CASOS CLÍNICOS CLINICAL CASES Os antipsicóticos como etiologia rara da protossigmoidite Isquémica Antipsycotics as a rare etiology of ischemic protossigmoidite A. BARÃO1, H. MATOS2, A. RAMIRES3, JOÃO MALAQUIAS3, H. BICHA CASTELO4 RESUMO ABSTRACT Os autores apresentam um caso de proctossigmoidite isquémica grave, num doente do sexo masculino, 37 anos de idade, sob medicação crónica com neurolépticos para tratamento de uma situação de Autismo. O quadro clínico é caracterizado pela instalação lenta e progressiva da sintomatologia, moderada e pouco evocativa, não reflectindo a gravidade das lesões associadas. O diagnóstico da situação aguda é dificultado pela ausência de factores de risco bem estabelecidos. Apesar da colite isquémica ser um efeito colateral pouco frequente da medicação antipsicótica, julgamos que a raridade da situação associada a resultados potencialmente fatais, e ao facto do tratamento cirúrgico precoce poder aumentar a probabilidade de uma recuperação bem sucedida, justificam esta chamada de atenção. The authors present a study about a 37 year-old male patient, diagnosed with a severe ischemic proctosigmoiditis, who has also been administrated with neuroleptic medication due to his Autism condition. His medical history is characterised by a slow and progressive, moderate and somewhat evocative symptomatology, dissimulating the severity of associated injuries. The diagnosis of this acute situation is hampered by the absence of well-established risk factors. Although ischemic colitis is an uncommon side effect of the antipsychotic medication, we believe in the clinical relevance of this study due to the potential fatal outcomes, and to the fact that early surgical treatment can increase the likelihood of a successful recovery. INTRODUÇÃO Como forma mais comum de apresentação da isquémia intestinal, a colite isquémica compreende um largo espectro de formas de apresentação. Usualmente segmentar, envolvendo mais frequentemente o ângulo esplénico e a junção rectossigmoidea, poupando o recto dado a riqueza da sua circulação colateral. Situações de oclusão vascular ou de baixo débito, conduzem a estados de hipoperfusão do cólon, isquémica ou estagnante. A apresentação clínica depende do grau e da duração da oclusão vascular. Nas formas transitórias benignas, ocorrem dores ligeiras nos quadrantes inferiores com diarreia sanguinolenta. A hemorragia é usualmente de pequena intensidade, não exigindo transfusões. Por vezes, existe urgência defecatória, assim como náuseas e vómitos. O exame físico revela hipersensibilidade dolorosa na área do segmento intestinal afectado. Nos doentes com formas de colite mais exuberantes, surgem sinais e sintomas de abdómen agudo com dor abdominal intensa e defesa à palpação. É a forma dita gangrenosa, que exige cirurgia urgente. O quadro multifactorial, pode estar associado a várias condições predisponentes, desde cardiovasculares ao uso de medicamentos, nomeadamente antipsicóticos, estando mais comumente associada à classe dos fenotiazínicos e antipsicóticos atípicos como a clozapina e olanzapina. O diagnóstico diferencial é estabelecido com variadas entidades, nomeadamente: colite ulcerosa, doença de Crohn, colite pseudomembranosa, diverticulite, hemorragia por diverticulose, colite infecciosa, trombose venosa mesentérica, volvo da sigmoidea e carcinoma do cólon. CASO CLÍNICO Doente do sexo masculino, 37 anos, caucasiano, com antecedentes pessoais de Autismo (medicado até à data de internamento com olanzapina (5mg + 10mg), carbamazepina (200mg+200mg), biperideno (1/2+1/2 – 4mg) e melperona (50mg)), que inicia quadro de obstipação progressiva, dor Clínica Universitária de Cirurgia II – Hospital de Santa Maria – CHLN 1 Interna Complementar Cirurgia Geral, 2Assistente Hospitalar Cirurgia Geral, 3Assistente Hospitalar Graduado Cirurgia Geral, 4Director de Serviço de Cirurgia Geral 28 REVISTA PORTUGUESA DE COLOPROCTOLOGIA | JAN/ABR 2014 CASOS CLÍNICOS CLINICAL CASES n QUADRO 1 Factores etiológicos associados à colite Isquémica. Factores etiológicos • Idiopático • Choque • Oclusão vascular Trauma Trombose/embolia de artéria mesentérica Trombose venosa mesentérica • Doenças com envolvimento do intestino delgado Diabetes Mellitus Artrite reumatóide Amilóidose Radiações Vasculites sistémicas • Medicação Digoxina Diuréticos Catecolaminas Estrogénios Danazol AINES Neurolépticos • Obstrução do cólon • Doenças hematológicas • Abuso de cocaína FIGURA 1. TC abdominopelvica: espessamento parietal marcado do cólon sigmóide distal, recto e meso, com densificação da gordura adjacente e múltiplas imagens nodulares, compatíveis com adenopatias. Pequena quantidade de líquido inter-ansas. n TABELA 1 Resultados do estudo bacteriológico. Bacteriologia Resultados Agente isolado Hemoculturas Anaerobiose Negativa Aerobiose Negativa Uroculturas Positiva Cultura do exsudado anal Proteus vulgaris Negativa p/ C. trachomatis Negativa p/ N. gonorrhoeae abdominal difusa, proctalgia, tenesmo intenso e mucorreia, cerca de 3 meses antes do internamento. Não apresentava febre, vómitos ou dejecções diarreicas. Esteve internado noutra instituição, onde foi realizado estudo etiológico com avaliação laboratorial que revelou aumento dos parâmetros inflamatórios e, avaliação imagiológica com TC abdominal, tendo-nos sido relatado um espessamento da parede da sigmoideia, recto e meso, com pequena quantidade de líquido inter-ansas. Foi colocada a hipótese diagnóstica de diverticulite aguda pelo que iniciou Ciprofloxacina em associação com Metronidazol sem que se verificasse melhoria clínica. Foi internado pelo Serviço de Urgência Central do nosso Hospital no Serviço de Gastroenterologia por agravamento da dor abdominal, tipo cólica e paragem de emissão de fezes. No momento da admissão apresentava-se hemodinâmicamente estável, apirético, com abdómen difusamente doloroso, sem reacção peritoneal. Analiticamente destacava-se: leucocitose (14,120 x 10^9/L), PCR aumentada (9,9 mg/dl) e anemia ferropénica (Hg: 12,5 g/dl; Ht: 37%; Ferro: 18 ug/dl; Sat. Transferrina: 9%; Cap. Fix. Ferro: 197 ug/dl). Foi colocada a hipótese diagnóstica de infecção viral a CMV pelo que o doente iniciou Prednisolona (60 mg/d ev), Messalazina tópica e oral e Ganciclovir, não se tendo verificado melhoria clínica ou analítica. A TC abdominal era sobreponível à anterior (Figura 1). A Colonoscopia total estendeu-se até à válvula ileocecal e revelou grave inflamação com edema intenso, úlceras superficiais e algumas mais profundas e zonas violáceas, sugestivas de necrose, desde cerca de 1 cm da linha pectínea até aos 25 cm. Extenso inducto esbranquiçado, grumoso. Conforme a Figura 2, a região rectal distal, menos exsudativa apresentava eritema e pseu- REVISTA PORTUGUESA DE COLOPROCTOLOGIA | JAN/ABR 2014 29 CASOS CLÍNICOS CLINICAL CASES n TABELA 2 n TABELA 3 Resultados das serologias. Resultados do estudo da autoimunidade. Serologias e Virologias Resultados Autoimunidade Valores de Referência Resultados Valores de Referência Virologia DNA-CMV Negativo Serologia Ac. Anti-DS-DNA Negativo Ac. Anti-nucleares (ANA) Negativo Ac. Anti-mitocondria (AMA) Negativo <200 Epstein Barr (VCA-IgG) Negativo Ac. Anti-musculo liso (ASMA) Negativo Epstein Barr (VCA-IgM) Negativo Ac. Anti-citoplasma (c-ANCA) Negativo <20 Ac. Anti-citoplasma (MPO) Negativo <20 Epstein Barr (EBNA-IgG) Negativo VHS1-IgG Negativo VHS1-IgM Negativo VHS2-IgG Negativo VHS2-IgM Negativo Anti-S.typhi (TO) Negativo Anti-S.typhi (TH) Negativo Anti-paratyphi A (AH) Negativo Anti-paratyphi B (BH) Negativo Negativo: < 1/100 Anti-C.pneumoniae - IgG Negativo Anti-C.pneumoniae - IgA Negativo Anti-C. trachomatis - IgG Negativo Anti-C. psittaci - IgG Negativo Anti-CMV (IgG) Positivo Anti-CMV (IgM) Negativo >11 dopólipos. Canal anal sem lesões óbvias. Resultado das biópsias efectuadas durante a colonoscopia: sugestiva de etiologia isquémica. Hemoculturas e serologias, negativas (Tabelas 1 e 2), bem como marcadores de autoimunidade, negativos (Tabela 3). Durante o internamento iniciou antibioterapia empírica com Meropenem e posteriormente com Metronidazol oral. Clinicamente manteve-se estável, apirético, mantendo obstipação grave, dor abdominal difusa, proctalgia e tenesmo. Perante a persistência do quadro clínico sub-oclu- sivo colocou-se a indicação de terapêutica cirúrgica. Realizada laparoscopia exploradora verificando-se intra-operatoriamente recto e sigmoidea distal com aspecto de isquémia grave transmural, parecendo não haver risco de perfuração e restante cólon de aspecto normal (Figura 3), pelo que se procedeu a colostomia de derivação, com imediata evolução favorável e resolução da sub-oclusão intestinal. O pós-operatório decorreu sem intercorrências com colostomia rapidamente funcionante e reintrodução da dieta oral com boa tolerância. Foi suspensa nesta altura, toda a medicação antipsicótica em curso, ficando medicado com Aripiprazol. Cerca de 6 meses após a cirurgia, foi realizada reavaliação endoscópica, que mostrou lúmen cólico estreitado da sigmoidea distal de forma regular e sem inflamação significativa (sem úlceras ou deformações). Proctossigmoidite ligeira de derivação (Figura 4). Cerca de 11 meses após realização de colostomia por via laparoscópica, foi efectuada a reconstrução do trânsito intestinal, tendo sido submetido a uma ressecção segmentar da sigmóide englobando a colostomia e recto intraperitoneal, por estenose cerrada que envolvia a sigmóide distal e recto proximal numa distância de 15 cm, com coloproctostomia termino-terminal com ILS29. O pós-operatório decorreu sem incidentes, encontrando-se o doente a tolerar alimentação oral e com trânsito intestinal mantido à data da alta, ao 11º dia pós-operatório. DISCUSSÃO O termo colite isquémica refere-se a um quadro 30 REVISTA PORTUGUESA DE COLOPROCTOLOGIA | JAN/ABR 2014 CASOS CLÍNICOS CLINICAL CASES Number of patients treated tinal é responsável pela instalação da necrose. A presença de uma mucosa isquémica torna-se um alvo de invasão pelos microorganismos bacterianos patogénicos, sobretudo anaeróbios, levando a um quadro de sépsis. O principal mecanismo para esta síndrome está FIGURA 2. Colonoscopia total. A) Acima da linha pectínea. relacionado com a acção antimuscarínica periférica B) Recto distal. C) Sigmoidea. dos antipsicóticos e particularmente das fenotiazinas (Figura 5), resultando numa diminuição do peristaltismo intestinal com consequente distensão cólica devido a estase estercoral. O aumento da pressão intraluminal conduz a isquemia da mucosa associada a tromboses dos capilares sub-mucosos. Este processo pode conduzir à perfuração, sendo esta a complicação mais temida. FIGURA 3. Laparoscopia exploradora. Colostomia de derivação. Outro mecanismo de acção possível, implica os efeitos dos antipsicóticos sobre a dopamina. Na verdade, a dopamina pode melhorar a perfusão mesentérica através dos seus efeitos vasodilatadores, quando administrada em doses FIGURA 4. Sigmoidoscopia: A) sigmoidea distal. B) Recto. C) Canal anal. reduzidas. A inibição de necrose intestinal parcial ou total do intestino desta vasodilatação mesentérica, como efeito andelgado e/ou cólon que apresenta a mucosa como tidopaminérgico dos antipsicóticos, poder desemponto de partida da progressão transmural. A penhar um papel adicional no desenvolvimento deterioração da microcirculação da parede intes- da isquémia intestinal. As propriedades antiserotoninérgicas de alguns antipsicóticos 16 15 também poderiam explicar as complicações 12 12 gastrointestinais. A 9 Olanzapina e Clozapina 8 têm um perfil de ligação 7 semelhante para sub4 4 tipos de receptores da 4 3 serotonina. Os efeitos 2 2 do bloqueio do recep1 1 1 1 1 1 1 0 tor 5HT3 incluem a l e e e e e e e e e o e e e ne de in id ne in in in id id on rid in in pi zin pi pr az zim lpiri id er lp pr az az ap i az a az a a a r za r i i u p o t x m z redução do peristaltismo e n e t o t T m l o is o lo Su Lo em Cl an sp he ro op po rp pr Su Ha Ri Am Ol Pi pr am or up ep Pe l l y o i F o m C intestinal, das secreções Th Ch vo Le Antipsychoties mucosas, da nocicepção e possivelmente da senFIGURA 5. Antipsicóticos mais frequentemente envolvidos na colite isquémica (imagem retirasibilidade intestinal à disda de Pharmacoepidemiology and drug safety 2009 – Antipsychotics-induced ischaemic colitis tensão. Estas propriedaand gastrointestinal necrosis: a review of the French pharmacovigilance database). des antiserotoninérgicas REVISTA PORTUGUESA DE COLOPROCTOLOGIA | JAN/ABR 2014 31 CASOS CLÍNICOS CLINICAL CASES da clozapina associadas ao seu efeito antimuscarínico, podem explicar, pelo menos em parte, o seu maior potencial para induzir necrose gastrointestinal grave. Por fim, uma possível explicação para a gravidade desta colite isquémica associada aos antipsicóticos e elevadas taxas de mortalidade é a sensibilidade alterada à dor dos doentes autistas. Este fenómeno é particularmente importante no presente contexto, dada a dor abdominal ser o principal sintoma relatado pelos doentes. O caso que apresentamos tem particularidades que dificultaram o diagnóstico, nomeadamente os achados iniciais da TC, de carácter inespecífico e comuns a qualquer processo do tipo inflamatório. A dificuldade diagnóstica da etiologia foi posteriormente acentuada pelas características encontradas na Colonoscopia, sugestivas de Doença inflamatória Intestinal. Apesar de diferido e por exclusão, foi obtido um diagnóstico atempado e, em nosso entendimento, adequadamente tratado com excelente resposta terapêutica. CONCLUSÕES - A proctossigmoidite isquémica é um quadro multifactorial que pode estar associado ao uso de medicamentos, nomeadamente antipsicóticos, estando mais comumente associada à classe dos fenotiazínicos e antipsicóticos atípicos como a clozapina e olanzapina. - O risco torna-se acrescido quando os antipsicóticos são administrados em associação aos anticolinérgicos. - Apesar de ser um efeito colateral raro da medicação antipsicótica, é importante considerá-lo, tendo em conta a potencial morbilidade e mortalidade associadas. - O tratamento inclui a suspensão da medicação suspeita da indução do caso clínico e eventual cirurgia. - No caso clínico apresentado a cirurgia em dois tempos permitiu a ressecção do segmento permanentemenre estenótico e reconstituição do trânsito intestinal. n BIBLIOGRAFIA 1. Pharmacoepidemiology and drug safety 2009; 18:948-955 2. Killingback MJ, Hoyd WK. Necrotizing colitis. Br J Surg 1962; 99:175 3. Van Der Linden T, Regdosz R, Cabaret P, et al. 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