UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ RENATA

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UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ
RENATA WIECZORECK OLIVEIRA
O SIGNIFICADO DA LEI PARA O POSITIVISMO JURÍDICO:
Uma análise sob a perspectiva de Norberto Bobbio
São José
2009
1
RENATA WIECZORECK OLIVEIRA
O SIGNIFICADO DA LEI PARA O POSITIVISMO JURÍDICO:
Uma análise sob a perspectiva de Norberto Bobbio
Monografia apresentada à Universidade do
Vale do Itajaí – UNIVALI, como requisito
parcial a obtenção do grau em Bacharel em
Direito.
Orientador: Prof. Drª. Daniela Mesquita
Leutchuk de Cademartori
São José
2009
2
RENATA WIECZORECK OLIVEIRA
O SIGNIFICADO DA LEI PARA O POSITIVISMO JURÍDICO:
Uma análise sob a perspectiva de Norberto Bobbio
Esta Monografia foi julgada adequada para a obtenção do título de bacharel e
aprovada pelo Curso de Direito, da Universidade do Vale do Itajaí, Centro de
Ciências Sociais e Jurídicas.
Área de Concentração: Filosofia do Direito e História do Direito.
São José, 18 de novembro de 2009.
Profª. Drª. Daniela Mesquita Leutchuk de Cademartori
UNIVALI – Campus de São José
Orientador
Prof. Dr. André Lipp Pinto Basto Lupi
UNIVALI – Campus de São José
Membro
Prof. Dr. Marcos Leite Garcia
UNIVALI – Campus de São José
Membro
3
À minha mãe, que fez com que acreditasse que
fosse possível, sem seu esforço incessante e
apoio incondicional tudo não passaria de
sonhos.
4
AGRADECIMENTOS
Como irremediavelmente posso esquecer de alguém, agradeço a todos
aqueles dedicaram a mim seus esforços, pensamentos e orações, que de uma
forma ou de outra incentivaram, apoiaram, vocês foram primordiais.
Agradeço ao melhor amigo que poderia encontrar: Wilson Pereira dos
Santos Silva, por toda a dedicação, paciência e compreensão em todas as horas.
À minha mãe, Nara Wieczoreck, mãe, amiga, companheira, que me
preparou, dando-me a coragem necessária para enfrentar o mundo.
À minha orientadora, Daniela Cademartori, pela verdadeira orientação, no
sentido mais amplo, pelas horas dedicadas, pelos esclarecimentos e principalmente
por despertar fascínio pelo tema pesquisado.
À minha avó, Eny Machado, pelo exemplo, pelas orações, pelas
imprescindíveis ajudas com as traduções, por me ouvir e pelos conselhos.
À Liandra e Anderson Nazário, e demais colegas de trabalho, especialmente
Simone e Rafael, por todo o aprendizado e pelo o apoio nas horas que mais
precisei.
Enfim, a todos os amigos, familiares e ao ouvinte de todos os meus pedidos
e agradecimentos diários, Deus.
5
O problema fundamental em relação aos
direitos do homem, hoje, não é tanto o de
justificá-los, mas o de protegê-los. Trata-se de
um problema não filosófico, mas político.
(Bobbio, 1964)
6
TERMO DE ISENÇÃO DE RESPONSABILIDADE
Declaro, para todos os fins de direito, que assumo total responsabilidade
pelo aporte ideológico conferido ao presente trabalho, isentando a Universidade do
Vale do Itajaí, a coordenação do Curso de Direito, a Banca Examinadora e o
Orientador de toda e qualquer responsabilidade acerca do mesmo.
São José, 29 de outubro de 2009.
Renata Wieczoreck Oliveira
7
RESUMO
Diante do atual paradigma “constitucionalista” ou “pós-positivista” do direito se faz
necessária uma avaliação da mudança impressa no significado da lei, para tanto é
imprescindível a compreensão do modelo anterior, qual seja o do positivismo
jurídico, que indiscutivelmente modificou a concepção do direito e dominou durante
muito tempo a cultura jurídica mundial. Assim, o presente trabalho, a partir da
perspectiva do professor Norberto Bobbio em sua célebre obra “O positivismo
jurídico: lições de filosofia do direito”, se propõe a analisar os aspectos políticos e
filosóficos que condicionaram o processo histórico de edificação das principais
teorias do direito integrantes do grupamento teórico denominado positivismo jurídico.
Posteriormente busca a identificação e exposição das características fundamentais
do juspositivismo. Dentre estas características o presente estudo se atenta a mais
relevante para o pensamento jurídico positivista: a lei. Desta forma, a partir da
evolução histórica das teorias do direito e do pensamento jurídico, analisa a sua
posição privilegiada como fonte do direito, bem como as razões que a levaram ao
seu apogeu nos séculos anteriores.
Palavras-chave: Direito. Positivismo Jurídico. Lei.
8
RESUMEN
En el paradigma de hoy "constitucionalista" o "post-positivista" de la ley hace que
sea necesaria para evaluar los cambios impresos en el sentido de la ley, para esto
es esencial para comprender el modelo anterior, que es la del positivismo jurídico,
que sin duda cambió el diseño la ley y ha dominado por mucho tiempo la cultura
jurídica mundial. Por lo tanto, el presente trabajo, desde la perspectiva del profesor
Norberto Bobbio en su famosa obra "El positivismo jurídico: lecciones de la filosofía
de la ley" tiene por objeto analizar los aspectos filosóficos y políticos que
condicionan el proceso histórico de construcción de las principales teorías de
derecho de los miembros de la agrupación denominada positivismo jurídico teórico.
Más tarde, tratar de identificar y describir las características fundamentales de
juspositivismo. Entre estas características el presente estudio se da a los más
relevantes para el pensamiento jurídico positivista: la ley. Así, desde la evolución
histórica de las teorías de la ley y el pensamiento jurídico, mirando a su posición
única como fuente de derecho y las razones que llevaron a su apogeo en el pasado.
Palabras claves: Correcto. El positivismo jurídico. Ley.
9
ABSTRACT
In today's paradigm "constitutionalist" or "post-positivist" of the law makes it
necessary to assess the change printed in the meaning of law, for this is essential to
understanding the previous model, which is that of legal positivism, which arguably
changed the design law and has long dominated the global legal culture. Thus, the
present work, from the perspective of Professor Norberto Bobbio in his famous work
"The legal positivism: lessons from the philosophy of law" aims to analyze the
philosophical and political aspects that conditioned the historical process of building
the main theories of right members of the grouping called the theoretical legal
positivism. Later try to identify and outline the fundamental characteristics of
juspositivismo. Among these features the present study is given to the most relevant
to the positivist legal thought: the law. Thus, from the historical evolution of theories
of law and legal thinking, looking at its unique position as a source of law and the
reasons which led to its apogee in the past.
Keywords: Right. Legal Positivism. Law.
10
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ..........................................................................................................12
1 A GÊNESE HISTÓRICA DO POSITIVISMO JURÍDICO ........................................14
1.1 DIREITO NATURAL X DIREITO POSITIVO ....................................................14
1.2 A POSITIVAÇÃO DO DIREITO........................................................................17
1.2.1 A escola histórica do Direito: Alemanha ....................................................19
1.2.2 O Código de Napoleão: França .................................................................22
1.2.3 Bentham e Austin: Inglaterra .....................................................................25
2 A TEORIA JUSPOSITIVISTA ................................................................................28
2.1 AS CARACTERÍSTICAS FUNDAMENTAIS DA TEORIA JUSPOSITIVISTA ..28
2.1.1 Abordagem avalorativa do Direito..............................................................29
2.1.2 A definição do Direito em função da coação..............................................33
2.1.3 A lei como única fonte de qualificação.......................................................35
2.1.4 A teoria imperativista da norma jurídica.....................................................35
2.1.5 A teoria do ordenamento jurídico ...............................................................36
2.1.6 A função interpretativa da jurisprudência...................................................38
2.1.7 O Positivismo Jurídico como ideologia do Direito ......................................38
2.1.7.1 O conteúdo e o significado da versão extremista da ideologia
juspositivista: as suas justificações histórico-filosóficas ..................................39
2.1.7.2 A versão moderada do positivismo ético: a ordem como valor do
próprio direito...................................................................................................41
3 O APOGEU DA LEI COMO FONTE DO DIREITO ................................................43
3.1 A TENDÊNCIA PARA O PREDOMÍNIO DA LEI DO ABSOLUTISMO AO
ESTADO LIBERAL.................................................................................................43
3.2 AS QUALIDADES DA LEI................................................................................46
3.2.1 Segurança jurídica .....................................................................................47
3.2.2 Igualdade formal e unicidade do ordenamento..........................................49
3.2.3 Generalidade e abstração..........................................................................50
11
3.3 A TEORIA DAS FONTES DO DIREITO: A LEI COMO ÚNICA FONTE DE
QUALIFICAÇÃO ....................................................................................................51
3.3.1 Condições necessárias para que num ordenamento jurídico exista uma
fonte predominante.............................................................................................54
3.3.2 Fontes de qualificação jurídica; fontes de conhecimento jurídico; fontes
reconhecidas e delegadas ..................................................................................54
3.3.3 O costume como fonte do direito ...............................................................56
3.3.4 A decisão do juiz como fonte de direito. A eqüidade .................................57
CONCLUSÃO ...........................................................................................................60
REFERÊNCIAS.........................................................................................................62
12
INTRODUÇÃO
Diante do atual paradigma “constitucionalista” ou “pós-positivista” em que se
apresenta o direito se faz necessária uma avaliação da mudança imprimida no
significado da lei, para tanto é imprescindível a compreensão da lei no modelo
anterior,
ou seja,
o sentido dado a
ela pelo positivismo
jurídico,
que
indiscutivelmente modificou o conceito de direito e dominou durante muito tempo a
cultura jurídica mundial.
Partindo dessa premissa, o presente trabalho se propõe, sem pretensões de
exaustividade, expor e analisar o modelo do positivismo jurídico e seus
protagonistas sob os aspectos políticos e filosóficos que condicionaram o processo
histórico de consolidação da hegemonia da lei no Estado moderno. Desta forma,
procura-se propiciar uma síntese diretiva para estudos posteriores e de maior fôlego.
Cabe esclarecer que o presente estudo será desenvolvido sob a perspectiva
do professor Norberto Bobbio, mais precisamente a partir de sua célebre obra “O
positivismo jurídico: lições de filosofia do direito”. Esta obra foi desenvolvida por
Bobbio entre os anos de 1960 e 1961, em forma de fascículos resultantes de um
curso dedicado ao positivismo jurídico, sendo posteriormente compilados por Nello
Morra.
A opção por utilizar a referida obra de Norberto Bobbio se encontra na
imensurável importância deste filósofo, professor, jurista, que é considerado um dos
maiores pensadores do direito contemporâneo. Isso, aliado ao fato de ter durante
toda a sua vida a preocupação com os rumos do direito, dedicando especial atenção
ao movimento juspositivista.
O presente estudo partirá a sua análise considerando o positivismo jurídico,
conforme o conceito de Bobbio, ou seja, um modo de abordar o estudo do direito;
uma teoria do direito e uma ideologia do direito.
Primeiramente, irá se abordar um dos temas cruciais do direito: a distinção
entre o direito natural e o direito positivo, entendido este como o produto da vontade
e da ação humana, contrapondo-se a qualquer imposição divina, da natureza ou da
razão.
13
Em um segundo momento, mas ainda no primeiro capítulo, irá se analisar as
correntes filosóficas, bem como os movimentos políticos e jurídicos atuantes no
período histórico em que o direito iniciou seu direcionamento para uma abordagem
positivista. Serão apresentadas as teorias intimamente ligadas à gênese do
positivismo jurídico, desenvolvidas em três grandes nações européias: Alemanha,
França e Inglaterra.
Após a explanação histórica, no segundo capítulo, buscar-se-á a
identificação e exposição das características fundamentais do juspositivismo, sejam
elas: a abordagem avalorativa do direito; a idéia de coercitividade; a lei como fonte
preponderante do direito; a norma como comando; a teoria do ordenamento jurídico;
a função meramente interpretativa da jurisprudência, além da análise do positivismo
jurídico como ideologia do direito.
Dentre estas particularidades do modelo juspositivista o presente estudo se
atentará a mais relevante delas, considerada o pilar do positivismo jurídico: a lei.
Desta forma, no terceiro capítulo, a partir da evolução histórica das teorias
do direito e do pensamento jurídico, se analisará a posição privilegiada assumida
pela lei a partir da formação do Estado moderno, reconhecendo que o positivismo
jurídico nasce com o impulso histórico da legislação e se realiza quando a lei se
torna a fonte principal do direito.
Nesse passo, buscará se identificar as razões que levaram a lei ao seu
apogeu, abordando-se os aspectos históricos, políticos, teóricos que promoveram as
mudanças no cenário mundial e que deram sustentáculo a uma nova concepção do
direito que dominou o pensamento jurídico dos séculos anteriores.
14
1 A GÊNESE HISTÓRICA DO POSITIVISMO JURÍDICO
1.1 DIREITO NATURAL X DIREITO POSITIVO
Como analisa Bobbio, a expressão “positivismo jurídico” deriva da locução
“direito positivo” contraposta àquela de “direito natural”. Assim tem-se que toda a
tradição do pensamento jurídico ocidental é denominada pela distinção entre estas
duas espécies de direito, distinção que é encontrada em textos gregos e latinos,
bem como amplamente usada por vários dos escritores medievais (teólogos,
filósofos e canonistas)1.
Neste sentido, Aristóteles (384 a.C. - 322 a.C.) já concebia esta concepção
dualista de direito, realizando a distinção entre direito natural e direito positivo e,
estabelecendo as diferenças específicas de cada classe. Ele considerava o direito
natural como universal e imutável cujas ações teriam valor geral independente do
sujeito, e as ações determinadas seriam boas em si mesmas, enquanto que, o
direito positivo era o conjunto de normas cuja eficácia dependia da comunidade em
que o mesmo estaria inserido e, portanto, tendo validade particular e mutável. Cabe,
no entanto, salientar que em sua concepção a dualidade não implicava em uma
hierarquia ou superioridade de uma forma sobre a outra, isto é, existia uma relação
de independência entre as duas formas2.
Já na Idade Média, Santo Tomás de Aquino (1225 - 1274) sustentava a
mesma concepção dualista, ou seja, direito natural e direito positivo, mas sustentava
que a segunda forma de direito derivava da primeira por obra do legislador. É
importante destacar que esse filósofo admitia a superioridade do direito natural
sobre o direito positivo. Esta tese defendida por Santo Tomás de Aquino ficou
conhecida como a teoria da superioridade do direito natural sobre o positivo3.
1
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de Filosofia do Direito. São Paulo: Ícone, 2006,
p. 15.
2
GHIDOLIN, Clodoveo. Jusnaturalismo e Positivismo Jurídico: uma breve aproximação. Santa
Maria: FADISMA, 2004. Disponível em: <www.fadisma.com.br/arquivos/ghidolinpdf.pdf>. Acesso em
15 de agosto de 2009. p. 2.
3
GHIDOLIN, Clodoveo. Jusnaturalismo ou Positivismo Jurídico: Uma breve aproximação. Rio
Grande do Sul, ano. Disponível em: www.fadisma.com.br/arquivos/ghidolinpdf.pdf. Acesso em 15 de
agosto de 2009. p. 2
15
Em meados do século XVII surge a concepção mais importante de direito
natural, conhecida como direito natural moderno, em que este aparece em
contrapartida à filosofia escolástica4, a qual exaltava a existência de uma única lei, a
divina, de natureza perfeita e imutável5.
Sob este contexto, Deus deixa de ser visto como emanador de normas
jurídicas, ou como última justificação para a existência das mesmas, e a natureza
passa a ocupar este lugar, no entanto o próprio homem com o uso da sua razão é
que pode compreender o conhecimento e colocá-lo em prática na sociedade. Surge
então uma reação racionalista ao pensamento teocêntrico da época6.
Esta relação do direito natural moderno com a lei divina é explicada por
Hugo Grócio (1583 – 1645), em sua obra De Jure Belli ac Pacis, a qual expõe a sua
concepção de direito natural, para ele:
O direito natural é um ditame da justa razão destinado a mostrar que
um ato é moralmente torpe ou moralmente necessário segundo seja
ou não conforme a própria natureza racional do homem, e a mostrar
que tal ato é em conseqüência disto vetado ou comandado por Deus,
enquanto autor da Natureza7.
Nesta teoria que se legitima através da razão por meio da exatidão lógica da
concatenação de suas proposições, o direito conquista um método sistemático, na
medida em que na formulação das leis naturais o homem passa a ser visto não
como um cidadão da cidade de Deus, mas um ser natural, elemento de um mundo
segundo as leis naturais8.
4
“Em sentido próprio, a filosofia cristã da Idade Média. Nos primeiros séculos da Idade Média, era
chamado de scholasticus o professor de artes liberais e, depois, o docente de filosofia ou teologia que
lecionava primeiramente na escola do convento ou da catedral, depois na Universidade. Portanto,
literalmente, E. significa filosofia da escola. [...] A E. é o exercício da atividade racional (ou, na prática,
o uso de alguma filosofia determinada, neoplatônica ou aristotélica) com vistas ao acesso à verdade
religiosa, à sua demonstração ou ao seu esclarecimento nos limites em que isso é possível,
aprestando um arsenal defensivo contra a incredulidade e as heresias. A E., portanto, não é uma
filosofia autônoma, como, p. ex., a filosofia grega: seu dado ou sua limitação é o ensinamento
religioso, o dogma. Para exercer essa tarefa, não confia apenas nas forças da razão, mas chama em
seu socorro a tradição religiosa ou filosófica”. ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia.
Tradução de Alfredo Bosi. 2.ed. São Paulo, Martins Fontes, 1998.
5
BITTAR, Eduardo C.B., ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de Filosofia do Direito. São Paulo:
Atlas, 2004. p. 227
6
BITAR, Eduardo C.B., ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de Filosofia do Direito. São Paulo:
Atlas, 2004. p. 236.
7
Apud Bobbio, O Positivismo Jurídico, p. 20-21.
8
FERRAZ JÚNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação.
São Paulo: Atlas, 2003. p. 67.
16
Em resumo, pode-se dizer que a partir do Renascimento ocorre um processo
de dessacralização do direito, que passa a ser visto como uma reconstrução,
através da razão sistematizada, das regras de convivência.9
Aos fins do século XVII, Glück, em sua obra Commentario alle Pandette faz
uma clara distinção entre o direito natural e o direito positivo neste momento
histórico, a saber:
O direito se distingue, segundo o modo pelo qual advém à nossa
consciência, em natural e positivo. Chama-se direito natural o
conjunto de todas as leis, que por meio da razão fizeram-se conhecer
tanto pela natureza, quanto por aquelas coisas que a natureza
humana requer como condições e meios de consecução dos próprios
objetivos... Chama-se direito positivo, ao contrário, o conjunto
daquelas leis que se fundam apenas na vontade declarada de um
legislador e que, por aquela declaração, vêm a ser conhecidas10.
Frisa-se que, dentre os vários pontos divergentes entre o direito natural e o
direito positivo, para a compreensão da evolução histórica que culminou no
positivismo jurídico deve-se ter claro o critério diferenciador quanto ao modo como
os destinatários vêm a conhecer as normas. No qual o direito natural é aquele em
que se obtém o conhecimento através da razão e que esta deriva da natureza das
coisas, e o direito positivo aquele que se conhece através da declaração de vontade
do legislador11.
Pode-se dizer então que este momento histórico de modificação das
estruturas filosóficas e políticas vigentes, momento este no qual o pensamento
jurídico medieval, fundado na teologia e na autoridade, perdeu espaço para um
direito natural moderno, sistematizado e fundado na razão e na vontade, acabaria
por se impor decisivamente na cultura jurídica européia dos séculos XVII e XVIII12,
lançando algumas das idéias que serviram como base teórica para a construção do
positivismo jurídico.
9
FERRAZ JÚNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito, p. 72.
Apud Bobbio, O Positivismo Jurídico, p. 21.
11
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico, p. 22
12
WIEACKER, Franz. História do Direito Privado. p. 280.
10
17
1.2 A POSITIVAÇÃO DO DIREITO
O positivismo jurídico nasce quando o “direito positivo” e o “direito natural”
não mais são considerados direito no mesmo sentido, mas o “direito positivo” passa
a ser o direito em sentido próprio. Por obra do positivismo jurídico ocorre a redução
de todo o direito em positivo e o direito natural é excluído da categoria do direito13.
Cumpre salientar que esta concepção está intimamente ligada a dissolução
da sociedade medieval e conseqüente formação do Estado moderno.
Bobbio analisa esta passagem:
A sociedade medieval era pluralista, posto ser constituída por uma
pluralidade de agrupamentos sociais cada um dos quais dispondo de
um ordenamento jurídico próprio: o direito aí se apresentava como
um fenômeno social, produzido não pelo Estado, mas pela sociedade
civil. Com a formação do Estado Moderno, ao contrário, a sociedade
assume uma estrutura monista, no sentido em que o Estado
concentra em si todos os poderes, em primeiro lugar o de criar o
direito: não se contenta em concorrer para esta criação, mas quer ser
o único a estabelecer o direito, ou diretamente através da lei, ou
indiretamente através do reconhecimento e controle das normas de
formação consuetudinária. Assiste-se, assim, àquilo que em outro
curso chamamos de processo de monopolização da produção
jurídica por parte do Estado.14
Portanto, com a formação do Estado moderno, o direito natural e o positivo
não mais são considerados de mesmo nível, eis por isso que o direito positivo (o
direito posto e aprovado pelo Estado) é tido como único e verdadeiro, sendo o único
a encontrar aplicação nos tribunais.15
No entanto cabe destacar que, essa mudança não se operou de forma
abrupta, havendo uma fase de conflito entre o chamado direito comum (próprio de
cada grupo social) e o direito positivo (produzido pelo Estado). O fim desse combate
adveio com o período das codificações, ocorridas entre o fim do século XVIII e o
início do século XIX, quando o direito comum foi absorvido pelo direito estatal.
Nesse tempo, o princípio da onipotência do legislador passa a ser observado em
13
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico, p. 26.
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico, p. 27.
15
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico, p. 29.
14
18
toda a sua inteireza, havendo o monopólio da produção legislativa por parte do
Estado.16
Seguindo estas modificações do direito não estatal ao estatal e a passagem
ligada a esta da concepção dualista do direito (direito natural e direito positivo) à
monista (apenas direito positivo), passa-se a definir, de fato, o direito como um
conjunto de regras que são consideradas como obrigatórias em determinada
sociedade porque sua violação dará, provavelmente, lugar a um terceiro (magistrado
ou eventualmente arbitro) que será quem irá dirimir a controvérsia, proferindo uma
decisão seguida de uma sanção. A aplicação desta sanção será própria do Estado.17
Outro ponto importante da positivação relaciona-se ao fato de que as
transformações não são mais rechaçadas pelo direito, vez que este irá se modificar
sempre que a legislação mudar.
Ferraz Júnior assim ensina:
Em todos os tempos, o direito fora percebido como algo estável face
as mudanças do mundo, fosse o fundamento desta estabilidade a
tradição, como para os romanos, a revelação divina, na Idade Média,
ou a razão na era moderna. Para a consciência social do século XIX,
a mutabilidade do direito passa a ser a usual: a idéias que, em
princípio todo direito muda torna-se a regra, e que algum direito não
muda, a exceção.
[...]
A percepção da mutabilidade teve conseqüências importantes para o
saber jurídico. No início do século XIX, essa percepção provocou, a
princípio, uma perplexidade. Afinal dirá alguém, referindo à ciência
do direito, que ciência é esta se basta uma penada do legislador para
que bibliotecas inteiras tornem-se maculatura? (Kirschmann, 1966:
26). 18
Desta forma, como já falado, esta mudança de paradigma não foi simples,
pois necessitou que outros movimentos se insurgissem contra a ordem vigente para
que o positivismo jurídico, no seu sentido mais puro como é conhecido hoje se
afirmasse.
16
FARIA, L. A. Gurgel. A Contribuição do Direito Natural para o Positivismo Jurídico. Revista
ESMAFE Escola de Magistartura Federal da 5ª Região, Recife, v. 4, 2002. Disponível em:
<www.jfpe.gov.br/biblioteca/.../luiz_gurgel_esmafe04_p25-35.pdf>. Acesso em 15 de agosto de 2009.
17
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico. p. 27.
18
FERRAZ JÚNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito, p. 74-75.
19
Norberto Bobbio destaca que a sua gênese está intimamente ligada a
estudos desenvolvidos em três grandes nações européias, sendo relevante destacar
os principais movimentos em cada uma delas.
1.2.1 A escola histórica do Direito: Alemanha
O grande mérito dessa escola para o surgimento do positivismo jurídico foi o
fato de tecer críticas radicais ao jusnaturalismo então imperante.
A escola histórica do direito teve sua origem na Alemanha entre o fim do
século XVIII e o início do século XIX, tendo seu maior expoente Carlos Frederico von
Savigny (1779- 1861)19.
Para Bobbio o historicismo é que conduz o movimento anti-racionalista,
fazendo com que o direito natural perdesse terreno, bem como fazendo com que as
concepções jusnaturalistas (estado de natureza, lei natural) desaparecessem da
consciência dos doutos20.
A primeira obra que se pode considerar expressão da escola histórica é um
escrito de Gustavo Hugo, em que afirma que o direito natural não pode mais ser
concebido como um sistema normativo auto-suficiente, mas sim como um conjunto
de considerações filosóficas sobre o próprio direito positivo.21
Gustavo Hugo assim define a “filosofia do direito positivo”:
A filosofia do direito positivo ou da jurisprudência é o conhecimento
racional por meio de conceitos daquilo que pode ser direito do
Estado.22
No entanto, apesar de Gustavo Hugo afirmar que o direito é aquele posto
pelo Estado, isto não significa que defendia que o direito deveria ser posto
necessária e exclusivamente pelo legislador, assim como determina a teoria
juspositivista.23
19
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico, p. 45.
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico, p. 45.
21
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico, p. 45-46.
22
Apud Bobbio, O Positivismo Jurídico, p. 20-21.
23
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico, p. 46-47.
20
20
Os historicistas entendiam o direito não como um fenômeno que ocorre na
história, mas que é histórico em sua essência, o que permitia a qualificação dos
acontecimentos presentes também como história. Assim a história do direito seria a
ciência propriamente dita, enquanto a dogmática jurídica seria apenas uma espécie
de continuação da pesquisa histórica.24
Como descreve Ferraz Júnior:
Para Savigny, [...] não será a lei, norma racionalmente formulada e
positivada pelo legislador, que será primariamente o objeto de
ocupação do jurista, mas a convicção comum do povo (o ‘espírito do
povo’), este sim a fonte originária do direito, que dá o sentido
(histórico) ao direito em constante transformação.25
Neste sentido, cabe salientar que, apesar de ter dado margem ao
positivismo, com os ataques ao direito natural, esta escola não se confunde com
aquela doutrina, até mesmo porque se insurgiu contra um de seus principais
dogmas, a codificação, de forma a julgar a cristalização do direito em uma única
coletânea legislativa, não apropriada à civilização e ao povo alemão. Nota-se que
esta posição foi tão forte na Alemanha que, ao contrário dos demais países
europeus, a codificação somente se deu no princípio do século XX.26
Segundo Savigny a Alemanha do início do século XIX encontrava-se em
uma época de decadência da cultura jurídica e que para solucionar a situação
instalada era necessário promover o renascimento e o desenvolvimento do direito
científico, através do trabalho dos juristas.27
Neste sentido, defendia Savigny:
Junto a toda nação, que tenha uma história não dúbia, vemos o
direito civil se revestir de um caráter determinado, absolutamente
peculiar àquele povo do mesmo modo que sua língua, seus
costumes, sua constituição política. Todas estas diferentes
manifestações não possuem uma existência separada. O que disto
forma uma única totalidade é a crença universal do povo, é o
sentimento uniforme, de intuições e de necessidades, o que exclui
toda idéia de uma origem meramente acidental e arbitrária.28
24
FERRAZ JÚNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito, p. 75-76.
FERRAZ JÚNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito, p. 76.
26
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico, p. 52.
27
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico, p. 62.
28
Apud BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico, p. 53.
25
21
Deveras, Savigny foi um ferrenho adversário da positivação das normas e
teve, em sua própria nação, que enfrentar adversários favoráveis àquele movimento,
como Thibaut, um dos fundadores da escola pandectista, também chamada de
jurisprudência dos conceitos.
Thibaut defendia a necessidade de uma legislação geral, ou seja, de uma
codificação propriamente dita. Afirmava ainda que a codificação traria várias
vantagens para os juízes, para os estudiosos do direito, bem como para os simples
cidadãos, além do fato que de que daria um impulso decisivo à unificação da
Alemanha.29
Thibaut afirmava dentre outras coisas:
Os alemães estão há muitos séculos paralisados, oprimidos,
separados uns dos outros por causa de um labirinto de costumes
heterogêneos, em partes irracionais e perniciosos. Justamente agora
se apresenta uma ocasião inesperadamente favorável para a reforma
do direito civil como não se apresentava e talvez não se apresente
mais em mil anos [...]. A convicção de que a Alemanha esteve até
agora enferma de muitas moléstias graves, de que pode e deve
melhorar, é universal. O precedente domínio francês muito contribuiu
para isso. Ninguém que queira ser imparcial pode negar que nas
instituições francesas estão encerradas muitas coisas boas e que o
Código e as discussões e os discursos a respeito dele, assim como o
como o código prussiano e o austríaco, trouxeram para a nossa
filosofia mais vitalidade e arte civilista que as nossas acaloradas
discussões dos nossos tratados sobre direito natural. Se agora os
príncipes alemães concordassem com a redação de um código geral
alemão civil, penal e processual e empregassem por apenas cinco
anos aquilo que custa um meio regimento de soldados, não
poderíamos deixar de receber algo de notável e sólido. A
contribuição de tal código seria incalculável.30
O direito científico alemão, que na metade do século XIX deu origem à
doutrina pandectista , acabou por dar lugar a jurisprudência dos conceitos, cuja obra
mais representativa desta doutrina é ‘O espírito do direito romano’ de Rudolf Von
Jhering. Cumpre frisar que em um segundo momento este jurista irá abandonar a
jurisprudência dos conceitos para se tornar promotor da chamada jurisprudência dos
interesses31.
29
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico, p. 59.
Apud BOBBIO, O Positivismo Jurídico, p. 57-58.
31
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico, p. 122.
30
22
Em síntese pode-se dizer que embora a escola história fizesse oposição à
codificação, compartilhava da mesma exigência que baseava o movimento pela
legislação, qual seja, a de dar uma determinada sociedade um direito unitário e
sistemático. Assim, na Alemanha do começo do século XIX, o direito científico
constituiu uma verdadeira alternativa ao direito codificado.32
1.2.2 O Código de Napoleão: França
A idéia de codificação, concebida com base no pensamento iluminista33 e
iniciada a partir da segunda metade do século XVIII, representou uma experiência
jurídica típica da Europa continental.34
O movimento de codificação se deu no novo modelo de Estado surgido
posteriormente à revolução francesa (1789) e representava uma espécie de
positivação da razão. Segundo Wieacker, este movimento muito influenciado pelo
pensamento iluminista, dirigia-se a uma planificação global da sociedade através de
uma reordenação sistemática e inovadora da ordem jurídica, o que iria gerar uma
sociedade melhor.35
Cumpre salientar que, as codificações européias tiveram papel fundamental
para o futuro do positivismo. Neste sentido, assevera Bobbio:
O fato histórico que constitui causa imediata do positivismo jurídico
deve, ao contrário, ser investigado nas grandes codificações
ocorridas entre o fim do século XVIII e o início do século XIX, que
32
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico, p. 121-122.
“O termo Iluminismo indica um movimento de idéias que tem suas origens no século XVII (ou até
talvez nos séculos anteriores, nomeadamente no século XV, segundo interpretação de alguns
historiadores), mas que se desenvolve especialmente no século XVIII, denominado por isso o "século
das luzes" Esse movimento visa estimular a luta da razão contra a autoridade, isto é, a luta da "luz"
contra as "trevas".[...] Este modo de pensar e de sentir é difundido, no século XVIII, em muitos países
da Europa. Suas primeiras manifestações se encontram na Inglaterra e na Holanda, mas é um
movimento que interessa especialmente à França, onde a decadência do Governo absolutista leva a
filosofia a focalizar a doutrina política e social. Aqui, das classes privilegiadas, o clero possui cerca de
um quinto do território nacional, com uma enorme renda e com isenções e privilégios substanciais, e
a nobreza tem privilégios análogos e rendas feudais extraordinárias; por isso, a burguesia, cuja cultura
e importância econômica aumentaram consideravelmente, a ponto de se haver tornado um
sustentáculo da sociedade, não pode deixar de as considerar classes de parasitas”. BOBBIO,
Norberto. Dicionário de Política. 11 ed. Brasília: UnB, 1998. v. 1.
34
BOBBIO BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico,. p. 63.
35
WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. p. 366.
33
23
representam a realização política da onipotência do legislador. [...] As
codificações representam o resultado de uma longa batalha
conduzida, na segunda metade do século XVIII, por um movimento
político-cultural francamente iluminista, que realizou aquilo que
podemos chamar de positivação da razão.36
Frisa-se que o movimento pela codificação foi motivado pela necessidade de
conferir segurança, estabilidade e previsibilidade à prática jurídica. Com relação a
esta certeza que deve ser conferida pelo direito, esclarece Bobbio:
[...] a certeza só é garantida quando existe um corpo estável de leis e
aqueles que devem resolver as controvérsias se fundam em normas
nele contidas e não em outros critérios. Caso contrário, a decisão se
torna arbitrária e o cidadão não pode mais prever com segurança as
conseqüências das próprias ações.37
Assim, a Europa moderna, passa a reunir as leis sistematicamente através
de códigos legislativos, sendo estes a única fonte do Direito.
Segundo Hespanha, os principais exemplos históricos das primeiras
codificações da Era Moderna são: O Código Criminal da Toscana (1786), o Código
da Prússia (1794), o Código da Áustria (1811) e o Código Civil Francês (1804)38.
Dentre estes, sem dúvida o código de Napoleão (1804), inicialmente
batizado de código civil da França serve de marco histórico do pensamento jurídico
dos três últimos séculos, na medida em que suas normas foram sistematicamente
organizadas e expressamente elaboradas, servindo de base para os códigos de
muitos países.39
O referido código foi antecedido por vários projetos. Os primeiros deles
foram de autoria de Cambacérès e receberam forte influência do direito natural. Já o
projeto definitivo se afastou mais dos ideais jusnaturalistas, reaproximando-se da
tradição jurídica francesa do direito comum. A eliminação do artigo I (“Existe um
direito universal e imutável, fonte de todas a leis positivas: não é outro senão a razão
natural, visto esta governar todos os homens”) reflete essa assertiva40. Para o
36
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de Filosofia do Direito. p. 54.
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico, p. 63.
38
HESPANHA, Antônio Manoel. Cultura Jurídica Européia: Síntese de um milênio. Florianópolis:
Fundação Boitex. p. 332-333.
39
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico, p. 63.
40
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico, p. 68/72.
37
24
projeto definitivo, quatro juristas foram encarregados de sua elaboração, dentre os
quais se destacou Portalis.41
No entanto, importante salientar, como explica Bobbio, que a onipotência do
legislador42 em sua integralidade é mais fruto da obra dos primeiros intérpretes do
Code (fundadores da escola da exegese) do que de seus redatores, a saber:
Se o Código de Napoleão foi considerado o início absoluto de uma
nova tradição jurídica, que sepulta completamente a precedente, isto
foi devido aos primeiros intérpretes e não aos redatores do próprio
Código. É de fato àqueles e não a estes que se deve a adoção do
princípio da onipotência do legislador, princípio que constitui, como já
se disse mais de uma vez um dos dogmas fundamentais do
positivismo jurídico.43
Bobbio, explica acerca da escola da exegese:
A escola da exegese deve seu nome à técnica adotada pelos seus
primeiros expoentes no estudo e exposição do Código de Napoleão,
técnica que consiste em assumir pelo tratamento científico o mesmo
sistema de distribuição de matéria seguido pelo legislador e, sem
mais, em reduzir tal tratamento a um comentário, artigo por artigo do
próprio Código.44
Desta forma, coube à escola da exegese fazer com que houvesse uma
profunda mudança na maneira de aplicar-se o direito.
Uma característica importante da escola da exegese refere-se às lacunas da
lei, onde os elaboradores do código admitiam o emprego do direito natural, conforme
se constata em discurso pronunciado por Portalis na ocasião da apresentação do
código de Napoleão:
Quando não há relação nenhuma com aquilo que está estabelecido e
é conhecido, quando se trata de um fato absolutamente novo,
remonta- se aos princípios do direito natural. Pois, se a previdência
dos legisladores é limitada, a natureza é infinita e se aplica a tudo
que pode interessar aos homens.45
41
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico, p. 71.
“[...] dogma da onipotência do legislador (a teoria da monopolização da produção jurídica por parte
do legislador)”. BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico, p. 38.
43
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico, p. 71.
44
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico, p. 83.
45
Apud BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico, p. 76.
42
25
Contudo, os seguidores da escola da exegese defendiam que se deveria
deduzir da própria lei a norma para resolver quaisquer controvérsias. Eles
argumentavam, ainda, que o direito natural seria irrelevante enquanto não
incorporado à lei.46
1.2.3 Bentham e Austin: Inglaterra
Na Inglaterra, onde já no século XVII existiu o maior teórico da onipotência
do legislador, Thomas Hobbes (1588 – 1679), podendo este inclusive ser
considerado o precursor do positivismo jurídico47, não houve a codificação. Também
provém daquele país Jeremy Bentham, filósofo que elaborou a mais abrangente
teoria acerca do tema, ficando conhecido em razão disto como o “Newton da
Legislação”, com a difusão de seu pensamento por todo o mundo civilizado: na
Europa, na América e até na Índia.48
Importante asseverar que, na França apesar de ter havido a codificação,
como já exposto, não houve uma teoria sobre a codificação. Assim, Montesquieu,
maior filósofo do direito do iluminismo francês, diferentemente de Benthan não pode
ser considerado um teórico da codificação.49
De cunho iluminista, Benthan foi influenciado pelo pensador Beccaria,
principalmente no que tange à soberania da lei e submissão a ela pelo julgador50
A afinidade desse pensador com os iluministas franceses decorre
justamente da defesa de uma lei fundada na clareza e brevidade. Bentham afirmava:
A finalidade da lei é dirigir a conduta dos cidadãos. Duas coisas são
necessárias para o cumprimento desse fim: 1) que a lei seja clara,
isto é, que faça nascer na mente uma idéia que represente
exatamente a vontade do legislador; 2) que a lei seja concisa, de
modo a se fixar facilmente na memória. Clareza e brevidade: eis
46
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico, p. 85-86.
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico, p. 34.
48
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico, p. 91.
49
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico, p. 91.
50
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico, p. 91-92.
47
26
duas qualidades essenciais (Traités de legislation civile et pénale,
1802, cap. XXXIII).51
A sua teoria da codificação foi elaborada a partir da crítica ao sistema da
common law, baseado na produção judiciária do direito. Conforme se nota pela
passagem abaixo:
O direito comum, como se diz na Inglaterra, o direito judiciário, como
mais justamente se chama algures aquela composição fictícia que
não tem nenhuma pessoa conhecida como seu autor, nem um
conjunto conhecido de palavras como seu conteúdo, forma onde
quer que seja a parte principal da construção legal: como aquele éter
imaginário que, por falta de material sensível, permeia o universo.
Pedaços e fragmentos do direito real misturados naquela base
imaginária, compõem o equipamento de qualquer código nacional.
Com que conseqüência? Aquele que... deseja um exemplo de um
corpo completo de leis a que referir-se deve começar por fazer um.52
Segundo Dumont, seu discípulo, seriam quatro os requisitos imprescindíveis
para um código: utilidade (para um maior número de pessoas), completitude (deve
ser completo para não dar ensejo à utilização do direito judiciário), clareza e
justificabilidade (motivação da lei).53
O outro filósofo inglês que merece ser estudado na análise do positivismo
jurídico é John Austin, tido por muitos como o fundador dessa doutrina. Para ele, a
lei era a forma típica do direito, o que demonstra que os seus estudos estavam
voltados para a mesma linha de seus compatriotas, Hobbes e Bentham.
Austin definia o direito como aquele emanado pelo soberano:
Toda lei positiva, ou bem toda lei simples e estritamente dita, é posta
por uma pessoa soberana ou por um corpo soberano de pessoas a
um ou mais membros da sociedade política independente na qual
essa pessoa ou esse corpo é soberano ou supremo. Ou, em outras
palavras, essa lei é posta por um monarca ou grupo soberano a uma
ou mais pessoas em estado de sujeição frente a seu autor.54
Ainda neste sentido, Austin ainda descreve a distinção entre direito e moral:
51
Apud BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico, p. 93.
Apud BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico, p. 97.
53
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de Filosofia do Direito. p. 100.
54
Apud Bobbio, O Positivismo Jurídico: Lições de Filosofia do Direito. p. 103.
52
27
A moralidade humana constituída de: (1) leis que normatizam a vida
dos homens no estado de natureza; (2) leis que coordenam as
relações entre os Estados (Direito Internacional); e (3) leis das
pequenas associações (família, corporação, sociedades comerciais)
difere-se do Direito Positivo, pois suas leis não são emanadas de um
comando soberano.55
Apesar de ter tido influencia da escola histórica do direito, Austin fazia
severas críticas ao direito judiciário vigente em seu país, defendendo a sua
substituição pela codificação. Nutria grande admiração pela obra de Savigny, que
estudara com afinco durante a sua passagem pela Alemanha, no entanto, opunhase a esta no que se refere ao direito judiciário como propulsor da ciência jurídica,
argumentando que esta receberia grande impulso com a sistematização das
normas.56
55
56
BITTAR, Eduardo C.B., ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de Filosofia do Direito, p. 331.
BITTAR, Eduardo C.B., ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de Filosofia do Direito, p. 330-331.
28
2 A TEORIA JUSPOSITIVISTA
2.1 AS CARACTERÍSTICAS FUNDAMENTAIS DA TEORIA JUSPOSITIVISTA
Feita a exposição histórica dos movimentos teóricos que culminaram na
compreensão do Direito de maneira positiva, apresentando-se suas características e
contribuições, passa-se agora a descrever os elementos centrais doutrinários do
Juspositivismo.
Com relação ao Positivismo Jurídico Bittar e Almeida esclarecem
sinteticamente:
Reflexo do positivismo científico do século XIX, o positivismo jurídico,
como movimento de pensamento antagônico a qualquer teoria
naturalista, metafísica, sociológica, histórica, antropológica etc.
adentrou nos meandros jurídicos, que suas concepções se tornaram
estudo indispensável e obrigatório para a melhor compreensão
lógico-sistemática do Direito. Sua contribuição é notória no sentido
de que fornece uma dimensão integrada e científica do Direito,
porém, a metodologia do positivismo jurídico identifica que o que não
pode ser provado racionalmente não pode ser conhecido; sem
dúvida nenhuma retira os fundamentos e as finalidades,
contentando-se com o que ictu oculi satisfaz às exigências da
observação de da experimentação, daí restringir-se ao posto
(positum – ius positivum).57
Pode-se dizer que o Direito Positivo é conjunto de normas de
comportamento temporariamente coexistentes em determinado Estado e cuja
observância é obrigatória nos limites da soberania deste, mutáveis no decurso do
tempo e produzidas por manifestação de vontade dos órgãos estatais previamente
estabelecidos para tal finalidade, mediante observância de procedimentos
igualmente previstos.58
Kelsen afirma que:
Uma norma posta na realidade do ser por um realizante ato de
vontade é uma norma positiva. Do ponto de vista de um positivismo
moral ou jurídico, interessam como objeto do conhecimento apenas
57
58
BITTAR, Eduardo C.B., ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de Filosofia do Direito, p. 336.
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico. p. 119.
29
normas positivas fixadas, ou seja, estabelecidas por um ato de
vontade, e precisamente por atos de vontade humanos.59
Assim, utilizando-se o conceito formulado por Bobbio, o “Positivismo
Jurídico” refere-se a “doutrina segundo a qual não existe outro direito senão o
positivo”.60
Partindo-se destes conceitos, é importante frisar que existem diversas
espécies de correntes juspositivistas61 com significações diferentes, em que pese o
traço comum se limite ao real, ao dado e ao demonstrável positivamente. Assim
passa-se a descrever estas teorias em sete características fundamentais que serão
a seguir descritas.
Bobbio
esclarece
acerca
a
definição
destas
sete
características
fundamentais:
[...] quando se diz que uma certa doutrina é própria do positivismo
jurídico, em primeiro lugar, não se quer dizer que tal doutrina seja
sustentada por todos os pensadores que pertencem a esta corrente –
para ser um positivista jurídico não é necessário acolher os sete
pontos enunciados na Introdução desta Parte; em segundo lugar,
não se quer igualmente dizer que tal doutrina tenha sido enunciada
pela primeira vez pelos juspositivistas, mas somente que estes a
formularam com maior rigor e a conservaram constantemente62.
Cabe salientar que dentre os sete pontos fundamentais, resumidamente o
positivismo jurídico pode ser considerado sob três aspectos: a) um modo de abordar
o estudo do direito; b) uma teoria do direito; c) uma ideologia do direito.63
2.1.1 Abordagem avalorativa do Direito
Um dos pontos mais importantes da proposta teórica juspositivista é a
maneira de abordar o Direito como ciência, da mesma forma que, por exemplo, a
matemática e a física, ou seja, de forma objetiva e absolutamente isenta de qualquer
59
KELSEN, Hans. Teoria Geral das Normas. p. 6.
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico. p. 26.
61
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico. p. 131.
62
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico. p. 147.
63
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico. p. 26
60
30
juízo de valor. Assim destaca-se:
Na linguagem juspositivista o termo “direito” é então absolutamente
avalorativo, isto é privado de qualquer conotação valorativa ou
ressonância emotiva: o direito é tal que prescinde do fato de ser bom
ou mau, de ser um valor ou desvalor.64
Neste sentido, Warat traz as razões deste necessário distanciamento:
A teoria positivista pretende apenas ser lógica, método, sistema e
assim manter-se, respeitosamente distante das valorações, dos
efeitos míticos e políticos de sua própria prática social. Assim a
ciência jurídica imuniza-se contra a filosofia, a sociologia e a ciência
política.65
Para o juspositivismo é preciso compreender a ciência do direito como um
conjunto de fatos e não de valores, eis que o direito apresenta-se apenas como
informador, comunicando uma constatação de um fato, diferentemente do juízo de
valor que pretende que se tome uma posição pessoal frente à realidade
apresentada.66
Com relação a esta distinção Bobbio esclarece:
O direito, objeto da ciência jurídica é aquele que efetivamente se
manifesta na realidade histórico-social; o juspositivista estuda tal
direito real sem se perguntar se além deste existe também um direito
ideal (como aquele natural), sem examinar se primeiro corresponde
ou não ao segundo, e, sobretudo, sem fazer depender a validade do
direito real a sua correspondência com o direito ideal; o romanista,
por exemplo, considerará direito romano tudo o que a sociedade
romana considerava como tal, sem fazer intervir um juízo de valor
que distinga entre direito “justo” e “verdadeiro” e direito “injusto” e
“aparente”. Assim a escravidão será considerada um instituto jurídico
como qualquer outro, mesmo que dela se possa dar uma valoração
negativa.67
Esta pretensão de desvinculação ganha destaque na Teoria Pura do Direito
de Kelsen, onde este é categórico ao afirmar que a ciência jurídica pode apenas
descrever o Direito. Nas palavras do jurista
64
BOBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico. p. 131.
WARAT, Luis Alberto. Introdução Geral ao Direito. p. 104.
66
BOBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico. p. 135.
67
BOBBIO, Norberto. O positivismo Jurídico. p. 136.
65
31
A ciência jurídica, porém, apenas pode descrever o Direito, ela não
pode, como o Direito produzido pela autoridade jurídica [...],
prescrever seja o que for68.
Esta forma de abordar o Direito, afastando por completo juízos valorativos
acaba por trazer questões relevantes, sejam elas: a delimitação dos campos da
ciência do Direito e da filosofia do direito; a distinção da relação existente entre
validade e eficácia do Direito e o formalismo como característica da definição
juspositivista do direito.
Quanto à primeira questão, ao limitar a ciência jurídica ao estudo descritivo
do Direito, sem inserção de componentes valorativos nas análises empreendidas, os
positivistas acabaram por transferir tal abordagem axiológica à seara da filosofia do
Direito, a qual é responsável por investigar as definições valorativas, ideológicas ou
deonlológicas do Direito, em oposição às factuais, avalorativas ou ontológicas
postas pela ciência jurídica69.
Miguel Reale em sua obra “Filosofia do Direito” destaca o aspecto valorativo
da filosofia, a saber:
Neste trabalho de perquirição do essencial ou de busca dos
pressupostos de algo, a valoração é de certo modo, constitutiva da
experiência. Quem filosofa valora70.
Os positivistas jurídicos não aceitam as definições filosóficas da ciência do
Direito, pois entendem que o Direito é uma técnica que como tal pode servir à
realização de qualquer propósito ou valor, porém sua essência é independente de
qualquer concepção valorativa.71
No que se refere à segunda questão, isto é da distinção existente entre
validade e eficácia do direito, frisa-se que a argumentação juspositivista afirma que o
direito é aquele abstratamente previsto pelo legislador, não importando a sua
eficácia, o que vai de encontro com teoria da escola realista, em que o Direito é
aquele efetivamente seguido por uma sociedade, ou seja, a eficácia da norma é
imprescindível.
Neste sentido, analisa Bobbio:
68
KELSEN, Hans. A Teoria Pura do Direito. p. 82.
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico. p. 138.
70
REALE, Miguel. Filosofia do Direto. p.67.
71
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico. p. 142.
69
32
O positivismo jurídico, definindo o direito como um conjunto de
comandos emanados pelo soberano, introduz na definição o
elemento único da validade, considerando portanto como normas
jurídicas todas as normas emanadas num determinado modo
estabelecido pelo próprio ordenamento jurídico, prescindindo do fato
destas normas serem ou não efetivamente aplicadas na sociedade:
na definição do direito não se introduz assim o requisito da eficácia72.
E por fim, tem-se o formalismo como característica fundamental de definição
juspositivista do Direito, o que afasta qualquer tentativa de definir o Direito quanto ao
seu conteúdo. Como conseqüência,
Com relação ao conteúdo das normas jurídicas, é possível fazer uma
única afirmação: o direito pode disciplinar todas as condutas
humanas possíveis, isto é, todos os comportamentos que não são
nem necessários, nem impossíveis; e isto precisamente porque o
direito é uma técnica social, que serve para influir na conduta
humana. Ora, uma norma que ordene um comportamento necessário
ou proíba um comportamento impossível seria supérflua e uma
norma que ordene um comportamento impossível ou proíba um
comportamento necessário seria vã.
Este modo de definir o direito pode ser chamado de formalismo
jurídico; a concepção formal do direito define portanto o direito
exclusivamente em função de sua estrutura formal, prescindindo
completamente do seu conteúdo – isto é, considera somente como o
direito se produz e não o que ele estabelece.73
Assim, a forma aplicada ao Direito pelo rigor metodológico positivista, acaba
por tornar irrelevante o seu conteúdo, ou seja, a matéria a ser regulada, sob a
justificativa que o conteúdo passível de regulamentação é infinitamente variado,
cabendo ao Positivismo regular qualquer matéria, em qualquer Estado, e em
qualquer momento histórico.74
72
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico. p. 142.
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico, p. 145.
74
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico, p. 145.
73
33
2.1.2 A definição do Direito em função da coação
Também a coercitividade aparece como elemento essencial e caracterizador
do juspositivismo, conforme se percebe afirmação de Bobbio quando declara que “o
positivismo jurídico é caracterizado pelo fato de definir constantemente o direito em
função da coação, no sentido que vê nesta última um elemento essencial e típico do
direito75”.
Esta definição é que acaba por distinguir o direito da moral. Neste sentido,
aponta Kelsen;
Uma distinção entre o Direito e a Moral não pode encontrar-se
naquilo que as duas ordens sociais prescrevem ou proíbem, mas no
como elas prescrevem ou proíbem uma determinada conduta
humana. O Direito só pode ser distinguido essencialmente da Moral
quando - como já mostramos - se concebe como uma ordem de
coação, isto é, uma ordem normativa que procura obter uma
determinada conduta humana ligando à conduta oposta um ato de
coerção socialmente organizado, enquanto a Moral é uma ordem
social que não estatui quaisquer sanções desse tipo, visto que suas
sanções apenas consistem na aprovação da conduta conforme às
normas e na desaprovação da conduta contrária às normas, nela
não estando sequer em linha de conta, portanto, o emprego da força
física.76
Frisa-se que esta concepção é contemporânea da formação do Estado
Moderno, já que a coerção significa considerar o direito do ponto de vista do
Estado77.
No entanto, para se chegar a esta definição juspositivista quanto a
coercitividade do direito a coação foi definida de duas formas distintas: para a
primeira teoria (clássica), o direito é um conjunto de normas que se fazem valer
coativamente, ou seja, a coação tem caráter instrumental; já para a teoria moderna a
coação é o próprio objeto das normas jurídicas78.
Vários foram os teóricos79 a tratar da doutrina da coação, Bobbio descreve
acerca dos primórdios da definição do Direito em função da coação:
75
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico, p. 147.
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito, p. 71.
77
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico, p. 147.
78
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico, p. 155.
79
BOBBIO arrola como representantes da teoria clássica da coerção: Christian Thomasius; Immanuel
Kant e Rudolf von Jhering. BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico. p. 147-155.
76
34
No século XIX, a doutrina da natureza coercitiva do direito se torna
patrimônio comum do pensamento jurídico. Esta presente, por
exemplo em Austin, que define o direito como um comando, mas
individualiza a característica deste último precisamente na sanção.
Mas a teorização mais importante e, por assim dizer, a celebração
desta concepção se deve a Rudolf von Jhering, no seu trabalho
intitulado A finalidade do direito (Der Zweck im Recht)80.
Para Jhering o Estado é definido como a organização social definitiva
detentora do poder coativo, tendo o uso do poder para as finalidades humanas.
Já Kelsen, representante da teoria moderna, surgida a partir do
desenvolvimento do pensamento tradicional, afirma que as normas necessitam estar
determinadas dentro de uma padronização para que possam ser admitidas como
pertencentes à esfera do Direito. Assim, a norma, é aquela ordem que se refere às
condutas humanas de maneira coativa, designando quais são os comportamentos
permitidos e obrigatórios para o indivíduo81.
Pode-se ver clara distinção entre as duas teorias, na afirmação de Kelsen:
Costuma caracterizar-se o direito como ordem coativa, dizendo que o
direito prescreve uma determinada conduta humana sob ‘cominação’
de atos coercitivos, isto é, de determinados males, como a privação
da vida, da liberdade, da propriedade e outros. Esta formulação
porém, ignora o sentido normativo com que os atos de coerção em
geral e sanções em particular são estatuídas pela ordem jurídica. O
sentido de uma cominação que será aplicada sob determinados
pressupostos; o sentido da ordem jurídica é que certos males devem,
sob certos pressupostos, ser aplicados, que – numa fórmula mais
genérica – determinados atos de coação devem sob determinadas
condições ser executados82.
Apesar das divergências acerca do tema, o importante que se pode tirar da
doutrina da coercitividade, é que a coerção assume figura central do Direito Positivo
posto pelo Estado, quer mediante o monopólio do uso da força, quer com titular
único da capacidade de estabelecer as normas jurídicas a serem obedecidas.
80
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico, p. 153.
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito, p. 5.
82
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito, p. 48-49.
81
35
2.1.3 A lei como única fonte de qualificação
Conforme já exposto, com a formação do Estado moderno a lei conquista
primazia sobre as demais fontes do Direito. A partir da perda da posição do juiz
como fonte principal de produção do Direito, este passa a ser apenas um órgão
estatal, subordinado ao poder legislativo e encarregado de aplicar mecanicamente
as leis por ele estabelecidas.83
Destaca-se, portanto que a doutrina juspositivista das fontes é determinada
pela prevalência da lei sobre todas as outras fontes do direito, esta primazia revelase um dos pilares mais importantes do Estado moderno e do positivismo jurídico.
Assim, devido a sua essencialidade para a compreensão do papel conquistado pela
lei este ponto será mais profundamente tratado na terceira parte do presente
trabalho.
2.1.4 A teoria imperativista da norma jurídica
A teoria imperativa da norma jurídica, que configura o direito como um
comando é uma derivação da definição do direito em função de coação. Assim,
A teoria impretivista da norma jurídica está estreitamente vinculada à
concepção legalista estatal do direito (isto é, com a concepção que
considera o Estado como única fonte do direito e determina a lei
como única expressão do poder normativo do Estado): basta,
realmente, abandonarmos a perspectiva legalista-estatal para que
esta teoria não exista mais. Assim não se pode configurar como
comando a norma consuetudinária, porque o comando é a
manifestação espontânea de convicção jurídica84.
A concepção imperativista do direito não surgiu com o positivismo jurídico,
São Tomás de Aquino, por exemplo, afirma que o que distingue a lei do conselho é o
comando inerente àquela85.
83
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico, p. 161/171.
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico, p. 181.
85
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico, p. 182.
84
36
Bobbio, em suma, explica que há duas fases do imperativismo jurídico: a
primeira, chamada de imperativismo ingênuo, quando o Direito é tido como um
conjunto de ordens dirigidas pelo soberano aos súditos, sem considerar a estrutura
do imperativo jurídico; a segunda, chamada imperativismo crítico, tem em conta a
norma jurídica como imperativo hipotético, o qual tem como destinatários os juízes e
não os cidadãos86.
A teoria dos juízes destinatários da norma jurídica foi aceita por Kelsen, que
defendia que a norma primária era destinada aos juízes e a norma secundária
dirigida aos cidadãos, sendo estes não os destinatários de verdadeiros comandos,
mas sim sendo a eles mostrada uma alternativa, consistente em obedecer a lei ou
sofrer a sanção87.
2.1.5 A teoria do ordenamento jurídico
A teoria do ordenamento jurídico se baseia em três caracteres fundamentais
a ela atribuídos: a unidade, a coerência, a completitude88.
Bobbio afirma que,
Antes do seu desenvolvimento faltava no pensamento jurídico o
estudo do direito considerado não como norma singular ou como
acervo de normas singulares, mas como entidade unitária
constituída pelo conjunto sistemático de todas as normas89.
Kelsen aponta dois tipos de ordenamentos jurídicos: o estático e o dinâmico,
sendo o dinâmico o próprio do direito concebido positivamente. Assim, para os
juspostivistas o direito constitui uma unidade não porque suas normas podem ser
deduzidas logicamente uma da outra, mas sim porque elas são postas pela mesma
autoridade90.
Para que o ordenamento jurídico seja perfeitamente completo é necessário
que sejam respondidas as seguintes perguntas: quem ou o que vincula a produção
86
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico, p.
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico, p.
88
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico, p.
89
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico, p.
90
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico, p.
87
195.
194.
198.
197.
199-200.
37
das normas? E o que legitima (autoriza) tal poder de pôr as normas? Para tanto
torna-se inevitável a formulação da teoria da norma fundamental, que será a base do
ordenamento jurídico. Somente assim, pode-se garantir a unidade formal do
ordenamento, de forma a “fechar” o sistema. Destaca-se que, esta norma não é
positivamente verificável, visto que não é posta por um poder superior, mas sim
suposta pelo jurista para que se possa compreender e legitimar o sistema91.
A doutrina formulou três critérios para resolver possíveis antinomias, já que
para os juspositivistas o ordenamento é completamente coerente:
1°) o cronológico – em que a norma posterior prevalece sobre a norma
precedente.
2°) o hierárquico – em que prevalece, a norma de grau superior, sobre a de
grau inferior.
3°) o da especialidade – em que a norma especial prevalece sobre a geral92.
Das três características mencionadas a da completude é a mais importante,
pois esta intimamente ligada a certeza do direito. Afirmar que o ordenamento jurídico
é completo significa que inexistem lacunas na lei, para sua demonstração o
juspositivismo utiliza-se duas teorias,
1) A teoria do espaço jurídico vazio [...] afirmam que não faz sentido
falar em lacunas do direito, porque, dado um fato qualquer, ou existe
uma norma que regule e, neste caso, não há evidentemente lacuna
alguma, ou não existe nenhuma norma que o regule, e nem também
neste caso se pode falar de lacuna, visto que o fato não regulado é
juridicamente irrelevante, porque pertence ao ‘espaço jurídico vazio’.
2) A teoria da norma geral exclusiva [...] não existem fatos
juridicamente irrelevantes e não existem lacunas, porque cada
norma jurídica particular que submete uma dada regulamentação
certos atos é sempre acompanhada de uma segunda norma
implicitamente nela contida, a qual exclui da regulamentação da
norma particular todos os atos não previstos por esta última e os
submete a uma regulamentação jurídica antitética (por isso a
segunda norma é dita geral e exclusiva)93.
91
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico, p. 200-201.
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico, p. 203-206.
93
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico, p. 208-209.
92
38
2.1.6 A função interpretativa da jurisprudência
O positivismo jurídico considera tarefa da jurisprudência não a criação,
mas a interpretação do direito. Assim, interpretar compreende procurar o significado
do signo, individualizando a coisa por este indicada.
Para Bobbio, quanto a forma de interpretação
[...] fala-se de interpretação estática e de interpretação
dinâmica, dependendo de a atividade do intérprete tender
exclusivamente à reconstrução fiel do que pretendia significar
o autor dos signos, objeto da interpretação, ou, vice-versa,
tender ao enriquecimento do significado dos signos
interpretados, para adequá-lo às exigências das variadas
circunstâncias histórico-sociais94.
A concepção de que o papel da jurisprudência é simplesmente reproduzir o
Direito, isto é, desentranhar o conteúdo das normas jurídicas já postas e não criálas. Defende o juspositivismo que a jurisprudência não deve criar normas, mas
somente interpretá-las. A partir dessa concepção, conclui-se que o jurista deve
buscar a norma que soluciona o caso concreto, interpretando a norma de forma
mecânica. Desse modo, o positivismo privilegia na interpretação as formas, a
considerando uma operação de dedução lógica de conceitos abstratos, sem se
importar com a realidade social ou os conflitos de interesses subjacentes à norma
interpretada95.
2.1.7 O Positivismo Jurídico como ideologia do Direito
Para abordar este assunto, primeiramente, irá se diferenciar os conceitos de
teoria e ideologia,
[...] a teoria é a expressão da atitude puramente cognoscitiva que o
homem assume perante uma certa realidade e é, portanto,
constituída por um conjunto de juízos de fato, que têm a única
94
95
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico, p. 213.
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico, p. 220-222.
39
finalidade de informar os outros acerca de tal realidade. A ideologia,
em vez disso, é a expressão do comportamento avaliativo que o
homem assume face a uma realidade, consistido num conjunto de
juízos de valores relativos à tal realidade, juízos estes
fundamentados no sistema de valores acolhido por aquele que o
formula, e que tem o escopo em influírem sobre tal realidade96.
Dessa forma, teoria pode ser considerada falsa ou verdadeira. Por outro
lado, ideologia pode ser dita como conservadora ou progressista. Frisa-se que o
aspecto ideológico da concepção juspositivista predomina em absoluto no
pensamento de Bentham, cuja finalidade não é descrever o direito, mas sim criticálo. Ao contrário, em Austin, o aspecto teórico é mais evidente, pois ele se propõe a
descrever o direito como ele é e não como deveria ser97.
Esta distinção entre teoria e ideologia do juspositivismo é relevante pois
possibilita compreender o significado da polêmica antipositivista98.
2.1.7.1 O conteúdo e o significado da versão extremista da ideologia juspositivista:
as suas justificações histórico-filosóficas
Existem duas versões distintas do positivismo ético: a versão extremista ou
forte e a versão moderada ou fraca. A versão extremista do juspositivismo consiste
em afirmar o dever absoluto e incondicional de obedecer à lei enquanto tal, e tal
afirmação, encontra sua explicação histórica no fato de que, com a formação do
Estado moderno, não só a lei se tornou fonte única do direito, mas o direito estatallegislativo se tornou o único ordenamento normativo, o único sistema de
regulamentação do comportamento do homem na sociedade. E pode-se acrescentar
que o direito estatal-legislativo se tornou o critério único e exclusivo para a valoração
do comportamento social do homem99.
Encontra-se quatro justificativas para a concepção de obediência absoluta
das leis:
96
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico, p.
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico, p.
98
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico, p.
99
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico, p.
97
223.
223-224.
225.
225.
40
1)Concepção Cética (ou realista da justiça): a justiça é a expressão da
vontade do mais forte, que procura o seu próprio proveito. Rousseau critica esta
concepção, observando que não podemos afirmar o dever absoluto ou de
consciência de obedecer à lei: se esta é somente a vontade do mais forte, eu a
obedeço somente porque não posso fazer diferentemente (isto é, não por convicção,
mas sim por constrição) e somente enquanto não posso fazer diferentemente (a
saber, enquanto quem comanda é o mais forte).
2) Concepção Convencionalista da Justiça: a justiça é o que os homens
concordam em considerar justiça. Esta expressão que nasce não do ceticismo, mas
do relativismo ético, encontra sua expressão mais típica no pensamento de Hobbes.
Segundo este autor não existe um critério objetivo para distinguir o justo do injusto e,
então, se se prescinde das estatuições positivistas, é justo tudo que alguém faz
segundo o próprio impulso ou interesse. Quando surge uma controvérsia entre dois
indivíduos, o único modo de resolvê-la sem a força é nomear um árbitro e
convencionar que se aceitará como justa a decisão dele, qualquer que seja. O ato
com o qual os homens saem do estado de natureza consiste em precisamente no
acordo para atribuir a um único indivíduo (o soberano) o poder de estabelecer o que
é justo e o que é injusto, sendo justo o que o soberano comanda e injusto o que ele
proíbe.
3)Concepção da Sagrada Autoridade: é a concepção segundo a qual o
poder de mandar se funda num carisma, numa investidura sagrada, divina.
Conforme Max Weber, são três os modos, nos quais, nas várias sociedades, se
justifica o fundamento do poder: a) fundamento racional do poder: o poder nasce de
uma valoração racional dos homens, que reconhecem como necessário atribuir a
alguém o direito de comandar, para ser possível a existência da sociedade. É esta a
concepção na qual se inspiram as teorias contratualistas e que hoje estão na base
da sociedade democrática; b) fundamento tradicional do poder: o poder se funda na
força do costume, da tradição histórica, obedecendo-se ao soberano porque
pertence a uma dinastia que governa há muito tempo; c) fundamento carismático do
poder: o poder cabe a um homem que parece dotado de qualidades sobre-humanas,
no qual o povo deposita (com base na valorações emotivas, irracionais) uma
confiança absoluta e cega.
4) Concepção do Estado Ético: esta concepção pode ser considerada como
a transposição em termos racionais ou como a laicização da concepção sagrada da
41
autoridade. Segundo esta concepção, o Estado é a suprema manifestação de Deus
na História, é portador de uma missão, ou seja, de realizar a eticidade, que é uma
manifestação do espírito superior não só para o direito, como também para a
moral100.
Fica evidente que as leis, como manifestação da vontade do Estado,
possuem sempre um valor ético e exigem, portanto, a obediência incondicional dos
súditos.
2.1.7.2 A versão moderada do positivismo ético: a ordem como valor do próprio
direito
A versão moderada do positivismo ético afirma que o direito tem um valor
enquanto tal, independente do seu conteúdo, não porque seja sempre justo pelo
simples fato de ser válido, mas porque é o meio necessário para realizar um certo
valor, o da ordem, ou seja, a lei é a forma mais perfeita de direito, a que melhor
realiza a ordem. Pode-se afirmar que o fim do próprio direito não é a ordem, mas sim
um fim superior que é a justiça101.
O positivismo ético moderado não se limita a considerar o direito como meio
necessário para realizar a ordem, mas sustenta que a lei seja a forma mais perfeita
de direito. Isto depende do reconhecimento de que a lei seja a forma mais perfeita
do direito, que possui características peculiares que faltam às normas jurídicas
produzidas pelas demais fontes. Esses requisitos são a generalidade e a abstração.
a) Generalidade da Lei: a lei é geral no sentido de que disciplina o
comportamento não de uma única pessoa, mas de uma classe de
pessoas. Deste modo, a lei realiza um outro aspecto ou concepção
da justiça: a igualdade formal, que consiste em tratar igual as
pessoas que pertence à mesma categoria. b) Abstração da Lei: a lei
é abstrata no sentido de que comanda não uma ação singular, mas
uma categoria de ações. De tal modo ela realiza uma exigência de
fundamental importância para que a ordem possa ser conservada: a
certeza jurídica, que consiste na possibilidade de cada pessoa
100
101
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico, p. 227-229.
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico, p. 230-231.
42
poder, no âmbito de um sistema normativo,
conseqüências do próprio comportamento102.
prever
as
Assim, podemos concluir, que versão moderada do positivismo ético difere
da extremista, porque a versão extremista não diz que o direito é um bem em si, e
antes o valor supremo, pelo que se necessita sempre a ele obedecer, mas diz
somente que o direito é um meio que serve para realizar um determinado bem, a
ordem da sociedade, com a conseqüência de que desejamos tal bem, devemos
obedecer ao direito. Porém, a versão moderada não diz que a ordem seja o valor
supremo; se num determinado momento histórico, um certo valor parece superior à
ordem existente e com ela contrastante, pode-se então romper à ordem (mediante
uma revolução) para realizar tal valor103.
102
103
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico, p. 231-232.
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico, p. 232.
43
3 O APOGEU DA LEI COMO FONTE DO DIREITO
3.1 A TENDÊNCIA PARA O PREDOMÍNIO DA LEI DO ABSOLUTISMO AO
ESTADO LIBERAL
Como já tratado na explanação histórica e das características principais do
positivismo jurídico, resta indiscutível que, sob a influência das idéias políticas e
jurídicas dos pensadores dos séculos XVII e XVIII o direito sofreu grandes
transformações. A Revolução Francesa (1789) marcou também a história do direito,
concretizando as idéias iluministas nos textos de constituições e leis. Assim os
últimos vestígios do feudalismo desaparecem e a soberania passa das mãos dos
reis e dos príncipes para a nação, de forma a unificar o direito sob o comando do
Estado. Desde então, cada Estado soberano produz seu próprio direito através dos
órgãos legislativos104.
Acerca das transformações ocorridas com a formação do Estado moderno
assevera Ferraz Júnior:
Essas transformações iriam culminar em duas novas condicionantes,
uma de natureza política e outra de natureza técnico-jurídica. Quanto
às primeiras, assinale-se a noção de soberania nacional e o princípio
da separação dos poderes; quanto às segundas, o caráter
privilegiado que a lei assume como fonte do direito e a concepção do
direito como sistema de normas postas105.
Em síntese, nesse contexto, a lei se torna, em quase toda a Europa, a fonte
principal do direito106.
Com relação ao predomínio da lei no positivismo jurídico, assevera Bobbio;
[...] podemos precisar agora que esta corrente doutrinária [o
positivismo jurídico] entende o termo ‘direito positivo’ de maneira bem
específica, como direito posto pelo poder soberano do estado,
mediante normas gerais e abstratas, isto é, como “lei”. Logo o
104
GILISSEN, John: Introdução Histórica ao Direito. 2.ed. Tradução de A. M. Hespanha e L. M.
Macaísta Malheiros. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2003, p. 131.
105
FERRAZ JÚNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão,
dominação. São Paulo: Atlas, 2003. p. 73.
106
GILISSEN, John: Introdução Histórica ao Direito, p. 131.
44
positivismo jurídico nasce do impulso histórico para a legislação, se
realiza quando a lei se torna a fonte exclusiva – ou, de qualquer
modo, absolutamente prevalente – do direito, e seu resultado último
é representado pela codificação107.
Neste sentido destacam-se, resumidamente, três movimentos de natureza
política, enumerados por Gilissen, que favoreceram a primazia da lei sobre as
demais fontes do direito:
1) Teoria da soberania nacional – a partir desta teoria não é mais o rei o
soberano, mas sim a nação. Esta teoria é posta em evidência pelos filósofos
ingleses e franceses do século XVII e XVIII, como Montesquieu (1689 – 1755) e
Rousseau (1712 – 1778).
2) Teoria do regime representativo – na qual a nação soberana designa seus
representantes para o governo, que são eleitos pelo povo, ou pelo menos, pelos
cidadãos mais qualificados. Reúnem-se em assembléias e gozam de poderes
estabelecidos por lei. Somente estes representantes têm o poder de determinar as
regras jurídicas que limitam os direitos dos indivíduos. Não havendo, portanto,
outras regras jurídicas que não sejam as emanadas pelo legislador.
3) Teoria da separação dos poderes – Montesquieu para prevenir abusos,
dividiu o governo do Estado em três funções essenciais: a de fazer as leis
(legislativo); a de executar as leis (executivo) e a de aplicar as leis no caso de
conflito (judiciário)108.
Ademais, destaca-se que as idéias iluministas tiveram papel fundamental na
conquista da lei como fonte principal do direito no Estado liberal, que foi a primeira
forma de organização jurídica contemporânea. A reflexão jurídica do século das
luzes, inegavelmente, motivou o movimento pela legislação que culminou no
primeiro constitucionalismo e nas codificações109.
Acerca do movimento que culminou na codificação das leis Bobbio
apresenta duas das suas idéias-matrizes, de cunho nitidamente racionalista, quais
sejam;
a) O dar prevalência à lei como fonte do direito exprime uma
concepção específica deste último, que é compreendido como
ordenamento racional da sociedade; tal ordenamento não pode
107
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico, p. 119.
GILISSEN, John: Introdução Histórica ao Direito, p. 414-415.
109
MARCILLA CÓRDOBA, Gema. Racionalidad Legislativa, p. 113.
108
45
nascer de comandos individuais e ocasionais (porque então o direito
seria capricho e arbítrio), mas somente de normais gerais e
coerentes postas pelo poder soberano da sociedade, assim como a
ordem do universo repousa em leis naturais, universais e imutáveis.
b) O dar a prevalência à lei como fonte do direito nasce do propósito
do homem em modificar a sociedade. Como o homem pode controlar
a natureza através do conhecimento de suas leis, assim ele pode
transformar a sociedade através da renovação das leis que a regem;
mas para que isto seja possível, para que o direito possa modificar
as estruturas sociais, é mister que seja posto conscientemente,
segundo uma finalidade racional; é mister, portanto, que seja posto
através da lei.
Desta forma, em suma, pode-se dizer que, o impulso para a legislação
nasce da dupla exigência de pôr ordem no caos do direito primitivo e de fornecer ao
Estado um instrumento eficaz para intervenção na vida social110.
Neste sentido, resume a professora Gema Marcilla Córdoba;
O estado moderno em sentido estrito iniciaria assim sua trajetória
sob o império da lei, que terá por destinatários não só os cidadãos,
senão também os poderes públicos.
[...]
Fruto do empenho iluminista, a lei ficaria confiada primeiro ao
despotismo de um príncipe ilustrado e, mais tarde, perto já da
revolução a vontade geral que nunca pode errar111. [tradução livre]
Importante salientar que, apesar de toda esta inclinação do direito para o
positivismo jurídico, nem todos os países formularam a codificação, no entanto
Bobbio afirma que em todos os países ocorreu a supremacia da lei sobre as demais
fontes do direito112.
Com relação ao direito inglês o jurista italiano afirma que
Se neste país não foi executado o projeto de codificação de
Bentham, o pensamento deste, todavia, exerceu uma grande
influência nas reformas legislativas e no desenvolvimento das fontes
do direito. Não é por acaso que o século XIX foi chamado de século
benthamiano, já que viu afirmar-se na Inglaterra a prevalência do
110
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico, p. 120.
“El Estado moderno en sentido estricto iniciaría así su andadura bajo el imperio de la ley, que
tendrá por destinatários no ya sólo a los ciudadanos, sino también a los poderes píblicos. [...] Fruto
del empeño iluminista, la ley quedaria confiada primero al despotismo de um príncipe ilustrado y, más
tarde, cercana ya la revolución, a la voluntad general que nunca puede errar”. MARCILLA
CÓRDOBA, Gema. Racionalidad Legislativa, p. 113.
112
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico, p. 120.
111
46
direito legislativo sobre a common law paralelamente à consolidação
do Estado parlamentar113.
Já a ausência de codificação na Alemanha, que se opunha à idéia legalista,
compartilhava das mesmas exigências que eram base para o movimento pela
legislação, ou seja, a necessidade de se dar à sociedade um direito unitário e
sistemático114.
Conclui-se então que nos séculos XIX e XX a lei tornou-se a expressão da
vontade nacional. Lei esta que é formulada por órgãos chamados legislativos, cujos
representantes são escolhidos pelos cidadãos do Estado115.
Assim, o positivismo jurídico, efetiva a concepção de que a ordem jurídica se
integra somente através das leis positivas, postas por vontade dos homens116.
3.2 AS QUALIDADES DA LEI
Pode-se dizer definitivamente que o movimento em favor da legislação e, em
conseqüência, da codificação não respondeu somente a motivos técnicos ou à
mentalidade científica da época, mas também às exigências concretas de
organização social e política. Talvez isso explique seu inicial fracasso na Alemanha
ou na sua rejeição na Inglaterra, ao que pese o mérito de Bentham na elaboração da
proposta de codificação mais completa e sistemática. No entanto, o que não se pode
negar, a margem da situação histórica particular de cada Estado, é que a
preponderância da lei, representada pelos movimentos pela legislação e codificação,
operou-se de forma a empreender uma verdadeira mudança de paradigma, distinta
em cada Estado, mas que impôs sem dúvida um novo modelo de produção jurídica
gerando reflexos em várias partes do mundo117.
Assim a partir do panorama apresentado, passa-se a descrever algumas das
características (qualidades) que conduziram a lei ao ápice das fontes do direito no
modelo juspositivista.
113
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico, p. 120.
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico, p. 121.
115
GILISSEN, John: Introdução Histórica ao Direito, p. 206.
116
CÓRDOBA, Gema Marcilla. Racionalidad Legislativa, p. 116.
117
CÓRDOBA, Gema Marcilla. Racionalidad Legislativa, p. 84-85.
114
47
3.2.1 Segurança jurídica
A lei havia cumprido na formação do Estado moderno o papel de fazer
possível o monopólio estatal da coação, assim esta forma jurídica assume a ordem
política e social, convertendo-se em um artifício jurídico na busca da unificação do
direito positivo sob o selo do estadismo e da uniformidade frente a o particularismo
jurídico anterior118.
Destaca-se que antes da formação do Estado moderno, o juiz poderia
resolver o caso concreto com liberdade na escolha de que norma aplicar. Era
facultado a ele, optar por normas exclusivamente de costume, por aquelas
elaboradas pelos juristas ou ainda poderia dirimir a controvérsia baseando-se em
critérios eqüitativos, extraindo a norma do próprio caso em questão segundo
princípios da razão natural. Desta forma, o juiz não estava vinculado somente a
normas emanadas pelo órgão legislativo do Estado, pois todas as fontes do direito
encontravam-se no mesmo plano, podendo aplicar tantos as normas preexistentes
na sociedade (direito positivo) quanto os princípios eqüitativos do próprio julgador
(direito natural)119.
Neste sentido,
A segurança jurídica remeteria, em efeito, às premissas do
jusnaturalismo racionalista, pois desde este a origem das instituições
políticas e jurídicas se explica ‘a partir da exigência... de abandonar
uma situação na qual o homem possuía ilimitada (ainda que
insegura) liberdade, à outra liberdade limitada mas protegida e
garantida. Hobbes, Puffendorf, Locke, Kant, assim como a grande
maioria de contratualistas, conceberam o trânsito desde o estado de
natureza à sociedade como a superação do ius incertum e sua
conversão em estado de segurança’120.
118
CÓRDOBA, Gema Marcilla. Racionalidad Legislativa, p. 83-84.
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico, p. 28.
120
“La seguridad remitirá, en efecto a las premisas de iusnaturalismo racionalista, pues desde éstas
el origen de las instituciones políticas y jurídicas se explica “a partir de la exigencia… de abandonar
una situación en la que el hombre posee una ilimitada (aunque insegura) libertad, a otra de libertad
limitada pero protegida y garantizada. Hobbes, Puffendorf, Locke, Kant, así como la grande mayoría
de contractualitas, concebirán el tránsito desde el estado de naturaleza a la sociedad como la
superación del ius incertum y su conversión en estado de seguridad”. Pérez Luño apud MARCILLA
CÓRDOBA, Gema. Racionalidad Legislativa, p. 87-88.
119
48
O modelo juspositivista buscava dar ao ordenamento jurídico uma
sistematização baseada na certeza e uniformidade. Nas palavras de Marcilla
Córdoba:
[...] cabe dizer que o movimento de reforma da legislação aparecia
animado por um objetivo fundamental: a consecução da segurança
jurídica e da racionalização normativa.
[...]
A crítica ao direito consuetudinário ou a falta de unidade no
ordenamento são amostras dessas exigências de segurança jurídica
que está presente em numerosos escritores da época; uma exigência
de segurança iria traduzir-se na reforma da técnica legislativa, mas
que respondia também a confluência de distintos valores ou
finalidades políticas a serviço tanto do projeto monárquico como das
necessidades da ordem econômica e social da burguesia121.
[tradução livre]
Cabe destacar que no modelo juspositivista a segurança jurídica assumiria
dois significados entrelaçados. Em um sentido amplo seria a garantia da ordem e da
paz social. A segurança neste sentido é a proteção frente às ameaças dos outros
indivíduos e até mesmo dos titulares do poder. Já em um sentido mais estrito ou
jurídico a segurança relaciona-se com a previsibilidade do direito. Assim o fato que
torna mais urgente a reforma legislativa se refere à aplicação do direito, ou seja, o
objetivo de restringir a discricionariedade do juiz propiciada por um direito incerto
para enfim garantir a segurança jurídica de um direito baseado em leis concisas,
concludentes e uniformes122.
A importância desta subordinação do judiciário à lei pode ser percebida pela
afirmação de Bobbio:
A subordinação dos juízes à lei tende a garantir um valor muito
importante: a segurança do direito, de modo que o cidadão saiba
com certeza se o próprio comportamento é ou não conforme a lei123.
121
“[...] cabe decir que el movimiento de reforma de la legislación aparecía animado por un objetivo
fundamental: la consecución de la seguridad jurídica y de la racionalización normativa. […] La crítica
al Derecho consuetudinario o a la falta de unidad del ordenamiento son muestras de esa exigencia
de seguridad jurídica que está presente en numerosos escritores de la época; una exigencia de
seguridad que había de traducirse en la reforma de la técnica legislativa, pero que respondía también
a la confluencia de distintos valores o finalidades políticas, al servicio tanto del proyecto monárquico
como de las necesidades del orden económico y social de la burguesía”. MARCILLA CÓRDOBA,
Gema. Racionalidad Legislativa, p. 86.
122
MARCILLA CÓRDOBA, Gema. Racionalidad Legislativa, p. 88.
123
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico, p. 40.
49
A segurança jurídica implementada pelo positivismo jurídico se opera tanto
no direito civil, como e talvez inclusive com mais força no setor mais delicado do
direito, o direito penal124. Bobbio destaca o princípio da estrita legalidade do direito
penal defendido por Beccaria em sua obra, Dos delitos e das penas (1764),
A primeira conseqüência destes princípios é que somente as leis
podem decretar as penas sobre os delitos e esta autoridade só pode
residir junto ao legislador, que representa a sociedade unida por um
contrato social. [Aqui Beccaria apela pela concepção contratualista
para demonstrar que o poder do legislador não é arbitrário mas se
funda na sociedade e é feito para a sociedade.] Nenhum magistrado,
que é parte da sociedade, pode com justiça infligir penas contra um
outro membro da mesma sociedade. Mas uma pena acrescida além
do limite fixado pelas leis é a pena justa, mais uma outra pena;
portanto, não pode um magistrado, sob qualquer pretexto de zelo, ou
bem público, acrescer a pena estabelecida a um cidadão
delinqüente125.
Como se pode notar a interpretação da lei para o positivismo jurídico parte
de uma tríplice premissa:
1ª) é unicamente direito aquele estabelecido pela lei;
2ª) seu significado corresponde à vontade do legislador e
3ª) a vontade do legislador é o traslado da vontade geral, sendo, portanto, a
interpretação um processo racional e lógico126
3.2.2 Igualdade formal e unicidade do ordenamento
Junto à segurança jurídica, as leis deveriam alcançar a igualdade formal,
assim, o sujeito abstrato que dava vida ao contrato social é o mesmo sujeito
contemplado pela legislação, ou seja, a imputação jurídica deve prescindir qualquer
circunstância pessoal, traduzindo-se na exigência de se tratar de forma uniforme os
sujeitos do Estado127.
124
MARCILLA CÓRDOBA, Gema. Racionalidad Legislativa, p. 88.
Apud BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico, p. 40.
126
MARCILLA CÓRDOBA, Gema. Racionalidad Legislativa, p. 123.
127
MARCILLA CÓRDOBA, Gema. Racionalidad Legislativa, p. 89.
125
50
Cumpre salientar que a busca por esta igualdade se deu como o primeiro
objetivo social da burguesia em sua luta para o fim do regime absolutista. Esta
classe social apesar da riqueza não possuía a nobreza familiar, assim necessitava
de uma uniformidade jurídica que evitasse os privilégios à nobreza absolutista,
principalmente para o seu desenvolvimento comercial128.
Destaca-se que, a segurança jurídica e a igualdade formal são os pilares das
características formais da lei. Estas qualidades formais agrupam-se em dois tipos: as
que atendem a exigência de unidade do ordenamento jurídico e as que procuram
sua qualidade lingüística no intuito de proporcionar uma aplicação uniforme e
previsível da lei.
Para Marcilla Córdoba a mais relevante das qualidades formais da lei é a
unicidade do ordenamento129. Bobbio analisa que ela nasce da exigência de dar
unidade a um conjunto de normas fragmentárias, que constituíam um risco
permanente a incerteza e ao arbítrio130.
Como se depreende da afirmação de Marcilla Córdoba,
A unidade do ordenamento ou, desde outra perspectiva, a tarefa de
unificação do Direito se projetaria em três campos, a saber: sujeito
legislador, matéria e destinatário do direito. Em primeiro lugar, a
unidade do Direito se projeta no órgão ou fonte que dá origem ao
Direito e comporta a exigência de um legislador único: a autoridade
de decretar as leis deve residir unicamente no legislador131. [tradução
livre]
3.2.3 Generalidade e abstração
Conseqüência da uniformidade do ordenamento é a exigência de abstração
e generalidade da lei. Abstração significa que a lei não regula uma determinada
conduta, mas sim prevê uma hipótese típica, ou seja, uma classe indefinida de
128
MARCILLA CÓRDOBA, Gema. Racionalidad Legislativa, p. 89-90.
MARCILLA CÓRDOBA, Gema. Racionalidad Legislativa, p. 90.
130
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico, p. 198.
131
“La unidad del ordenamiento o, desde otra perspectiva, la tarea de unificación del Derecho se
proyectaría en tres campos, a saber: sujeto legislador, materia y destinatario del Derecho. En primer
lugar, la unidad del Derecho se proyecta en el órgano o fuente que da origen al Derecho y comporta a
exigencia de un legislador único: la autoridad de decretar las leyes debe residir únicamente en
legislador. In CÓRDOBA, Gema idir Marcilla. Racionalidad Legislativa, p. 90.
129
51
ações; enquanto a generalidade faz com que a norma não se refira a uma categoria
específica de cidadãos, mas a todos indistintamente,
Em síntese, dispor de um direito uniforme, público e claramente
redigido constitui um pressuposto técnico do adequado
conhecimento da ordem jurídica; conhecimento indispensável para
garantir sua eficácia ou cumprimento por parte dos destinatários,
assim como também a segurança e igualdade em sua aplicação
pelos operadores jurídicos132. [tradução livre]
Tem-se que a relevância destas duas características formais (generalidade e
abstração) reside na restrição da arbitrariedade do legislador, bem como dos demais
operadores do direito. Desta forma, o direito será sempre previsível, não
discriminatório e suscetível de execução e aplicação certa e segura pelos poderes
públicos, cuja legitimidade deriva de sua subordinação a lei133.
Frisa-se que todas estas características, quais sejam: a satisfação da
segurança e igualdade jurídicas; dos valores formais orientados à sistematização de
um ordenamento jurídico único, tornam-se os meios para efetivar um novo modelo
de relações sociais, econômicas e políticas. Modelo este, como já dito, que se
fundamenta na supremacia absoluta da lei134.
3.3 A TEORIA DAS FONTES DO DIREITO: A LEI COMO ÚNICA FONTE DE
QUALIFICAÇÃO
O predomínio da lei sobre as demais fontes do direito, alcançada, conforme
já exposto, com a formação do Estado moderno, é um dos pontos fundamentais do
positivismo jurídico135, talvez o mais importante.
Da análise das obras dos principais autores positivistas, pode-se perceber
que a questão das fontes do direito e sua hierarquização é objeto de atenção e
132
En síntesis, disponer de un Derecho uniforme, público y claramente redactado constituye un
presupuesto técnico del adecuado conocimiento del orden jurídico; conocimiento indispensable para
garantizar su eficacia o cumplimiento por parte de los destinatarios, así como también la seguridad e
igualdad en su aplicación por los operadores jurídicos”. MARCILLA CÓRDOBA, Gema. Racionalidad
Legislativa, p. 97.
133
MARCILLA CÓRDOBA, Gema. Racionalidad Legislativa, p. 137.
134
CÓRDOBA, Gema Marcilla. Racionalidad Legislativa, p. 89.
135
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico, p. 161.
52
tratamento específico para cada um deles.
Segundo Gilissen a expressão fontes do direito pode ser entendida pelo
menos em três sentidos: fontes históricas136; fontes reais137 e fontes formais.
No presente tópico será dada especial atenção às fontes formais do direito,
que são os instrumentos de sua elaboração, bem como os modos ou formas através
das quais as normas de direito positivo se exprimem138.
Para alguns autores juspositivistas a lei é a única fonte formal do direito.
Outros juristas, porém, admitem a coexistência de outras fontes, como o costume, a
jurisprudência, a doutrina, os princípios gerais do direito e a eqüidade139.
Dentre os autores que reconhecem a pluralidade de fontes do direito ao lado
da lei, cita-se Alf Ross, o qual aduz que
Deste ponto de vista o precedente e a razão são caracterizáveis
como fontes que sempre desempenharam um papel considerável,
que corresponde às idéias de justiça formal e material, o costume e a
legislação, como as fontes cujo papel tem variado grandemente,
sendo o costume a fonte predominante no direito primitivo e a
legislação, no direito moderno.
[...]
Consoante a isso, o esquema de classificação será o seguinte: 1º) o
tipo de fonte completamente objetivada: as formulações revestidas
de autoridade (legislação no sentido mais amplo); 2º) o tipo de fonte
parcialmente objetivada: costume e precedente; 3º) o tipo de fonte
não objetivada, livre: a razão140.
Cumpre frisar que, apresar de reconhecer a pluralidade das fontes do direito
Ross defende a preponderância da lei sobre todas as demais fontes, no sentido que
afirma que
A fonte mais importante no direito da Europa continental, atualmente,
é constituída, sem dúvida, pelas normas sancionadas pelas
autoridades públicas. Com efeito, os juízes se sentem obrigados, em
alto grau, ante as declarações da legislatura e a doutrina ideológica
oficial assevera que o direito legislado (em lato sentido) possui força
136
“São todos os elementos que contribuíram, ao longo dos séculos, para a formação do direito
positivo actualmente em vigor num país dado”. GILISSEN, John: Introdução Histórica ao Direito, p.
25.
137
“São os factores que contribuem para a formação do direito; respondem à pergunta: de onde vem
a regra de direito? As fontes reais variam segundo a concepção religiosa ou filosófica dos homens.
GILISSEN, John: Introdução Histórica ao Direito, p. 25.
138
GILISSEN, John: Introdução Histórica ao Direito, p. 25.
139
GILISSEN, John: Introdução Histórica ao Direito, p. 26.
140
ROSS, Alf. Direito e Justiça, p. 104.
53
obrigatória absoluta141.
Outro ponto importante refere-se ao fato de que a prevalência da lei sobre
todas as outras fontes do Direito acaba por resolver a questão de validade das
normas jurídicas, na medida em que uma norma somente é válida, ou seja, existe
juridicamente se for produzida por uma fonte autorizada142.
Kelsen, ao analisar as fontes do Direto como fundamento de validade da
norma, define
‘Fontes do Direito’ é uma expressão figurativa que tem mais de que
uma significação. Esta designação cabe não só aos métodos de
criação jurídica em geral, ou a toda norma superior em relação à
norma inferior cuja produção ela regula. Por isso por fonte de Direito
entende-se, também, o fundamento de validade de uma ordem
jurídica, especialmente o último fundamento de validade, a norma
fundamental. No entanto, efetivamente, só costuma designar-se
como “fonte” o fundamento de validade jurídico-positivo de uma
norma jurídica, quer dizer, a norma jurídica positiva do escalão
superior que regula a sua produção143.
Destaca-se, desta forma, a importância da discussão sobre as fontes do
direito, eis que os juristas antes de se ocuparem do estudo de uma dada matéria, se
ocupam em estabelecer quais são as fontes de que decorrem as normas que
regulam esta matéria. Portanto, a prevalência de uma fonte (a lei) sobre todas as
demais fontes do direito determina a validade de todo um ordenamento jurídico. E
para que esta predominância possa ocorrer são necessários vários fatores, que
serão a seguir discutidos144.
141
ROSS, Alf. Direito e Justiça, p. 104.
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico, p. 161.
143
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito, p. 259.
144
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico, p. 161-162.
142
54
3.3.1 Condições necessárias para que num ordenamento jurídico exista uma
fonte predominante
Bobbio enfatiza que para que a lei seja a fonte predominante do
ordenamento jurídico é necessário que este ordenamento seja complexo e
hierarquicamente organizado. Neste sentido o jurista italiano pondera
A doutrina juspositivista das fontes assume os movimentos da
situação acima descrita, isto é, da existência de ordenamentos
jurídicos complexos e hierarquizados, e sustenta que a fonte
predominante, que dizer, a fonte que se encontra no plano
hierárquico mais alto, é a lei, visto que ela é a manifestação direta do
poder soberano do Estado e que os outros fatos ou atos produtores
de normas são apenas fontes subordinadas145.
Cabe
salientar
que,
geralmente
os
ordenamentos
jurídicos
são
hierarquizados. Um ordenamento integralmente paritário, no qual todas as fontes do
direito possuem o mesmo valor, bem como um ordenamento simples é mais
hipotético do que historicamente verificável. Portanto, para os juspositivistas o
critério para se resolver um conflito de normas contrastantes entre si e
provavelmente de fontes diversas deve ser o hierárquico, segundo o qual a fonte de
grau superior (a lei) deve ser aplicada em detrimento à de grau inferior146.
3.3.2 Fontes de qualificação jurídica; fontes de conhecimento jurídico; fontes
reconhecidas e delegadas
Como exposto, a doutrina juspositivista das fontes parte do pressuposto da
necessidade de ordenamentos jurídicos complexos e hierarquizados, sustentando
que a fonte predominante, hierarquicamente mais elevada, é a lei. Frisa-se que a lei
é a manifestação direta do poder soberano do Estado e os outros fatos ou atos
produtores de normas são apenas fontes subordinadas. Tal relação de subordinação
145
146
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico, p. 164.
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico, p. 163.
55
se explica ou por um processo de reconhecimento (ou recepção) ou por base num
processo de delegação, falando-se em fontes reconhecidas ou fontes delegadas147.
Reconhecimento é quando existe um fato social precedente ao Estado e
delegação quando o Estado atribui a um órgão diverso do portador da soberania, ou
mesmo uma instituição social, o poder de estabelecer normas jurídicas para certas
matérias e dentro de certos limites. Bobbio apresenta como exemplo de fonte
reconhecida o costume, e como fonte delegada os regulamentos. No entanto,
pondera que, nem sempre é fácil saber se uma fonte é reconhecida ou delegada.
Dependerá do ângulo em que cada um se coloca ou da maior ou menor simpatia por
umas ou outras148.
Considerando o ordenamento jurídico como uma construção escalonada, ou
seja, constituído por normas hierarquicamente subordinadas umas às outras, o
conceito de delegação pode explicar outras relações de subordinação existentes
entre diversas categorias de normas. É o caso da relação existente entre o poder
constituinte e o poder legislativo ordinário, da existente entre o poder legislativo
ordinário e o poder judiciário (considerado como o poder delegado para disciplinar
os casos concretos).
Assim as fontes do direito pertencem a um plano hierárquico, em que
[...] as fontes subordinadas são ditas fontes de conhecimento jurídico
enquanto as superiores fontes de qualificação jurídica. Ora, o
positivismo jurídico, também admitindo uma pluralidade de fontes de
conhecimento, sustenta a existência de uma única fonte de
qualificação e identifica esta última com a lei149.
Após esta explanação necessária para se compreender a visão juspositivista
em que a lei é a única fonte de qualificação, apresenta-se os fundamentos que
levaram a sua prevalência em detrimento das demais fontes ao longo da história do
pensamento jurídico.
147
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico, p. 164.
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico, p. 164.
149
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico, p. 166.
148
56
3.3.3 O costume como fonte do direito
A posição do costume tem particular importância no processo histórico que
leva ao predomínio da lei. Três sãos as principais teorias que explicam o
fundamento de juridicidade do costume: romano-canônica, moderna e da escola
histórica150.
Resumidamente, para a teoria romano-canônica, a diferença entre a lei e o
costume diz respeito ao modo como o povo exprime a sua vontade: expressa ou
tacitamente151.
Pela teoria moderna de Austin, o costume se torna direito quando existem
tribunais que o fazem valer. Austin formula tais conceitos:
Na sua origem, o costume é uma regra de conduta observada
espontaneamente e não em execução a uma lei posta por um político
superior. O costume é transformado em direito positivo quando é
adotado como tal pelos Tribunais de Justiça e quando as decisões
judiciárias formadas com base nele são feitas valer com a força do
poder do Estado152.
Cabe salientar que a escola histórica de Savigny e Puchta, é a única que
situa o fundamento de validade no próprio costume, tendo em vista que sua validade
se funda na convicção jurídica popular. No entanto, esta posição não foi seguida
pelos juristas, prevalecendo a tendência de negar ao costume o caráter de fonte
autônoma.
Outro ponto que não se pode deixar de frisar refere-se às relações históricas
entre a lei e o costume. Destaca-se que historicamente esta relação passa por
concepções distintas até se chegar ao conceito juspositivista em que o costume
como as demais fontes do Direito é inferior a lei. Na primeira situação o costume é
superior à lei, contudo é difícil encontrar exemplos satisfatórios desta situação. No
direito internacional, por exemplo, o costume é fonte primária, porém isto não
significa que ele prevaleça153.
150
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico, p.
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico, p.
152
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico, p.
153
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico, p.
151
166.
167.
167.
168-169.
57
Na segunda situação, o costume e lei encontram-se no mesmo plano. O
exemplo é representado pela doutrina canônica durante a Idade Média. Quanto a
este tema havia nesta doutrina uma divisão, visto que na compilação justiniana
estavam contidas duas afirmações contraditórias. Por um fragmento de Juliano
admitia-se o costume ab-rogativo. Já por uma constituição de Constantino, nega-se
ao costume eficácia ab-rogativa da lei. Gregório IX resolveu autoritariamente esta
questão acolhendo a solução de Constantino154.
Pela terceira situação o costume é inferior à lei. Realizada com a formação
do Estado moderno e teorizada pelo positivismo jurídico 155.
Frisa-se que na visão juspositivista com a codificação do direito e o
conseqüente papel assumido pela lei o costume, bem como as demais fontes do
direito não desapareceram por completo, no entanto como já mencionado tornaramse apenas fontes subordinadas à única fonte de qualificação do direito, a lei.
3.3.4 A decisão do juiz como fonte de direito. A eqüidade
A história do poder judiciário como fonte de direito é totalmente análoga à do
costume. Com a formação do Estado moderno, o juiz perde a posição que de fonte
principal de produção do direito, para se transformar num órgão estatal, subordinado
ao poder legislativo e encarregado de aplicar mecanicamente as normas
estabelecidas pelo legislador156.
Para os juspositivistas não há dúvida de que o poder judiciário não é uma
fonte de qualificação jurídica, o que não exclui que ele seja uma fonte subordinada
ou delegada, pois ele pode pronunciar um juízo de eqüidade, isto é, um juízo que
não aplica normas jurídicas positivas preexistentes. Neste caso o juiz decide com
base na sua consciência ou com base no próprio sentimento de justiça. Pode-se
dizer até que ele decide com base no direito natural. É fonte subordinada porque ele
pode prolatar esta sentença somente na medida em que está autorizado por lei.
Como exemplo, pode-se citar que o Código Civil italiano admite esta possibilidade
154
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico, p. 169-170.
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico, p. 170.
156
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico, p. 171.
155
58
quando tratar-se de direitos disponíveis e quando o juiz ou o árbitro estiver
autorizado pelas partes157.
Cumpre asseverar que a doutrina distingue três tipos de eqüidade: 1)
eqüidade substitutiva: ele estabelece uma regra que supre a ausência de uma lei; 2)
eqüidade integrativa: a norma legislativa é muito genérica não definindo com
precisão todos os elementos da fatti specie; 3) eqüidade interpretativa: quando ele
define o conteúdo da norma legislativa que existe e é completa. Para a doutrina
juspositivista não é admissível este tipo de eqüidade, visto que este ao interpretar
pode acabar derrogando a lei158.
Bobbio apresenta um problema quanto a exata determinação da fonte de
direito, se é a eqüidade ou o juízo. Este tema foi objeto de uma polêmica entre
Calamandrei e Carnelutti e,
[...] se expressa em termos processuais deste modo: a
sentença emitida com base em um juízo de eqüidade é uma
sentença declarativa ou uma sentença constitutiva (ou
dispositiva)? (Sentença declarativa é a que se limita a
assegurar uma situação jurídica disciplinada pelas normas
preexistentes; sentença constitutiva ou dispositiva é a que
produz ex-novo uma situação jurídica com base numa norma
criada com a própria sentença.)159.
Calamandrei sustenta que se trata de uma sentença declarativa: aplica o
direito da eqüidade preexistente à própria sentença; a fonte do direito é a eqüidade e
não o juízo. Já Carnelutti sustenta que se trata de uma sentença constitutiva e esta é
a opinião unanimemente aceita. O juízo de eqüidade é um juízo emitido sem regras
preexistentes. A fonte do direito é o juízo. Assim no caso do juízo de eqüidade a
fonte formal do direito é o juiz, que explica o seu poder normativo através de
sentenças160.
Desta forma, a partir de toda a explanação apresentada, pode-se observar
que, em sua qualidade de fonte primordial do direito ou produção normativa, a
história da lei corre paralela ao processo de formação e vicissitude do Estado
moderno. Assim, o positivismo é, indiscutivelmente, o responsável por dar vida à
ciência da legislação, ciência esta que não se limitou a uma postura passiva, apenas
157
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico, p.
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico, p.
159
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico, p.
160
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico, p.
158
171-172.
173-174.
174.
174-175.
59
informando sobre como são as leis, mas assume resolvidamente uma função ativa,
ou seja, de ditar o direito161.
Ademais, Importante salientar que a visão juspositivista do direito a partir de
meados do século XX foi submetida a inúmeras críticas, o que torna ainda mais
relevante a presente análise, no intuito que se possa melhor compreender as razões
da decadência deste movimento, de forma a estabelecer mais claramente o que
merece ser conservado e o que deve ser abandonado162.
161
162
MARCILLA CÓRDOBA, Gema. Racionalidad Legislativa, p. 17-20.
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico, p. 223.
60
CONCLUSÃO
No presente trabalho, em seu capítulo inaugural, após uma breve
explanação acerca da distinção entre o direito natural e o direito positivo, descreveuse o momento histórico no qual o pensamento jurídico medieval, fundado na teologia
e na autoridade, perdeu espaço para um direito natural moderno, sistematizado e
fundado na razão e na vontade, o que acabaria por se impor decisivamente na
cultura jurídica européia dos séculos XVII e XVIII, lançando algumas das idéias que
serviram como base teórica para a construção do positivismo jurídico.
Em seguida se analisou as correntes filosóficas, bem como os movimentos
políticos e jurídicos desenvolvidas em três grandes nações européias: Alemanha,
França e Inglaterra, os quais foram atuantes no período histórico em que o direito
passou a ter uma abordagem positivista.
No entanto destacou-se, essa mudança de paradigma não se operou de
forma abrupta, havendo uma fase de conflito entre o chamado direito comum
(próprio de cada grupo social) e o direito positivo (produzido pelo Estado). O fim
desse combate somente adveio com o período das codificações, ocorridas entre o
fim do século XVIII e o início do século XIX, quando o direito comum foi absorvido
pelo direito estatal. Nesse tempo, o princípio da onipotência do legislador passa a
ser observado, havendo o monopólio da produção legislativa por parte do Estado.
Após a explanação histórica, no segundo capítulo, se identificou as
características fundamentais do juspositivismo, sejam elas: a abordagem avalorativa
do direito; a idéia de coercitividade; a lei como fonte preponderante do direito; a
norma como comando; a teoria do ordenamento jurídico; a função meramente
interpretativa da jurisprudência, além da análise do positivismo jurídico como
ideologia do direito. Dentre estas particularidades do modelo juspositivista
demonstrou-se que a mais relevante delas, a lei, é considerada o pilar do positivismo
jurídico.
Assim, no terceiro capítulo, foi observado que com o surgimento do Estado
moderno, a idéia de primazia da lei consolida-se, através do movimento
juspositivista, o qual dá ao direito o status e ambição de ciência.
61
Neste contexto, a lei passa a ser vista como expressão superior da razão e a
ciência do direito o meio de se alcançar a tão almejada segurança jurídica.
No entanto, mister se faz ponderar que esta visão do direito foi submetida a
inúmeras críticas, visto que os pensadores atuais (neo-constitucionalistas ou póspositivistas) defendem que o fenômeno da positivação do direito concluiu o seu ciclo.
Nesta nova perspectiva acerca do direito a Constituição assume o papel
fundamental no ordenamento jurídico, de forma que as normas legisladas dependem
de adequação não somente a critérios formais, mas também materiais, na medida
em que o conteúdo da norma deve obrigatoriamente estar de acordo com a
Constituição163.
Desta forma, destaca-se a importância do tema aqui analisado para que se
possa melhor compreender as razões da decadência do pensamento juspositivista,
de forma a estabelecer mais claramente o que merece ser conservado e o que deve
ser abandonado.
163
ROESLER, C.R.;ATIENZA, M. Os diversos enfoques da teoria contemporânea do direito e a
passagem para a teoria constitucionalista do direito: diálogo entre a Profa. C. R. Roesler e M. Atienza.
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WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. 3.ed. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, 2004.
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