buscando-se resgatar no preso algo que tenha perdido, ou talvez nunca tenha tido, respeito próprio e aos outros, instituições ligadas a princípios religiosos, amparados no que dizem as leis, dos homens e de Deus, têm realizado trabalhos junto aos cárceres que merecem ser relatados. Diz-se lei dos homens, aquelas instituídas pelos nossos legisladores, que visam estabelecer a ordem na sociedade, em especial, a Lei de Execução Penal, e neste caso, ao que se refere aos direitos do preso, dentro do cárcere e na eminência de sair dele. A LEP, em seu art. 3º, é clara em determinar que “ao condenado e ao internado serão assegurados todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela lei”. Contempla também a lei, no seu art. 4º, “que o Estado deverá recorrer à cooperação da comunidade nas atividades de execução da pena e da medida de segurança”. E é aí que entra o trabalho das instituições religiosas, fazendo valer o que prescreve a lei, principalmente, no que diz respeito à assistência aos presos, prevista no artigo 10 e 11 da LEP, quais sejam: assistência material, à saúde, jurídica, educacional, social e religiosa, atuando naquilo que estiver ao seu alcance e que lhe competir. Diz-se lei de Deus, porque acreditam, os religiosos, que a Bíblia contém orientações divinas, consideradas regras fundamentais para a boa convivência entre os homens, principalmente no que diz respeito à ajuda ao próximo que se encontra em condições menos favoráveis. A respeito, lê-se em Mateus 25:34-36122 palavras de Jesus, em sua estada aqui na terra, quando incentivava o trabalho social e humanitário: “Vinde benditos de meu Pai, e possuí por herança o reino que vos está preparado, [...], porque estive preso e fostes ver-me.” Em outra ocasião ratifica este preceito, registrada por Marcos 123 12:31 122 : “Amarás o teu próximo como a ti mesmo.” BÍBLIA. Português. A Bíblia Sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. Brasília: Sociedade Bíblica do Brasil, 1969, p. 40. 123 BÍBLIA. Ibid, p. 67. 60 Pessoas ligadas a diversas denominações religiosas têm buscado colocar em prática estes ensinamentos, levando ao conhecimento dos presos a existência de Deus. Um Ser que ama a todos, a despeito dos seus defeitos físicos ou morais. A respeito Sá124 faz uma menção a Durkheim, que: [...] não nega a importância da religião, moral e outros sistemas normativos ainda integradores e geradores da ordem em sociedades, onde predominam funções diferenciadas. Porém, a religião e a moral tendem assim a se relativizarem conforme os níveis locais e grupais. Mas o direito moderno, com tendência à racionalidade e à universalidade e, ao mesmo tempo, dotado de elasticidade e sanção coercitiva, é capaz de compor e recompor as múltiplas relações entre indivíduos autônomos e no desempenho de funções especializadas. Nesse mesmo entendimento, escreve Goulart125: Por outro lado, a educação moral, cívica e religiosa não pode ser esquecida, pois grande parte dos condenados viveram em ambiente corruptos e pervertidos. A função dos ministros religiosos é relevante neste setor pois sua atuação como amigo e orientador, além de estabelecer ou reforçar a base religiosa dos internos, pode conseguir o arrependimento dos mesmos e fazê-los aceitar melhor o trabalho e a instrução, além da possibilidade de encaminhar sua ação educativa para formação de um sentido ético que muito os ajudará quando voltarem à liberdade. Oliveira126 também dispensa algumas considerações sobre a assistência religiosa nos estabelecimentos prisionais, relatando inclusive declarações de presos, que alegam ser positivo o apoio religioso. Sobre este assunto ela escreve: Ainda quanto à religião, bem a propósito Marina Maringo Cardoso de Oliveira, em sua obra, “A Religião nos Presídios” diz da importância do fator religião na formação da personalidade dos indivíduos, projeção social e na influência benéfica na inteiração psico-social, constituindo em última análise um esforço de resistência contra a delinqüência. Sabe-se, no entanto, que nem sempre a religião é vista com bons olhos, pelos cépticos especialmente, e não lhe é dada a devida importância, mas a respeito ensina Albergaria127: 124 SÁ, Geraldo Ribeiro de. Ibid, p. 30. GOULART, Henny. Ibid, p. 90. 126 OLIVEIRA, Odete Maria. Ibid, p. 194. 125 61 Na atualidade, a assistência religiosa no mundo prisional não ocupa lugar preferencial nem é ponto central dos sistemas penitenciários, tendo-se adaptado às circunstâncias de nossos tempos. Não se pode desconhecer, entretanto, a importância da religião como um dos fatores de educação integral das pessoas que se encontram internadas em um estabelecimento penitenciário, razão pela qual a assistência religiosa é prevista nas legislações mais modernas. Preocupados com esta situação e acreditando na possibilidade de um trabalho diferenciado, é que foi fundada a APAC, Associação de Proteção e Assistência aos Condenados. Conforme registro de Guimarães Júnior128, a Associação surgiu em 1972, após um estudo e experiência com os condenados, realizados por um grupo de pessoas voluntárias, que tem por objetivo “trazer condições ao condenado de se recuperar e ressocializar-se, tornando aquilo que parecia se impossível de ser alcançado em realidade.” Em Minas Gerais, as APAC’s são coordenadas pelo projeto Novos Rumos na Execução Penal, lançado pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), em 2001. Seus métodos adotados incluem, entre outros, trabalho, incentivo à ajuda mútua entre os recuperandos, como são chamados os internos, valorização humana e religião. “A religião é fundamental para a recuperação do preso, a experiência de amar e ser amado desde que pautada pela ética, e dentro de um conjunto de propostas onde a reciclagem dos próprios valores leve o recuperando a concluir que Deus é o grande companheiro, o amigo que não falha.” Guimarães Júnior129, no entanto, faz um alerta: Um outro equívoco que ocorre com grande freqüência, além do trabalho, é julgar que a religião seja suficiente para preparar o preso para o seu retorno à sociedade. Mesmo encontrando em quase todos os estabelecimentos prisionais grupos religiosos de diferentes credos, o índice de reincidência criminal continua alarmante no país, entre 75% e 80%. A religião é fundamental para a recuperação do preso, desde que pautada dentro de um conjunto de propostas. 127 ALBERGARIA Apud MIRABETE, Julio Fabbrini. Ibid, p. 84. GUIMARÃES JÚNIOR, Geraldo Francisco. Associação de proteção e assistência aos condenados: solução e esperança para a execução penal. Disponível em <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp. Acesso em 13/11/07. 129 GUIMARÃES JÚNIOR, Geraldo Francisco. Ibid. 128 62 Então, o segredo está na forma adequada na qual deve ser realizado este trabalho, pois, segundo estatísticas divulgadas, o índice de reincidência em relação aos assistidos (pela APAC), em 1987, não chega a 6%, relata Mirabete130. Acredita-se, no entanto, que a situação inversa também é verdadeira, ou seja, os outros métodos sem a religião também podem fracassar nos seus objetivos. Segundo o Desembargador Joaquim Alves de Andrade131, coordenador do projeto Novos Rumos, “um dos pontos básicos da metodologia da APAC é que o estudo e o trabalho são obrigatórios”. Ele continua: A população, de um modo geral, pensa que o preso tem de sofrer e ser humilhado. Isso é péssimo para a sociedade, porque, quando o preso é desrespeitado na prisão, como costuma acontecer, ele sai pior. Não devemos combater o mal com o mal. O mal a gente combate com outras armas. Outra declaração constante é a do Juiz da Vara Criminal da Comarca de Itaúna e incentivador do método, Paulo Antônio de Carvalho, que diz: “a APAC segue fielmente o que determina a Lei de Execução Penal, no cumprimento da pena de privação de liberdade”. A publicação ainda informa que na APAC desta mesma Comarca, os recuperandos começam o dia com oração, antes do café-da-manhã. Esclarece que a religião é um ingrediente importante, mas cada um pode escolher a sua. Outros registros são encontrados sobre o trabalho de religiosos junto aos presídios, demonstrando serem eles positivos à efetivação da LEP. A Revista Veja132 relata um fato interessante, que apresenta pesquisa realizada nos presídios brasileiros. Constatou-se que evangélicos e católicos têm “brigado” pelos fiéis, e quem sai ganhando são os próprios encarcerados, pois recebem atenção e são valorizados como seres humanos, coisa esquecida há muito nos presídios. A reportagem ainda narra que os benefícios não são exclusividade dos presos. Registra-se, onde há presença de religião, que o ambiente carcerário torna-se 130 MIRABETE, Julio Fabbrini. Ibid, p. 46. DECISÃO. Criminoso vira cidadão. Notícias e Publicações da Associação dos Magistrados Mineiros Edição nº 68 – Outubro de 2007. Disponível em <http://www.amagis.com.br>. Acesso em: 13/11/2007. 132 REVISTA VEJA. Busca aos presos. Evangélicos conquistam fiéis nos presídios e provocam a reação da Igreja Católica. Disponível em <http://vejaonline.com.br>. Acesso em: 13/11/2007. 131 63 mais propício à convivência em comum e mais segura. Como presos religiosos são, em geral, mais bem-comportados do que os demais e dificilmente participam de motins, a disputa pelos fiéis (entre católicos e evangélicos) é bem-vista pelos diretores de penitenciárias. O Presídio de Papuda, em Brasília, no qual 85% dos detentos são convertidos, não registra rebelião há onze anos. “Mesmo com superlotação, conseguimos manter a disciplina”, orgulha-se o diretor-geral do presídio, Francisco Antonio da Silva. Essa mesma reportagem registra a transformação de conduta do detento Alexandre Santamaría Mendes, 26 anos, interno da Penitenciária do Estado de São Paulo. Há três anos, ele foi preso por participar do seqüestro e assassinato do empresário Aparício Basílio da Silva, dono da fábrica de perfumes Rastro. Hoje, cumprindo pena de 28 anos, Mendes é o protótipo de preso bem-comportado. Estudos realizados em mulheres, detentas da Penitenciária Feminina da Capital de São Paulo demonstraram que a religião tem um importante papel na via de indivíduos encarcerados. Os autores133 do artigo, intitulado “Mulheres encarceradas em São Paulo: saúde mental e religiosidade” declaram que “A saúde mental e a possibilidade de reabilitação parecem ser favorecidas através da religião.” No sub-título “Religião e prisão”, os autores ainda registram: A oferta de cultos, encontros e celebrações não decorre apenas de um direito assegurado por lei, que garante ao preso o atendimento religioso solicitado, mas também da crença generalizada de que a religiosidade e a espiritualidade podem trazer benefícios psíquicos e sociais para os presos e contribuírem para a tranqüilidade da unidade carcerária e a reabilitação de alguns detentos (Oliveira, 1978; Larson et al., 1997; Varella, 2000) O estudo ainda revela que os dados apresentados concordam com a evidência demonstrada pelas literaturas nacional e internacional, da importância da religiosidade na vida de sujeitos encarcerados. Outro trabalho interessante realizado junto aos presídios e que merece ser relatado é o que vem sendo desenvolvido pela senhora Maria de Lourdes Espíndola, 133 MORAES, Paulo Augusto Costivelli; DALGALARRONDO, Paulo. Mulheres encarceradas em São Paulo: saúde mental e religiosidade. Disponível em <http://www.ipub.ufrj.br>,. Acesso em: 13/11/2007. 64 idealizadora e coordenadora do Projeto Missão Possível134, que conta com o apoio de outros voluntários. Ele consiste em remessa de correspondências aos presidiários de Chapecó, Florianópolis, São Cristóvão do Sul, São Pedro de Alcântara, Porto União, Balneário Camboriú, Joaçaba e Tijucas. A troca de cartas envolve carinho mútuo, pedidos de ajuda e orientação sobre o futuro dos presos. São remetidos a eles, em especial, cursos impressos sobre o estudo da Bíblia, o que tem ajudado nos seus comportamentos e transformação de caráter. Os custos deste Projeto são bancados, parte pelos próprios voluntários, membros da Igreja Adventista do 7º Dia e parte pela Associação Catarinense, instituição mantenedora da referida igreja no Estado de Santa Catarina. Sobre este tipo de trabalho, Goulart135 esclarece: Também a correspondência pode ser meio eficaz de terapêutica penitenciária, aplacando o medo e o ódio. Uma das razões que tornam a pena mais aflitiva, em especial no casos dos jovens delinqüentes, é o sofrimento que o seu delito possa estar causando aos pais e, mais diretamente, à mãe. Escrever dizendo o que pensa e sente traz ao condenado maior tranqüilidade. E as circunstâncias que possam ser captadas nessa correspondência constituem base onde se apóie um mais eficaz tratamento reeducacional. Como já mencionado anteriormente, deve-se aproveitar as oportunidade existente no ambiente tão hostil, e a criatividade do homem, ser pensante, deve ser colocada em prática, a fim de beneficiar não somente a si mesmo, mas também o seu próximo. Neste entendimento, Canto136 (1999) declara: A prisão, como instrumento realizador da pena-castigo, só tem contribuído para a reprodução da criminalidade. Neste sentido, há que se buscar mecanismos e instrumentos que possibilitem a 134 PIONEIRO. Projeto Missão Possível leva a Bíblia a mais de dois mil detentos em Santa Catarina. Órgão Oficial de divulgação da Igreja Adventista do Sétimo Dia em Santa Catarina. Terceiro Trimestre de 2007 – nº 07 – São José/SC, p. 03. 135 GOULART, Henny. Ibid, p. 90. 136 CANTO, Dilton Ávila. Regime inicial de cumprimento da pena reclusiva ao reincidente. Disponível em: <htpp://www.jus2.uol.com.Br>. Acesso em: 04/2006. 65 efetiva diminuição da delinqüência, a salvaguardar o interesse público e social. Sendo considerada a religião uma alternativa positiva para a ressocialização do preso, há de se conclamar a comunidade para um trabalho mais intenso. Neste sentido afirma Goulart137 : O que entendemos necessário, entretanto, para melhorar e incrementar esses serviços de assistência, é uma ação ampla no sentido de levar essa preocupação à toda a comunidade, a fim de que haja uma participação efetiva e em ampla escala da iniciativa privada particular, amparada e fiscalizada pelos poderes públicos, como vem sendo praticada com sucesso em tantos países, estendendo-se a sua benéfica ação, sob a forma de patronatos, a todos os recantos do território nacional, mediante atuação realmente eficaz junto aos sentenciados, egressos e suas famílias. Sabe-se que o ambiente carcerário deve perdurar ainda por muito tempo na situação em que se encontra. Apesar disto, o trabalho voluntário não deve esmorecer, mas sim persistir, para que o preso tenha uma possibilidade de recuperação, ainda que pareça impossível. A LEP prescreve que o tratamento ao detento não abrange somente sua estada nos estabelecimentos prisionais, mas deve auxiliá-lo para a vida livre. O artigo 10 diz que é dever do Estado “... orientar o retorno à convivência em sociedade” e o artigo 25 que: “A assistência ao egresso consiste: I – na orientação e apoio para reintegrá-lo à vida em liberdade;”. A respeito Goulart138 ensina: A reeducação ou tratamento do condenado não esgota o seu objetivo no momento em que este deixa a prisão, pelo cumprimento da pena ou por haver obtido um dos benefícios legais. Sua ação precisa ser complementada com a assistência material e espiritual efetivamente prestada tanto ao condenado em vias de liberação, o pré-liberto, como ao egresso, estendendo-se essa assistência, tanto quanto possível, até à família dos mesmos. Assim sendo, acredita-se que a religião é um dos meios pelos quais se valoriza o homem e o prepara para os embates da vida, estando ele encarcerado ou 137 138 GOULART, Henny. Ibid, p. 108. GOULART, Henny. Ibid, p. 102. 66 livre. Ele passa a confiar em um Ser que o ama e o respeita e isso lhe dá forças para prosseguir, mesmo diante de tantos obstáculos. Mirabete139, em seus comentários à assistência religiosa prevista na LEP, faz o seguinte registro: Em pesquisas efetuadas nos diversos institutos penais subordinados à Secretaria de Justiça do Estado de São Paulo por um grupo de trabalho instituído pelo então Secretário Manoel Pedro Pimentel, conclui-se que a religião tem, comprovadamente, influência altamente benéfica no comportamento do homem encarcerado e é a única variável que contém, em si mesma, em potencial, a faculdade de transformar o homem encarcerado ou livre. Nesta pesquisa, entre as conclusões que se chegou, cita-se a enumerada como primeira: I – há necessidade de conscientização dos homens que lutam pela reabilitação do presidiário da marcante e benéfica influência da religião no comportamento humano e de que ela constitui a única forma de tratamento que subsiste por si mesma, independendo de qualquer outro para atuar como fator de valorização do homem. A aproximação dos voluntários religiosos é a oportunidade de levar aos presos os ensinamentos bíblicos. O estudo da Bíblia revela ao preso a sua condição moral. O amor de Deus, revelado em todo este livro, e o exemplo dos voluntários, acabam por influenciar sua decisão de mudar – para melhor. Essa mudança, sincera, é percebida através dos atos da pessoa. Varella140 relata o comportamento de um homem transformado, agindo em benefício dos outros, ainda dentro da prisão, junto à enfermaria: A situação desses presos só não é pior por causa da dedicação comovente de um cearense de cabelo ondulado convertido a pastor do Exército da Salvação, condenado a doze anos por crimes que ele dizia fazer de tudo para esquecer, que chefiou por muito tempo um grupo de auxiliares encarregados da higiene, da medicação e de dar comida na boca dos que não conseguiam se alimentar. 139 140 MIRABETE, Julio Fabbrini. Ibid, p. 84. VARELLA, Drausio. Ibid, p. 26. 67 Coelho Jr. e Mahfoud141 afirmam: “A experiência religiosa, portanto, está inserida na caminhada para uma vida plena de sentido, na qual o homem explora a força de sua dimensão espiritual(...)” É essa mudança que interessa a Execução Penal, pois viabiliza a possibilidade de não retorno do preso ao crime, além de cumprir com seu objetivo, o de puni-lo e ressocializá-lo. 141 COELHO JR., Achilles Gonçalves.; MAHFOUD, Miguel. As Dimensões Espiritual e Religiosa da Experiência Humana: Distinções e Inter-Relações na Obra de Viktor Frankl. Psicologia USP. Vol. 12 – Número 2, 2001. Disponível em: <http:/www.scielo.br/scielo.php?pid>. Acesso em: 05/05/2008. 68 CONSIDERAÇÕES FINAIS A Constituição da República, o Código Penal, a Lei de Execução Penal, as Convenções e Tratados demonstram, em dispositivos próprios, a preocupação dos legisladores em se buscar elementos básicos para lidar com os crimes e seus autores. Assim, o ordenamento jurídico brasileiro, a princípio, tem as normas necessárias para a condenação do acusado e tem procurado, através do Judiciário, colocá-las em prática. Porém, não se trata apenas disso. Sua concretização tem que estar emanada de ponderações e princípios, para não ser um ato de violência contra o cidadão. A Carta Magna contempla os Princípios Constitucionais Fundamentais, que são garantias do cidadão frente ao Poder Punitivo Estatal. São eles: Princípio da Legalidade, Princípio da Isonomia, Princípio da Intervenção Mínima, Princípio da Jurisdicionalidade, Princípio da Humanidade e Princípio da Pessoalidade e Individualização da Pena. Esses princípios, como o próprio nome diz, servirão de base para a execução da pena imputada ao criminoso, obedecido também o que prescreve as demais normas. A Lei de Execução Penal, que trata especificamente da execução da pena, bem como da ressocialização do condenado, apesar de todos os esforços dos legisladores, não tem alcançado, como se constatou, os seus objetivos precípuos, de punir e especialmente, ressocializar. O Direito Penal visa à reparação equivalente ao erro cometido, com o objetivo de lavar à prisão o seu infrator. Em um raciocínio lógico, em primeiro lugar, acredita-se que a melhor forma encontrada na história do homem, depois de tantos outros meios utilizados para punir o acusado, é privá-lo da liberdade, a fim de que a sociedade seja poupada de novos ataques daquele que não se ajusta às normas de convívio em sociedade. Em segundo lugar, pode-se supor que o outro objetivo é dar ao recluso a oportunidade de, no ambiente carcerário, em condições favoráveis e com apoio de profissionais, rever sua conduta e ter uma conversão de atitudes. 69 No entanto, o que se tem percebido, é justamente o contrário. Há uma crescente deteriorização de caráter dos presos, em razão das condições subumanas nos cárceres, resultado da superlotação, infra-estrutura precária, somada à ociosidade, promiscuidade, despreparo do pessoal administrativo, além da mistura de detentos de diversos níveis de periculosidade num mesmo ambiente. Apesar de todo o esforço legislativo e doutrinário, o que se percebe nos estabelecimentos prisionais do Brasil, bem como na maioria dos países citados neste trabalho, são multidões amontoadas de excluídos sociais, miseráveis condenados também ao desrespeito de todos os seus direitos. Conclui-se, diante desta realidade fática, que a prisão só tem contribuído para a reprodução da criminalidade. Tem-se que admitir o fracasso das instituições carcerárias por não conseguirem cumprir a primordial função, qual seja, reeducar ou preparar o condenado para a volta ao convívio na sociedade, conforme prevê a Lei de Execução Penal. Autoridades eclesiásticas e voluntários encontraram, no ensino religioso, uma forma de reeducar ou influenciar o preso na sua ressocialização. Entende-se que as pessoas que vivem à margem da sociedade, na sua maioria, não têm princípios morais, éticos e religiosos bem desenvolvidos, o que, conseqüentemente, acarreta comportamentos reprováveis pela sociedade e condenáveis pela justiça. Sabe-se que todo o comportamento humano é um reflexo de seu caráter, assim, constata-se que as pessoas que cometem erros, principalmente aquelas condenadas por lei, têm uma má formação de caráter. Esta má formação pode ser conseqüência de diversos fatores, tais como: má educação dos pais, más influências (pessoais, televisivas ou de produções cinematográficas), baixa auto-estima, etc. Neste raciocínio, acredita-se que o preso, ao receber uma orientação religiosa, reconhecerá seus defeitos de caráter e, ao vislumbrar a possibilidade de sua transformação, passará, ou melhor, buscará ter comportamentos mais dignos, o que o capacitará para um convívio normal e aceitável junto à sociedade. Na verdade, ele passará a entender que os problemas sociais e econômicos não são tão simples assim de serem solucionados e que a resposta para os problemas não é obtida criando-se outros problemas. 70 Não são somente os presos que necessitam sofrer uma transformação, pois se vive numa sociedade em que as normas de ética e conduta são ditadas pela maioria e pela mídia. Se muita gente faz e se é tolerado, então aquele comportamento se torna válido e aceito por todos, a ponto até de infringir as normas legais. Isso torna o homem confuso e inseguro, pois já não consegue discernir entre o certo e o errado. Como foi visto no decorrer deste estudo, os próprios agentes penitenciários passam a ter comportamentos reprováveis, porém, é feito “vistas grossas” para suas atitudes ou são usadas como argumentos de que são necessárias para se manter a ordem nos presídios. O homem que tem uma orientação, seja ela religiosa ou ética, encontra menos dificuldade para decifrar o que é bom e o que é mau. Sabe-se, no entanto, que muitos assim não entendem e pouco se importam com religião ou até mesmo com a existência de um ser superior. No entanto, não se pode negar, após este estudo, que a religião, ou melhor, o encontro do homem com seu Criador, tem poder de transformar vidas, desde que ele (o homem) assim deseje. A religião é uma alternativa que, na área de execução da pena, colabora com o Estado na preparação do preso para seu retorno ao convívio social, mediante a participação da sociedade, ajuda necessária ao seu processo de ressocialização. Finalizando, transcreve-se abaixo, declaração de Guimarães Júnior142: Não existem condenados irrecuperáveis mas, tão somente, os que não receberam tratamentos adequados. Não se alcança a segurança social apenas com punição, mas sim com trabalhos de recuperação e respeito à dignidade da pessoa humana. Desta forma estaremos ajudando na construção de um Estado em que os direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça deixem de ser utopia e passem a ser realidade. Após estes relatos, há de se concordar que o trabalho realizado, levando a religião aos presídios, é positivo, mas deveria estar ocorrendo com mais intensidade, já que os resultados trazem significativos benefícios, tanto aos presos como às instituições carcerárias, conseqüentemente, à sociedade. 142 GUIMARÃES JÚNIOR, Geraldo Francisco. Ibid. 71 A realização deste trabalho foi, em uma opinião pessoal, muito enriquecedor, pois pensava-se, mesmo durante a vida acadêmica, como muitos costumam dizer, que “ladrão bom é ladrão preso” ou “preso bom é o preso morto”. O estudo da legislação e as declarações aqui apresentadas fizeram com que tal pensamento fosse banido e passou-se a refletir mais, tanto com relação à aplicação correta dos dispositivos legais, bem como em relação à atitude cristã, que cada um deve ter para com o seu próximo. No campo jurídico, o que se pretende é a diminuição do crime. Se este vier a ser cometido e sendo seu autor recolhido a uma instituição carcerária, que esta alternativa apresentada, sem pretensão, possa ser a mais viável, pois, obtendo-se o resultado esperado, evitar-se-á, após o cumprimento da pena, a reincidência, ou seja, a volta do preso ao mundo do crime. Para encerrar, transcreve-se abaixo declaração de Richter143, com intuito de corroborar estas considerações finais. “Ao ler parte do esboço de monografia de conclusão de curso da acadêmica de Direito Janine Bergold, não posso deixar de referir experiência pessoal de acompanhamento de alguns fatos envolvendo a atuação de agentes de assistência religiosa no âmbito da Penitenciária instalada no bairro Trindade, em Florianópolis. Integrante de um grupo que se reveza na atividade de acompanhamento de determinado número de apenados daquele estabelecimento prisional, temos a oportunidade de semanalmente levar mensagens de conforto e esperança, assim como auxiliar na apresentação de alternativas de vida digna durante e também para após o período no cárcere. Ainda que abstraído, neste depoimento, o aspecto mais estritamente espiritual, porque se trata de contribuição a um texto de índole mais técnico-jurídica, parece-me importante destacar que a transmissão dos valores éticos fundamentados nos ensinos bíblicos de amor ao próximo como a si mesmo, com claro padrão objetivo a 143 RICHTER, Rui Arno. Promotor de Justiça em Florianópolis; Diretor de Relações Públicas da Igreja Adventista do Sétimo Dia Central de Florianópolis; Membro do grupo de ministério aos encarcerados da mesma igreja; Membro do Conselho Fiscal da ACAE (Associação Catarinense de Apoio ao Egresso), entidade sem fins lucrativos, formada por integrantes de denominações religiosas diversas com atuação junto ao sistema prisional, fundada com a finalidade de auxiliar os ex-apenados a retornar ao mercado de trabalho. 72 partir do decálogo, tem oferecido precioso auxílio ao dever e finalidade do Estado e da sociedade em geral em transformar o cumprimento das penas privativas de liberdade em bem mais do que a retirada de circulação de alguém que cometeu grave infração penal, ou mesmo um "castigo" sob a ótica de "vingança" social contra o condenado: a almejada possibilidade de (re)inserção social, familiar, no mercado de trabalho etc. Embora pareça muitas vezes distante da realidade, vivemos sob regime jurídico no qual se apregoa que a finalidade principal das sanções criminais é a da recuperação do ser humano para o convívio em liberdade sem novas agressões ou afetações às liberdades de terceiros. Nesse quadro, a prestação de assistência espiritual aos por muitos chamados "reeducandos" tem surtido efeitos. Particularmente, tenho ouvido não raramente de ocupantes da direção e de funções de assistência social da penitenciária mencionada relatos de sensível diferença para melhor no comportamento carcerário daqueles que acompanham os encontros de assistência religiosa. E o que é melhor, passados os primeiros anos, a gratificante experiência de receber um caloroso abraço, em pleno Centro da Capital, de alguém grato por haver recuperado sua liberdade e agora, com outra visão do mundo e do semelhante, não sem grande esforço, consegue honestamente prover o sustento próprio e da família. Porque aprendeu a resistir ao caminho largo da desonestidade e apoiar-se numa sólida Rocha para (re)construir sua vida. Não vi ainda exemplo maior de atingimento do princípio da dignidade prevista em nossa Constituição da República.” 73 BIBLIOGRAFIA BACHS I ESTANY, Josef María; BALAGUER I SANTAMARÍA, Javier; GISBERT I GISBERT, Antoni; SÁEZ, José Antonio Rodríguez. Coordenador: Inãki Rivera Beiras. Cárcel y Drechos Humanos. Un enfoque relativo a la defensa de los derechos fundamentales de los reclusos. Barcelona: J.M. Bosch Editor, 1992. BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas. São Paulo: Martin Claret Ltda, 2007. BÍBLIA. Português. A Bíbilia Sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. Brasília: Sociedade Bíblica do Brasil, 1969. BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual de Direito Penal. Parte Geral. 4 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. BRASIL. Código Penal. Decreto-Lei n. 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Vade Mecum. São Paulo: Rideel, 2007. BRASIL. Código de Execução Penal. Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984. Vade Mecum. São Paulo: Rideel, 2007. BRASIL. 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