“Atenção primária em saúde e proteção social: a agenda da Organização Pan-Americana de Saúde nos anos 2000” por Alessandra Camargo da Silveira Dissertação apresentada com vistas à obtenção do título de Mestre em Ciências na área de Saúde Pública. Orientadora principal: Prof.ª Dr.ª Cristiani Vieira Machado Segundo orientador: Prof. Dr. Gustavo Corrêa Matta Rio de Janeiro, maio de 2011. Esta dissertação, intitulada “Atenção primária em saúde e proteção social: a agenda da Organização Pan-Americana de Saúde nos anos 2000” apresentada por Alessandra Camargo da Silveira foi avaliada pela Banca Examinadora composta pelos seguintes membros: Prof. Dr. Ruben Araujo de Mattos Prof. Dr. Nilson do Rosário Costa Prof.ª Dr.ª Cristiani Vieira Machado – Orientadora principal Dissertação defendida e aprovada em 31 de maio de 2011. Alessandra Camargo da Silveira Atenção Primária em Saúde e Proteção Social: A Agenda da Organização PanAmericana de Saúde nos Anos 2000. Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Saúde Pública - área de concentração em Políticas Públicas em Saúde da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz. Banca Examinadora: ____________________________________________________ Profa. Dra. Cristiani Vieira Machado (coordenadora) _____________________________________________________ Prof. Dr. Gustavo Corrêa Matta ______________________________________________________ Prof. Dr. Nilson do Rosário Costa ________________________________________________________ Prof. Dr. Ruben Araujo de Mattos AGRADECIMENTOS São muitas as pessoas que construíram comigo essa trajetória, as quais influenciaram minha vida, ideias e sentimentos. A todas essas minha gratidão e carinho. À minha família, em especial meu paizão Jorge, minha mãe Juçara, irmã Natalia, avó Esperança e madrinha Graça, que são meu porto seguro, os responsáveis por quem sou, pessoas que nunca mediram esforços e me asseguraram todas as condições emocionais e materiais para que eu seguisse em frente. À Cristiani Vieira Machado por sua dedicação, apoio, disponibilidade e paciência que foram fundamentais para percorrer a trajetória de construção desse estudo. A Gustavo Correa Matta por suas ideias, contribuições e sensibilidade. Aos meus amigos e amigas, pessoas queridas que mesmo quando estão longe, estão presentes em meu coração: Viviane, Cristiane, Danielle, Malcolm e Hugo. Em especial, nesse processo de mestrado, aos amigos: Flávio, meu companheiro de todas as horas sejam elas alegres ou tristes, a Rapha, que sempre me mostra que a vida, geralmente, é melhor do que aparenta ser e a Diego por sua solidariedade. A Ruben Mattos e Nilson do Rosário por suas colaborações que acompanham meu trabalho desde a qualificação. Aos colegas de trabalho do INTO por sua torcida. A todos os demais que contribuíram de alguma forma para a realização deste estudo. Por fim, a todos aqueles que não se calam diante das desigualdades e injustiças. Não basta ter belos sonhos para realizá-los. Mas ninguém realiza grandes obras, se não for capaz de sonhar grande. Podemos mudar nosso destino se nos dedicarmos à luta pela realização dos nossos ideais. É preciso sonhar, mas com a condição de crer em nosso sonho, de examinar com atenção a vista real, de confrontar nossa observação com nosso sonho, de realizar escrupulosamente nossa fantasia. Sonhos acredite neles. Vladimir Ilitch Lênin. RESUMO Este trabalho abordou a agenda da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) para a Atenção Primária em Saúde (APS) e suas possíveis implicações para a proteção social na América Latina nos anos 2000. Buscou-se situar em perspectiva histórica a construção das agendas políticas da OPAS, assim como descrever as propostas recentes referentes à APS para os países latino americanos. O estudo, de natureza exploratória, se baseou no referencial teórico da proteção social e compreendeu como estratégias metodológicas a revisão bibliográfica e a análise documental, que se apoiou em contribuições da abordagem da nova retórica de Perelman. A pesquisa procurou identificar as concepções e significados subjacentes à proposta de “APS renovada”, no que concerne à perspectiva da proteção social, considerando três aspectos: a população alvo da APS (universal ou focalizada), o escopo da APS (abrangente ou restrito) e a forma de organização dos serviços (relações público-privadas). Os achados indicam que a partir da estratégia retórica de construção de consensos científicos em torno da eficácia e eficiência da APS, a OPAS busca a adesão de seus países membros à ideia de organização dos sistemas de saúde com base na APS. Nesse sentido, destaque-se o argumento recorrente de inspiração na proposta de APS abrangente da Conferência de AlmaAta, porém admitindo-se mudanças relacionadas ao novo contexto. A proposta da APS renovada se apoia fortemente no princípio da equidade e na noção de sustentabilidade dos sistemas de saúde. Enfatiza-se ainda a ideia de serviços básicos universais, cuja definição é fluida e adaptável à capacidade institucional de cada país, podendo compreender um escopo de serviços mais amplos ou restritos. No que concerne ao modelo de intervenção estatal, a proposta de renovação da APS da OPAS orienta-se por uma visão do Estado como regulador das relações entre setor público e privado. Os resultados do estudo indicam que a agenda política da OPAS historicamente apresenta continuidades e descontinuidades. O movimento de renovação da APS expressa uma inflexão importante nessa agenda, pois sugere uma visão mais estratégica da APS, como uma política de reestruturação dos sistemas nacionais de saúde, para além da abordagem programática. Porém, no que concerne à proteção social, várias propostas apresentadas parecem compatíveis com a concepção do “universalismo básico”, que vem sendo difundida na América Latina. Palavras –chave: Atenção Primária à Saúde; Organização Pan-Americana da Saúde; Política Social. Política de Saúde; Serviços de Saúde; Estratégias Nacionais; Américas. ABSTRACT This work discussed the agenda of the Pan American Health Organization (PAHO) for Primary Health Care (PHC) and its possible implications for social protection in Latin America in the 2000s. We tried to situate the building in a historical perspective of the political agenda of PAHO, as well as describe the recent proposals regarding the APS for Latin Americans. The study was exploratory in nature, was based on the theoretical framework of social protection strategies and understand how the methodological literature review and documentary analysis, which relied on contributions from the approach of the new rhetoric of Perelman. The survey sought to identify the concepts and meanings underlying the proposed "renewed PHC", regarding the perspective of social protection, considering three aspects: the target population of PHC (universal or targeted), the scope of APS (broad or restricted) and form of organization of services (public-private relations). The findings indicate that from the rhetorical strategy of building scientific consensus about the effectiveness and efficiency of PHC, PAHO seeks membership of its member countries the idea of organization of health systems based on PHC. In this sense, one should highlight the recurring argument of inspiration in the proposed comprehensive PHC of Alma-Ata Conference, but assuming changes related to the new context. The proposal of renewed APS strongly supports the principle of equity and the notion of sustainability of health systems. It also emphasizes the idea of universal basic services, whose definition is fluid and adaptable to each country's institutional capacity and may comprise a broader scope of services or restricted. In regards to the model of state intervention the proposed renewal of PHC PAHO is guided by a vision of the regulatory state of relations between public and private sector. The study results indicate that the political agenda of PAHO has historically continuities and discontinuities. The movement of PHC renewal expresses an important shift in this agenda, since it suggests a more strategic vision of PHC as a policy of restructuring the national health systems, in addition to the programmatic approach. However, with regard to social welfare, several proposals are not inconsistent with the concept of "basic universalism," which has been widespread in Latin America. Keywords: Primary Health Care, the Pan American Health Organization; Social Policy. Health Policy, Health Services, National Strategies; Americas. LISTA DE QUADROS E FIGURAS Quadros Quadro 2.1: Princípios éticos e políticos e linhas de ação política das agências internacionais em relação à proteção social. Quadro 3.1 – Sistematização das Principais 37 Resoluções das Conferências Sanitárias Pan Americanas, realizadas entre 1902 e 1942. 56 Quadro 3.2 –. Foco da agenda de cada gestão da OPAS, no período de 1902 a 2002. 70 Quadro 4.1 – Sistematização das características e principais argumentos contidos nos documentos analisados. 93 Figura Figura 1.1 - Síntese do modelo de análise referente às relações entre concepção de APS e a proteção social em saúde. 20 Figura 3.1 – Organograma atual da OPAS, 2011. 71 Figura 4.1: Valores, princípios e elementos centrais em um sistema de saúde com base na APS. 80 LISTA DE SIGLAS AB – Atenção Básica AECID - Agência Espanhola de Cooperação Internacional para o Desenvolvimento AFRO - Escritório Regional da Organização Mundial da Saúde para a África AIDS – Síndrome da Imuno Deficiência Adquirida APS – Atenção Primária à Saúde BID – Banco Interamericano de Desenvolvimento BIREME - Centro Latino-Americano e do Caribe de Informação em Ciências da Saúde BM - Banco Mundial BNDES - Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior CENDES - Centro Nacional de Desarrollo de la Universidad Central de Venezuela CEPAL – Comissão Econômica das Nações Unidas para a América Latina e Caribe COHAN - Cooperativa de Hospitais de Antioquia CSC - Consórcio de Saúde e Atenção Social da Cataluña EMRO - Escritório Regional da Organização Mundial da Saúde para Mediterrâneo Oriental ENSP - Escola Nacional de Saúde Pública ESF – Estratégia de Saúde da Família EUA – Estados Unidos da América EURO - Escritório Regional da Organização Mundial da Saúde para a Europa FAO – Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura FFF – Food supplementation, female literacy and family planning. FIOCRUZ – Fundação Oswaldo Cruz FMI – Fundo Monetário Internacional GOBI – Growth monitoring, Oral re-hydration, Breast feeding and Immunization. GTZ - Organismo Alemão para Cooperação Técnica HIV - Human Immunodeficiency Virus IDH - Índice de Desenvolvimento Humano IPCA - Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo IPEA - Instituto de Pesquisas Econômicas e Aplicadas MS – Ministério da Saúde OCIAA – Office of the Coordinador of Inter American Affair OECD – Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico OIT – Organização Internacional do Trabalho OMS - Organização Mundial da Saúde ONU – Organização das Nações Unidas OPAS - Organização Pan-Americana de Saúde PAHO - Organização Pan-Americana da Saúde PHC - Primary Health Care Scielo - Scientific Electronic Library Online RISS – Redes Integradas de Serviços de Saúde SEARO - Escritório Regional da Organização Mundial da Saúde para o Sudoeste da Ásia SPHC - Selective Primary Care SPT – Saúde Para Todos SUS - Sistema Único de Saúde UNICEF - United Nations Children's Fund URSS - União Soviética USAID - Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional WPRO - Escritório Regional da Organização Mundial da Saúde para o Pacífico Ocidental SUMÁRIO Apresentação 12 Capítulo 1 – Metodologia do Estudo 18 1.1. Tipo de Estudo, Referencial e Categorias de Análise 18 1.2. Referencial Técnico e Estratégias Metodológicas 21 Capítulo 2 - Proteção Social, Políticas de Saúde e Atenção Primária em Saúde 25 2.1. Considerações sobre a Proteção Social 25 2.2. A Proteção Social na Agenda Recente das Agências Internacionais 36 2.3. Atenção Primária em Saúde: Aspectos Históricos, Políticos e Conceituais 41 2.4. Atenção Primária em Saúde e Proteção Social 49 Capítulo 3 - As Agências Internacionais e a Política de Saúde: O Caso da 53 Organização Pan Americana de Saúde (OPAS) 3.1. As Agências Internacionais e a Política para a Saúde 53 3.2. O Nascimento da Saúde Internacional nas Américas (1902 a 1920) 56 3.3. Da Oficina Sanitária Pan Americana ao Escritório Regional da OMS (1920 a 1947) 59 3.4. A Consolidação da Organização Pan Americana de Saúde (1947 A 1959) 62 3.5. A Busca de uma Agenda (1960 a 2002) 65 Capítulo 4 – A Agenda Recente da Organização Pan Americana de Saúde - A Renovação da Atenção Primária em Saúde nas Américas 72 4.1. A Trajetória do Movimento de Renovação da APS 72 4. 2. O Documento de Renovação da Atenção Primária nas Américas 76 4.3. Propostas para a Formação da Força de Trabalho 83 4.4. A Proposta das Redes Integradas de Serviços de Saúde (RISS) 87 5. Considerações Finais 95 6. Referências 100 12 APRESENTAÇÃO Desde meados de 1970, a Atenção Primária em Saúde (APS) passou a ocupar um espaço importante no âmbito das políticas públicas de saúde, sendo um elemento central nas reformas setoriais, com vistas à estruturação e organização dos sistemas nacionais de saúde. Contudo, o termo APS adquiriu historicamente diferentes concepções, interpretações e finalidades e, com isso, assumiu distintos papéis nos modernos sistemas de proteção social. Embora o conceito de APS seja multifacetado, a concepção focalizada e restrita tornou-se o modo dominante da APS, principalmente nos países periféricos. Baseada em uma abordagem de programas verticais para grupos ou pessoas vulneráveis, tal concepção não valoriza a compreensão da saúde como direito social nem se orienta para a organização de sistemas de saúde integrados e coordenados. Além disso, ao ignorar o contexto maior de desenvolvimento social, não consegue dar respostas às causas fundamentais da saúde precária. A partir desse cenário, em 2003, a Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) propôs uma retomada do legado da Conferência de Alma Ata, por meio do movimento designado como “renovação da APS nas Américas”. A agência destaca que renovar a APS não significa um ajuste à conjuntura, mas concebê-la como estratégia estruturante dos sistemas de saúde com vistas à sua organização e coordenação para que esses sejam mais efetivos e eficientes e, assim, causem impactos em termos da redução das iniquidades em saúde (OPAS, 2007). Deste modo, o tema desse estudo é a Atenção Primária em Saúde e o objeto é a proposta da OPAS de renovação da APS na Américas nos anos 2000. A escolha do objeto tem relação com a trajetória acadêmica da pesquisadora, pois a APS constituiu-se num foco de interesse e de estudos realizados na graduação em Enfermagem e na Residência em Saúde da Famíliai. Experiências prévias instigaram-na a questionar as possibilidades e limites da APS como elemento estruturador dos sistemas de saúde e suas implicações na proteção social. Soma-se a isso o interesse em compreender o discurso e as possibilidades de inferência das agências internacionais na formação da agenda política para o setor da saúde, principalmente nos países periféricos. i O tema do trabalho de conclusão de curso da graduação em Enfermagem na Universidade do Estado do Rio de Janeiro foi “A Representação Social do Enfermeiro no Programa de Saúde da Família” e na Residência em Saúde da Família na Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca/ FIOCRUZ foi “Os Diferentes Olhares sobre a Qualidade na Estratégia de Saúde da Família de Antares”. 13 A justificativa para o desenvolvimento desse estudo apoiou-se em quatro argumentos inter-relacionados, que partem de alguns pressupostos. O primeiro argumento é que a construção de sistemas sanitários nacionais ao longo da história representa um capítulo importante na constituição dos modernos sistemas de proteção social e na conquista da saúde como um direito social. Como área da proteção social, a política de saúde encontra-se na interface entre Estado, sociedade e mercado. Assim, a saúde está relacionada a um direito social, politicamente conquistado, mas o setor também se configura como um espaço de acumulação de capital. Desse modo, a sociedade financia a saúde com seus impostos e contribuições. O Estado deve criar normas, assumir obrigações na prestação de serviços e regular a iniciativa privada. O mercado produz insumos, tecnologias, recursos humanos e serviços que são vendidos ao Estado e à sociedade. Diante das diferentes dimensões da saúde, a concepção de APS e a configuração que essa adquire nos sistemas de saúde é permeada pela visão de proteção social que orienta as sociedades. Tal visão pode ser mais abrangente quando se baseia em uma concepção universal e abrangente na perspectiva do direito à saúde, ou mais focalizada e restrita quando é concebida como um pacote de serviços focalizados nas populações mais pobres ou nos grupos de risco. Além disso, pode ser mais ou menos mercantil de acordo com a forma de provisão de bens e serviços pelo Estado ou pelo mercado. Desse modo, o lugar que a APS ocupa nos sistemas de saúde terá implicações importantes na proteção social. A compreensão a respeito da APS é modulada por fatores econômicos, políticos e culturais que são intrínsecos aos setores sociais, inclusive aos setores de saúde. Com isso, a APS pode adquirir diferentes conformações: cuidados comunitários em saúde, com ou sem maior articulação com outros níveis de atenção à saúde; primeiro nível de contato dos indivíduos e comunidades com o sistema de saúde, coordenada a outros níveis ou não; assistência para pobres em países periféricos; um conjunto mínimo de atividades “essenciais” à saúde; intervenções simples destinadas a áreas rurais com tecnologias simplificadas; e cuidado de baixo custo para desenvolver os sistemas de saúde (TARIMO; WEBSTER, 1997). Assim, é importante analisar e buscar compreender as concepções subjacentes às propostas relativas à APS e suas possíveis implicações em termos da proteção social em saúde. O segundo argumento para a realização do estudo é que a saúde é uma questão de interesse internacional. O desenvolvimento do modo de produção capitalista modificou a estrutura produtiva da sociedade e, com isso, alterou a correlação de forças entre sociedade, 14 mercado e Estado, assim como impulsionou a reorganização dos espaços nacionais e internacionais. O processo de industrialização promoveu a expansão dos mercados, intensificando as trocas comerciais, o fluxo de mercadorias, pessoas e de doenças, modificando as relações entre os países. A saúde tornou-se uma questão internacional ao influenciar negativamente o comércio entre as nações, ao se adotarem medidas sanitárias que tinham repercussões políticas e econômicas importantes, como a instituição das quarentenas nos portos (LIMA, 2002). A partir da internacionalização da saúde, iniciam-se no final do século XIX fóruns e conferências internacionais acerca do tema. A partir da necessidade de consolidação da hegemonia capitalista e do fenômeno da internacionalização da saúde, criam-se arenas políticas e econômicas para influenciar a formulação e implementação das políticas públicas de saúde, e ainda, a conformação dos sistemas de saúde mundo afora. Em meio a esse cenário e num contexto de disputa de hegemonia ideológica, econômica e política no pós-segunda guerra mundial emergem diversas agências e organismos de cooperação internacional. Assim, as agências internacionais passam a influir na disseminação de ideias e concepções de proteção social e saúde, por meio de mecanismos de oferta de ideias, cooperação técnica e indução financeira. Em um mundo cada vez mais interdependente, a formulação e implementação de políticas públicas nacionais de saúde ocorre a partir de uma interação com a agenda internacional para o setor. Não é possível compreender políticas nacionais sem analisar os vínculos que estabelecem com a comunidade internacional. Desse modo, a agenda nacional sofre influência da internacional, assim como os Estados nacionais mais fortes são os que têm maior capacidade para influir e/ou modificar essa agenda (HOCHMAN, 2007). Diante de um mundo fortemente influenciado pela globalização, reafirma-se a saúde como questão internacional onde a conformação das políticas públicas de saúde e o estado de saúde das populações trazem implicações para todos os povos do mundo. O terceiro argumento é que o tema da Atenção Primária à Saúde ganhou grande destaque nas reformas no setor de saúde nas últimas três décadas, no contexto mais amplo das reformas dos Estados Nacionais. Impulsionadas pelo predomínio da agenda neoliberal, as reformas dos sistemas de saúde em vários países foram orientadas pela reconfiguração do papel do Estado, que de provedor de direitos sociais passou a ser compreendido, prioritariamente, como regulador de bens e serviços. Essas mudanças trouxeram implicações nas modalidades de financiamento e um modelo de prestação da saúde, objetivando racionalizar custos, atender a crescente demanda e obter resultados de saúde mais efetivos e 15 de maior impacto, fazendo prevalecer ações programáticas estratégicas em detrimento da saúde universalizada (FAUSTO, 2005). Ampliou-se ainda o espaço para a iniciativa privada vender e/ou administrar serviços sociais, reafirmando o setor como espaço de acumulação de capital. Nesse cenário, ganhou fôlego no plano internacional a concepção focalizada e restrita de APS, que predominou nos processos de reforma de muitos países latino-americanos. O quarto argumento se relaciona à relevância de analisar a agenda política de uma agência internacional referente à APS, particularmente a agenda da OPAS. Historicamente, o debate político acerca da APS foi acompanhado e difundido por esses organismos, com destaque para o protagonismo da Organização Mundial da Saúde (OMS), do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), do Banco Mundial e, no caso das Américas, da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS). Soma-se a isso a premissa de que os países periféricos são o público alvo preferencial das agências de cooperação internacional, ainda que sua capacidade e formas de influência variem de acordo com a capacidade instititucional do Estado nesses países. Na década de 90 muitos pesquisadores se dedicaram a compreender a dinâmica das agências internacionais, motivados pela consolidação do fenômeno da globalização. Contudo, nesse inicio de século poucos são os estudos, como os de Mattos (2001) e de Matta (2005), que retomam a temática, que continua sendo de grande relevância no campo da formulação e da implementação das políticas públicas. A delimitação do estudo à agenda da Organização Pan-Americana de Saúde se deu, em primeiro lugar, por esta ser a agência internacional de cooperação na saúde mais antiga do mundo (109 anos de existência) e ter a sua atuação voltada principalmente para os países da América Latina. A OPAS foi criada em 1902, a fim de promover ações de colaboração internacional para o restabelecimento das condições de saúde das populações das Américas, assim como produzir normas e consensos técnicos para prevenção e controle de doenças, principalmente das epidemias que assolavam o mundo na época. Quatro décadas depois, com a criação da Organização Mundial de Saúde (OMS) e após extenuantes e difíceis negociações que garantiram a autonomia e identidade da OPAS, essa se tornou um Escritório Regional da OMS para as Américas. (LIMA, 2002). O segundo motivo é o fato de que a OPAS, nos anos 2000, passou a dar destaque para o debate e formulação de propostas relativas à APS, principalmente por meio do movimento de “renovação da APS” nas Américas. Nesse sentido, cabe destacar algumas questões que motivaram essa investigação: após 32 anos da Conferência de Alma- Ata, quais as concepções de APS presentes na agenda da OPAS? O que representa o movimento de renovação da APS para as Américas e sobre quais 16 valores está pautado? Como a OPAS procura influenciar a formulação e implementação da política de saúde dos países latino americanos? Quais as implicações das concepções de APS difundidas pela OPAS para a proteção social na América Latina? Esse estudo procura contribuir para responder parcialmente esses questionamentos, contudo, sem a pretensão de esgotá-los. Assim, o objetivo geral do estudo foi analisar a agenda da Organização PanAmericana da Saúde para a Atenção Primária em Saúde e suas possíveis implicações para a proteção social na América Latina nos anos 2000. Os objetivos específicos foram: (1) situar, em perspectiva histórica, a trajetória de construção de agendas políticas da Organização PanAmericana da Saúde; (2) descrever a agenda da Organização Pan-Americana da Saúde para a Atenção Primária em Saúde nos países latino-americanos nos anos 2000; e (3) identificar as concepções subjacentes e significados do movimento de Renovação da Atenção Primária em Saúde nas Américas para a proteção social em saúde. Além desta apresentação, a dissertação está organizada em outros quatro capítulos e nas considerações finais. O primeiro capítulo apresenta a metodologia da pesquisa, considerando: o tipo de estudo; as categorias de análise; e as estratégias metodológicas adotadas. Destaque-se que o estudo privilegiou a revisão bibliográfica e a análise documental, apoiando-se em contribuições da perspectiva de análise de retórica de Perelman (PERELMAN, C.; OLBRESCHTS-TYTECA, 2000). O segundo capítulo, intitulado “Proteção Social, Políticas de Saúde e Atenção Primária”, traz uma discussão teórico-conceitual acerca dos diferentes modelos de proteção social e de como as políticas de saúde passam a ser parte integrante dos modernos sistemas de proteção social. Dado que as agências internacionais representam o objeto de interesse do estudo, faz-se uma breve discussão a respeito das concepções de proteção social difundidas e fomentadas pelas agências internacionais. O capítulo trata, ainda, das diferentes concepções sobre atenção primária em saúde na literatura nacional e internacional, numa perspectiva histórica, considerando que essa está permeada por valores econômicos, políticos e culturais. Por fim, a atenção primária em saúde é abordada como um elemento de proteção social, admitindo a configuração de diferentes modelos a depender do grau de cobertura, do escopo das ações e ainda do seu caráter mais ou menos mercantil. O terceiro capítulo, intitulado “As Agências Internacionais e a Política de Saúde: O caso da Organização Pan-Americana de Saúde”, inicialmente situa as agências internacionais como atores importantes e influentes na formação das agendas nacionais para a saúde nos países periféricos. Considerando o foco do estudo, aborda-se em perspectiva histórica a 17 trajetória da Organização Pan-Americana de Saúde, com o propósito de compreender os caminhos dessa agência na construção de agendas políticas para os países da América Latina. Procura-se identificar os diferentes momentos dessa trajetória e apontar as principais ênfases das diferentes gestões da organização no período de 1902 a 2002. O quarto e último capítulo, denominado “A Agenda Recente da Organização PanAmericana de Saúde - A Renovação da Atenção Primária em Saúde Nas Américas”, primeiramente traz uma breve contextualização da trajetória institucional desse movimento no interior da Organização Pan-Americana de Saúde. Posteriormente analisam-se as concepções e propostas do movimento de renovação da atenção primária em saúde nas Américas, a partir dos principais documentos da série. São discutidos como elementos centrais desse movimento: a concepção da renovação da atenção primária em saúde, a formação da força de trabalho especializada e ainda a constituição das redes em saúde. Nas considerações finais, analisam-se sucintamente os significados e possíveis implicações do movimento de renovação da APS nas Américas proposto pela OPAS a partir de elementos considerados importantes para a proteção social em saúde, como a relação entre a concepção da APS renovada e o caráter da proteção social, o modelo de intervenção estatal e as estratégias defendidas como relevantes para renovar a APS. 18 CAPÍTULO 1 – METODOLOGIA DO ESTUDO A metodologia da pesquisa é uma relação dialética estabelecida entre o caminho do pensamento e a prática exercida na abordagem da realidade. Inclui simultaneamente a teoria de abordagem (método), os instrumentos empregados para a sua operacionalização (técnicas) e as habilidades do pesquisador. Assim, a metodologia possui destaque central no interior das teorias e está referida a elas (MINAYO, et. al, 2009). 1.1. Tipo de estudo, referencial e categorias de análise Esse estudo consiste em uma pesquisa de natureza exploratória com abordagem qualitativa. A abordagem qualitativa justifica-se pois se busca apreender uma aproximação da realidade que não pode ser quantificada, ao lidar com o universo das significações, motivos, valores e atitudes que correspondem a uma dada realidade social (MINAYO, et. al, 2009). Já a natureza exploratória é porque o estudo representa uma primeira aproximação do tema, com possibilidade de aprofundamento posterior do conhecimento e análises relativas ao objeto do estudo. O estudo enfoca a proposição de alternativas políticas para a Atenção Primária à Saúde (APS) por uma agência internacional – a OPAS -, que busca influenciar as agendas dos governos latino-americanos, com possíveis repercussões para a proteção social em saúde nesses países. Considerando o objeto de estudo, foram importantes para a definição das categorias de análise as contribuições do referencial da análise de políticas públicas e da literatura sobre proteção social em saúde. No que concerne à análise de políticas de saúde é importante a compreensão da OPAS como um ator internacional que busca influenciar a definição de agendas governamentais na saúde por meio da proposição de alternativas políticas em relação a temas selecionados. Diversos autores compreendem a definição da agenda, a formulação e a escolha de alternativas como momentos relevantes na conformação de uma política públicaii. Na literatura de análise de políticas públicas, uma das definições mais tradicionais de agenda é a elaborada por Kingdon (1995), que conceitua a agenda governamental como o ii Os autores que trabalham com a perspectiva de ciclo de políticas identificam que o estudo das políticas públicas de saúde compreende cinco grandes fases: o estabelecimento da agenda pública; a formulação de alternativas de solução do problema; a escolha de uma alternativa; a implementação e a avaliação. Cada uma das fases envolve processos distintos, redes próprias de atores e sofre diversas influências do contexto político mais geral, num processo dinâmico e constante de negociação (VIANA; BAPTISTA, 2009). 19 conjunto de assuntos sobre os quais as pessoas ligadas a ele concentram sua atenção num determinado momento (KINGDON, p., 1995)iii. Ainda que o modelo analítico proposto pelo autor enfatize a dinâmica de conformação das agendas dos governos, segundo Kingdon (1995) as comunidades geradoras de alternativas (policy communities), os especialistas, podem influenciar de maneira importante na formação da agenda, sensibilizando e fomentando a audiência para construir progressivamente a aceitação pública e causar um efeito de multiplicação de ideias que não necessariamente são consensuais. Nesse sentido, podemos considerar que as agências internacionais incluem-se nesse grupo, ao formular propostas e buscar influenciar a conformação das agendas dos governos, por diversos mecanismos. A partir de revisão bibliográfica sobre proteção social e de contribuições do referencial de análise de políticas, foram definidas como principais categorias de análise: (1) trajetória da agenda política da OPAS; (2) estratégias e propostas relativas à APS na agenda recente da OPAS; e (3) concepções e significados das propostas de renovação da APS. (1) Trajetória da agenda política da OPAS – envolve a identificação dos diferentes momentos da trajetória da OPAS, particularmente no que concerne à definição de sua agenda política. Neste estudo utiliza-se o conceito de agenda política para designar o conjunto de estratégias políticas e conteúdo técnico das propostas da OPAS para os países das Américas. A construção da agenda política por uma agência internacional – no caso, a OPAS guarda especificidades relativas à trajetória e às características dessa agência, seus propósitos de atuação, áreas de intervenção, formas de interação com os países e diferentes contextos político-institucionais. Nessa perspectiva, procurou-se reconhecer historicamente os contextos de construção da agenda da OPAS, assim como identificar seu conteúdo (político e técnico), considerando os temas e propostas destacados nos diferentes momentos, a quem se destina essa agenda, e ainda que brevemente, os mecanismos adotados pela OPAS para difundir e influenciar a adoção de suas propostas. Considerando o objeto do estudo, procura-se compreender mais especificamente a trajetória da APS na agenda da OPAS e identificar os possíveis motivos pelos quais a APS passa a ocupar um lugar de destaque no período recente. iii Kingdon (1995) propôs o modelo conhecido como Múltiplos Fluxos, no qual define a formulação da agenda como resultado da convergência de três fluxos: problemas (problems), solução ou alternativa (policies) e política (politics). Esses fluxos quando combinados geram uma oportunidade de mudança na agenda, instala-se uma “janela de oportunidades”. 20 (2) Estratégias e propostas relativas à APS na agenda recente da OPAS – compreende uma breve descrição do contexto institucional em que surge a estratégia designada como “movimento de renovação da APS” nas Américas, bem como a identificação, o mapeamento e a análise das propostas da OPAS para a APS nos anos 2000, abrangidas sob essa designação. Procura-se identificar, ainda que sucintamente, o contexto, os atores, o público-alvo (auditório) e o conteúdo das propostas, utilizando-se o referencial de análise da retórica de Perelman (PERELMAN, C.; OLBRESCHTS-TYTECA, 2000) retomado adiante. (3) Concepções e significados das propostas de renovação da APS - diz respeito à análise das possíveis implicações da concepção de APS renovada para a proteção social, considerando as proposições relativas a: a população alvo da política (a quem se destina?), o escopo das ações e serviços (o que abrange?) e o papel do Estado e do mercado (como se configuram os arranjos entre o público e o privado?). Deste modo, a população-alvo da política tem relação com a concepção de proteção social que fundamenta a APS, que pode ser mais universalizada, baseada na lógica da igualdade de direitos, ou focalizada, com ênfase em populações ou grupos específicos. O escopo da prestação de serviços tem a ver com o caráter da APS, que pode ser abrangente, quando situada em uma perspectiva de organização do sistema, envolvendo uma ampla gama de ações e a garantia de continuidade do cuidado; ou mais restrito, quando compreendida como conjunto circunscrito de intervenções básicas. Já o papel do Estado e do mercado tem relação com o caráter mais ou menos mercantil da APS, no sentido das responsabilidades de financiamento e provisão de serviços. A Figura 1.1 sistematiza esses três aspectos da análise das relações entre a concepção de APS e o caráter da proteção social em saúde. Figura 1.1 – Síntese do modelo de análise referente às relações entre concepção de APS e a proteção social em saúde. PARA QUEM? (universal ou focalizado) O QUE? (caráter abrangente ou restrito) COMO? (relações entre setor público e privado) 21 1.2 . Referencial Técnico e Estratégias Metodológicas Para a coleta de dados foram utilizadas exclusivamente fontes secundárias, tais como a pesquisa bibliográfica e a análise documentaliv. A pesquisa bibliográfica consistiu num inventário e uma seleção bibliográfica nas fontes de informações disponíveis. Realizou-se um levantamento nas bases de dados disponíveis para acesso online, como Scielo (Scientific Electronic Library Online), Portal de Periódicos CAPES e BIREME, a partir dos descritores: Atenção Primária em Saúde, Proteção Social, Agências Internacionais, Organização PanAmericana da Saúde e Renovação da Atenção Primária. Cabe assinalar que uma das dificuldades encontradas foi localizar textos que discutissem a atuação recente da OPAS em geral e particularmente no que se refere à APS. Os documentos utilizados nesse estudo são de domínio público, produzidos pela OPAS e disponíveis no sítio oficial da organização na internet. Os critérios para a seleção dos documentos produzidos nos anos 2000 foram os listados como “documentos essenciais” da OPAS e os documentos sobre o tema da APS voltados para o conjunto dos países da região das Américas/países latino-americanos ou para grupos expressivos desses países. Foram particularmente valorizados na análise os documentos que tratam do movimento de “Renovação da Atenção Primária em Saúde nas Américas”, incluindo declarações, atas de reuniões, comunicados oficiais e os documentos principais da série, que são cinco: 1. Documento de Posicionamento – “A renovação da atenção primária em saúde nas Américas”, publicado em 2007; 2. Documento no. 1- “Estratégias para o desenvolvimento de equipes de atenção primária em saúde”, publicado em 2009; 3. Documento no. 2 – “A formação em medicina orientada para a atenção primária em saúde”, publicado em 2008; 4. Documento no. 3 – “O credenciamento de programas de formação médica e orientação à atenção primária em saúde”, publicado em 2010; 5. Documento no. 4 – “Redes integradas de serviços de saúde: conceito, opções políticas e roteiro para sua implantação nas Américas”, publicado em 2010. iv No campo metodológico a análise documental pode ser dividida duas fases: análise preliminar e a análise. A análise preliminar consiste no exame e crítica ao documento. A fase de análise é a reunião das partes, que considera os elementos da problemática ou quadro teórico, contexto, autores, interesses, confiabilidade, natureza do texto e conceitos-chave. Através de mecanismos de indução e dedução o pesquisador busca reconstruir o documento com vistas a responder seu questionamento (CELLARD, 2008). 22 Selecionaram-se para análise quatro entre os cinco documentos acima. O documento que trata do credenciamento de faculdades de medicina não foi analisado, por tratar de um tema muito especifico que foge ao escopo deste estudo. Os procedimentos de análise documental consistiram no exame e crítica dos documentos selecionados. Realizou-se uma caracterização geral dos documentos a partir dos critérios: momento de produção, identificação dos autores, natureza e propósitos do texto, ou seja, a quem e a que se destinam. A seguir, os documentos foram analisados a partir das questões e das categorias de análise definidas na pesquisa. Como referencial técnico, foram utilizados os seguintes elementos apreendidos da “Nova Retórica” de Perelmanv: o contexto, o auditório e os principais argumentos contidos em cada documento. Para o autor a retórica representa "o estudo dos meios de argumentação, não pertencentes à lógica formal, que permitem obter ou aumentar a adesão de outrem às teses que se lhes propõem ao seu assentimento”. (PERELMAN, C.; OLBRESCHTS-TYTECA, p. 57, 2000). Ou seja, a retórica apresenta-se como um instrumental analítico que permite identificar argumentos e técnicas de persuasão utilizadas num dado auditório de interesse do interlocutor. Os autores completam esta definição incluindo quatro observações que permitiriam precisar-lhe o alcance: 1) a retórica procura persuadir por meio do discurso; 2) crítica à lógica formal, considerando que uma palavra pode ser tomada em vários sentidos; 3) a adesão de uma tese pode ter intensidade variável; 4) a retórica distingue-se da lógica formal das ciências positivistas, pois afirma que a adesão é sempre uma ação de um ou mais espíritos aos quais nos dirigimos, ou seja, um auditório. Assim, a abordagem da “Nova Retórica” apresentada por Perelman, C.; OlbreschtsTyteca (2000) defende que o discurso de um autor envolveria um conjunto de argumentos que se pressupõem como verdadeiros e voltados a um determinado auditório. Assim, o exercício da retórica consiste em argumentar a favor ou contra uma determinada tese e, assim, afirmá-la ou negá-la. Em seu estudo, Matta (2005) complementa que as premissas não necessariamente correspondem às crenças defendidas pelo orador, visto que essas podem ter sido por ele adotadas tão somente como parte da estratégia de persuasão frente a um auditório particular ao qual não pertence. Nesse sentido, identificar as premissas de certo discurso não equivale a identificar as crenças e valores defendidos por quem elaborou o discurso. v O uso retórico- metodológico foi aplicado em dois estudos anteriores para análise de agências internacionais, realizados por Mattos (2000) e Matta (2005). 23 A meta da retórica é produzir ou aumentar a adesão de um determinado auditório a certas teses e seu ponto inicial é a adesão de um determinado auditório a outras teses. Assim, para que a retórica possa se desenvolver é necessário o orador valorizar a adesão alheia e que aquele que desenvolve sua tese queira conquistar uma comunidade. Uma vez que visa a adesão a argumentação retórica depende essencialmente do auditório a que se dirige, pois argumentos aceitos por um determinado auditório podem ser recusado por outros. Assim, o autor destaca a noção de auditório como central na retórica, pois um discurso só pode ser eficaz se adaptado ao auditório que ser quer persuadir ou convencer. O auditório tem como característica ser particular, ou seja, ser diferente em razão de suas competências, crenças, emoções ou pontos de vista. vi O conhecimento do auditório é vital para o sucesso da argumentação. Quanto melhor se conhece o auditório, maior é o número de acordos prévios que se tem à disposição, portanto, melhor fundamentada será a argumentação. Na hipótese de um auditório heterogêneo, o orador pode fundamentar seu discurso em teses geralmente admitidas, em opiniões comuns, naquelas decorrentes do senso comum. A nova retórica considera que os argumentos podem se dirigir a auditórios diversos, assim os argumentos utilizados objetivam influenciar e persuadir, para tal, utiliza-se da linguagem comum ou da linguagem comum adaptada conforme as circunstâncias. É um discurso não especializado por excelência. A argumentação não visa a adesão a uma tese exclusivamente pelo fato desta ser verdadeira, mas por fazê-la parecer mais equitativa, mais oportuna, útil, razoável e adaptada à situação (PERELMAN, C.; OLBRESCHTS-TYTECA, 2000). Assim, a ferramenta retórica é útil para identificar a partir de que argumentos e técnicas de persuasão se constroem os discursos e propostas da OPAS acerca da APS, bem como as técnicas para adesão de um dado auditório, construídas a partir de certo contexto, que compreende um determinado momento histórico do ponto de vista dos autores. Em síntese, neste trabalho a abordagem de análise da retórica foi utilizada para a identificação do contexto de formulação dos documentos, dos auditórios a que se destinam e dos principais argumentos da OPAS relativos à relevância da APS para os sistemas de saúde. Além disso, os argumentos e propostas foram analisados à luz das questões e categorias de vi Perelman, C.; Olbreschts-Tyteca (2000) destaca dois tipos de auditório, o universal e o particular. O auditório universal é constituído por cada qual a partir do que sabe de seus semelhantes, de modo a transcender as poucas oposições de que se tem consciência. Por outro lado, o auditório particular possui premissas que influenciam numa maior ou menor aceitação dos argumentos apresentados ao público em questão. É em um auditório particular, ou especializado, onde se encontram os grandes embates sobre a formação dos consensos científicos. 24 análise previamente apresentadas, relacionadas às concepções de APS e suas implicações para a proteção social em saúde. 25 CAPÍTULO 2 - PROTEÇÃO SOCIAL, POLÍTICAS DE SAÚDE E ATENÇÃO PRIMÁRIA EM SAÚDE 2.1. Considerações sobre a Proteção Social O termo “proteção social” inclui instituições e práticas distintas e que englobam em si uma imensa complexidade. Esse capítulo destina-se a uma discussão teórico-conceitual sobre proteção social e como as políticas de saúde a integram. Posteriormente discutem-se as relações entre proteção social e atenção primária em saúde, a partir da abordagem das tensões entre enfoques distintos de APS - universal e abrangente versus focalizada e restrita - com destaque para o papel exercido pelas agências internacionais. As políticas públicas são definidas como um conjunto de disposições, medidas e procedimentos que traduzem a orientação de um Estado e regulam as atividades governamentais relacionadas ao interesse público. Variam de acordo com o grau de desenvolvimento econômico, o regime social, os governos, o tipo de Estado e o nível de atuação dos diferentes grupos sociais: os partidos políticos, sindicatos, associações de classe e outras formas de organização política da sociedade (BOBBIO; MATTEUCI; PASQUINO, 2000). As políticas públicas englobam ações de âmbito coletivo e individual, sendo as políticas sociais uma interface das políticas públicasvii. As políticas sociais a partir do século XIX originaram os modernos sistemas de proteção social, fruto do equilíbrio e/ou desequilíbrio na relação sociedade, mercado e Estado, que visam minimizar riscos e vulnerabilidades consequentes dos ciclos da vida humana e das desigualdades intrínsecas ao modo de produção capitalista. Fleury e Ouverney (2007) conceituam a política social como uma ação de proteção social, que compreende relações, processos, atividades e instrumentos que visam a desenvolver as responsabilidades públicas (estatais ou não) para a promoção da seguridade social e do bem estar. Portanto, a política social é multifacetada, porque inclui ações intervencionistas na forma de distribuição de vii Existe uma série de correntes políticas e sociológicas que teorizam acerca da natureza do Estado. Todavia essa discussão não será foco deste estudo. Adota-se neste trabalho o conceito de Estado Contemporâneo de Bobbio et.al (2000) que considera ser necessário conjugar dois elementos: o Estado de direito que em síntese expressa os avanços das revoluções democráticas e que instituem que os poderes públicos são regidos por normas gerais e devem ser exercidos no âmbito das leis que os regulam. E o Estado social que indica a necessidade de organização e participação da sociedade no poder político e no uso das riquezas socialmente produzidas, na disputa pelo poder entre interesses sociais conflitantes. 26 recursos e oportunidades, promoção de direitos e afirmação de valores humanitários que devem orientar a organização da sociedade. Quanto ao conceito de proteção social, Viana e Levcovitz (2005) definem: A proteção social consiste na ação coletiva de proteger indivíduos contra riscos inerentes a vida humana e/ou assistir necessidades geradas em diferentes modelos históricos e relacionados a múltiplas situações de dependência. Os sistemas de proteção social têm origem na necessidade imperativa de neutralizar ou reduzir o impacto sobre o individuo e a sociedade. Pode-se, portanto, afirmar que a formação de sistemas de proteção social resulta da ação pública que visa resguardar a sociedade de efeitos dos riscos clássicos: doença, velhice, invalidez, desemprego e exclusão (por renda, raça, gênero, etnia, cultura etc). (VIANA; LEVCOVITZ, 2005, p. 17) Os autores complementam que as ações constituintes da proteção social podem ser agrupadas em três modalidades: assistência social (bens e recursos para camadas específicas da população, com ações do tipo focalizadas, residuais e seletivas); seguro social (benefícios por categoria profissional); e seguridade social (benefícios, ações e serviços para todos dentro de uma unidade territorial). Tradicionalmente as políticas sociais abrangem as áreas da saúde, previdência e assistência social, assim como educação, habitação entre outras que são os campos clássicos do bem-estar social. Cada uma delas está voltada para proteção coletiva contra riscos específicos e, portanto, possui singularidades de elaboração, organização e implementação (FLEURY; OUVERNEY, 2009).viii Para Machado (2005), as diferentes conformações e articulações entre variáveis econômicas, políticas, institucionais e sócio-culturais influenciam e dão o tom na construção da política social de uma nação. Sendo assim, a autora destaca algumas variáveis importantes na conformação dos sistemas nacionais de proteção social, como os distintos momentos do capitalismo e da industrialização, as influências do contexto geopolítico mundial, a correlação de forças entre os diferentes grupos de pressão, o grau de “desmercantilização” das relações entre Estado, famílias e mercado e modos de estratificações ou solidariedade social. viii Segundo Fleury (2001) pode-se caracterizar cinco grupamentos de definições que tem relação com as vantagens e limitações da abordagem social. Assim as ‘conceituações finalísticas’ enfatizam que as políticas sociais devem ter como objetivo a melhoria das condições de vida. As ‘conceituações setoriais’ caracterizam-se pelo recorte de programas e projetos em setores sociais, que apesar de terem um campo de atuação demarcado não reconhecem a necessidade da intersetorialidade. As ‘conceituações funcionais’ chamam atenção para os efeitos das políticas sociais, contudo dificultam o reconhecimento de suas contradições. As ‘conceituações operacionais’ ressaltam os instrumentos e mecanismos para organizar a ação política para enfrentar problemas prioritários, entretanto sua limitação é que possui aspecto essencialmente técnico. Por fim, as ‘conceituações relacionadas’ que percebem a política social como produto das relações entre os diferentes atores e das relações de poder. 27 Os primórdios dos modernos sistemas de proteção social datam do século XIX, da relação entre capitalismo nascente, luta de classes e intervenção estatal. Naquele momento, o capitalismo se fortalece a partir da exploração do trabalhador, fundada na mais-valia absoluta, na intensa jornada de trabalho e no trabalho de crianças, mulheres e idosos. Nesse contexto, acirra-se a luta de classes, expondo a questão social, por meio de greves e manifestações em torno da jornada de trabalho e da garantia de condições mínimas de subsistência. Nesse sentido, a legislação fabril pode ser compreendida como precursora do papel que caberá ao Estado no século XX, na regulamentação de políticas sociais (BEHRING, 1998). ix O surgimento das políticas sociais pelo mundo foi gradual e diferenciado entre os países. Fiori (1997) destaca que os primórdios da proteção social configuraram-se por meio da Lei dos Pobres na Inglaterra (1834). Para o autor essa é uma das primeiras incursões do Estado moderno no campo da saúde. Mediante essa edição, o Estado provia esses indivíduos por considerá-los tendencialmente perigosos para a ordem e higiene públicas. Na Alemanha, a partir de 1883, começou-se a desenhar as origens das políticas sociais norteadas pela lógica do seguro social. Num cenário político orientado pela social democracia alemã no parlamento e na direção dos processos de luta da classe trabalhadora houve o reconhecimento de que eram necessárias medidas de amparo para aqueles que não tinham inserção no mercado de trabalho (idosos, enfermos e desempregados), ampliando-se a visão de benefícios apenas aos miseráveis (BEHRING e BOSCHETTI, 2009). Nessa perspectiva foi implantado o seguro social, que a princípio era uma espécie de solidariedade de classe para minimizar as desigualdades sociais, pois os trabalhadores cotizavam voluntariamente para organizar caixas de poupança e previdência. Em 1883, o chanceler Otto Von Bismarck instituiu o seguro saúde nacional obrigatório, um mecanismo de prestação de renda em momentos de perda da capacidade de trabalho para determinadas categorias profissionais, mais relevantes no processo produtivo (BEHRING e BOSCHETTI, 2009). O modelo bismarckiano é caracterizado por Pierson (1991) como um modelo de seguro social com lógica semelhante a seguros privados, pois é dependente de contribuição compulsória e por vezes excludente. Além disso, o financiamento é realizado basicamente por ix Com o desenvolvimento capitalista a força de trabalho passa a ser uma mercadoria de troca a ser vendida pelo trabalhador e comprada pelo empregador. A partir daí configura-se uma correlação entre força de trabalho, processo produtivo, luta social e intervenção estatal. Com isso, a partir do século XIX assumem-se responsabilidades sociais, dentre elas, a saúde como um bem coletivo e de interesse público, ampliando a abrangência do Estado nesse campo. Assim, o Estado não seria obrigado a atuar apenas em problemas coletivos, mas também individuais (BEHRING; BOSCHETTI, 2009). 28 empregados e empregadores, com gestão estatal ou privada. Entre 1883 e 1914 todos os países europeus possuíam algum tipo de sistema de compensação de renda para trabalhadores fora do mercado de trabalho. No mesmo período onze dos treze países europeus da época introduziram seguro saúde e nove legislaram sobre pensões para idosos. A lógica da proteção social por meio do seguro social ganhou espaço na Europa Ocidental. Deste modo no início do século XX, muitos países europeus já possuíam algum tipo de seguro compulsório contra doença, alguma forma de aposentadoria contributiva, planos para acidentes de trabalho e seguro desemprego obrigatórios. Todavia nenhuma dessas modalidades tinha caráter universal e em sua maior parte estavam condicionadas à capacidade contributiva dos indivíduos (BEHRING e BOSCHETTI, 2009). Os países mais ricos da Europa adotaram diferentes mecanismos para assegurar direitos sociais. As políticas sociais tinham diversas configurações no que se refere à cobertura de benefício, prestação de serviços e financiamento. O Tratado de Versalhes, no final da Primeira Guerra Mundial (1914 – 1918), favoreceu a expansão de direitos trabalhistas e previdenciários (FALEIROS, 2006). Outro marco do desenvolvimento das políticas sociais nos países centrais aconteceu na Suécia em 1938. Em Saltsjobaden foi feito um acordo entre trabalhadores, patronato e Estado, para garantir cooperação de classes para o crescimento econômico e a justiça social, com ênfase na política do pleno emprego. Serviços básicos como saúde, serviços sociais e benefícios da assistência social passaram a ser financiados por um fundo público, configurando o modelo social democrata (FALEIROS, 2008). Nos Estados Unidos, os seguros sociais para desemprego e velhice datam de 1935 e foram introduzidos em meio à primeira grande crise capitalista iniciada em 1929 (FALEIROS, 2006). Em 1942 foi apresentado, na Inglaterra, o Relatório Beveridge. O documento propunha um sistema de segurança social do nascimento à morte. Esse relatório foi posterior a vários outros relatórios e leis que estabeleciam as antigas “Poor Law”. Supunha-se que as crises econômicas seriam superadas com o estabelecimento do pleno emprego (pouco desemprego) e a formação de um complexo sistema de proteção social na ausência do salário. Esse ficou conhecido como o modelo beveridgiano de seguridade social. O Plano Beveridge incorporava um conceito mais ampliado de proteção social baseado na seguridade socialx e propunha a responsabilidade estatal na manutenção das x O modelo de seguridade social preconiza que os direitos devem ser universais e destinados a todas as pessoas incondicionalmente, mas garantindo-se os mínimos sociais a todas em condição de necessidade, inclusive os não contribuintes. O financiamento provém prioritariamente de impostos fiscais e a gestão é pública e estatal. Possui 29 condições de vida das pessoas, por meio de três ações: regulação da economia a fim de manter a empregabilidade, prestação pública de serviços sociais (educação, habitação, saúde e segurança social) e um conjunto de serviços sociais universais, por meio da implantação de uma rede de “segurança social” (BEHRING e BOSCHETTI, 2009). Mas foi após a Segunda Guerra Mundial (1939 – 1945) que os sistemas de proteção social se consolidaram em diversos países. Nesse período um marco importante no contexto das políticas sociais foi a Conferência de Bretton Woods, uma estratégia para reconstrução do capitalismo mundial e instituição de uma nova ordem econômica. A partir de rearranjos políticos, econômicos e sociais foram criados novos organismos internacionais (MATTOS, 2001). Deste modo, segundo Pochmann (2004), a evolução das políticas sociais no inicio do século XX encontraria dois caminhos distintos: o dos estados operários com a instituição do socialismo real a partir da Revolução Russa de 1917 e o das reformas social-democratas que constituíram o chamado Estado de Bem Estar Social ou Welfare State, uma experiência das economias centrais do capitalismo. Nas economias periféricas as reformas social-democratas tiveram menor expressão, produzindo graus diferentes de proteção social. Segundo Viana e Levcovitz (2005) o Welfare State é um modelo específico de intervenção estatal na área social possível num dado momento do desenvolvimento capitalista. Esping-Andersen (1991) refere que o Welfare State não pode ser compreendido apenas em termos de direitos e garantias. É preciso considerar que é uma maneira das atividades estatais se entrelaçarem com o mercado, a sociedade e as famílias em termos de proteção social. Um dos aspectos mais marcantes da proteção social desenvolvida no Welfare State foi o considerável crescimento do gasto público em saúde nos países centrais. As análises de Fiori (1997) e Pochmann (2004) permitem identificar quatro grandes pilares sobre os quais se assentaram o Welfare State. O primeiro pilar é da economia política, que incluiu a antipatia a ideias liberais após a crise mundial de 1929, o estímulo ao consumo em massa, o consenso da necessidade de pleno emprego, o pacto social em torno das políticas keynesianas, o crescimento econômico e a ascensão e consolidação da social democracia. O segundo pilar seria o ambiente econômico internacional criado a partir do acordo de Bretton Woods que permitiu uma coalizão de forças. O terceiro seria a necessidade de construção de como princípios a unificação institucional e uniformização de benefícios. No modelo brasileiro a Seguridade Social inclui: previdência condicionada à contribuição prévia, saúde universalizada e assistência social não contributiva destinada a grupos vulneráveis (VIANNA, 1999). 30 uma “solidariedade nacional” socialmente orientada tanto para os governos conservadores, social-democratas e liberais com vistas ao isolamento da influência socialista gerada pelo quadro geopolítico do período pós segunda guerra mundial. E por fim, o quarto se expressaria pelo avanço das democracias partidárias e de massas que permitiu que a concorrência eleitoral elevasse o peso das reivindicações dos trabalhadores, por meio dos seus sindicatos e partidos, além de possibilitar a chegada de representantes operários ao Legislativo e posteriormente dos partidos de base operária ao Executivo.xi O estudo de Arretche (1995) destaca que fatores econômicos e políticos estão relacionados à emergência e desenvolvimento do Welfare State. Os argumentos de ordem predominantemente econômica são dois. O primeiro apresenta o Welfare State como desdobramento necessário às mudanças sociais impostas pela industrialização, tanto na vida social quanto nas formas de intervenção do Estado, o qual passa a ter que garantir padrões mínimos sociais assegurados como um direito político. O segundo é uma visão de Welfare State como resposta às necessidades de acumulação e legitimação do sistema capitalista e de harmonização de tensões sociais. Os fatores preponderantes de ordem política para a emergência e o desenvolvimento do Welfare State incluem: a ampliação progressiva de direitos, a realização de um pacto entre capital e trabalho organizado, a capacidade de mobilização e organização dos trabalhadores no interior de diferentes matizes de poder (Estado, sociedade, partidos, sindicatos) e as configurações de um dado momento histórico do desenvolvimento capitalista com características peculiares no que se refere a respostas às pressões sociais e capacidade institucional (burocracias públicas, capacidades estatais e recursos disponíveis) (ARRETCHE, 1995). Dentre as inúmeras teorias explicativas dos tipos de Welfare State, dois modelos são tradicionalmente utilizados na literatura: o proposto por Titmuss (1974) e, posteriormente, o sugerido por Esping-Andersen (1991). Titmuss (1974) (apud Draibe (1989)) descreve a tipologia de Welfare State a partir da relação Estado-Mercado no campo social, ou seja, o Estado intervém na economia de modo a corrigir “distorções” geradas pelo modo de produção capitalista por meio da introdução de mecanismos de complementação, substituição e redistribuição de renda. Assim o autor identifica três tipos de Welfare State: xi Os Welfare States representam uma experiência até então inédita em termos de proteção social e trabalhista. Para tal coube ao Estado um papel singular no que se refere ao processo de expansão da produção e economia associado ao enfrentamento de desigualdades geradas pelas sociedades capitalistas. Portanto, a partir de uma necessidade do modo de produção capitalista e ainda da crescente politização da classe trabalhadora e da vida social, nas três décadas após a 2ª Guerra Mundial o Welfare State cumpriu um papel fundamental no enfrentamento da pobreza, do desemprego e das desigualdades nos países centrais (POCHMANN, 2004). 31 a. Welfare State Residual: caracterizado por uma política seletiva e focalizado nos mais pobres, com forte caráter assistencialista, pela baixa participação do Estado no financiamento e pelo reduzido número de riscos cobertos. Atua com base em canais privados (mercado e famílias). Característico dos Estados Unidos da América. b. Welfare State Meritocrático Particularista: a ação social intervém parcialmente para corrigir ações do mercado. Um dos critérios de elegibilidade é a participação do indivíduo na construção do sistema, que contribui diretamente para a sustentação das políticas. Tende a reforçar as desigualdades preexistentes, tendo em vista que indivíduos com maiores dificuldades para satisfazer as suas necessidades, são também indivíduos com menor capacidade para contribuir para o seguro social. Pode ser mais corporativo (o princípio estruturante é a posição do indivíduo no mercado de trabalho, por isso é baseado no mérito, no desempenho individual, na produtividade e na força dos sindicatos) ou clientelista (cujo principio estruturante é a autocracia, as relações de poder entre provedores e beneficiários com forte deslocamento das relações de poder para o sistema eleitoral). Os sistemas de proteção social construidos pelos países latino-americanos aproximam-se desse tipo. c. Welfare Institucional Redistributivo: caracterizado por uma política que tende à redistribuição de renda, ao universalismo e à igualdade de direitos, devido a sua ampla cobertura. As políticas de bem estar são percebidas como importantes instituições sociais e esse tipo de Estado apoia-se no conceito de justiça social. Os países escandinavos se enquadram nesse tipo. Posteriormente Draibe (2007) propõem o acréscimo de um quarto tipo com base nas relações familiares e de gênero nas sociedades, o “familismo”, tipo necessário para a compreensão do Welfare State desenvolvido, principalmente nas sociedades orientais, onde a família e as mulheres desempenham um papel preponderante. Para Esping Andersen (1991) há três tipos possíveis de Welfare State, que podem ser classificados de acordo com o regime político- partidário, englobando: a. Welfare State Liberal: predomina a proteção social assistencialista e focalizada nos mais pobres para garantir os mínimos necessários, com reduzidas ações de âmbito mais abrangente e universalista. Esse tipo inclui regimes típicos dos Estados Unidos, Canadá e Austrália. b. Welfare State Conservador: apoia-se num um legado do corporativismo estatal como mecanismo de concessão de direitos sociais e manutenção do status quo. Agrupa nações como Áustria, França, Alemanha e Itália. 32 c. Welfare State Social-Democrata: busca a garantia de direitos que tendem a ser universais, almeja promover melhores padrões de qualidade de vida, mas não supera as desigualdades. Regime característico de países nórdicos. Embora estas sejam tipologias clássicas, a generalização de medidas e política social no Welfare State apresentará variações quanto à cobertura (mais ou menos universal), a prestação de serviços e o padrão de financiamento (redistributivo e/ou contributivo), o grau de participação do Estado e a amplitude dos riscos cobertos (ESPING - ANDERSEN, 1991). Faleiros (2006) destaca que o Welfare State foi um modelo de intervenção estatal no setor social característico dos países capitalistas centrais. Os países periféricos não experimentaram a existência do Welfare State pleno, devido às profundas desigualdades de classes e a fragilidade para se implantar políticas efetivamente universais. Na América Latina, cada país construiu seu modelo de proteção social. Hoje se pode dizer que todos os países possuem sistemas de proteção social, contudo com limitações, como a ênfase nas políticas corporativas e nos programas de assistência à população mais pobre. Por vezes, o acesso é dificultado por critérios governamentais, clientelistas e de favoritismo político. Ou seja, não se trata de um direito inviolável e nem da constituição de sistemas de bem estar público de acesso universal. Pelo motivo acima e ainda por se tratar de um modelo de proteção social característico dos países centrais, os países latino-americanos em particular não se enquadram completamente nessas tipologias. Contudo, ao longo do século XX, vários países latinoamericanos parecem ter constituídos sistemas de proteção social do tipo meritocrático – particularista com características corporativistas e assistencialistas. Tais sistemas foram designados por Draibe (1997) como “imperfeitos” e “deformados” devido a fatores estruturais relacionados à desigualdade social nesses países e fatores institucionais e organizacionais tais como: alto grau de centralização, frágil capacidade regulatória do Estado, corporativismo de grupos profissionais e uma espécie de assistencialismo liberal marcado por um financiamento regressivo e não redistributivo que favorece manipulações clientelistas e a manutenção das desigualdades e da pobreza. Fleury (2001) refere que no contexto da América Latina as instituições de proteção social foram fundamentais na “arte de governar”, pois mais do que expandir uma cultura cívica objetivaram estabelecer um importante canal de apoio e legitimação de governos populistas junto à classe trabalhadora. Fiori (1997) identifica alguns elementos nos países latino-americanos que tornaram os ideais do Welfare State refratários às realidades locais: 1) diferenças materiais e econômicas 33 entre as políticas keynesianas e suas congêneres desenvolvimentistas; 2) a localização desses países na ordem política e econômica mundial, principalmente a partir dos desdobramentos do pós Segunda Guerra Mundial; 3) a predominância de governos autoritários e reacionários no contexto dos países latinos americanos. A partir da década de 1970 emerge no contexto internacional um debate acerca da governabilidade dos Estados. Segundo conservadores havia um excesso de demandas democráticas com custos crescentes que inclusive influenciaria na crise econômica mundial a partir de 1973/75xii. Por outro lado, por parte da esquerda havia um incômodo acerca do aprofundamento da “democracia participativa” como elemento para cooptação e imobilização da classe trabalhadora. Desse modo idéias neoconservadoras com forte cunho neoliberal se disseminaram pelo mundo (FIORI, 1997). A partir de uma revisão de literatura sobre as tendências de reformas do Welfare State, Machado (2005) identificou três diferentes correntes explicativas sobre as diferentes respostas dos países às pressões por mudanças na modelo de intervenção estatal. A primeira corrente, a economia política, destaca que países com modelos de proteção social do tipo “social democrata” ou “universalista puro” teriam mais capacidade para se ajustar as transformações, devido a um maior equilíbrio entre Estado, sociedade e mercado que os tornaria refratários a políticas sociais focalizadas e restritas. Já países com modelos de proteção social do tipo “liberal” ou “corporativo-ocupacional” estariam mais vulneráveis à seletividade, devido à conjuntura de baixo crescimento econômico e redução de emprego. Um segundo campo de análise destacado pela autora é o de cunho institucionalista, que destaca a capacidade de resistência dos sistemas de proteção social abrangentes, devido a duas razões principais: o grau de apoio popular e a robustez institucional. Uma terceira corrente de estudos explica as diferentes respostas com foco na política propriamente dita e no papel das lideranças. As mudanças advindas de reformas, que são vistas como fruto de várias dimensões que incluem ideias, interesses e escolhas dos atores envolvidos, com isso, não são explicadas apenas pela economia ou ainda pela institucionalização (MACHADO, 2005). Deste modo, as reformas neoliberais adquiram várias formas e matizes, entretanto algumas proposições foram muito presentes: 1) um Estado forte para romper o poder dos xii A crise capitalista dos anos 70 foi impulsionada pelo o aumento do preço do petróleo, a revolução tecnológica, a internet, o fim da guerra fria e a hegemonia liberal dos Estados Unidos da América influenciaram as empresas buscarem mecanismos de estruturação globais para serem competitivas. Com isso, houve pressões para a redução da soberania dos Estados. Principalmente nos países periféricos os sistemas de proteção social foram pressionados a mudar pelo processo global de acumulação de capital e por questões internas como o ajuste fiscal, a busca por lucros e os crescentes índice de desemprego (FALEIROS, 2008). 34 sindicatos e controlar a moeda; 2) um Estado seletivo para os gastos sociais; 3) a busca da estabilidade monetária como meta suprema; 4) uma forte disciplina orçamentária, com contenção dos gastos sociais e restauração de uma taxa natural de desemprego; 5) uma reforma fiscal, favorecendo os setores mais abastados da sociedade; e 6) a fragilização dos direitos sociais, implicando na quebra da vinculação entre política social e esses direitos. (BEHRING, 1998). No ambiente internacional a propagação de ideais neoliberais foi favorecida por um grupo de elementos no plano econômico, geopolítico e político ideológico. Os elementos econômicos compreendem: o consenso contrário às políticas keynesianas, a flexibilização da produção, o aumento do desemprego e o baixo crescimento econômico. O campo geopolítico envolve: o fim da guerra fria e a formação de blocos regionais. No plano político ideológico, destaca-se o fim da ameaça socialista, o enfraquecimento dos sindicatos e partidos relacionados ao mundo do trabalho, a fragmentação da classe trabalhadora e o recuo nos ideais sociais democratas. Para o autor o centro da crise do Welfare State esteve no processo econômico da globalização (FIORI, 1997). xiii Draibe (1993) identificou dois momentos da implementação da agenda neoliberal. Um primeiro momento embasou-se em recomendações para superar a crise por meio da negação de princípios sociais democratas e socialistas de regulação econômico-social. Houve um redirecionamento das políticas sociais caracterizado por: redução do gasto social, subfinanciamento e desativação de políticas e programas sociais, negação da universalidade, ênfase em programas assistencialistas e imobilização de sindicatos e movimentos organizados da sociedade. Após os anos 90, configura-se um segundo momento de redirecionamento dos gastos sociais para a eliminação da pobreza e busca de equidade, que inclui razões de ordem econômica, ao compreender medidas que capacitem setores destituídos a produzir e adquirir bens de consumo e serviços básicos. Além disso, esse momento envolve razões políticas que garantam estabilidade social evitando tensões sociais e razões sociais de ampliação de benefícios e direitos (DRAIBE, 1993). Na América Latina, a agenda neoliberal para os programas sociais chega em meio a um período de redemocratização, luta social pelo fim dos regimes ditatoriais e ampliação de xiii Os impactos da globalização para o avanço do neoliberalismo podem ser exemplificados por medidas como: reestruturação produtiva e ocupacional, migrações populacionais, competição global e sistêmica inaugurada pela desregulamentação dos mercados, aumento nos índices de desemprego estrutural, o que afeta as contribuições sociais, aumento do corporativismo e redução da ação estatal (FIORI, 1997). 35 direitos políticos e sociais. Draibe (1993) identifica elementos em comum na implementação da agenda neoliberal na America Latina, dentre os quais: a ênfase em benefícios de renda mínima, a descentralização, a focalização e a privatização. As políticas de renda mínima são caracterizadas pela alocação direta de recursos em dinheiro para os beneficiários. A descentralização é adotada para aumentar a eficiência e eficácia do gasto social e a interação de gastos governamentais e não governamentais para o financiamento das áreas sociais. A focalização valoriza o enfoque seletivo e emergencial de destinação de recursos sociais. Já a privatização pode ser identificada por elementos como: a transferência e venda de estabelecimentos e serviços públicos para o setor privado; a desobrigação governamental por atividades públicas conduzindo a demanda para o setor privado; o financiamento público para setor privado; e desregulação e/ou desregulamentação do monopólio governamental para permitir a entrada do setor privado (DRAIBE, 1993). Com a preocupação de conter gastos e reduzir custos, foram criados mecanismos de barreiras de acesso a benefícios, como a introdução da participação dos usuários no custeio dos cuidados à saúde e a generalização de programas focados na população pobre. Com o neoliberalismo, a tradição universalista de diretos sociais intocáveis como saúde, educação, habitação, previdência e assistência social perde espaços para o enfoque focalizado e restrito. O papel do Estado passa de promotor de políticas universalistas para financiador de políticas e programas públicos de assistência aos mais pobres. Aos demais se garante a abertura do mercado para compra de serviços e bens sociais no setor privado. Fausto (2005) refere que o modelo político-econômico neoliberal trouxe repercussões importantes para o desenvolvimento das políticas no âmbito da saúde. Houve inclusive retrocessos, devido à manutenção e ao aprofundamento das desigualdades sociais, e com isso piora nas condições de saúde da população. Nota-se o Relatório das Nações Unidas de 2003 (United Nations Development Program- Human Development Report, 2003) que argumenta que o tipo de ajuda internacional destinada aos países periféricos não foi bem sucedido. De acordo com o relatório, 54 países estavam mais pobres no início dos anos 2000 do que em 1990 e a expectativa de vida regrediu em 34 países, principalmente na África. Ou seja, alguns dos países periféricos que foram submetidos aos ajustes neoliberais propostos pelo FMI e Banco Mundial tiveram piora nas suas condições de saúde com aumento das desigualdades sociais e exacerbação da pobreza. Fausto (2005) aponta que problemas da agenda de políticas como pobreza e injustiça social permaneceram como questões a serem enfrentadas na década de 2000. No caso do setor de saúde, destacam-se 36 problemas como acesso desigual, altos custos da atenção médica especializada e a baixa eficiência e efetividade dos sistemas nacionais de saúde. 2.2. A Proteção Social na Agenda Recente das Agências Internacionais As transformações do mundo globalizado trouxeram repercussões para o setor saúdexiv,xv. Matta (2005) destaca que após a década de 1990, ganha ênfase um campo político denominado “Saúde Global” que aparece muito mais como “uma nova forma de gerenciar, negociar e fazer política internacional do que um campo científico, uma nova disciplina” (MATTA, 2005, p. 64). Tal campo político tem como objetivo relacionar as mudanças do mundo globalizado e suas influências para a saúde dos povos e do mundo como um todo e envolveria: Instituições governamentais como Office of Global Health do Departamento de Saúde e Serviços Humanos do governo americano; instituições acadêmicas como a Universidade de Pittsburgh nos Estados Unidos; organizações nãogovernamentais como o Global Health Council; programas de grandes organizações e corporações econômicas como o Global Health Intiative do Fórum Econômico Mundial; Programas e Políticas de agências internacionais como a Organização Mundial da Saúde, o Banco Mundial e a UNICEF (MATTA, 2005, p. 55). Apesar de ser um movimento recente e em disputa nas diferentes instituições, algumas estratégias e propostas seriam comuns entre seus participantes, tais como: o controle de doenças globais, o controle e a disseminação de hábitos de vida saudável, a atenção aos países pobres, o desenvolvimento de parcerias entre setor público e privado e as orientações para a organização dos sistemas de saúde. Tais medidas, segundo seus defensores, seriam capazes de influir na redução das iniquidades em saúde (MATTA, 2005). No que concerne à saúde, verifica-se o acirramento das contradições perante o processo de globalização em curso, no qual o complexo médico-industrial – a indústria xiv O termo ‘globalização’ começou a ser difundido durante os anos 80 sugerindo uma a ideia de unificação do mundo, como resultado dos três processos que marcaram o fim do “breve século XX”: a vitória política do neoliberalismo, a interrupção da ‘construção nacional’ na periferia do capitalismo, determinado pelo pagamento da dívida externa e a desintegração da União Soviética. Esses três acontecimentos encerram as três maiores mudanças históricas do século: a Revolução Socialista Russa, primeira alternativa real ao capitalismo; as variadas experiências de construção nacional independente dos países do ‘Terceiro Mundo’ e a vitória da socialdemocracia (HOBSBAWN, 1995). xv A globalização é um fenômeno multifacetado, que compreende um processo de “mundialização” da economia, uma reconfiguração do capitalismo com repercussões políticas, sociais e culturais. A globalização intensificou fluxos, tornando transnacionais a economia, a indústria, o comércio e a cultura. Também aumentou o fluxo de pessoas, mercadorias, informações e tecnologias, contudo de maneira desigual, desde a distribuição de riquezas ao acesso de bens e serviços (LISZT, 1997). 37 farmacêutica, a de equipamentos e a de insumos médicos – destaca-se como um dos mais ativos polos do capitalismo, pressionando pelo crescimento da saúde como mercadoria e como setor de realização do lucro (GADELHA, 2003). Num contexto de internacionalização da economia e implementação de reformas do Estado, as agências internacionais desempenharam um papel importante na formulação e proposição de políticas sociais, principalmente para os países periféricos, como na América Latina. O Quadro 2.1 sistematiza a linha de atuação das principais agências internacionais para a proteção social no início dos anos 2000. Quadro 2.1: Princípios éticos e políticos e linhas de ação política das agências internacionais em relação à proteção social. Princípios éticos e políticos Igualdade de oportunidade inicial OIT OPAS CEPAL OMS Educação/ capacitação e saúde integral com busca a justiça social Políticas de transferência de renda Banco Mundial e BID Educação/ capacitação e saúdepromoção, prevenção e APS Políticas de transferência de renda Educação/ capacitação e saúdepromoção, prevenção e APS Políticas de transferência de renda Educação/ capacitação e saúde integral Políticas equitativas em saúde Educação/ capacitação e saúdepromoção, prevenção e APS Políticas sociais equitativas Educação/ capacitação e saúdepromoção, prevenção e APS Políticas equitativas e/ou seletivas em saúde Segurança pelo mercado de trabalho Política de emprego Política de emprego Política de emprego Não pauta Política de emprego Segurança pela política social Welfare State Manejo social do risco Gestão do risco Políticas universais de saúde Segurança política por programas ex post Políticas focalizadas Políticas focalizadas Políticas focalizadas Políticas focalizadas Política universal de educação e gestão pública do risco Políticas focalizadas Universalismo Sim Mix Mix Mix Correção de desigualdade ex post OECD Não (Políticas focalizadas p/ os mais destituídos) Não pauta Gestão pública risco Políticas focalizadas Não / Novo Universalismo Fonte: Viana e Levcovitz (2005, p.51) – a partir de livre adaptação de Girotti (2000). Nota: OECD – Organização de Cooperação e de Desenvolvimento Económicos; BID – Banco Interamericano de Desenvolvimento; OIT – Organização Internacional do Trabalho; OPAS – Organização Pan-Americana de Saúde; CEPAL - Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe. 38 De acordo com a sistematização no quadro anterior, destaca-se que o Banco Mundial e o BID têm posições semelhantes na definição das ações e concepções de proteção social. Para essas instituições o nível de proteção social está relacionado ao grau de desenvolvimento econômico e deve incluir ações como: igualdade de oportunidades iniciais, correção de desigualdades do mercado, segurança via mercado e manejo social de riscos, ou seja, política social seletiva. Por outro lado, a OECD mesmo sendo uma instituição com foco econômico, está imbuída da tradição europeia que pouco diferencia suas recomendações pelo grau de desenvolvimento econômico do país, o que de certa maneira pode ser explicado pela maior homogeneidade econômica entre os países europeus e por uma tradição mais consolidada no que diz respeito a políticas sociais mais abrangentes. Suas recomendações são influenciadas por valores de justiça social para redução de iniquidades e constituição de economias mais fortes (VIANA; LEVCOVITZ, 2005). A CEPAL e a OIT destacam-se por proporem a igualdade de oportunidade inicial, como a segurança para inserção no mercado de trabalho, afirmando a importância de princípios como igualdade e solidariedade e não-discriminação. Contudo, a CEPAL considera que a universalidade não se opõe à seletividade, pois este princípio não pode ser financiado por todos os Estados (VIANA; LEVCOVITZ, 2005). A OMS afirma que não é possível oferecer serviços de qualidade para todos em função dos limites financeiros dos Estados, com crescimento de gastos, demandas e expectativas da população com os sistemas de saúde. O Estado deve fortalecer sua função de regulador e fomento ao sistema privado por meio de mecanismos de subsidio público e controle de provedores privados. Essa ideia fica explicitada no conceito de novo universalismo. Por fim, a OPAS faz a defesa de políticas sociais públicas mais abrangentes que fortaleçam ações intersetoriais para promoção e proteção da saúde. Contudo, a equidade (cobertura, uso, acesso e funcionamento) pode se alcançada por meio da provisão pública ou privada (VIANA; LEVCOVITZ, 2005). Dessa forma, a CEPAL, a OPAS e a OIT parecem admitir posições mais intermediárias entre o universalismo “puro” e a responsabilidade individual. Mas, apesar dos esforços para a sistematização, Viana e Levcovitz (2005) apontam alguns limites nessa análise. Primeiro porque, embora todas sejam agências internacionais, essas diferem em sua história, cultura e missão. Em segundo lugar, porque suas posições podem ser mutáveis ao longo dos anos e de acordo com seus dirigentes; terceiro porque essas visões são levadas a público por meio de documentos, relatórios e artigos com abordagens metodológicas diversas. Por último, existem diferenças com relação ao lugar da proteção social. Por exemplo, Banco 39 Mundial, BID e OIT atrelam a proteção social ao nível de desenvolvimento econômico e com base nessa perspectiva fazem suas recomendações (VIANA; LEVCOVITZ, 2005). Considerando a especificidade do cenário da América Latina e do Caribe, em 2007 o BID lançou o documento “Universalismo Básico: Uma Nova Política Social para a América Latina” no qual a partir da caracterização do histórico da proteção social na America Latina e no Caribe desenha a proposta do universalismo básico como modelo de proteção social para o século XXI (FILGUEIRAS, el. al, 2007). Deste modo, o BID destaca que a região experimentou dois modelos de proteção social historicamente. Numa primeira etapa marcada economicamente pelo nacional desenvolvimentismo e a substituição de importações, destacou-se entre os países mais desenvolvidos da região o modelo de proteção social estratificado com base na inserção no mercado formal. Ou seja, o modelo do tipo coorporativo, em que as corporações com melhor inserção no processo produtivo dispunham de melhores bens e serviços. Contudo, a região historicamente é marcada por índices importantes de desemprego e informalidade, o que gera um nível importante de ausência de cobertura (FILGUEIRAS, el. al, 2007). A segunda etapa se inicia com a abertura neoliberal no final dos anos 70, que rompe com a noção de laços de solidariedade social, fragilizando o conjunto dos trabalhadores, principalmente os setores excluídos do mercado formal. No período recente as políticas corporativas perdem espaço, cria-se um novo paradigma para os setores sociais a partir de reformas privatizantes com base na focalização, na privatização, nas parcerias entre setores públicos e privados e na descentralização. Com isso, aumentam-se as desigualdades sociais na América Latina e no Caribe (FILGUEIRAS, el. al, 2007). Portanto, o histórico caracterizou-se por uma política social pouco efetiva, eficiente, equitativa e sustentável no contexto latino-americano e caribenho. Assim para reverter tal situação o BID propõe uma reorientação da política social com base no conceito de universalismo básico: El universalismo básico, si bien apunta a promover un conjunto de servicios de cobertura universal que cumplan con estándares de calidad para todos, se propone para un conjunto limitado de prestaciones básicas, que incluye las prestaciones essenciales de derecho universal, que variará de acuerdo con las possibilidades y definicioes proprias de cada país. Se trata de una propuesta realista que entiende las limitaciones presupuestarias e institucionales de la región. Implica también un desafio, pues al proponer servicios básicos de calidade para todos, jalonará, tal y como ha sucedido históricamente en el contexto mundial, incrementos en los recursos públicos destinados a los sectores sociales. Asi, sobre las prestaciones básicas iniciales se irá construyendo una protección social de mayor alcance a medida que se vaya fortaleciendo la atención y el respaldo social a servicos sociales de calidad. Para que esto se dé, se requiere fortalecer el manejo eficiente y 40 transparente de los recursos públicos y el uso de mecanismos que permitam ir resolviendo virtuosamente las tenciones entre demandas sociales y restricciones fiscales (FILGUEIRA, el. al, p. 21, 2007). Seguindo a mesma direção a ONU (2011) assume como evidência a estimativa que atualmente 80% da população mundial não está assegurada por um sistema de proteção social que lhes permita o acesso a serviços sociais essenciais universais. Para tal, propõe a criação de um ‘Piso de Proteção Social’ que não parte de um padrão universal de serviços que seriam garantidos, mas da disponibilidade e oferta de cada país. Assim, o ‘Piso de Proteção Social’ tem relação direta com a capacidade institucional dos países de ofertar serviços de nível básico de qualidade para toda a população. Destaca que muitos países já estão se adequando a essa lógica, inclusive por meio dos programas de transferência de renda, com destaque para o Programa Bolsa Família no Brasil. A equidade surge como pré-condição para a proteção social e para o desenvolvimento econômico. A agência parte do pressuposto de que além de ser um direito humano a proteção social é um investimento econômico. Assim nesse momento da história do capitalismo mundial (sob efeitos da crise econômica iniciada em 2008)xvi investir em políticas sociais significa potencializar a retomada do crescimento econômico mundial. Portanto o ‘Piso de Proteção Social’ deve estar na agenda de desenvolvimento global. Para a ONU, a lógica parece ser simples: sem um nível básico de investimentos sociais (saúde, educação, alimentação, etc) os trabalhadores não conseguirão atingir condições bio-psico-sociais para se tornarem produtivos e ingressar na economia formal, o que em longo prazo trará ônus aos sistemas de proteção social e ao capital humano (ONU, 2011). Draibe (2005) refere que as políticas sociais devem estar associadas ao conceito de desenvolvimento que supõem a indissociabilidade do social e econômico. Para a autora, tal visão não se contrapõe e nem reduz a importância do crescimento econômico, contudo o considera um meio necessário e não um fim em si mesmo para alcançar o desenvolvimento. Deste modo, a política social deve ter como fundamentos: os direitos sociais (produto de sociedades democráticas, participativas e que respeitam direitos) e a equidade e igualdade (padrões mínimos que devam ser alcançados por todos). Além disso, deve-se apoiar em princípios e diretrizes como: a universalidade, a solidariedade e a gestão integrada e eficiente de programas. xvi Assim como no Keynesianismo a política social nesse momento da história do desenvolvimento capitalista pode constituir-se como uma estratégia anticrise cíclica do capital. 41 O universalismo básico parece ganhar destaque como um dos modelos de proteção social fomentados pelas agências internacionais nos anos 2000, especialmente para os países periféricos, o que inclui o conjunto da América Latina e Caribe. Trata-se de um conceito muito difuso que permite dialogar com um escopo amplo de políticas sociais, desde as mais seletivas até as mais abrangentes. 2.3. Atenção Primária em Saúde: Aspectos Históricos, Políticos e Conceituais Parte da discussão sobre a história e as concepções de APS inclui a contextualização do termo que é utilizado neste estudo. Segundo Fausto (2005), o termo Atenção Primária em Saúde (APS) pode adquirir diferentes significados para atores, épocas e lugares diferentes, pois sua conceituação está relacionada a fatores históricos, políticos e econômicos. Reconhecendo as múltiplas representações do termo, o primeiro desafio para a compreensão da APS é uma reflexão sobre suas diferentes possibilidades interpretativas. As ambiguidades terminológicas podem ser identificadas em três sentidos: primária como porta de entrada de um sistema de saúde e/ou como barreira para os demais níveis de atenção quando assume uma função de triagem; primária como principal e central, que deve ser articulada a demais níveis de atenção expressando uma relação de integração e interdependência; e primária num sentido de básico, e com isso seletivo e excludente de outros elementos fundamentais ao cuidado (FAUSTO, 2005) xvii. Vuöri (1985) alerta que é necessário compreender a diversidade de sistemas e serviços de saúde existentes no mundo. Considerando essa diversidade, o autor elenca quatro enfoques possíveis sobre a APS: conjunto de práticas de promoção, prevenção e reabilitação; um primeiro nível ou “porta de entrada” do sistema de saúde; uma estratégia de reorganização do sistema de saúde com vistas à cobertura universal, distribuição de recursos, acessibilidade, coordenação entre os diferentes níveis de atenção e colaboração intersetorial; uma filosofia que envolve o reconhecimento do direito a saúde. xvii Vários autores tratam indistintamente os termos ‘Atenção Primária em Saúde (APS)’ e ‘Atenção Básica em Saúde (ABS)’. Contudo o conceito de ABS foi forjado no contexto da reforma sanitária brasileira, que expressa princípios e diretrizes do SUS. O termo foi usado naquele momento do ponto de vista ideológico como uma resistência ao termo de APS vinculado pelos organismos internacionais (MATTA e FAUSTO, 2007). A Atenção Básica é definida pelo Ministério da Saúde (2005) como: um conjunto de ações de saúde no âmbito individual e coletivo que abrangem a promoção e proteção da saúde, prevenção de agravos, diagnóstico, tratamento, reabilitação e manutenção da saúde. Nesse estudo será adotado o termo Atenção Primária em Saúde, por compreender que é o utilizado internacionalmente e, por isso, mais adequado ao objeto de estudo, que é agenda da Organização Pan-Americana de Saúde. 42 Giovanella e Mendonça (2007) identificam três linhas principais de interpretação da APS: como um programa focalizado e seletivo, constituído por uma cesta mínima de serviços de saúde; como um dos níveis de atenção à saúde, que corresponde aos serviços ambulatoriais e médicos não-especializados, para o primeiro contato com o serviço de saúde; ou de forma abrangente, como uma concepção de modelo assistencial e de organização do sistema de saúde. Starfield (2002) define a APS como a porta de entrada dos sistemas de saúde que deve se apoiar em valores de universalidade, organização e racionamento do sistema, acessibilidade, longitudinalidade, integralidade e coordenação da atenção à saúde. Para tal, define como diretrizes fundamentais da APS: primeiro contato (implica a acessibilidade sempre que as pessoas buscarem um serviço de saúde); continuidade (existência de uma fonte regular de atenção à saúde, que exige a delimitação do território); integralidade (as unidades de APS devem fazer parte de um arranjo de serviços de saúde para que todos os usuários recebam diferentes tipos de cuidado de acordo com suas necessidades); e coordenação (significa garantir algum tipo de continuidade do cuidado entre os diferentes níveis de atenção). Para medir o potencial e o alcance de cada um dos atributos mencionados são necessários um dos quatro elementos estruturais do sistema de saúde (acessibilidade, variedade de serviços, população eletiva e continuidade) e dois elementos processuais (utilização e reconhecimento do problema). Matta e Morosini (2009) a partir da literatura internacional sistematizaram o seguinte conceito: a APS é uma estratégia de organização da atenção à saúde e dos sistemas de saúde orientada para responder de forma regionalizada, permanente e sistematizada a maior parte das necessidades de saúde de uma determinada população, a partir da integração de ações preventivas e curativas, bem como a atenção à saúde dos indivíduos e das comunidades. Algumas peculiaridades da APS podem ser identificadas no que se relaciona à demanda, processo de trabalho e usuários do serviço, que incluem: a inserção no território que permite maior conhecimento da realidade; consultas clínicas de caráter preventivo; demanda pela continuidade do cuidado dos usuários; e vínculo (maior proximidade) entre profissionais e usuários (STARFIELD, 2002). Contudo, diferentes concepções de APS não são excludentes e podem coexistir inclusive num mesmo sistema de saúde. A APS tem sido apresentada internacionalmente como um modelo para reorganização dos sistemas de saúde desde a década de 1960. Contudo, a ideia da APS foi usada como forma de organização de serviços de saúde já em 1920 como no Relatório Dawson, elaborado na Inglaterra. Nesse documento, o governo inglês por um lado tentava se contrapor ao modelo 43 flexneriano estadunidense e por outro, organizar o modelo inglês de atenção à saúde, buscando um uso racional de recursos e maior resolutividade dos problemas de saúde (FAUSTO e MATTA, 2007). O relatório concebia o modelo de atenção em centros de saúde primários e secundários, serviços domiciliares e suplementares, assim como hospitais de ensino. Essa organização se caracterizava pela hierarquização dos níveis de atenção à saúde, a regionalização da oferta de serviços e a integralidade entre ações preventivas e curativas (FAUSTO e MATTA, 2007). O fortalecimento internacional da APS ocorreu nos anos 60 e 70, marcados pela difusão do ideário do movimento da Medicina Preventiva, que ganhou ênfase no processo das reformas setoriais. Tal movimento fundamentava-se em três vertentes. A primeira, a higiene, foi difundida a partir do século XIX intimamente relacionada ao desenvolvimento capitalista e à ideologia liberal, pois propunha que os problemas de saúde fossem resolvidos por meio de ações individuais na esfera privada e com intervenção estatal na esfera pública, visando evitar a doença e a morte. A segunda vertente relacionava-se à racionalização dos custos da atenção médica, que se tornava mais especializada com a inserção de novas tecnologias num momento em que ainda se viviam as consequências da crise capitalista de 1929. A terceira consistia na redefinição do papel do profissional médico, que em sua prática profissional precisaria dialogar com as questões para além da biologia humana, como fatores socioeconômicos e culturais (AROUCA, 1975). Sob o signo da medicina preventiva, a medicina comunitária passou a ser amplamente difundida entre os departamentos e escolas de saúde. Essas propostas foram vastamente disseminadas por diversos países, tendo forte repercussão nos países periféricos visto que se configuraram em estratégias desses governos para a implantação de políticas de desenvolvimento econômico e social. Nesse sentido, as agências e organismos internacionais, principalmente a Organização Mundial da Saúde (OMS), o UNICEF, as Fundações Rochefeller, Kellogg e Ford e o Banco Mundial foram atores importantes na difusão, fomento e financiamento da APS (FAUSTO, 2005). O relatório Lalonde (1974) propôs um novo paradigma de saúde, ao criticar o paradigma da história natural das doenças e argumentar que a saúde é composta por diferentes dimensões que compõem o ser humano. O documento também conhecido como Carta de Ottawa define a saúde como resultante de quatro componentes básicos: a biologia humana, o meio ambiente, a organização de atenção à saúde e o estilo de vida. A forma como os quatros componentes básicos se relaciona vão determinar a qualidade de saúde do indivíduo e do 44 coletivo, sendo a sua investigação de fundamental importância para subsidiar e aprofundar o conceito ampliado de saúde. A promoção da saúde e a prevenção de doenças ganham projeção, contrapondo-se ao modelo exclusivamente curativo até então vigente. Matta e Fausto (2007) destacam que os programas de extensão de cobertura foram os principais mecanismos de vinculação da atenção primária. Esses são compreendidos como um conjunto de ações que deveriam ter como foco as médicas e atuações elementares no âmbito da promoção e prevenção da saúde que todos deveriam estar aptos a desenvolver, principalmente os profissionais comunitários. Nessa linha, na década de 1970, ganha destaque “o programa médicos de pés descalços” da República Popular da China, que trouxe avanços importantes na saúde. O programa se baseava na formação de médicos rurais, onde esses recebiam formação com base na comunidade e nas atividades de prevenção (CUETO, 2007). Um marco histórico para a APS é a Conferência Internacional Sobre Atenção Primária em Saúde, realizada em 1978 em Alma-Ata (antiga União Soviética), organizada pela OMS e pelo UNICEF. A Conferência de Alma-Ata foi convocada em uma resposta ao sentimento internacional de preocupação frente à ampliação das desigualdades em saúde e de assistência sanitária, que afligiam países centrais e periféricos. Neste momento foram estabelecidas estratégias objetivando alcançar a “saúde para todos os povos do mundo no ano 2000”, a partir do reconhecimento da saúde como o completo bem-estar físico, mental e social e não simplesmente a ausência de doença ou enfermidade, e como um direito humano fundamental (UNICEF, 1978). Os cuidados primários de saúde foram definidos na Conferência de Alma - Ata como: Cuidados primários são cuidados essenciais de saúde baseados em métodos e tecnologias práticas, cientificamente bem fundamentadas e socialmente aceitáveis, colocadas ao alcance universal de indivíduos e famílias da comunidade, mediante sua plena participação e a um custo que a comunidade e o país possam manter em cada fase de seu desenvolvimento, no espírito de autoconfiança e automedicação. Fazem parte integrante tanto do sistema de saúde do país, do qual constituem a função central e o foco principal, quanto do desenvolvimento social e econômico global da comunidade. Representam o primeiro nível de contato dos indivíduos, da família e da comunidade com o sistema nacional de saúde, pelo qual os cuidados de saúde são levados o mais proximamente possível aos lugares onde pessoas vivem e trabalham, e constituem o primeiro elemento de um continuado processo de assistência à saúde (UNICEF, p. 1, 1978). Os cuidados primários de saúde foram destacados como a principal estratégia para garantir acesso universal à saúde e com isso, ampliar a proteção social. Estes representariam o primeiro nível de contato dos indivíduos, da família e da comunidade com o sistema nacional de saúde. Preconizou-se que os cuidados primários de saúde deveriam: refletir condições 45 econômicas e socioculturais para além da visão meramente biológica; resolver os principais problemas de saúde da comunidade, por meio de atividades educativas, de proteção, cura e reabilitação; envolver ações intersetoriais; promover a participação comunitária no plano individual e coletivo; ser apoiados por sistemas de saúde integrados; basear-se em níveis locais de atuação e atenção à saúde e ter garantia de recursos financeiros para sua manutenção, o que inclusive incluía a fabricação e o fornecimento de medicamentos essenciais. (UNICEF, 1978). Para Cueto (2007), três ideias estavam por trás da Conferência de Alma-Ata. A primeira era a utilização de tecnologias adequadas, a partir da constatação de que o modelo hospitalocêntrico, além de ser dispendioso, não respondia a todas as necessidades de saúde da população. A segunda, a oposição ao elitismo médico e à especialização exagerada dos profissionais de saúde, ao invés disso propunha-se a formação de “profissionais comunitários” que facilitariam a promoção e participação comunitária. E por último, a relação entre saúde e desenvolvimento, pois o trabalho em saúde deixou de ser visto de maneira isolada e passou a ser visto como um processo para a melhoria das condições de saúde e vida das populações. Essa conferência questionou o modelo de intervenção com políticas verticais e focalizadas executadas pela OMS no combate a endemias e problemas de saúde pública como desnutrição e mortalidade infantil, principalmente nos países periféricos da África e da América Latina. Questionou-se também o modelo médico centrado e especializado (GIOVANELLA E MENDONÇA, 2007). As medidas supracitadas quando articuladas contribuiriam para a progressiva melhoria dos cuidados gerais de saúde com prioridade para os que têm mais necessidade. A partir da Conferência de Alma-Ata, a APS foi eleita como estratégia para reorientação do modelo de atenção à saúde e como elemento estruturante na reorganização dos sistemas nacionais de saúde, por ser considerada com potencial de prover ações e serviços com efetividade, eficácia e equidade. Para que essa transformação no modo de operar serviços e sistemas saúde se tornasse possível e viável, a Declaração de Alma-Ata destaca qual deve ser o papel do Estado ou dos governos: Os governos têm pela saúde de seus povos uma responsabilidade que só pode ser realizada mediante adequadas medidas sanitárias e sociais. Uma das principais metas sociais dos governos, das organizações internacionais e de toda a comunidade mundial na próxima década deve ser a de que todos os povos do mundo, até o ano 2000, atinjam um nível de saúde que lhes permita levar uma vida social e economicamente produtiva. Os cuidados primários de saúde constituem a chave para que essa meta seja atingida, como parte do desenvolvimento, no espírito da justiça social. Todos os governos devem formular políticas, estratégias e planos nacionais de ação para lançar/sustentar os cuidados primários de saúde em 46 coordenação com outros setores. Para esse fim, será necessário agir com vontade política, mobilizar os recursos do país e utilizar racionalmente os recursos externos disponíveis (UNICEF, p. 2, 1978). Deste modo, mais do que um pacote de serviços essenciais, a Conferência de AlmaAta indica alguns elementos fundamentais no que se refere à ampliação da proteção social: a necessidade de sistemas de saúde universais, uma vez que concebe a saúde como um direito humano; o aumento dos investimentos em políticas sociais para o desenvolvimento das nações que deveriam vir da redução dos gastos bélicos; o fornecimento e a produção de medicamentos essenciais com distribuição à população; a compreensão da saúde como resultado das condições econômicas e sociais e das desigualdades sociais; e a determinação de que os governos nacionais sejam os protagonistas no dever de garantir a saúde da população. A proposta de APS defendida na Conferência de Alma-Ata conflitava com fortes interesses políticos e econômicos, por exemplo, medidas como o aleitamento materno e a produção e distribuição de medicamentos essenciais criavam tensões com a indústria de leite e a indústria farmacêutica (Matta, 2005). Além disso, a Declaração de Alma-Ata foi criticada por outras agências internacionais sob o argumento de ter ideais ambiciosos e vagos, com pouca amplitude e possibilidade de mensuração de resultados por parte da população e dos governos. Deste modo, paralelamente à difusão do ideário defendido na Conferência de AlmaAta, ganhou fôlego no cenário internacional a difusão de outra concepção de APS com base na seletividade a fim de direcionar os recursos limitados a alvos específicos, principalmente, aos países periféricos e populações pobres. A adoção de uma abordagem mais universal abrangente ou mais focalizada e restrita tem implicações importantes para a proteção social. Assim, um ano após a Conferência de Alma-Ata, em 1979, a Fundação Rockefeller com a colaboração de diversas agências internacionais - dentre elas o Banco Mundial, a Fundação Ford, a Agência Canadense Centro Internacional para a Pesquisa e o Desenvolvimento (IDRC) e a Estadunidense Agência Internacional para o Desenvolvimento (AID)- promoveu uma reunião em Bellagio, na Itália, que defendeu a APS seletiva como estratégia para controle de doenças nos países periféricos (GIOVANELLA E MENDONÇA, 2007). Ao longo do tempo, a APS tem adquirido diversos significados para diferentes lugares, pessoas e momentos. Fausto e Viana (2005) destacam que desde sua gênese a APS foi compreendida por concepções antagônicas. Se por um lado a Conferência de Alma-Ata propunha a APS como parte de um sistema integrado de cuidados a saúde e elemento de 47 proteção social, por outro a noção Selective Primary Care (SPHC) foi impulsionada pela Conferência de Bellagio “Health and Population in Devolopment” em 1979. Os críticos da Declaração de Alma-Ata afirmavam que não era possível garantir a APS integral para todos, e por isso, apostavam em programas verticalizados e focalizados para a população pobre para resolver problemas de saúde emergenciais. A concepção focalizada e restrita de APS corresponderia a uma “cesta básica” de serviços de saúde assegurada pelo Estado, por meio de um conjunto de ações essenciais para indivíduos que não pudessem arcar com os gastos básicos. Nesse contexto foram difundidas para os países periféricos as intervenções conhecidas como “GOBI”, sigla em inglês que corresponde a acompanhamento do crescimento e desenvolvimento (growth monitoring), reidratação oral (oral re-hydration), aleitamento materno (breast feeding) e imunização (immunization), com suporte especial do UNICEF, que passou a fomentar e financiar políticas objetivas e fáceis de quantificar o alcance de metas. Nos anos seguintes, incorporam-se as chamadas FFF, um pacote seletivo e restrito de políticas para suplementação alimentar (food supplementation) alfabetização feminina (female literacy) e planejamento familiar (family planning) (GOBI-FFF) (GIOVANELLA E MENDONÇA, 2007). A tensão entre as diferentes concepções de APS seguiram durante as décadas seguintes e permanecem até a atualidade, sendo a concepção focalizada e restrita de maior destaque, principalmente em países periféricos da economia capitalista, apoiada por agências internacionais, como o UNICEF e o Banco Mundial. Giovanella (2008) afirma que nos países periféricos há uma tensão permanente entre a expansão de cobertura apenas com cuidados básicos e a garantia de serviços amplos na consolidação de sistemas universais. A direcionalidade depende muito da correlação de forças políticas em cada momento histórico. A tensão entre a noção focalizada e restrita e universal e abrangente percorreu toda a década de 80 e 90. Nesse contexto, com a difusão da agenda de reformas do Estado de forte influência neoliberal, houve disseminação da concepção de APS focalizada e restrita, fortemente difundida pelo Banco Mundial que nessa conjuntura assumiu o protagonismo na proposição e financiamento das políticas de saúde. Almeida (1999) refere que os sistemas de saúde pelo mundo sofreram reflexos dos processos de reforma do Estado. Nos países centrais, o foco foi a reconfiguração do papel do Estado visto que os sistemas públicos de saúde eram majoritários. Já nos países periféricos, a ênfase se deu no subfinanciamento do setor e na adoção de políticas seletivas e focalizadas em grupos vulneráveis que exacerbaram as desigualdades e as iniquidades em saúde. 48 Segundo a autora, os princípios gerais orientadores das reformas no setor saúde compreendem: a eficiência, a efetividade e a equidade. As estratégias de reorganização do setor saúde englobaram: introdução de medidas racionalizadoras da assistência médica, na tentativa de diminuir a ênfase no gasto hospitalar e redirecionar para as práticas extrahospitalares (atenção ambulatorial, atendimento domiciliar, privilegiamento da atenção primária ou da atenção básica) e de saúde pública (prevenção); separação entre provisão e financiamento de serviços (ou entre compradores e prestadores), com fortalecimento da capacidade regulatória do Estado; construção de “mercados regulados ou gerenciados”, com a introdução de mecanismos de mercado; utilização de subsídios e incentivos os mais diversos (tanto pelo lado da oferta quanto da demanda) visando à reestruturação do mix público e privado, com a quebra do “monopólio” estatal (ALMEIDA, 1999). As reformas do setor saúde tiveram como ponto em comum: mudanças na forma de alocação de recursos na área da assistência médica em busca de uma relação mais favorável de custo e efetividade; a redução de custos hospitalares; uso racional de recursos e procedimentos especializados; e ênfase nas ações de promoção e prevenção e na ação territorial (FAUSTO, 2005). Outro aspecto fundamental foi a influência do pensamento das agências internacionais na proposição e financiamento do setor saúde. O Banco Mundial, principal difusor da seletividade e da focalização, defendia as ‘cestas básicas’ para os serviços de saúde, indicando que o setor público estatal deveria prover um conjunto de bens e serviços mínimos necessários aqueles que não podiam arcar individualmente com esses gastos. Essa cesta básica seria composta por ações de baixa tecnologia e alto impacto, como vacinação, prénatal, prevenção e promoção da saúde, consideradas como ações típicas da APS. Os demais serviços deveriam ser ofertados pelo setor privado. Nesse período a OMS também parece ter abandonado a proposta de APS abrangente, e acompanhou o Banco Mundial na ideia da seletividade ao propor o novo universalismo, que traz como argumento forte a sustentabilidade das ações de saúde pelos governos (MATTA e FAUSTO, 2007). Mais recentemente, após inúmeras criticas e evidências de que medidas seletivas não implicaram na redução da pobreza, ao contrário, em muitos países a potencializaram, tanto o Banco Mundial quanto a OMS parecem rever suas posições. A OMS recentemente propôs um movimento de retorno aos ideais expressos na Declaração de Alma-Ata, contudo, sem grande expressividade. Por outro lado, a discussão recente acerca da APS parece ganhar espaço na OPAS, que a partir do movimento de “Renovação da APS nas Américas” passa a formular a APS 49 como uma estratégia estruturante dos sistemas de saúde nas Américas e uma forma de repensar a configuração dos sistemas nacionais de saúde. O histórico das abordagens possíveis para a APS permite refletir que sua emergência esteve associada a fatores ideológicos, políticos e econômicos, e que estes dialogam entre si. A APS surge como uma estratégia para ampliação do acesso a serviços indispensáveis à vida humana, um primeiro nível de atenção que deve ser coordenado aos demais. Contudo, fatores de motivação econômica também estão associados à APS, dentre os quais o alto custo da assistência médica especializada e a busca de maior racionalidade na utilização de serviços e maior eficiência dos sistemas de saúde. 2.4. Atenção Primária em Saúde e Proteção Social Um capítulo importante na constituição dos modernos sistemas de proteção é a conformação dos sistemas nacionais de saúde. As políticas de saúde são parte integrante da política social e suas instituições são parte dos modernos sistemas de proteção social. Os sistemas nacionais de saúde, nessa perspectiva, são influenciados por três importantes dimensões (FREEMAN e MORAN, 2002; ELIAS E VIANA, 2007): a. A saúde como direito social: a saúde é um componente estratégico dos sistemas de proteção social, que inclusive impõe resistências a medidas de desestruturação desses sistemas. O escopo da cobertura, prestação de serviços e financiamento relaciona-se a questões políticas e econômicas de cada sociedade. b. A dimensão política da saúde: o Estado historicamente orienta suas políticas públicas com vistas a amortizar conflitos sociais, existentes numa sociedade dividida por classes opostas com interesses antagônicos. Assim, a configuração das políticas de saúde se relacionará ao grau de pressão social expressa nas arenas decisórias da política. c. . A saúde como um espaço de acumulação de capital: o setor envolve uma vultosa quantia de recursos para manter sistemas públicos de saúde, com isso prover financeiramente trabalhadores, infraestrutura e recursos. A saúde está inserida num mercado industrial constituído por fortes setores, tais como farmacêutico, eletroeletrônico e de pesquisa e desenvolvimento. A partir dessa caracterização cabem algumas breves considerações acerca do papel da atenção primária em saúde nas políticas de proteção social, com base em três elementos centrais: (1) o escopo de serviços ofertados, se abrangente ou restrito; (2) a concepção universal ou focalizada; e (3) o caráter mais ou menos mercantil da APS, que considera o 50 modelo de intervenção estatal e as relações entre setor público e privado. Esses elementos trazem implicações importantes para o direito à saúde e a constituição de políticas mais ou menos equitativas, portanto se relacionando aos padrões de proteção social. Como já discutido anteriormente a compreensão da Atenção Primária em Saúde não é consensual. São históricas as tensões entre modelos universais e focalizados, e ainda existe uma série de configurações intermediárias, pois a maior parte dos sistemas de saúde no mundo não é constituída de modelos “puros” e sim por um mix de influências (políticas, econômicas e culturais) que lhes atribui características peculiares. Conceitualmente foi a partir da Conferência de Alma-Ata que a APS ganhou status de estratégia de organização dos sistemas de saúde. Contudo, a forma de conceber essa política é fruto de tensões históricas. Por um lado, como expresso pela Declaração de Alma-Ata, a APS é uma estratégia central para organização de sistemas de saúde, mais equitativos e apropriados as necessidades de saúde da população a que se destinam, respondendo pela maior parte dos problemas de saúde da população. Por outro lado, a noção seletiva de APS difundida a partir de Bellagio se baseia na formulação de programas com objetivos focados em problemas específicos de saúde para atingir grupos populacionais em situação de pobreza (FAUSTO, 2005). Alguns argumentos reforçam a importância do caráter universal da APS. O primeiro diz respeito ao seu potencial de reduzir desigualdades em saúde ao favorecer maior equidade. O segundo relaciona-se com sua ação coletiva na prevenção e monitoramento de riscos. O terceiro concerne à intersetorialidade nas ações individual, familiar e da comunidade. O quarto relaciona-se com valores de democracia e participação social. O quinto e último, tratase de um principio de organização do sistema de saúde (FAUSTO e VIANA, 2005). Segundo Viana e Fausto (2005), além da questão universalismo versus focalização, outra característica da APS que lhe asseguraria uma função na proteção social seria seu caráter predominantemente não mercantil ou ainda sua configuração como um nível de atenção à saúde que constitui uma forte resistência à mercantilização. Essa característica é atribuída a três mecanismos principais: a. Parte das ações reconhecidas como de APS representam bens públicos ou coletivos, assim sua presença ou ausência afeta a coletividade e não apenas o indivíduo que o comprou ou recebeu. b. A APS muitas vezes está relacionada a uma concepção de direito social, com isso o Estado tem responsabilidade no provimento dessa política. 51 c. Em geral, existe pouco interesse da iniciativa privada em comercializar esses serviços, geralmente de baixa densidade tecnológica e com isso baixo valor de mercado. Não havendo a relação mercado/venda, não existem empresários dispostos a constituir negócios. Contudo, Gadelha (2003) refere que a lógica empresarial capitalista penetra em todos os segmentos da produção, inclusive no setor saúde. Por um lado, envolve setores que tradicionalmente operam sob suas bases, como a indústria farmacêutica e de equipamentos médicos. Por outro, é possível identificar a lógica empresarial capitalista em ramos da saúde que aparentemente dela se afastam, tais como a produção de vacinas, produtos biológicos, fitoderivados e a prestação de serviços de saúde em todos os níveis de atenção. A análise do mercado de vacinas no Brasil realizada por Temporão (2003) demonstra que o setor, tradicionalmente público e estatal, no último período passou a caracterizar-se pela divisão em dois segmentos: o público voltado para a oferta de vacinas e imunoderivados no interior do SUS e o privado, que se organiza em torno de clínicas, consultórios e outros espaços privados. Nesse estudo, o autor destaca que a dimensão econômica mostrou-se superior visto que as vacinas representam um dos principais produtos comercializados pela indústria farmacêutica do país, o que representa uma ameaça a um espaço equitativo e universal de acesso a este tipo de oferta. É fato que o empresariamento da saúde já é identificado há muitos anos, principalmente no que se refere à formação profissional, à prestação de serviços médicos e à produção de medicamentos. Porém com o processo de reestruturação produtiva, da globalização e das reformas do Estado observa-se que atividades e serviços que se mantiveram públicos ou estatais sofreram modificações com relação à contratualização e às inovações organizacionais de mercado. Tais mudanças incluem a criação de entes públicosnão estatais, terceirizações, cooperativas, entre outras, que passaram a imprimir lógicas de competitividade e desempenho com vistas à eficiência econômica nos setores sociais (GADELHA, 2003), inclusive no âmbito da APS. A saúde é uma das condições fundamentais para a existência da vida humana. A partir desse capítulo é possível intuir que nas sociedades modernas os sistemas de saúde são fundamentais, tanto do ponto de vista de constituir um direito social conquistado, como também pela necessidade de regulação por parte do Estado das relações capital/ trabalho. No que se refere aos modelos de proteção social, atualmente, após as reformas neoliberais parece não haver mais modelos “puros”, e sim um mix de influências. Atualmente existem diferentes projetos em disputa para a proteção social na América Latina: a focalização com ênfase no combate à pobreza; o universalismo básico com foco nas 52 políticas equitativas; e um conceito mais amplo de proteção social, relacionado com a noção de seguridade social que preconiza que os direitos devem ser universais, amplos e destinados a todas as pessoas incondicionalmente, sem negar a necessidade de garantir os mínimos sociais a todos em condição de necessidade, inclusive os não contribuintes. Os diferentes modelos têm implicações importantes para o conjunto das políticas sociais, inclusive para a adoção de uma determinada concepção de APS. 53 CAPÍTULO 3 - AS AGÊNCIAS INTERNACIONAIS E A POLÍTICA DE SAÚDE: O CASO DA ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DE SAÚDE (OPAS) 3.1. As Agências Internacionais e a Política para a Saúde As políticas públicas nacionais cada vez mais são influenciadas por uma agenda internacional, fato que faz ser relevante a compreensão do papel das organizações internacionais e de seus mecanismos de influência na definição da agenda política de uma nação (WALT, 1994). Para a autora, uma organização pode ser categorizada como agência internacional baseada em critérios de participação de pelo menos três governos nacionais na sua constituição e com base em sua capacidade de manutenção financeira e política. Os governos que constituem e sustentam as agências internacionais são denominados de países-membros, que firmam acordos, em que se estabelece sua missão, as regras básicas de sua atuação, os dispositivos de seu gerenciamento e os mecanismos pelos quais a agência obterá os recursos financeiros. Contudo, as agências internacionais possuem peculiaridades no que se refere a sua história, cultura política e organizacional e missão (WALT, 1994). Análises sobre as relações estabelecidas na arena internacional demonstram que existe grande assimetria na capacidade de “imposição” ou “socialização” da agenda política. Nesse sentido, os Estados podem ser caracterizados como “hegemônicos” ou “secundários” de acordo com seu poder econômico e político. A capacidade de influenciar agendas políticas pode ser concretizada por meio de mecanismos de coerção via indução material, e mesmo repressão econômica e militar. Ou ainda, por meio do controle das “crenças substantivas” das elites nacionais, ou seja, fomentando a construção de uma determinada hegemonia por meio da mudança de crenças e valores econômicos, políticos e sociais, facilitando a formulação e implementação de uma determinada agenda política (COSTA, 1998). Ilkenberry (1990), citado por Costa e Melo (1994), identifica três mecanismos de difusão de agenda internacional: indução externa, policy bandwagoning (“efeito ônibus em políticas”) e aprendizagem social. A indução externa ocorre a partir de incentivos, sanções ou mesmo coerção de grupos de pressão externos. Na prática há um alinhamento de grupos de pressão externos às burocracias governamentais para a implantação de políticas por estas 54 desejadas. Assim, as agências multilaterais e outros organismos internacionais fornecem informações e recursos que servem para criar ou fortalecer as coalizões. O segundo mecanismo, o policy bandwagoning, marcadamente normativo, consistiria num processo de conexão de experiências exitosas nos diferentes países. As elites técnicas e a burocracia executiva são os principais agentes responsáveis pela introdução de inovações. O motor desse mecanismo está na relação entre sobrevivência e competitividade dos países. Ou seja, o que as elites definem como sucesso não necessariamente se relaciona a êxito econômico ou à existência de indicadores (ILKENBERRY, 1990 apud COSTA e MELO, 1994). Já o mecanismo de aprendizado social pode ser definido como o processo pelo qual o conhecimento relevante para a compreensão dos efeitos e impacto de políticas se acumula ou se dissemina no sistema internacional. Esse conhecimento acumulado apresenta-se como relativamente consensual no interior de grupos específicos. Assim estabelecem-se as comunidades epistêmicas, que têm como fonte de poder os especialistas com autoridade cognitiva do conhecimento técnico-científico aplicado à formulação e implementação de políticas (ILKENBERRY, 1990 apud COSTA e MELO, 1994). Esses especialistas, delegados de autoridade científica em áreas de interesse público ou cooperação técnica, irão: 1) elucidar as relações de causa e efeito e ponderar sobre os resultados de diversas linhas de ação; 2) definir a natureza dos complexos interrelacionamentos entre assuntos e série de eventos que poderiam advir tanto da falha de se tomar determinadas iniciativas quanto de se instituir certa política; 3) auxiliar na definição dos interesses próprios do Estado ou de facções que compõem; e 4) formular políticas. No caso de agências multilaterais de cooperação técnica como a OPAS, a formulação de comunidades de especialistas é uma dimensão essencial de seu envolvimento nos países em que atua (ILKENBERRY, 1990 apud COSTA e MELO, 1994). Mattos (2001) destaca ainda o mecanismo de “oferta de ideias”. Nos anos 70, as políticas emanadas dessas agências surgiam de debates amplos entre os representantes dos diversos países membros; nos anos 80, as políticas passaram a ser especialmente voltadas para os países periféricos e as propostas passaram a ser elaboradas num âmbito restrito das agências internacionais e sob influência dos países mais ricos. A disseminação desses “consensos” restritos era garantida pelo estabelecimento de condições para a contratação de empréstimos. Deste modo, permitiu-se regular o destino e o fluxo de recursos intermediados por essas agências. 55 Em uma perspectiva histórica no âmbito da cooperação internacional no setor saúde, percebe-se que a emergência das agências internacionais está intrinsecamente relacionada ao desenvolvimento do modo de produção capitalista. Nesse contexto, modificam-se as relações internacionais e a agenda política nacional passou a ser influenciada pela arena internacional. Além disso, o desenvolvimento científico permitiu à comunidade de especialistas em saúde pública elaborar programas para o controle de epidemias num contexto transnacional (LIMA, 2002). Assim, ganha relevância a criação de organizações supranacionais que fomentem e regulamentem acordos, ora bilaterais, ora multilaterais, a fim de estabelecer práticas e estratégias minimamente consensuais para enfrentar problemas de saúde pública. Sob a égide do paradigma sanitarista, as conferências sanitárias representaram um capítulo importante para a saúde internacional. Este momento foi fundado a partir do controle de vetores e parasitas e do saneamento das cidades e dos portos. Deste modo, o conceito de saúde internacional remonta às medidas como cordões sanitários e quarentenas marítimas que isolavam embarcações e tripulações nos diferentes países e continentes. Só a partir do século XIX, os primórdios dos acordos que hoje denominamos saúde internacional tornaram-se sistemáticos e universais (LIMA, 2002). Até o final do século XIX, a principal medida sanitária para assegurar a saúde dos portos eram as quarentenas. Esse procedimento estava fora de sintonia com o ascenso e desenvolvimento capitalista, que criava novos e crescentes interesses econômicos, intensificava o comércio internacional, o tráfego marítimo e a migração de pessoas. Contudo, havia um temor generalizado de que os imigrantes, principalmente pobres e tripulações dos navios comerciais, introduzissem ou exacerbassem surtos de doenças. Para que os governos passassem a organizar suas medidas sanitárias de maneira mais coesa e consensual em 1851 foi realizada a I Conferência Sanitária Internacional em Paris. Sua convocação foi fortemente influenciada pelo temor de uma epidemia mundial do cólera. Mesmo não havendo nenhuma representação dos países das Américas, a conferência orientou todas as nações a tomarem medidas universais para se estabelecer a saúde dos portos por meio de um sistema de vigilância epidemiológica internacional, que alertaria para o surgimento de epidemias em qualquer parte do mundo (LIMA, 2002). Nos anos seguintes, realizaram-se conferências em: Paris (1859), Constantinopla (1866), Viena (1874), Washington (1881) e Paris (1903). Na VI Conferência Sanitária Internacional, foi assinado o acordo “Convenção de Paris”, que regulamentava as normas internacionais para o comércio marítimo e fundava a Repartição Internacional de Higiene 56 Pública, ou Repartição de Paris, visto que sua sede se localizava na referida cidade (LIMA, 2002). A Repartição Paris incluiu 55 países membros que se reuniam periodicamente, constituiu um comitê executivo permanente, lançava boletins mensais de cunho epidemiológico e aprovou medidas sanitárias de grande importância. Tal Repartição existiu até a 2ª Guerra Mundial. Paralelamente e disputando influência com a Repartição Paris, estava o Comitê de Higiene, no âmbito da Liga das Nações. Nenhuma das duas organizações, obteve apoio unânime ou permanente dos países das Américas. A percepção de que havia necessidade de uma organização internacional de saúde nas Américas emergiu no fim do século XIX (CUETO, 2007). 3.2. O Nascimento da Saúde Internacional nas Américas ( 1902 a 1920) O histórico da Saúde Internacional nas Américas foi marcado pelas Conferências Sanitárias, que tiveram destaque até a década de 1940. A preocupação era com as constantes epidemias que assolavam os países e prejudicavam o comércio, principalmente em função das quarentenas. As Conferências Sanitárias Pan-Americanas destinavam-se a redigir acordos e normas políticas e científicas votadas e que deveriam ser adotadas por todos os países membros (CUETO, 2007). O quadro 3.1 sistematiza as principais resoluções das Conferências Sanitárias Pan-Americanas realizadas do inicio do século XX até a década de 1940. Quadro 3.1 – Sistematização das Principais Resoluções das Conferências Sanitárias Pan- Americanas, realizadas entre 1902 e 1942. Local/ Ano I Convenção Principais Resoluções Sanitária Aprova a realização de esforços para a notificação de enfermidades; propõe dos Estados Americanos, o intercâmbio de informações entre as nações, a realização de convenções Washington, Estados periódicas e o estabelecimento de uma oficina permanente. Cria a Oficina América, Sanitária Internacional, órgão permanente para a execução das Unidos da Dezembro de 1902. deliberações da conferência. Nomeia para sua presidência o cirurgião geral dos Estados Unidos, Walter Wyman. 57 Local/ Ano Principais Resoluções II Convenção Sanitária Aprova oito resoluções reunidas sob o titulo de “Polícia Sanitária”, dos Estados Americanos, retomando a ideia da polícia médica alemã, que incluem: quarentena, Washington, Estados reformas portuárias, notificação de novos surtos de cólera, febre amarela, América, peste bubônica e de qualquer outra epidemia. Essas resoluções ficaram Unidos da Outubro de 1905. conhecidas como “Convenção de Washington”. Projeta a estrutura de funcionamento da Oficina Sanitária Internacional. III Convenção Sanitária Aprova a tomada de decisões mais sistemáticas para profilaxia e controle de das doenças para além da quarentena, com base na higiene de portos e cidades. Repúblicas Américas, das Cidade do México, México, 1907. IV Conferência das Repúblicas das Américas, Aprova o termo “conferência” ao invés de “convenções”, denotando seu caráter político e comercial, com decisões legais, definitivas e mais amplas. São Jose, Costa Rica, 1910. V Conferência das Aprova o incentivo a políticas de abastecimento de água potável, adoção de Repúblicas das Américas, atestados de óbitos, levantamento de dados estatísticos sobre lepra, Santiago, Chile, 1911. regulamentação da prostituição, controle sanitário dos alimentos e impulso à profissionalização dos médicos no exercício de cargos públicos. A conferência orientou aos países que realizassem esforços para a formação e profissionalização das pessoas que atuavam na área de higiene e saneamento. VI Conferência Sanitária Aprova a orientação aos governos do ensino obrigatório da higiene nas Pan- Americana, escolas. Define a publicação mensal, em inglês e espanhol, o Boletín Uruguai, Panamericano de Sanidad, que a partir de 1923 se chamaria, Boletim da Montevidéu, Dezembro de 1920. Oficina Sanitária Panamericana. Aprova a realização de cada dois anos no intervalo entre as Conferências, do fórum de diretores de saúde das Américas. Nomeia o cirurgião geral dos Estados Unidos, Hugh S. Cumming para terceiro diretor da Oficina. VII Conferência Sanitária Institui o Código Sanitário Pan-Americano que tem por objetivos: prevenir Pan- Americana, Havana, internacionalmente a propagação das doenças transmissíveis; estimular a Cuba, 1924. cooperação internacional; criar e uniformizar um sistema de informações vitais, e promover o intercâmbio de informações entre os países. Todas essas medidas estariam sob responsabilidade do Estado. VIII Conferência Aprova a formação de escolas de saúde pública e higiene, desvinculadas das Pan- faculdades de medicina. Propõe um conselho diretor e que a Oficina passe a Americana, Lima, Peru, ter funcionários próprios cedidos pelos serviços nacionais de saúde dos 1927. países membros. Sanitária 58 Local/ Ano Principais Resoluções IX Conferência Sanitária Aprova a Constituição e o Estatuto da Oficina Sanitária Pan-Americana. Pan-Americana, Buenos Reelege Cumming para diretor da Oficina Sanitária Pan-Americana. Aires, Argentina, 1934. X Conferência Sanitária Nas referências bibliográficas pesquisadas não há relato sobre essa Pan-Americana, Bogotá, Conferência. Colômbia, 1938. XI Conferência Sanitária Cria a criação da Comissão de Engenharia Sanitária, que seria responsável Pan-Americana, Rio de por propor medidas de proteção da água, saneamento, esgoto sanitário, Janeiro, Brasil, 1942. controle de mosquitos e medidas de drenagem. Aprova medidas de defesa continental com base na manutenção da diversidade étnico-cultural do panamericanismo. Fonte: Elaboração própria, a partir de MACEDO (1997), LIMA (2002), OPAS (2002), PATRICK (2002) e CUETO (2007). Assim, a Oficina Sanitária Pan-Americana foi criada em 1902 com intuito principal de estabelecer normas para fiscalização dos portos em nome da saúde e da higiene das cidades mais populosas e importantes para o capitalismo nascente. Tais medidas compunham uma questão fundamental para o desenvolvimento do comércio internacional. Inicialmente baseavam-se no controle dos imigrantes e das cargas dos navios. Deste modo, sob a égide dos interesses dos Estados Unidos, instituiu-se uma organização sanitária continental (CUETO, 2007).xviii Sob o comando do diretor estadunidense Walter Wyman (1902 – 1911), a tarefa inicial da Oficina era o estabelecimento de um novo paradigma sanitário, com base na ‘polícia sanitária’, que tinha como objetivo impedir a disseminação de enfermidades nativas ou trazidas pelas embarcações oriundas da Europa, da África e do Oriente, tais como o cólera, a febre bubônica e a febre amarela que conturbavam o comércio internacional e o cotidiano nas cidades. Sob a orientação das propostas sanitaristas fomentadas pela escola médica John Hopkins e com o apoio financeiro da Fundação Rockefeller e das verbas ofertadas pelos xviii A princípio, a Oficina era composta pelos seguintes organismos: Conferência Sanitária Pan-Americana; um Corpo Diretor Supremo, com atribuições de definir a política e eleger o diretor, composto por representantes dos países membros com reuniões bianuais; um Conselho Diretor também composto por países membros, que se reuniria nos anos em que não houvesse conferência; um Comitê Executivo composto por sete membros, eleitos pelo Conselho Diretor ou pelas Conferências com mandato de três anos, e que deveria se reunir semestralmente. Apenas em 1959 a Oficina Sanitária recebeu a designação de Organização Pan-Americana de Saúde – OPAS (CUETO, 2007). 59 países membros, em poucos anos as ações da Oficina ganharam maior volume, contudo com dimensões ainda reduzidasxix. Nessas primeiras décadas de atuação, inclusive, durante a gestão do diretor estadunidense Rupert Blue (1912-1920), as ações da Oficina voltavam-se especialmente para o controle de endemias. Esse diretor jamais presidiu uma Conferência Sanitária PanAmericana, pois em função da I Guerra Mundial as conferências foram interrompidas até 1920. Após a guerra, a Oficina passou a celebrar no dia 2 de dezembro o Dia da Saúde PanAmericana, em homenagem à data em que fora realizada a I Convenção Sanitária PanAmericana (LIMA, 2002). 3.3. Da Oficina Sanitária Pan-Americana ao Escritório Regional da OMS (1920 a 1947) Em 1920, outro estadunidense assumiu a direção da Oficina, Hugh Cumming, que permaneceu no cargo até 1947. Durante este período, deu-se o inicio do processo de "consolidação da identidade" da Oficina. Num primeiro momento da gestão de Cumming, ganha ênfase a ideia do “pan-americanismo” que propunha ultrapassar o isolacionismo da “política estadunidense” e do “latino-americanismo”. Todavia, esse modelo gerou críticas, visto que, mais do que preocupações sanitárias, parece ter havido um propósito do governo estadunidense de avançar em sua política imperialista. Mesmo que munidos de um sentimento de cooperação internacional, os governos latino-americanos nunca se esqueciam de destacar as desigualdades de interesses, força política, econômica e por vezes militar, no continente (CUETO, 2007). Durante a gestão de Cumming os problemas sanitários continentais se multiplicaram e ganharam dimensões ainda mais graves com a depressão econômica que se abateu sobre o mundo a partir do final da década de 1920. As populações dos países latino-americanos cresciam aceleradamente e a aglomeração humana nas cidades representava novos desafios para a saúde pública, exigindo a criação de órgãos sanitários nacionais. Com a eclosão da Segunda Guerra Mundial iniciou-se um segundo momento da gestão Cumming, com foco na “defesa continental” (CUETO, 2007). xix Macedo (1997) destaca que, nos primeiros 45 anos, a Oficina foi um instrumento útil, contudo com ação e dimensões reduzidas. Ao final desse período a Oficina contava com 17 funcionários e um orçamento anual de US$ 100.000 e ocupava uma única sala no edifício sede da União Pan-Americana, em Washington. 60 Ao final da 2ª Guerra Mundial, em 1944, o governo estadunidense convocou a Conferência de Bretton Woods como estratégia para reconstrução do capitalismo mundial e da ordem econômica que deveria ser instituída após a vitória dos aliadosxx. Bretton Woods foi um marco importante tanto para as políticas sociais como para a constituição dos organismos internacionais, por consequência de seus rearranjos políticos, econômicos e sociais. No ano seguinte, em 1945, foi criada a Organização das Nações Unidas (ONU), em substituição à extinta Liga das Nações, um amplo organismo internacional cujo objetivo principal seria criar e colocar em prática mecanismos que possibilitassem a segurança, a paz e o desenvolvimento econômico internacional, principalmente por meio de leis/ acordos internacionais (MATTOS, 2001). xxi Durante a conferência de criação da ONU, em São Francisco em 1945, representantes das delegações de Brasil e China propuseram a convocação de uma conferência especial para a criação de uma nova Organização Internacional de Saúde. Era necessária uma nova organização que ocupasse o espaço político deixado pela Repartição Paris e pelo Comitê de Higiene da Liga das Nações e que fomentasse a reconstrução dos sistemas e serviços de saúde pública em toda a Europa, devastada pela guerra. Em 1946, o Conselho Econômico e Social da ONU organizou uma comissão técnica para preparar um projeto de constituição para a nova organização de cooperação internacional para o setor saúde. xxii A comissão recomendou o nome de Organização Mundial da Saúde (OMS), ao invés de Organização Internacional de Saúde, visto que pretendia absorver as organizações internacionais de saúde existentes (MACEDO, 1997). Sob a égide da ONU, em 07 de abril de 1948, foi criada a Organização Mundial da Saúde (OMS) com objetivo de construir normas e consensos técnicos internacionais e uniformizar as classificações de doenças e seu potencial epidêmicoxxiii. As principais doenças xx Os EUA emergiram da Segunda Guerra Mundial como a mais forte economia do mundo, vivendo um rápido crescimento industrial e uma forte acumulação de capital, pois não haviam sofrido as destruições decorrentes da guerra, tinham construído uma forte indústria manufatureira e enriqueceram vendendo armas e emprestando dinheiro aos outros países combatentes que se encontravam destruídos (CUETO, 2007). xxi Atualmente, o sistema das Nações Unidas engloba mais de 30 organismos, como agências, fundos, programas e comissões regionais (ONU, 2011). xxii A comissão técnica contou com a participação de representações da Oficina Paris, do extinto Comitê de Higiene da Liga das Nações, da recente Divisão de Administração de Socorro e Reabilitação da ONU e da Oficina Sanitária Pan-Americana. xxiii A partir dessa data, o dia 07 de abril passou a ser celebrado como o dia do aniversário da OMS e Dia Mundial da Saúde (MACEDO, 1997). 61 que deveriam ser reguladas e controladas pela OMS e seus estados-membros eram o cólera, a peste, a varíola e a febre amarela (MATTA, 2005) xxiv. A criação da Organização Mundial da Saúde (OMS) colocou em questão a necessidade de existência da OPAS. Uma parcela dos especialistas e dos políticos defendia o encerramento das atividades da instituição americana, enquanto outra parte, liderada por Cumming, advogava que a OPAS deveria continuar em funcionamento e, de forma coordenada com a OMS, continuar a promover ações de saúde no continente americano. (CUETO, 2007). Para resolver essa polêmica foi convocada a XII Conferência Sanitária PanAmericana, em 1947, em Caracas, Venezuela, na qual se deu a disputa de posições, entre Parran, chefe da delegação estadunidense e Cumming, diretor da Oficina. Cumming defendia que a absorção da Oficina pela OMS era absurda, pois representava uma inferência abusiva nas questões sanitárias dos países e uma afronta à autonomia e eficiência de um sistema que existia desde o inicio do século. Temia-se que a nova organização pudesse usar seu poder de pressão multinacional para intervir nas decisões de saúde pública dos governos latinoamericanos (CUETO, 2007). Por outro lado, Parran alegava que o governo dos Estados Unidos faria todos os esforços necessários à criação da ONU e de suas agências especializadas, insistindo que era incoerente formar blocos regionais, o que inclusive poderia influenciar a formação de um bloco entre os países comunistas do Leste Europeu. Parran reiterou a vontade dos Estados Unidos em “continuarem bons vizinhos” nas Américas; por isso, o governo estadunidense propunha a dupla filiação dos países. Segundo Cueto (2007), o diretor Cumming se dirigiu aos delegados latino-americanos e disse: “até então o imperialismo nunca levantou sua cabeça hedionda entre nós”. No fim, foi encaminhada uma posição intermediária entre Parran e Cumming, pois a maior parte dos países americanos era a favor da manutenção da Oficinaxxv como uma xxiv A Confirmação da constituição da OMS pelos estados membros foi lenta: em 1949 apenas 14 países haviam ratificado. A antiga União Soviética e outros países comunistas do leste Europeu na época se retiraram reduzindo a legitimidade da organização. Além disso, a China foi excluída de todo o sistema das Nações Unidas até o inicio de 1970 (CUETO, 2007). Atualmente, os Escritórios Regionais da OMS estão distribuídos por todos os continentes, e incluem: (AFRO) - Escritório Regional para a África - Harare – Zimbábue; (PAHO) - Organização Pan-Americana da Saúde - Washington, DC – EUA; (SEARO) - Escritório Regional para o Sudoeste da Ásia Nova Deli – Índia; (EURO) - Escritório Regional para a Europa - Copenhague – Dinamarca; (EMRO) Escritório Regional para Mediterrâneo Oriental - Cairo – Egito; (WPRO) - Escritório Regional para o Pacífico Ocidental – Manila – Filipinas (MATTA, 2005). xxv Com exceção do Canadá, país que não era membro da Oficina. 62 organização de caráter regional. Somente após acordos que garantiam a autonomia (política e financeira) e identidade da Oficina, foi aceito que ela se transformasse numa representação regional da OMS: A Organização Sanitária Pan-Americana, representada pelo Pan-American Sanitary Bureau, as Conferências Sanitárias Pan-Americanas e todas as outras organizações regionais intergovernamentais de saúde que existam antes da data da assinatura desta Constituição serão, em tempo oportuno, integradas na Organização. Esta integração será efetuada, logo que seja possível, por uma ação comum, baseada no consentimento mútuo das autoridades competentes, expresso pelas organizações interessadas (CUETO, p. 29, 2007). Dentre outras resoluções, a Conferência de Caracas orientou os seus países membros a promoverem sistemas abrangentes de seguridade social e que orientassem os investimentos em saúde para a medicina preventiva. Além disso, durante essa Conferência, Fred Soper foi nomeado como diretor da OPAS (CUETO, 2007). A partir da década de 1940, foram instalados escritórios de campo, sendo o primeiro criado em 1942, em El Paso, Texas (fronteira com México). O segundo escritório passou a funcionar na Guatemala com a missão de controle do tifo exantêmico nas comunidades indígenas. O terceiro surgiu em Lima, Peru, e dedicou-se a eliminar a peste bubônica na Costa Ocidental da América do Sul. Por último, no fim da década de 1950, montou-se um escritório na Jamaica (MACEDO, 1997). Ainda assim, a área de influência da Oficina limitava-se a medidas de quarentenas e notificação de doenças transmissíveis, desconsiderando o caráter social do processo saúde-doença. Paralelamente à expansão dos escritórios de campo da Oficina, duas organizações destacaram-se durante a 2ª Guerra Mundial no âmbito da cooperação internacional e no campo da saúde pública: o Office of the Coordinator of Inter American Affairs (OCIAA), coordenado por Nelson Rockeffeler (neto do magnata do petróleo) e a Fundação Kellogg (CUETO, 2007).xxvi 3.4. A Consolidação da Organização Pan-Americana de Saúde (1947 a 1959) O processo de consolidação da OPAS foi paulatino, com dificuldades e prioridades políticas e técnicas diferentes ao longo do tempo. Suas ações também sofreram mutações ao longo de sua história. Contudo, dois elementos foram fundamentais para a consolidação da xxvi O OCIAA implementou uma série de programas educacionais de saúde pública, construção de hospitais, campanhas contra malária, criação de sistemas de água e esgoto e bolsas de estudos para médicos e enfermeiros. Já a Fundação Kellogg, em parceria com a Oficina investiu na formação de profissionais, principalmente médicos, voltados para a higiene e saúde pública e programas de saúde bucal (CUETO, 2007). 63 organização. Um deles foi a adesão completa dos países membros, que aconteceu entre 1940 e 1950, assim, a organização passou a englobar todas as Américas e o Caribe. Outro elemento fundamental foi o longo processo de ampliação e reorganização estrutural e financeira da organização, iniciado por seu 4º diretor, Fred Soper (CUETO, 2007).xxvii Ao assumir o cargo em 1947 o diretor Soper precisou abordar problemas delicados como a ampliação e manutenção da sede em Washington; a necessidade de ampliar as fontes de financiamento; a negociação da relação entre a OPAS e a recém-criada OMS. No plano geopolítico, o mandato de Soper coincidiu com o período da Guerra Fria, que polarizava o mundo entre o capitalismo estadunidense e a influência socialista da antiga União Soviética. Esse cenário colocou em julgamento os reais motivos de intervenção internacional no setor da saúde pública (PATRICK, 2002). xxviii Deste modo, durante a Guerra Fria, a orientação e o significado do pan-americanismo continuaram a ser temas de discussão entre os sanitaristas, ao abordarem as diferenças sociais e econômicas absurdas que existiam na região. Afinal, num momento de disputa de ideias e modelos, era sabido que a cooperação interamericana sempre foi fortemente influenciada pela política externa estadunidense. O período pós- guerra trouxe mudanças demográficas com importantes implicações no setor da saúde, como o aumento populacionalxxix. Em alguns países observou-se uma queda expressiva na taxa de mortalidade, assim como o aumento da expectativa de vida. Ao mesmo tempo, uma parte dos países latino-americanos assistia a suas taxas de natalidade e de mortalidade por doenças infecciosas diminuírem. Além do controle de epidemias, a redução da mortalidade infantil e materna passou a ser preocupação constante para a OPAS. (CUETO, 2002). Um capítulo importante da história da Organização foi escrito na Reunião do Conselho Diretor, de Buenos Aires, em 1948, quando foi aprovada a Constituição da Organização Sanitária Pan-Americana vigente até hoje. Cabe destacar seu primeiro artigo, que estabeleceu xxvii Fred Soper possuía grande renome e influência no cenário da saúde pública por seus estudos para a erradicação da febre amarela, varíola e malária. Soper foi o primeiro diretor que não havia trabalhado no serviço militar de saúde pública dos Estados Unidos (OPAS, 2002). xxviii O mundo vivia constantemente à beira de uma declaração de guerra envolvendo superpotências globais. Mais do que a disputa de influência política e econômica estavam em disputa diferentes modelos de sociedade. Os países da America Latina geopoliticamente estavam situados na esfera de influência dos Estados Unidos. Os anos da guerra significariam a promoção de um modelo de desenvolvimento orientado à expansão do capitalismo por meio de medidas como: reformas agrárias limitadas, industrialização através da substituição de importações e regimes políticos populistas, não necessariamente democráticos. Nesse período não faltaram intervenções militares dos Estados Unidos nos países latino-americanos tais como Guatemala, Haiti, Cuba, entre outros (PATRICK, 2002). xxix No final da década de 1950 sete países das Américas tinham populações superiores a 10 milhões de habitantes (CUETO, 2002). 64 como objetivo da OPAS: “promover e coordenar os esforços dos países do Hemisfério Ocidental para combater as doenças, prolongar a vida e promover a saúde física e mental da população” (CUETO, 2007). xxx Mesmo em um momento de turbulência, Fred Soper aumentou a estatura e o reconhecimento da OPAS, inclusive em sua capacidade de atrair recursos. Soper visitou os governantes de vários países da região a fim de obter contribuições voluntárias a OPAS, dentre os quais, Argentina, Brasil, Chile, Republica Dominicana, El Salvador, México e Venezuela. Com essa estratégia, o orçamento anual da OPAS passou de US$ 90.000 em 1947 para US$ 1.300.000 no ano de 1948 .xxxi Essa medida foi fundamental para que na 1ª Assembléia Mundial da Saúde (1948) quando se oficializou a criação da OMS, a OPAS não fosse dissolvida dentro da nova organização. Outra medida tomada foi a constituição de uma 'burocracia' e uma área técnica vinculada à instituição, como um corpo permanente e estável para o escritório sede em Washingtonxxxii (MACEDO, 1997; LIMA, 2002). No campo científico, incentivou-se a publicação regular e a distribuição gratuita do Boletim da OPAS. Além disso, organizou-se uma biblioteca centralizada com uma equipe de tradutores profissionais de inglês, português, francês e espanhol para difundir o conhecimento na área da saúde pública. Foram realizados investimentos em programas e projetos de formação profissional na área da saúde pública por meio de distribuição de bolsas de pesquisa e fomentos. Destaque-se o incentivo para a formação de enfermeiras para atuar na área de higiene e sanitarismo, que viriam se tornar a grande força de trabalho do setor da saúde (LIMA, 2002; CUETO, 2007). O diretor Soper propôs uma mudança na estrutura organizacional da OPAS em que as atividades eram divididas em três eixos principais: Saúde Pública, Administração e Educação e Formação. A Divisão de Saúde Publica era responsável pelos serviços de promoção da saúde: administração, enfermagem, nutrição, saúde materna infantil e saneamento ambiental. xxx Em contraste com a Constituição da OMS, que formulou uma definição polêmica e, para alguns, idealista de saúde. Diz a definição: “A saúde é um estado de completo bem estar físico, mental e social, e não a mera ausência de doenças ou debilidades”. As metas da Organização Sanitária Pan-Americana pareciam mais concretas e atingíveis (CUETO, 2007). xxxi As finanças provinham de fontes regulares (pela contribuição dos membros); de projetos financiados e bolsas de estudos da Fundação Rockefeller (1920-1950), Fundação Kellogg (após os anos 40), OMS, Unicef, ONU e FAO; de convênios e acordos técnicos com países da região e, especialmente, com os Estados Unidos, em auxílio intensificado na Guerra Fria (1941-1951, atingindo cerca de 30 milhões de dólares). Outro passo importante foi tornar independente a conta bancária da OPAS, visto que grande parte da verba da instituição vinha do Departamento do Tesouro dos Estados Unidos pela conta da União Pan-Americana, causando atraso e outras complicações na prestação de contas (CUETO, 2002). xxxii Em dezembro de 1946 o escritório possuía somente 32 funcionários. Ao final do mandato de Soper em 1954, havia uma equipe de 412 funcionários, da qual em torno de 50% trabalhava fora de Washington, nos escritórios de campo (MACEDO, 1997; LIMA, 2002). 65 A Divisão Administrativa compreendia um escritório jurídico, um serviço de gerência pessoal e um serviço de finanças e orçamento. A Divisão de Formação e Educação gerenciava bolsas de estudos e programas educacionais (LIMA, 2002; CUETO, 2007). A ampliação da presença da OPAS nos países se deu com a divisão das Américas em seis zonas, com um escritório regional em cada. Posteriormente, cada país passou a comportar um escritório local. Por fim, Soper conseguiu a doação de uma sede própria para a OPAS junto ao Corpo diplomático norte-americano. Pouco depois o Comitê Executivo examinou a proposta de mudar a sede da instituição para uma cidade da América Latina, México ou Lima, mas isso nunca se concretizou e a sede permaneceu na capital dos Estados Unidos. Mais tarde, em meados da década de 1960, sob a direção seguinte de Abraham Horwitz, a OPAS mudou-se para um prédio especialmente construído para ela, em Washington, onde mantém sede até hoje (MACEDO, 1997). 3.5. A Busca de uma Agenda (1960 a 2002) No decorrer de história, a OPAS precisou lidar por um lado com agendas não consensuais e por outro, com a constatação de que o paradigma sanitarista com base na saúde pública tradicional não respondia às necessidades de saúde, principalmente dos países periféricos, imersos num contexto de desigualdades sociais. Orientado por essa premissa, o quinto diretor da OPAS, Abraham Horwitz (1959-1975), buscou incorporar à agenda programas e ações de saúde orientadas pela meta do desenvolvimento socioeconômico. Para tal, era necessário fomentar a criação de estruturas de promovessem a saúde pública nos países (Ministérios ou Secretarias de Saúde, Centros de Higiene) (CUETO, 2007). Argumentava-se que as condições sanitárias dependiam do nível de desenvolvimento econômico alcançado. Por exemplo, a redução de índices de mortalidade infantil não dependia exclusivamente de acesso aos serviços de saúde, mas de elementos como saneamento, renda e boa alimentação, que estão diretamente relacionados com o desenvolvimento econômico de uma nação. A saúde também seria indispensável à economia em razão da importância crescente das doenças ocupacionais, como os problemas de saúde dos operários das minas, como a silocose, e os dos agricultores com envenenamento por pesticidas, além da exposição de outros grandes grupos de trabalhadores à poluição atmosférica e à radiação ionizante. Embora os serviços de seguridade social abordassem as consequências desses problemas, não propunham e nem implementavam ações para preveni-los (CUETO, 2007). 66 A partir do raciocínio de que saúde e economia são interligados, o diretor Horwitz impulsionou uma intensa mobilização em torno de práticas de planejamento, principalmente no que tange à disponibilidade de recursos. Temas como a qualidade da água potável e questões ambientais ganharam destaque. xxxiii Deste modo, em 1961, numa reunião do Conselho Diretor em Punta del Leste sinalizou-se a necessidade de incorporar à agenda o tema do planejamento em saúde, propiciando a criação do Método Cendes – OPAS. A defesa do planejamento em saúde partia do pressuposto de que os recursos em saúde eram escassos, mal utilizados, tecnicamente ineficientes e mal distribuídos. O planejamento surge como um instrumento essencial para aperfeiçoar a utilização dos recursos (Costa e Melo, 1994).xxxiv Um acontecimento significativo para a OPAS na década de 1960 foi a inauguração do prédio de sua nova sede permanente, que até aquele momento havia ocupado espaços alugados ou dividido suas instalações com outras instituições como a União Pan-Americana. O projeto arquitetônico foi escolhido a partir de um concurso entre os mais renomados arquitetos das Américas. O Centro Latino-Americano e do Caribe de Informações em Ciências da Saúde (BIREME), também foi inaugurado em sua gestão (OPAS, 2002). xxxv O diretor Horwitz deixou o cargo em janeiro de 1975 após quatro mandatos na Organização. Ao final de seu último mandato, criou a Fundação Pan-Americana de Saúde e Educação, a fim de obter verbas adicionais para o trabalho na Organização por meio de fundações filantrópicas e privadas (CUETO, 2007). No decorrer dos anos 60 e 70, houve um rearranjo no cenário da comunidade internacional devido à criação de novas agências e bancos regionais. Além disso, fato relevante foi o desenvolvimento de agências governamentais de cooperação internacional que articulavam as políticas externas de governos dos países periféricos em troca de doações e empréstimos. Esse cenário fortaleceu as agências internacionais e governamentais de ajuda internacional, inclusive com reflexos importantes na formulação e implementação das políticas de saúde (MATTOS, 2001). Nos anos 70, ganha amplitude no conjunto da América Latina a noção de saúde como um valor social vinculado não só à prevenção e ao controle de doenças, mas, sobretudo ao xxxiii Entre 1966 e 1971, a Organização, a Fundação Kellogg e o Banco Interamericano de Desenvolvimento financiaram a formação de aproximadamente 500 engenheiros sanitários de 24 países das Américas (CUETO, 2007). xxxiv Em 1973, em parceria com o governo do Canadá, a OPAS realizou em Ottawa a I Conferência PanAmericana sobre Planificação de Recursos Humanos em Saúde. Como produto apresentou a elaboração de um plano de saúde decenal para as Américas (CUETO, 2007), ratificando a priorização do tema num determinado momento de sua agenda. xxxv O BIREME foi criado em 1967, graças a um acordo assinado entre a Organização, o governo brasileiro e a Escola Paulista de Medicina, e com o apoio da Fundação Kellogg (OPAS, 2002). 67 direito de acessar serviços públicos de saúde. Esse movimento esteve fortemente vinculado ao processo de lutas pela redemocratização e ampliação de direitos pelos quais passava a região. Portanto, em 1975, foi convocada a XIX Conferência Sanitária Pan-Americana, que teve como foco o projeto “Saúde para Todos no Ano 2000 (SPT 2000)”. Essa conferência elegeu o médico mexicano Hector Acuña como sexto diretor da OPAS para o período de 1975 a 1983. Durante a gestão de Acuña, as orientações da Conferência de Alma-Ata (1978) foram adaptadas a uma série de programas de saúde, originando a criação dos Sistemas Locais de Saúde, ou Silos, com vistas a aumentar a cobertura sanitária (CUETO, 2007) xxxvi. Dentre todas as iniciativas para o fortalecimento da APS na região, os programas de imunização foram os mais bem sucedidos. Em 1980, muitos países das Américas tinham cobertura vacinal inferior a 5% para as doenças imunopreviníveis prevalentes na infância como sarampo, tétano, difteria, tuberculose, poliomielite e coqueluche. No final da década de 1980, a maior parte dos países já havia imunizado pelo menos 50% de suas crianças com índices de cobertura superior a 80% para difteria, coqueluche, tétano, poliomielite e sarampo. A OPAS estabeleceu cooperação junto aos países membros para que estabelecessem a ‘cadeia de frios’ para conservar as vacinas (CUETO, 2007). Em 1983, a gestão de Carlyle Guerra de Macedo tem inicio em meio a uma crise com relação ao modelo SPT 2000. Os questionamentos partiam do pressuposto que os serviços de saúde possuíam uma série de dificuldades relacionadas à escassez de recursos e baixa capacidade institucional. Os doadores criticavam os poucos resultados dos investimentos em vacinas, remédios e médicos. Além disso, as influências da agenda neoliberal começavam a fomentar nas Américas o paradigma da economia da saúde. Deste modo, na década de 1980, instalou-se uma crise de legitimação e cooperação internacional em relação ao sistema OMS/OPAS, gerando desgaste e falta de compromisso em relação aos ideais da Conferência de Alma-Ata (COSTA e MELO, 1994). Mattos (2001) refere que ao longo dos anos 80 e 90 a OMS foi perdendo sua importância e com isso, a influência política e técnica junto aos países membros. Por um lado, devido aos crescentes investimentos (influência econômica) do Banco Mundial e, por outro, devido ao afastamento do UNICEF das teses de universalidade, compartilhadas na Conferência de Alma-Ata. O UNICEF assumiu uma política focalizada na redução da xxxvi Em 1983, Acunã publicou um livro sobre a história e os caminhos da Organização, e explicitou que a meta de saúde para todos no ano 2000 deveria ser perseguida pela Organização, por se tratar de um objetivo desejável e fundamental para conquistar mudanças sociais, num período de instabilidade política, recessão e inflação (CUETO, 2007). 68 mortalidade infantil que, num contexto de reformas neoliberais, angariou grandes recursos de organizações governamentais e não governamentais e do Banco Mundial. Acrescente-se a isso que, no decorrer da década de 80, o Banco Mundial elevou seus investimentos no setor da saúde, e com isso, aumentou sua influência na agenda política dos países periféricos, propondo ações que tinham como meta a redução de gastos públicos como condição para o refinanciamento da dívida externa de países devedores. Mediante os mecanismos de indução financeira, o Banco difundiu fortemente a concepção de gastos sociais seletivos e focalizados para a redução da pobreza (COSTA, 1998). Além disso, novos mecanismos de “oferta de ideias” tiveram importância no mesmo período, como descrito por Mattos (2001). Assim, o Banco Mundial passou a disputar a hegemonia no setor da saúde com a OMS, defendendo a tese da eficiência dos serviços de saúde, e que caberia aos Estados Nacionais a oferta de um pacote básico de ações em saúde, cuja população-alvo deveria ser os pobres e incapazes de arcar com os custos para a manutenção da saúde. Aos demais caberia, por recursos próprios, recorrer ao mercado como provedor de serviços de saúde (COSTA, 1998). WALT (1993) destaca que existia a necessidade de conexão entre cooperação técnica para formulação, implantação e avaliação das políticas em saúde e o desenvolvimento de um sistema econômico-social. Assim, diante de um questionamento acerca da eficácia de estratégias de cooperação técnica e da mudança do paradigma sanitarista da saúde como um bem público, foram incorporados à agenda da OPAS temas de controle técnico, avaliação de produtividade de programas, serviços e sistemas de saúde. Para Costa e Melo (1994), as críticas ao sistema OMS/OPAS na década de 1980, mais que um rearranjo para a inclusão de novos campos, trouxeram um conjunto de princípios, normas e crenças que influenciaram fortemente a proteção à saúde. Passou a se destacar a busca por políticas de saúde que respondessem à lógica do mercado, negligenciando o complexo caráter do gasto social. Ao final da década de 1980, com a instituição do Consenso de Washington, consolidou-se o fenômeno da globalização. O Consenso apresentava uma série de prescrições de ajustes econômicos para países periféricos, alegando o intuito de acelerar o desenvolvimento econômico desses países. Tal Consenso incluía medidas como: disciplina fiscal, redução de gastos públicos, reforma tributária, redução do papel do Estado na economia, abertura comercial para investimentos estrangeiros, privatização de serviços 69 estatais, desregulamentação de leis e direitos trabalhistas e redução de investimentos na área social (MATTA, 2005; BEHRING e BOSCHETTI, 2009). xxxvii Os anos 90 foram marcados por uma série de transformações epidemiológicas, políticas e econômicas. A consolidação da ideologia neoliberal pautou a política social pelas análises econômicas, sobretudo no que tange ao financiamento dos setores sociais, o que trouxe implicações importantes para a concepção de direito à saúde. Nesse contexto, George Alleyne foi nomeado diretor da OPAS para o período de 1990- 2002. Diante de um mundo em transformação e do cenário de aumento das desigualdades em saúde, o diretor Alleyne defendeu o acesso a serviços de saúde de qualidade. Assim, durante seu mandato, redigiu-se o documento que analisava as reformas recentes nos sistemas de saúde e concluiu-se que os processos de reforma setorial da saúde se teriam concentrado em mudanças estruturais, financeiras e organizacionais, assim como em ajustes na prestação de serviços. Contudo, esses movimentos estariam sendo executados de maneira que negligenciaria a responsabilidade institucional e governamental com a saúde pública. Nesse contexto, propuseram-se as 12 funções essenciais da saúde pública.xxxviii O quadro 3.2 apresenta, resumidamente, o foco da agenda de cada gestão da OPAS no período de 1902 a 2002. xxxvii O documento conhecido como “Consenso de Washington” foi formulado por economistas do Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional (FMI), Departamento do Tesouro dos EUA e Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). xxxviii As Funções Essenciais de Saúde Pública propostas pela OPAS incluíam: i) Monitoramento, avaliação e análise do estado de saúde; ii) Vigilância em saúde pública, pesquisa e controle de riscos e ameaças à saúde pública; iii) Promoção da saúde; iv) Participação social em saúde; v) Desenvolvimento de políticas e capacidade institucional para o planejamento e a gestão em saúde pública; vi) Fortalecimento da capacidade institucional para regulação e cumprimento da lei em saúde pública; vii) Avaliação e promoção do acesso eqüitativo aos serviços de saúde necessários; viii) Desenvolvimento e treinamento de recursos humanos necessários em saúde pública; ix) Garantia de qualidade em serviços de saúde individual e populacional; x) Pesquisa em saúde pública; e xi) Redução do impacto de emergências e desastres na saúde (OPAS, 2007). 70 Quadro 3.2 –. Foco da agenda de cada gestão da OPAS no período de 1902 a 2002. Período Diretor de gestão Foco da agenda Conferências de Saúde que tinham como ênfase a tomada de Walter Wyman, EUA 1902-1911 medidas para saneamento dos portos e controle de epidemias nas cidades. Rupert Blue, EUA 1912-1920 Combate às epidemias que minavam a capacidade produtiva das populações. Hugh S. Cumming, EUA 1920-1947 Pan-Americanismo e adesão da OPAS à OMS. Fred L. Soper, EUA 1947-1958 Fortalecimento institucional da OPAS. Abraham Horwitz, Chile 1959-1974 Planejamento Estratégico. Hector R. Acuña, México 1975-1983 Saúde para todos no ano 2000, com ênfase na imunização e nos projetos de proteção materna e infantil. Carlyle Guerra de 1983-1995 Macedo, Brasil George A. O. Alleyne, Imunização, com ênfase para a campanha de erradicação da poliomielite nas Américas. 1995-2002 Análise das reformas setoriais. Barbados Fonte: Elaboração própria, 2011. Na última década, sob a gestão da diretora Mirta Roses, iniciada em 2003, a OPAS parece ser uma agência internacional em busca de exercer certa liderança técnica e política na organização dos sistemas nacionais de saúde, no campo da saúde internacional, principalmente, no âmbito dos países latino-americanos. Nesse contexto, surge com certa força na agenda da agência o projeto de “Renovação da Atenção Primária nas Américas”, que será abordado no capítulo 4. Atualmente, a OPAS se organiza a partir de representações dos governos membros, eleitos pelo Conselho Diretor ou pelas Conferências Sanitárias Pan-Americanas. Opera por meio de uma estrutura de secretarias muito flexíveis e descentralizadas, sendo que em torno de 75% do quadro de funcionários está sediado nos 28 escritórios de campo. O diretor da OPAS e consequentemente diretor regional da OMS tem mandato de 04 anos e pode ser reeleito indefinidamente. As Conferências Sanitárias Pan-Americanas ocorrem a cada quatro anos. No que se refere a recursos financeiros, cerca de 60% do orçamento ao final dos anos 90 era constituído de recursos regulares, oriundos de doações dos países membros e repasses da OMS (MACEDO, 1997). A figura 3.1 apresenta o organograma atual da OPAS. 71 Figura 3.1 – Organograma atual da OPAS, 2011. Fonte: OPAS, 2011. 72 CAPÍTULO 4 – A AGENDA RECENTE DA ORGANIZAÇÃO PANAMERICANA DE SAÚDE - A RENOVAÇÃO DA ATENÇÃO PRIMÁRIA EM SAÚDE NAS AMÉRICAS. 4.1. A Trajetória do Movimento de Renovação da APS. É importante reafirmar a Organização Pan-Americana de Saúde como uma agência de cooperação internacional que formula, monitora e avalia políticas e programas de saúde na região das Américas, principalmente na América Latina e no Caribe. Nesse sentido, a cooperação técnica é a principal estratégia política dessa agência para influir em seus países membros. Historicamente, a OPAS exerceu certa liderança no âmbito da saúde internacional nas Américas. Em seus primórdios, por meio de medidas que visavam o saneamento dos portos e cidades, posteriormente no fomento e desenvolvimento de programas de imunização, a fim de erradicar doenças, e ainda, por meio dos programas específicos para grupos vulneráveis, como mães, crianças, portadores de algum tipo de condição especial, entre outras. Cabe ressaltar que até a consolidação da OMS, existia um protagonismo dos EUA na formulação e condução da política, que pode ser evidenciado pelos sucessivos diretores de origem estadunidense. A partir de 1960 nota-se uma inflexão nesse sentido, a partir da eleição do médico Abraham Horwitz do Chile para diretor da OPAS, que abre um ciclo de diretores latino-americanos na condução da Organização, que perdura até a atualidade. A partir da década de 90, com a entrada do Banco Mundial e a reafirmação das políticas focalizadas e restritivas do UNICEF no cenário da cooperação internacional, o sistema OMS/OPAS assumiu um papel coadjuvante no que tange à saúde internacional. Diante dessa conjuntura, foi necessário que a OPAS revisitasse seus objetivos e estratégias de cooperação para tentar recuperar sua legitimidade técnica e política diante dos países membros. Deste modo, a partir da gestão da diretora Mirta Roses Periago, iniciada em 2003, o lançamento do movimento de renovação da APS nas Américas parece representar uma inflexão importante na trajetória política da OPAS, visto que a Organização, para além de propor projetos e programas específicos no âmbito da APS, sugere a reestruturação dos sistemas de saúde dos países americanos, mais especificamente dos latino-americanos e 73 caribenhos, a partir da APS, com base em valores como: direito ao mais alto nível possível de saúde, equidade e solidariedade. Aproveitando-se da janela de oportunidades aberta pelas comemorações do 25º Aniversário da Declaração de Alma-Ata e do consenso internacional fomentado pelos organismos internacionais em torno da pactuação de metas que auxiliem na conquista dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênioxxxix, a OPAS propõe uma revisão das propostas da Conferência de Alma-Ata. Deste modo, o “documento de posicionamento” propõe uma revisão desse legado nas Américas (OPAS, p.i , 2007), definindo que: Renovar a APS exigirá uma fundamentação sobre o legado de Alma-Ata e do movimento da Atenção Primária em Saúde, aproveitando plenamente as lições aprendidas e as melhores práticas resultantes de mais de vinte e cinco anos de experiência, bem como renovar e reinterpretar a abordagem e a prática de APS para enfrentar os desafios do século vinte e um. (OPAS, p.i, 2007). O Brasil tem se mostrado disposto a liderar esse processo junto a OPAS, buscando ampliar sua influência no setor. Isso pode ser observado tanto pela participação de especialistas do país na formulação das propostas quanto pelo fato de que muitos documentos da série foram elaborados a partir de subsídios levantados em reuniões realizadas em território brasileiro. A seguir, buscou-se resgatar as principais movimentações institucionais no período de 2003 a 2010 para a construção da agenda no interior da OPAS, a partir de uma série de declarações, resoluções e documentos. Localiza-se como marco inicial do processo, em 2003, o 44º. Conselho Deliberativo que, por meio da resolução no. 46, propõe aos países membros e à própria OPAS que assumam a renovação da APS nas Américas como estratégia de reestruturação dos sistemas de saúde. No mesmo ano, a OPAS celebra o 25º Aniversário da Conferência de Alma-Ata. Buscando dar continuidade ao processo de renovação da APS, em 2004, foi criado o “Grupo de Trabalho sobre APS” no interior da OPAS a fim de construir diretrizes estratégicas e programáticas referentes à APSxl. Em 2004 em Boca Chica, na República Dominicana, foi xxxix As 08 metas dos objetivos do milênio são: (1) erradicar a pobreza extrema e a fome, (2) atingir o ensino básico universal, (3) promover a igualdade entre os sexos e a autonomia das mulheres, (4) reduzir a mortalidade infantil, (5) melhorar a saúde materna, (6) combater o HIV/AIDS, a malaria e outras doenças, (7) garantir a sustentabilidade ambiental e (8) estabelecer uma parceria mundial para o desenvolvimento (ONU, 2000). xl Os objetivos do GT eram: 1) analisar e reafirmar as dimensões conceituais da APS contidas na Declaração de Alma Ata; 2) desenvolver definições operacionais de conceitos relevantes à APS; 3) dar orientação aos países e à OPAS/OMS sobre como reorientar os sistemas e os serviços de saúde da região seguindo os princípios da APS; 4) elaborar uma nova declaração regional sobre APS que refletisse as realidades atuais dos sistemas de serviços de saúde e a necessidade de avaliar os êxitos e o progresso da APS; e 5) organizar e realizar uma consulta regional com grupos de interesse relevantes, de forma a tornar legítimos os processos acima (OPAS, 2007). 74 pactuada a “agenda da saúde para as Américas”, na qual a APS renovada ganhou destaque. No ano seguinte, em 2005, a “Declaração de Montevidéu” ratificou junto aos países membros a necessidade de renovar a APS, a partir de medidas como financiamento adequado, intersetorialidade, desenvolvimento integral e equitativo com base na Declaração do Milênio. A partir de 2007, observam-se uma intensificação e uma consolidação da estratégia de renovação da APS nas Américas. Tal inflexão tem inicio com o lançamento de um número especial da Revista Pan-Americana de Saúde Pública, intitulado: “A Renovação da APS nas Américas: A proposta da OPAS para o Século XXI”. O editorial assinado pela diretora Mirta Roses convoca os países a aderirem à proposta, a partir de um argumento retórico sustentado na lógica das evidências científicas: La contribución de la APS al mejoramiento de la salud de la población, como consecuencia de un mayor acceso a los servicios, de la aplicación de un enfoque preventivo y de contar con personal más capacitado, ha sido ampliamente reconocida por la comunidad internacional (OPAS, p. 2, 2007) O conteúdo da revista segue relatando as experiências tidas como exitosas nos países membros no campo da APS, como: a Estratégia de Saúde da Família no Brasil, as visitas domiciliares em Cuba, o programa “Vida” de promoção da saúde no Chile, entre outros. No mesmo ano, em 2007, a “Declaração de Buenos Aires” ratifica a APS como um investimento fundamental para se alcançar os Objetivos do Milênio nas Américas. Ainda em 2007 é lançado o “Documento de Posicionamento - A Renovação da Atenção Primária em Saúde nas Américas”xli, no qual a OPAS elenca e discute valores, princípios e elementos que devem nortear o processo de renovação da APS nas Américas, assim como indica um plano com tarefas de nível local, regional e global para se alcançar tal objetivo. Em 2008, é lançado o documento no. 2 da série Renovação da APS nas Américas, intitulado “A formação em Medicina Orientada para a APS”, no qual a OPAS propõe a normatização de currículos e competências necessárias para a atuação do médico na APS. Ao final do mesmo ano, em 2008, a OMS lançou seu relatório anual com foco na APS, intitulado “Atenção Primária em Saúde – Agora Mais que Nunca” que abordava as reformas consideradas necessárias para os sistemas de saúde se estruturarem pela APS. Assim, a OMS defende quatro tipos de reformas: (1) reformas em favor da cobertura universal, que visam assegurar sistemas de saúde a favor da equidade e da justiça social; (2) reformas de reorganização dos sistemas de saúde, que devem dialogar com as necessidades e expectativas xli O documento de no. 2 “ A Formação em Medicina Orientada para a APS” em 2008, antes do documento de no. 1 “Estratégias para o Desenvolvimento de Equipes de APS”, em 2009., visto que, o documento de equipes, demandou mais tempo no processo de elaboração e pactuação. 75 da população, para torná-los socialmente mais relevantes e fornecer ao mesmo tempo melhores resultados em saúde; (3) reformas de políticas públicas, que objetivem melhorar a saúde das comunidades, por meio da integração entre setores públicos e privados; (4) reformas nas lideranças que substituam por um lado a dependência do Estado e por outro, a lógica do “laissez-faire” (OMS, 2008). O documento no. 1 da série renovação da APS nas Américas intitulado “Estratégias para o desenvolvimento de equipes de Atenção Primária em Saúde” foi lançado em 2009. Esse documento tratou das competências necessárias para o trabalho em equipe e possui a mesma natureza prescritiva e normatizadora do documento anterior. Ainda em 2009, o 49º. Conselho Deliberativo por meio da resolução 22 orientou os países membros a elaborarem um plano de ação nacional para integração e coordenação dos serviços de saúde. Ao final de 2009, dialogando com todas as movimentações políticas no interior da Organização e ainda, com o documento “Atenção Primária em Saúde – Agora Mais que Nunca” da OMS, a OPAS divulgou seu Relatório Anual sob o título “Em busca da Saúde para todos: Avanços na Atenção Primária em Saúde nas Américas”, no qual, mais uma vez, a agência aposta na divulgação de experiências que considera bem sucedidas no que se refere às reformas no âmbito da cobertura universal, da prestação de serviços, nas políticas públicas e nas lideranças, como orienta o relatório da OMS. No ano de 2010, três documentos são relevantes. O primeiro é o documento no. 3 da série de Renovação da APAS nas Américas, denominado: “O credenciamento de Programas de Formação Médica e Orientação à APS”, que trata de faculdades de medicina que orientaram reformas curriculares com vistas a reorientar a formação médica para a prática na APS. O segundo é o documento de no. 4 da série de Renovação da APAS nas Américas, chamado “Redes Integradas de Serviços de Saúde: Conceito, Opções Políticas e Roteiro para sua Implantação nas Américas”, que aborda a necessidade de estabelecer redes de serviços de saúde e ainda ações intersetoriais articuladas aos serviços de saúde locais, ou seja, à APS. O terceiro documento, no final de 2010, é a resolução do 50º. Conselho Deliberativo que reiterou a necessidade de desenvolver competências para profissionais de saúde com vistas a atuar na APS. Os itens a seguir apresentam e discutem o conteúdo dos documentos da série Renovação da Atenção Primária em Saúde nas Américas selecionados para análise, que inclui: o documento de posicionamento sobre a renovação da APS nas Américas, o documento sobre a formação em medicina orientada para a APS, o documento de estratégias 76 para o desenvolvimento de equipes em APS e o documento de redes integradas de serviços de saúde. 4. 2. O documento de Renovação da Atenção Primária nas Américas. A partir da análise, identificaram-se como objetivos desse documento: realizar recomendações que permitam a renovação da atenção primária em saúde nas Américas e construir coalizões entre os diferentes atores que tem influência no setor da saúde: governos, prestadores de serviços (públicos e privados), agências internacionais e formadores de opinião. O documento final, lançado em 2007, é produto de um processo de consultas nacionais, realizadas em 20 países, num período de pouco mais de um ano.xlii Essa metodologia parece ser uma estratégia para sensibilizar as partes interessadas e assim, pactuar adesões para a renovação da APS. Deste modo, mais do que um documento de posicionamento, a OPAS busca garantir um “status” de “declaração regional” a esse documento. Nesse documento, a OPAS parte de três pressupostos. Inicialmente argumenta que existe uma situação mundial de iniquidades em saúde que foram agravadas nos últimos anos por transformações epidemiológicas e demográficas, principalmente nos países periféricos. O segundo pressuposto se ancora em evidências científicas que apontam que sistemas de saúde orientados pela APS são efetivos e eficazes, ou seja, possuem uma relação custo-efetividade positiva num contexto de recursos financeiros limitados. O terceiro pressuposto seria a necessidade de resgatar o legado da Conferência de Alma-Ata, contudo adaptando-o às transformações ocorridas nos últimos 30 anos (OPAS, 2007). Sabe-se que últimos anos houve um agravamento geral das desigualdades sociais, devido a práticas de ajustes econômicos e às pressões da globalização. Esse quadro demonstra a incapacidade das sociedades capitalistas em lidar com o conjunto de determinantes sociais e propor políticas que melhorem as condições de vida e saúde das populações. Partindo da tese de que a saúde deve ter um papel central na agenda de desenvolvimento por se tratar de uma necessidade humana básica e um direito social fundamental na construção das sociedades democráticas, defende-se que criar e recriar modos estruturantes dos sistemas de saúde é fundamental. xlii A versão provisória desse documento foi divulgada para consulta aos países membros em 2005. Os países nos quais foram realizadas as consultas incluem: Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Cuba, Republica Dominicana, Equador, El Salvador, Guatemala, Guiana, Jamaica, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, Suriname e Venezuela. 77 Dentre os motivos que justificam a renovação da APS, a OPAS destaca: os novos desafios epidemiológicos, a necessidade de corrigir pontos fracos e inconsistentes presentes em algumas abordagens de APS, o desenvolvimento de melhores práticas, o reconhecimento da APS como ferramenta capaz de reduzir iniquidades em saúde, além de ser uma condição fundamental para atingir os compromissos da Declaração do Milênio. Deste modo, a OPAS (2007) define como objetivo para renovar a APS: Revitalizar a capacidade dos países de elaborar uma estratégia coordenada, eficaz e sustentável para combater os problemas de saúde existentes, prepará-los para novos desafios de saúde e melhorar a equidade. A meta de tal esforço é obter ganhos sustentáveis de saúde para todos (OPAS, p. 2, 2007). Assim, segundo a OPAS “a essência da definição renovada da APS é a mesma contida na Declaração de Alma-Ata. No entanto, essa nova definição considera o sistema de saúde como um todo; inclui os setores público, privado e sem fins lucrativos, e aplica–se a todos os países” (OPAS, p. 8, 2007). Entretanto, esse trecho expressa uma diferença essencial do que referendou a Conferência de Alma-Ata ao fomentar medidas que fortalecessem o setor público como estratégia de ampliação e garantia do direito universal à saúde. Para que tal recomendação fosse viável, afirmava-se a necessidade de promover o protagonismo estatal, ainda que não houvesse uma crítica direta à expansão do setor privado. Em contrapartida, a ênfase da APS renovada e o principal elemento de revisão da Conferência de Alma-Ata é a afirmação da intervenção do Estado por meio de mecanismos de regulação de um sistema misto. Deste modo, o Estado seria o provedor dos serviços básicos em parceria com a iniciativa privada e o regulador do conjunto do sistema de saúde. O processo de renovação da APS inclui: concluir a implantação da APS onde houve falhas (a agenda de saúde inconclusa); fortalecer a APS para enfrentar novos desafios (aceitação social, serviço de qualidade e gestão ótima); garantir a APS na agenda mais ampla de equidade e desenvolvimento humano (OPAS, 2007). O caminho a ser percorrido para a APS renovada não é simples. Um dos obstáculos apresentados pela OPAS são as diferentes concepções presentes no discurso da APS. A OPAS (2007) classifica quatro possíveis abordagens de APS com base em Vuöri (1985): um conjunto de atividades e serviços específicos às populações pobres (focalizada e restrita); o primeiro nível “porta de entrada” do sistema de saúde; uma estratégia de reorganização do sistema de saúde com vistas à cobertura universal, distribuição de recursos, acessibilidade, coordenação entre os diferentes níveis de atenção e colaboração intersetorial, como proposto 78 pela Conferência de Alma-Ata; e, uma filosofia que reconheça o direito à saúde com ênfase nos direitos humanos. A OPAS (2007) acrescenta que a difusão e hegemonia da APS focalizada e restrita foram potencializadas pelos ideais ambiciosos e vagos expressos na Conferência de AlmaAta, assim como por sua amplitude e a dificuldade de mensuração de seus resultados pela população e pelos formuladores da política. Deste modo, a APS focalizada e restrita permitiu direcionar recursos limitados a alvos específicos de saúde, que necessitam de uma intervenção de grande impacto. Como explicita a passagem a seguir: Embora originalmente considerada como uma estratégia provisória, a APS seletiva tornou–se o modo dominante de atenção primária em saúde para muitos países. A abordagem prosseguiu por meio de muitos programas verticais para sub– populações ou específicos por doença. Em determinado ponto, o direcionamento à APS seletiva pode ser visto como uma reação à idéia de que a APS teria se tornado ampla e vaga demais, com impactos e êxitos difíceis de quantificar e ganhos insuficientemente visíveis para a população ou para os formuladores de políticas. A abordagem seletiva, em contraste, permitiu direcionar recursos limitados a alvos específicos de saúde, embora em alguns casos essa abordagem pareça ter sido escolhida como parte de uma estratégia para atrair maiores doações financeira aos serviços de saúde. (OPAS, p. 4, 2007) A partir do exposto compreende-se que as diferentes concepções de APS sempre foram projetos em disputa, influenciados pela correlação de forças políticas e sociais num momento histórico, pelo modelo político-econômico e a pela capacidade institucional dos países. Mais do que um modelo de prestação de serviços e organização dos sistemas de saúde, a concepção de APS traz consigo um dado projeto de sociedade, Estado e proteção social. Mais que proporcionar resultados mensuráveis, a APS focalizada e restrita dialogava com a agenda neoliberal, difundida a partir da década de 80 pelo mundo, que teve resultados negativos em termos das condições de saúde da população e o acesso aos sistemas de saúde pública. Segundo a OPAS (2007), os elementos que compõem e fundamentam um sistema de saúde com base na APS renovada baseiam-se em valores, princípios e elementos centrais. Posteriormente, são feitas orientações normativas (linhas estratégicas: nacionais, subregionais, regionais e globais) para reestruturar os sistemas de saúde. A partir disso, um sistema de saúde com base na APS renovada é definido como: Um conjunto de elementos centrais funcionais e estruturais que garantem a cobertura e o acesso universal a serviços aceitáveis à população que aumentam a equidade. Oferece cuidados abrangentes, integrados e apropriados com o tempo, enfatiza a prevenção e a promoção e assegura o cuidado no primeiro atendimento. As famílias e as comunidades são sua base de planejamento e ação. Um sistema de 79 saúde com base na APS requer uma sólida fundação legal, institucional e organizacional, bem como recursos humanos, financeiros e tecnológicos adequados e sustentáveis. Adota práticas de gerenciamento otimizado em todos os níveis para alcançar qualidade, eficiência e eficácia, e desenvolve mecanismos ativos para maximizar a participação individual e coletiva em saúde. Um sistema de saúde com base na APS desenvolve ações intersetoriais para abordar outros determinantes de saúde e eqüidade. A essência da APS renovada é mesma contida em Alma Ata. No entanto, essa nova considera o sistema de saúde como um todo; inclui setores público, privado e sem fins lucrativos, e aplica-se a todos os países. (OPAS, p. 8, 2007). Os valores são essenciais para definir as prioridades e nesse sentido englobam: (1) direito ao mais alto nível possível de saúde, ou seja, legalmente definidos e de responsabilidade do governo e de outros atores, prestadores privados e usuários; (2) equidade, que remete à justiça social expressa pela forma como as sociedades tratam seus membros menos favorecidos, e não somente pela relação de custo-efetividade; e (3) solidariedade para que os investimentos sejam sustentáveis e ofereçam proteção aos diferentes riscos e cooperação em vista do bem comum (OPAS, 2007). O conjunto de valores remete ao modelo de proteção social com base na promoção de políticas equitativas. Deste modo, a APS renovada se apoia em valores não necessariamente igualitários, mas principalmente compensatórios, a partir da lógica de “discriminação positiva” para minimizar os efeitos das desigualdades sociais geradas, principalmente, pelo modo de produção capitalista. Segundo a OPAS (2007) os princípios norteadores são a base para a política de saúde, legislação, alocação de recursos e operacionalização do sistema de saúde, compreendendo: (1) a capacidade de responder às necessidades de saúde da população, sejam elas objetivas, conforme descritas por especialistas, ou subjetivas, observadas e construídas pelos indivíduos e populações; (2) serviços orientados à qualidade, melhor tratamento possível para os problemas de saúde, evitando danos; (3) responsabilização dos governos, a partir de políticas legais e aplicação das funções do sistema de saúde, independente do tipo de prestador; (4) justiça social, com atenção especial aos mais vulneráveis; (5) sustentabilidade financeira considerando que os recursos são limitados; (6) participação com base no fortalecimento do controle social; e (7) intersetorialidade a partir da criação e vinculo com outros setores, sejam eles públicos ou privados, a fim de maximizar o potencial da APS no que tange ao desenvolvimento humano. A exposição dos princípios indica o fomento das relações público-privadas, como condição para viabilizar a APS renovada. Essa parceria é descrita a partir de dois mecanismos principais: a administração privada dos recursos públicos e por meio da desregulamentação do 80 monopólio governamental na prestação de serviços ao setor, inclusive no âmbito da APS, que tradicionalmente é reconhecida como uma área de protagonismo estatal. Os elementos estruturais e funcionais devem estar presentes em todo o sistema de saúde e incluem: (1) a cobertura e acesso universais; (2) primeiro contato; (3) atenção integral, integrada e contínua; (4) orientação familiar e comunitária; (5) ênfase na promoção e prevenção, com enfoque na abordagem dos determinantes de saúde; (6) atenção apropriada, centrada na pessoa e não na doença; (7) mecanismos de participação que incorporem atores públicos, privados e sociedade civil; (8) marco político, legal e institucional sólido; (9) políticas e programas pró-equidade para melhorar os efeitos negativos das iniquidades em saúde; (10) organização e gestão ótimas a partir de padrões de qualidade e segurança; (11) recursos humanos apropriados; (12) recursos adequados e sustentáveis; e (13) ações intersetoriais, com a criação de vinculo entre a saúde e outros setores (OPAS, 2007). A Figura 4.1 resume os valores, princípios e elementos destacados pela OPAS para a organização de um sistema de saúde com base na APS. Figura 4.1: Valores, princípios e elementos em um sistema de saúde com base na APS. Fonte: OPAS, 2007. 81 Em termos gerais, o processo de renovação das APS nas Américas incluiria os seguintes passos: (1) percepção do problema e das soluções pelas partes interessadas; (2) criação de coalizões e a conquista de novos defensores da APS; (3) convencimento de atores como agências, instituições e fundações a financiarem essas transformações; (4) mobilização social pela exigência de serviços de saúde eficazes e de qualidade, e por fim, (5) uma massa crítica de apoiadores. Em geral, o tempo estimado para esse processo é de 10 anos (OPAS, 2007). Ao longo do documento alguns indícios permitem compreender como a OPAS desenha esses passos. Na discussão acerca da percepção do problema e das soluções pelas partes interessadas, a OPAS utiliza como estratégia retórica a construção de evidências científicas em torno da efetividade da APS. Assim, repetem-se, ao longo do documento, trechos que expressam a mensagem que sistemas de saúde com base na APS são mais equitativos, eficientes, possuem menor custo e podem dar melhores respostas às necessidades de saúde dos usuários, como expresso no trecho a seguir: Há evidências consideráveis dos benefícios da APS. Estudos internacionais mostram que, considerados iguais demais fatores, países com sistemas de saúde fortemente orientados à APS têm maior probabilidade de apresentar resultados em saúde melhores e mais equitativos, serem mais eficientes, terem menores custos na atenção à saúde e alcançarem melhor satisfação do usuário do que aqueles cujos sistemas de saúde têm apenas uma fraca orientação à APS (OPAS, p. 15, 2007). A fim de promover a criação de coalizões e a conquista de novos defensores da APS, a estratégia utilizada pela OPAS é a construção de relações de complementaridade entre a Declaração do Milênio e a APS. Assim uma abordagem renovada da APS é vista como: Uma condição essencial para cumprir os compromissos de metas de desenvolvimento acordadas internacionalmente, incluindo as contidas na Declaração do Milênio, abordando os determinantes sociais de saúde e alcançando o nível mais elevado possível de saúde para todos (OPAS, p. iii, 2007). A partir da análise do documento percebe-se como estratégia retórica o uso contínuo do conceito de sustentabilidade vinculada à APS. Contudo, mais do que expressar a necessidade real de planejar e aperfeiçoar a aplicação de recursos públicos parece indicar um convite insistente à iniciativa privada para investir no setor, principalmente por meio do estabelecimento das parcerias público-privadas. Deste modo, buscam-se convencer atores financiadores como agências internacionais, instituições e fundações a investirem em algo seguro, visto que, a longo prazo, a APS tem capacidade para responder aos desafios em saúde apontados pela Declaração do Milênio, assim como pode reduzir os custos dos sistemas de saúde. Então a OPAS faz um amplo chamado a fim de seduzir os “investidores da saúde”, 82 sejam eles públicos representados pelos governos ou privados para que literalmente “comprem” a ideia da APS renovada. No que se refere à mobilização social pela exigência de serviços de saúde eficazes e de qualidade, a OPAS cita o controle social como mecanismo de participação ativa para o estabelecimento de prioridades, gestão de recursos, avaliação e regulação da saúde, por meio de um mix de ações individuais e coletivas, que incorporem o setor público, o privado e a sociedade civil. A criação de uma massa crítica de apoiadores tem como objetivo identificar pontos de acordo e negociar as discordâncias, mecanismo para buscar mais adesão em torno do processo, e assim obter colaboração ideológica, política e financeira. Para tal, destaca a importância do Banco Mundial e da OMS. Por fim, o documento aborda que é fundamental que os países aprendam com as lições dos últimos 25 anos. Para tal, identifica fatores de barreira e facilitadores para a renovação da APS nos países. Os fatores de barreira seriam a fragmentação dos sistemas de saúde; o pouco compromisso político; a coordenação inadequada entre: comunidades, agências locais, nacionais e internacionais, o uso inadequado da informação, a insuficiente colaboração intersetorial e os investimentos insuficientes em recursos humanos, com ênfase para esse último elemento. Por outro lado, os fatores facilitadores incluiriam: o comprometimento com a equidade; financiamento adequado para garantir acessibilidade a serviços de qualidade e evitar o desembolso direito; aumento da cobertura básica associada a treinamento de pessoal; ênfase na promoção da saúde e prevenção de doenças e o ativismo social de usuários e trabalhadores com ênfase para os trabalhadores comunitários (OPAS, 2007). Em síntese, a partir dos valores, princípios e elementos centrais, a APS renovada parece expressar uma concepção menos progressista do que na Conferência de Alma-Ata. Por um lado, retoma a ideia da APS como uma estratégia para organizar os sistemas de saúde e em certa medida, promover o direito a saúde, se contrapondo à ideia da APS focalizada e restrita. Contudo, a APS renovada tem centralidade em elementos como universalidade com foco na equidade, sustentabilidade a partir das parcerias entre setor público e privado e, ainda, no modelo de intervenção estatal eminentemente regulador. Em contraposição, a Conferência de Alma-Ata destacava a universalidade com foco na igualdade do direito à saúde e um modelo de intervenção estatal voltado para o fortalecimento do sistema público de saúde. A concepção de APS renovada parece se ancorar no modelo de proteção social orientado pelo universalismo básico ao propor um conjunto de serviços essenciais universais e de qualidade que tenha relação com a capacidade institucional dos países. Deste modo, cada 83 país das Américas constituirá o que compreende como direito humano básico no âmbito da saúde. 4.3. Propostas para a Formação da Força de Trabalho A discussão acerca das propostas para a formação da força de trabalho foi realizada a partir da análise de dois documentos: “A Formação em Medicina Orientada para a APS”, lançado em 2008 e o documento “Estratégias Para o Desenvolvimento de Equipes de APS”, lançado em 2009. Esses documentos dedicam-se à temática da formação, considerada pela OPAS como estratégica para a renovação da APS das Américas. Além disso, a escolha da temática da formação de força de trabalho como um elemento chave da APS renovada tem relação com a tradição histórica que a OPAS tem na cooperação técnica nesse setor. Os documentos partem de dois pressupostos em comum. O primeiro é que um sistema de saúde com base na APS deve-se apoiar em recursos humanos adequados, que envolvem provedores de serviços (de saúde, sociais e outros), pessoal comunitário, gestores, pessoal administrativo e a população (indivíduo, família e comunidade). Nesse sentido, constata-se que a situação atual está em dissonância com as necessidades de saúde. O segundo é que definir competências é um modo para operar a gestão de recursos humanos que possibilita melhor articulação entre trabalho, saúde e educação, sendo considerado fundamental para o melhor desempenho (OPAS, 2008; 2009). xliii A equipe de saúde qualificada para atuar no âmbito da APS é compreendida como “um pequeno número de pessoas com competências complementares que estão comprometidas com um propósito comum, com metas de desempenho e com uma proposta pelos quais se consideram mutuamente responsáveis” (OPAS, p.9, 2009). Para que esse grupo se constitua como equipe, as seguintes condições são importantes: o desempenho como objetivo central, a criação de uma ética de desempenho da equipe por parte dos gerentes que xliii No documento de posicionamento sobre a Renovação da APS, são definidas as orientações para os recursos humanos em um sistema de saúde com base na APS: (1) a cobertura universal requererá um volume importante de profissionais treinados na APS; (2) os recursos humanos devem ser planejados de acordo com as necessidades da população; (3) o treinamento deve ser articulado com as necessidades de saúde e ser sustentável; (4) devem ser formuladas políticas para qualidade do desempenho do pessoal; (5) devem ser caracterizadas as capacidades do pessoal (perfil e competências) e o perfil de cada profissional deve se ajustar a um trabalho específico; (6) são requeridos mecanismos de avaliação contínua que facilitem a adaptação dos profissionais da saúde aos novos cenários e às necessidades variáveis da população; (7) as políticas devem apoiar a abordagem multidisciplinar da atenção integral e (8) a definição de profissional da saúde deve incluir aqueles que trabalham nos sistemas de informação, gerência e administração de serviços (OPAS, 2007). 84 combata atitudes individuais, a disciplina e a organização, a qualidade e a integralidade das respostas em saúde (OPAS, 2009). Nessa definição, nota-se uma grande preocupação com o desempenho. A forma rígida e pragmática como a OPAS aborda a qualificação da força de trabalho para atuação na APS parece considerar pouco as especificidades e valorizar a necessidade de mensuração de resultados. Essa preocupação é expressa nos demais documentos da série ao referir-se à APS renovada como algo que não quer repetir os ideais “vagos” da Conferência de Alma-Ata, o que dialoga com a importância atribuída ao quesito desempenho. Contudo, nem sempre as medidas assistenciais com base em procedimentos técnicos e quantificáveis indicam resolutividade das necessidades de saúde no âmbito da APS. Apesar disso, a OPAS procura fortalecer a lógica da gestão por resultados que se apoia nas metas de desempenho e produtividade. As equipes podem ser classificadas a partir do resultado e das relações entre as disciplinas. Assim, identificam-se três categorias: multiprofissional (parte da lógica de competências complementares), interdisciplinar (disciplinas que se integram entre si e que transformam o objeto) e transdisciplinaridade (disciplinas que interagem a partir de nexos analíticos). Como características do trabalho em equipe apontam-se: a autonomia relativa, a interdependência, a interdisciplinaridade, a horizontalidade, a flexibilidade, a criatividade e a interação comunicativa (OPAS, 2009). No que se refere especificamente aos médicos, o perfil de competências básicas inclui: a prática profissional a partir das necessidades de saúde, o respeito e a confiança junto a equipe, comunidades e outros setores, a compreensão do ciclo da vida humana, o trabalho em equipe e desenvolvimento de liderança, a capacidade de lidar com incertezas e mudanças, o gerenciamento e a autoaprendizagem (OPAS, 2008) xliv. A OPAS (2008) acrescenta que a composição de cada equipe é variável nos diferentes países da região. Essa flexibilidade tem relação com a estratégia da OPAS de propor um modelo de APS renovada maleável e adaptável às diferentes disponibilidades de recursos, capacidade institucional e administrativa e, principalmente, às diferentes conformações dos sistemas de saúde. Assim ressalta-se: Não há, portanto, uniformidade quanto à composição das equipes de APS no nível primário de atenção, embora em geral se considere uma composição mínima que inclui um médico (clínico geral ou família), enfermeira e um técnico de nível xliv Para tal alguns conteúdos devem ser enfocados na formação desse profissional: identificação de fatores de riscos e vulnerabilidades, epidemiologia, conhecimento para lidar com doenças mais prevalentes na população, aspectos sociais e antropológicos, trabalho em equipe, políticas de saúde, comunicação e ética profissional (OPAS, 2008). 85 médio com funções de auxiliar, ou um técnico comunitário, dependendo das necessidades da comunidade (OPAS, p. 11, 2008) A composição das equipes de saúde no âmbito da APS é um elemento importante no que se refere à capacidade de dar respostas integrais às demandas de saúde da população. Para tal, a formação de equipes de saúde amplas, indicadas a partir das necessidades identificadas com base no diagnóstico de saúde local, é um fator fundamental para identificar a concepção de APS proposta, se mais abrangente com vistas a buscar uma abordagem mais integral a partir de uma composição mais ampla de profissionais, ou restrita com foco nos profissionais capazes de operar os programas específicos. Como metodologia de gestão da força de trabalho, a OPAS propõe o desenvolvimento de competências como forma de melhorar o desempenho e práticas das equipes de saúde no âmbito da APS, pois refere ser a possibilidade de articular gestão, trabalho e educação (OPAS, 2009). Deste modo, define o conceito de competências: São características pessoais que se manifestam quando é executada uma tarefa ou realizado um trabalho. Elas estão relacionadas com o desempenho competente em uma atividade de trabalho ou de outra natureza. Quando se atua com competência, se observa um melhor desempenho e boas práticas. Para tal é necessário ter conhecimentos (saber), habilidades para pôr em prática os conhecimentos (saber fazer), estar motivado e ter atitude (querer fazer) e dispor dos meios e dos recursos xlv necessários (poder fazer) (OPAS, p. 19, 2009). Identificou-se que embora os dois documentos apontem para a gestão de competências como estratégia de qualificação da força de trabalho para a APS, há uma diferença sutil na abordagem aos diferentes públicos. Para mudar o perfil dos médicos recomendam-se mudanças curriculares, ainda na faculdade. Já para os demais profissionais de saúde, a estratégia proposta é atuar por meio da educação permanente (formação em serviço). Isso tem relação com o diagnóstico de que muitas faculdades de medicina têm como características em seu processo pedagógico: baixo compromisso social, ênfase na formação por especialidade, que tem alto custo e não habilita para a atuação na APS, ênfase na biologia, centralização da prática educativa em hospitais, limitada abordagem sobre a promoção da saúde de indivíduos, xlv As competências podem ser classificadas como: (1) genéricas que são comuns e partilhadas por todos os membros da equipe e permitem que os profissionais se adaptem as novas condições de trabalho, se mantenham atualizados e superem os problemas que precisam enfrentar em seus respectivos postos de trabalho; (2) especificas que são próprias das funções que devem ser realizadas por uma unidade organizacional, como equipes de APS. Elas se relacionam aos processos e contribuições individuais e coletivas que dependem de conhecimentos e aptidões. São inerentes a todas as profissões e predominam os aspectos técnicos; (3) humanísticas, que se referem ao conjunto de valores éticos desenvolvido pelo profissional para o uso e a aplicação dos conhecimentos adquiridos. Relaciona-se ao exercício profissional e à responsabilidade social perante a comunidade (ética profissional) (OPAS, 2009). 86 famílias e comunidades, insuficiente formação técnica e humanística para atuar junto a esses grupos (OPAS, 2009). Um dos grandes desafios para se implantar a APS numa perspectiva abrangente é a adesão do profissional médico ao modelo. Por isso, é relevante a discussão proposta pela OPAS sobre a necessidade de mudanças nos curriculos médicos, que tradicionalmente são orientados à atuação liberal e especializada da medicina. Contudo, para além de mudanças na estrutura curricular, são necessárias mudanças de âmbito mais estrutural que têm relação com o corte de classe da profissão, que influencia o compromisso social, as atitudes e valores profissionais. Na maior parte dos países, a profissão médica está relacionada a um “status” social que é reforçado pelos modelos rígidos e não necessariamente eficientes de acesso às universidades, que privilegiam as condições econômicas em detrimento do desejo de se dedicar a essa profissão. Nesse processo, parte expressiva dos médicos tem origem em uma elite social, que está compromissada com a manutenção de seu “status quo” e não com as necessidades de saúde da população. Diante disso, parte importante desses profissionais opta pelas especialidades que são mais lucrativas e que lhes atribuem maior prestígio profissional. Portanto, reverter a lógica da formação médica inclui rever as formas de acesso à universidade e consequentemente, transformar a base social da profissão. No que se refere à abordagem por competências, Ramos (2003) ressalta que, embora a educação profissional tenha por finalidade o desenvolvimento de aptidões para a vida produtiva, os processos formativos devem ser constituídos de duas dimensões: uma subjetiva e outra objetiva. A dimensão subjetiva parte da apreensão dos conhecimentos, das habilidades e dos valores a partir de situações e experiências concretas. A dimensão objetiva da aprendizagem, por sua vez, refere-se ao conjunto de conhecimentos e relações que estrutura, interroga e explica os fenômenos. Desse modo, a abordagem por competências com foco no desenvolvimento de capacidades e habilidades meramente técnico-cientifica desconsidera o contexto e elementos essenciais ao processo de qualificação profissional. Em síntese, os documentos analisados são muito operacionais e normativos, com isso, pouco contribuem com novos elementos no que diz respeito à concepção renovada de APS e suas implicações para a proteção social. Em breves passagens, repetem a definição de APS renovada apresentada no documento de posicionamento, “a essência da definição renovada da APS é a mesma contida na Declaração de Alma-Ata. No entanto, essa nova definição considera o sistema de saúde como um todo; inclui os setores público, privado e sem fins lucrativos, e aplica–se a todos os países” (OPAS, p. 8, 2007). Reafirma-se o posicionamento 87 da OPAS em prol do estabelecimento das parcerias entre os setores público e privado também na formação e qualificação da força de trabalho, e assim, reforçando a ênfase na concepção de Estado regulador. 4.4. A Proposta das Redes Integradas de Serviços de Saúde (RISS). O objetivo declarado do documento “Redes Integradas de Serviços de Saúde: Conceito, Opções Políticas e Roteiro para sua Implantação nas Américas” é analisar a fragmentação dos serviços de saúde e propor um marco conceitual e operacional para a implantação das RISS. O referido documento, que é de natureza predominantemente normativa e diretiva, lançado em 2010 é produto de uma série de consultas nacionais, subregionais e duas regionais, ocorridas no Brasil e no Peru para apreciação e recomendações dos países membros.xlvi O documento parte do pressuposto que os sistemas de saúde nas Américas caracterizam-se por um alto nível de fragmentação dos serviços. A experiência, com base em evidências científicas, comprovaria que a excessiva fragmentação gera dificuldades de acesso, de prestação de serviços, baixa qualidade técnica, uso irracional dos recursos disponíveis, aumento desnecessário de custos com a produção e uma baixa satisfação dos usuários com os serviços recebidos (OPAS, 2010). Deste modo, a OPAS constata: La mayoría de países de nuestra Región requieren de profundos cambios estructurales en sus sistemas de salud para que éstos puedan contribuir de manera efectiva a la protección social, a garantizar el derecho a la salud de todos sus ciudadanos y a la cohesión social. Entre esos cambios son esenciales la superación de: a) La segmentación de los sistemas de salud, es decir la existencia de subsistemas debido a distintas fuentes y arreglos de financiamiento, reflejando una segmentación social por capacidad de pago ó por inserción en el mercado laboral. Este rasgo estructural consolida y profundiza la desigualdad entre grupos sociales y es factor de exclusión social. De esta manera los pobres e informales quedan fuera;…. b) La fragmentación organizacional, (es decir) la coexistencia en el territorio de infraestructura y capacidades de diversos subsistemas sin coordinación y menos integración. Esto eleva los costos por duplicación y por mayores costos de transacción así como genera diferentes tipos y calidades de prestaciones (OPAS, p. 13, 2010). xlvi O documento faz menção às importantes colaborações do Ministério da Saúde do Brasil, do Organismo Alemão para Cooperação Técnica (GTZ) e da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID) na organização e financiamento necessários às várias consultas (OPAS, 2010). Indica a necessidade de se estabelecer mais cooperações internacionais para a formação das RISS nas Américas, com destaque para o Consórcio de Saúde e Atenção Social da Cataluña (CSC), a Cooperativa de Hospitais de Antioquia (COHAN) e a Agência Espanhola de Cooperação Internacional para o Desenvolvimento (AECID). 88 As principais causas identificadas pela OPAS como geradoras da fragmentação compreendem: segmentação institucional dos sistemas de saúde, descentralização, programas focalizados em doenças e grupos vulneráveis, por vezes não integrados ao sistema de saúde, separação extrema dos serviços de saúde pública e individual, modelos de saúde centrados na doença e na atenção hospitalar, pouca capacidade de liderança das autoridades sanitárias, problemas com a qualidade, quantidade e distribuição de recursos e práticas de financiamento por parte dos organismos internacionais a programas verticais e que não consideram o todo do sistema de saúde (OPAS, 2010). Cabe ressaltar que mais do que problemas intrínsecos ao setor saúde, o diagnóstico de fragmentação dos serviços apresentado pela OPAS é característico de uma dada constituição histórica, social e econômica dos países latino-americanos e caribenhos. Cada um desses países constituiu seu modelo de proteção social e consequentemente, de atenção à saúde, mas de maneira geral, sem a saúde constituir-se como um direito inviolável. Assim, a forma como se constituíram o sistema de proteção social e os sistemas de saúde teria favorecido sistemas de saúde fragmentados, com foco nas políticas corporativas e nos programas de assistência à população mais pobre, seletividade temperada por clientelismo, e ainda, com a permissão de um amplo arranjo na prestação de serviços (mix público-privado). Além disso, destaca-se que o processo de descentralização envolveu diferentes projetos e interesses. Por um lado, tal processo representou uma resposta aos anseios dos movimentos setoriais que o entendiam como uma conquista democrática, visto que assim seria possível planejar a saúde a partir das realidades e demandas locais. Por outro lado, houve uma apropriação do discurso de descentralização pelos neoliberais para justificar a desresponsabilização do Estado com as políticas de saúde. Assim, criaram-se sistemas de saúde de organização precária, inaptos a garantir a continuidade da assistência, o que gerou duplicação de trabalho e custos, além de serem pouco eficazes para atender as necessidades de saúde da população. A partir do exposto, a OPAS afirma que a constituição da RISS xlvii seria a principal expressão operativa do enfoque da renovação da APS, definindo que: xlvii Como exemplo de iniciativas de RISS bem sucedidas, a OPAS cita inúmeras e distintas experiências, dentre as quais: Sistema Integrado de Saúde da Argentina, Rede Municipal de Saúde Familiar, Comunitária e Intercultural da Bolívia, o Plano Mais Saúde - Direitos de Todos no Brasil, Redes Assistências de Atenção Primária no Chile, Criação do Sistema Nacional de Saúde de El Salvador, Modelo Coordenado de Atenção a Saúde na Guatemala, Integração Funcional do Sistema de Saúde do México, Conformação de Redes Plurais no Peru, Rede de Serviços Regionais da Republica Dominicana, Rede da Região Del Este em Trinidad e Tobago, Sistema Nacional de Saúde Integrado do Uruguai e as Redes de Saúde do Caracas, na Venezuela (OPAS, 2010). 89 Las Redes Integradas de Servicios de Salud pueden definirse como una red de organizaciones que presta, o hace los arreglos para prestar, servicios de salud equitativos e integrales a una población definida, y que está dispuesta a rendir cuentas por sus resultados clínicos y económicos y por el estado de salud de la población a la que sirve (OPAS, p. 9, 2010). Segundo a OPAS (2010), a integração dos serviços de saúde pode acontecer a partir de uma variedade de arranjos, que podem expressar quatro concepções de integração: (1) integração horizontal a partir da coordenação de unidades que estão no mesmo nível de atenção à saúde; (2) integração vertical, que expressa a coordenação entre diferentes níveis de atenção à saúde; (3) integração real a partir da propriedade ativa de todos os níveis do sistema e (4) integração virtual definida pela relação entre os diferentes prestadores dentro de um sistema de saúde. A RISS é definida como: Una extensa red de establecimientos de salud que presta servicios de promoción, prevención, diagnóstico, tratamiento, gestión de enfermedades, rehabilitación y cuidados paliativos, y que integra los programas localizados en enfermedades, riesgos y poblaciones específicas, los servicios de salud personales y los servicios de salud pública (OPAS, p. 10, 2010). Dialogando com sua orientação em documentos prévios, a OPAS reforça ao longo do documento, a necessidade de estabelecimento de “parcerias” entre setor público e privado, como explicitado no trecho a seguir: Las RISS no riquierem que todos los servicios que las componen sean de propriedad única. Por el contrario, algunos de sus servicios pueden prestarse por medio de una gama de arreglos contractuales o alianzas estratégicas en lo que se ha denominado “integración virtual”. Essa caracteristica de la RISS permite buscar opciones de complementación de los servicios entre organizaciones de distintas naturezas jurídicas, ya sean públicas o privadas” (OPAS, 2010). Define-se ainda um conjunto de funções da autoridade sanitária nacional, ou seja, do Estado, que compreende: (a) condução setorial (formulação e avaliação das políticas), (b) regulação, (c) controle do financiamento, (d) garantia de acesso, (e) execução das Funções Essenciais da Saúde Pública e (f) coordenação da prestação de serviços de saúde (OPAS, 2010). Novamente, a OPAS valoriza as relações entre setor público e privado e reafirma o Estado como regulador, admitindo a iniciativa privada como executora dos recursos públicos. Aponta-se que, dada a variedade de contextos de sistemas de saúde e visando dialogar com um auditório o mais amplo possível, a OPAS reforça a premissa de que não é possível instituir uma forma rígida e única de organizar a RISS. Desse modo, a OPAS propõe diretrizes gerais que possam ser adequadas às diferentes realidades. Para tal, a OPAS qualifica uma série de atributos essenciais as RISS, subgrupados em quatro categorias: modelo 90 assistencial; governança e estratégia; organização e gestão; atribuições e incentivos (OPAS, 2010). Na categoria “modelo assistencial”, a OPAS inclui como atributos: 1) adstrição de população e território; 2) formação de uma rede de estabelecimentos de saúde que prestem serviços de promoção, prevenção, diagnóstico, tratamento, reabilitação e cuidados paliativos integrados por programas focalizados em doenças, riscos e populações específicas; 3) porta de entrada do sistema de saúde, universal, integrada e coordenada aos demais níveis de atenção; 4) prestação de serviços especializados em locais apropriados e de preferência extrahospitalares; 5) atenção à saúde centrada na pessoa, na família e na comunidade, atendendo a particularidades culturais e de gênero nos diferentes estratos da população (OPAS, 2010). A categoria “governança e estratégia” compreende: 1) um sistema de governança único para toda a rede de saúde; 2) criação de mecanismos de coordenação assistencial ao longo do sistema de saúde; 3) ampliação da participação social; 4) ação intersetorial com abordagem dos determinantes sociais e da equidade em saúde (OPAS, 2010). Na categoria “organização e gestão” destacam-se: 1) gestão integrada de sistemas de apoio clínico, administrativo e logístico; 2) sistemas de informação integrados que vinculam todos os membros da rede, desagregados por sexo, idade, residência, origem étnica e outras variáveis pertinentes; 3) gestão baseada em resultados. Por último, a categoria “atribuições e incentivos” trata do financiamento e incentivos adequados a partir de metas pactuadas para rede de saúde (OPAS, 2010).xlviii, xlix Na especificação das categorias, nota-se uma influência importante do modelo proposto por Barbara Starfield (2002) para operacionalizar a APS. Segundo a autora, a APS deve ser a porta de entrada dos sistemas de saúde, permeada por valores de universalidade do acesso, organização e racionamento do sistema de saúde, acessibilidade, longitudinalidade, integralidade e coordenação da atenção à saúde. A autora propõe para medir o potencial e o alcance de cada um dos atributos mencionados quatro elementos estruturais (acessibilidade, variedade de serviços, população eletiva e continuidade) e dois elementos processuais (utilização e reconhecimento do problema). xlviii As consultas regionais indicaram que as tarefas específicas e prioritárias da OPAS no processo de implantação da RISS seriam no âmbito da cooperação para os seguintes atributos: constituição de sistemas de informação, governança, gestão e apoio clínico, administrativo e logístico, financiamento e incentivos, porta de entrada do sistema, recursos humanos, mecanismos de coordenação assistencial e foco na atenção a pessoas, família e comunidade (OPAS, 2010). xlix O cronograma de execução inclui três fases. A primeira fase (2009 – 2010) corresponde à identificação dos principais causas da fragmentação do sistema e construção de planos nacionais para o desenvolvimento da RISS. A segunda fase, a partir de 2010, inclui a execução dos planos nacionais e sua evolução. A terceira fase (20082012) é simultânea às demais e consiste na implantação efetiva da RISS (OPAS, 2010). 91 A partir da análise do documento observa-se o reforço à proposta de complementaridade entre ações de saúde mais abrangentes e focalizadas. Tal estratégia está associada à maior possibilidade de difusão de um discurso amplo e flexível, permitindo uma série de arranjos e adaptações, e assim, potencializando adesão dos países membros à APS renovada. Ou ainda, trata-se de estratégia para captação de parceiros e recursos financeiros, visto que alguns programas direcionados a grupos específicos - como a Aliança Mundial para Vacinas e Imunização e o Fundo Mundial de Luta Contra AIDS, Tuberculose e Malária - são programas milionários. Então, a partir da construção de uma relação de complementaridade não haveria competição por esses recursos específicos. No mais, nenhuma das quatro categoriais apresentadas pelo documento apresenta um elemento novo, além dos já consensuais, como estruturantes de um sistema de saúde orientado pela APS. A implantação dos atributos dependeria de elementos como viabilidade política, técnica, econômica e social de cada país. Para tal, a OPAS descreve o caminho a ser seguido pelos países membros, por meio da instauração de instrumentos da política pública (jurídicos e não jurídicos) e mecanismos institucionais (clínicos e não clínicos) para que se avance na implementação das RISS (OPAS, 2010). Os instrumentos da política pública são estratégias e recursos que os governos utilizam para alcançar metas e objetivos, sendo esses jurídicos e não jurídicos. Os jurídicos englobam um conjunto de mecanismos legais que asseguram as condições mínimas para a APS renovada, como a regulamentação de fontes de financiamento. Dentre os não jurídicos citamse: aceitação da população, planificação dos serviços de acordo com as necessidades de saúde, modelo de atenção centrado na família e na comunidade com enfoque cultural e de gênero, sensibilidade à diversidade populacional, normatização da porta de entrada, regulação do acesso à atenção especializada, normatização de rotinas clinicas, políticas de formação de recursos humanos compatíveis com a RISS, pagamento per capita segundo condições de riscos da população e colaboração intersetorial na abordagem de determinantes em saúde e promoção da equidade (OPAS, 2010). Os mecanismos institucionais são aqueles estabelecidos por gestores e prestadores de serviços, e podem ser clínicos e não clínicos. As vias clínicas são relacionadas às possíveis inovações no campo da assistência: informatização da história clinica, guias de referência e contra referência, gestão de casos e telesaúde. As não clínicas referem-se a mecanismos de apoio assistencial: missão organizacional, planificação e incentivos financeiros, definição de responsabilidades de cada um da rede, participação e liderança de usuários e profissionais de saúde, apoio matricial, centrais de regulação, sistemas de apoio logístico, identificador único 92 dos usuários, trabalho intersetorial com a assistência social e estratégias de compra de serviços (OPAS, 2010). Dentre os fatores facilitadores para a implantação da RISS localizam-se: compromisso e apoio político, disponibilidade de recursos financeiros, liderança das autoridades sanitárias, flexibilização da gestão local, indução financeira associada ao desenvolvimento da RISS, trabalho em equipe, participação ativa e gestão baseada em resultados. Os fatores de barreira para a RISS seriam: baixa capacidade institucional, as consequências das reformas neoliberais, grupos de interesse opostos, financiamento com ênfase em programas verticais, fragilidade dos sistemas de informação e debilidades na gestão (OPAS, 2010). Em síntese, a construção de redes integradas de saúde a partir de um sistema de referência e contra-referência é um dos fatores determinantes na viabilização de sistemas de saúde, que inclusive condiciona o papel que a APS exercerá, se universal e abrangente ou focalizada e restrita, uma vez que é, a partir da sua estruturação e efetivação, que é possível o atendimento integral e contínuo da população de acordo com a complexidade de suas necessidades de saúde, estando intimamente ligado às questões de acessibilidade, universalidade e integralidade da assistência. Deste modo, a preocupação com a formação de redes integradas de serviços de saúde parece indicar a preocupação da OPAS com uma concepção ampliada da APS, contudo, sem excluir a existência de abordagens típicas da APS focalizada e restrita em determinadas situações e ainda, a ênfase nas políticas equitativas. Nesse documento, é reforçada a regulação como sendo o principal mecanismo de intervenção estatal, como o estabelecimento das parcerias entre setores públicos e privados, demonstrando coerência no discurso, ao adotar uma posição política ao longo dos documentos da série. A seguir, o quadro 4.1 apresenta uma sistematização das características e principais argumentos contidos nos documentos analisados. 93 Quadro 4.1 – Sistematização das características e principais argumentos contidos nos documentos analisados. Documento Documento de Posicionamento - A Renovação da Atenção Primária em Saúde nas Américas, 2007. Contexto Concebido a partir da janela de oportunidades aberta pelas comemorações do 25º Aniversário da Conferência de Alma Ata e do consenso internacional construído com base na Declaração do Milênio. Autores Elaborado por James Macinko, conceituado pesquisador do Departamento de Nutrição, Estudos da Alimentação e Saúde Pública da Universidade de Nova York, EUA, sob coordenação de dois especialistas da OPAS: Hernán Montenegro e Carmen Nebot, ambos da Área de Organização de Serviços de Saúde, Tecnologias e Prestação de Serviços, sendo o primeiro consultor de sistemas de saúde e a segunda consultora para a proteção social. Contou com a colaboração de uma série de especialistas externos à OPAS, dentre eles, Barbara Starfield, uma referência mundial na temática da APS. Auditório Atores, organizações e agências tidos “neutros” no processo de renovação, a fim de se avançar na construção de coalizões, principalmente com aqueles capazes de realizar investimentos no setor saúde, sejam eles públicos (governos) ou privados. Principais Argumentos Os desafios epidemiológicos da atualidade demandam uma reestruturação dos sistemas e do cuidado a saúde, a fim de promover políticas de saúde apoiadas na equidade. Para tal, a APS deve ter um caráter estruturante dos sistemas de saúde. Dentre as propostas para se atingir esse objetivo são destacados o estabelecimento das parcerias públicoprivadas e o Estado regulador, como modelo de intervenção estatal. A formação em medicina orientada para a APS, 2008. Produzido numa reunião de especialistas em APS do Canadá, EUA, Brasil, Cuba, Costa Rica e Honduras, durante o II Seminário Internacional de Atenção Primária – Saúde da Família, no Brasil, 2006. Coordenado por Carmen Nebot (Área de Organização de Serviços de Saúde, Tecnologias e Prestação de Serviços), Carlos Rosales (representação paraguaia e consultor de recursos humanos da Área de Sistemas e Serviços de Saúde). Participação de Rosa Maria Borrell (representação argentina e consultora em Educação Médica), Armando Güemes (consultor de Sistemas e Serviços de Saúde) e José Ruales (representação em El Savador e membro do grupo de trabalho em APS). Gestores dos níveis centrais e locais, instituições e associações de ensino. Um sistema de saúde com base na APS se apóia em recursos humanos adequados que envolvem provedores de serviços (de saúde, sociais e outros), pessoal comunitário, gestores, pessoal administrativo e a população (indivíduo, família e comunidade). Deste modo, propõe-se definir competências como o modo para operar a gestão de recursos humanos a fim de estabelecer melhor articulação entre trabalho, saúde e educação. 94 Documento Estratégias para o desenvolvimento de equipes em APS , 2009. Contexto Produzido numa reunião de especialistas em formação médica nas Américas, promovida pela OPAS e realizada em 2008, no Brasil. Autores Auditório Coordenado por Rosa María Borrell Gestores dos níveis centrais e (representação argentina e consultora em locais, e instituições e Educação Médica), e Charles Godue associações de ensino. (representação nos EUA e consultor de Recursos Humanos e Desenvolvimento em Saúde) e Marcelo García Dieguez (consultor para Educação Médica). Principais Argumentos A formação médica não é orientada pelas necessidades de saúde da população, assim como não está em consonância com o propósito da renovação da APS. Para tal, a proposta é a promoção de mudanças curriculares que qualifiquem esses profissionais a partir da articulação entre ensino- serviço. Redes Integradas de Serviços de Saúde: Conceito, Opções Políticas e Roteiro para sua Implantação nas Américas, 2010. Elaborado a partir de uma série de consultas aos países membros que identificaram a fragmentação dos serviços de saúde e a formação profissional como os grandes desafios a serem superados para a renovação da APS. A versão preliminar foi escrita por James Cercone, com revisão bibliografia de Eugênio Vilaça Mendes, ambos consultores da Área de Sistemas e Serviços de Saúde da OPAS. O documento final foi elaborado por Hernán Montenegro (Área de Organização de Serviços de Saúde, Tecnologias e Prestação de Serviços), com colaboração de Eduardo Levcovitz (representação uruguaia), Reynaldo Holder (consultor da Área de Hospitais e Serviços Integrais de Saúde), José Ruales (representação El Savadorenha e membro do grupo de trabalho em APS) e Júlio Soares (consultor Área de Sistemas e Serviços de Saúde e representação chilena). Parte do pressuposto que existe uma fragmentação nos sistemas de saúde, portanto, um dos desafios para a renovação da APS é articulá-la aos outros níveis de atenção à saúde. Dentre as medidas necessárias, destaca-se a constituição das redes integradas de serviços de saúde (RISS) com foco na articulação do conjunto de provedores, sejam eles públicos ou privados. Propõe ainda uma série de mecanismos incluindo os de política pública (jurídicos e não jurídicos) e mecanismos institucionais (clínicos e não clínicos) que viabilizem a RISS. Fonte: Elaboração própria, 2011. Formuladores de política, governos e prestadores de serviços de saúde, sejam eles públicos ou privados. 95 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS: Este trabalho abordou a agenda da Organização Pan-Americana da Saúde para a Atenção Primária em Saúde e suas possíveis implicações para a proteção social na América Latina nos anos 2000. Buscou situar em perspectiva histórica a construção das agendas políticas da OPAS, assim como descrever as propostas recentes referentes à APS para os países latino-americanos. Ressalte-se que a pesquisa teve caráter exploratório e apresentou algumas limitações no alcance dos objetivos inicialmente propostos, relacionadas à opção de delimitar as estratégias metodológicas à pesquisa bibliográfica e à análise documental. Há ainda escassa produção bibliográfica sobre a atuação da OPAS nos anos 2000. Já os documentos oficiais analisados apresentam uma natureza normativa, expressando uma preocupação da OPAS em indicar caminhos técnicos, o que dificultou o reconhecimento das motivações, tensões e disputas de projetos, frequentes nos processos de formação de agendas políticas. Historicamente, a saúde é um tema de relevância no cenário internacional, o que tem relação com suas dimensões social, política e econômica. A política de saúde constitui um dos pilares dos sistemas nacionais de proteção social. Todavia, influências políticas (grupos de pressão) e econômicas (necessidade de ampliar espaços de acumulação de capital) determinam as diferentes conformações do direito à saúde, que se traduzem em distintos padrões de cobertura, financiamento e prestação de serviços. Considerando a premissa de que as condições materiais de vida são determinantes do processo saúde – doença e que, portanto, numa sociedade marcada por desigualdades sociais os riscos de adoecer e morrer não são homogêneos nas diferentes classes sociais, torna-se fundamental a criação de estratégias de garantia e consolidação desse direito. Nesse intuito, a constituição de sistemas de saúde orientados pela APS é uma diretriz importante. Contudo, o termo APS tem significados e interpretações múltiplas, sendo fundamental vincular esse conceito a uma concepção de proteção social universal e abrangente. As agências internacionais são atores relevantes na discussão da APS e desde a Conferência de Alma-Ata vêm apresentando e defendendo diferentes projetos. Identifica-se, de um lado, uma concepção abrangente da APS como estruturante dos sistemas sanitários e vinculada ao direito universal à saúde. De outro lado, apresenta-se a noção de cuidados primários seletivos compreendidos como um conjunto de intervenções básicas custo-efetivas, direcionadas para pobres e grupos vulneráveis. 96 As tensões entre as distintas concepções de APS percorreram toda a década de 1980 e 1990. Contudo, diante do cenário de reformas de influência neoliberal, a concepção de APS focalizada e restrita tornou-se hegemônica, principalmente nos países periféricos, uma vez que essa respondia ao conjunto de orientações dessa agenda, caracterizada por elementos como: redução do gasto social, quebra do monopólio estatal, questionamento da universalidade, ênfase em programas sociais focalizados e incentivos à expansão da participação privada na prestação de serviços, inclusive sociais. Nos países latino-americanos, de maneira geral, essa agenda potencializou a exacerbação da pobreza e das desigualdades sociais, o que trouxe implicações para a proteção social e ocasionou reflexos importantes nas condições de saúde das populações. Numa perspectiva histórica, a OPAS consolidou-se como uma agência de cooperação técnica, com foco no que Kingdon (1995) designa de policy communities, ou seja, a formação de grupos de especialistas propositores de alternativas para a resolução de determinados problemas, que buscam influenciar a formação das agendas governamentais, por meio da difusão de ideais e propostas relativas a determinados temas. Essas comunidades buscam não apenas produzir conhecimento técnico–científico, como também construir consensos políticosociais em torno de temas e propostas. A revisão da literatura e os resultados deste estudo exploratório permitem sugerir que a agenda política da OPAS historicamente apresenta continuidades e descontinuidades, sendo sua conformação influenciada por diversos fatores. Entre eles, destacam-se o contexto internacional dos debates sobre a saúde e a necessidade da Organização de, nos diferentes momentos, se legitimar em face das outras agências internacionais e dos países membros, com quem estabelece relações políticas, técnicas e financeiras. No que concerne aos temas historicamente presentes na agenda da OPAS, muitos deles estão relacionados à APS. Contudo, até o inicio dos anos 2000, era adotada uma abordagem programática, com forte orientação para ações no campo vigilância epidemiológica, do controle de doenças específicas e da atenção à mulher e à criança. A partir de 2003, na gestão de Mirta Roses, nota-se uma inflexão importante, pois se apresenta uma concepção de APS mais estratégica que, para além da visão programática, passa a ser concebida como uma política de reestruturação dos sistemas nacionais de saúde. Essa inflexão na agenda é expressa pelo movimento de renovação da APS nas Américas, que compreende estratégias políticas e propostas técnicas. Assim, a partir da janela de oportunidades aberta pelas comemorações do 25º Aniversário da Conferência de Alma-Ata e do consenso internacional construído com base na Declaração do Milênio, a OPAS procura 97 emplacar a agenda de renovação da APS, aparentemente motivada por retomar o espaço técnico-político perdido ao longo da década de 90 nas Américas, principalmente para o Banco Mundial. Nesse sentido, é importante identificar e compreender os aspectos políticos e o conteúdo das orientações técnicas que compõem essa nova agenda. A estratégia de renovação da APS é apresentada por uma série de documentos elaborados e divulgados entre 2003 e 2010. Nesses documentos, a OPAS adota um recurso retórico de construção de consensos científicos em torno da eficácia e eficiência da APS, destacando-se a estratégia de sensibilizar e persuadir o auditório (países membros e, em alguns momentos, a própria comunidade interna da OPAS) e assim pactuar com adesões em torno das posições apresentadas. O processo de construção desses documentos envolveu, além da participação de especialistas nos temas em questão, a realização de seminários em países membros com envolvimento de atores locais e divulgação de versões para consulta pública. Nesse sentido, houve uma estratégia política de promover a participação e legitimar as propostas em construção, com valorização particularmente das experiências consideradas pela OPAS como bem-sucedidas no campo da APS. O documento intitulado “Renovação da Atenção Primária à Saúde nas Américas – documento de posicionamento” inaugura a série e apresenta as diretrizes e fundamentos da estratégia. Um argumento importante apresentado neste documento e reiterado nos demais é que a APS renovada é um resgate ao legado da Conferência Alma-Ata, em um novo contexto. No que se refere ao conteúdo técnico da agenda da renovação da APS, nas publicações que se seguem destacam-se duas propostas: a formação e/ou qualificação da força de trabalho orientada à APS e a constituição de Redes Integradas de Serviços de Saúde (RISS). A escolha dessas estratégias parece ter relação com as áreas nas quais a OPAS identifica a possibilidade de exercer cooperação técnica e assim ocupar um lugar influente na conformação das políticas de saúde dos países latino-americanos. Ressalte-se que a formação e/ou qualificação da força de trabalho representa um campo já tradicional de atuação da OPAS. Nesse âmbito, ganha ênfase a necessidade de conquistar os médicos para o processo, sendo proposta como estratégia principal a mudança nas estruturas curriculares. Já para os demais profissionais de saúde, a abordagem enfatizada é a educação permanente mediante a articulação entre ensino e trabalho. A fim de propiciar tais transformações a OPAS defende o desenvolvimento de competências, por meio de um enfoque normativo, pautado em diretrizes e orientações técnicas. Já a discussão de constituição de Redes Integradas de Serviços de Saúde (RISS) parece expressar a influência de outro grupo de atores da OPAS, que vinha trabalhando há anos na 98 elaboração de uma proposta específica, posteriormente incorporada à série. Nesse sentido, aborda-se uma preocupação central no que diz respeito a uma concepção de APS abrangente, que é a coordenação e hierarquização dos serviços de saúde, por meio da construção de redes de referência e contra referência. Porém, mesmo diante dessa preocupação, um elemento recorrente nos documentos é a possibilidade de coexistência entre diferentes arranjos de organização do sistema de saúde. Ao longo do documento, enfatiza-se a função estatal de regulação e admite-se o estabelecimento de parcerias público-privadas na prestação de serviços. O estudo procurou também identificar as concepções e significados subjacentes à proposta de “APS renovada”, no que concerne à perspectiva da proteção social, considerando três aspectos: a população alvo da APS (universal ou focalizada), o escopo da APS (abrangente ou restrito) e a forma de organização dos serviços (relações público-privadas). Nesse sentido, destaque-se o argumento recorrente de inspiração na proposta de APS abrangente da Conferência de Alma-Ata, porém admitindo-se mudanças relacionadas ao novo contexto. Na realidade, aquela Conferência se realizou em um contexto muito distinto, em que a defesa da meta de “Saúde Para Todos no Ano 2000”, trazia implicitamente ideias progressistas relacionadas à busca de igualdade; à relação entre desenvolvimento, saúde e APS; e ao protagonismo estatal na garantia do direito à saúde. Mesmo assim, o documento afirmava que a definição do escopo dos cuidados primários poderia variar de acordo com os países, admitindo uma diversidade de arranjos e não abordando diretamente a questão da prestação privada de serviços. Já a proposta da APS renovada se apoia fortemente no princípio da equidade e na noção de sustentabilidade dos sistemas de saúde, para tal a prestação dos serviços acontece por meio das parcerias entre setores públicos e privados. Com esse intuito, a OPAS define que a relação que julga ser necessária entre Estado e Mercado não é apenas permitida, mas incentivada e necessária para a renovação da APS. Enfatiza-se ainda a ideia de serviços básicos universais, cuja definição é fluida e adaptável à capacidade institucional de cada país, podendo compreender um escopo de serviços mais amplos ou restritos. No que concerne ao modelo de intervenção estatal a proposta de renovação da APS da OPAS orienta-se por uma visão do Estado regulador das relações entre setor público e privado. Defende-se a conformação de sistemas mistos unificados constituídos uma rede integrada de serviços, independente da natureza jurídica dos prestadores. O conjunto de valores, princípios e elementos centrais que norteiam a APS renovada expressam uma concepção de APS coerente com a concepção do universalismo básico, que 99 ganhou projeção nos anos 2000 como estratégia de proteção social para a América Latina. A partir de uma avaliação negativa de abordagens exclusivamente focalizadas e restritas e da constatação dos numerosos obstáculos ao alcance de um universalismo “puro” orientado pela lógica da igualdade, a OPAS parece defender uma visão de APS com foco na equidade, sem negar a necessidade de garantir um “básico” social a todos. Contudo, o conceito de básico também é fluido e adaptável às diferentes realidades dos países, ou seja, pode incluir uma prestação de serviços ampla ou restrita e compreender maior ou menor cobertura. Valorizamse ainda as parcerias entre o setor público e privado, o que pode favorecer uma lógica mercantil nesse nível de atenção. Ao término deste trabalho, é possível concluir que, na atualidade, ainda existem diferentes projetos em disputa no que se refere à proteção social e consequentemente a APS no plano internacional, particularmente na América Latina. Os resultados do estudo sugerem a necessidade de desenvolver outros trabalhos que aprofundem aspectos ainda pouco explorados tais como: as consequências do movimento de renovação da APS nas Américas na própria agenda política e dinâmica de atuação da OPAS; a agenda da OPAS em comparação com a de outros organismos internacionais; os mecanismos adotados para incentivar a implementação dessa agenda; as relações entre a OPAS e os governos dos países nesses processos. Possivelmente os limites desse trabalho não permitiram responder de forma conclusiva às questões inicialmente formuladas, em face da dificuldade que é “olhar de fora” o processo, a partir de documentos oficiais. Contudo, se esse estudo contribuir para a discussão do tema ou ainda para fomentar novos questionamentos, terá cumprido seu propósito central. 100 6. REFERÊNCIAS: ALMEIDA, Célia Maria de. Reforma do Estado e reforma de sistemas de saúde: experiências internacionais e tendências de mudança. 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