QUARTA REGIÃO QUARTA REGIÃO R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 1-459, 2004 Ficha Técnica Direção: Desa. Federal Maria Lúcia Luz Leiria Assessoria: Isabel Cristina Lima Selau Chefia de Gabinete: Adriana Ardenghy da Rosa Coordenação: Eliane Maria Salgado Assumpção Análise e Indexação: Eliana Raffaelli Maria Lenice Pinheiro Bertoni Marta Freitas Heemann Revisão, Formatação e Layout: Maria Aparecida C. de Barros Berthold Maria de Fátima de Goes Lanziotti Rodrigo Meine Revista do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. – Vol. 1, n. 1 (jan./mar. 1990). – Porto Alegre: O Tribunal, 1990 – v. – Trimestral. ISSN 0103-6599 1. Direito – Periódicos. 2. Direito – Jurisprudência. 1. Brasil. Tribunal Regional Federal 4ª Região. CDU 34(051) 34(094.9) TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL 4ª Região Rua Otávio Francisco Caruso da Rocha, 300 CEP 90.010-395 - Porto Alegre - RS PABX: 0 XX 51-3213-3000 e-mail: [email protected] Tiragem: 750 exemplares QUARTA REGIÃO MARIA LÚCIA LUZ LEIRIA Desa. Federal Diretora da Escola da Magistratura TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL 4ª Região JURISDIÇÃO Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná COMPOSIÇÃO Em março de 2004 PLENÁRIO Des. Federal Vladimir Passos de Freitas - Presidente Desa. Federal Marga Inge Barth Tessler - Vice-Presidente Des. Federal Vilson Darós - Corregedor-Geral Des. Federal Nylson Paim de Abreu Desa. Federal Silvia Maria Gonçalves Goraieb Desa. Federal Maria Lúcia Luz Leiria - Diretora da Escola da Magistratura Des. Federal Élcio Pinheiro de Castro Des. Federal José Luiz Borges Germano da Silva Des. Federal João Surreaux Chagas - Vice-Corregedor-Geral Des. Federal Amaury Chaves de Athayde Desa. Federal Maria de Fátima Freitas Labarrère - Conselheira da Escola da Magistratura Des. Federal Edgard Antônio Lippmann Júnior Des. Federal Valdemar Capeletti Des. Federal Luiz Carlos de Castro Lugon - Conselheiro da Escola da Magistratura Des. Federal Tadaaqui Hirose Des. Federal Dirceu de Almeida Soares Des. Federal Wellington Mendes de Almeida Des. Federal Paulo Afonso Brum Vaz Des. Federal Luiz Fernando Wowk Penteado Des. Federal Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz Des. Federal Antônio Albino Ramos de Oliveira Des. Federal Néfi Cordeiro Des. Federal Victor Luiz dos Santos Laus Des. Federal João Batista Pinto Silveira Juiz Federal Celso Kipper (convocado) Juiz Federal Ricardo Teixeira do Valle Pereira (convocado) Juiz Federal Fernando Quadros da Silva (convocado) PRIMEIRA SEÇÃO Desa. Federal Marga Inge Barth Tessler - Presidente Desa. Federal Maria Lúcia Luz Leiria Des. Federal João Surreaux Chagas Des. Federal Dirceu de Almeida Soares Des. Federal Wellington Mendes de Almeida Des. Federal Antônio Albino Ramos de Oliveira Juiz Federal Ricardo Teixeira do Valle Pereira (convocado) SEGUNDA SEÇÃO Desa. Federal Marga Inge Barth Tessler - Presidente Desa. Federal Silvia Maria Gonçalves Goraieb Des. Federal Amaury Chaves de Athayde Des. Federal Edgard Antônio Lippmann Júnior Des. Federal Valdemar Capeletti Des. Federal Luiz Carlos de Castro Lugon Des. Federal Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz TERCEIRA SEÇÃO Desa. Federal Marga Inge Barth Tessler - Presidente Des. Federal Nylson Paim de Abreu Des. Federal Néfi Cordeiro Des. Federal Victor Luiz dos Santos Laus Des. Federal João Batista Pinto Silveira Juiz Federal Celso Kipper (convocado) Juiz Federal Fernando Quadros da Silva (convocado) QUARTA SEÇÃO Desa. Federal Marga Inge Barth Tessler - Presidente Des. Federal Élcio Pinheiro de Castro Des. Federal José Luiz Borges Germano da Silva Desa. Federal Maria de Fátima Freitas Labarrère Des. Federal Tadaaqui Hirose Des. Federal Paulo Afonso Brum Vaz Des. Federal Luiz Fernando Wowk Penteado PRIMEIRA TURMA Desa. Federal Maria Lúcia Luz Leiria - Presidente Des. Federal Wellington Mendes de Almeida Juiz Federal Ricardo Teixeira do Valle Pereira (convocado) SEGUNDA TURMA Des. Federal João Surreaux Chagas - Presidente Des. Federal Dirceu de Almeida Soares Des. Federal Antônio Albino Ramos de Oliveira TERCEIRA TURMA Desa. Federal Silvia Maria Gonçalves Goraieb - Presidente Des. Federal Luiz Carlos de Castro Lugon Des. Federal Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz QUARTA TURMA Des. Federal Amaury Chaves de Athayde - Presidente Des. Federal Edgard Antônio Lippmann Júnior Des. Federal Valdemar Capeletti QUINTA TURMA Des. Federal Néfi Cordeiro - Presidente Juiz Federal Celso Kipper (convocado) Juiz Federal Fernando Quadros da Silva (convocado) SEXTA TURMA Des. Federal Nylson Paim de Abreu - Presidente Des. Federal Victor Luiz dos Santos Laus Des. Federal João Batista Pinto Silveira SÉTIMA TURMA Des. Federal José Luiz Borges Germano da Silva - Presidente Desa. Federal Maria de Fátima Freitas Labarrère Des. Federal Tadaaqui Hirose OITAVA TURMA SUMÁRIO DOUTRINA ........................................................................................13 O Caixa dois Fábio Bittencourt da Rosa .......................................................15. O juiz e a tutela jurisdicional sanitária Marga Barth Tessler ................................................................25 O direito à vida (digna) frente às descobertas da engenharia genética Maria Lúcia Luz Leiria ...........................................................71 Os limites da coisa julgada na execução penal Élcio Pinheiro de Castro .........................................................91 Tribunal de Contas Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz ..................................99 ACÓRDÃOS.....................................................................................101 Direito Administrativo e Direito Civil....................................103 Direito Penal e Direito Processual Penal................................225 Direito Previdenciário.............................................................299 Direito Processual Civil..........................................................313 Direito Tributário....................................................................347 ÍNDICE NUMÉRICO........................................................................429 ÍNDICE ANALÍTICO.......................................................................433 ÍNDICE LEGISLATIVO...................................................................453 12 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 13-100, 2004 DOUTRINA R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 13-100, 2004 13 14 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 13-100, 2004 O caixa dois Fábio Bittencourt da Rosa* I. Introdução A conduta vulgarmente denominada caixa dois é representada ou pela divulgação ou manutenção de um sistema paralelo de contabilidade, ou pela movimentação de capitais sem registro na escrituração. No Brasil, o comportamento está tipificado como crime em duas leis. A Lei nº 7.492, de 16 de junho de 1986, que disciplina os crimes contra o sistema financeiro nacional, dispõe em seu artigo 11: manter ou movimentar recurso ou valor paralelamente à contabilidade exigida pela legislação. A Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990, que, entre outras coisas, tipifica os crimes de sonegação fiscal, estabelece em seu artigo 2º, inciso V: utilizar ou divulgar programa de processamento de dados que permita ao sujeito passivo da obrigação tributária possuir informação contábil diversa daquela que é, por lei, fornecida à Fazenda Pública. Trata-se de indagar, então, se a possível unidade do fato importa a existência de um concurso formal de delitos, ou se incide um dos princípios que regula o conflito aparente de normas penais, aplicando-se tão-somente uma das leis e, em caso positivo, qual delas. Inicialmente, porém, é importante que se esclareça o dimensionamento *Desembargador Federal do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 13-100, 2004 15 exato do elemento descritivo de cada um dos tipos antes transcritos, bem como o objeto da tutela, ou seja, o bem de vida protegido no âmbito da norma. II. Análise dos crimes A tipificação do caixa dois como crime de sonegação fiscal é constituída por dois núcleos no preceito: utilizar ou divulgar. Evidentemente, a simples divulgação do programa já caracteriza o delito, mas não implica movimentação de recursos, inexistindo lesão ao sistema financeiro. Portanto, só interessa aqui examinar o núcleo utilizar constante no inciso V do art. 2º da Lei nº 8.137/90. A utilização de modalidade escritural, capaz de esconder a realidade da movimentação de recursos de uma empresa, realidade essa que importa a caracterização de fatos geradores de tributos, logicamente frustra o controle formal da situação tributária, ensejando a garantia da redução ou da supressão do pagamento da tributação. A fiscalização não tem acesso aos dados reais, que revelariam os fatos imponíveis e, inexistindo o lançamento, opera-se a decadência ou a prescrição, extinguindo-se o crédito tributário. A tutela, pois, é da integridade do erário, indiretamente, e diretamente do poder fiscalizatório regular da Fazenda Pública. Vende-se o produto por determinado valor, contabilizando-se montante menor e, paralelamente, controla-se a quantia que não é dada a conhecer à fiscalização. O dinheiro fica guardado em cofres, normalmente trocado por dólares, tendo em vista a fragilidade da moeda brasileira, com perda imediata de valor, numa inflação que não é verdadeira apenas nos índices manipulados do governo. O caixa dois da Lei 8.137/90, portanto, não é caracterizado pela existência de um volume de dinheiro disponível, sem declaração ao Fisco, mas pela manutenção de um sistema contábil que viabiliza que isso ocorra. Em conclusão, o crime de sonegação fiscal, que o caixa dois caracteriza, causa lesão ao controle fiscal e à integridade do erário, cooperando para frustrar o pagamento dos tributos decorrente de outra conduta delituosa que opera a redução ou supressão de tributo. No crime contra o sistema financeiro nacional, o objeto da imputação é o fato de manter-se o dinheiro no cofre ou utilizá-lo como capital de giro. Disso decorre que o universo financeiro do país reduz-se, diminuindo o 16 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 13-100, 2004 acesso ao crédito, o que importa o decréscimo do desenvolvimento das atividades industriais e comerciais, comprometendo o progresso do país. A inteireza e o desenvolvimento normal das atividades financeiras mantêm um fluxo de riqueza, que pode ser manipulado por políticas estatais no sentido do crescimento em todas as áreas objeto da administração. A redução da disponibilidade no sistema financeiro, por tal modo, dificulta e encarece o crédito e diminui o fluxo do desenvolvimento. Quanto menos dinheiro estiver disponível, mais difícil é o acesso aos financiamentos com juros baixos. Em verdade, o caixa dois constitui também uma forma de concorrência desleal, porque é impossível competir com alguém que possui um custo barateado pela sonegação fiscal, quando os juros bancários para capital de giro estão em níveis insuportáveis. As perspectivas de sucesso empresarial do sonegador, indubitavelmente, são maiores. III. As variações na imputação A questão ora em exame comporta várias digressões, conforme a situação fática objeto da análise. 1ª) Pode ser praticada a fraude fiscal e obtido o lucro, que é mantido sob sigilo, por exemplo, guardado num cofre. Não há aí o crime do caixa dois como sonegação fiscal, porque não foi utilizado um sistema para controle paralelo dos montantes sonegados. Mas a omissão na escrituração, com a evasão fiscal, já caracteriza o tipo do caixa dois da Lei 7.492/86, pois o agente mantém os valores sem constar da contabilidade. Acaso o contribuinte altere uma fatura, sonegando o tributo, tipifica o art. 1º, inciso III, da Lei 8.137/90. O valor objeto da sonegação pode restar guardado, sem registro em contabilidade paralela. Aí, estaremos diante de dois crimes: sonegação fiscal e crime contra o sistema financeiro nacional (caixa dois). O caixa dois como crime de sonegação fiscal pressupõe a utilização de um sistema lateral de contabilidade, que garante o sigilo do resultado do crime de sonegação fiscal praticado por alguma das condutas previstas no art. 1º da Lei 8.137/90. Ocorre, porém, que tal sistema pode inexistir, mantendo-se apenas escondido o dinheiro objeto da supressão do tributo devido. R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 13-100, 2004 17 2ª) Se há a fraude fiscal, por exemplo, inserindo-se elementos inexatos na contabilidade oficial da empresa, guardando-se os valores e, em seguida, construindo-se uma contabilidade paralela, há concurso material de crimes. O agente responde pelo fato de falsear os livros fiscais do que resulta a supressão do tributo e, depois, pelo fato de materializar dados contábeis sigilosos com o fim de administrar os valores sem que se oportunize o conhecimento da autoridade fiscal. Na primeira situação, suprime-se o tributo. Na segunda, evita-se que o fato seja passível de fiscalização, encobre-se a ação delituosa anterior. São, portanto, duas situações fáticas diversificadas no tempo, o que caracteriza o concurso material de delitos. Impossível cogitar-se, aqui, de aplicação do princípio da consunção, que resolve o conflito aparente de leis penais, sob o argumento de que restaria consumido o antecedente ou o conseqüente. Quer dizer, o caixa dois somente teria o efeito de garantir a fraude fiscal e esta constituiria crime meio, o que esbarraria no fato de o caixa dois ter pena menor, não podendo consumir o crime maior. Mas, em tal hipótese, argumentar-se-ia que o caixa dois seria, então, mero exaurimento da fraude fiscal, restando por esta consumido. A tese encontraria óbice numa questão lógica. É que se o caixa dois constituísse simples exaurimento dos crimes de sonegação fiscal nunca poderia ser punido, quando o dinheiro tivesse resultado de crime tributário, o que afronta o bom senso diante da tipificação feita pela Lei 8.137/90. Somente tem cabimento manter uma contabilidade paralela para esconder do Fisco as operações que realizam fatos geradores de tributos e que são sonegadas com proveito para o contribuinte. Sempre por trás do caixa dois da Lei 8.137/90 há um crime de fraude fiscal. 3ª) Se a manutenção ou movimentação dos recursos, de maneira escondida, não caracteriza qualquer fato gerador de tributo, o crime único será o caixa dois da Lei 7.492/86, porque não terá havido supressão ou redução de tributo. O dinheiro simplesmente gira fora do sistema de controle formal do Banco Central, com lesão à integridade do sistema financeiro nacional. Essa constitui hipótese incomum, porque a regra é a de que o caixa dois derive de sonegação fiscal. 18 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 13-100, 2004 4ª) Pode acontecer que o indivíduo omita operação com conseqüente supressão do tributo, o que tipifica o art. 1º, inciso II, da Lei 8.137/90. Depois, lance o resultado em contabilidade paralela, enganando a vigilância fiscal, configurando o delito do art. 2º, inciso V, da Lei 8.137/90. Essa contabilidade paralela pressupõe a existência do fato de manter ou movimentar os recursos que significam o proveito da sonegação, o que tipificará o art. 11 da Lei 7.492/86. O caixa dois da sonegação e do crime financeiro expressam-se por um fato só do que se conclui que se trata de concurso formal. Todavia, a fraude fiscal materializa fato independente, resultando o concurso material. Assim, na hipótese figurada, há concurso material da sonegação fiscal com dois crimes de caixa dois que, por seu lado, materializam um concurso formal. Pode até acontecer que o agente vise apenas a consumar o caixa dois da Lei 8.137/90, mas o fato de manter ou movimentar os recursos sigilosamente já tipifica o caixa dois da Lei 7.492/86. Se não há dolo direto quanto a este delito, pelo menos haverá o dolo eventual. Isso, entretanto, é incomum, porque a regra é a de que haja a fraude fiscal, com proveito econômico, mantendo-se a contabilidade paralela e a movimentação dos recursos como capital de giro ou investimentos. Ambos os crimes do caixa dois serão consumados com dolo direto. 5ª) É impossível haver caixa dois da Lei 8.137/90, sob a forma do núcleo utilizar, sem que exista a tipificação do delito de caixa dois previsto na Lei 7.492/86, já que utilizar registro contábil paralelo pressupõe a posse ou a movimentação dos recursos que são objeto da escrita lateral. Por outro lado, parece claro que o crime do caixa dois da Lei 8.137/90, sob a forma utilizar, configura um crime habitual, ou seja, é necessário que existam várias operações no sistema paralelo de contabilidade para que se possa concluir pelo funcionamento de um sistema contábil ilícito. 6ª) Não existe concurso aparente de leis entre as duas espécies delituosas do caixa dois. Tratando-se de fato único há a tendência de confundir-se a hipótese. Observe-se que no concurso formal de uma unidade fática decorre mais de um resultado tipificado. A diferença com o chamado concurso impróprio, que é o conflito aparente de normas penais, se dimensiona pela utilização de um princípio, por cuja aplicação restará a R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 13-100, 2004 19 conseqüência de punir-se a conduta por um só dos crimes. Se o agente rouba não é punível por furto e roubo, porque este é norma especial. Acaso incida um dos princípios (subsidiariedade, especialidade ou consunção) não será reconhecido o concurso formal. Inicialmente, o caixa dois da Lei 7.492/86 pode existir sem que o antecedente seja sonegação fiscal. Basta que o valor vindo às mãos do detentor tenha sua existência sonegada ao Banco Central do Brasil. O bem jurídico tutelado em tal delito é a integridade do sistema financeiro nacional. Ao contrário, o caixa dois da Lei 8.137/90 lesa diretamente a vigilância fiscal e indiretamente o erário. Trata-se de bens de vida diversos. Logo, não havendo relação de subsidiariedade entre ambos os delitos, não sendo caso de norma especial ou de aplicação do princípio da consunção, que pressupõe tutela direta ou indireta da mesma espécie de bens, inexiste conflito aparente de leis. Resulta que haverá concurso formal entre as duas espécies de caixa dois. 7ª) Outra questão interessante diz respeito à tipificação do caixa dois previsto na Lei 8.137/90 no que se refere aos fatos geradores complexivos, isto é, aqueles que pressupõem uma extensão temporal para sua formação. O exemplo é o imposto sobre a renda. A riqueza tributável é demonstrada pelo conjunto de operações dentro de período determinado. Os lucros e as perdas, dentro desse espaço de tempo, determinam um cálculo do rendimento auferido. Se, nos limites de início e fim de tal período, acontecem omissões ou falsidades e utilização de contabilidade paralela para administrar o proveito do crime fiscal, não poderá falar-se em concurso de crimes, nem mesmo de crime continuado. É que a fraude fiscal somente acontecerá ao final do tempo formado do fato gerador complexo, ou seja, declarada a renda, de forma incorreta, frauda-se o Fisco e deixa-se de pagar o imposto devido. Somente aí existe o crime de sonegação, cuja manutenção segue facilitada pelo caixa dois. Então, em tal hipótese, o agente responderá pela sonegação fiscal em concurso material com o caixa dois da Lei 8.137/90. Durante o desenvolvimento do fato gerador complexivo todos os atos fraudulentos caracterizarão mera fase preparatória do crime de sonegação. Acaso, ao final do período, o empresário desista das sonegações objeto 20 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 13-100, 2004 do ardil no desenvolvimento das atividades empresariais do período de formação do fato imponível, e resolva declarar corretamente a renda, nenhum crime terá praticado, porque o conatus remotus (preparação) não é punível. Assim, se um fiscal depara com omissões escriturais dentro do período do fato gerador do imposto de renda, bem como com lançamentos contábeis laterais, não poderá o agente ser acusado de crime de sonegação do imposto de renda. Obviamente, se o fato puder implicar a evasão de outros tributos, de crime consumado se tratará. Assim, a sucessão de atos fraudulentos durante o período que integra o fato gerador complexo, caracteriza fato único do crime de sonegação fiscal, que se consuma no momento em que há a declaração do rendimento e a evasão tributária. Mas o caixa dois, sob o núcleo utilizar, como já se disse, é um crime habitual, concretizando-se pelos sucessivos lançamentos na contabilidade. Essa postura do agente realiza um fato somente, que faz subsumir o tipo respectivo. Desse modo, se durante três períodos de fatos geradores complexivos há omissões e falsidades na escrituração com finalidade de suprimir o imposto de renda, teremos em cada período um crime. Mas a sucessão no tempo, abrangendo três fatos geradores, determinará o reconhecimento do crime continuado. Entretanto, se a contabilidade paralela foi utilizada durante todos os períodos o crime de caixa dois é um só, concretizando-se a habitualidade do procedimento. Haverá sonegação fiscal continuada (três vezes) em concurso material com um delito de caixa dois, que na sucessão de atos terá exaurido sua habitualidade. 8ª) Uma outra questão interessante diz respeito à carga de reprovação da conduta delituosa. O ilícito se expressa em dois momentos. No primeiro, pelo desvalor da ação, em que são selecionados os comportamentos lesivos da harmonia no contexto social (matar, furtar, injuriar, etc). No segundo, pelo desvalor do resultado, quando pela quebra efetiva de tal harmonia se torna necessária a punição. A escolha pela conduta delituosa é objeto da reprovação, que constitui o elemento normativo principal da culpabilidade, que é desvalor do ânimo. Na vida em comunidade existe um conjunto de normas, que protegem valores objeto da cultura em determinado momento histórico (sistema neokantiano). Com seu caráter subsidiário, o Direito Penal tipifica certos 21 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 13-100, 2004 fatos como tutela de bens de vida, porque não há outra forma de evitar tal espécie de comportamento. Então, constitui dever do cidadão adequar-se ao modo existencial decidido pelo povo. Conduzir-se de acordo com a ordem jurídica satisfaz a expectativa do sistema. Do contrário, o sistema reage aplicando a pena, conforme a seleção procedida pelo critério de ilicitude. A culpa, portanto, consubstancia-se pela inadequação às regras de comportamento. O vício da vontade está na inadaptação da escolha do modo de vida do sujeito. Ora, o nível de reação penal, com o dimensionamento da pena, faz-se, num primeiro momento, que é o da cominação, com base no desvalor da ação. Quem for capaz de matar terá uma pena de reclusão, que varia de seis a vinte anos. É o mínimo e o máximo de censura. Num segundo momento, que é o da aplicação, examina-se o conteúdo do ânimo, concluindo-se sobre o quantum de exigência da conduta adequada ao Direito para fixar-se a sanção, operando-se a individualização. Quanto mais exigível um comportamento conforme a regra, maior será a gradação da pena. Quantifica-se a sanção com critério que guarda proporcionalidade com a reprovabilidade. A pena não pode ser maior nem deve ser menor do que o justo para ter eficácia. Quando se comina uma sanção, ou mesmo quando é ela aplicada, portanto, forçoso é respeitar os critérios acima referidos, sob pena de normatizar-se uma reprimenda injusta. Logo, seria inconcebível punir-se com pena maior a lesão corporal do que o homicídio, que tutela bem de maior valor. Da mesma forma, se as circunstâncias revelarem nível de exigibilidade em determinado grau, o mesmo tem de ser respeitado na aplicação da pena. A matéria penal atinente à sonegação fiscal, em nosso país, diante das considerações antes efetuadas, merece alguma reflexão. Costuma-se dizer que o Brasil é um dos países em que a tributação atinge um dos maiores níveis do mundo. Não porque o percentual, que se aproxima de 37% da riqueza, seja significativo, mas em virtude de que a inexistência de serviços públicos essenciais determina que não exista retorno na exação paga. A educação pública é ineficaz, obrigando as pessoas a colocar os filhos em escolas particulares. A segurança pública arrefeceu, exigindo que os guardas particulares cuidem dos condomínios e até mesmo das ruas de determinados bairros. Desse fato também decorre 22 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 13-100, 2004 a necessidade de prevenção através de seguros de empresas, de vida, residências, automóveis, etc. A saúde pública atende muito mal, ante o que as pessoas fazem planos de saúde com entidades privadas. A Previdência Social resolve o problema de classes de baixíssima renda, devendo as demais buscar prevenir o infortúnio por meio de entidades assistenciais de iniciativa privada. O crédito público inexiste, submetendo-se os investidores na produção aos juros bancários extorsivos, gerando lucros fantásticos aos banqueiros, quando o país passa por uma de suas piores fases. O Poder Judiciário vê-se assoberbado de trabalho, não havendo meios e pessoal habilitado e suficiente para dar conta da demanda, ante uma crise econômica em que ninguém renuncia a qualquer valor a que julga ter direito. Pagar, então, para quê? Esse é o sentimento que motiva uma redução significativa do desvalor da ação no crime tributário, calculando-se que a evasão ande por volta de 50% dos fatos geradores. Há quem afirme que sonegar caracteriza um ato de legítima defesa contra a voracidade fiscal. Por outro lado, o empresário que cumpre a lei invariavelmente é tragado pelo concorrente que sonega, mantendo um capital de giro barato. Sua produção, muitas vezes, depende do acesso ao crédito bancário, com juros elevadíssimos, que acabam por levar o empreendimento à bancarrota, porque é difícil produzir e lucrar o suficiente para manter os custos e solver a dívida bancária. O estímulo cultural ao reconhecimento do valor realizado pela norma do crime de sonegação fiscal cada vez diminui mais. A conseqüência é que a carga exigível de adequação da conduta à regra tem de restar diminuída. Obviamente, isso não pode implicar a descriminalização do comportamento do fraudador. Entretanto, deve influenciar na análise da culpabilidade a fim de verificar-se a existência de causa supralegal de inexigibilidade de conduta, ou mesmo de consideração da situação na circunstância judicial da culpabilidade na aplicação da pena (art. 59 do Código Penal) ou, por último, a viabilidade de o juiz reconhecer circunstância genérica atenuante na forma do art. 66 do Código Penal. É que existem os sonegadores ávidos do lucro e os que apelam para o expediente na tentativa de manter a produção. Basta uma análise pericial da situação do empreendimento para concluir-se por uma realidade ou outra, certamente podendo outras provas revelar desvio de valores, etc., R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 13-100, 2004 23 24 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 13-100, 2004 O juiz e a tutela jurisdicional sanitária Marga Barth Tessler* “Mas é de todo imprescindível que os Juízes se compenetrem de que interesses coletivos são tão ou mais importantes que os individuais” Ministro Sydney Sanches1 Abstract. This paper has been written as a study of the jurisditional sanitary tutorship analyzing the warranty of these rights by means of the act of the magistrate. It begins focusing on relevant articles int the Brazili 1988 Federal Constitution, considers the sanitary law and the topic of the “relevant public services” concept. It proceeds to analyze the jurisprudencial precedents and the perception of the juridical principles of the sanitary issue. Sumário. Introdução. 1 A tutela jurisdicional e o artigo 37 da Constituição Federal de 1988. 2 A tutela jurisdicional sanitária: os artigos 196 e 197 da Constituição Federal de 1988. 3 Juiz e o direito à saúde: a tutela promocional 4 O Juiz e a tutela jurisdicional no direito sanitário. 5 A postura do Juiz na tutela sanitária: propiciar encontro não adversarial das partes. 6 Os serviços de relevância pública. 7. A tutela jurisdicional e o alcance da expressão “serviço de relevância pública”. 8 O Juiz e a emoção. 9 Os princípios em matéria sanitária. 10 Princípios Específicos do Sistema SUS. 11 O Juiz e a compreensão jurídica dos princípios em matéria sanitária. Conclusão. Bibliografia. * Desembargadora Federal do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. 1 SANCHES, Sydney. O Poder Judiciário e a Tutela do Meio Ambiente. Revista Forense. São Paulo, n. 338, p. 93 e sgs. R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 13-100, 2004 25 Introdução A Constituição Federal de 1988 estabeleceu no artigo 1962 que “a saúde é direito de todos e dever do Estado”. Está, pois, o Estado “juridicamente obrigado a exercer as ações e serviços de saúde visando a construção de nova ordem social, cujos objetivos são o bem-estar e a justiça social, pois a Constituição dirige impositivamente essas tarefas”.3 O apreço pela saúde reflete a valorização da vida externada pelo temor da finitude. Por outro lado, os artigos 170 e 193 da Constituição Federal de 19884 estabelecem o bem-estar e a justiça social como objetivo da ordem social e econômica, sendo que o bem-estar configura antes “imagem-horizonte” do que objetivo concreto e realizável.5 Trata-se de um direito de segunda geração, observando-se a classificação de Bobbio, um direito social conforme consta do artigo 6º da Constituição Federal de 1988. O presente trabalho pretende contribuir para uma reflexão sobre a atividade do Juiz na tutela do direito sanitário. Inicia por verificar o comportamento prefigurado pelo artigo 37 da Constituição Federal de 1988, pois o Juiz exerce um dos poderes do Estado. Após examina o exigido do Juiz ao prestar tutela jurisdicional na jurisdição cível em geral, investiga sobre as qualidades e atitudes do magistrado para exercer a judicatura nas demandas envolvendo questões sanitárias que são de relevância pública. As demandas referentes ao direito à saúde têm sido freqüentes, tanto na jurisdição federal quanto na jurisdição estadual. Têm gerado perplexidade e dúvidas por parte dos magistrados e também entre aqueles obrigados a cumprir as decisões judiciais ou de alguma forma afetados por elas. Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. 3 TOJAL, Sebastião Botto de Barros. A Constituição Dirigente e o Direito Regulatório do Estado Social: O Direito Sanitário. In: ARANHA, Márcio Iorio; TOJAL, Sebastião Botto de Barros (orgs.). Curso de Especialização à distância em Direito Sanitário para membros do Ministério Público e da Magistratura Federal. Brasília-DF: Fiocruz, Universidade de Brasília, Escola Nacional de Saúde Pública, 2002. 4 Art. 193. A ordem social tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais. Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: 5 SCLIAR, Moacir. Do mágico ao social: a trajetória da saúde pública. Porto Alegre: L&PM, 1987. 111p. 6 ALVES SOBRINHO, Eduardo Jorge Martins. O SUS é do Brasil. Folha de São Paulo, São Paulo, 1º out. 2003. Médico sanitarista, coordenador da 12ª Conferência Nacional de Saúde. 2 26 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 13-100, 2004 Sem pretender esgotar a matéria, o trabalho aborda do ponto de vista da tutela jurisdicional alguns aspectos do direito sanitário, matéria decisiva para a construção de uma sociedade democrática, digna e justa. Na atualidade, não adianta repetir que o direito à saúde é um direito fundamental, pois o problema é concretizá-lo nos moldes em que estabelecido na Carta Política.6 A magistratura também é coobrigada, um dos agentes resolutivos dos problemas sanitários do direito à saúde, impondo-se, assim, um maior conhecimento da matéria. O presente estudo preocupa-se com a necessidade de municiamento do magistrado de conhecimentos setoriais para melhor partilhar a responsabilidade social da efetivação do direito à saúde. 1 A tutela jurisdicional e o artigo 37 da Constituição Federal de 1988 Como manifestação de um dos poderes do Estado, a atividade jurisdicional não está livre de cumprir o disposto no artigo 37 da Constituição Federal,7 pois a independência do Juiz e do Judiciário não quer dizer independência da sociedade ou irresponsabilidade social.8 A tutela jurisdicional é um dos modos de participação do Judiciário para a plena realização dos valores constitucionalmente consagrados. O Juiz, na concepção tradicional que inspirou o Código de Processo Civil, era imaginado como aplicador mecânico de leis preexistentes, atuando de forma objetiva e neutra. Essa visão alterou-se bastante com a superveniência da Constituição Federal de 1988 que levou o Brasil a integrar as democracias constitucionais. A Constituição e os valores ali consagrados vinculam o Juiz, transformando-o em garante e concretizador dos direitos individuais e coletivos. A nova organização do Poder, com o pluralismo crescente, a crise do Poder Legislativo, com as leis cada vez mais ambíguas, fruto de acordos setoriais, quando não surpreendido Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e a eficiência. 8 FACCHINI NETO, Eugênio. E o Juiz não é só de Direito. In: ZIMERMAN, David; COLTRO, Antônio Carlos Mathias. Aspectos Psicológicos da Prática Jurídica. São Paulo : Millennium. 2002. cap. 31. 9 FREITAS, Juarez. O Controle dos Atos Administrativos e os princípios fundamentais. 2. ed. São Paulo, Malheiros, 1997. 213 p. 10 DALLARI, Sueli Gandolfi. Direito Sanitário. In: ARANHA, Márcio Iorio; TOJAL, Sebastião Botto de Barros (orgs.). Direito Sanitário. Curso de Especialização à distância em Direito Sanitário para membros 7 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 13-100, 2004 27 por medidas provisórias, acabam deixando para o Juiz a tarefa de identificar, sistematizar,9 reconstruir a lei, atribuindo, no caso particular, o seu significado correto. O Juiz tem a Constituição Federal de 1988 como norte e com a lei estabelece uma nova relação, sendo a sentença sempre um construído. Acrescente-se, ainda, a constatação de que o Legislativo dividiu amplo espaço com o poder regulatório10 exercido pelo Executivo, de modo especial, nas questões sanitárias, onde os conceitos tradicionais e clássicos do “poder de polícia” são insuficientes. O direito regulatório inaugurou um novo paradigma, um novo marco a considerar, pois as agências reguladoras,11 tomando os conceitos genéricos da lei, passam a exercer exclusivamente a tarefa gerencial, fiscalizatória e regulatória. Por outro lado, a atividade dos Juízes tem sido objeto de exame e críticas pelos mais diversos ângulos. Destaco o exame feito por Armando Castelar Pinheiro12 que recomenda, para verificar a qualidade do Judiciário, observar-se a agilidade, a previsibilidade, a imparcialidade e o custo de acesso. Para o Banco Mundial, em relatório de 1997, os critérios para avaliar um bom Judiciário seriam a independência, a força para implementar suas decisões e a eficiência gerencial. Na área ambiental,13 em relação aos Tribunais Federais, “se manifesta a mesma tendência de dar maior atenção aos interesses individuais básicos da população, como condição de vida, moradia, saúde, do que de condições coletivas de preservação de um ambiente para a vida digna e saudável”. Freqüentemente, são criticadas as decisões judiciais que determinam baixas hospitalares e preferências para cirurgias ou tratamentos sem qualquer consideração com as prioridades médicas já eleitas e respeito pelos outros pacientes, igualmente doentes e necessitados, que aguardam do Ministério Público e da Magistratura Federal. Brasília-DF: Fiocruz, Universidade de Brasília, Escola Nacional de Saúde Pública, 2002. DIAS, Hélio Pereira. Direito Sanitário. Disponível em: www.anvs.com.br. Acesso em: 19 ago. 2003. Apresenta autos de infração sanitária de 1999/2003 e fundamentos sobre o poder regulatório das agências. 12 PINHEIRO, Armando Castelar. Economia e Justiça. Palestra na Febraban, jul. 2001. 13 CASTILHO, Manoel Lauro Volkmer. Interpretação Judiciária da Norma Ambiental. Apresentado no encontro de Direito Ambiental, em São Luís do Maranhão, 4 dez. 1997. 14 CAVALCANTI, José Andersen. As novas filas. Zero Hora, Porto Alegre, jul. 2003. 15 RABELLO, Ana. Acesso à Vida. Folha de São Paulo, São Paulo, 9 jan. 2003. VORMITTAG, Flávio. Compromisso com a vida. Folha de São Paulo, São Paulo, 18 dez. 2002. Opinião. 11 28 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 13-100, 2004 uma oportunidade “em verdadeira escolha dramática”.14 Os profissionais médicos são lançados a um dilema: para acatar a ordem judicial devem escolher o paciente que será preterido. Nesse quadro, o postulado constitucional da eficiência impõe ao magistrado a busca de um maior conhecimento15 sobre a matéria, caso contrário, no louvável propósito de contribuir com uma solução, pode acabar por desorganizar a prestação do serviço público de saúde. 2 A tutela jurisdicional sanitária: os artigos 196 e 19716 da Constituição Federal de 1988 Ao escrever pioneiramente sobre o tema, Wagner Balera refere17 que “do texto constitucional surgiu um direito subjetivo público que não pode ser negado a nenhuma pessoa, sob pretexto algum”. A Constituição Federal de 1988 foi a primeira carta política a reconhecer e assegurar o direito à saúde na sua dupla dimensão, isto é, como direito fundamental da pessoa humana18 e como direito social.19 A saúde é associada aos elementos vitais essenciais do indivíduo, de sua família e da sociedade.20 O fenômeno da “medicalização da vida” torna a questão do direito à saúde crucial na sociedade contemporânea. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal em algumas oportunidades entendeu que são normas constitucionais de eficácia limitada, Art. 197. São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado. 17 BALERA, Wagner. O Direito Constitucional à Saúde. Revista de Previdência Social, n. 134, jan. 1992. 18 Art. 5º, caput, da Constituição Federal de 1988. 19 Art. 6º da Constituição Federal de 1988. 20 TESSLER, Marga. O direito à saúde: a saúde como direito e como dever na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre, Revista do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. n. 40, p. 80-81, 2001. 21 “- Ação direta de inconstitucionalidade. Lei nº 8.149, de 07.05.92 (artigo 7º). - Esta Corte, ao julgar a Ação Direta de inconstitucionalidade nº 709, decidiu que a revogação do ato normativo impugnado ocorrida posteriormente ao ajuizamento da ação direta, mas anteriormente ao seu julgamento, a torna prejudicada, independentemente da verificação dos efeitos concretos que o ato haja produzido, pois eles têm relevância no plano das relações jurídicas individuais, não, porém, no do controle abstrato das normas. Ação direta não conhecida, por estar prejudicadas pela perda de seu objeto”. (ADI nº 737-8/DF, STF, Pleno, Rel. Min. Moreira Alves, julg. em 16.09.93, DJU de 22.10.93) nefício do inciso V do art. 203 da CF. Inexiste a restrição alegada em face ao próprio dispositivo constitucional que reporta à lei para fixar os critérios de garantia do benefício de salário mínimo à pessoa portadora de deficiência física e ao idoso. Esta Lei traz hipótese objetiva de prestação assistencial do Estado. 22 “Constitucional. Impugna dispositivo de Lei Federal que estabelece o critério para receber o be16 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 13-100, 2004 29 não gerando possibilidade de direito subjetivo judicializável. No aludido sentido, extraem-se considerações no julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade nos 737-8-DF21 e 1.232-DF.22 Há, contudo, decisões monocráticas que confirmam a dispensa de remédio ou tratamento específico, em especial, aos pacientes com HIV/AIDS.23 24 Os referidos precedentes, mesmo referindo-se à norma pragmática, entendem que Ação julgada improcedente” (ADI nº 1.232-1-DF, STF, Pleno, Rel. Min. Ilmar Galvão, julg. em 27.08.98, DJU de 01.06.2001). 23 Agravo Regimental no Recurso Extraordinário nº 27.1286/RS. Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 24.11.2000: “PACIENTE COM HIV/AIDS - PESSOA DESTITUÍDA DE RECURSOS FINANCEIROS - DIREITO À VIDA E À SAÚDE - FORNECIMENTO GRATUITO DE MEDICAMENTOS - DEVER CONSTITUCIONAL DO PODER PÚBLICO (CF, ARTS. 5º, CAPUT, E 196) - PRECEDENTES (STF) - RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO. O DIREITO À SAÚDE REPRESENTA CONSEQÜÊNCIA CONSTITUCIONAL INDISSOCIÁVEL DO DIREITO À VIDA. - O direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica indisponível assegurada à generalidade das pessoas pela própria Constituição da República (art. 196). Traduz bem jurídico constitucionalmente tutelado, por cuja integridade deve velar, de maneira responsável, o Poder Público, a quem incumbe formular - e implementar - políticas sociais e econômicas idôneas que visem a garantir, aos cidadãos, inclusive àqueles portadores do vírus HIV, o acesso universal e igualitário à assistência farmacêutica e médico-hospitalar. - O direito à saúde - além de qualificar-se como direito fundamental que assiste a todas as pessoas - representa conseqüência constitucional indissociável do direito à vida. O Poder Público, qualquer que seja a esfera institucional de sua atuação no plano da organização federativa brasileira, não pode mostrar-se indiferente ao problema da saúde da população, sob pena de incidir, ainda que por censurável omissão, em grave comportamento inconstitucional. A INTERPRETAÇÃO DA NORMA PROGRAMÁTICA NÃO PODE TRANSFORMÁ- LA EM PROMESSA CONSTITUCIONAL INCONSEQÜENTE. - O caráter programático da regra inscrita no art. 196 da Carta Política - que tem por destinatários todos os entes políticos que compõem, no plano institucional, a organização federativa do Estado brasileiro - não pode converter-se em promessa constitucional inconseqüente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado. DISTRIBUIÇÃO GRATUITA DE MEDICAMENTOS A PESSOAS CARENTES. - O reconhecimento judicial da validade jurídica de programas de distribuição gratuita de medicamentos a pessoas carentes, inclusive àquelas portadoras do vírus HIV/AIDS, dá efetividade a preceitos fundamentais da Constituição da República (arts. 5º, caput, e 196) e representa, na concreção do seu alcance, um gesto reverente e solidário de apreço à vida e à saúde das pessoas, especialmente daquelas que nada têm e nada possuem, a não ser a consciência de sua própria humanidade e de sua essencial dignidade. Precedentes do STF.” 24 Agravo Regimental no Recurso Extraordinário nº 255.627/RS. Rel. Min. Nelson Jobim. DJU de 21.11.2000: Saúde. Medicamentos. Fornecimento. Hipossuficiência do paciente. Obrigação do Estado. Regimental não provido. 24a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2.435-3/RJ, Rel. Minª Ellen Gracie Northfleet, Lei nº 3.542/2001RJ. Obriga farmácias a conceder desconto a idosos na compra de medicamentos. A Eminente Ministra indeferiu a liminar, entendendo ausente o periculum in mora e relevante o disposto no artigo 230, caput, da Constituição Federal de 1988. 25 Ação Civil Pública nº 2003.71.01.001434/RS, movida pelo Ministério Público Federal contra a Unimed, cooperativa médica, para impedir que a referida entidade privada cumpra regra estatutária de fidelidade 30 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 13-100, 2004 ela não pode se transformar em “promessa constitucional inconseqüente”. Acabam os precedentes a referir-se ao programa de distribuição de medicamentos, entendendo que esses últimos deram efetividade aos preceitos constitucionais. Seja como for, o Juiz não pode ignorar o apreço constitucional pelo direito à saúde. Não pode ignorar que o acesso aos serviços de saúde deve ser universal e igualitário, tanto para promoção e proteção, quanto para a recuperação ou cura de doenças. Há de considerar que deverão ser concebidas e implementadas políticas públicas sociais e econômicas para a redução do risco de doenças, isto é, devem ser implementadas atividades preventivas na questão sanitária. Por outro lado, a simples leitura do artigo 197 da Constituição Federal de 1988 dá a perceber a quebra do paradigma da rígida separação entre o público e o privado. Especificamente, nas questões envolvendo a saúde, a Constituição destacou a matéria por considerá-la de “relevância pública”. Temos, então, que a previsão de serviços e ações de saúde mesmo sendo prestadas por pessoa jurídica ou física de direito privado estão sujeitas à regulamentação, fiscalização e controle pelo Poder Público, e cuidados do Ministério Público.25 3 O Juiz e o direito à saúde: a tutela promocional É da imposição ao Poder Público “dispor nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle”, pelo artigo 197 da Constituição Federal de 198826 que se extrai o dever do Juiz de agir no referido âmbito, pois integra um dos poderes da República, o Poder Judiciário, como estabelecido pelo artigo 2o da Constituição Federal de 1988.27 institucional, isto é, seus filiados não poderiam se vincular a outras entidades privadas prestadoras de serviços médicos. Art. 197. São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado. 27 Art. 2º. São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. 28 Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. 26 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 13-100, 2004 31 O Juiz tem, pois, um dever próprio e qualificado de defender, garantir e concretizar os valores e princípios consagrados pelos artigos 196 e seguintes da Constituição Federal de 1988. O Judiciário é co-responsável pela concretização dos valores constitucionais. Na ADIn nº 1.689/PE, o Ministro Sydney Sanches ao referir-se ao artigo 22728 da Constituição Federal de 1988 mencionou que “dever do Estado” deve ser entendido no sentido amplo, abrangendo a União, os Estados e os Municípios. Diz a Constituição Federal de 1988, no artigo 196, que é dever do Estado, mediante políticas sociais e econômicas estabelecer atividades que reduzam o risco de doenças e outros agravos, e que as ações (artigo 198, inc. III) tenham a participação da comunidade.29 Daí extrai-se, sem necessidade de esforço, que a promoção de educação sanitária em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para o cuidado, proteção, preservação e construção do patrimônio social sanitário são tarefas de todos e também da magistratura. Além de direito humano fundamental, o direito30 à saúde é de ser garantido mediante políticas sociais e econômicas, estando o Estado juridicamente obrigado a exercer as atividades em prol da construção desta ordem sanitária, operacionalizando a relevante missão. Saliente-se que a saúde, esse direito de todos e dever do Estado, não tem só o aspecto individual, de alocação dos meios, não tem só o caráter prestacional, mas tem um inegável caráter coletivo. O direito sanitário como faz ver Sueli Gandolfi Dallari31 se interessa tanto pelo direito à saúde enquanto reivindicação de um direito humano, quanto pela saúde pública, compreendendo atividades reguladas pelo Processo nº 03.089032-2, 18ª Vara Cível, São Paulo, Ação Civil Pública, ajuizada pelo Ministério Público Estadual contra a Coca-Cola Indústrias Ltda., pedindo restrições publicitárias, advertências sobre abusividade. Ação julgada improcedente, em 1º grau, setembro de 2003, sob a ótica de que cabe à família o cuidado dos adolescentes. 30 TESSLER, Marga. op. cit. 31 DALLARI, Sueli Gandolfi. Direito Sanitário. In: ARANHA, Márcio Iorio; TOJAL, Sebastião Botto de Barros (orgs.). Curso de Especialização à distância em Direito Sanitário para membros do Ministério Público e da Magistratura Federal. Brasília-DF: Fiocruz, Universidade de Brasília, Escola Nacional de Saúde Pública, 2002. 32 Sobre o vasto campo do direito à saúde consultar Hélio Pereira Dias, Direito Sanitário, obra citada. 29 Sobre relações do direito sanitário com ramos do direito e ciências sociais, consultar Hélio Pereira Dias, obra citada. 33 SOARES, Guido Fernando Silva. O Direito Internacional Sanitário e seus temas: Apresentação de sua incômoda vizinhança. Revista de Direito Sanitário, São Paulo, LTR, v. 1, n. 1, nov. 2000. 32 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 13-100, 2004 direito público.32 Abarca, também, preocupação ética voltada para os temas da saúde e também tem uma dimensão internacional, o direito internacional sanitário.33 Assim como no direito ambiental, a questão sanitária não conhece ou respeita fronteiras, pelo menos no aspecto epidemiológico. Finalmente, o direito sanitário estabeleceu uma mudança de paradigmas no campo do direito. Para a sua definição, é necessária a discussão filosófica, sociológica e histórica como é indispensável agregar conhecimentos técnicos que efetivem o direito à saúde, fazendo-o sair da retórica e do papel. Os saberes e práticas da vigilância sanitária, por exemplo, situam-se num campo de convergência de várias áreas do conhecimento humano, tais como: a química, a farmacologia, a epediemiologia, a sociologia, a biossegurança, o planejamento e a engenharia, de todas o direito sanitário se alimenta e beneficia. Os juízes são, assim, partícipes ativos da tarefa de sensibilizar os estudiosos do direito para a temática do direito sanitário. O direito à saúde e a melhoria das condições de disponibilização das ações e serviços só se dará com o controle social e o esforço de todos.34 Freqüentemente, na atuação jurisdicional, são enfrentadas questões que envolvem uma dimensão relacionada ao direito à saúde. Nem sempre o viés sanitário é percebido e considerado no momento da decisão. Cito, por exemplo, na esfera tributária, quando o contribuinte hostiliza os tributos do elenco do artigo 195 da Constituição Federal de 1988, o pouco destaque dado à relevância social dos recursos para a saúde. Os argumentos dos tributaristas são desenvolvidos com exuberância de citações doutrinárias, ao passo que as advocacias públicas e fiscais não enfrentam a dimensão sanitária, limitando-se a dizer da constitucionalidade e legalidade das imposições. Gostaria de insistir nesse aspecto; a defesa fiscal, além da questão tributária e das peculiaridades que cercam as argumentações em torno da temática, deve assumir também a abordagem multidisciplinar da Aos estudantes em geral e na atividade promocional, recomendo a leitura de alguns livros que de alguma forma tocam a questão da saúde, são eles: “A Peste”, de Albert Camus; “Um Diário do Ano da Peste”, de Daniel Defoe; “Gripe”, de Gina Kolata; “O Físico”, de Noah Gordon; “Do Mágico ao Social: a trajetória da Saúde Pública”, de Moacir Scliar; “A Gripe Espanhola em São Paulo, 1918: Epidemia e Sociedade”, de Cláudio Bertolli Filho; “A História e suas Epidemias”, de Stefan Cunha Ujvari. A “Montanha Mágica”, de Thomas Mann (vejam que o Sanatório Berghof em Davos Platz, que nos 1900 abrigava doentes de tuberculose, hoje é hotel cinco estrelas e sedia a reunião do G7, capital internacional. 34 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 13-100, 2004 33 relevância pública da destinação dos recursos para a saúde, aprofundando a abordagem sistêmica. A questão dos recursos para a saúde pública é crucial, a defesa dos aludidos recursos e a sua correta e eficiente destinação são questões que não podem ficar estanques, isoladas, da defesa fiscal. A defesa do aspecto financeiro não pode ser isolada, será mais eficiente e convincente se for multidisciplinar e transversal, verificando todos os interesses em jogo. Não é raro observar que as forças políticas que mais reclamam da carga fiscal são também aquelas que exigem ações sofisticadas na saúde, o que demanda por recursos crescentes. Ainda na abordagem multidisciplinar, podemos lembrar que há questões ambientais que têm direto reflexo na saúde humana. A agricultura, em especial o manuseio de agrotóxicos, tem conseqüências muito sérias em relação à saúde. No meio ambiente do trabalho as questões sanitárias desempenham um importante papel. A defesa fiscal poderia ser mais incisiva na questão da destinação dos recursos. Ainda, a propósito do cumprimento das obrigações tributárias, tem sido relativamente fácil para o contribuinte omisso obter na via judicial a certidão negativa negada pela administração, alegando urgência em participar de licitações. Penso que a questão deveria ser avaliada de modo sistêmico, de molde a dar adequado cumprimento e prestígio ao disposto no § 3º do artigo 195 da Constituição Federal de 1988.35 Novos tratamentos médicos e remédios, ditos revolucionários são constantemente lançados no mercado a preços elevadíssimos.36 Os pacientes mais Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais: § 3º - A pessoa jurídica em débito com o sistema da seguridade social, como estabelecido em lei, não poderá contratar com o Poder Público nem dele receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios. 36 O exemplo que se pode lembrar é o do Interferon convencional ao custo de R$ 1.000,00 por mês, e o Interferon Peguilado, R$ 4.000,00, - paciente/mês (americano ou suíço). 37 Art. 195. § 5º. 38 Pet. nº 1246-SC, STF, Relator Ministro Celso de Mello. Verificar ali que o Ministro frente ao dilema do caso difícil, opta pelo respeito ao direito à vida, adjetivando o aspecto econômico de “interesse financeiro e secundário do Estado”. 39 Na ADIn nº 1.802-3, Medida Liminar em relação à Lei nº 9.532/97, movida pela Confederação Nacional de Saúde, Hospitais. O STF suspendeu diversos parágrafos dos arts. 12, 13 e 14, entendendo que a imunidade também abrange as aplicações financeiras das entidades de assistência social. 40 BAIXA remuneração gera graves problemas na saúde. Boletim da Organização Mundial da Saúde. Folha de São Paulo, São Paulo, 07 jul. 2002. Cotidiano. 35 34 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 13-100, 2004 bem-informados buscam as novidades junto aos serviços públicos. Na ausência de medicamentos mais avançados, recorrem ao Judiciário. A defesa do serviço público de saúde não costuma evidenciar preocupação com as “fontes de custeio correspondente” expressamente exigida pelo § 5º do artigo 195 da Constituição Federal de 1988.37 É bem verdade que o aspecto econômico vem sendo desconsiderado pelo Judiciário.38 39 A baixa remuneração do setor público aos funcionários da saúde, médicos, atendentes e prestadores de serviços é outra questão que não pode ser ignorada, é reconhecida inclusive em relatórios internacionais.40 É um problema estrutural e o Poder Judiciário não é legislador positivo, não lhe cabendo elevar salários ou preços de serviços, mas a questão deve ser considerada. É muito importante para as decisões no setor da saúde, uma ampla consideração de todos os interesses do jogo. Eis alguns dos problemas que levam a diferentes fórmulas para superá-los, muitas delas com ingresso na esfera penal. A cobrança pelos serviços que deveriam ser distribuídos gratuitamente,41 a oferta de serviços com cobrança “por diferença de classe” nas acomodações hospitalares, a venda de “senhas” O STJ no Conflito de Competência nº 31.367/RS entendeu que cabe à Justiça Estadual julgar delito de concussão praticado por médico conveniado ao SUS, nesse sentido também os precedentes CC nº 29.659/ SP, HC nº 15.427/MG, CC nº 26.818/RS, CC nº 29.304/RS. 42 EIAC nº 97.04.03324-9, DJ de 16.11.2000. Relatora Desa. Federal Maria de Fátima Freitas Labarrère, TRF-4ª Região. 43 Agravo Interno nº 70005257829. Relator Des. Wellington Pacheco Barros, julg. em 11.06.2003. Aparelho de surdez. Agravo Interno nº 70006338776. Relator Des. Wellington Pacheco Barros, julg. em 11.06.2003. Gastroplastia. Apelação Cível nº 70006456735. Relator Des. Wellington Pacheco Barros, julg. em 13.06.2003. Remédios. Apelação Cível nº 70006453302. Relator Des. Wellington Pacheco Barros, julg. em 13.06.2003. Remédios. Apelação Cível nº 70006415723. Relator Des. Wellington Pacheco Barros, julg. em 13.06.2003. Remédios. Apelação Cível nº 70006145734. Relatora Desa. Rejane Dias de Castro Bins, julg. em 24.06.2003. Agravo Interno de decisão monocrática nº 70006338743. Relator Des. Wellington Pacheco Barros, julg. em 18.06.2003. Agravo Interno de decisão monocrática nº 70006465512. Relator Des. Wellington Pacheco Barros, julg. em 18.06.2003. Agravo Interno nº 70006407704. Relator Des. Wellington Pacheco Barros, julg. em 11.06.2003. Agravo de Instrumento nº 70006477269. Relatora Desa. Matilde Chabar Maria, julg. 05.06.2003. Agravo de Instrumento nº 70005483754. Relator Des. Irineu Mariani, julg. em 04.06.2003. Agravo Interno nº 70006481931. Relator Des. Paulo de Tarso Vieira Sanseverino, julg. em 03.06.2003. Agravo de Instrumento nº 70006223085. Relator Des. Wellington Pacheco Barros, julg. em 03.06.2003. Agravo de Instrumento nº 70006481501. Relator Des. Wellington Pacheco Barros, julg. em 03.06.2003. 41 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 13-100, 2004 35 para consultas pelo SUS são alguns dos atos que prejudicam a prestação do serviço e merecem ser punidos na forma da lei. É equivocado dizer que a pretensão de internamento hospitalar com diferença de classe42 não acarreta prejuízo ao sistema. Na questão do fornecimento de medicamentos, é de reconhecer que o exitoso programa brasileiro que atende aos doentes de AIDS deve-se aos pedidos feitos ao Judiciário. O louvável propósito de dar efetividade ao “direito à saúde” há de pautar-se em Infusão insulina. Agravo de Instrumento nº 70006478606. Relator Des. Wellington Pacheco Barros, julg. em 03.06.2003. Agravo de Instrumento nº 70005489448. Relator João Carlos B. Cardoso. 30.05.2003. Agravo de Instrumento nº 70006254213. Relator Des. Paulo de Tarso Vieira Sanseverino, julg. em 29.05.2003. Apelação Cível nº 70005938766. Relator Des. Henrique Osvaldo Poeta Roenick, julg. 28.05.2003. Internação CTI. Rede particular. Apelação Cível nº 70005564331. Relator Des. Carlos Roberto Lofego Canibal, julg. em 28.05.2003. Apelação Cível nº 70005790597. Relator Des. Angelo Maraninchi Giannakos, julg. em 27.05.2003. Agravo de Instrumento nº 70005790720. Relatora Desa. Angela Maria Silveira, julg. 22.05.2003. Agravo de Instrumento nº 70006406516. Relator Des. Wellington Pacheco Barros, julg. em 22.05.2003. Impede estoque de medicamento. Agravo de Instrumento nº 70006394910. Relator Des. Wellington Pacheco Barros, julg. em 21.05.2003. Apelação Cível nº 70006291256. Relator Des. Wellington Pacheco Barros, julg. em 19.05.2003. Reexame Necessário nº 70005554696. Relator Des. Roque Joaquim Volkweiss, julg. em 19.05.2003. Apelação Cível nº 70005930300. Relator Luiz Ari Azambuja Ramos, julg. em 15.05.2003. Apelação Cível nº 70005940069. Relator Carlos Roberto Lofego Canibal, julg. em 14.05.2003. Agravo de Instrumento nº 70006288617. Relator Des. Wellington Pacheco Barros, julg. em 05.05.2003. Agravo de Instrumento nº 70006278576. Relator Des. Wellington Pacheco Barros, julg. em 02.05.2003. Agravo de Instrumento nº 70006266746. Relator Des. Wellington Pacheco Barros, julg. em 30.04.2003. p/ depressão. Apelação Cível nº 70004744330. Relator Eduardo Uhlein, julg. em 29.04.2003. Fraldas descartáveis. Agravo de Instrumento nº 70006220966. Relator Des. Wellington Pacheco Barros, julg. em 25.04.2003. Agravo de Instrumento nº 70006210629. Ação Civil Pública. Relator Des. Wellington Pacheco Barros, julg. em 24.04.2003. Apelação Cível nº 70006073407. Relatora Desa. Matilde Chabar Maria, julg. 24.04.2003. 36 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 13-100, 2004 comandos jurisdicionais antecedidos por alguma reflexão sob pena de insustentabilidade e desorganização do SUS. Dos trinta e sete precedentes envolvendo a matéria, originários do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul,43 observa-se a preocupação com o direito constitucionalmente assegurado. Não há unanimidade quanto ao ente público que estaria obrigado à prestação, sendo que a maioria dos julgados identificam o Estado, dispensando a presença do Município e da União. Alguns julgados (Apelação e Reexame Necessário nº 70006145734 e Agravo de Instrumento nº 70006477269) identificam solidariedade entre o município e o Estado e externam preocupação por serem os beneficiários pessoas que não podem pagar pelos medicamentos. A grande maioria dos precedentes não faz referências às condições econômicas do beneficiário e utiliza a denominação de marca do remédio, sem preocupação quanto a sua inclusão no rol dos medicamentos aprovados e relacionados para serem dispensados pelo sistema SUS. Um precedente – Apelação Cível e Reexame Necessário nº 700064567354 – determina o fornecimento de um quilo do medicamento excepcional a paciente terminal (TYR 1 MIX). Outro determina que município interiorano realize cirurgia de redução gástrica em paciente com obesidade mórbida, sendo esse procedimento de alta complexidade – Agravo Interno nº 70006338776 – não pondera sobre a capacidade técnica do hospital municipal para tal tipo de cirurgia. Dois precedentes: Agravo de Instrumento nº 70006481501 e Agravo de Instrumento nº 70006478606 chegam a especificar a marca comercial e a forma de apresentação do medicamento. Um precedente que na ementa não registra fundamentação esclarecedora – Apelação e Reexame Necessário nº 70005938766 – determina internação de um menor em CTI neonatal da rede particular, dizendo que há responsabilidade concorrente A liberalização, ou dispensa de requerimento ou pleito administrativo, especialmente em lista de espera para transplantes é altamente prejudicial aos serviços do SUS. 45 É COMO cuidar dos dentes. Folha de São Paulo, São Paulo, 7 jul. 2002. Juventude e diabetes. 46 EIAC nº 97.04.03324-9. Segunda Seção. Rel. Desa. Federal Maria de Fátima Freitas Labarrère, julg. 11.10.2000. AI nº 2001.04.01.065844-4/RS. Rel. Des. Federal Valdemar Capeletti, julg. em 31.10.2001. AC nº 2000.71.02.004963-1/RS. Rel. Juíza Convocada Taís Schilling Ferraz, julg. em 30.04.2002. AC nº 2001.04.01.017390-4/RS. Rel. Juiz Convocado Joel Ilan Paciornik, julg. em 27.06.2002. AC nº 2002.04.01.030787-1/SC. Rel. p/acórdão Desa. Federal Marga Barth Tessler, julg. em 26.11.2002. AI nº 2002.04.01.053975-7/SC. Rel. Des. Federal Edgard Lippmann, julg. em 12.03.2003. AI nº 2002.04.01.051764-6/SC. Rel. Des. Federal Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz, julg. em 01.04.2003. 44 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 13-100, 2004 37 do Estado. O precedente – Apelação Cível nº 7000594006944 – libera o administrador da via administrativa sanitária, desde que haja urgência, determinando a realização do exame “cariótipo de medula óssea”. O precedente – Apelação e Reexame Necessário em Mandado de Segurança nº 70004744330 – determina o fornecimento de fraldas descartáveis, em mandado de segurança, considerando ilegal a atitude do gestor ao negar o fornecimento periódico pretendido. O precedente – Agravo de Instrumento nº 70006223085 – determina o fornecimento de bomba de infusão de insulina de altíssimo custo, não justifica a não-utilização do tratamento dispensado pelo SUS, que é de insulação manual e rotina de cuidados e alimentação adequada.45 No âmbito do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, na busca de precedentes mais recentes foram localizados vinte e quatro precedentes46 dos quais se extrai que, de regra, não é feita qualquer consideração com a manutenção e sustentabilidade do Sistema SUS. Apenas em dois precedentes há preocupação com o Sistema SUS: AMS nº 96.04.12870-1/RS e AMS nº 96.04.08470-4/ AI nº 2003.04.01.012715-0/SC. Rel. Desa. Federal Maria de Fátima Freitas Labarrère, julg. 10.06.2003. AI nº 97.04.57545-9/SC. Rel. Desa. Federal Silvia Goraieb, julg. em 09.12.97. AC nº 98.04.01.049127-5/SC. Rel. Desa. Federal Marga Barth Tessler, julg. em 18.05.2000. AC nº 96.04.44292-9/RS. Rel. Juíza Convocada Vivian Josete Pantaleão Caminha, julg. em 28.09.2000. AC nº 97.04.30970-8/PR. Rel. Juiz Convocado Alcidez Vettorazi, julg. em 05.12.2000. AI nº 2002.04.01.054432-7/SC. Rel. Des. Federal Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz, julg. em 08.04.2003. AI nº 2003.04.01.002488-9/SC. Rel. Des. Federal Valdemar Capeletti, julg. em 30.04.2003. AI nº 2001.04.01.076578-9/RS. Rel. Desa. Federal Maria de Fátima Freitas Labarrère, julg. em 10.06.2003. AI nº 2003.04.01.008122-8/SC, Rel. Des. Federal Valdemar Capeletti, julg. em 25.06.2003. AMS nº 95.04.55941-7/RS. Rel. Desa. Federal Marga Barth Tessler, julg. em 02.05.96. AMS nº 96.04.08470-4/RS. Rel. Des. Federal Surreaux Chagas, julg. em 17.10.96. AMS nº 96.04.12870-1/RS. Rel. Des. Federal José Germano da Silva, julg. em 25.08.98. AC nº 97.04.70152-7/PR. Rel. Des. Federal Surreaux Chagas, julg. em 09.05.2000. AGA nº 2003.04.01.019192-7/RS. Rel. Desa. Federal Marga Barth Tessler, julg. em 17.06.2003. É triste a lembrança da questão da Talidomida e de seus efeitos. A ação que tramitou na 4ª Região resultou, após longos anos, em acordo no qual a União, e não os laboratórios, assumiu o pensionamento das vítimas. 47 38 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 13-100, 2004 RS. O precedente julgado por maioria pela Segunda Seção – EIAC nº 97.04.03324-9/SC – considerou viável internação pelo SUS em quarto individual com pagamento da diferença. É prestigiada a pretensão individual do segurado em detrimento do prestígio e unidade do sistema. No precedente AI nº 2001.04.01.065844-4/RS, sob enfoque de que a União ocupa lugar de liderança no SUS, o ente federal foi condenado a comprar remédio experimental no exterior, houve a redução apenas de multa por descumprimento. Não costuma haver considerações em torno dos limites na dispensação de remédios, considerando-se impossível, ou sequer considerando, a substituição de medicamentos ou dispensação de medicamento genérico. No precedente AC nº 2000.71.02.004963-1/RS, a União foi condenada a fornecer Talidomida para tratar mieloma múltiplo, não havendo qualquer consideração com os motivos pelos quais o remédio não foi acolhido para dispensação pelo SUS.47 No precedente AC nº 2001.04.01.0173904/RS, a União foi condenada a ressarcir tratamento emergencial em hospital particular, na omissão do SUS. O segundo internamento não foi ressarcido, pois não houve prova da omissão do serviço público. No precedente AC nº 2002.04.01.030787-1/SC não é prestigiada pretensão de medicamento para AIDS fora daqueles fornecidos pelo SUS, já no AI nº 2002.04.01.051764-6/SC é prestigiado o pedido de remédio para AIDS não previstos pelo programa brasileiro e não constantes da lista oficial. Na generalidade dos casos, não há referência à Lei nº 9.313/96 que trata da distribuição gratuita de medicamentos. O que chama atenção é o fato de que dos precedentes que buscam medicamentos, há grande número originário do Estado de Santa Catarina, levando a pensar que a dispensação de medicamentos pelo SUS deve lá apresentar dificuldades maiores do que nos demais Estados que compõe a 4ª Região. Na AC nº 2002.04.01.000610-0/PR, a questão sanitária foi considerada para impor obrigatoriedade de correta rotulagem de bebidas alcoólicas,48 com amparo no Código do Consumidor, e na AC nº 2002.04.01.000611-1/PR foram a União e a Associação dos fabricantes de alcoólicos condenadas a orientar os consumidores sobre os malefícios do álcool. Fundamentou-se na lei MOMBERGER, Noemi Friske. A publicidade dirigida às crianças e adolescentes. São Paulo: Memória Jurídica, 2002. 48 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 13-100, 2004 39 e em políticas públicas. A comercialização de medicamentos foi objeto de manifestação do Tribunal Regional Federal da 4ª Região no Agravo na SEL nº 2002.04.01.057409-5/RS, em que demandavam a Anvisa e dois laboratórios em torno de fármaco similar registrado pela Anvisa em alegado descumprimento da lei de regência – Lei nº 9.279/96 e Lei nº 9.787/99. Em primeiro grau de jurisdição, a questão foi exaustivamente considerada e em exame do pedido de suspensão de liminar, a maioria do Tribunal entendeu pela desnecessidade dos testes de eficácia e segurança e considerou que não havia prova da produção de malefícios. A questão é bastante interessante, pois envolve não só o interesse de dois laboratórios, o interesse da Anvisa, mas o interesse difuso da coletividade que tem o direito de esperar ser tratada com medicamentos seguros e eficazes. A presença em licitação de medicamentos com deficiências no registro já fora decidida pela 3ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região na AMS nº 2001.71.02.000391-0/RS, em que se decidiu pela legalidade de Hospital Público licitar genéricos, afastando os meros similares. Embora não-freqüente, há dois precedentes: AC nº 2002.04.01.023372-3/RS e AC nº 2000.04.01.069999-5/SC, envolvendo pretensão de Municípios, no sentido do repasse direto da CPMF, sem a reunião dos recursos no Fundo Nacional de Saúde. A pretensão foi desacolhida por desrespeitar os princípios que sustentam o sistema. Em um precedente – Apelação na Ação Civil Pública 2001.71.00.026279-9/RS49 – em que se pediu o custeio pelo SUS de cirurgias de mudança de sexo, a liminar não foi concedida, tendo o órgão ministerial desistido da ação. A fundamentação do acórdão, embora reconheça a difícil situação dos portadores de identidade sexual em desacordo com as características físicas, considerou que não havia urgência em incluir tais cirurgias experimentais, sob a responsabilidade do SUS, mormente considerando que os recursos são insuficientes e os enfermos graves em grande número. Relatora Desa. Federal Luiza Dias Cassales. Relatora para o acórdão. Tanto o voto vencido – Desa. Federal Maria de Fátima Labarrère – quanto o vencedor são excelentemente fundamentados em princípios aplicáveis a matéria. 50 FIORILLO, Celso Antônio Pacheco et al. O Direito Processual Ambiental. Belo Horizonte: Del Rey, 1996. 51 Ação Civil Pública nº 2003.81.00.009206-7/CE, TRF-5ª Região. Objetiva a transferência de pacientes necessitados de UTI para hospitais públicos ou particulares, conveniados ou não. 52 LIMA, George Marmelstein. Direto à saúde: garantia de sua efetividade pelo Poder Judiciário. Boletim dos Procuradores da República, a. V, n. 59, mar. 2003. 49 40 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 13-100, 2004 4 O Juiz e a tutela jurisdicional no direito sanitário A matéria sanitária trará certamente a segunda mudança de paradigmas por parte da magistratura. A primeira mudança de paradigma deu-se com o direito ambiental.50 A patrimonialidade e a identificação de interesses pessoais deixam de ser critérios seguros para a solução das controvérsias. Além do direito público subjetivo à saúde, isto é, o acesso aos serviços e ações relativas à saúde, há sempre uma dimensão coletiva a considerar, isto é, os serviços e ações devem ser de acesso universal e igualitário no que se refere aos serviços públicos (arts. 194 e 198 da Constituição Federal de 1988). No que se refere aos serviços privados (arts. 197 e 199, § 10, da Constituição Federal de 1988), que participam de forma complementar do SUS, poderão ser chamados a cumprir a função social51 (arts. 170 e 5º, incisos XXIV e XXV, da Constituição Federal de 1988). Percebe-se nas questões sanitárias, em especial, quando veiculadas por meio da Ação Civil Pública, a insuficiência do Código de ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil. 3. ed. Madrid: Trotta, 1999. p. 13 e 16. Diz o professor italiano: “As sociedades pluralistas atuais – isto é, as sociedades marcadas pela presença de uma diversidade de grupos sociais com interesses, ideologias e projetos diferentes, mas sem que nenhum tenha força suficiente para fazer-se exclusivo ou dominante e, portanto, estabelecer a base material da soberania estatal no sentido do passado – isto é, as sociedades dotadas em seu conjunto de um certo grau de relativismo, conferem à Constituição não a tarefa de estabelecer diretamente um projeto predeterminado de vida em comum, senão a de realizar as condições de possibilidade da mesma”. “No tempo presente, parece dominar a aspiração a algo que é conceitualmente impossível, porém altamente desejável na prática: a não-prevalência de um só valor e de um só princípio, senão a salvaguarda de vários simultaneamente. O imperativo teórico da não-contradição – válido para a scientia juris – não deveria obstaculizar a atividade própria da juriprudentia de intentar realizar positivamente a ‘concordância prática’ das diversidades, e inclusive das contradições que, ainda que assim se apresentem na teoria, nem por isso deixam de ser desejáveis na prática. ‘Positivamente’: não, portanto mediante a simples amputação de potencialidades constitucionais, que conduzam os princípios constitucionais a um desenvolvimento conjunto e não a um declínio conjunto”. 54 SCHWARTZ, Germano André Doederlein. Direito à saúde: efetivação em uma perspectiva sistêmica. Porto Alegre : Livraria do Advogado, 2001. 223 p. 55 DALLARI, Sueli Gandolfi. Organização jurídica da administração pública em saúde. In: ROZENFELD, S. (Org.). Fundamentos da Vigilância Sanitária. Rio de Janeiro, Fiocruz. 56 AZEVEDO, André Gomma de. O Processo de Negociação: uma breve apresentação de inovações epistemiológicas em um meio autocompositivo. In: ARANHA, Márcio Iorio; TOJAL, Sebastião Botto de Barros (orgs.). Curso de Especialização à distância em Direito Sanitário para membros do Ministério Público e da Magistratura Federal. Brasília-DF: Fiocruz, Universidade de Brasília, Escola Nacional de Saúde Pública, 2002. 57 ALVIM, Arruda. Direito do Consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992, v. 2. 53 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 13-100, 2004 41 Processo Civil, sendo urgente a criação do Código de Processo Coletivo. Ninguém mais do que o Juiz observa e fica perplexo com as questões que a prática oferece. Sempre há a necessidade de articular a lei processual com o Código do Consumidor e a Lei da Ação Civil Pública, de molde a oferecer uma solução razoável e prudente,52 pois é o Juiz quem concede consistência e unidade coerente ao Direito. É no direito sanitário que há crescente necessidade de observar a lição de Gustavo Zagrebelsky,53 no sentido de que os juízes são os garantes da complexidade estrutural do direito, garantes da necessária coexistência entre regulação, lei, direito e justiça e de salvaguardar a todos simultaneamente. No Estado Constitucional, não há mais “senhores do direito”, o direito não é objeto de propriedade de uns, mas deve ser objeto de cuidado de todos. Especialmente na saúde onde se trata de “competência comum, sendo tarefa de todos os entes estatais”.54 55 5 A postura do Juiz na tutela sanitária: propiciar encontro não adversarial das partes56 Nas ações civis públicas, em especial quando voltada à tutela sanitária, o ideal é abandonar o excessivo formalismo,57 abrandando o princípio dispositivo ou da inércia. Tratando-se de direitos difusos, a legitimidade e o interesse frente a uma demanda ganham alargado enfoque. Em se tratando de demanda individual, fornecimento de medicamento, baixa hospitalar, preferência para cirurgias, sempre há um elemento difuso a considerar, observando-se o acesso universal e igualitário. Sem deixar de oferecer às partes litigantes o devido processo legal, quanto menos “igual” for o posicionamento das partes no processo, mais acentuados devem ser os poderes do Juiz. O Juiz não pode ser um “mero espectador” do litígio, mas, na inércia das partes, determinar as provas necessárias ao seu esclarecimento, fazendo com que todos os direitos, não só o “ter”, mas também o “ser”, os direitos não-patrimoniais, em especial os relativos à vida, à saúde, ao ambiente e ao consumo seguro tenham uma tutela efetiva. Nas demandas individuais, ações que, em futuro próximo, estarão sendo decididas exclusivamente pelos Juizados, é de vital importância considerar sobre a situação individual do postulante, no sentido de verificar o histórico médico do paciente, pedir o prontuário, tratar de saber se é usuário do SUS ou segurado privado que demanda do SUS providência 42 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 13-100, 2004 especial que o plano de saúde privado não cobre. É fundamental também verificar quais os medicamentos ou procedimentos são disponibilizados pelo serviço público de saúde e verificar da real necessidade do pedido feito. Não é possível desconhecer o trabalho de publicidade empreendido pelos laboratórios e indústrias de fármacos junto à classe médica. São oferecidos patrocínios e financiamento de pesquisas, o que pode levar os profissionais a uma preferência por alguma marca de medicamento. Por outro lado, há um novo aspecto a considerar, os laboratórios procuram agora influenciar os próprios pacientes, financiando grupos de portadores de doenças crônicas. Os conselhos de saúde também começam a ser alvo de investidas publicitárias. Vemos, então, que não podemos desconhecer as diversas forças que interagem no setor. Por outro lado, para que a tutela sanitária seja efetiva, há de ser o quanto possível célere. Evitar, assim, o discurso burocrático do “diga diga” quando quem tem o dever de decidir é o Juiz. O Juiz para bem decidir as questões sanitárias há de observar a idéia de que são de relevância pública as ações e serviços de saúde e de que a função social da propriedade, no que se refere aos serviços privados, só é cumprida quando atendida a perspectiva social. Tanto na jurisdição tradicional, quanto nos juizados, e nesses especialmente, é fundamental uma tentativa de acordo. Nos juizados de pequenas causas muitas questões podem ser resolvidas com um acordo após o esclarecimento das partes. Cabe ao Juiz propiciar essa possibilidade, interessando-se em concretizá-la. Diante das crises Em relação às obrigações dos exercentes de cargos públicos, em especial, Prefeitos, descumprem o dever referente à saúde pública com apenas a compra de uma ambulância ou a contratação de ônibus para levar os doentes para a Capital ou município vizinho. Pelo menos uma “UMI” o município deve oferecer. Verificar ainda denúncias sobre a “ambulancioterapia”, promovida por prefeituras feita pelo jornal Zero Hora, edições de 16 e 17 de outubro de 2003. 59 O postulado da “Reserva do Possível” é originário do direito alemão, ver FGE n. 33, 9.333 e, resumidamente, consiste em que o indivíduo só pode requerer do Estado prestação no limite do razoável. 60 Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público: ... II - zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia; 61 Art. 197. São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado. 62 GANDOLFI, Sueli Dallari. O conceito constitucional de Relevância Pública. Brasília, Direito à Saúde, n. 1, Organização Panamericana da Saúde, 1994. 58 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 13-100, 2004 43 na jurisdição, crises de incerteza e crises de descumprimento que podem comprometer o prestígio da Justiça, o que fazer? Diante da primeira, a palavra-chave é prevenir contra o risco, o princípio da precaução. Na crise de descumprimento, impõe-se como cautela própria não ultrapassar as possibilidades fáticas do obrigado. A determinação de um ato pressupõe força suficiente para fazê-lo cumprir. A “reserva do possível” tem sido o postulado usado com maior freqüência pelo obrigado para eximir-se em relação a determinações judiciais.58 A defesa ou a negativa há de ser examinada caso a caso, e no exame dos motivos, o juiz avaliará criticamente as alegações, que devem ser consistentes, contudo, a pretensão, penso eu, deve estar de acordo com a nossa realidade social.59 6 Os serviços de relevância pública O artigo 129, inc. II, da Constituição Federal de 198860 estabelece que o Ministério Público deve zelar pelo efetivo respeito aos serviços de relevância pública. Já o artigo 197 da Constituição Federal de 198861 identifica os serviços de saúde como serviços de relevância pública. O que são, no que consiste, qual o conceito constitucional da expressão “relevância pública”. Em torno do assunto, o Núcleo de Pesquisa de Direito Sanitário da Universidade de São Paulo, sob a coordenação científica da Profa. Sueli Gandolfi Dallari62 ofereceu estudos sobre o tema que não tinha tradição nos meios jurídicos brasileiros. O Professor Eros Roberto Grau63 concluiu que não se superpõem os conceitos de serviço público e de serviço de relevância pública. Serviço de relevância pública é predicado axiológico (conceito) que abrange todos os serviços públicos, todas as coisas, estados ou situações a que se aplica o conceito de serviço público e alguns serviços do setor privado, atividade econômica. A definição constitucional dos serviços de saúde como serviços de relevância pública tem o efeito de apenas os incluir sob os cuidados do Ministério Público. Luis Alberto David Araújo, por ocasião dos estudos referidos, abordou o conceito de relevância pública na Constituição Federal, a GRAU, Eros Roberto. O conceito de Relevância Pública na Constituição Federal de 1988. Brasília, Direito à Saúde, n. 1, Organização Panamericana da Saúde, 1994. 64 CAPPELLETTI, Mauro. Tutela dos interesses difusos. Trad. Tupinambá Pinto de Azevedo. AJURIS, Revista da Associação de Juizes do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, n. 33, p. 169-182, mar. 1985. 63 44 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 13-100, 2004 partir da identificação de vetores interpretativos. Diz ele que algo pode ser relevante sem ser principiológico, mas, com certeza, tudo o que é principiológico é relevante. Conclui que há necessidade de integração do Ministério Público com às áreas técnicas ligadas à saúde pública. Antônio Augusto Camargo Ferraz e Antônio Herman Benjamin analisam o emprego do conceito de relevância pública e estabelecem o significado semântico dos vocábulos relevância e público. Concluem que a rigor não se justificaria a antinomia entre interesse do Estado e o interesse da comunidade. Realizam uma aproximação com a contraposição entre público e social nos casos de desapropriação. A lembrança é pertinente, pois a desapropriação por interesse público, isto é, os casos de utilidade pública e necessidade pública foram fundidos pelo Decreto-Lei nº 3.365/41, sob a denominação de utilidade pública. Com a Constituição de 1946 é que foi prevista a desapropriação por “interesse social”. A utilização do então novo conceito de interesse social acabou se expandindo com o passar do tempo, fundamentando novos casos de possibilidade expropriatória. Salientam os autores por último citados a quebra da dicotomia entre o público e o privado, e de que na sociedade contemporânea o brocardo tertium non datur não mais reflete a realidade dos fatos. Com razão, o conceito constitucional de “serviços de relevância pública” é um conceito sobreposto, podendo abarcar tanto o público quanto o privado. Mauro Cappelletti,64 ao lecionar sobre a tutela dos interesses difusos, refere que entre o público e o privado surgiu um mundo preenchido pelos direitos metaindividuais e é justamente essa idéia que se aproveita para dizer que o conceito de “serviço de relevância pública” se sobrepõe ao conceito de serviço público e pode avançar sobre os serviços privados, alçados com esse matiz aos cuidados do Ministério Público. Não é um conceito ou idéia acabada ou definitiva, mas um conceito em construção, segundo alguns estudiosos, um “princípio garantia”.65 ROCHA, Júlio César de Sá da. Direito à Saúde - Direito Sanitário na Perspectiva dos Interesses Difusos e Coletivos. São Paulo: LTr, 1999. 66 GRINOVER, Ada Pellegrini. Ações coletivas ibero-americanas: novas questões sobre a legitimação da coisa julgada. Revista Forense, Rio de Janeiro, v. 361. Doutrina. 67 Ação Civil Pública nº 2003.70.00.043380-1/PR. Ação na qual o Conselho Federal de Farmácia litiga contra a Universidade Federal do Paraná, em face do Edital do concurso público para contratar “técnico de farmácia” para atividades que seriam próprias do farmacêutico. Só aparentemente a questão não ultrapassa as lindes corporativas. Há, na verdade, o serviço de saúde do Hospital Universitário que merece profissionais com formação adequada. 65 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 13-100, 2004 45 7 A tutela jurisdicional e o alcance da expressão “serviço de relevância pública” Prossigo na tentativa de agregar contribuição no sentido de extrair mais algum significado particular da expressão “serviços de relevância pública”, no que respeita à tutela jurisdicional. Os conceitos jurídicos têm por finalidade ensejar a aplicação de normas jurídicas, não para definir essências, mas sim, para permitir e viabilizar a aplicação de normas jurídicas. Se é assim, a Constituição, ao predicar como de relevância pública os serviços de saúde, permitiria que o Juiz utilizasse o conceito como “mecanismo de desencaixe” do feixe de relações de direito privado e do processualismo individualista do CPC. A “relevância pública” do serviço permitiria superar a questão do “legítimo interesse” para demandar em juízo. No ordenamento jurídico brasileiro, a legitimação ativa nas ações coletivas é atribuída ope legis (artigo 82 do CDC). Nos serviços de “relevância pública” ficaria o Juiz com a possibilidade de considerar a questão da representatividade adequada. O ordenamento jurídico brasileiro não contempla expressamente a exigência de verificação da representatividade adequada, mas a questão da “relevância pública” de alguns serviços, no caso os da saúde, poderia funcionar como permissivo para que o Juiz verificasse, caso a caso, com um campo de visão maior, a questão do interesse para demandar. Nesse sentido, é a lição da Professora Ada Pellegrini Grinover.66 Sendo os serviços de saúde de relevância pública em qualquer demanda envolvendo referidos serviços,67 fica o juiz autorizado a verificar da representatividade adequada, tanto ativa quanto passiva. A manifestação do órgão do Ministério Público é de ser sempre oportunizada em tais demandas. Em questões de serviços de saúde, mesmo em se tratando de direitos disponíveis, em caso de direitos individuais homogêneos, é de ser verificada pelo Juiz a legitimidade ativa do Ministério Público. É raro, mas pode acontecer que algum membro do Ministério Público imbuído de excessivo zelo, litigue em defesa de uma categoria cujos reais interesses possam não coincidir com o pedido feito, nesses casos, o magistrado fica autorizado ADIn. Nº 1.931-DF, Rel. Ministro Maurício Correa, deferida em parte a liminar, suspendendo o artigo 35 da Lei nº 9.656/98, por violação ao artigo 5º, inc. XXXIV, da Constituição Federal de 1988. 69 DAMÁSIO, Antônio. O erro de Descartes. São Paulo: Cia. das Letras, 1996. 68 46 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 13-100, 2004 a verificar da representatividade adequada, cuidando para que todos os interesses sejam representados. No aspecto da atuação e poder regulamentar exercido pela vigilância sanitária, que tem um espectro vastíssimo, a consideração de se tratar de matéria de relevância pública, deve levar o intérprete a prestigiar a autuação da Anvisa, conferindo ampla efetividade à Lei nº 9.782/99, em especial, no que se refere ao controle sanitário de produtos e serviços que envolvam risco à saúde pública, elencados no § 1º do artigo 8º da lei em comento. Na atuação da regulação no setor da Saúde Suplementar, é de máxima importância a atividade da Agência de Saúde Suplementar, em um setor historicamente sem controle e são de extrema importância para a coletividade os precedentes do Superior Tribunal de Justiça sobre a matéria, em especial, os de lavra dos Ministro Ruy Rosado e Ministra Eliana Calmon. De grande repercussão no setor, a ADIn nº 1.931/DF, Relator Ministro Maurício Correa, em ação movida pela Confederação Nacional de Saúde.68 8 O Juiz e a emoção Estudiosos da neurologia69 afirmam que o sentimento, a emoção são essenciais para a mantença da racionalidade. Uma perda da capacidade de emocionar-se acaba comprometendo a racionalidade. No direito à saúde, o magistrado trata com a morte, a finitude da vida humana, sem qualquer preparo para o tema. A formação jurídica tradicional não o capacita para a tarefa. Existe no inconsciente coletivo uma expectativa sempre frustrada em relação aos médicos. Há dificuldade de entender e aceitar que é impossível ao médico vencer a morte, assegurar a cura do doente. Circunstâncias pessoais podem muitas vezes ser decisivas, embora todo o esforço dos profissionais e excelência dos serviços médicos. O tradicional formalismo jurídico é, na maioria dos casos, a solução para a angústia experimentada pela jurisdição. Há aqueles que nos casos difíceis optam pela solução mágica do mero decisionismo, na certeza de que a decisão judicial resolverá o problema individual sem maiores indagações do que ocorre no aspecto do Sistema de Saúde, na Verificar sobre o postulado da razoabilidade, a ADIn nº 855/PR, na questão da exigência de balanças para a distribuição do gás, exigência legal afastada por não ser razoável. 71 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 12. ed. São Paulo: Atlas, 2000. 70 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 13-100, 2004 47 dimensão comunitária ou coletiva. Para uma jurisdição de melhor qualidade, haveria de se favorecer uma concepção tópica do raciocínio jurídico, afastando-se o excessivo formalismo, reconhecendo-se a eficácia de uma resolução sobre a sua validade. É nessa seara que a atividade judicial há de ser realisticamente criadora. É impossível aqui pretender a completa e perfeita solução para todos os problemas. É necessário, contudo, prestigiar, na medida do possível, as escolhas dos gestores públicos, dos integrantes dos Conselhos de Saúde, afastando-se a solução, apenas se ela for absolutamente inadequada para o caso proposto. Por outro lado, a partir da Constituição, há a eleição de princípios básicos em matéria sanitária que, juntamente com a razoabilidade,70 constituem elementos indispensáveis para uma segura orientação da magistratura. 9 Os princípios em matéria sanitária Os princípios de uma ciência são as proposições básicas, fundamentais que constituem todas as estruturações posteriores. São as vigas mestras ou os alicerces da ciência.71 Cretella Júnior, em lição clássica, os classifica em princípios universais, plurivalentes, monovalentes e setoriais, conforme possam ser comuns a todos os ramos do saber, comuns a um grupo de ciências, se referidos a um só campo de conhecimento e setoriais que informam apenas setores em que se divide determinada ciência. A essa lição se alinha Maria Sylvia Zanella Di Pietro ao enumerar os princípios FREITAS, Juarez. O Controle dos Atos Administrativos e os princípios fundamentais. 2. ed. São Paulo, Malheiros, 1997. 213 p. 73 ÁVILA, Humberto Bergmann. A distinção entre princípios e regras e a redefinição do dever da proporcionalidade. Revista Diálogo Jurídico. Salvador, CAJ - Centro de Atualização Jurídica, v. I, n. 4, jul. 2001. 74 DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2000. 75 SCHOLLER, Heinrich. O princípio da proporcionalidade. Revista do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Porto Alegre, a. 11, n. 38. 76 VIGLIAR, José Marcelo Menezes. Saúde Pública e improbidade administrativa. In: ARANHA, Márcio Iorio; TOJAL, Sebastião Botto de Barros (orgs.). Curso de Especialização à distância em Direito Sanitário para membros do Ministério Público e da Magistratura Federal. Brasília-DF: Fiocruz, Universidade de Brasília, Escola Nacional de Saúde Pública, 2002. 77 ROZENFELD, Suely (Org.). Fundamentos da Vigilância Sanitária. Rio de Janeiro, Fiocruz. Verificar: “SUS, modelos assistenciais e Vigilância da Saúde”, de Carmem Teixeira, Jairnilson Paim, Ana Luiza Vilasbôas. 78 Resolução nº 33 do Conselho Nacional de Saúde e Lei nº 8.142/90 – Lei Orgânica da Saúde - LOS. 79 BALSEMÃO, Adalgeza. Competências e rotinas de funcionamento dos Conselhos de Saúde no SUS. In: ARANHA, Márcio Iorio; TOJAL, Sebastião Botto de Barros (orgs.). Curso de Especialização à distância em Direito Sanitário para membros do Ministério Público e da Magistratura Federal. Brasília-DF: Fiocruz, Universidade de Brasília, Escola Nacional de Saúde Pública, 2002. 72 48 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 13-100, 2004 informadores do Direito Administrativo, fazendo ver da grande importância dos mesmos, pois permitiriam à Administração e ao Judiciário estabelecer o necessário equilíbrio entre os direitos dos administrados e as prerrogativas da Administração. Sem ingressar no importante debate sobre os princípios jurídicos, mas acreditando na recomendação de que devem ser levados a sério72 73 74 75 o presente trabalho preocupa-se com o catálogo de princípios do direito sanitário, na medida em que podem ser úteis e socorrer o Juiz na solução dos conflitos sanitários. Os princípios informadores do Direito Público previstos no artigo 37 da Constituição Federal de 1988, quais sejam, a legalidade, a impessoalidade, a moralidade, publicidade e eficiência aplicam-se, são informadores, de todo o direito sanitário e vinculantes para os seus agentes encarregados de tais serviços e ações, a sua não-observância pode caracterizar improbidade administrativa.76 Os atos das autoridades públicas sanitárias77 desfrutam dos mesmos atributos dos atos administrativos em geral, quais sejam, a presunção de veracidade no que respeita aos fatos, a imperatividade, isto é, se impõem a terceiros independente da concordância e a auto-executoriedade, isto é, podem ser executados pela própria administração quando se trata de medida urgente e caso não adotada cause prejuízo ou risco maior, sinalando-se que, de regra, a auto-executoriedade deve ter sido prevista na lei. Na questão da presunção de veracidade e da imperatividade, é de observar que há uma íntima correlação dos referidos princípios com o princípio da participação social. O controle social do SUS se dá através dos Conselhos de Saúde,78 que entre as suas atribuições, têm a de deliberar e fiscalizar a aplicação do Orçamento, Planos de Saúde, Plano de Aplicação de Recursos, etc. Os Conselhos de Saúde, de regra, funcionam Verificar na Ação Civil Pública nº 2000.70.10.000456-0, movida pelo Ministério Público Federal contra a União, Estado do Paraná, Consórcio Intermunicipal de Saúde de Campo Mourão, por lesão ao patrimônio público, verba dos SUS, fraude a tabelas de procedimentos SIA/SUS, cobrança a maior e cobrança por procedimentos não realizados. 81 TOJAL, Sebastião Botto de Barros. A Constituição Dirigente e o Direito Regulatório do Estado Social: O Direito Sanitário. In: ARANHA, Marcio Iorio; TOJAL, Sebastião Botto de Barros (orgs.). Curso de Especialização à distância em Direito Sanitário para membros do Ministério Público e da Magistratura Federal. Brasília-DF: Fiocruz, Universidade de Brasília, Escola Nacional de Saúde Pública, 2002. 80 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 13-100, 2004 49 no âmbito federal, estadual e municipal, junto ao Ministério da Saúde e Secretarias estaduais e municipais, podendo ser criados conselhos distritais ou outros. Os Conselhos de Saúde constituem assim a instância de resistência democrática da garantia dos princípios constitucionais e legais dos direitos do cidadão na saúde deve haver representantes usuários do SUS nos Conselhos.79 Essa perspectiva não pode ser esquecida pelo juiz que imbuído de louvável propósito, mas sem conhecimento, acaba algumas vezes desconsiderando a participação social já existente no SUS e a compreensão exata da amplitude da participação social. No que respeita ao catálogo de princípios, são princípios informadores comuns ao Direito Administrativo os seguintes: a) O princípio da legalidade: no sentido de que a Administração só pode fazer o que a lei permite.80 O princípio aplicável no âmbito do direito privado é o da autonomia da vontade. Observe-se que a autonomia da vontade não é absoluta. Face ao disposto no artigo 197 da Constituição Federal de 1988 que considerou os serviços de saúde como sendo serviços de relevância pública, podendo a iniciativa privada participar de forma complementar do SUS, o farão segundo diretrizes e controle próprio do sistema SUS, não lhes aproveitando o princípio da autonomia da vontade. O princípio da reserva legal não poderá ser invocado pelos prestadores de serviço de saúde, pessoas físicas ou jurídicas de direito privado nas condições estabelecidas pelo artigo 197 da Constituição Federal de 1988 e § 1º do artigo 199, pois no Direito Sanitário ganha destacado relevo o aspecto regulatório, cujo fundamento último é a própria Constituição.81 Para o desempenho da função sanitária a Administração dispõe de poderes e posição de supremacia em relação aos particulares. Na seara sanitária também se verificam atos discricionários. A autoridade sanitária exerce um poder vinculado quando a lei não lhe deixa opções. Diante de determinado fato deve agir de um modo prefigurado. A lei, contudo, não prevê ROSENBERG, Felix J. Mecanismos Legais de Controle da Segurança do Medicamento. Revista de Direito Sanitário, São Paulo, LTR, v. 2, n.º 1, p.102 , mar. 2001. Precedente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Relatora Desa. Federal Maria de Fátima Freitas Labarrère. Precedente Suspensão de Segurança. 83 A “reserva do possível” é o postulado, segundo o qual os gastos públicos ficam dependendo de existência de recursos públicos. 82 50 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 13-100, 2004 todas as possibilidades e deixa certa margem de liberdade ao gestor da saúde pública. Nesse caso, então, entende-se que o ato é discricionário. Diante do caso concreto, a Administração tem a possibilidade de examiná-lo segundo critérios de oportunidade e conveniência e tem liberdade de optar por uma das soluções, todas legítimas, desde que afinadas com a finalidade pública. A atividade administrativa sanitária expressa-se, quer por meio de atos vinculados quer por meio de atos discricionários, sem quebra do princípio da legalidade. Vislumbro exemplo de ato discricionário, a atividade dos gestores públicos no momento em que decidem que medicamentos, terapias, procedimentos serão autorizados e custeados pelo SUS para dispensação aos enfermos. Nesta linha, não tem consistência se invocar o direito à saúde para obter um medicamento ou tratamento diferente daquele aprovado e disponibilizado pelo sistema. Evidentemente que os medicamentos escolhidos pelos gestores do sistema devem ter a sua segurança e eficácia examinados sem possibilidade de ser relativizada a obrigatoriedade quando a compra for para uso em programas de saúde pública por meio de regulamento ou portaria.82 Devem os medicamentos cumprir o fim para o qual se destinam. b) princípio da supremacia do interesse público ou princípio da supremacia da finalidade pública. Este princípio tinha destacado prestígio quando se mantinha a dicotomia entre o público e o privado, e objetivava combater o individualismo. A preocupação com os interesses coletivos e difusos, e em especial com a Constituição Federal de 1988, que identificou os serviços de saúde como serviço de relevância pública, percebe-se mais um valor na disputa e pela supremacia sobre o interesse privado, são as questões de relevância pública, e o conceito também se presta para reforçar a supremacia dos interesses coletivos e difusos. Nessa vertente, observa-se a invocação do postulado da “reserva do possível”83 que deve ser enfrentado realisticamente pelo magistrado. É preciso fundamentação circunstanciada, demonstração, é preciso abrir as contas públicas. c) o princípio da impessoalidade. Este princípio de controvertida conceituação pode ser entendido como relacionado com a finalidade pública e não pessoal do agente. Deve nortear a atividade pública. Pode ser visto como imposição de objetividade no atendimento do serviço R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 13-100, 2004 51 público, vedando a promoção pessoal da autoridade. Os artigos 18 a 21 da Lei nº 9.784/99 prevêem o impedimento e a suspeição do agente público, facetas da impessoalidade e também da moralidade. Na linha do princípio, o julgador deve abster-se de decidir quando tocado por circunstâncias fáticas que comprometam a sua posição de terceiro interessado na composição do litígio. d) o princípio da presunção de legitimidade ou de veracidade. Trata-se de uma presunção juris tantum, mas favorecedora das posições dos gestores públicos na matéria sanitária. e) o princípio da especialidade. Este princípio foi inicialmente referido às autarquias, mas pode sem dificuldade ser estendido às agências reguladoras, e é a vinculação aos objetivos institucionais que submete os exercentes dos cargos diretivos das autarquias ou agências públicas. f) o princípio do controle ou tutela e autotutela. A administração direta fiscaliza as atividades dos entes descentralizados. Está expresso na Constituição Federal de 1988, art. 199, § 1º e seguintes. A autotutela é sintetizada pela Súmula nº 346 do Supremo Tribunal Federal: “A administração pública pode declarar a nulidade dos seus próprios atos”; e a Súmula nº 473: “A administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial”. g) o princípio da hierarquia. Sinaliza a organização estrutural dos órgãos públicos, decorrente dele estão os deveres de delegar e avocar atribuições, punir, etc., está especialmente referido às atividades sanitáO episódio histórico da chamada “Revolta da Vacina” pode ser explicado pela ausência de divulgação promocional. 85 Publicidade exitosa é a vacinação infantil “Zé Gotinha”. Publicidade polêmica é o uso de preservativos para AIDS, campanha “Bráulio”. 86 A Lei nº 1.944/53 tornou obrigatória a iodação do sal de cozinha para controlar o bócio endêmico, foi a iniciativa mais eficiente para controlar uma doença. 87 DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 399. “Por que a eficiência”. 88 MAUÉS, Antônio G. Moreira. Direito Sanitário Constitucional. In: ARANHA, Márcio Iorio; TOJAL, Sebastião Botto de Barros (orgs.). Curso de Especialização à distância em Direito Sanitário para membros do Ministério Público e da Magistratura Federal. Brasília-DF: Fiocruz, Universidade de Brasília, Escola Nacional de Saúde Pública, 2002. 89 JORGE, Eduardo. O SUS é do Brasil. Folha de São Paulo. 1º out. 2003. 84 52 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 13-100, 2004 rias pelo artigo 198 da Constituição Federal de 1988, pois os serviços de saúde integram uma rede regionalizada, hierarquizada e única. h) o princípio da continuidade do serviço. O serviço público, especialmente o sanitário, não pode parar, é essencial e de relevância pública. A iniciativa privada em razão da relevância pública dos serviços de saúde (art. 199) pode ter a sua liberdade relativizada, pois se eventualmente e injustificadamente reduzir ou sustar a prestação de serviços ocorrerá demanda excessiva sobre os serviços públicos. O direito de greve em tais serviços também é abrandado face à sua essencialidade. i) o princípio da publicidade. Exige a ampla divulgação dos atos da Administração, ressalvadas as hipóteses de sigilo. Ele amplia a possibilidade de controle popular da Administração Pública. O dever de promoção do art. 196 da Constituição Federal de 1988 está afinado com a publicidade.84 85 j) o princípio da moralidade administrativa. Trata-se de princípio autônomo. Não se identifica com a ilegalidade, e pode levar à configuração de improbidade administrativa. É importante salientar que a moralidade administrativa nos serviços de saúde impõe a seus agentes o trabalho comprometido com resultados. Não tolera o servidor que não comparece, o médico que não atende e implica a aceitação de que o sistema deve ser cumprido fielmente em seu espírito. k) o princípio da eficiência. A Emenda nº 19/98 explicitou a eficiência da prestação do serviço, o que nos serviços relacionados à saúde é fundamental. Os serviços de saúde precisam operar eficientemente.86 Refere-se o modo de atuação do agente e também em relação ao modo de organização, no sentido de obter o melhor resultado, considerando a realidade brasileira e a carência de recursos a eficiência nos serviços REZENDE, Conceição Aparecida Pereira. Manual de Atuação Jurídica em Saúde Pública. Brasília: Programa de Apoio ao Fortalecimento do Controle Social do SUS, 2002. 91 PONTES, Helenilson Cunha Pontes. O Princípio da Proporcionalidade e o Direito Tributário. São Paulo: Dialética, 2000. p. 27. 92 GUASTINI, Riccardo. Dalle fonti alle norme. 2. ed. Torino: Giappichelli, 1993. p. 143. 93 A falta de atendimento básico de saúde em pequenos municípios traz conseqüências impensadas, como vemos na Ação Civil Pública nº 2003.71.03.002009-2, caso das mães da Barra de Quaraí-RS, que por falta de uma UMI vão ter os filhos em Bella Union, Uruguai, ao retorno não conseguem receber o salário-maternidade do INSS. Há dificuldade para matrícula em colégio público, e são crianças apátridas até os 18 anos. Ação movida pelo Ministério Público Federal contra a União, INSS e Prefeitura de Barra do Quaraí. 94 Art. 2º e § 1º da Lei nº 8.080/90. 95 ÁVILA, Humberto Bergmann. Teoria dos Princípios - da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 121. “Um meio é adequado quando promove minimamente o fim”. 90 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 13-100, 2004 53 públicos de saúde é fundamental87 para concretização da Constituição Federal de 1988 e de toda a Seção II da ordem social. 10 Princípios Específicos do Sistema SUS88 89 Além da Constituição Federal de 1988 que lançou os princípios aplicáveis às ações e serviços de saúde, a Lei Orgânica da Saúde – Lei nº 8.080/90, no artigo 7º – arquitetou e sistematizou os princípios do SUS. Conforme lembra Conceição Aparecida Pereira Rezende,90 “para cada situação-problema identificada, adotavam-se expressões que davam sentido às principais idéias-força unificadoras dos ideais que fizeram acontecer, em 1986 e 8ª Conferência Nacional de Saúde e estas sínteses chamaram-se princípios. São o ponto de partida e base da referência para o controle social do SUS”, eis assim a origem desses princípios especiais em matéria sanitária. A afirmação da citada professora, que ativamente participou dos trabalhos que deram origem ao corpo de leis regedoras da matéria, é muito importante, pois nos permitem uma compreensão do que realmente significam os princípios específicos do SUS. Segundo lição de Helenilson Cunha Pontes,91 ao se referir ao direito tributário, alude a alguns princípios que não são apenas “princípios normas tradicionais, mas normas princípio indirizzo”, dizendo que estes últimos têm o objetivo de alterar a realidade social, ao contrário dos primeiros que servem à conservação e preservação. Helenilson Cunha Pontes remete à lição de Guastini,92 e a referência fática feita pela referida professora permite extrair essa conclusão, os princípios específicos do SUS, são “normas principio indirizzo”, com força transformadora e unificadora. SCHWARTZ, Germano André Doederlein. Direito à saúde: efetivação em uma perspectiva sistêmica. Porto Alegre : Livraria do Advogado, 2001. 223 p. 97 ELIAS, Paulo Eduardo. Políticas de Saúde. Reforma ou contra-reforma: algumas reflexões sobre as políticas de saúde no Brasil. In: ARANHA, Márcio Iorio; TOJAL, Sebastião Botto de Barros (orgs.). Curso de Especialização à distância em Direito Sanitário para membros do Ministério Público e da Magistratura Federal. Brasília-DF: Fiocruz, Universidade de Brasília, Escola Nacional de Saúde Pública, 2002. 98 ÁVILA, Humberto Bergmann. op. cit., p. 121. “O controle da adequação (dos meios) deve limitar-se, em razão do princípio da separação dos poderes à anulação dos meios manifestamente inadequados”. 96 54 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 13-100, 2004 São princípios da atenção à saúde no SUS. 1) A saúde como direito93 Trata-se de um direito fundamental do ser humano.94 Trata-se de direito incluído entre os direitos sociais e significa para o Poder Público a responsabilidade de elaborar programas operacionais para garantia da saúde da população. Para a população, o direito reconhecido confere direito subjetivo de exigir a prestação de serviços de saúde pelo Estado, individual ou coletivamente. Para o Poder Judiciário, como um dos Poderes do Estado, a responsabilidade de fazer implementar as ações e serviços95 no sentido de promover e proteger a saúde da coletividade. Note-se que a Constituição Federal de 1988 reconheceu um direito ao acesso aos benefícios, não se trata de benefício contraprestacional e nem de caridade assistencial. O Poder Judiciário tornou-se elemento decisivo na efetivação e implementação do direito à saúde.96 2) O princípio da unicidade do sistema SUS. Princípio expresso no artigo 199 da Constituição Federal de 1988 e art. 7º, inc. XIII, da Lei nº 8.080/90 Esse princípio inaugura um sistema diferente do vigente até 1988, pois antes as ações e serviços eram operados por uma grande quantidade de órgãos. O artigo 198 da Constituição Federal de 1988 ao se referir a um “sistema único” implantou, pois a unicidade como princípio. A unicidade como princípio organizador e estrutural do SUS97 leva à conseqüência de que todos os três entes da federação são responsáveis pelo funcionamento do sistema único. O ideário que inspirou a reforma sanitária, consistia na criação de um sistema único fundamentalmente estatal. 3) O princípio da universalidade Extrai-se o princípio do artigo 196 da Constituição Federal de 1988 e o artigo 7º da Lei nº 8.080/90 e a sua conseqüência é a concretização da possibilidade de que todos tenham acesso aos serviços.98 Para cumprir o princípio, há necessidade do planejamento de ações realizando-se antes SCHWARTZ, Germano. op. cit., p. 108. CENEVIVA, Walter. Mais tempo de vida não basta ao idoso. Folha de São Paulo, São Paulo, 30 junho 2003. 101 PIOVESAN, Flávia; PIMENTEL, Sílvia. Aborto, Estado de Direito e Religião. Folha de São Paulo, São Paulo, 6 jun. 2003. 99 100 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 13-100, 2004 55 um diagnóstico da situação sanitária da comunidade. Os três primeiros princípios, em seu conjunto, formam um núcleo de “idéias força unificadoras e transformadoras”, fundamentais no sentido da construção do SUS como patrimônio social. 4) O princípio da integralidade do atendimento Está expresso no artigo 198, inc. II, da Constituição Federal de 1988 e art. 7º, inc. II, da Lei nº 8.080/90. A pessoa tem direito de ser atendida e assistida sempre que necessitar, utilizando ou não insumos. O que define o atendimento deve ser a necessidade da pessoa. Germano Schwartz,99 ao se referir à integralidade, diz que significa que todas as ações e serviços de saúde (promoção, proteção ou recuperação) são uma realidade una e inseparável. Não basta pelo princípio a compra de uma ambulância pela Prefeitura, é necessário, no mínimo oferecer serviço de urgência e materno-infantil. No princípio da integralidade do atendimento, há algumas questões intensamente debatidas, como o aborto e o direito da mulher em optar por fazê-lo,100 há a questão dos idosos101 e a dos portadores de doenças raras, o do atendimento especial aos menores. 5) O princípio da preservação da autonomia das pessoas – art. 7º, inc. III, da Lei nº 8.080/90 É princípio ético e integra a trindade da Bioética junto com a Justiça e a Beneficência. O tratamento da saúde e a defesa da integridade física e moral não podem ser impostos, pelo contrário, as pessoas precisam ser conscientizadas e orientadas, está no art. 7º, inc. III, da Lei nº 8.080/90. A autorização judicial para a realização de transfusão de sangue recusado por motivos religiosos procura flexibilizar o aludido princípio. O episódio da Revolta da Vacina (1904) constitui exemplo histórico. Em 31.10.1904, o Congresso aprovou lei que tornou obrigatória a vacinação contra a varíola, houve revolta no Rio de Janeiro. Não se teve na época a consciência do fato de que as pessoas precisam ser esclarecidas. 6) O princípio do direito à informação às pessoas assistidas – art. 7º, inc. V É o direito de informação sobre o diagnóstico, tratamento e progCUNHA, Luiz Cláudio Flores da. In: FREITAS, Vladimir Passos de (org.) et alii. Direito Previdenciário, aspectos materiais, processuais e penais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999. p. 37-38. 103 CARVALHO, Gilson. O Financiamento Público da Saúde no Bloco da Constitucionalidade. Manuais SUS Financiamento. “Ação na saúde é cara e a mensuração extremamente complexa.” 102 56 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 13-100, 2004 nóstico. Devem ser esclarecidos sobre benefícios e riscos de todos os procedimentos. A manutenção e guarda de tais registros, com o consentimento informado do paciente, podem ser fundamentais para a defesa do prestador do serviço em juízo e também para o próprio paciente. O prontuário há de ser, com as cautelas devidas, exibido em juízo, no caso de controvérsia sobre tratamentos. 7) O princípio da igualdade Os serviços de saúde devem ser prestados de maneira uniforme e indiferenciada a todos sem privilégios ou preconceitos. O princípio foi estabelecido para sepultar a política de favores, ou a cultura do favor, ou a idéia de quem não podia pagar seria tratado como indigente. Por outro lado, o princípio da igualdade não tolera distinção entre usuários pagantes e não-pagantes. É a chamada “diferença de classe”, isto é, a separação de ambientes, o oferecimento de melhores acomodações e refeições. Tudo isso desprestigia o princípio da igualdade e não contribui para a prestação de um serviço digno e eficiente para todos. 8) O princípio da participação da comunidade Esse princípio extrai-se do artigo 198, inc. III, da Constituição Federal de 1988 e artigo 7º, inc. VIII, da Lei nº 8.080/90. O direito sanitário é um direito solidário e democrático, e a comunidade participa, deve participar, para que realmente se possa chegar ao serviço que a Constituição moldou nos dispositivos que comentamos e também segundo o preâmbulo da Constituição Federal de 1988 que estabelece que a República brasileira tem como fundamento a dignidade da pessoa humana e objetiva promover o bem de todos. A saúde é um bem social e há a exigência ética, política e também econômica da disponibilidade dos serviços de saúde para todos de forma eficiente e padronizada. O Estado tem o poder-dever de intervir para assegurar a fruição do bem social no interesse de todos. É urgente a sensibilização dos detentores do Poder Político. O Poder Judiciário tem na jurisdição o seu modo qualificado de participar para concretizar a vontade da Constituição. 9) Princípio da solidariedade no financiamento, ou da diversidade LAZZARI, João Batista. As fontes de financiamento do Sistema Único de Saúde. São Paulo: LTr, 2003. Análise sobre o custeio do SUS. 104 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 13-100, 2004 57 da base de financiamento102 103 Diz o artigo 195 da Constituição Federal de 1988 que a seguridade social será financiada por toda a sociedade de forma direta e indireta e em seguida a Constituição passa a elencar como se dará o financiamento, com recursos orçamentários da União, Estado e Municípios e contribuições sociais que especifica e ainda arrematando o Capítulo II do Título VIII, há ampla possibilidade de instituir outras fontes destinadas a garantir a manutenção ou expansão da seguridade social (art. 194, parágrafo único, inc. VI, da Constituição Federal de 1988). Essa vinculação e as possibilidades aqui abertas não podem ser esquecidas no momento de decidir causas tributárias e penais sempre defendidas por profissionais extremamente bem preparados. 10) Princípio da vinculação de recursos orçamentários Princípio de alta importância que não há de ser diminuído ou esquecido. A autoridade que na sua administração o descumprir sujeita-se à responsabilidade fiscal (artigos 198, § 2º; 35, inc. III; e 198, § 1º, da Constituição Federal de 1988) e Lei de Responsabilidade Fiscal – Lei Complementar nº 101/2000. Aliado à vinculação, há o postulado da “reserva do possível”, o que se pode razoavelmente esperar da sociedade vista realisticamente. Não é horizonte ideal, mas contato com o real. A Emenda nº 29/2000 estabeleceu no artigo 198 da Constituição Federal de 1988 parâmetros concretos e objetivos em dois novos parágrafos, a propósito de destinação dos recursos do SUS.104 Ao ADCT foi acrescentado o artigo 77, com regras de transição para os exercícios de 2004 e 2005. A Emenda nº 29/2000 é auto-aplicável, mas deixou espaços abertos que oferecem necessidade de conceitos operacionais, tendo sido editada a Resolução nº 316/2000 com parâmetros consensuais para a aplicação da Emenda nº 29, e o Ministério da Saúde editou a Portaria nº 2.047/2002, estabelecendo diretrizes operacionais. O Sistema SIOPS, criado pela Portaria Interministerial nº 1.163/2000, é o parâmetro para fiscalização, No âmbito do Tribunal Regional Federal da 4ª Região existem demandas girando em torno da obrigação de prestar informações à agência reguladora. 106 SUNSTEIN, Cass R. The Arithmetic of Arsenic. In: ______. Risk and Reason. Safety, Law, and the Environment. New York: Cambridge University Press, 2002. Cap. 7, p. 153-190. 107 O episódio conhecido como “Carne de Chernobyl”, decidido pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região, levou em conta o princípio da precaução. Há demandas envolvendo determinação de destruição, queima, de cultivares por presença do “cancro europeu”, abate de suínos e bovinos. 105 58 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 13-100, 2004 sendo que o descumprimento pelos antes obrigados na aplicação dos recursos pode e deve ser comunicado ao Denasus – Departamento Nacional de Auditoria do SUS. 11) O princípio da ressarcibilidade ao SUS É princípio que se impõem como dever aos administradores da ANS e se extrai do artigo 198, § 1º: “além de outras fontes”, e do artigo 32 da Lei nº 9.656/98. Consiste na obrigação das operadoras privadas de planos de saúde ressarcir o SUS em caso de o sistema único prestar o atendimento ao segurado ou beneficiários da operadora privada. Decorrente do princípio há o dever das operadoras de prestar informações à ANS.105 12) O princípio da prevenção e da precaução Está estabelecido no artigo 196 e em todos os atos da vigilância sanitária e epidemiológica. Todo o artigo 200 está repleto de diretivas e princípios de prevenção e precaução que são de fundamental importância. O postulado da razoabilidade tem aqui grande possibilidade de auxiliar no exame do caso concreto,106 demandando uma relação congruente entre a medida adotada e o fim que ela pretende atingir, ou verificação de equivalência entre direitos e sacrifícios exigidos. O princípio da prevenção está diretamente ligado à antecipada previsão de acontecimentos negativos ou incerteza sobre conseqüências e acontecimentos. Já o princípio de precaução significa que se há de agir antecipadamente frente a uma dupla fonte, a incerteza que é a ausência de conhecimento científico e o próprio perigo conhecido. Não é só exortação à tomada de cautela, mas significa a necessidade de prática de ações, como por exemplo, pesquisas ou até medidas extremas como barreiras alfandegárias ou a destruição de produtos diante de ameaça de danos sérios e irreversíveis.107 A prevenção está genericamente no art. 2º da Lei nº 6.939/81, não é estática, atualiza-se constantemente. 13) Princípios gerais O artigo 200 da Constituição Federal de 1988 elenca extenso rol de A tarefa de fiscalizar os planos privados é de grande relevância social. FABRIZ, Daury Cesar. Bioética e direitos fundamentais. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003. 110 SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998. 108 109 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 13-100, 2004 59 competências atribuídas ao SUS. De simples leitura, extrai-se a importância, complexidade e diversidade das tarefas. No que respeita ao primeiro item, o de controlar e fiscalizar procedimentos, produtos e substâncias de interesse para a saúde e participar da produção de medicamentos, equipamentos, imunobiológicos, hemoderivados e outros insumos, há grande número de deveres a serem exercidos e saliente-se que (art. 2º da Lei nº 8.080/90, § 2º) o dever do Estado não exclui o das pessoas, da família, das empresas e da sociedade. No artigo 6º da Lei nº 8.080/90, está de forma mais detalhada o elenco de atribuições do SUS. Na questão principiológica, poderão ser extraídos princípios referentes aos serviços de saúde suplementar, campo de atuação da Agência ANS,108 artigo 24 da Lei nº 8.080/90 e princípios referentes à vigilância sanitária, campo de atuação da Anvisa. 14) O princípio da beneficência O princípio da beneficência, o bonum facere, fundamenta-se na regra da confiança,109 segurança e eficácia e está inscrito no artigo 1º da Constituição Federal de 1988, entre os princípios fundamentais da República, no item IV: “promover o bem de todos ...” sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Também no preâmbulo da Constituição Federal de 1988, ao assegurar o “bem-estar” abriga essa “meta horizonte”. Esse princípio põe temperamentos em todas as atividades relacionadas ao direito sanitário e é por isso de extrema importância, é outra “meta horizonte”. Difícil extrair o seu sentido, o sentido do que seria bom individual e coletivamente, mas pelo menos com certeza o princípio sugere a não maleficência, o primum non nocere. Integra o princípio a trindade bioética, juntamente com a Autonomia e a Justiça. 15) O princípio do não-retrocesso O direito à saúde é um “direito fundamental explícito”, segundo Sarlet.110 Não efetivado na medida em que garantido na Carta Política, isso não quer dizer que possa ser diminuído, diante do princípio do BENETI, Sidnei Agostinho. Da Conduta do Juiz. São Paulo: Saraiva, 1997. p. 200. FREITAS, Juarez. O Controle dos Atos Administrativos e os princípios fundamentais. 2. ed. São Paulo, Malheiros, 1997. 213 p. 111 112 ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios - da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros, 2003. 113 60 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 13-100, 2004 não-retrocesso. O aludido princípio se relaciona com a idéia de desenvolvimento sustentável, expressamente contemplado no preâmbulo e no artigo 3º da Constituição Federal de 1988, onde consta dos objetivos fundamentais da República, bem como pelo artigo 1º, inc. III, da Constituição Federal de 1988 – o princípio da dignidade humana. O sistema como estabelecido dirige-se a prestigiar o não-retrocesso em matéria sanitária. Não podemos ser levados a patamares inferiores ou piores aos ora existentes. Nessa linha, poder-se-ia dizer que não poderiam ser reduzidos os recursos destinados à saúde, nem alterada a vinculação constitucional introduzida pela Emenda nº 29 que vinculou recursos para o custeio dos serviços de saúde. 16) O princípio da Justiça O princípio da Justiça no direito sanitário transcende a mera igualdade e indica o dever de garantir uma distribuição justa, eqüitativa e universal dos serviços de saúde, em especial, dos gerenciados pelo SUS. O sentimento de Justiça é fundante nas sociedades humanas. Há várias teorias da Justiça e a enumeração delas ultrapassa a dimensão desse trabalho. Como tentamos abordar a questão da tutela jurisdicional sanitária, devemos considerar que uma interpretação equivocada pode levar a grandes injustiças. A pretexto de assegurar um direito, não se pode perder de vista a dimensão social e a sustentabilidade do sistema SUS. O sentimento de Justiça também se estabelece em relação à comunidade e é fator de integração social. A distribuição de serviços e riqueza em uma sociedade é grande fator de conflito e a tutela jurisdicional para cumprir os objetivos constitucionalmente fixados, tanto no plano social quanto no plano econômico, tem a obrigação de funcionar como fator de integração social. “É preciso caminhar no sentido da maior participação do Poder Judiciário naquilo que o Poder Judiciário tem a oferecer à sociedade, restabelecendo direitos e criando vetores para o encaminhamento mais justo das relações sociais regradas pela lei.111 Sobre classificações dominantes da razoabilidade ver “A compreensão jurídica do dever da razoabilidade” de Cássio Machado Cavalli, inédito, mestrado PUCRS. 1) entende-se razoabilidade identificada com a igualdade; 2) conformidade em relação à estrutura do real; 3) lógica do ordenamento; 4) correspondência com expectativas de justiça; 5) proporcionalidade, adequação dos meios aos fins. 115 BARROSO, Luís Roberto. Os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade no direito constitucional. Revista dos Tribunais, São Paulo, 1998. Cadernos de Direito Constitucional. 114 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 13-100, 2004 61 11 O Juiz e a compreensão jurídica dos princípios em matéria sanitária Juarez Freitas,112 ao lecionar sobre os princípios fundamentais do Direito Administrativo, adverte que uma consciente interpretação administrativa jamais poderá ser isolada ou destituída de vocação teleológica para a abertura e para a unidade. A tarefa fundamental e primeira consistiria em “bem hierarquizar, no plano empírico, os princípios, as normas e os valores, nunca esquecendo serem os princípios os responsáveis tanto pela abertura como pela capacidade de ordenação, sem os quais o sistema não existiria democrático e livre”. Humberto Ávila,113 na Teoria dos Princípios, refere que os princípios são normas imediatamente finalísticas, primeiramente prospectivas e com pretensão de complementaridade e de parcialidade, para cuja aplicação demandam uma avaliação da correlação entre o estado de coisas a ser promovido e os efeitos decorrentes da conduta havida como necessária à sua promoção. Já as regras são normas imediatamente descritivas e podem ser dissociadas dos princípios quanto ao modo como prescrevem o comportamento. Os princípios consistem em normas primariamente complementares e preliminarmente parciais, na medida em que abrangem apenas parte dos aspectos relevantes para a tomada da decisão, não têm a pretensão de gerar uma solução específica, mas de contribuir, ao lado de outras razões, para a tomada de decisão. Já as regras consistem em normas decisivas e abarcantes que têm a aspiração a gerar uma solução específica para o conflito entre razões. Os postulados normativos (dimensão metódica) estruturam a interpretação e aplicação de princípios e regras. Alguns postulados, como o da “ponderação de bens”, o da “concordância prática” e o da “proibição de excesso”, aplicam-se sem pressupor a existência de elementos ou critérios específicos. O dever de razoabilidade,114 fácil de sentir, mas difícil de conceituar, é de ser observado sempre. Para Luís Roberto Barroso115 a razoabilidade, conquanto não se confunda com a isonomia, guarda com esta íntima conexão, sendo um princípio de interpretação da teoria geral do direito. Resumindo, as regras privilegiam a idéia de objetividade e certeza do direito e convidam o intérprete ao simples silogismo. Já os princípios são os fenômenos jurídicos que marcam a quebra do sistema positivista e racionalista. O princípio requer do aplicador mais do que subsunção, mais 62 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 13-100, 2004 do que mera decisão. Breve análise de precedentes do Superior Tribunal de Justiça: Elencados os princípios, passo a examinar a atuação do Poder Judiciário na matéria sanitária, especificamente, no que se refere à aplicação dos princípios, verificando como foram considerados por alguns precedentes do Egrégio Superior Tribunal de Justiça que enfrentaram a matéria: 1) No REsp nº 450700, DJ de 07.04.2003, Rel. Min. Luiz Fux, 1ª Turma. O Egrégio Superior Tribunal de Justiça firmou entendimento de que a tutela antecipada contra o Estado é admissível quando em jogo direitos fundamentais como o de prestar saúde a toda a coletividade. Tratava-se da questão envolvendo o reembolso dos Hospitais por ocasião da conversão monetária para o Real. O pagamento a menor abala a capacidade de os hospitais implementarem as atividades necessárias à efetivação do direito constitucional à saúde. No precedente, resumidamente expondo, o Egrégio Superior Tribunal de Justiça prestigiou o princípio da saúde como direito, que de forma reflexa, foi atingido pelo repasse a menor feito aos conveniados, bem como o princípio da continuidade dos serviços hospitalares complementares do artigo 199, § 1º, da Constituição Federal de 1988. 2) REsp nº 430526, DJ de 28.10.2002, Rel. Min. Vicente Leal, 1ª Turma. Neste precedente, o Egrégio Superior Tribunal de Justiça reconheceu ao Ministério Público Federal o munus de defensor da saúde pública, determinando a reintegração de agentes sanitários responsáveis pelas campanhas de prevenção e combate a epidemias, cuja demissão generalizada poderia causar danos à coletividade. Prestigiados o princípio da continuidade do serviço e da eficiência e o princípio da prevenção. Sem referir, mas implicitamente, foi considerada a relevância da questão sanitária. 3) REsp nº 3369, DJ de 10.09.90, Rel. Min. Vicente Leal, 3ª Turma. Em mandado de segurança o segurado do SUS, com doença cardíaca pretendeu “livre tratamento hospitalar”. O pedido foi negado com base nos princípios da universalidade e unidade e seletividade do SUS. Prevalece aqui a visão social do direito à saúde. 4) REsp nº 249026, DJ de 26.06.2000, Rel. Min. José Delgado, 1ª Turma. No precedente, após seguido por outros, o Egrégio Superior Tribunal R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 13-100, 2004 63 de Justiça prestigiou o caráter social do FGTS e o princípio da dignidade humana para permitir o levantamento do fundo por portador acometido do vírus HIV. 5) ROMS nº 11183, DJ de 04.09.2003, Rel. Min. José Delgado, 1ª Turma. O acórdão prestigiou o princípio da saúde como direito, determinando o fornecimento de medicamentos que não especifica. Refere que nenhuma regra hermenêutica pode sobrepor-se aos princípios de que a saúde é direito de todos e dever do Estado. O precedente diz que são irrelevantes as questões burocráticas que o beneficiário inatendeu. Prevalece aqui o princípio da saúde como direito. 6) REsp nº 27039, DJ de 07.02.94, Rel. Min. Nilson Naves, 3ª Turma. A Turma não conheceu do Recurso Especial, prestigiando entendimento no sentido de que o médico pode baixar paciente seu em hospital privado, ainda que não faça parte do corpo clínico. Prestigiaram-se o Código de Ética Médica e a liberdade do exercício profissional, contra o invocado direito de propriedade do estabelecimento particular. A questão envolve particulares em matéria de relevância pública. 7) RMS 6564, DJ de 17.06.96, Rel. Min. Demócrito Reinaldo, 1ª Turma. A 1ª Turma do Superior Tribunal de Justiça não viu a presença de direito líquido e certo a prestações referentes à saúde, pois os artigos 195, 196, 204 e 227 da Constituição Federal de 1988 não teriam eficácia plena. Faltaria ao cidadão o direito subjetivo público. Trata-se de entendimento mais distante no tempo. Houve posterior alteração. 8) REsp nº 89612, DJ de 10.11.97, Rel. Min. Milton Luiz Pereira, 1ª Turma, e REsp nº 128909, DJ de 28.05.2001, Rel. Min. Milton Luiz Pereira, 1ª Turma. O Egrégio Superior Tribunal de Justiça entendeu, prestigiando o aspecto econômico, de não haver prejuízo financeiro, a possibilidade de o SUS prestar atendimento por ou com “diferença de classe”, houve voto vencido. 9) REsp nº 212346, DJU de 04.02.2002, Rel. Min. Franciulli Netto, 2ª Turma. O Superior Tribunal de Justiça prestigiou a orientação de que é do Município o dever de fornecer o medicamento necessário, desde que “comprovada a necessidade”. Prestigiou-se o princípio da integralidade da assistência à luz da Lei nº 8.080/90, mas condicionada à necessidade 116 DWORKIN, Ronald. Los Derechos en serio. Barcelona: Ariel, 1997. p. 37. 64 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 13-100, 2004 comprovada. 10) RMS nº 11129, DJU de 18.02.2002, Rel. Min. Francisco Peçanha, 2ª Turma. Prestigiou-se o princípio da saúde como dever do Estado, mesmo sem o cumprimento de formalidade burocrática. Salientou que o beneficiário comprovou não ter meios ao custeio do tratamento. Acrescentou que é irrelevante ser incurável a doença. 11) REsp nº 235381, DJU de 24.06.2002, Rel. Min. Franciulli Netto, 2ª Turma. Refere-se a caso originário do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul e salienta que em nenhum momento se cuidou na origem de interpretar os dispositivos tidos por violados e que o Egrégio Tribunal de Justiça “se limitou a retificar de forma genérica e en passant” a decisão antecipatória do MM. Juiz. Com fulcro no precedente REsp nº 325337, DJ de 03.09.2001, Rel. Min. José Delgado, 1ª Turma, prestigiou-se a orientação de ver facilitado o acesso à Justiça. Fazendo uma avaliação dos precedentes examinados, com ressalva do RMS nº 6564, MS nº 3369, REsp nº 430526, o Egrégio Superior Tribunal de Justiça parece se alinhar no sentido de reconhecer o direito à saúde como um direito subjetivo, sem limites, na linha liberal sustentada por Dworkin116 de que: “los derechos individuales son triunfos politicos em manos de los individuos”. Os indivíduos teriam direitos mesmo além de uma meta política que não seria justificação suficiente para negar-lhes o que desejam ter ou fazer. Resta a questão de saber se a concepção está afinada com o nítido caráter social da Carta de 1988, que tem na socialidade e na dimensão do coletivo um de seus pontos cardeais. Fazendo uma reflexão sobre as fundamentações, ou ausência delas, justamente reclamada no REsp nº 235381, pelo Rel. Min. Franciulli Netto, seria desejável que os magistrados na origem, ao apreciar os pedidos, passassem a fundamentar as decisões em matéria sanitária de forma menos genérica para possibilitar realmente seu exame pelos Tribunais Superiores. A compreensão jurídica dos princípios em matéria sanitária, concluindo esse exame que não é exaustivo, mas apenas pretende agitar a questão, não pode dispensar a lição de Häberle, Die Verfassung des Pluralismus, citado pelo Ministro Gilmar Mendes na ADI (EI) nº 1289/DF, informativo nº 304, no sentido de que a Constituição reclama o “pensamento do possível, o pensamento do possível é o pensamento com alternativas. R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 13-100, 2004 65 Deve estar aberto para terceiras e quartas possibilidades assim como para compromissos”. E o compromisso não prescinde do aspecto social. Conclusão 1) A tutela jurisdicional sanitária é um dos meios de participação do Poder Judiciário na concretização do direito à saúde, nos moldes em que estabelecido na Constituição Federal de 1988. 2) O direito à saúde é um direito subjetivo público, direito metaindividual de cunho social e econômico no qual a questão principiológica e sistemática há de merecer elevado prestígio. 3) O conjunto de ações e serviços constitui patrimônio sanitário nacional e é serviço de relevância pública. 4) A tutela jurisdicional sanitária se efetiva por meio de atividades educativas e de tutela jurisdicional propriamente dita. 5) No exercício da tutela jurisdicional sanitária, além de concretizar o direito assegurado no seu aspecto resolutivo, o Juiz não pode desconsiderar a dimensão metaindividual, pois há um sistema SUS de relevância pública a ser sustentado no presente e para o futuro. Bibliografia ALVES SOBRINHO, Eduardo Jorge Martins. O SUS é do Brasil. Folha de São Paulo, São Paulo, 1º out. 2003. Médico sanitarista, coordenador da 12º Conferência Nacional de Saúde. ALVIM, Arruda. Direito do Consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992, v. 2. ARANHA, Márcio Iorio; TOJAL, Sebastião Botto de Barros (orgs.). Curso de Especialização à distância em Direito Sanitário para membros do Ministério Público e da Magistratura Federal. Brasília-DF: Fiocruz, Universidade de Brasília, Escola Nacional de Saúde Pública, 2002. ÁVILA, Humberto Bergmann. A distinção entre princípios e regras e a redefinição do dever da proporcionalidade. Revista Diálogo Jurídico. Salvador, CAJ - Centro de Atualização Jurídica, v. I, n. 4, jul. 66 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 13-100, 2004 2001. ______. Teoria dos Princípios - da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros, 2003. AZEVEDO, André Gomma de. O Processo de Negociação: uma breve apresentação de inovações epistemiológicas em um meio autocompositivo. In: ARANHA, Márcio Iorio; TOJAL, Sebastião Botto de Barros (orgs.). Curso de Especialização à distância em Direito Sanitário para membros do Ministério Público e da Magistratura Federal. Brasília-DF: Fiocruz, Universidade de Brasília, Escola Nacional de Saúde Pública, 2002. BAIXA remuneração gera graves problemas na saúde. Boletim da Organização Mundial da Saúde. Folha de São Paulo, São Paulo, 07 jul. 2002. Cotidiano. BALERA, Wagner. O Direito Constitucional à Saúde. Revista de Previdência Social, n. 134, jan. 1992. BALSEMÃO, Adalgeza. Competências e rotinas de funcionamento dos Conselhos de Saúde no SUS. In: ARANHA, Márcio Iorio; TOJAL, Sebastião Botto de Barros (orgs.). Curso de Especialização à distância em Direito Sanitário para membros do Ministério Público e da Magistratura Federal. Brasília-DF: Fiocruz, Universidade de Brasília, Escola Nacional de Saúde Pública, 2002. BARROSO, Luís Roberto. Os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade no direito constitucional. Revista dos Tribunais, São Paulo, 1998. Cadernos de Direito Constitucional. BENETI, Sidnei Agostinho. Da Conduta do Juiz. São Paulo: Saraiva, 1997. p. 200. CAPPELLETTI, Mauro. Tutela dos interesses difusos. Trad. Tupinambá Pinto de Azevedo. AJURIS, Revista da Associação de R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 13-100, 2004 67 Juizes do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, n. 33, p. 169-182, mar. 1985. CARVALHO, Gilson. O Financiamento Público da Saúde no Bloco da Constitucionalidade. Manuais SUS Financiamento. CASTILHO, Manoel Lauro Volkmer. Interpretação Judiciária da Norma Ambiental. Apresentado no encontro de Direito Ambiental, em São Luís do Maranhão, 4 dez. 1997. CAVALCANTI, José Andersen. As novas filas. Zero Hora, Porto Alegre, jul. 2003. CENEVIVA, Walter. Mais tempo de vida não basta ao idoso. Folha de São Paulo, São Paulo, 30 junho 2003. CRETELLA JÚNIOR, José. Curso de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 1986. CUNHA, Luiz Cláudio Flores da. In: FREITAS, Vladimir Passos de (org.) et alii. Direito Previdenciário, aspectos materiais, processuais e penais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999. p. 37-38. DALLARI, Sueli Gandolfi. Direito Sanitário. In: ARANHA, Márcio Iorio; TOJAL, Sebastião Botto de Barros (orgs.). Direito Sanitário. Curso de Especialização à distância em Direito Sanitário para membros do Ministério Público e da Magistratura Federal. BrasíliaDF: Fiocruz, Universidade de Brasília, Escola Nacional de Saúde Pública, 2002. DALLARI, Sueli Gandolfi. Organização jurídica da administração pública em saúde. In: ROZENFELD, S. (Org.). Fundamentos da Vigilância Sanitária. Rio de Janeiro, Fiocruz. DALLARI, Sueli Gandolfi. O conceito constitucional de Relevância Pública. Brasília, Direito à Saúde, n. 1, Organização Panamericana da 68 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 13-100, 2004 Saúde, 1994. DAMÁSIO, Antônio. O erro de Descartes. São Paulo: Cia. das Letras, 1996. DIAS, Hélio Pereira. Direito Sanitário. Disponível em: www.anvs. com.br. Acesso em: 19 ago. 2003 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 12. ed. São Paulo: Atlas, 2000. DWORKIN, Ronald. Los Derechos en serio. Barcelona: Ariel, 1997. ______. Uma questão de princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2000. ELIAS, Paulo Eduardo. Políticas de Saúde. Reforma ou contrareforma: algumas reflexões sobre as políticas de saúde no Brasil. In: ARANHA, Márcio Iorio; TOJAL, Sebastião Botto de Barros (orgs.). Curso de Especialização à distância em Direito Sanitário para membros do Ministério Público e da Magistratura Federal. BrasíliaDF: Fiocruz, Universidade de Brasília, Escola Nacional de Saúde Pública, 2002. R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 13-100, 2004 69 70 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 13-100, 2004 O direito à vida (digna) frente às descobertas da engenharia genética Maria Lúcia Luz Leiria* “Nada é eterno, exceto a mudança”, Heráclito, 500 A.C. “O amor faz perdurar a imagem ou a figura de quem cerrou para sempre os olhos”, Miguel Reale. Artigo 1º da Declaração da UNESCO: “O GENOMA HUMANO compreende a unidade fundamental de todos os membros da família humana, bem como o reconhecimento de sua dignidade intrínseca e de sua diversidade. EM UM SENTIDO SIMBÓLICO, É O PATRIMÔNIO DA HUMANIDADE.” Sumário: 1 – Resumo. 2 – Introdução. 3 – Breve histórico dos enfrentamentos das questões da denominada Bioética. 4 – O Projeto Genoma Humano: 4.1 – seus benefícios, 4.2 – problemas éticos, sociais e jurídicos. 5 – O direito à vida (digna) versus a liberdade de pesquisa de genes: 5.1 – O binômio Projeto Genoma Humano e o direito à dignidade, à intimidade e à vida. 6 – Necessidade ou desnecessidade de princípios gerais e globais para reger a matéria versus impossibilidade de enclausuramento em normas jurídicas rígidas e nacionais sobre os avanços das ciências médica e biológica. 7 – Considerações finais. 8 – Referências bibliográficas. * Desembargadora Federal do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Doutoranda em Direito na Universidade Federal do Vale do Rio dos Sinos. Trabalho apresentado, como seminário, na disciplina A Dimensão Jurídica da Bioética, Tema Genoma Humano, Profa. Dra. Maria Cláudia Crespo Brauner. R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 13-100, 2004 71 1 – Resumo Em face dos avanços do Programa Genoma Humano, surgem novos enfrentamentos entre os valores da sociedade organizada e as novas “descobertas” tecnológicas. Conforme a postura ou a posição ideológica de determinado meio cultural, as soluções apresentadas diferem na forma e no modo de aplicação destes avanços. Apenas com a conciliação de princípios maiores, regedores de condutas no plano universal, será possível o estabelecimento de limites e parâmetros para o uso destas descobertas sem que se macule ou derrube o princípio da dignidade da pessoa humana. 2 – Introdução Debruçado cada vez mais o homem na sociedade atual sobre pesquisas, descobertas, inventos, aliados à interdisciplinariedade do conhecimento, ao pluralismo político e social, à crescente demanda pela efetivação dos direitos fundamentais, quer de 1ª, 2ª, 3ª ou 4ª dimensão, surge no panorama científico um espaço de discussão, diálogo, questões, perguntas com e sem resposta, desafios crescentes e busca incessante pela tão almejada igualdade dos seres humanos, no que diz com suas mais primárias necessidades, até o acesso das mais elevadas conquistas da tecnologia, o que se convencionou chamar “bioética”. Como tudo o que é novo, tudo o que é desconhecido e se vem desvelando, há num primeiro momento radicalismo de todos os envolvidos, cientistas da saúde, cientistas das chamadas ciências humanas, pesquisadores autônomos, ideologias, religiões, crenças, governos, mercado econômico. Daí a grande perplexidade em certos temas como o que agora se enfrenta: o acesso às descobertas do genoma humano e o uso destas “descobertas” ou “invenções” por todos e para todos. 3 – Breve histórico dos enfrentamentos das questões da denominada Bioética Cunhado pela primeira vez o termo bioética pelo oncologista Van Rensseler Potter, ao publicar seu livro Bioethic: bridge to the future, em 1971, o termo “bioética” incorporou-se ao vocabulário dos profissionais das áreas científicas, principalmente nas instituições de ensino e institutos 72 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 13-100, 2004 de pesquisas médicas. Alçada à disciplina, a bioética representa o estudo de todos os aspectos éticos das práticas médicas e biológicas, buscando avaliar suas implicações nas relações em sociedade. Há de ser anotado que discussões persistem sobre o próprio termo, fazendo-se diferença entre a bioética e o biodireito, porque o termo “biodireito” traria para a ciência jurídica um possível aprisionamento de todos os valores que são discutidos na bioética, podendo representar apenas as questões que foram enfrentadas pelos textos legais. Não se vê, no entanto, tamanha dificuldade, desde que, em atual e boa interpretação, entenda-se direito, no termo biodireito, não como direito positivado em textos legais, mas, sim, direito como objeto da ciência jurídica, portanto capaz de albergar todos os enfrentamentos da bioética. A preocupação ética com as práticas da medicina remonta à Grécia Antiga – basta que se atente para o juramento de Hipócrates. Foi, no entanto, no século XX que a invenção do aparelho para hemodiálise passou a determinar uma maior reflexão nas decisões sobre o seu uso. É o que se vê nas considerações de Bruno Torquato de Oliveira Naves: “No século XX, várias são as situações que exigiram avaliações da ética ante a experimentos e tratamentos médicos. Baseado em Fernando Lolas, podemos citar quatro importantes casos que impulsionaram a Bioética. 1) Por volta de 1961, o médico Scribner inventou um aparelho capaz de realizar a função do rim, depurando artificialmente o sangue de substâncias residuais - a hemodiálise. Diante do sucesso do tratamento, a demanda logo superava as possibilidades de atendimento. Era necessário, então, decidir quem receberia tratamento e quem morreria. Formou-se um comitê de pessoas leigas, em 1962, em Seattle, para realizar essa decisão. Este comitê criou um procedimento para tomada de decisões. 2) Em 1966, Henry Beecher, professor de anestesia de Harvard, publicou um artigo demonstrando estatisticamente que 12% dos artigos médicos publicados em uma importante revista científica aplicava métodos contrários à ética. Fortaleceu-se, assim, a necessidade de criação de mecanismos de controle em pesquisas e tratamentos. 3) O terceiro caso ganhou grande notoriedade e refere-se ao primeiro transplante de coração, realizado por Christian Barnard. Para proceder-se ao transplante era necessário remover o coração ainda em funcionamento, isto é, de um indivíduo com morte cerebral. Deparamos, assim, com questões como: quando alguém pode ser considerado morto? Quem determina esse momento, a ciência ou a lei? A vida consciente é a única forma de vida? Morto o cérebro, morre também a pessoa? 4) Por fim, o caso de Tuskegee, revelado em 1972. Tuskegee é uma cidade do R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 13-100, 2004 73 Alabama, Estados Unidos, onde, em 1932, iniciou-se uma pesquisa sobre a evolução natural da sífilis, sem qualquer tratamento. Os ‘voluntários’, todos negros, acreditavam estar recebendo tratamento, mas não era o que ocorria.”1 Vê-se, pois, que as questões ligadas à bioética estão em pleno curso de debates. É, pois, o momento apropriado para que os operadores do direito tomem posições consentâneas com a atualidade, de forma a permitir, mediante uma interpretação fincada na realidade social e nos avanços tecnológicos, a possibilidade de se equacionar as relações que se forem realizando, por meio de “normas jurídicas” entendidas como quer Bonavides –, “normas” que enfeixam princípios com carga normativa. Como diz Maria Claudia Crespo Brauner:2 “Todas essas novas técnicas que recorrem à manipulação genética e intervenção direta nos processo vitais, envolvem, certamente, uma grande complexidade e este fato exige a atenção não apenas da comunidade científica, mas da sociedade como um todo, haja vista que as descobertas científicas e a sua utilização na medicina, através das terapias genéticas, da reprodução artificial, dos transplantes e doações de órgãos atuam diretamente sobre a vida e o destino de toda humanidade. Neste contexto de complexidades entre a utilização dos recursos científicos e a necessidade de reconciliação com os princípios éticos, frutos da construção do saber humanista, surge um movimento de reação objetivando construir premissas para fundamentar as escolhas no âmbito da biomedicina, a partir de uma reflexão pluralista e dialogal.” As questões enfrentadas passaram em um primeiro momento a ser vistas, estudadas e analisadas por meio de uma visão teológica, após filosófica, tudo na procura de solução de regras que enfeixassem e não maculassem valores e bens universalmente reconhecidos. Daí, surgem grandes disputas: de um lado pelos pesquisadores das ciências biológicas na busca de uma eticidade própria dos enfrentamentos surgidos com as novas descobertas; de outro, os operadores das humanidades, buscando valores próprios e supremos, muitas vezes parciais e locais. É o que se vê, por exemplo, no caso de novos medicamentos que surgem em função das descobertas biológicas e do acesso a todos os cidadãos em face das leis patentárias, onde se constata, ocasionalmente, NAVES, Bruno Torquato de Oliveira. Introdução ao biodireito: da zetética à dogmática. In: FREIRE DE SÁ, Maria de Fátima. Biodireito. Belo Horizonte: Del Rey, 2002. p. 130-131. 2 BRAUNER, Maria Cláudia Crespo. Direito, sexualidade e reprodução humana; conquistas médicas e o debate bioético. Rio de Janeiro-São Paulo: Renovar, 2003, p. 150-151. 1 74 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 13-100, 2004 a necessidade de intervenção do poder constituído, como foi o caso recente dos medicamentos “genéricos”. A limitação do uso das descobertas ou “invenções” da tecnologia científica é alvo de regulação por leis patentárias, que buscam, de um lado, estimular o mercado econômico, permitindo-lhe que, durante certo tempo e em determinadas condições, apenas aquele que registrou o produto possa comercializá-lo. Caso importante ocorreu não somente com os medicamentos contra a AIDS, mas também com a lei reguladora dos medicamentos genéricos e similares. As descobertas tecnológicas específicas do Programa Genoma Humano, iniciado formalmente nos EUA em 1990, visando ao mapeamento do gene humano e ao seqüenciamento do nosso genoma, vêm, com todo o progresso da técnica científica, avançando de forma ininterrupta e rápida. Dado isto, sabido que os limites impostos aos pesquisadores e aos homens da ciência só podem tornar-se efetivos se qualquer normativo trouxer consigo a capacidade de coerção, mesmo quando o poder econômico e os interesses de grupos forem proeminentes em dada sociedade. 4 – O Projeto Genoma Humano: 4.1 – seus benefícios 4.2 – problemas éticos, sociais e jurídicos O denominado Programa Genoma Humano é desafio de cientistas de vários países do mundo que acreditam seja possível decifrar completamente todas as informações contidas no genoma humano. Genoma é o termo utilizado para designar um complemento total de genes em uma célula, em indivíduos ou em uma espécie:3 “Genoma é o termo usado para designar um complemento total de genes em uma célula, um indivíduo ou uma espécie. Assim, os gametas (células haplóides) possuem uma cópia do genoma, enquanto as células somáticas (diplóides) apresentam duas cópias. A informação genética nas células humanas está organizada em dois tipos de genoma: o genoma nuclear e o genoma mitocondrial.” Entre 2% e 3% do genoma humano é composto de DNA codificador responsável pela informação genética para a síntese de polipeptídeos 3 FARAH, Solange Bento. DNA. Segredos & mistérios. São Paulo: Sarvier, 2000. p. 75. R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 13-100, 2004 75 ou RNA. Mapear um gene é definir sua posição (locus) no genoma. Existem basicamente dois tipos de mapa: o genético, que refere à posição de um gene em relação a outro gene ou a um marcador conhecido, e o mapa físico, que dá a posição de um gene em unidades de distância, por exemplo, pares de bases.4 Mapas genéticos ou físicos podem ser construídos em diferentes níveis de resolução, sendo que a localização de um gene pode variar de um cromossomo ou região cromossômica a uma definição precisa dentro de poucas kilobases, permitindo seu isolamento e sua clonagem. Genes isolados podem ser seqüenciados, ou seja, pode-se determinar completamente a seqüência de bases ao longo do seu comprimento. O Projeto Genoma é uma arrojada iniciativa dos países desenvolvidos que pretendem mapear os 100.000 genes e seqüenciar os 3 bilhões de pares de bases do DNA humano. Existe uma variação entre o DNA de diferentes indivíduos, e a grande maioria é insignificante do ponto de vista médico, pois ocorrente dentro do DNA não-codificador ou resulta em proteínas idênticas. Estas variações genéticas, sem conseqüências na proteína, precisam ser distinguidas daquelas que causam o aparecimento de doenças genéticas, pois afetam regiões importantes de genes fundamentais para o indivíduo. “Na verdade, o que será obtido é um mapa que representa a síntese de cromossomos ou partes de cromossomos de muitos indivíduos diferentes,”5 sendo certo que “a obtenção da seqüência completa do genoma humano terá implicações profundas na medicina, na genética básica e aplicada, e ajudará a esclarecer a história evolutiva da nossa espécie”.6 Para facilitar a interpretação da informação genética, é importante mapear e seqüenciar o genoma de outras espécies mais simples, de forma a distinguir as seqüências de DNA que realmente carregam genes e compreender a função de cada gene. Para isto, tem-se utilizado nos estudos a bactéria E. coli, o neomatódeo Caenorhabditis elegans, a levedura Saccharomyces FARAH, op. cit., p. 101-102. Idem, p. 96 6 Idem, p. 97. 7 Idem, p. 99. 4 5 76 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 13-100, 2004 cerevisiae, a mosca do vinagre Drosophila e o camundongo (este, contudo, tem genoma tão complicado quanto o humano, mas têm grandes semelhanças bioquímicas).7 Isto, em realidade, levanta diversas questões: Quem terá direito a utilizar a informação acumulada? O perfil genético, determinado em um indivíduo, será confidencial, ou outros poderão ter acesso a esses dados, sem necessidade de prévia autorização ou permissão? Como evitar que o diagnóstico de doença incurável sirva para discriminação ou estigmatização de um indivíduo? Que tipos de descobertas podem e devem ser patenteadas? Tem-se argumentado, por outro lado, que o acesso à informação científica gerada pelo desenvolvimento do Projeto Genoma Humano deveria ser garantido a todos, porque, como o genoma representa a essência mais íntima do ser humano, ninguém poderia ter o direito de apossar-se de seqüências de DNA que compõem um patrimônio da humanidade. Solange Farah, contudo, destaca que a questão não é simples como parece à primeira vista:8 “As leis de patentes estipulam o direito de uma pessoa de, por um tempo limitado, explorar os frutos de sua atividade intelectual ou criativa. Esse direito tem sido reconhecido universalmente e apresenta, para a sociedade, o benefício de encorajar indivíduos ou companhias a investirem tempo, dinheiro e esforço intelectual para criarem alguma coisa de valor para eles próprios e para os outros. Quantas companhias farmacêuticas investiriam 100 milhões de dólares necessários para desenvolver uma nova droga se, posteriormente, o medicamento pudesse ser copiado por outros e vendido por um preço mais baixo, que não incluísse os custos de pesquisa? Além disso, negando-se aos cientistas o acesso às leis de propriedade intelectual, provavelmente haveria uma tendência a não se divulgar de imediato os resultados das pesquisas, reduzindo a disseminação do conhecimento. Parece claro que seqüências de DNA não poderiam ser requisitadas como propriedade de alguém. Por outro lado, não deveria haver qualquer dúvida quanto ao direito de se patentear métodos que se destinassem a isolar, analisar ou expressar uma seqüência de DNA específica. Dessa forma, companhias ou indivíduos teriam o direito de patentear, por exemplo, métodos para a produção de proteínas humanas, pela técnica do DNA recombinante, ou plantas e animais transgênicos. Entretanto, o que dizer das seqüências de DNA utilizadas para fins práticos como, por exemplo, diagnóstico? A linha divisória que separa ‘invenção’ de ‘descobrimento’ é muito tênue nesse caso.” 8 Idem, p. 248. R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 13-100, 2004 77 Inobstante os diversos problemas éticos decorrentes da nova metodologia serem sérios, isto não pode servir como desculpa para “se estancar a evolução do conhecimento científico, que representa uma parcela do desenvolvimento da humanidade, de tal forma que a maioria dos problemas éticos poderia ser resumida na seguinte assertiva: a tecnologia do DNA recombinante tem sido, até o momento, muito mais eficiente em predizer riscos do que em oferecer intervenções para solucionar esses riscos”. 9 Em realidade, a terapia gênica de células somáticas não apresenta “maiores problemas éticos do que os transplantes de órgãos; entretanto, a terapia gênica que envolve a linhagem germinativa provavelmente não será aceitável por um longo período, pois altera o patrimônio genético das gerações futuras e da espécie humana. De qualquer forma, a melhor forma de se garantir que a tecnologia do DNA recombinante seja utilizada somente em benefício da humanidade é por meio da divulgação correta da informação científica, permitindo que toda a sociedade participe na decisão sobre os rumos que serão dados à engenharia genética”.10 O uso da decodificação dos genes, com o avanço da técnica, gera, por óbvio, vários enfrentamentos no campo da ética e da sociedade, necessitando ser limitado e regulado pelo locus privilegiado que é o campo da ciência jurídica. 5 – O direito à vida (digna) versus a liberdade de pesquisa de genes: 5.1 – O binômio – Projeto Genoma Humano e o direito à dignidade, à intimidade e à vida Sem sombra de dúvida, os profissionais da saúde, os bioeticistas, os filósofos e teólogos podem apresentar posições, conceitos e soluções. Mas somente com o Direito é possível a alteração da realidade, com o enfrentamento pacífico das questões surgidas com as novas e constantes descobertas. Neste tempo, tem-se que o direito à vida e à dignidade da pessoa humana, elevados a princípio constitucional, necessitam, primeiIdem, p. 251. Idem, p. 253. 11 SARLET, Ingo. Algumas notas em torno da relação entre o princípio da dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais na ordem constitucional brasileira. In: BALDI, César Augusto, org. Os direitos humanos na sociedade cosmopolita. Rio de Janeiro: Renovar, 2003 (no prelo). 9 10 78 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 13-100, 2004 ro, um aprofundamento no conceito de dignidade. Há uma releitura do pensamento kantiano vigorante nestes tempos, pela qual a dignidade é qualidade intrínseca da pessoa humana, não se a pode dar, não se pode a ela acrescer, porque é valor. Nas palavras de Ingo Sarlet:11 “A íntima e indissociável vinculação entre a dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais, constitui, atualmente, um dos postulados nos quais se assenta o direito constitucional, o que vale inclusive nas ordens constitucionais onde a dignidade ainda não foi expressamente reconhecida no âmbito do direito positivo. Todavia, mesmo que virtualmente incontroverso o liame entre a dignidade da pessoa e os direitos fundamentais, o consenso, por sua vez - como logo teremos oportunidade de demonstrar -, praticamente se limita ao reconhecimento da existência e da importância desta vinculação. Quanto ao mais - inclusive no que diz com a própria compreensão do conteúdo e significado da dignidade da pessoa humana na (e para a) ordem jurídica – registra-se farta discussão em nível doutrinário e até mesmo jurisprudencial. Assim, definindo o objeto do presente ensaio, é precisamente sobre as relações entre a dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais, que pretendemos tecer algumas considerações, destacando pelo menos parte dos inúmeros aspectos que poderiam ser colacionados a respeito do tema, com o objetivo de explorar, mesmo que sumariamente, algumas possíveis aplicações concretas da dignidade da pessoa no âmbito da sua conexão com os direitos fundamentais.” Verifica-se pois que, somente caso a caso, isto é, de uma interpretação debaixo para cima, é possível construir-se um consenso que se quer universal, capaz de administrar os resultados dessas novas técnicas. 6 – Necessidade ou desnecessidade de princípios gerais e globais para reger a matéria versus impossibilidade de enclausuramento em normas jurídicas rígidas e nacionais sobre os avanços das ciências médica e biológica. No entanto, para o presente trabalho e procurando pensar a partir de uma postura e de uma dimensão jurídica, constata-se que o grande impasse, a grande questão a ser enfrentada, é, sim, entre o direito fundamental à vida, encartado em várias constituições nacionais, elevado a direito universalmente reconhecido, e a liberdade de pesquisa dos genes, que gera um primeiro problema: o uso do “material humano”, e ao depois a possibilidade de exploração destas “descobertas” e destas “invenções”. A visão atual do constitucionalismo moderno matiza todo o direito privado, ou seja, as codificações civis devem ser lidas com as cores dos R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 13-100, 2004 79 direitos ali consagrados. Daí que o impasse está justamente no que seja “vida” e, ao depois, o que podemos dispor sobre o nosso corpo - como, quando e porquê. Por isso, na atualidade, busca-se um consenso universal capaz de permitir a manutenção dos direitos mais elementares do ser humano, sem que se freie o uso de tais “descobertas”. Por isso, a formatação, em nível internacional, de princípios regradores de tais intervenções biomédicas, biocientíficas, basicamente consistentes nos seguintes:12 a) beneficência, que implica fazer o bem ao paciente, e que é considerado o critério mais antigo da ética médica, enunciado no princípio hipocrático da medicina, onde o compromisso do médico é fazer o bem ao paciente, restabelecendo sua saúde; b) autonomia: o paciente e o médico devem compartilhar as decisões, o que corresponde a dizer que, no gozo pleno de seus direitos, o paciente deve decidir o que é melhor para si, buscando a concordância de seu médico; c) justiça: garantia a todos de uma distribuição justa, eqüitativa e universal dos benefícios da ciência, oferecida amplamente pelos serviços de saúde; d) alteridade: considera a pessoa como fundamento de toda reflexão da bioética; e) sacralidade da vida humana: atribuindo valor e respeito à vida. Surge, então, no panorama das relações internacionais, a declaração universal sobre o genoma humano e os direitos do homem, que pretende, por meio de adoção de princípios, normatizar os efeitos do avanço tecnológico, reconhecendo que as pesquisas sobre o genoma humano e a sua aplicação abrem imensas perspectivas de melhoramento da saúde dos indivíduos e humanidade, sempre tendo em vista o respeito à dignidade, à liberdade e à proibição de qualquer forma de discriminação fundada em características genéticas. Partindo da reflexão sobre esta realidade, cunharam-se os artigos da Declaração dos quais pinçam-se os arts. 1º e 10: BRAUNER, Maria Claudia Crespo. Direito, sexualidade e reprodução humana; conquistas médicas e o debate bioético. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 159. 12 80 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 13-100, 2004 “Artigo 1º - O genoma humano compreende a unidade fundamental de todos os membros da família humana, bem como o reconhecimento de sua dignidade intrínseca e de sua diversidade, em um sentido simbólico é o patrimônio da humanidade”. “Artigo 10 - Qualquer pesquisa sobre o genoma humano e qualquer de suas aplicações, em particular no domínio da biologia, da genética e da medicina, não deverão prevalecer sobre o respeito dos direitos do homem, das liberdades fundamentais e da dignidade humana dos indivíduos, ou, se for o caso, de grupos de indivíduos”. Estes artigos identificam a preocupação de que sejam estabelecidos limites por todos os países. Limites esses que são identificados, em última análise, pelo princípio fundamental já acolhido por muitas Constituições e constante da Declaração Universal dos Direitos do Homem, que é o princípio da vida com dignidade, cujo conteúdo é plasmado pelas necessidades básicas do homem como indivíduo e do homem como sociedade. Para Ingo Sarlet: “A despeito das inúmeras tentativas de conceituação da dignidade da pessoa formuladas ao longo dos tempos, notadamente (mas não exclusivamente) no âmbito da fecunda tradição filosófica ocidental, que aqui não temos condições de rastrear nem reproduzir, verifica-se que uma conceituação clara do que efetivamente seja esta dignidade, inclusive para efeitos de definição do seu âmbito de proteção como norma jurídica fundamental, se revela no mínimo difícil de ser obtida, isto sem falar na questionável (e questionada) viabilidade de se alcançar algum conceito satisfatório do que, afinal de contas, é e significa a dignidade da pessoa humana hoje. Tal dificuldade, consoante exaustiva e corretamente destacado na doutrina, decorre certamente (ao menos também) da circunstância de que se cuida de conceito de contornos vagos e imprecisos, caracterizado por sua “ambigüidade e porosidade”, assim como por sua natureza necessariamente polissêmica, muito embora tais atributos não possam ser exclusivamente atribuídos à dignidade da pessoa. Uma das principais dificuldades, todavia – e aqui recolhemos a lição de Michael Sachs – reside no fato de que no caso da dignidade da pessoa, diversamente do que ocorre com as demais normas jusfundamentais, não se cuida de aspectos mais ou menos específicos da existência humana (integridade física, intimidade, vida, propriedade, etc.), mas, sim, de uma qualidade tida como inerente a todo e qualquer ser humano, de tal sorte que a dignidade – como já restou evidenciado – passou a ser habitualmente definida como constituindo o valor próprio que identifica o ser humano como tal, definição esta que, todavia, acaba por não contribuir muito para uma compreensão satisfatória do que efetivamente é o âmbito de proteção da dignidade, na sua condição jurídico-normativa. Além disso, verifica-se que a doutrina e a jurisprudência – notadamente no que diz com a construção de uma noção jurídica de dignidade – cuidaram, ao longo do tempo, de estabelecer alguns contornos basilares do conceito, concretizando minimamente o seu conteúdo, ainda que não se possa falar, também aqui, de uma definição genérica e R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 13-100, 2004 81 abstrata consensualmente aceita, isto sem falar no ceticismo manifesto de alguns no que diz com a própria possibilidade de uma concepção jurídica da dignidade. Neste contexto, costuma apontar-se corretamente para a circunstância de que a dignidade da pessoa humana (por tratar-se, à evidência – e nisto não diverge de outros valores e princípios “Neste contexto, cumpre destacar que a dignidade, como qualidade intrínseca da pessoa humana, é irrenunciável e inalienável, constituindo elemento que qualifica o ser humano como tal e dele não pode ser destacado, de tal sorte que não se pode cogitar na possibilidade de determinada pessoa ser titular de uma pretensão a que lhe seja concedida a dignidade. Esta, portanto, como expressão da própria condição humana, pode (e deve) ser reconhecida, respeitada, promovida e protegida, não podendo, contudo (no sentido ora empregado) ser criada, concedida ou retirada, já que existe em cada ser humano como algo que lhe é inerente. Ainda nesta linha de entendimento, houve até mesmo quem afirmasse que a dignidade representa ‘o valor absoluto de cada ser humano, que, não sendo indispensável, é insubstituível’, o que, como se verá mais adiante, não afasta a possibilidade de uma abordagem de cunho crítico e não inviabiliza, ao menos não por si só, eventual relativização de algumas dimensões da dignidade, notadamente na sua condição jurídico-normativa, tópico que aqui não temos condições de desenvolver. Assim, vale lembrar que a dignidade evidentemente não existe apenas onde é reconhecida pelo Direito e na medida que este a reconhece, já que constitui dado prévio, não esquecendo, todavia, que o Direito poderá exercer (e tem exercido) papel crucial na sua proteção e promoção, de tal sorte que, especialmente quando se cuida de aferir a existência de ofensas à dignidade, não há como prescindir – na esteira do que leciona González Pérez – de uma clarificação quanto ao que se entende por dignidade da pessoa, justamente para que se possa constatar e, o que é mais importante, coibir eventuais violações da dignidade.” “Tal concepção encontra-se, de resto – e reconhecidamente – embasada na doutrina de Dworkin, que, demonstrando a dificuldade de se explicar um direito a tratamento com dignidade daqueles que já não logram sequer reconhecer insultos a sua auto-estima, ou mesmo daquelas pessoas que já perderam completamente sua capacidade de autodeterminação, e que ainda assim devem receber um tratamento digno. Dworkin, portanto, parte do pressuposto de que a dignidade possui ‘tanto uma voz ativa quanto uma voz passiva e que ambas encontram-se conectadas’, de tal sorte que é no valor intrínseco (na ‘santidade e inviolabilidade’) da vida humana, de todo e qualquer ser humano, que encontramos a explicação para o fato de que mesmo aquele que já perdeu a consciência da própria dignidade merece tê-la (sua dignidade) considerada e respeitada. Assim, seguindo uma tendência que parece estar conduzindo a uma releitura e recontextualização da doutrina de Kant (ao menos naquilo em que aparentemente se encontra centrada exclusivamente na noção de autonomia da vontade e racionalidade da pessoa humana), vale reproduzir a lição de Dieter Grimm, eminente publicista e Magistrado germânico, ao sustentar que a dignidade, na condição de valor intrínseco do ser humano, gera para o indivíduo o direito de decidir de forma autônoma sobre seus projetos existenciais e felicidade e, mesmo onde esta autonomia lhe faltar ou não puder ser atualizada, ainda assim ser considerado e respeitado pela sua condição humana. Por outro lado, pelo fato de a dignidade da pessoa encontrar-se ligada à condição humana de cada indivíduo, não há como descartar uma necessária dimensão comunitária (ou social) desta mesma dignidade de cada pessoa e de todas as pessoas, justamente por serem todos iguais em dignidade e direitos (na iluminada fórmula da Declaração Universal de 1948) e pela circunstância de nesta condição conviverem em determinada comunidade ou grupo, destacando-se, portanto, o caráter intersubjetivo e relacional da dignidade da pessoa humana, que já havia sido referido pelo próprio Kant, sugerindo inclusive a existência de um dever de respeito recíproco no âmbito da comunidade dos seres humanos.” “É justamente para efeitos da indispensável hierarquização que se faz presente no processo hermenêutico, que a dignidade da pessoa humana (ombreando em importância talvez apenas com a vida – e mesmo esta há de ser vivida com dignidade) tem sido reiteradamente considerada como o princípio (e valor) de maior hierarquia da nossa e de todas as ordens jurídicas que a reconheceram, aspecto que nos remete ao problema de uma eventual relativização da dignidade e da necessidade de uma ponderação (e, por conseguinte, também de uma hierarquização) de bens, que aqui vai apenas referido e que mereceu uma abordagem específica em outra ocasião. Assim, precisamente no âmbito desta função hermenêutica do princípio da dignidade da pessoa humana, poder-se-á afirmar a existência não apenas de um dever de interpretação conforme a Constituição e dos Direitos Fundamentais, mas acima de tudo – aqui também afinados com o pensamento 13 82 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 13-100, 2004 jurídicos – de categoria axiológica aberta) não poderá ser conceituada de maneira fixista, ainda mais quando se verifica que uma definição desta natureza não harmoniza com o pluralismo e a diversidade de valores que se manifestam nas sociedades democráticas contemporâneas, razão pela qual correto afirmar-se que (também aqui) nos deparamos com um conceito em permanente processo de construção e desenvolvimento. Assim, há que reconhecer que também o conteúdo da noção de dignidade da pessoa humana, na sua condição de conceito jurídico-normativo, a exemplo de tantos outros conceitos de contornos vagos e abertos, reclama uma constante concretização e delimitação pela práxis constitucional, tarefa cometida a todos os órgãos estatais.”13 de Juarez Freitas – de uma hermenêutica que, para além do conhecido postulado do in dubio pro libertate, tenha sempre presente ‘o imperativo segundo o qual em favor da dignidade não deve haver dúvida.’ Igualmente nesta linha argumentativa, encontramos, além dos exemplos já citados, expressiva jurisprudência pátria. Destacamos aqui, no âmbito dos Tribunais Superiores, o Acórdão proferido pela Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça que teve como Relator o ilustre Ministro Ruy Rosado de Aguiar, que, em seu magistral voto, além de destacar a necessária eficácia do princípio da dignidade da pessoa nas relações entre particulares, sustentou a inconstitucionalidade da prisão civil do depositário na hipótese de contrato de alienação fiduciária em garantia, justamente com base numa exegese afinada com as exigências da dignidade da pessoa, entendimento que (no concernente à primazia da dignidade no âmbito de uma hierarquização de valores) radica também na base das decisões que têm considerado inconstitucional o dispositivo legislativo que permite a penhora do imóvel do fiador, quando o mesmo lhe serve de moradia, entre outras tantas que aqui poderiam ser colacionadas.” “Assim, para além da compreensão de que também na sua perspectiva jurídico-normativa (que não exclui uma dimensão normativa de cunho moral) a dignidade da pessoa reclama uma aproximação conceitual (possível e necessária), verificamos que a construção de uma concepção jurídica da dignidade não dispensa uma contextualização histórico-cultural e da atuação concretizadora dos órgãos estatais, notadamente (mas não exclusivamente) do legislador e dos órgãos judiciários. Também importa destacar que na ordem constitucional brasileira a dignidade da pessoa assumiu (em que pese as possíveis controvérsias a respeito) a condição privilegiada de princípio e valor fundamental, que, por outro lado, não exclui uma dimensão subjetiva, no sentido de que a dignidade da pessoa pressupõe e exige um complexo de direitos e deveres fundamentais da pessoa. Situando-nos já na seara das vinculações entre a dignidade da pessoa e os direitos fundamentais, destacamos aqui o princípio da necessária interpretação conforme a dignidade, que incide mesmo no âmbito da solução de conflitos entre direitos fundamentais, por ocasião da indispensável hierarquização levada a efeito nestas circunstâncias, aspecto que já vem sendo considerado também pela jurisprudência pátria. Para além disso, tivemos oportunidade de demonstrar que a dignidade da pessoa opera como referencial para a construção de um conceito materialmente aberto de direitos fundamentais, seja para a segura identificação de direitos fundamentais dispersos pelo texto constitucional, seja para o efeito de viabilizar, com fundamento direto no princípio da dignidade da pessoa, o reconhecimento de posições jurídico-fundamentais (na condição de direitos subjetivos) autônomas ou pelo menos não expressamente reconhecidas pelo Constituinte.” R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 13-100, 2004 83 Todos os operadores de direito, convergem na contemporaneidade sobre a necessidade de que só com uma interpretação fundada na realidade histórica, com vistas a uma compreensão de que somos seres situados, que somos um com os outros, que estamos na busca de métodos – que na realidade nada mais são que ferramentas capazes de dar sentido aos textos e aos fatos – de que só com a concretização da efetiva dignidade da pessoa humana, qualidade ou elemento que a faz humana, será a sociedade universal capaz de coibir ou de enfrentar as questões que envolvem a bioética. Ou seja, somente com a ciência e a consciência de que somos seres no mundo e de que somos capazes de nos autodeterminarmos, sem prejuízos ou pré-juízos sobre os outros. Não se pode, também, olvidar que, à guisa de atendimento ao princípio da dignidade humana, abre-se um leque de pareceres, doutrinas e decisões que, à míngua de qualquer liame com a essência da dignidade, utilizam-na para dar um “ fundamento” àqueles textos. Não é este o sentido que se deve ter do que seja dignidade. Dignidade é sinônimo de ser humano, porque enfeixa o conjunto de necessidades fundamentais para que assim se o reconheça. Por tudo isso, mister que os avanços da biotecnologia sequer arranhem essa qualidade porque aí o próprio objetivo e fim útil e último de tais pesquisas tornar-se-iam irremediáveis paradoxos. Busca-se a cura, busca-se o progresso e termina-se com a condição humana. Acaba-se com a “humanidade”, que é a qualidade primeira e fundamental da pessoa humana. Portanto, humanidade e dignidade estão umbilicalmente ungidas a um só elemento. 7 – Considerações finais Constatada a efetiva necessidade de se plasmarem princípios universais com carga de normatividade capazes de ingressarem nos sistemas jurídicos nacionais, de forma a permitir, por meio de uma fiscalização efetiva, uma coerção ou sanção para sua obediência, com objetivo de preservar a dignidade, a liberdade e a vida de qualquer ser humano, conclui-se, em um primeiro momento, que esse campo novo da bioética é pleno de questões em constantes mutações, de forma que somente o 14 ECO, Umberto. Cinco escritos morais. 5ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2001. P. 84 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 13-100, 2004 reconhecimento de princípios norteadores desta atividade será capaz de frear o abuso possível de ocorrer na busca de controles sobre as descobertas e intervenção nos genes. Constatado, também, que os princípios fundamentais, aqueles inscritos ou imanentes nas constituições dos Estados soberanos, só podem ser obtidos a partir de um consenso universal do que seja “tolerável”. Daí a importância do pensamento de Umberto Eco :14 “Houve formas de tolerância não-racistas como a perseguição aos hereges ou a intolerância das ditaduras contra seus opositores. A intolerância é algo mais bem profundo, que está na raiz de todos os fenômenos que considerei até aqui. Fundamentalismo, integrismo, racismo pseudo-científico são posições que pressupõem uma doutrina. A intolerância coloca-se antes de qualquer doutrina. (...) A intolerância em relação ao diferente ou ao desconhecido é natural na criança, tanto quanto o instinto de se apossar de tudo quanto deseja. (...) a tolerância permanece um problema de educação permanente dos adultos, pois na vida cotidiana estamos sempre expostos ao trauma da diferença. (...) A intolerância mais perigosa é exatamente aquela que surge na ausência de qualquer doutrina, acionada por pulsões elementares. (...) A intolerância selvagem baseia-se em um curto-circuito categorial que pode, depois, ser emprestada a qualquer doutrina racista: se alguns entre os albaneses que entraram na Itália no ano passado tornaram-se ladrões ou prostitutas (e é verdade), todos os albaneses são, portanto, ladrões e prostitutas. É um curto-circuito terrível porque constitui uma tentação constante para cada um de nós: basta que nos roubem a mala no aeroporto de um país qualquer para que voltemos para casa dizendo que é bom desconfiar da gente de tal país. Os intelectuais não podem lutar contra a intolerância selvagem, porque diante da animalidade pura, sem pensamento, o pensamento fica desarmado. E é sempre tarde demais quando decidem bater-se contra a intolerância doutrinária, pois quando a intolerância faz-se doutrina é muito tarde para vencê-la, e aqueles que deveriam fazê-lo tornam-se suas primeiras vítimas. Mas aí está o desafio. Educar para a tolerância adultos que atiram uns nos outros por motivos étnicos e religiosos é tempo perdido. Tarde demais. A intolerância selvagem deve ser, portanto, combatida em suas raízes, através de uma educação constante que tenha início na mais tenra infância, antes que possa ser escrita em um livro, e antes que se torne uma casca comportamental espessa e dura demais. (...) Aceitar o intolerável coloca em questão nossa própria atividade. É preciso assumir a responsabilidade de decidir o que é intolerável e agir depois, prontos a pagar o preço do erro. (...) Mas reconhecer o intolerável quer dizer que em Nuremberg todos deveriam ser condenados à forca, mesmo que o morto fosse apenas um, e por simples omissão de socorro. O novo intolerável não é só o genocídio, mas sua teorização. E esta envolve e responsabiliza também os peões dos massacres. Diante do intolerável caem as distinções de intenções, boa-fé, erro: há somente a responsabilidade objetiva. (...) R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 13-100, 2004 85 Para assumir esta regra de conduta ( que vale também para o intolerável futuro, que nos obriga a decidir dia a dia onde está o intolerável) uma sociedade deve estar pronta para muitas decisões, algumas duras, e deve agir solidariamente ao assumir qualquer responsabilidade.” Há, pois, que se eleger o que é intolerável e conscientemente pautarem-se os regramentos por este limite. Tem-se que, em termos de missão jurídica da bioética, no campo do direito à vida digna versus progresso do acesso e uso das descobertas do programa genoma humano, há um princípio maior que talvez possa adequar-se à questão primeira sobre os limites da biotecnologia, que é a eleição do “intolerável”, ou seja, dentro da consciência de que a diferença, a alteridade, é uma realidade universal, somente com o consenso de todos que estão no planeta Terra por meio do entendimento do que seja tolerância é que se permitirá o progresso da ciência sem o engessamento das culturas locais, sem a liberalidade do poder econômico divorciado do social. A tão requerida solução para as questões éticas que surgem no embate da tecnologia avançada do Projeto Genoma Humano; as infinitas variedades de pesquisas que culminaram com o reconhecimento e a comprovação das causas de determinadas doenças, surgindo daí a prevenção por meio de vacinas ou de alterações genéticas manipuladas, devem, tenho certeza, passar pelo regramento das normas jurídicas, porque só tais enunciados são capazes de executoriedade e eficácia, são capazes de igualar ricos e pobres, são capazes de conter tudo aquilo que vai contra os direitos universalmente reconhecidos. No entanto, seria ingênuo considerar tal dimensão dentro da legislação positiva hermética, incapaz de abrir ao seu aplicador as portas de uma interpretação consentânea com os principais progressos da biotecnologia. Por tudo isso, entende-se que, em face das diferenças e da incapacidade de ver o outro do seu próprio prisma, sempre conhecemos, aprendemos, a partir de nosso próprio viver e, aí, a grande dificuldade de se estabelecer parâmetros isonômicos para todas as culturas, para todas as sociedades deste planeta. Este é, sem dúvida, o grande desafio da Bioética. Por isso, só o estabelecimento de princípios gerais é capaz de traçar fundamentos, exigir reparações, prover as insuficiências, atingir, enfim, a justiça social, que, em uma de suas faces, é a justiça de cada um dos 86 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 13-100, 2004 seres humanos vivos em suas diferenças, em suas sociedades distintas, com um mínimo capaz de admiti-los como incluídos no planeta Terra, de forma a se desenvolverem e serem capazes de gerir suas existências. Este o ideal de uma bioética principiológica e, por isso, a importância cada vez mais candente de aproximação dos estudiosos de todos os campos do conhecimento humano, na busca de um denominador comum capaz de estabelecer os parâmetros de atuação dos profissionais das ciências da saúde, mormente quando se trata de uso de material humano para pesquisas do Projeto Genoma Humano. A visão de soberania das constituições nacionais deve ceder ante a visão da soberania de acordos, tratados internacionais que permitam o gerenciamento e a fiscalização dos programas no plano nacional. Por derradeiro, o direito à vida e à liberdade, do ponto de vista jurídico, não são direitos absolutos, foram elevados a status de direitos fundamentais, como se vê da Declaração Universal dos Direitos do Homem, bem como do caput do artigo 5 º da Constituição Federal Brasileira, ao lado de outros tantos. No entanto, não são absolutos, estão limitados, porque o conteúdo mesmo de sua inviolabilidade é determinado a partir de todo um processo dinâmico de disputa entre os demais direitos fundamentais consagrados. É o caso típico do problema do aborto, onde o direito à vida do feto e o direito de liberdade da mãe entram em conflito, necessitando-se, à luz do direito positivo, mas, com fincas em uma interdisciplinariedade, decidir-se qual o de mais valia, qual o de maior importância, naquele caso e naquele momento histórico. Por isso, há efetiva necessidade de uma principiologia universal capaz de dar concretude àqueles direitos que toda e qualquer sociedade organizada tenha eleito como fundamentais e necessários à sobrevivência digna e livre do ser humano. Referências Bibliográficas: BALDI, César Augusto. Tomemos a sério os direitos humanos: apontamentos para uma hermenêutica intercultural. Tesina. Programa de Doutorado Universidad Pablo de Olavide, Sevilla, 2002. BARBOZA, Heloísa Helena & Barretto, Vicente de Paula, org. Temas de biodireito e bioética. Rio de Janeiro : Renovar, 2003. 87 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 13-100, 2004 BRAUNER, Maria Claudia Crespo. Direito, sexualidade e reprodução humana: conquistas médicas e o debate bioético. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. ECO, Humberto. Cinco escritos morais. 5. ed. Rio de Janeiro: Record, 2001. FARAH, Solange Bento. DNA segredos e mistérios. São Paulo : SARVIER, 1997. GEDIEL. José Antônio Peres. A declaração universal sobre o genoma e direitos humanos: um novo modelo jurídico para a natureza? Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Direito da Universidade Federal do Estado do Paraná, Porto Alegre, Síntese, (34): 2000. La declaration universelle sur lê génome humain et les droits de l’ homme. www.unesco.org/ibc/fr/genome/index.htm LANFREI, Geraldo Ferreira. Política Ambiental – 2002. Revista dos Tribunais. LEIRIA, Maria Lúcia Luz. Direito previdenciário e estado democrático de direito: uma (re)discussão à luz da hermenêutica. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. MORAES, Irany Novah. Erro Médico e a Justiça. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. NALINI, José Renato. Ética Geral e Profissional. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. NUNES, Luiz Antônio Rizzato. O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana: doutrina e jurisprudência. São Paulo : Saraiva, 2002. SÁ, Maria de Fátima Freire de, coord. Biodireito. Belo Horizonte : Del Rey, 2002. SÁ, Maria de Fátima Freire de. Biodireito e direito ao próprio corpo; doação de órgãos incluindo o estudo da Lei nº 9.434/97. Belo Horizonte: Del Rey, 2000. SABONA, Carlos Maria Romeo, org. Biotecnologia, Direito e Bioética; Perspectiva em Direito Comparado. Belo Horizonte: Del Rey e PUC Minas, 2002. SARLET, Ingo. Algumas notas em torno da relação entre o princípio da 88 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 13-100, 2004 dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais na ordem constitucional brasileira. In: BALDI, César Augusto, org. Os direitos humanos na sociedade cosmopolita. Rio de Janeiro: Renovar, 2004 (no prelo). R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 13-100, 2004 89 90 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 13-100, 2004 Os limites da coisa julgada na execução penal Élcio Pinheiro de Castro* Embora tenha vindo ao mundo jurídico em 1984, vale dizer, há quase 20 anos, a Lei de Execuções Penais continua oferecendo algumas curiosidades aos operadores do Direito, principalmente no que pertine aos limites da coisa julgada. A questão que se pretende analisar reúne mais de uma condenação, em especial quando substituídas as carcerárias por restritivas de direitos, nos termos do art. 44 do Estatuto Repressivo. Com efeito, a pergunta que se faz é a seguinte: até que ponto pode o Juízo das Execuções alterar decisão de primeiro grau ou Acórdão do Tribunal concedendo a discutida benesse? Objetivando materializar algumas reflexões, suponhamos que determinado cidadão tenha praticado crime de peculato. Regularmente instruído o processo, sobreveio sentença concluindo pela procedência da pretensão punitiva do Estado. O réu foi condenado a três anos de reclusão, em regime aberto. Preenchidos os requisitos legais, a privativa de liberdade restou substituída por duas restritivas de direitos pelo tempo da condenação. Na hipótese cogitada, é evidente que, se as obrigações não forem realizadas, cabe ao Juízo das Execuções promover a respectiva conversão com apoio no § 4º do art. 44 do CP, verbis: *Desembargador Federal do Tribunal Regional Federal da 4a Região. R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 13-100, 2004 91 “A pena restritiva de direitos converte-se em privativa de liberdade quando ocorrer o descumprimento injustificado da restrição imposta. No cálculo da pena privativa de liberdade a executar será deduzido o tempo cumprido da pena restritiva de direitos, respeitado o saldo mínimo de trinta dias de detenção ou reclusão”. Avançando um pouco mais para exemplificar melhor, vamos imaginar que esse mesmo cidadão, ainda desempenhando pena alternativa, seja condenado por outro crime, em um segundo processo, a dois anos de reclusão, não aplicada a substituição tendo em conta, por exemplo, a reincidência. Até aqui, também não há nenhuma novidade, pois dispõe o § 5º do referido art. 44 do CP que “sobrevindo condenação a pena privativa de liberdade, por outro crime, o juiz da execução penal decidirá sobre a conversão, podendo deixar de aplicá-la se for possível ao condenado cumprir a pena substitutiva anterior”. Vale dizer, em caso de posterior condenação, a conversão ou não das restritivas de direitos em privativa de liberdade vai depender do regime inicial fixado na nova condenação. Se fechado ou semi-aberto, certamente não haverá espaço para o favor legal. Todavia, outra será a solução cuidando-se de regime exclusivamente aberto pelo fato de a Lei Penal (§ 1º do art. 36) autorizar o reeducando a trabalhar ou freqüentar curso, fora do estabelecimento prisional, durante o dia, permanecendo recolhido no período noturno e dias de folga. Ora, se pode trabalhar e estudar, sem dúvida poderá continuar cumprindo pena substitutiva precedente. Logo, se na segunda condenação for fixado regime aberto, a substituição da privativa de liberdade outorgada na condenação anterior pode ser mantida por compatível com a reprimenda posterior. Isso não acontecendo, deve ser convertida em carcerária. Contudo, tornando a questão um pouco mais complexa, vamos estabelecer que a segunda condenação, por qualquer motivo (certo ou errado) também tenha sido substituída por prestação de serviços à comunidade e pecuniária. Em síntese, temos agora duas condenações, apoiadas em dois processos distintos, pela prática de dois crimes, ambas substituídas por restritivas de direitos com trânsito em julgado. Estando o acusado a cumprir pena alternativa pertinente ao primeiro processo, pergunta-se: como deverá proceder o juiz da execução ao 92 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 13-100, 2004 receber os autos da segunda condenação? Consoante determinada corrente jurisprudencial, cabe ao julgador a) revogar a substituição das penas com apoio nos arts. 66, III, a, e 111 da Lei 7210/84; b) promover a soma das privativas de liberdade pela regra do concurso material (art. 69 do CP); c) aplicar a detração pelo tempo já cumprido; d) fixar o regime inicial semi-aberto em razão da pena ser superior a quatro anos (ou fechado se acima de oito, dependendo do número de condenações substituídas) bem como expedir mandado de prisão. Em que pese a douta orientação (por ainda não convencido) venho sustentando o entendimento de que: “condenado o paciente em feitos diversos – havendo ocorrido em todos eles, substituição da pena privativa de liberdade por restritivas de direitos – urge somar as sanções alternativas impostas por igual período, afastando-se assim decisum impondo o cumprimento em regime semi-aberto, sob pena de ofensa à coisa julgada.” (HC nº 2002.04.01.048145-7/SC, 8ª Turma do TRF da 4ª Região, unânime, julg. em 10.02.2003, publicado no DJU em 19.02.2003) Tal inteligência também foi adotada em outro precedente do mesmo Colegiado, enfrentando situação idêntica, cujo Acórdão restou ementado nas seguintes letras: “HABEAS CORPUS. JUÍZO DA EXECUÇÃO. LEI Nº 7.210/84. AGRAVO. EFEITO SUSPENSIVO. CRIMES AUTÔNOMOS. SOMATÓRIO DAS PENAS. SANÇÕES PRIVATIVAS DE LIBERDADE SUBSTITUÍDAS POR RESTRITIVAS DE DIREITOS. COISA JULGADA. 1. A inexistência de efeito suspensivo ao agravo cabível contra as decisões proferidas pelo juízo da execução, conforme previsto no art. 197 da Lei nº 7.210/84, não afasta a possibilidade de uso do habeas corpus visando coibir constrangimento ilegal, desde que tal ocorrência esteja comprovada de plano. 2. Cuidando-se de delitos autônomos, pelos quais o réu foi processado no âmbito de ações penais diversas, cumpre proceder ao somatório das penas, quando da respectiva execução, tal como ocorreria caso os crimes tivessem sido objeto de uma só demanda, aplicando-se, na prática, as regras do concurso material. 3. Em respeito à coisa julgada, resta inviável, em sede executória, reverter a substituição das reprimendas por restritivas de direitos determinada em cada processo autônomo, na fase de cognição, sob o fundamento de haver o respectivo somatório ultrapassado o quantum de 04 (quatro) anos.” (HC nº 2002.04.01.047779-0/SC, Relator Des. Luiz Fernando Wowk Penteado, julg. em 16.12.2002, publ. no DJU de 15.01.2003) Na mesma linha, vale registrar julgamento unânime no HC nº 2003.04.01.002560-2/RS, Relator Des. Volkmer de Castilho, apreciado em 10.03.2003 (DJU de 26.03.2003, p. 807) e mais recentemente, no R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 13-100, 2004 93 Agravo em Execução Penal nº 2002.72.00.012178-5/SC, provido por maioria na Sessão de 11.06.2003, Relator Des. Luiz Fernando Wowk Penteado. Nas duas oportunidades, decidiu-se afastar a conversão das penas restritivas de direitos em privativa de liberdade, revogando-se as ordens de prisão expedidas. Com efeito, no ponto, penso que ao Juízo da Execução Penal cabe respeitar não só o princípio da legalidade, mas sobretudo os ditames da sentença condenatória transitada em julgado. A imutabilidade da res judicata impede seja a situação do réu modificada para pior, mostrando-se incabível alterar o status libertatis do indivíduo sem expressa autorização legal. De início, cumpre ressaltar que, na questão ora levantada, não há se cogitar de aplicação dos critérios pertinentes ao concurso formal ou crime continuado, porquanto os delitos foram praticados mediante duas ações, em circunstâncias distintas. Assim, a rigor, mostra-se correta a soma das penas pela regra do concurso material. Não obstante, esse somatório há de levar em conta os parâmetros ditados em cada decisão de primeiro grau ou nos Acórdãos proferidos – onde, de forma expressa, restou fixada ou mantida a substituição das reprimendas privativas de liberdade por restritivas de direitos, ao entendimento (implícito ou não) de serem estas suficientes na espécie, adequando-se portanto ao grau de reprovabilidade da conduta, bem como às condições pessoais do sentenciado. (art. 44 do Estatuto Repressivo) Logo, com a devida vênia, tenho que ao Magistrado responsável pelo processo de execução penal não é conferido poder para deliberar de forma diversa, sob pena de afrontar os limites da coisa julgada, eis que o direito à substituição das penas carcerárias por sanções restritivas já restou consolidado e integrado no patrimônio jurídico do réu, por decisão judicial definitiva. Além disso, como salientado, a conversão das penas alternativas em carcerária pelo Juízo das Execuções encontra-se adstrita ao eventual descumprimento injustificado de qualquer das obrigações impostas (artigo 44, § 4o, do CP c/c art. 181 da LEP) ou quando incompatível com nova condenação a pena privativa de liberdade por outro crime (art. 44, § 5º, do mesmo Diploma). Ausente qualquer desses parâmetros, impõe-se a observância do ato judicial transitado em julgado, nos seus exatos termos. 94 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 13-100, 2004 O comando inscrito no art. 111 da LEP, invocado pelos defensores da aplicação do concurso material levando em conta as penas privativas, não confere amparo legal à supressão das restritivas de direitos fixadas. Veja-se o teor do apontado dispositivo: “Quando houver condenação por mais de um crime, no mesmo processo ou em processos distintos, a determinação do regime de cumprimento da pena será feita pelo resultado da soma ou unificação das penas, observadas, quando for o caso, a detração ou a remição”. Importa notar que essa regra se encontra no Capítulo I da Lei de Execução Penal, vale dizer, trata especificamente “das penas privativas de liberdade”, bem como incluído na Seção II, “dos regimes”. O artigo precedente (art. 110) dispõe que “o Juiz, na sentença, estabelecerá o regime no qual o condenado iniciará o cumprimento da pena privativa de liberdade, observado o disposto no art. 33 e seus parágrafos do Código Penal”. Portanto, a hipótese prevista no aludido comando legal diz respeito unicamente à regressão do regime prisional fixado para outro mais severo decorrente da soma das penas privativas de liberdade. Toda a jurisprudência encontrada a respeito do tema situa-se nesse sentido, ou seja, debate-se a transposição do regime aberto para o semi-aberto ou deste para o fechado. Assim, é de se concluir, no mínimo, que a interpretação extensiva que se pretende conferir ao referido artigo 111 da Lei de Execuções para contemplar situações nele não previstas configura analogia in malam partem, incabível em nosso ordenamento jurídico-penal, não podendo, portanto, ser empregada em desfavor do réu. (nesse sentido, v. a lição de Assis Toledo, em sua obra Princípios Básicos de Direito Penal, p. 27) Afora isso, tal dispositivo não trata das penas restritivas de direitos, as quais são abordadas no Capítulo II da Lei 7.210/84, sendo que as possibilidades de sua conversão restam enumeradas taxativamente no art. 181 do mesmo Diploma Legal, verbis: “Art. 181. A pena restritiva de direitos será convertida em pena privativa de liberdade nas hipóteses e na forma do art. 45 e seus incisos do Código Penal (em sua antiga redação). § 1º A pena de prestação de serviços à comunidade será convertida quando o condenado: a) não for encontrado por estar em lugar incerto e não sabido, ou desatender a intimação por edital; b) não comparecer, injustificadamente, à entidade ou programa em que deva prestar serviço; c) recusar-se, injustificadamente, a prestar o serviço que R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 13-100, 2004 95 lhe foi imposto; d) praticar falta grave; e) sofrer condenação por outro crime à pena privativa de liberdade, cuja execução não tenha sido suspensa.” Ao contrário do que se sustenta, a alínea e, acima referida, não autoriza a conversão na hipótese de condenação superveniente também substituída por penas restritivas, porquanto essa previsão legal se destina tão-só aos casos em que a nova sentença impôs exclusiva sanção carcerária, vale dizer, se por qualquer motivo a privativa de liberdade encontra-se suspensa, não há se cogitar de conversão. Comentando esse regramento, leciona Mirabete que: “também ocorrerá a conversão quando o agente sofrer condenação por outro crime à pena privativa de liberdade cuja execução não tenha sido suspensa (letra e). É uma conseqüência lógica do sistema, já que, sofrendo nova condenação, agora à pena privativa de liberdade, devendo cumpri-la por não ter sido concedido o sursis, fica o condenado impedido de prestar serviços à comunidade. Esta sanção, portanto, deve ser convertida em privativa de liberdade, cumprindo-a o condenado cumulativamente com a nova sanção imposta. Havendo, porém, possibilidade de cumprimento da pena substitutiva anterior, é facultado ao juiz deixar de promover a conversão (art. 44, § 5º, com a nova redação). Assim, se houver nova condenação à pena de multa ou restritiva de direitos, ou mesmo à pena privativa de liberdade com concessão do sursis, não haverá conversão”. (Execução penal, Ed. Atlas, 10ª edição, p. 716) É inafastável que a substituição da reprimenda por sanções restritivas precede à hipótese de sursis, mostrando-se mais favorável ao acusado - pois a suspensão condicional só será concedida “desde que não seja indicada ou cabível a substituição prevista no art. 44” (art. 77, III, do CP). Forçoso, pois, reconhecer que a melhor interpretação da alínea e do art. 181 da LEP é no sentido de que a prestação de serviços à comunidade deva necessariamente ser convertida em privativa de liberdade apenas quando ocorrer nova condenação à pena de prisão sem qualquer substituição ou suspensão. Por outro lado, sobre o tema, vale observar que o art. 45 do CP, em sua antiga redação, dizia o seguinte: “A restritiva de direitos converte-se em privativa de liberdade, pelo tempo da pena aplicada, quando: I – sobrevier condenação, por outro crime, à pena privativa de liberdade cuja execução não tenha sido suspensa; II – ocorrer o descumprimento injustificado da restrição imposta”. Como se vê, não obstante de forma tímida, o antigo dispositivo também só assegurava a conversão nos casos em que “a execução 96 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 13-100, 2004 não tenha sido suspensa” por qualquer motivo ou tenha o condenado descumprido a obrigação. Entretanto, com a edição da Lei nº 9.714/98, tais disposições se alargaram nos termos do art. 44, §§ 4º e 5º, do Estatuto Repressivo. Segundo Celso Delmanto, “quanto à alínea e do art. 181 da LEP, que previa a conversão da pena restritiva de direitos na hipótese do sentenciado sofrer nova condenação à pena privativa de liberdade sem sursis, foi ela tacitamente revogada pelo art. 44, § 5º, do CP (...) Caso sobrevenha condenação à pena privativa de liberdade por outro crime, o juiz decidirá sobre a conversão, podendo deixar de aplicá-la se for possível ao condenado cumprir a pena substitutiva anterior. Ao contrário do que ocorre com o sursis, no qual havendo condenação posterior por crime doloso durante o período de prova a sua revogação é obrigatória (art. 81, I) tratando-se de pena substitutiva prevista no art. 43 e seguintes a sua conversão em privativa de liberdade, na mesma hipótese, só terá incidência como extrema ratio, conforme expressa disposição do final deste § 5º...” (CP Comentado, 5ª edição, Ed. Renovar, p. 84) Aliás, a jurisprudência do TRF da 4ª Região já analisou a aplicabilidade do parágrafo 5º do art. 44 do CP, em situação análoga, nos termos do Acórdão assim ementado: “HABEAS CORPUS. UNIFICAÇÃO DE PENAS. CONCURSO MATERIAL. MANUTENÇÃO DAS PENAS RESTRITIVAS DE DIREITOS. EXECUÇÃO PROVISÓRIA. Correto o reconhecimento do concurso material quando da unificação das penas, mesmo se o réu é condenado em processos distintos, com penas distintas e substituídas por penas restritivas de direitos estabelecidas na sentença. A soma delas não leva necessariamente à pena corporal quando exceda o total o limite de quatro anos. Interpretação do art. 44, § 5º, CP. Ordem parcialmente concedida.” (HC nº 2002.04.01.057106-9/RS, unânime, Rel. Des. Volkmer de Castilho, julg. em 10.03.2003) Do voto proferido pelo eminente Relator, permito-me transcrever o seguinte trecho: “O Juiz considerou corretamente haver concurso material, porque as condutas delituosas foram perpetradas mediante ações e resultados distintos, mas equivocou-se ao entender pela não substituição da pena corporal por restritivas de direitos. Estas, as penas restritivas de direitos, ao contrário, devem ser somadas, porque já foram individualmente substituídas, respeitando, assim, as decisões proferidas. É que, além disso, o parágrafo 5º do art. 44 do CP prevê a possibilidade da manutenção da pena restritiva de direitos mesmo sobrevindo nova condenação com pena privativa de liberdade, quando for possível ao condenado o cumprimento das penas restritivas impostas. Conforme ensina Júlio Fabbrini Mirabete in Código Penal Interpretado: ‘Dispõe a nova Lei de Execução Penal que as penas restritivas de direitos serão convertidas em pena R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 13-100, 2004 97 privativa de liberdade quando o executado sofrer nova condenação por outro crime à pena privativa de liberdade, cuja execução não tenha sido suspensa (art. 181, § 1º, e). A regra, entretanto sofreu atenuação, pois se permite que, no caso de superveniência de nova condenação, o juiz pode deixar de aplicar a conversão se, não obstante a nova condenação, além da hipótese de suspensão condicional, for possível ao condenado cumprir a pena restritiva de direitos anterior, por inexistir incompatibilidade com a execução da nova reprimenda imposta. Não se trata mais, portanto, de conversão automática de pena restritiva de direitos em privativa de liberdade quando ocorrer nova condenação’ (...) Ora, se a lei prevê expressamente que mesmo sobrevindo condenação com pena corporal, pode ser mantida a pena restritiva já imposta, não vejo razão para não manter duas penas restritivas de direitos quando o Juiz da condenação considerou-as mais adequadas. É esse o parecer do MPF (fls. 270/2) com fundamento na melhor interpretação do art. 44, § 5º, do CP, que adoto...” De todo modo, por qualquer ângulo que se observe, tal inteligência não se modifica. Independentemente da ordem das condenações (alternativa/privativa ou privativa/alternativa), em determinadas oportunidades as alternativas devem ser mantidas, em outras não. A propósito, veja-se interessante Acórdão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul que bem dimensiona a questão: “PROCESSUAL PENAL. AGRAVO EM EXECUÇÃO. SUPERVENIÊNCIA DE CONDENAÇÃO. CONVERSÃO DE RESTRITIVA DE DIREITOS EM PRIVATIVA DE LIBERDADE. IMPOSIÇÃO DO ART. 44, § 5º, DO CP. Estando o Agravante cumprindo pena privativa de liberdade (regime fechado) resta impossibilitada a prestação de serviços à comunidade, porquanto incompatível o cumprimento simultâneo das sanções. À unanimidade, deram provimento ao agravo ministerial para converter a pena substitutiva de prestação de serviços à comunidade em privativa de liberdade.” (Agravo de Execução nº 70003761350, Câmara Especial Criminal do TJRS, Relator Des. Reinaldo José Rammé, julg. em 19.03.2002) Repetindo: caso a anterior condenação seja compatível com a nova (ou vice-versa) – vale dizer, mostrando-se possível o cumprimento simultâneo das penas restritivas de direitos com a privativa de liberdade – não há lugar para a conversão e menos ainda quando as duas privativas de liberdade foram substituídas por restritivas de direitos com trânsito em julgado para a acusação. 98 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 13-100, 2004 Tribunal de Contas Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz * A idéia da criação de um Tribunal de Contas surgiu no Império, sendo, porém, apenas concretizada na República, graças à iniciativa de Rui Barbosa, com a finalidade de fiscalizar as contas públicas da União. O Tribunal de Contas é um tribunal administrativo, dotado de ampla independência e autonomia, mas que não integra o Poder Judiciário, sendo órgão auxiliar do Legislativo, exercendo, portanto, uma jurisdição administrativa. As atribuições do Tribunal de Contas estão enumeradas no art. 71 da Constituição Federal, merecendo especial destaque aquela prevista no inciso I do aludido dispositivo constitucional, ou seja, a apreciação das contas do presidente da República. No exercício dessa competência atribuída ao Tribunal de Contas da União, onde é examinado se na execução do orçamento o Executivo agiu de acordo com as autorizações legislativas e as regras de contabilidade pública, funcionando como controlador da legalidade de tais atos, sem emitir juízo político das despesas e receitas públicas, que incumbe exclusivamente ao Congresso Nacional, reside, talvez, a mais delicada e importante das atribuições conferidas pela Constituição àquele Tribunal. Ficou célebre no Brasil, como escreveu Aliomar Baleeiro, em trabalho publicado na Revista de Direito Público, nº 11, a decisão proferida pelo *Desembargador Federal do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 13-100, 2004 99 ministro Francisco Thompson Flores, na qualidade de relator das contas do presidente Getúlio Vargas, pouco antes do advento do Estado Novo, oportunidade em que o Tribunal de Contas da União rejeitou as contas do então presidente da República, em decisão até hoje sem precedentes na história da Corte de Contas. Tão importante foi esse julgamento, até pelo seu caráter inédito, criando um embaraçoso tormento ao presidente Vargas, a ponto de expô-lo a um processo de impeachment, que Baleeiro o considera como uma das causas do golpe de novembro de 1937. Realmente, basta referir que o ministro Francisco Thompson Flores, logo após a implantação do Estado Novo, em represália à decisão tomada pelo Tribunal de Contas, da qual foi relator, foi aposentado compulsoriamente pelo Ditador, que se valeu dos poderes excepcionais que lhe conferia a Carta de 1937. A jurisprudência do STF, reafirmada recentemente pelo TRF da 4ª Região, em acórdão de que fui relator, orienta-se no sentido de que o julgamento proferido pelos Tribunais de Contas, ao apreciar as contas do Chefe do Poder Executivo, configura tal competência uma jurisdição especial, na expressão do saudoso jurista Ruy Cirne Lima, insuscetível de revisão pelo Poder Judiciário, no que diz com o seu merecimento, o que revela a importância que a Constituição conferiu às Cortes de Contas, cuja conseqüência imediata é afastar da vida pública aquelas autoridades que não observaram, no desempenho de suas atribuições, as regras do direito administrativo e de contabilidade pública. 100 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 13-100, 2004 ACÓRDÃOS R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 13-100, 2004 101 102 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 13-100, 2004 DIREITO ADMINISTRATIVO E DIREITO CIVIL R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 103 104 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 13-100, 2004 APELAÇÃO CÍVEL Nº 2000.04.01.138330-6/PR Relator: O Exmo. Sr. Des. Federal Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz Rel. p/Acórdão: A Exma. Sra. Desa. Federal Marga Barth Tessler Apelante: Ministério Público Advogado: Dr. Luís Alberto d’ Azevedo Aurvalle Apelado: Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis - Ibama Advogados: Drs. Marlene Dias Carvalho e outro Apelado: Consórcio Satis Advogados: Drs. Romeu Felipe Bacellar Filho e outro EMENTA Direito Administrativo e Ambiental. Licitação. Lei nº 8.666/93. Parque Nacional do Iguaçu. Desacordo do Programa Parque Iguaçu com as diretrizes dos parques nacionais. Inocorrência. Código florestal. Decreto nº 84.017/79. Ausência de projeto básico. Programa de revitalização do parque. 1. É equivocada a ótica desta ação civil pública, pois a geração de recursos, empregos, aumento de arrecadação, redução de gastos é compatível, e diria até necessária, para a preservação do Parque Nacional do Iguaçu. 2. Quando a doutrina examina o Código Florestal e o Decreto nº 84.017/79 e afirma que é absolutamente vedada a exploração econômica R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 105 dos recursos naturais está a se referir à exploração econômica no sentido de esgotamento, destruição, alteração. Não há vedação para a sua utilização para fins educacionais, recreativos e científicos, finalidade esta, aliás, expressa no artigo 5º do Código Florestal que diz que o objetivo dos parques é resguardar atributos excepcionais da natureza conciliando a proteção integral com a utilização sustentável. 3. No caso dos autos, a revitalização é condição necessária e urgente, premente até diante da realidade de que parte da população não tolera a sua presença e passou a agredi-lo na sua integridade. Seria caso até de dispensa de licitação diante do perigo da pressão antrópica e dos movimentos agressivos que são veiculados até pela imprensa de forma aberta. 4. Não se discute que para licitações e concessões em geral há necessidade do projeto básico, contudo o caso destes autos tem a peculiaridade de ter o projeto básico com o nome de Programa de Revitalização do Parque Nacional do Iguaçu, ao que consta do ano de 1981, subdivididos em dois subprogramas: o do Manejo do Meio Ambiente e o de Revitalização de Visitação. 5. Destes dois programas foram retirados elementos para compor os editais vergastados e, como se pode perceber pelo manuseio dos autos, o projeto básico (art. 7º, § 2º) existe, é básico, como quer a lei. No Programa de Revitalização há os fundamentos mínimos do que a administração pretendia com a licitação. 6. O Edital, ao não especificar em alguns aspectos, em especial os materiais a serem utilizados, se ateve às recomendações dos técnicos, que poderiam ou não, note-se, ser aceitas pela autoridade responsável pelo Edital. Mesmo que não-aceitas, não transformam em ilegal o procedimento. 7. A licitação foi desfechada com suficiente projeto básico e, no caso concreto, para a maioria dos serviços – por já estarem sendo prestados – e para a grande parte dos demais aspectos, reuniu o conjunto de elementos necessários para a caracterização da obra, atividade ou serviço. 8. Os custos foram projetados com base em levantamento sobre a freqüência ao Parque e, assim, foram atendidas as exigências da Lei nº 8.666/93. A lei não impõe o projeto executivo como condição para a licitação. É verdade que não há definição detalhada, o que faz aumentar em muito a responsabilidade das autoridades administrativas na atividade de 106 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 controle e cobrança, e o contrato dá ao IBAMA o poder para fiscalizar a sua execução. 9. A presente Ação Civil Pública, mesmo improcedente, terá servido para alertar ao empreendedor-concessionário da magnitude de sua responsabilidade, bem como para reforçar nos agentes públicos, especialmente do IBAMA, a certeza de suas grandes responsabilidades e da necessidade do pleno exercício do poder-dever de bem e fielmente cumprirem com o dever de fiscalizar a execução do contrato. 10. Improvido o apelo. ACÓRDÃO Vistos e relatados estes autos entre as partes acima indicadas, decide a Terceira Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por maioria, vencido o Desembargador-Relator Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz, negar provimento ao recurso, nos termos do relatório, voto e notas taquigráficas que ficam fazendo parte integrante do presente julgado. Porto Alegre, 3 de dezembro de 2002. Desa. Federal Marga Barth Tessler, Relatora p/Acórdão. RELATÓRIO O Exmo. Sr. Des. Federal Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz: O parecer do MPF, a fls. 693/5, expõe com precisão a controvérsia, verbis: “1 - Trata-se de Apelação Cível interposta pelo Ministério Público Federal contra decisão do Exmo. Sr. Dr. Juiz Federal da 7ª Vara de Curitiba - Seção Judiciária do Paraná, proferida nos autos da Ação Civil Pública que promoveu contra o IBAMA - Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis e Consórcio Satis, objetivando a declaração de nulidade de editais de licitação relacionados à concessão de uso e exploração do Parque Nacional do Iguaçu, onde se concluiu pela improcedência da ação. Como se percebe dos autos, o Ministério Público Federal, por intermédio da PR/ PR, considerando a existência de ilegalidades no Edital de Licitação destinado à cessão de exploração do Parque Nacional do Iguaçu, promoveu Ação Civil Pública contra os réus anteriormente nominados, com o objetivo de obter a declaração de nulidade dos contratos derivados do noticiado certame, imputando-lhe os seguintes defeitos: - conflito entre os objetivos declarados no Edital e aqueles estabelecidos legalmente para um Parque Nacional; - ausência de um projeto básico e de um projeto executivo, indevidamente delegados pelo Poder Público ao licitante vencedor; - ausência de conclusão do Plano de Manejo em elaboração, absolutamente necessário para a realização de visitação sem riscos para os objetivos estabelecidos por Lei R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 107 para o Parque Nacional. Liminar concedida pela inferior instância, posteriormente cassada por esse TRF da 4ª Região. Citados os réus ofereceram suas respectivas contestações, onde, em síntese, argumentaram o seguinte: - inadequação da via processual eleita, vez que a ACP, prevista em numerus clausus, não se presta à defesa de interesses individuais; - a ‘conservação e aproveitamento do potencial de visitação e a retomada da educação e pesquisa ambiental’ são mecanismos ótimos para a preservação dos ecossistemas naturais, de modo que no caso concreto a conduta do IBAMA não está contrariando o objetivo legal estabelecido para os Parques Nacionais; - a exigência de projeto básico restringe-se às licitações para ‘obras e serviços a serem remunerados pelo Poder Público’, isso sem contar que os ‘termos de referência’ suprem os itens legais que compõem a citada exigência; - ‘as intervenções a serem procedidas no mesmo, já encontram-se com instalações em funcionamento, apenas em estado precário e insuficiente para a prestação adequada dos serviços, no atendimento aos visitantes’. Sentença de fls. concluiu no seguinte sentido: a) preliminarmente: - afastou a alegação de descabimento da ação, sob o fundamento da possibilidade de utilização da tutela preventiva em termos de meio ambiente; b) no mérito, julgou o pedido improcedente pelos seguintes fundamentos: - os fatos recolhidos de todo processo licitatório deixam certo que os objetivos do IBAMA são bem mais amplos que os indicados na inicial, além de compatíveis com a proteção do ecossistema do Parque Nacional do Iguaçu; - a exigência legal, na fase editalícia, é apenas a de realização do ‘projeto básico’, que, no caso concreto, não pode ser aplicado porque as obras não serão custeadas pelo Poder Público e têm pequena proporção em relação ao projeto como um todo, isso sem contar que a inicial não apresentou qualquer ‘prejuízo concreto, sensível, real e palpável’; ademais, tal exigência foi suprida pelo ‘Programa de Revitalização’; - o Plano de Manejo não era impeditivo da realização do certame, principalmente porque o Edital ‘subordinou a concessão ao pleno atendimento do Plano de Manejo do Parque Nacional do Iguaçu, o que, em outras palavras, significa dizer que as obras pretendidas pelas licitações só poderiam ser realizadas em conformidade com o Plano de Manejo vigente quando da execução das obras...’ O cerne da questão, pois, ao lado de matéria processual, consiste em apurar se os objetivos da licitação estão em contradição com aqueles traçados por lei para os Parques Nacionais, se o projeto básico era dispensável e/ou foi suprido pelos termos de referência, bem como a legalidade de se adequar as obras ao Plano de Manejo futuro.” É o relatório. VOTO 108 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 O Exmo. Sr. Des. Federal Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz: Preliminarmente, impõe-se esclarecer que a exceção de impedimento oposta restou rejeitada, por unanimidade, pela Egrégia 2ª Seção desta Corte. A decisão foi publicada no D.J.U., II, de 09.10.2002, com a seguinte ementa, verbis: “ARGÜIÇÃO DE IMPEDIMENTO Nº 2002.04.01.021669-5/RS RELATOR: DES. FEDERAL EDGARD A LIPPMANN JUNIOR EXCIPIENTE: CONSÓRCIO SATIS ADVOGADO: Romeu Felipe Bacellar Filho e outro EXCEPTO: DESEMBARGADOR FEDERAL RELATOR DA 3ª TURMA DO TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 4ª REGIÃO INTERESSADO: MINISTÉRIO PÚBLICO ADVOGADO: Luís Alberto d’Azevedo Aurvalle INTERESSADO: INSTITUTO BRASILEIRO DO MEIO AMBIENTE E DOS RECURSOS NATURAIS RENOVÁVEIS - IBAMA ADVOGADO: Marlene Dias Carvalho e outro EMENTA ARGÜIÇÃO DE IMPEDIMENTO. QUINTO CONSTITUCIONAL E EXERCÍCIO DE FUNÇÃO DE CHEFIA DO MPF, JUNTO AO TRIBUNAL. AUTUAÇÃO DOS FEITOS, PARA FINS ADMINISTRATIVOS, EM NOME DO PROCURADOR-CHEFE. EXERCÍCIO DA INDEPENDÊNCIA DA FUNÇÃO JURISDICIONAL. IMPARCIALIDADE, DEVER DO MAGISTRADO E DO AGENTE DO MINISTÉRIO PÚBLICO. NEUTRALIDADE, CONDIÇÃO UTÓPICA. A garantia constitucional da participação de membros egressos da OAB e do MP na composição dos Tribunais não pode excluir da apreciação dos referidos Juízes, respectivamente, feito semelhante a algum em que tenha atuado como advogado ou no qual constou da autuação - em decorrência de função exercida -, quando nas carreiras de origem. A independência do Poder Judiciário é uma das garantias constitucionais dada ao Magistrado em prol dos jurisdicionados, não podendo ser confundida com a neutralidade, condição utópica atribuída ao ser humano. A organização administrativa do Tribunal não pode ferir os princípios legais que regem a distribuição das ações, tampouco levar à presunção de quebra da independência jurisdicional do julgador. Afastada a argüição de impedimento. ACÓRDÃO Vistos e relatados estes autos entre as partes acima indicadas, decide a Segunda Seção do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por unanimidade, rejeitar o impedimento, nos termos do relatório, voto e notas taquigráficas que ficam fazendo parte integrante do presente julgado. Porto Alegre, 09 de setembro de 2002.” R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 109 Dispõe o art. 306 do CPC, verbis: “Art. 306. Recebida a exceção, o processo ficará suspenso (art. 265, III), até que seja definitivamente julgada.” Ao interpretar o mencionado dispositivo legal, leciona Cândido Rangel Dinamarco, in Instituições de Direito Processual Civil, Malheiros Editores, 2001, v. 3, p. 481, verbis: “Ao dizer que a suspensão permanece até que a exceção seja definitivamente julgada, o art. 306 do Código de Processo Civil dá a entender que esse estado perduraria até quando, percorridas todas as instâncias, já não coubesse recurso algum contra o último julgamento proferido no incidente. Mas a jurisprudência é muito forte, posto que não é pacífica, na tese de que cessa a suspensão determinada naquele dispositivo quando a exceção vier a ser julgada pelo órgão competente, a saber: a) pelo juiz da causa, a de incompetência relativa ou b) pelo tribunal, as de suspeição ou impedimento do juiz. Essa linha tem em seu favor não só a circunstância de que os recursos cabíveis contra tais julgamentos carecem de efeito suspensivo, o que significa que o decidido é apto a produzir seus efeitos de imediato; como ainda a razoabilidade da retomada do curso do procedimento sem as longas esperas pelo julgamento dos recursos. Julgada a exceção de incompetência pelo juiz de primeiro grau de jurisdição, o processo voltará a fluir, no mesmo foro onde vinha fluindo ou perante aquele dado por competente, ao qual os autos serão imediatamente remetidos; julgada a de suspeição ou impedimento, também recomeçam as atividades inerentes ao procedimento principal, sob o comando do próprio juiz exceto ou daquele que o substitua, conforme a exceção haja sido rejeitada ou acolhida. Em qualquer hipótese, a efetiva cessação do estado suspensivo ocorre quando os advogados são intimados da decisão e não do momento em que ela é proferida.” Nesse sentido, o magistério de Calmon de Passos, in Comentários ao CPC, 8ª edição, Forense, Rio de Janeiro, 1998, v. 3, p. 295, verbis: “Recebida a exceção de incompetência, suspeição ou impedimento, o processo ficará suspenso, suspensão que se estende do recebimento até o julgamento definitivo da exceção. Esse termo, julgamento definitivo, reclama esclarecimento. Entende-se como tal o julgamento oferecido pelo juiz, na exceção de incompetência, porquanto o recurso interponível não tem efeito suspensivo, devendo o processo retomar seu curso. E nos casos de suspeição e impedimento, a partir da decisão oferecida pelo tribunal, na hipótese de recusa do juiz, ou a partir da aceitação, por ele, da exceção, o processo retoma o seu curso.” Dessa forma, com a publicação da decisão proferida pela 2ª Seção, cessou a suspensão do processo, motivo pelo qual trago o feito para o seu julgamento. Nesse sentido, deliberou esta Turma quando do julgamento do AI nº 2000.04.01.092190-4/PR, julgado em 17.09.2002, em que fui Relator, 110 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 verbis: “PROCESSO CIVIL. ANTECIPAÇÃO DE TUTELA. FAZENDA PÚBLICA. ART. 273, §§ 1º E 2º, DO CPC. EXCEÇÃO DE IMPEDIMENTO. ART. 306 DO CPC. EFEITOS. 1. Ao dizer que a suspensão permanece até que a exceção seja definitivamente julgada, o art. 306 do Código de Processo Civil dá a entender que esse estado perduraria até quando, percorridas todas as instâncias, já não coubesse recurso algum contra o último julgamento proferido no incidente. Mas a jurisprudência é muito forte, posto que não é pacífica, na tese de que cessa a suspensão determinada naquele dispositivo quando a exceção vier a ser julgada pelo órgão competente, a saber: a) pelo juiz da causa, a de incompetência relativa ou b) pelo tribunal, as de suspeição ou impedimento do juiz. Essa linha tem em seu favor não só a circunstância de que os recursos cabíveis contra tais julgamentos carecem de efeito suspensivo, o que significa que o decidido é apto a produzir seus efeitos de imediato; como ainda a razoabilidade da retomada do curso do procedimento sem as longas esperas pelo julgamento dos recursos. Julgada a exceção de incompetência pelo juiz de primeiro grau de jurisdição, o processo voltará a fluir, no mesmo foro onde vinha fluindo ou perante aquele dado por competente, ao qual os autos serão imediatamente remetidos; julgada a de suspeição ou impedimento, também recomeçam as atividades inerentes ao procedimento principal, sob o comando do próprio juiz exceto ou daquele que o substitua, conforme a exceção haja sido rejeitada ou acolhida. Em qualquer hipótese, a efetiva cessação do estado suspensivo ocorre quando os advogados são intimados da decisão e não do momento em que ela é proferida. 2. A antecipação de tutela apresenta pressupostos próprios e conseqüências processuais, da mesma forma, específicas, notadamente quando envolve as pessoas jurídicas de direito público, cuja execução obedece rito especial, nos termos dos artigos 730 do CPC e 100 da CF/88. 3. Trata-se, portanto, de medida de excepcional deferimento e, mesmo assim, quando preenchidos os pressupostos do art. 273 do CPC, observada a limitação do §2º, cuja legitimidade é reconhecida pela melhor doutrina (Teori Albino Zavascki, in Antecipação de Tutela, Saraiva, 1997, p.172). 4. No caso dos autos, os requisitos para sua concessão não se encontram presentes, pois a antecipação de tutela não constitui favor a ser concedido a todo vencedor da ação, nem a todo autor, em qualquer situação, mas apenas àqueles que preenchem os pressupostos insculpidos no artigo 273, caput, incisos I e II, do CPC. 5. Precedentes do STJ: REsp nº 131.853-SC, rel. Min. Menezes Direito, in DJU de 08.02.99, p.276, REsp nº 113.368-PR, rel. Min. José Delgado, in DJU de 19.05.97, p.20.593. 6. Improvimento do agravo de instrumento.” Em seu erudito parecer, a fls. 695/707, anotou o douto MPF, verbis: “- Quanto à preliminar de descabimento da ação. A tese da contestação trazida pelo IBAMA é de que a Ação Civil Pública está prevista em numerus clausus, além de não se prestar, como estaria acontecendo no caso R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 111 concreto, para a satisfação de interesses individuais. Evidente que a primeira assertiva é absolutamente improcedente, porque a Constituição Federal, modificando a previsão então existente na Lei nº 7.347/85, estabeleceu para o Ministério Público a atribuição genérica de promover a ação civil pública também para a proteção ‘de outros interesses difusos e coletivos’ (CF, art. 129-III, in fine). No caso concreto, a petição inicial indica o objetivo de proteção de dois interesses de natureza difusa, a saber: - meio ambiente (incompatibilidade do certame aos objetivos legais traçados para os Parques Nacionais e realização da licitação antes do Plano de Manejo) e patrimônio público (realização do certame sem ‘projeto básico’, o que retira a objetividade para apuração do custo das obras e deixa para o licitante, de forma puramente potestativa, a decisão de construir o que quiser, com a qualidade que desejar). Ora, o equilíbrio do meio ambiente, como se sabe, não é patrimônio individual de ‘A’, de ‘B’ ou de ‘C’, mas interesse que cerca a sociedade como um todo, desde que imprescindível para o primeiro de todos os direitos: a vida. Daí, ações que versam sobre o meio ambiente não permitem, por hipótese alguma, que o interesse que se quer seja certificado como direito se localize em alguém em particular, formando uma ‘relação-base’. Evidente que a ofensa ao meio ambiente pode trazer danos patrimoniais a alguém (derrubada de árvores em determinada propriedade particular), interesse que não se confunde com a higidez ambiental. O patrimônio público, por outro lado, ainda que tenha uma pessoa jurídica instituída para sua Administração (externa apenas um ‘interesse secundário’), não é propriedade dessa pessoa jurídica, mas de todos os cidadãos que integram o Estado enquanto instituição destinada à satisfação do bem geral (interesse primário). Impossível, do mesmo modo, a instituição da denominada ‘relação-base’ no caso do patrimônio público, principalmente porque, em termos absolutos, é impossível determinar todos aqueles que coletivamente seriam os titulares do interesse (hipótese em que haveria ‘interesse coletivo’), na medida em que a cada minuto, talvez a cada fração de segundo, morre e nasce alguém no nosso País. Assim, não há o menor cabimento de se estar a defender direito de natureza individual. 2.2 - No mérito. Os aspectos que se relacionam com a discussão sobre o mérito, para melhor compreensão, merecem uma análise particularizada de acordo com o interesse protegido. É o que se passa a proceder. 2.2.1 - Quanto à lesão ao meio ambiente. A inicial, secundada pela apelação, sustenta inicialmente a incompatibilidade do objetivo declarado no Edital (não pelo autor, como afirmou a sentença) com aquele estabelecido legalmente para os Parques Nacionais. É certo que o Edital realmente traçou como objetivos da licitação a ‘geração de emprego, redução dos gastos públicos, aumento de arrecadação do Governo e criação de condições para a retomada da educação e pesquisa ambiental’. Enquanto isso, o Decreto nº 84.017/79 estabelece que ‘o objetivo principal dos Parques Nacionais reside na preservação dos ecossistemas naturais englobados contra quaisquer alterações que os desvirtuem’. 112 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 É claro que a desnudada priorização da finalidade de satisfação de interesses econômicos, mesmo através da exploração de recursos do meio ambiente, não poderia inviabilizar o processo licitatório para revitalização do Parque Nacional do Iguaçu, salvo demonstrando-se concretamente a possibilidade de invalidação que isso causará aos objetivos legais traçados para esses locais. É que teoricamente esses objetivos podem ser compatibilizados de tal forma a que a equipe econômica do Governo fique satisfeita com proveito material buscado, ainda que eleito por ela como prioridade, desde que isso não seja motivo de ofensa ao patrimônio ambiental. Consulte-se: ‘MANEJO FLORESTAL SUSTENTÁVEL. LgBR DEC 1282 de 19.10.94, art. 1º, § 2º. ... Administração da floresta para obtenção de benefícios econômicos e sociais, respeitando-se os mecanismos de sustentação do ecossistema objeto do manejo’ (Dicionário de Direito Ambiental, Maria da Graça Krieger e Outros, p. 222, Porto Alegre, Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul/Procuradoria-Geral da República, 1998). Como no caso concreto a alegação veio de uma forma meramente teórica, ou seja, sem demonstração prática e concreta de ofensa naturalmente decorrente do empreendimento, não é possível inviabilizá-lo pelo indicado motivo. O mesmo pode ser afirmado pela ausência de um novo ‘Plano de Manejo’ para o Parque Nacional do Iguaçu, pois, como bem sustentou a sentença para afastar o defeito apontado, a execução do plano de revitalização deverá obedecer a esse planejamento de administração. Então, sendo possível, como de fato é, compatibilizar o interesse econômico com a preservação do meio ambiente, não se pode, pelo menos por força de argumentação exclusivamente teórica, enxergar vício no processo licitatório objeto da ação. 2.2.2 - Quanto à perigosidade de dano ao patrimônio público. Neste ponto, com pedido de todas as vênias, está escancarado que a sentença traduz-se como um julgamento infantil, inocente mesmo, na medida em que trata das obrigações a cargo do licitante vencedor como se representassem um mero favor para o Poder Público. Inicialmente, é de se ver, dentro da teoria das nulidades no Direito Público externada pela doutrina de CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, que a ausência de ‘projeto básico’ é uma das hipóteses de ‘nulidade’ (= nulidade absoluta) do ato administrativo, conquanto sua repetição, da maneira como feita, ensejaria nova nulidade. Consulte-se: ‘Seguindo, neste lanço, ao menos em parte, o magistério de Antônio Carlos Cintra do Amaral, aderindo à sua tese de que é critério importantíssimo (para o autor tal critério é simplesmente decisivo) para distinguir os tipos de invalidade a possibilidade ou impossibilidade de convalidar-se o vício do ato. Por isso o autor citado prefere rejeitar a terminologia nulos e anuláveis, cifrando-se às expressões atos convalidáveis e atos não-convalidáveis. ... 163. São nulos: a) os atos que a lei assim os declare; b) os atos em que é racionalmente impossível a convalidação, pois se o mesmo R. Trib. Reg.(é Fed.dizer, 4ª Reg.oPorto Alegre, ato) a. 15, fosse n. 51, p. novamente 101-428, 2004 produzido, seria reproduzida a113 conteúdo mesmo in- validade anterior. Sirvam de exemplo: os atos de conteúdo (objeto) ilícito; os praticados com desvio de poder; os praticados com falta de motivo vinculado (salvo superveniência dele); os praticados com falta de causa. 164. São anuláveis: a) os que a lei assim os declare; b) os que podem ser repraticados sem vício. Sirvam de exemplo: os atos expedidos por sujeito incompetente; os editados com vício de vontade; os proferidos com defeito de formalidade’ (Curso de Direito Administrativo, pp. 276 e 281, São Paulo, Malheiros Editores, 1995). No caso, como a repetição de eventual procedimento licitatório, sem projeto básico, repetiria também a ofensa à legislação ordinária e à Constituição Federal, - que inadmitem a realização de um certame licitatório sem a definição precisa do seu objeto, com individualização transferida para o momento da execução do contrato (no caso concreto ainda dependente da concretização do ‘Plano de Manejo’ a que terá que observar) - é claro que o ato é absolutamente nulo. No que toca aos motivos da invalidação por ofensa ao patrimônio público, o posicionamento adotado por essa Procuradoria Regional da República sobre a matéria não é novidade, desde que já foi objeto de discussão em Agravo de Instrumento, atualmente em grau recursal, infelizmente provido por essa Egrégia Turma. Argumenta a inicial, com inafastável razão, data venia, a ausência de um projeto básico necessário para esclarecer aos concorrentes sobre as obras contraprestacionais que deveriam ser realizadas como infra-estrutura do Parque Nacional do Iguaçu, devidamente individualizadas, permitindo aos licitantes o cálculo dos seus custos. A sentença, todavia, rechaçou a argumentação com motivação variada. Procede-se à análise de cada ponto. 2.2.2.1 - Ausência da demonstração de prejuízos concretos. A tutela jurisdicional, como se sabe, pode ser buscada de forma ‘preventiva’ (ameaça de lesão a interesse) ou ‘repressiva’ (lesão a interesse já consolidada). No caso, diferentemente do que argumentou a sentença, não há necessidade de o Ministério Público Federal, em sede de busca de uma ‘tutela preventiva’ (ver JOSÉ CARLOS BARBOSA MOREIRA, Temas de Direito Processual, Segunda Série, pág. 25, Ed. Saraiva/1988), estabelecer concretamente os danos sofridos pelo patrimônio público em razão licitação, bastando que demonstre a possibilidade dessa ocorrência, o que, no caso, já deriva de presunção legal jure et de jure, porque a exigência da Lei de Licitações objetiva exatamente evitar previsões genéricas quanto ao objeto licitado, fato que somente serve para deixar o vencedor da licitação livre para realizar as obras ou serviços mais baratos e de menor qualidade, com prejuízos para o patrimônio geral. Além disso a imprecisão do objeto, inviabilizando seu custo, certamente afastou concorrentes, o que já deixa certo o prejuízo público. Então, a ausência de demonstração do dano concreto não inviabiliza a nulidade do procedimento administrativo pela ausência do ‘projeto básico’, pelo motivo simples de que no âmbito da tutela preventiva busca-se exatamente evitar a ocor- 114 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 rência desses danos. Teoricamente possível, e isso ocorrerá adiante, será a demonstração da ocorrência desses danos pela quebra do equilíbrio contraprestacional do contrato administrativo, desde que se permitiu a uma das partes realizar obras de forma puramente potestativa, além de afastar concorrentes. A citada justificativa, data venia, não encontra o menor respaldo no nosso sistema jurídico. Falso, pois, o primeiro argumento apresentado. 2.2.2.2 - Pequena proporção das obras em relação ao projeto como um todo. A leitura do Edital vai facilmente demonstrar que a licitação é um apelo à contratação com o Poder Público, de forma sinalagmática, onde o este cede o uso e exploração do Parque Nacional do Iguaçu e o licitante vencedor recebe a incumbência, como obrigação contraprestacional, de realizar obras e instalar equipamentos de infra-estrutura para tornar cômoda e possível a visitação ao referido local protegido, além de repassar-lhe parte do faturamento. Consulte-se, a propósito, a previsão editalícia que define a obrigação a cargo do licitante vencedor de implantar a infra-estrutura necessária à visitação, in verbis: ‘1.1. Constitui objeto desta licitação a concessão de uso, mediante contrato administrativo, de área contígua ao Parque Nacional do Iguaçu, de propriedade do IBAMA, no Município de Foz do Iguaçu, Estado do Paraná, sob a condição de implantação, operação, administração, manutenção, conservação, modernização e exploração econômica da área concedida, em nome da concedente, por conta e risco da concessionária, com todos os encargos decorrentes, de centro de visitantes, terminal de passageiros, transporte horizontal de visitantes e estacionamento de veículos...’ (Edital de Concorrência nº 01/98, fl. 22). (Sem destaques no original) Pergunta-se: que obras serão essas que o vencedor da licitação ficou com a obrigação de implantar? A resposta encontra-se nos ‘termos de referência plantas croquis’ (fl. 97), que também descrevem, de forma genérica, as obras a serem implantadas, a saber: ‘ÁREA 11. ESPAÇO CENTRO DE VISITANTES Área externa ao Parque, com 107.636,69 m2 destinada a edificação de CENTRO DE VISITANTES do Parque, para recepção, informação e educação a visitantes, serviços, administração, auditórios, exposições, estacionamento integrado, terminal de passageiros, sistema de transporte de passageiros, venda de produtos turísticos e alimentação.’ (Fl. 115). Todas essas obras de infra-estrutura estão também caracterizadas, de forma genérica, às fls. 99/100, ratificando-se a transferência daquilo que deveria ser objeto do ‘projeto básico’ para as propostas técnicas dos licitantes (ver item Os Projetos, fl. 120). Para se ter uma idéia da grandiosidade das obras, note-se que o documento denominado ‘Termo de referência/Centro de Visitantes’ já delineia, de forma genérica, volta-se a frisar, o que será esta obra, a saber: ‘O centro de visitante corresponderá a uma construção com, no máximo, 3.000m2, altura máxima de 8,00 m, com taxa de ocupação do terreno máxima de 3%...’ (Fl. 99) (Sem destaques no original). R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 115 ‘O estacionamento deverá possuir capacidade para abrigar a demanda projetada de veículos de passeio e transporte coletivo com, no mínimo, 850 vagas...’ (fl. 101) (Sem destaques no original). ‘As duas estações principais, Centro de Visitantes e Porto Canoas, terão área interna de espera de no mínimo 300,00 m2 e 120,00 m2 respectivamente. Estas terão sistema de ar condicionado para manter a temperatura constante de 22 graus C. As estações secundárias terão área de espera coberta e proteção em vidro contra chuva e vento. Os materiais usados serão iguais às estações principais. O desenho final das Estações deverá ser aprovado pelo IBAMA.’ fls. 103/104) (Sem destaques no original). Não se sabe de onde o magistrado tirou a idéia de que estas obras são de pequena proporção em relação ao Plano de Revitalização como um todo, desde que, ao lado do pagamento do percentual do faturamento, consiste na contraprestação principal a cargo do licitante vencedor. Essas obras são o objeto principal do Plano de Revitalização, pois representarão a infra-estrutura necessária à exploração da visitação ao Parque Nacional do Iguaçu. Possuem, sem margem para qualquer dúvida, função principal para o funcionamento do sistema de visitação ao local, de modo que de inafastável importância no processo. Falso o segundo argumento apresentado. 2.2.2.3 - Inexigibilidade de ‘projeto básico’ quando o custo das obras ficarão a cargo de um particular. Esse argumento também consta do Acórdão que julgou a matéria a nível de Agravo de Instrumento (Proc. Nº 1999.04.01.013390-9), onde essa Relatoria salientou o seguinte: ‘ ... verifica-se que todas as construções a serem executadas pelo CONCESSIONÁRIO, as suas custas, foram minuciosamente detalhadas, nos seus mínimos detalhes. Certo que não há ORÇAMENTO DETALHADO DAS OBRAS, em meu entender dispensável, tendo em vista que serão custeadas pelo concessionário. Também não foi apresentada a discriminação dos materiais utilizados e o custo global das obras pela mesma razão. Projeto arquitetônico e cálculo estrutural, indispensáveis na construção de obras, são, no caso, dispensáveis, porque se trata de concessão de uso de um parque, cujas construções serão, prevalentemente, constituídas de vias de acesso, espaços- estacionamento e estações de recebimento do público.’ (Sem destaques no original). Em síntese, apesar de reconhecer a obrigação de realização de obras pelo concessionário, o Acórdão, tal qual a sentença apelada, dispensou o ‘orçamento detalhado’, a discriminação dos materiais a serem utilizados, o custo global, o projeto arquitetônico e o cálculo estrutural, entendendo-as como um mero favor do licitante vencedor. Esse raciocínio, data venia, significa que o Poder Público e a sociedade deverão se conformar inclusive com o risco de as obras desabarem sobre a cabeça dos usuários, tal qual o edifício construído pelo Sr. Sérgio Naya no Rio de Janeiro, vez que o filantrópico concessionário está dispensado de seguir o cálculo estrutural e do mesmo modo pode 116 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 utilizar qualquer material de construção. Essa interpretação da legislação, data venia, é de causar admiração, pois que dispensa-se do contratante com o Poder Público aquilo que não ocorre quando o contrato é celebrado entre particulares. Demonstra- se: Em primeiro lugar, é óbvio que, ao edificar as obras previstas no contrato, o concessionário não está realizando qualquer ato de filantropia, mas simplesmente concretizando algo necessário ao equilíbrio do referido pacto. Em outras palavras, enquanto o Poder Público cede um espaço que vai proporcionar ao concessionário ganhos superiores a R$ 30.000.000,00 (trinta milhões de reais) no período do contrato, ele se obriga a construir a infra-estrutura prevista no edital e a pagar a remuneração mensal prevista. Imagine-se, agora, o particular (proprietário de um terreno) realizando com outro particular (o construtor) um contrato onde o primeiro cede sua área de terras em troca de duas unidades autônomas do edifício a ser construído. Será que ele vai deixar a cargo do construtor o projeto arquitetônico, de tal modo a somente conhecê-lo na fase de execução da construção? Será que ele vai deixar que a metragem dos apartamentos fiquem a cargo do construtor? Será que ele vai deixar que o construtor defina unilateralmente os materiais que serão utilizados? A resposta óbvia é NÃO. Com certeza ele vai querer a individualização completa do edifício, a metragem dos apartamentos, o material que será utilizado e tudo mais que defina a qualidade do empreendimento da maneira mais objetiva possível. E o motivo é muito simples: as unidades autônomas que serão recebidas não se constituirão em favor do construtor, mas a moeda de troca pela cessão do terreno. Isso não vale para o Poder Público? Nesse caso ele doa a área e tudo que o particular beneficiado fizer será um grande favor? É evidente que não. Trata-se de um contrato bilateral na sua formação e nos seus efeitos, de modo que tudo aquilo que a lei estabelece como defesa do patrimônio público deve ser observado, como garantia dos interesses da sociedade. Falso, do mesmo modo, o terceiro argumento. 2.2.2.4 - Suprimento dos requisitos do projeto básico pelos anexos ao Edital. Esse argumento da sentença também integrou a motivação da decisão proferida no Agravo de Instrumento já noticiado, onde essa Relatoria deixou certo o seguinte: ‘... verifica-se que todas as construções a serem executadas pelo CONCESSIONÁRIO, as suas custas, foram minuciosamente detalhadas, nos mínimos detalhes...’ Os ‘mínimos detalhes’ antevistos pelo Acórdão proferido no Agravo de Instrumento e ratificados pela sentença, data venia, não são, de forma absoluta, aqueles que traduzem os componentes do denominado ‘projeto básico’. Observe-se, por exemplo, o que afirmou o próprio Acórdão noticiado: ‘... verifica-se que todas as construções a serem executadas pelo CONCESSIONÁRIO, as suas custas, foram minuciosamente detalhadas, nos seus mínimos detalhes. Certo que não há ORÇAMENTO DETALHADO DAS OBRAS, em meu entender dispensável, tendo em vista que serão custeadas pelo concessionário. Também não foi apresentada a discriminação dos materiais utilizados e o custo global das obras pela mesma razão. R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 117 Projeto arquitetônico e cálculo estrutural, indispensáveis na construção de obras, são, no caso, dispensáveis, porque se trata de concessão de uso de um parque, cujas construções serão, prevalentemente, constituídas de vias de acesso, espaços-estacionamento e estações de recebimento do público.’ (Acórdão, fl. 601). Percebe-se, então, que apesar de reconhecer a existência da descrição da obra nos mínimos detalhes, o próprio Acórdão confessou a inexistência dos seguintes componentes: - inexistência de orçamento detalhado das obras; - ausência de descrição do material que será utilizado nas obras; - ausência de indicação do custo global; - ausência de projeto arquitetônico; - ausência de cálculo estrutural. Os requisitos indicados, como é fácil perceber, dão ao licitante uma idéia da obra que vai construir (no caso como contraprestação à exploração do espaço público concedido), seus componentes, quantidade e qualidade do material, permitindo-lhe formular uma proposta dentro dos custos avaliados. Ora, como licitar algo que não se tem a menor idéia do custo avaliado pelo Poder Público? Como a sociedade poderá fazer o controle, pela Ação Popular ou Ação Civil Pública, no caso de superfaturamento se o Edital não estabelece o custo aproximado? Como calcular esses custos se não é apresentado o tipo de material que deverá ser utilizado? Como calcular esses custos (repita-se: contraprestação pelo recebimento de espaço público para exploração) se não se sabe o local exato da construção e seu projeto arquitetônico? Como realizar uma obra sem cálculo estrutural, mutável dependendo do terreno onde será erguida a construção, especialmente considerando-se o solo, a declividade, o tipo de construção, etc? O Edital , data venia, tornou absolutamente impossível calcular os custos das obras, que, repita-se mais uma vez, caracterizam-se como contraprestação pela concessão para exploração do espaço público, nunca mero favor do particular. Em sendo assim, impede o oferecimento de uma proposta séria e deixa o Poder Público sem qualquer garantia do equilíbrio contratual, pois as obras passarão a ser feitas pelo concessionário da forma que entender melhor. A impossibilidade de suprimento das exigências legais que se relacionam ao ‘Projeto básico’ pode ser extraída da mera leitura das próprias cláusulas editalícias, onde se transfere para o vencedor a submissão à prévia aprovação do IBAMA dos materiais que serão utilizados nas obras. Consulte- se: ‘1.2.6. a submissão ao IBAMA/PR, para prévia aprovação, antes do início da execução do contrato e a qualquer tempo, dos catálogos, desenhos, diagramas, nomes dos fabricantes e fornecedores, resultados de testes, ensaios, amostras e demais dados informativos sobre os materiais, equipamentos e instalações empregados na execução do contrato, de modo que haja perfeita identificação quanto à qualidade e procedência.’ (fl. 23) (Sem destaques no original). Como se percebe, aquilo que deveria ser objeto do projeto básico, caracterizado da forma mais clara que fosse possível, foi transferido pelo Edital para a fase de 118 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 execução do contrato, certamente por acordo entre a fiscalização do IBAMA e o concessionário, situação em que o interesse da sociedade, como é fácil de saber, fica totalmente desprotegido. A necessidade de ‘projeto arquitetônico’, por outro lado, é exigência legal que o Edital, da mesma forma, diante da ausência do ‘projeto básico’, transferiu para o licitante, conforme se infere da cláusula quinta, cujo subitem transcreve-se: ‘5.4 - ANTEPROJETO DE ARQUITETURA - englobando todos os elementos arquitetônicos do empreendimento, de acordo com o especificado no Termo de Referência (ANEXO IIl deste Edital), explicitando a compatibilidade destes com a natureza e destinação das áreas objeto da concessão de uso, a ser apresentado como segue: ...’ (f. 37). Quais os elementos especificados para o projeto arquitetônico pelos termos de referência? Esses elementos estão contidos nas fls. 99/102, onde se percebe a descrição das seguintes generalidades: a) previsão de que a obra deverá ter área construída máxima de 3.000,00 m2, com 8,00 m de altura máxima, de modo que fica ao particular o direito de reduzir esses componentes ao seu bel-prazer; b) deve estar harmonizada com as finalidades do Parque, o que também é medida genérica e geradora de discussões quanto ao atendimento; c) deverá conter área de recepção e informação, bilheterias, banco, casa de câmbio, correios, posto policial, ambulatório, auditório, etc., ou seja, aquilo que é imprescindível a todo e qualquer parque; d) salas para lanchonetes, agências de turismo, etc., que poderão ser exploradas por terceiros, o que somente facilita a satisfação dos interesses do licitante vencedor. Enfim, existem previsões genéricas que não garantem objetivamente, pelo menos de forma antecipada, a qualidade, inclusive sob o ponto de vista arquitetônico e de segurança, daquilo que vai ser construído. Pior que tudo isso é que toda essa infra-estrutura ainda vai depender do novo ‘Plano de Manejo’, o que demonstra a realização de um certame apressado, sem o planejamento devido, além de impeditivo de uma proposta séria e amparada em estudos científicos, desde que tal fato inviabilizou, no momento da apresentação das propostas, até mesmo o local escolhido para cada uma das edificações necessárias. Ora, é impossível calcular o custo de obras sem conhecer o terreno onde será edificada, especialmente sua declividade, solo, tipo de construção, etc. Em termos sérios, pois, a subjetividade do objeto licitado impedia, como deve ter impedido, a formulação de várias propostas sérias, de tal modo que é possível suspeitar pelo dirigismo do procedimento administrativo em prol da contratação do consórcio vencedor. Vencida a licitação, o Edital e o contrato deixam o IBAMA e o Consórcio Satis livres para definir o que e como será construído. Vale, aqui, lembrar o ensinamento de RONALDO CUNHA CAMPOS, in verbis: ‘TRUBEK mostra que no choque entre consumidores operários e grandes empresas o Estado é chamado a intervir no sentido de, vindo em auxílio dos mais fracos (operários e consumidores), controlar a grande empresa e equilibrar o jogo de forças. R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 119 O Estado se prestaria a exercer esta função em virtude do poder de voto das massas (trabalhadores e usuários) e assim criaria os organismos para controlar as empresas. Todavia, tais órgãos, segundo noticia TRUBEK, são ‘capturados’, ou seja, passam a ser controlados pelas próprias empresas que deveriam controlar. Tal ocorre, porquanto, ao ver do publicista, as decisões de tais organismos (integrantes da Administração) não se tomam com a necessária publicidade. Na ausência de publicidade passa a inexistir o poder da maioria e sua força de negociação baseada no voto. Desconhecidas, as decisões não influenciam as eleições. De outra face, nomeados e não eletivos, os funcionários destes órgãos são pouco sensíveis às pressões populares, e se aliam com facilidade aos empresários. Trata-se de problema que encontra suas raízes nos níveis de decisões. Enquanto um congressista se vê sempre sob a vigilância dos eleitores e da imprensa, e são públicas suas decisões e atitudes, tal não ocorre com o funcionário dirigente de um órgão controlador da indústria. ... Acrescenta ainda o analista que a este nível a maioria não organizada é superada pela minoria organizada e assim repete a conhecida proposição de LASSALE. Esta proposição de LASSALE procura destacar aqueles fatores que se diriam reais e efetivos (forças ativas e organizadas), fatores estes que, como acentua o PROF. JOSÉ ALFREDO BARACHO, dariam, na doutrina de LASSALE, a estrutura da constituição real e efetiva. Dessarte necessário obter a presença do povo neste nível (ou ‘arena’) e afastar os inconvenientes da escassa publicidade, ou nas palavras do publicista norte-americano, as desvantagens da ‘baixa visibilidade’ . (Ação Civil Pública, pp. 21, 22 e 23, Rio de Janeiro, Aide, 1995) Em outras palavras, a transferência da definição da real obrigação contraprestacional a cargo do licitante vencedor para o momento da execução do contrato, de forma pouco visível, é incompatível com os objetivos traçados pela Lei nº 8.666/93 e pela Constituição Federal para a licitação. Impossível, pois, a garantia de melhor contratação para o Poder Público quando não se deixa definido o objeto do certame, com todos os seus contornos, especialmente aqueles que dizem respeito ao custo, no Edital de Licitação. 3 - Pelo exposto, opina esta Procuradoria Regional da República, como exigência comezinha dos interesses da sociedade em relação ao patrimônio público, seja o recurso conhecido e provido, para o fim de ser a ação julgada procedente, declarando-se a nulidade do procedimento administrativo e posterior contrato dele derivado.” Correto o parecer. Com efeito, a Lei de Licitações, no intuito de promover o julgamento objetivo das propostas, impôs o requisito da apreciação de um projeto básico que possibilite à Administração Pública um padrão para a avaliação dos projetos, cominando pena de nulidade em caso de não atendimento ao mencionado texto legal. (art. 7º, § 2º, I, e § 6º, da Lei nº 8.666/93) Nesse sentido, a lição da doutrina (Jessé Torres Pereira Jr., in Comen120 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 tários à Lei das Licitações, 5ª edição, Renovar, 2002, pp. 118/9; Marçal Justen Fº, in Comentários à Lei de Licitações, 8ª edição, São Paulo, 2001, pp. 109/110). Assim, a existência do projeto básico é indispensável, servindo de diretriz para a elaboração das propostas, visando a eliminar o julgamento baseado em critérios eminentemente subjetivos. A respeito, leciona Jessé Torres Pereira Jr., em sua citada obra, p. 104, verbis: “A Lei nº 8.666/93 dedica especial atenção ao projeto básico, necessário para caracterizar o objeto da licitação que se referir a obra ou serviço. Com razão, porque, em seu art. 7º, § 2º, I, condiciona a deflagração da licitação à existência de ‘projeto básico aprovado pela autoridade competente e disponível para exame dos interessados em participar do processo licitatório’. Ou seja, sem projeto básico não se inicia o processo de licitação referente a obra ou serviço. O revogado Dec.-lei nº 2.300/86 encaminhava a definição de projeto básico a dois propósitos: caracterizar a obra ou o serviço; estimar seus custos e prazos de execução. A nova lei acresce-lhes a demonstração de viabilidade técnica e de preservação do meio ambiente, e a especificação dos métodos de execução. No que tomou caminho afinado com o disposto no art. 225, § 1º, incisos IV e V, da Constituição Federal, a ensejar o controle exercitável pelo Ministério Público nos termos do art. 129, III, do Texto Fundamental.” Trata-se, portanto, de condição para abertura do certame, ou seja, requisito de sua validade. Em suas razões de apelação, a fls. 680/3, assinalou, com inteiro acerto, o Parquet, verbis: “Evidencia-se, assim, que o projeto básico consiste em condição para a abertura da licitação de obra ou serviço, vale dizer, requisito de validade. Note-se, neste aspecto, que os documentos denominados ‘termos de referência’, anexados ao edital, não têm o condão de substituir o projeto básico, vez que, além de não definir com consistência as atividades a serem realizadas, bem como as condições de funcionamento das concessões que se pretende implantar, não contemplam os requisitos estabelecidos no art. 12 da Lei nº 8.666/93, que definem o projeto básico, quais sejam: ‘Art. 12. Nos projetos básicos e projetos executivos de obras e serviços, serão considerados principalmente os seguintes requisitos: I - segurança; II - funcionabilidade e adequação ao interesse público; III - economia na execução, conservação e operação; IV - possibilidade de emprego de mão-de-obra, materiais, tecnologia e matérias-primas existentes no local para execução, conservação e operação; R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 121 V - facilidade na execução, conservação e operação, sem prejuízo da durabilidade da obra ou do serviço; VI - adoção das normas técnicas, de saúde e de segurança do trabalho adequadas; VII - impacto ambiental.’ Os referidos ‘termos de referência’ não dispõem acerca das questões elencadas no artigo supratranscrito, se limitando, tão-somente, a emitir conceitos, orientações e recomendações de forma ampla e subjetiva, estabelecendo, na realidade, apenas diretrizes gerais, em nada se equiparando a um projeto básico, que oferece critérios objetivos para avaliação das propostas apresentadas pelos licitantes, de modo a assegurar os meios de fiscalização e de cobrança efetiva, quando da execução da obra; e, se a lei não prevê a possibilidade de dispensa do projeto básico, não há como admitir-se que o administrador, a seu bel-prazer, assim determine. O próprio princípio da legalidade limita a liberdade deste, na medida em que a faculdade de escolha da autoridade administrativa ao editar o ato convocatório está vinculada ao atendimento dos comandos legais, bem como dos princípios inerentes ao sistema. Ou seja, incorreto é o entendimento de que a discricionariedade concedida ao administrador permite a este atuar de tal forma. Salientou-se, ainda, que foi delegada pelo IBAMA, de forma absolutamente ilegal, ao consórcio vencedor, a elaboração do projeto básico, incorrendo a autarquia nas proibições constante no art. 9º da Lei nº 8.666/93. Com efeito, dispõe referido diploma legal: ‘Art. 9º. Não poderá participar, direta ou indiretamente, da licitação ou da execução de obra ou serviço e do fornecimento de bens a eles necessários: I - o autor do projeto, básico ou executivo, pessoa física ou jurídica; ... § 2º. O disposto neste artigo não impede a licitação ou contratação de obra ou serviço que inclua a elaboração de projeto executivo como encargo do contratado ou pelo preço previamente fixado pela Administração.’ Diante disso, constata-se que foi delegada pelo IBAMA, de forma absolutamente ilegal, ao consórcio vencedor, a elaboração do projeto básico. Cabe atentar que os editais da licitação em tela se referem a ‘anteprojeto arquitetônico’, que nada tem a ver com o projeto executivo, muito menos, com o projeto básico. Logo, incorreu a autarquia nas proibições estipuladas pelas normas supratranscritas. E, ainda que tal anteprojeto tratasse do projeto executivo (§ 2º, art. 9º), é de se questionar qual o seu valor estimado, já que os editais indigitados nada falam a respeito? O que dizer de tais ‘termos de referência’, elaborados pelo próprio IBAMA, que pretendeu fazê-los passar por projetos básicos? Por outro lado, não se aguardou, também, a conclusão do Plano de Manejo, que está sendo elaborado pelo IBAMA, para que fossem abertos os procedimentos licitatórios, eis que é de fundamental importância para a elaboração das diretrizes do Parque Nacional do Iguaçu. Atente-se que os próprios editais dispõem que o plano de manejo é de observância obrigatória pela vencedora do certame, impondo-se reconhecer que, somente após sua conclusão é que se deveria ter dado início às licitações. Oportuno, neste ponto, transcrever parte dos Pareceres Técnicos, elaborados por técnicos do IBAMA, onde os mesmos expõem acerca da necessidade de conclusão do 122 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 plano de manejo do Parque Nacional do Iguaçu: ‘Vale frisar que, para que o Sistema de Visitação do Parque seja mais adequado, necessitamos desenvolver uma análise da área a ser visitada enfocando sua suscetibilidade à visitação, qualidade do ambiente a ser visitado, informações e experiências a serem oferecidas, etc. Esta análise é realizada normalmente quando da elaboração do plano de manejo e reavaliada no momento da revisão deste planejamento. Como acreditamos que o plano de manejo do parque esteja ultrapassado, necessitamos refazer estas análises para reavaliarmos a visitação. Nesta análise será feito o estudo das áreas hoje abertas à visitação, sua fragilidade, sua ‘capacidade de carga’, etc., tentando com isso disciplinar a visitação no Parque, propor novos atrativos, novos equipamentos, etc. Como o referido plano de manejo está em pleno processo de revisão, com prazo previsto para conclusão dos levantamentos em dezembro, julgamos que a presente licitação é inoportuna, neste momento (fl. 354).’ ‘Acreditamos que o plano de manejo, que está em fase de elaboração, em muito contribuirá para um estudo mais integrado da visitação no Parque Nacional do Iguaçu (fl. 376).’ Forçoso reconhecer que somente após a conclusão do plano de manejo que poderia ser aberto o procedimento licitatório. Assim, constata-se que se encontram eivados de vício insanável de nulidade os processos licitatórios referentes aos Editais nos 01/98 e 02/98, bem como os contratos deles decorrentes, celebrados entre o IBAMA e o Consórcio Satis, visto não terem preenchidos os requisitos legais estabelecidos pela Lei nº 8.666/93, especialmente no que toca ao disposto no art. 40, § 2º, I, que determina a exigência de projeto básico, como anexo integrante do edital, assim como por não haver sido aguardada a conclusão do plano de manejo, acarretando, com isso, sua inadequação às diretrizes do Parque Nacional do Iguaçu.” Dessa forma, o procedimento licitatório, com a devida vênia, importou violação aos arts. 7º, I, § 2º, I, § 6º; 9º, I, 12 e 40, § 2º, I, da Lei nº 8.666/93, contrariando a letra e o espírito dos mencionados dispositivos do Estatuto das Licitações, em verdadeira fraude à lei, na acepção da melhor doutrina, aplicável ao direito público. A respeito, leciona E. H. Perreau, em estudo intitulado “Des Atténuations par Actes Juridiques aux Lois Impératives ou Prohibitives”, publicado na Revue Trimestrielle de Droit Civil, ano de 1923, Libr. Recueil Sirey, 1923, Paris, t. 22, p. 291, verbis: “Les dispositions des lois impératives ou prohibitives ne comportent pas dérogation par actes juridiques. Il n’est même pas loisible de faire indirectement ce qu’elles empêchent de faire directement”. No mesmo sentido, o ensinamento de Giovanni Rotondi, in Dizionario R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 123 Pratico del Diritto Privato, organizado por Vittorio Scialoja, Francesco Vallardi, Milano, v. III, p. II - Ip-L, p. 200, verbis: “La frode alla legge, non secondo la lettera ma secondo lo spirito: ossia, mentre apparentemente si rispetta il testo della legge, si va contro a quello che è il suo vero significato”. Nessa linha, ainda, Luigi Carraro, in Il Negozio in Frode alla Legge, Cedam, Padova, 1943, pp. 20 e seguintes. Ea, quae contra leges fiunt, pro infectis habenda sunt. Ora, o que o Judiciário afere e decide é a conformidade do procedimento administrativo da licitação com as normas legais e especiais que a regem, consubstanciadas na lei, no regulamento e no edital. Deparando ilegalidade por infringência frontal às normas legais ou ao edital, cabe à Justiça anular o procedimento ou o ato ilegítimo, para que a Administração Pública o refaça em termos regulares, restabelecendo o direito lesado pela ilegalidade. Outro não é o pensamento da doutrina, consoante refere Maurice Hauriou, em sua consagrada obra Notes D’Arrèts sur Décisions du Conseil D’État et du Tribuna1 des Conflits publiées au Recueil Sirey de 1892 à 1928, Libr. Recueil Sirey, Paris, 1929, t. 2, p. 336, verbis: “A l’exception des actes de gouvernement, il n’est point d’acte de Puissance publique qui ne soit susceptible d’annulation pour détournement de pouvoir, parce qu’on n’en conçoit point qui puisse être soustrait à l’empire des buts administratifs”. Nesse rumo, ainda, Jean-Marie Auby et Roland Drago, in Traité de Contentieux Administratif, 3ª ed., L. G. D. J., Paris, 1984, t. 1º, p. 15. É exatamente o caso dos autos. Com efeito, tendo sido o ato administrativo praticado contra o texto da lei, encontra-se o mesmo eivado de nulidade, não gerando direito. Nesse sentido, clássica a lição do saudoso jurista Seabra Fagundes, verbis: “O ato administrativo praticado contra os textos legislativos é nulo, e o que é nulo não gera direito. Se desde a origem o procedimento da Administração careceu de validez, não se poderia ter tornado fonte de direitos para ninguém (Zanobini, Corso di Diritto Amministrativo, 1939, vol. I, p. 358; Arnaldo de Valles, La Validitá degli Atti Amministrativi, 1917, pp. 448-451)”. (In Pareceres do Consultor Geral da República - Fevereiro a Setembro de 1946, A. Coelho Branco Fº, Rio de Janeiro, 1947, p. 125) Por esses motivos, conheço da apelação e dou-lhe provimento, julgando procedente a ação civil pública, nos termos propostos na inicial, 124 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 reconhecendo a ilegalidade dos atos administrativos impugnados e condenando os apelados no pagamento das despesas processuais e honorários advocatícios que fixo, nos termos do art. 20, §§ 3º e 4º, do CPC, na quantia de R$ 1.000,00. É o meu voto. VOTO-VISTA A Exma. Sra. Desa. Federal Marga Barth Tessler: Vou pedir a máxima vênia para divergir do brilhante voto. Para encaminhar as conclusões, recapitulo as questões principais que estão em jogo e tentarei resumir os antecedentes que envolvem todo o Parque Nacional do Iguaçu. 1 – Esta Ação Civil Pública foi ajuizada sob a alegação de violação ao artigo 7º, §§ 1º e 3º, do Decreto nº 84.017/79, no que se refere aos objetivos dos Parques Nacionais, que deveria ser a preservação dos ecossistemas e não a geração de renda. Esta foi a ótica principal e foi, na leitura que faço da inicial, o motivo, a causa determinante do ajuizamento da Ação Civil Pública. Não foi realizado, pelo menos não consta dos autos, o inquérito civil público que antecedeu ou deveria idealmente anteceder o ajuizamento da ação, de molde a verificar se houve efetivamente a ponderação e a oitiva dos envolvidos sobre a difícil situação vivida pelo Parque no passado recente. 2 – Alega-se, ainda, que os Editais nos 1/98 e 2/98 abrigariam violação aos princípios básicos das licitações públicas, por ausência de projeto básico e de projeto executivo, § 2º e § 6º do artigo 7o da Lei nº 8.666/93. 3 – Teria pecado o Edital por ausência de critérios objetivos para balizar os julgamentos. 4 – Teria, também, ocorrido violação ao artigo 7º da Lei nº 8.666/93, pois incluiu-se indevidamente a tarefa da realização de projeto básico e executivo. 5 – Vislumbra negligência da autoridade por não ter aguardado a conclusão do Programa de Manejo do Parque. 6 – Verifica ocorrência de afronta ao artigo 37 da Constituição Federal de 1988 por entrega de toda a gestão do Parque ao particular. As partes convidadas se manifestaram dizendo que não tinham mais provas a produzir e o magistrado, convencido que a questão era de direito R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 125 julgou “improcedente a ação civil pública, cassando a liminar concedida ao início. Sem honorária, conforme STJ, 1ª T., REsp nº 28.715-0/SP, rel. Min. Milton Luiz Pereira, DJU de 19.09.94, p. 24652; RT 714/122 e inúmeros outros precedentes, mesmo porque não vislumbro má-fé na propositura da ação. Sem custas ex lege, ante a qualidade do autor, consoante art. 4º, III e IV, da Lei nº 9.289/96”. O douto voto, fundado no substancioso parecer ministerial (fls. 693 e segs.), acolheu a alegação de que a licitação é nula por ausência “de um projeto básico que possibilite à Administração Pública um padrão para a avaliação dos projetos, cominando pena de nulidade em caso de não atendimento ao mencionado texto legal”. Tratar-se-ia de condição para a abertura do processo licitatório “requisito de sua validade”. Entendeu violado o art. 7º, § 2º, I, e § 6º, da Lei nº 8.666/93, acolhendo a tese (fl. 707) de que “a transferência da real obrigação contraprestacional a cargo do licitante vencedor para o momento da execução do contrato, de forma pouco visível, é incompatível com os objetivos traçados pela Lei nº 8.666/93”. Antes de enfrentar as questões, anoto que, após a intimação do IBAMA para os fins do art. 2º da Lei 8.437/92, foi o processo suspenso, “em razão da extinção das Superintendências Estaduais” (fls. 379/385), Decreto nº 2.823/98 (fl. 380). Retomado o curso normal foi efetivada a mencionada intimação, protocolando o IBAMA a manifestação juntada às fls. 391/493 dos autos. A citação inicial foi realizada em 15.03.99 (fl. 483), em Curitiba-PR, vindo aos autos a contestação das fls. 569/581. O IBAMA foi intimado da sentença por precatória (fls. 687 e segts.). Sem contra-razões, subiram ao Tribunal Regional Federal da 4ª Região, em 08.09.2000. O Consórcio Satis, embora intimado, deixou de fazê-lo e o INCRA, pelo que os autos demonstram, não foi intimado para tanto (vide certidão da fl. 691, verso). Por ocasião do pedido de cassação de liminar ao início concedida, o IBAMA juntou aos autos cópia do Agravo de Instrumento nº 1999.04.01.017916-8/PR, cópia do fax recebido do então Administrador do Parque, Sr. Júlio Gonchorosky (fl. 582), que informa às autoridades e para efeito de subsidiar a atuação do órgão em juízo que o Programa de Revitalização do Parque Iguaçu se divide em duas partes: 1ª) Estratégia de integração do entorno com abertura de cinco postos de informações 126 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 em Céu Azul, Santa Tereza do Oeste, Cascavel, Capitão Leônidas e Capanema. Instalação de “trilhas interpretativas ao longo dos Rios Gonçalves Dias e Iguaçu”, passeios de barco e rafting nos rios Iguaçu e Castro Alves. 2ª) Possibilidade de maior número de pontos e áreas de controle e contato com a população e desenvolvimento econômico com o turismo regional. “Todos estão previstos na revisão do Plano de Manejo que se encontra em fase de conclusão pela DIRFC”, “tendo como objetivo principal a manutenção da integridade da Unidade e do ecossistema”. Diz, ainda, o Sr. Administrador: “a segunda parte do Programa se refere à região das Cataratas que recebe mais de 800.000 visitantes/ano, de maneira desordenada, desenfreada e com péssimos serviços de atendimento (lanchonetes, banheiros, elevador)”. Prossegue (fl. 582): Os conceitos básicos do Plano: Centro de Visitantes: local de informação, sensibilização e conscientização dos visitantes a ser erguido em terreno de 11 ha. já desapropriado pelo IBAMA, ao lado do portão de entrada, com estacionamento com vagas para 580 veículos; 3.000 m2 de área para o Centro de Visitantes, administração, lojas, bilheterias, sanitários, centro de interpretação, com 2 áreas de exposição e 2 auditórios para projeção de filmes educativos. (ver fls. 300 e 254) Sistema Único de Transporte: a ser desenvolvido ao longo da BR 469 e área de servidão sem nenhum impacto ambiental, conforme detalha à fl. 583. Há projeto de revitalização das trilhas com visitação autoguiada e guiada, sete trilhas já abertas e uma em uso (Trilha do Poço Preto, Trilha da Represa, Trilha Barreiro, Trilha Escadaria, Trilha Usina, Trilha Cataratas, Trilha Macuco) (fls. 246 e segs.) e mapas (fls. 226, 259, 262/268). Espaço trilha da represa (fl. 583) com 1.000 m, ligando a primeira represa à Casa de Hóspedes – trilha suspensa 20 m do chão sobre as copas das árvores (ver desenho fls. 301 e 528). Esta trilha não existe, teria que ser construída pela concessionária na modalidade e forma descrita pelos técnicos do IBAMA. Espaço Tarobá: já existente, mas com necessidade de revitalização, e construção de mirante, onde na ocasião havia um telhado. (fls. 583 e 584) Espaço Naipi: onde existe o elevador panorâmico (desativado, obsoleto, com problemas estruturais) erguer um novo meio de elevação nos R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 127 moldes do existente, mas sem impacto ambiental. Espaço Santos Dumont: projeta o técnico a retirada da permissão do pouso de helicóptero na área interna do parque e no local erguer uma Sky Tower na faixa de servidão da rede elétrica. Visualização do conjunto por helicóptero só a partir de 80 metros de altura (ver área 4, fls. 269 e 437), (ver mapa da fl. 271), altura até 100 metros em área de 7.961,73 m2 (campo de futebol/pouso de helicóptero). Este equipamento dependeria de parâmetros das autoridades aeronáuticas, legislação em vigor, considerando também o lado da Argentina e a concessionária teria que apresentar “projeto integrado à paisagem de impacto visual”. Este equipamento inexistente que teria, pelo que se entende, como parâmetro as torres de servidão de passagem da rede elétrica é o que menos está detalhado (mas é compreensível, pois depende de variáveis e condições). Esclarece o Sr. Administrador que toda as intervenções do plano de revitalização estão no Plano de Manejo de 81 (não veio aos autos). Diz ainda o Sr. Administrador (fl. 584): “a opção para não elaborar um projeto final (digo transcendendo o básico) para os licitantes são com o objetivo de dar maior liberdade na pesquisa e busca de soluções tecnológicas e arquitetônicas para diferentes equipamentos e edificações dentro do conceito de uso adequado e próprio de Parques Nacionais no Brasil e no Exterior”. Ao final (fl. 582), “Se as alternativas que foram estudadas e aprovadas não forem implementadas, não vislumbramos instrumentos próprios ao serviço público para garantir, nos moldes e níveis atuais, o patrimônio ambiental que o Parque Nacional do Iguaçu deteria”. Prossigo: Ainda, antes de adentrar nas questões de mérito, lembro que existem diversas demandas envolvendo o Parque Nacional do Iguaçu. A mais antiga é a Ação Civil Pública nº 00.0086736-5, conhecida como “questão da Estrada do Colono”, a primeira Ação Civil Pública, ajuizada e ainda sem solução, consistente no definitivo fechamento de estrada que divide o Parque Iguaçu. A liminar foi concedida pelo hoje Ministro Milton Pereira, prestes a se aposentar no Superior Tribunal de Justiça, quando era Juiz Federal. As coletividades, algumas do entorno, inconformadas com a existência do Parque e as limitações ao tráfego de veículos e o trajeto rodoviário maior que precisam vencer, tentam reabrir a Estrada ameaçando gravemente a integridade do Parque e até a sua sobrevivência. Se 128 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 dois municípios podem abrir via de comunicação liminar, todos podem. Pois bem, o último acontecimento, lamentável, deu-se em junho/julho de 2002, ocasião em que pessoas não identificadas em veículo locado à municipalidade de uma das localidades agrediram os servidores do IBAMA, jogando explosivos na área. Há ameaças veiculadas pela associação AIPOPEC de “tocar fogo” para solucionar a questão. A estrada irregular – Estrada do Colono – cobrava “pedágio” particular, cujos valores não têm destinação transparente nem controle. A estrada, segundo notícias jornalísticas, servia ainda de escoadouro de mercado- rias de origem ilícita e de rota discreta para o tráfico de drogas. Relembro que, em junho de 2001, foi necessária operação firme e colaboração até do Exército Nacional e da Polícia Federal para fechar a estrada. Graças à competência e destreza dos envolvidos na operação conseguiram restaurar a normalidade na área. Há pendências com ações de “desapropriação indireta” dos alegadamente prejudicados com o Parque. Consta, por informação colhida em site oficial e relatórios do IBAMA, que seria o Parque mais rentável dentre todos os parques nacionais. É facilmente constatável o poder de atração do parque sobre turistas estrangeiros diante das rotas aviatórias que se prolongam de Frankfurt e Roma até Foz do Iguaçu. Situado na tríplice fronteira (Brasil, Argentina e Paraguai) está atualmente a sofrer com notícias sobre alarmantes atividades criminais internacionais. Comparado com alguns parques estrangeiros Yosemite (Estados Unidos), Xcaret (México) e Toulun (México), tem potencial de belezas naturais muito maior e é incomparavelmente mais barato o ingresso. Veja-se que economias capitalistas nem tão avançadas cuidam e cobram valores extraordinários para visitação.1 Assim, diante de todas estas ponderações, passo a examinar a questão de fundo: Primeiro argumento: desacordo do Programa Parque Iguaçu com as diretrizes dos Parques Nacionais. Totalmente equivocada a ótica que manifestou esta ação. A geração de recursos, empregos, aumento de arrecadação, redução de gastos é compatível e diria que é necessária até para a preservação dos Parques. 1 Krakauer Jon. Ar Rarefeito. São Paulo : Cia das Letras. Preço por pessoa para subida ao Everest/Nepal. 2 FREITAS, Vladimir Passos de Freitas. A Constituição e a efetividade das normas ambientais. RT, 2000/144. R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 129 Constato que quando a doutrina examina o artigo 5º do Código Florestal e o Decreto nº 84.017/79 e diz que “neles é absolutamente vedada a exploração econômica dos recursos naturais”2 está a se referir à exploração econômica com sentido de “esgotamento, destruição, alteração”, isto é, abater a vegetação, matar, aprisionar os animais, retirar espécimes, flores, frutos, não sendo vedada a sua utilização para fins educacionais, recreativos e científicos, aliás finalidade expressa no artigo 5º do Código Florestal que diz que o objetivo dos Parques é “resguardar atributos excepcionais da natureza conciliando a proteção integral com a utilização sustentável”. No caso dos autos, a revitalização é condição necessária e urgente, premente até diante da realidade de que parte da população não tolera a sua presença e passou a agredi-lo na sua integridade. Seria caso de dispensa de licitação diante do perigo da pressão antrópica e dos movimentos agressivos que são veiculados até pela imprensa de forma aberta. São necessárias as providências de revitalização e conscientização, educação e abertura de alguma possibilidade de inclusão da população mais carente, por meio de possibilidades de emprego. É o conceito de “sustentabilidade ambiental” no caso sustentabilidade é política do Parque na atual dimensão territorial. Remeto aos fundamentos no trabalho “Rio + 10, Desenvolvimento Sustentável” (Revista do TRF nº 45). Concluo por verificar que a cláusula 3ª do contrato – Edital nº 1/98 – atende excelentemente ao princípio da economicidade, pois do preço inicial de R$ 6,00 (seis reais) por visitante, R$ 5,00 (cinco reais) tocam ao IBAMA e R$ 1,00 (um real) para a contratada. O segundo aspecto que foi acolhido pelo Eminente Relator, qual seja: “ausência de projeto básico, ausência de projeto executivo que venham dar parâmetros exatos aos proponentes”. Com a máxima vênia, repito, a inicial e o digno voto acolheram proposição que, diante da complexidade e urgência do caso concreto, é excessivamente nominalista. Não se discute que, para licitações e concessões em geral, há necessidade do “projeto básico”, contudo o caso dos autos tem a peculiaridade de ter o projeto básico com o nome de Programa de Revitalização do Parque Nacional do Iguaçu (fls. 93 e segs.). Este plano partiu do Plano de Uso Público do Parque, ao que consta do ano de 1981. Este progra130 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 ma, plano ou projeto, como se o queira denominar, é dividido em dois subprogramas: o de Manejo do Meio Ambiente – MMA e o subprograma de Revitalização de Visitação. Dos dois programas foram retirados elementos para compor os editais vergastados. Como anotado antes e se pode perceber pelo manuseio dos autos, o projeto básico (art. 7º, § 2º) existe, “é básico”, como quer a lei. Nele, no Programa de Revitalização, há os elementos básicos, fundamentos mínimos do que a administração pretendia com a licitação. Quanto à estimativa de custos, não acolho como tese a de que não é necessária por se tratar de custos da concessionária, já que alegadamente a administração não irá desembolsar nada. A administração não desembolsa, não paga, mas propicia a possibilidade de exploração pelo particular de um valioso paraíso natural, o Parque Iguaçu, é o patrimônio nacional que está em jogo então, não se pode dizer que o projeto básico não seria necessário pelo simples fato das obras estarem sendo custeadas pela empresa vencedora do certame. Trata-se, por outro lado, de uma licitação complexa, mescla de prestação de serviços de construção e recuperação, com adaptação das construções existentes, recuperando-as e restaurando-as, tudo sempre integrado à natureza e tal peculiaridade, como justificada pelo Administrador do Parque na ocasião dos fatos (fls. 582/95), encontra plena correspondência e adequação ao caso concreto. Não se trata de edificações monumentais e o próprio parecer técnico DEUC, de 18.08.98, que o douto Ministério Público usa como arrimo para dizer que não há projeto-base, recomenda (fl. 360), no que se refere às Estações (7), que sejam edificadas mais simples, sem ar-condicionado, sem vedação com vidros especiais, sem bebedouros e sem sincronismo com a porta de transporte. Sugere-se, ainda, que “não sejam indicados os tipos de materiais ou então que sejam sugeridos para todas as edificações”. (nº 16, 360) Ora, vê-se que o Edital, ao não especificar em alguns aspectos, em especial, os materiais, se ateve às recomendações dos técnicos. Note-se que são recomendações que poderiam ou não ser aceitas pela autoridade responsável pelo Edital. Mesmo que não-aceitas, não transformam em ilegal o procedimento. Resumindo, projeto básico havia, consta dos autos sob a denominação de Programa de Revitalização. Ele é básico, bastante básico, mas diante R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 131 das circunstâncias concretas não vislumbro ilegalidade. Há outra particularidade, as obras, quaisquer obras, dependem da elaboração do projeto de execução, que poderia ser licitado como foi. Cada obra deverá ter pouco impacto e obedecer ao Plano de Manejo. Então, pelas circunstâncias concretas, especialmente para a revitalização, as edificações já eram as existentes e as melhorias ou acréscimos deveriam necessariamente integrar o conjunto, verifica-se que o Plano de Revitalização e seus anexos (Temas de Referências e desenhos indicativos) reúnem os requisitos do projeto básico. No que se refere ao projeto executivo, não é item obrigatório pela Lei nº 8.666/93. O argumento desenvolvido com a maestria de sempre pelo douto Procurador da República, transcrito no voto (fl. 12): “Imagine-se agora o particular realizando com outro particular (o construtor) em contrato onde o primeiro cede sua área de terras em troca de duas unidades autônomas do edifício a ser construído. Será que ele vai deixar a cargo do construtor o projeto arquitetônico, de tal modo a somente conhecê-lo na fase de execução da construção?”. Respondo que normalmente não! No caso de que se trata, todavia, onde já há construções, o Hotel das Cataratas é da década de 50, no estilo colonial, há construções de menor envergadura, mas sempre adaptadas ao ambiente de forma a integrá-lo, resta claro que o concessionário não poderá fugir do estilo já existente, utilizando-se dos materiais locais, e mais próximos do natural, afinal, é um parque rústico ecológico. A qualidade do empreendimento e o estilo já estão dados, definidos pela própria existência de construções cinqüentenárias no local. As inovações estão basicamente sugeridas, como se vê nos croquis e desenhos (fls. 630 e segs.), com especial ênfase na da fl. 636, área que inexiste. As demais trilhas são existentes. Na visão de quem é leigo em matéria de construções, o item com menos referências e mais pobremente descrito no Plano é o Espaço Santos Dumont, onde seria construído a Sky Tower com acesso por faixa de servidão de rede elétrica e com a proibição de pousos na área. Não há qualquer desenho, “croqui” nos autos, de molde que aqui seria caso de complementação de elementos. “O espaço Naipi”, onde está o elevador panorâmico, desativado, entende-se que a concessionária deverá desmanchá-lo, sem impactos, e providenciar um novo meio de elevação com dois elevadores panorâmicos. Não há referências sobre a marca do 132 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 desativado, sendo que o que se pode interpretar por “revitalização” seria a colocação de equipamentos mais modernos e no mínimo de marca e qualidade equivalentes ao desativado, tudo de forma compatível com o Plano de Manejo e sem impacto ambiental. Este elevador acabou por ser impossibilitado por decisão do IBAMA. No Parecer Técnico nº 14/98, de 30 de junho de 1998 (fl. 376), que serviu de arrimo para esta ação, o parecerista sugere que o termo “construção” no que reporta ao Espaço Santos Dumont seja alterado para “equipamento”, pois acredita-se que a atividade possa ser realizada mediante algum equipamento, prescindindo de construção. Concluindo, pelas razões elencadas, o caso dos autos é peculiar. A licitação para alguns objetivos poderia até ter sido dispensada, face à urgência na defesa da integridade do Parque. A licitação foi desfechada com suficiente projeto básico e, no caso concreto, para a maioria dos serviços (por já estarem sendo prestados) e para a grande parte dos demais aspectos, reuniu o conjunto de elementos necessários para a caracterização da obra, atividade ou serviço. Os custos foram projetados com base em levantamentos sobre a freqüência ao Parque, então, atendidas as exigências da Lei nº 8.666/93. A lei não impõe o projeto executivo como condição para a licitação. É verdade que não há definição detalhada, o que faz aumentar em muito a responsabilidade das autoridades administrativas na atividade de controle e cobrança. O contrato dá ao IBAMA poder para fiscalizar a sua execução e se não estiver cumprido o seu poder-dever é questão que não está aqui em discussão. Se acaso não-implementados os melhoramentos e as obras, o IBAMA poderá levantar as garantias do item 8.2 (fl. 82). A concessionária deverá manter registros contábeis e financeiros que poderão ser examinados. Não há alegação específica de “lesão ao meio ambiente ou lesão ao erário”, a não ser o genérico (fl. 14 da inicial), “violação aos princípios da legalidade e eficiência”. Não vejo como, sob este ângulo, anular a licitação. Por outro lado, o princípio do dever de convalidação do artigo 55 da Lei nº 9.784/99, Processo Administrativo, impõe o dever de convalidar quando não houver prejuízo para a Administração. Esclareço que nem tudo está perfeitamente claro nos autos e percebo que os Editais objetos desta Ação Civil Pública tiveram escassa R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 133 publicidade, se verdadeiro for o que está aparente nos autos. Houve apenas um Edital no Jornal Estado do Paraná (fl. 617) para uma licitação de um empreendimento em um parque nacional, parque federal importantíssimo, o que não parece ser adequado. Finalmente, a presente Ação Civil Pública, se eventualmente improcedente, terá servido para alertar ao empreendedor-concessionário da magnitude de sua responsabilidade, bem como para reforçar nos agentes públicos, especialmente do IBAMA, a certeza de suas grandes responsabilidades e da necessidade do pleno exercício do poder-dever de bem e fielmente cumprirem com o dever de fiscalizar a execução do contrato. Isso posto, nego provimento ao apelo. É o voto. APELAÇÃO CÍVEL Nº 2000.71.10.002580-1/RS Relator: O Exmo. Sr. Des. Federal Luiz Carlos de Castro Lugon Apelante: Sandra Lucy Boesche Advogados: Drs. Adilson Machado e outros Apelante: Caixa Econômica Federal – CEF Advogados: Drs. Bruno Budde e outros Apelados: (os mesmos) EMENTA Administrativo. Sistema Financeiro de Habitação. Código de Defesa do Consumidor. Coeficiente de equiparação salarial. Não-incidência. Reajuste do saldo devedor. Taxa referencial. Inaplicabilidade. INPC. IPC. BTNF. Março/90. Sistema de cálculo da evolução do saldo devedor - prévio reajuste e posterior amortização. Tabela price. Anatocismo. Vedação legal. Teoria da imprevisão. Seguro habitacional. Valor. Taxa 134 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 de juros. Art. 6º, e, da Lei 4.380/64. Limitação. Inclusão em cadastros restritivos ao crédito. PES. Reajuste das prestações. Plano de equivalência salarial. Salário mínimo. Súmula nº 39/TRF4. Repetição do indébito. Art. 23 da Lei 8.004/90. Dobro legal. Art. 42, parágrafo único, do CDC. Inaplicabilidade. 1. Caracterizada como de consumo a relação entre o agente financeiro do SFH, que concede empréstimo oneroso para aquisição de casa própria, e o mutuário, as respectivas avenças estão vinculadas ao Código de Defesa do Consumidor - Lei nº 8.078/90. 2. Ao se desincumbir da sua missão, cumpre ao Judiciário sindicar as relações consumeristas instaladas quanto ao respeito às regras consignadas no CDC, que são qualificadas expressamente como de ordem pública e de interesse social (art. 1º), o que legitima mesmo a sua ação ex officio, declarando-se, v.g., a nulidade de pleno direito de convenções ilegais e que impliquem excessiva onerosidade e vantagem exagerada ao credor, forte no art. 51, IV e § 1º, do CDC. 3. Tendo sido o contrato celebrado anteriormente à vigência da Lei 8.692/93 e não havendo no mesmo inclusão do Coeficiente de Equiparação Salarial - CES no cálculo do encargo inicial, torna-se injustificável sua cobrança. 4. A inaplicabilidade da variação da Taxa Referencial, fator financeiro, atrelado unicamente a injunções do mercado, para o reajuste dos contratos firmados no âmbito do Sistema Financeiro de Habitação exsurge não da manifestação do Pretório Excelso, cuja operatividade ficou restrita aos ajustes negociais válidos entre as partes e em vigor, mas pelo fato do índice, em face da sua composição, não atender às exigências das especiais regras do Sistema Financeiro da Habitação acerca dos critérios de correção do contrato de mútuo habitacional. 5. Excluída a Taxa Referencial - TR como índice indexador da pactuação, no fito de emprestar operatividade à cláusula de escala móvel, em substituição deve-se adotar o INPC, que, além de ser índice vocacionado legalmente a aferir as variações no poder aquisitivo do padrão monetário nacional (art. 7º e seus parágrafos, da Lei nº 4.357/64), adequado, pois, aos reclamos da legislação disciplinadora do sistema. 6. Uma vez estabelecido o BTNF como critério de reajustamento da poupança em abril de 1990, cujos recursos existentes até a data da Medida R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 135 Provisória nº 168, de 16 de março de 1990, que se converteu na Lei nº 8.024, de 12 de abril de 1990 (Plano Collor), serviram como fonte dos contratos de financiamento até então celebrados, o mesmo índice deve servir para a atualização do saldo financiado dos contratos de mútuo celebrados no âmbito do SFH. 7. A incidência dos juros e da correção monetária sobre o saldo devedor precede a amortização decorrente do pagamento da prestação mensal. 8. A organização do fluxo de pagamento constante, nos moldes do Sistema Francês de Amortização, concebe a cotação de juros compostos, o que é vedado legalmente, merecendo ser reprimida, ainda que expressamente avençado, uma vez que constitui convenção abusiva. 9. Tolerável, contudo, a capitalização anual dos juros, a teor do art. 4º do Decreto 22.626/33 (É proibido contar juros dos juros: esta proibição não compreende a acumulação de juros vencidos aos saldos líquidos em conta-corrente de ano a ano). 10. Aplicável à espécie a teoria da imprevisão, no sentido de ser possível a intervenção no contrato, afastando-se o pacta sunt servanda para manter o equilíbrio inicial e a própria viabilidade do contrato no atingimento de suas finalidades. 11. O valor e as condições do seguro habitacional são previstos no contrato, de acordo com as normas editadas pela Superintendência de Seguros Privados - SUSEP, mas limitados à variação salarial do mutuário, não se encontrando atrelados aos valores de mercado. 12. O limite da taxa efetiva de juros para os contratos do SFH firmados na vigência da Lei 4.380/64 é de 10% ao ano (art. 6º, e, da Lei 4.380/64); a Lei 8.692/93, em seu art. 25, elevou o limite máximo da taxa efetiva de juros anual para 12% (doze por cento). 13. Descabe a inclusão do nome do mutuário em cadastros de devedores na pendência de ação revisional do contrato de mútuo hipotecário. 14. O reajuste dos encargos mensais de contrato de mútuo com cláusula PES vinculado ao Sistema Financeiro da Habitação deve ficar limitado aos índices de aumento dos salários da categoria profissional do mutuário, se empregado, e à variação do salário mínimo, se profissional liberal, autônomo ou assemelhado. 15. Cabível a restituição dos valores eventualmente pagos a maior pelo mutuário, com fulcro no art. 23 da Lei 8.004/90. 136 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 16. Entende-se aplicável a repetição do indébito em dobro, prevista no art. 42, parágrafo único, do CDC, tão-somente naquelas hipóteses em que há prova de que o credor agiu com má-fé, nos contratos firmados no âmbito do SFH. ACÓRDÃO Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide a Egrégia Terceira Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por unanimidade, dar parcial provimento ao apelo da CEF e ao apelo da autora, nos termos do relatório, voto e notas taquigráficas que ficam fazendo parte integrante do presente julgado. Porto Alegre, 23 de setembro de 2003. Des. Federal Luiz Carlos de Castro Lugon, Relator. RELATÓRIO O Exmo. Sr. Des. Federal Luiz Carlos de Castro Lugon: Trata-se de apelações de sentença que julgou parcialmente procedente ação de revisão de contrato de mútuo firmado no âmbito do Sistema Financeiro da Habitação - SFH para determinar: a) que a Caixa Econômica Federal retire eventuais registros e abstenha-se de incluir o nome da autora em cadastros restritivos ao crédito, tais como SERASA e SPC, bem como de executar extrajudicialmente a autora pelos créditos decorrentes do contrato sub judice, até que haja decisão final transitada em julgado; b) a revisão do contrato firmado entre as partes, observando-se a adequação de todas as prestações, vencidas e vincendas, às variações do salário mínimo, bem como a exclusão da capitalização mensal de juros e da tabela price; c) a devolução em dobro dos valores eventualmente pagos a mais pela autora, incidente à espécie o parágrafo único do art. 42 da Lei 8.078/90. Ante a sucumbência recíproca, as partes não foram condenadas em honorários advocatícios, já considerada a compensação prevista no art. 21 do CPC. As partes foram condenadas a pagar honorários periciais de R$ 800,00, ficando R$ 400,00 a cargo da autora e R$ 400,00 a cargo da ré. Os demandantes foram condenados ao pagamento das custas processuais, ficando cada qual responsável pelo pagamento da metade do valor total. A autora irresigna-se contra a cobrança do Coeficiente de Equiparação R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 137 Salarial - CES, uma vez que, à época da assinatura do contrato, não tinha amparo legal. Sustenta a ilegalidade da atualização do saldo devedor com base na TR, postulando sua substituição pelo INPC, por refletir a variação da correção monetária. Postula o expurgo do índice de 84,32% do IPC de março de 1990, aplicando-se o índice de 41,28% do BTNF no referido mês e ano. Insurge-se contra a forma de amortização da dívida, alegando que, nos termos do que dispõe a Lei 4.380/64, em seu art. 6º, alínea c, a amortização das prestações deve ser feita antes da atualização monetária do saldo devedor. Afirma que a aplicação da Tabela Price gera amortizações negativas e que é plenamente aplicável aos contratos de mútuo habitacional a teoria da imprevisão, a fim de restabelecer o equilíbrio rompido por circunstâncias externas e imprevisíveis ao tempo da contratação. Alega que a taxa de seguro deve ser reajustada em conformidade com o índice utilizado para a correção da prestação, de forma a manter a proporcionalidade existente quando da contratação, e que os agentes financeiros não podem adotar índices superiores aos estabelecidos pela SUSEP - Superintendência de Seguros Privados. Por fim, reputa inválida a disposição contratual que estabelece juros efetivos de 11,02% ao ano, porquanto o art. 6º, e, da Lei 4.380/64 limita a remuneração por mútuos dessa espécie à taxa máxima de 10% ao ano. A CEF sustenta que a simples existência de discussão judicial sobre a obrigação não implica causa para a exclusão do SPC, a qual só se dará por regularização ou decisão judicial definitiva acerca do débito. Quanto ao cumprimento da cláusula PES/CP, afirma que a Constituição Federal e a Lei 7789/89 vedaram a utilização do salário mínimo como indexador dos contratos, sendo que, no caso dos trabalhadores autônomos, são estabelecidos índices de reajuste gerais pelos órgãos competentes, no caso, os reajustes concedidos por meio das leis salariais para a data-base março. Alega que a Tabela Price não produz juros capitalizados, à exceção de ocorrência de amortização negativa, o que não é o caso dos autos. Por fim, afirma que não se aplicam ao contrato de financiamento quaisquer das regras do Código de Defesa do Consumidor, não havendo fundamento para a pretensão de repetição do indébito. Contra-arrazoado o recurso da CEF, subiram os autos a este Tribunal. É o relatório. 138 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 VOTO O Exmo. Sr. Des. Federal Luiz Carlos de Castro Lugon: O MM. Juiz prolator da sentença condenou a CEF: a) a retirar eventuais registros e abster-se de incluir o nome da autora em cadastros restritivos ao crédito, tais como SERASA e SPC, bem como de executar extrajudicialmente a autora pelos créditos decorrentes do contrato sub judice, até que haja decisão final transitada em julgado; b) a revisar o contrato firmado entre as partes, observando-se a adequação de todas as prestações, vencidas e vincendas, às variações do salário mínimo, bem como a excluir a capitalização mensal de juros e a tabela price; c) a devolver em dobro os valores eventualmente pagos a mais pela autora, incidente à espécie o parágrafo único do art. 42 da Lei 8.078/90. Do contrato O contrato de mútuo habitacional (fls. 100/105) foi firmado em janeiro de 1990, prevendo um prazo para amortização de 240 meses, uma taxa nominal anual de juros de 10,50% e efetiva de 11,02%, sistema de amortização pela Tabela Price, reajuste das parcelas mensais pelo Plano de Equivalência Salarial - Categoria Profissional e do saldo devedor pelos índices de atualização dos depósitos de poupança. Da aplicabilidade do CDC A Lei nº 8.078/90 - Código de Defesa do Consumidor, na definição do universo dos sujeitos merecedores de sua defesa e proteção, conceituou como consumidor toda pessoa física ou jurídica que adquire e utiliza produto ou serviço como destinatário final (art. 2º). Já como fornecedor, e habitante do outro pólo da relação consumerista, inclui, além da pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira que desempenhe atividades relacionadas com a cadeia do produto, aquela que preste serviço (art. 3º, caput), assim entendido qualquer atividade fornecida ao mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista. (art. 3º, § 2º) Se o mutuário é destinatário final do crédito fornecido, porquanto presumivelmente utiliza-o no suprimento de suas necessidades, v.g., adquirir bens de maior valor ou gozar de segurança, conforto e comodidade, e a instituição bancária ou financeira entrega o dinheiro mediante paga de 139 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 juros, caracterizando-se o mútuo feneratício ou de fins econômicos, há a conformação da relação de consumo, e, por conseguinte, existência de substrato fático para incidência, na sua plenitude, do Estatuto Protetivo Consumerista. Neste esquema enquadra-se com justeza o mútuo habitacional, espécie de avença feneratícia. Cláudia Lima Marques, a respeito, registra: “Muitas preocupações têm surgido no Brasil quanto ao contrato de financiamento, com garantia hipotecária, e os contratos de mútuo para a obtenção de unidades de planos habitacionais. Nestes casos o financiador, o órgão estatal ou o banco responsável, caracteriza-se como fornecedor. As pessoas físicas, as pessoas jurídicas, sem fim de lucro, enfim todos aqueles que contratem para benefício próprio, privado ou de seu grupo social, são consumidores. Os contratos firmados regem-se, então, pelo novo regime imposto aos contratos de consumo, presente no CDC. Estes contratos típicos de adesão, mas se fechados entre profissionais (para construção de fábricas, shopping center) estarão em princípio excluídos do campo da aplicação do CDC. Somente examinando caso a caso eventual vulnerabilidade do co-contratante é que o Judiciário Brasileiro poderá expandir a tutela concedida, em princípio, só ao consumidor nãoprofissional, usando como exemplo a norma permissiva do art. 29 do CDC.” (in Contratos no Código de Defesa do Consumidor, 3.ed. rev. - São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 1998, p. 203) A jurisprudência do Egrégio STJ, no mesmo sentido, anota: “CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR - AÇÃO DE REVISÃO DE CLÁUSULA CONTRATUAL - CONTRATO DE ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA - INSTITUIÇÃO FINANCEIRA - CONTRATO DE ADESÃO - RELAÇÃO DE CONSUMO - ART. 3º, §2º, DA LEI 8.078/90 - FORO DE ELEIÇÃO - CLÁUSULA CONSIDERADA ABUSIVA - FORO COMPETENTE ONDE CELEBRADA A OBRIGAÇÃO - PRECEDENTES. I - Os bancos ou instituições financeiras, como prestadores de serviços especialmente contemplados no art. 3º, § 2º, estão submetidos às disposições do Código de Defesa do Consumidor. II - A cláusula de eleição de foro inserida em contrato de adesão não prevalece se ‘abusiva’, o que se verifica quando constatado que da prevalência de tal estipulação resulta inviabilidade ou especial dificuldade de acesso ao Judiciário. Precedentes da Segunda Seção. IV - Conflito conhecido para declarar competente o Juízo de Direito da 2ª Vara Cível de Três Corações/MG, o suscitado.” (CC 29088/SP, 2ª Seção, Rel. Min. Waldemar Zveiter, DJU 13.11.2000, p. 130) “AGRAVO NO AGRAVO DE INSTRUMENTO - CONTRATO DE ABERTURA DE CRÉDITO - APLICABILIDADE DO CDC - COMISSÃO DE PERMANÊNCIA - 140 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 INACUMULABILIDADE COM JUROS MORATÓRIOS E MULTA CONTRATUAL - SÚMULA 83 DESTA CORTE. I - Pela interpretação do art. 3º, §2º, do CDC, é de se deduzir que as instituições bancárias estão elencadas no rol das pessoas de direito consideradas como fornecedoras, para fim de aplicação do Código de Defesa do Consumidor às relações entre essas e os consumidores, no caso, correntistas. II - Tratando-se de contrato firmado entre a instituição financeira e pessoa física, é de se concluir que o agravado agiu com vistas ao atendimento de uma necessidade própria, isto é, atuou como destinatário final. Aplicável, pois, o CDC. III - (...)”. (AGA 296516/SP, 3ª Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, DJU 05.02.2001, p. 110) Caracterizada como de consumo a relação entre o agente financeiro do SFH, que concede empréstimo oneroso para aquisição de casa própria, e o mutuário, as respectivas avenças estão vinculadas, além dos princípios gerais, a princípios específicos que sublimem a finalidade social, dentre eles o “de que a vulnerabilidade do mutuário na transação imobiliária, não decorrente da sua fragilidade financeira, mas, também, pela ânsia e necessidade de adquirir a casa própria, há de ser considerada na execução da Política Habitacional, não só pelo legislador a elaborar a norma, mas, também, pelo Executivo ao regulamentá-la e fiscalizar o seu cumprimento e o Judiciário quando for chamado a aplicá-la” (grifo nosso), e aquele que determina “que a proteção efetiva do mutuário, como parte economicamente mais fraca, se constitui em uma obrigação do Estado, inserindo-se nesta função a atuação do Poder Judiciário”. (REsp nº 101.061/PB, Rel. Min. José Delgado - DJU 29.10.96) Ao se desincumbir da sua missão, cumpre ao Judiciário sindicar as relações consumeristas instaladas quanto ao respeito às regras consignadas no CDC, que são qualificadas expressamente como de ordem pública e de interesse social (art. 1º), o que legitima mesmo a sua ação ex officio, declarando-se, v.g., a nulidade de pleno direito de convenções ilegais e que impliquem excessiva onerosidade e vantagem exagerada ao credor, forte no art. 51, IV e § 1º, do CDC, porque abusivas e atentatórias à boa-fé, restabelecendo-se o equilíbrio do contrato, relativizado que está o pacta sunt servanda em homenagem à igualdade material entre as partes. A indigitada doutrinadora, destaca: “Note-se que, concluído o contrato entre o fornecedor e o consumidor, quando o pacto deve surtir seus efeitos, deve ser executado pelas partes, impõe a nova Lei o respeito a um novo princípio norteador da ação das partes, é o Princípio da Eqüidade R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 141 Contratual, do equilíbrio de direitos e deveres no contrato, para alcançar a justiça contratual. Assim, institui o CDC normas imperativas, as quais proíbem a utilização de qualquer cláusula abusiva, definidas como as que assegurem vantagens unilaterais ou exageradas para o fornecedor de bens e serviços, ou que sejam incompatíveis com a boa-fé e a eqüidade (veja o art. 51, IV, do CDC). O Poder Judiciário declarará a nulidade absoluta destas cláusulas, a pedido do consumidor, de suas entidades de proteção, do Ministério Público e mesmo, incidentalmente, ex officio. A vontade das partes manifestada livremente no contrato não é mais o fator decisivo do Direito, pois as normas do Código instituem novos valores superiores como o equilíbrio e a boa-fé nas relações de consumo. Formado o vínculo contratual de consumo, o novo direito dos contratos opta por proteger não só a vontade das partes, mas também os legítimos interesses e expectativas dos consumidores. O princípio da eqüidade, do equilíbrio contratual é cogente; a lei brasileira, como veremos, não exige que a cláusula abusiva tenha sido incluída no contrato ‘por abuso do poderio econômico’ do fornecedor, como exige a lei francesa, ao contrário, o CDC sanciona e afasta apenas o resultado, o desequilíbrio, não exige um ato reprovável do fornecedor; a cláusula pode ter sido aceita conscientemente pelo consumidor, se traz vantagem excessiva para o fornecedor, se é abusiva, o resultado é contrário à ordem pública, contrária às novas normas de ordem pública de proteção do CDC e a autonomia de vontade não prevalecerá.” (op. cit. p. 390/391) Mesmo que as relações mantidas com instituições bancárias ou financeiras estivessem imunes às regras do direito consumerista, o rompimento da comutatividade contratual, com o enriquecimento injustificado de uma das partes, sempre foi causa de revisão da avença, quiçá de sua resolução, na hipótese de gravosidade tal que comprometesse a economia do contrato, quebrando o equilíbrio do pacto e impedindo sua justa sobrevivência. Portanto, registra a Desembargadora do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, Rejane Maria Dias de Castro Bins, “não basta invocar o pacta sunt servanda, quando se põem em desequilíbrio as posições das partes num negócio, com benefício acentuado de uma em detrimento de outra. Esta a perspectiva da qual se devem analisar as relações entre as partes, não se tratando, de conseguinte, de verificar abusividade em razão da parte que litiga, mas das cláusulas contratuais retratadas nos instrumentos firmados, que eventualmente poderão infringir regras do direito objetivo. E, em o fazendo, a invalidade há de ser decretada, ficando afastada a representação do contrato como ato jurídico perfeito (arts. 5º, inc. XXXVI, Constituição Federal e 6º, § 1º, da Lei de Introdução ao Código Civil, além do art. 82 do Código Civil). O pacto é cumprido no que válido e regular.” (AC nº 70004638987, julgamento em 18.12.2002) É de relevo, todavia, que a atividade controladora do Judiciário deve procurar preservar a pactuação, restringindo-se à poda das sobras. Mister 142 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 que o juiz se empenhe em ajustar o conteúdo do contrato de consumo (art. 51, § 2º, do CDC), fazendo a exegese mais favorável ao consumidor (art. 47 do CDC), o qual, no caso concreto, ostenta idêntico benefício à luz da lei civil (art. 423), porquanto é aderente ao contrato de mútuo habitacional, típico de negócio jurídico no qual a participação de um dos sujeitos sucede pela aceitação em bloco de uma série de cláusulas formuladas antecipadamente, de modo geral e abstrato, pela outra parte, para constituir o conteúdo normativo e obrigacional de futuras relações concretas. (ORLANDO GOMES, in Contrato de Adesão, São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 1972, p. 03) Do Coeficiente de Equiparação Salarial - CES Razão assiste à autora quanto à não-incidência do Coeficiente de Equiparação Salarial - CES. O Coeficiente de Equiparação Salarial - CES foi instituído inicialmente por meio da Resolução nº 36/69 do Conselho de Administração do BNH com a finalidade de aumentar o poder de amortização dos encargos mensais, em contrapartida à adoção de diferentes critérios para correção das prestações e do saldo devedor. Somente com a edição da Lei 8.692, em 28.07.93, no entanto, passou tal coeficiente a integrar a legislação de regência do SFH, prevendo aquele diploma legal, em seu art. 8º, a incidência do CES nos contratos regidos com a cláusula PES. No caso dos autos, o contrato foi celebrado anteriormente à vigência da Lei 8.692/93 (08.01.90), não havendo no mesmo inclusão do coeficiente no cálculo do encargo inicial (item 5 do Quadro Resumo do contrato, fl. 105), sendo injustificável, portanto, sua cobrança. A propósito da vedação à cobrança do CES quando inexistente cláusula contratual que justifique sua incidência, colaciono jurisprudência desta Corte: “ADMINISTRATIVO. SFH. CONTRATO DE MÚTUO HIPOTECÁRIO. REVISÃO. PRELIMINARES. SENTENÇA ULTRA PETITA. FALTA DE PROVA PERICIAL. CONTRATO COM COBERTURA DO FCVS. INCIDÊNCIA DO CES. ILEGALIDADE. TAXA DE JUROS. LIMITE LEGAL. CAPITALIZAÇÃO. VEDAÇÃO. CDC. INAPLICABILIDADE. SUCUMBÊNCIA. Não é ultra petita a sentença que resolve a lide nos limites do pleiteado. Havendo nos autos elementos probatórios suficientes para formar o convencimento do Juízo acerca do contrato em discussão, é dispensável a dilação probatória, não sendo caso R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 143 de nulidade. É de ser excluída a incidência do Coeficiente de Equiparação Salarial nos contratos em que não há previsão expressa que justifique sua aplicabilidade, ou naqueles em que há cobertura do FCVS, de acordo com o contrato examinado. A taxa de juros aplicável é aquela fixada na contratação, porquanto não-ultrapassado o limite legal referido na Lei nº 4.380/64, art. 6º, vedada a capitalização, nos moldes da Súmula nº 121 do STF. As alegações relativas à oneração excessiva dos contratos vinculados ao SFH desprovidas de comprovação são insuficientes para ensejar a nulidade das cláusulas com base nas normas do Código de Defesa do Consumidor, sendo imprescindível a demonstração da conduta abusiva do agente financeiro, bem como da verossimilhança das alegações. Precedentes desta Corte. Fixada a sucumbência recíproca das partes, nos termos do art. 21, caput, do CPC.” (AC 2000.04.01.092680-0/SC, 4ª Turma, Rel. Des. Federal Edgard Lippmann, DJU 18.10.2000, p. 242) “ADMINISTRATIVO. SFH. CÁLCULO DO PRIMEIRO ENCARGO CONTRATUAL. INCIDÊNCIA DO CES. APELAÇÃO QUE NÃO ENFRENTA OS ARGUMENTOS DA SENTENÇA. NÃO CONHECIMENTO. JUROS. LIMITE LEGAL OBEDECIDO. 1. Se a sentença extinguiu parcialmente o processo sem exame de mérito, não se conhece da apelação que, descuidando deste detalhe, debruça-se exclusivamente sobre o mérito da questão. 2. É legítima a adoção dos critérios da tabela price para o cálculo da primeira prestação. 3. Antes do advento da Lei nº 8.692, de 1993, não havia base legal para a cobrança do CES - Coeficiente de Equiparação Salarial, violando o princípio da legalidade os atos normativos de categoria inferior que instituíram o referido acréscimo. 4. Sobre os juros, consta dos autos que a CEF cobra juros nominais de 8,3% ao ano e juros efetivos de 8,623% ao ano. Portanto, estando a taxa efetiva abaixo do limite de 10%, nos termos do art. 6º, alínea e, da Lei nº 4.380/64, nenhum interesse reside em tal pedido.” (AC 1999.70.00.033597-4/PR, 3ª Turma, Rel. Des. Federal Paulo Afonso Brum Vaz, DJU 05.09.2001, p. 903) Da inaplicabilidade da taxa referencial na atualização do saldo devedor Ancorando mais um dos planos de estabilização econômica, a Lei nº 8.177/91, sucessora da Medida Provisória nº 291, de 01 de fevereiro de 1991, extinguiu o BTN e, simultaneamente, criou a Taxa Referencial, que exprimia o custo do dinheiro no mercado financeiro, sendo calculada a partir da remuneração mensal média líquida de impostos, dos depósitos a prazo fixo captados nos bancos comerciais, bancos de investimentos, bancos múltiplos com carteira comercial ou de investimentos, caixas econômicas, ou dos títulos públicos federais, estaduais e municipais, de acordo com metodologia a ser aprovada pelo Conselho Monetário Nacional. (art. 1º da Lei nº 8.177/91) 144 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 Esta confessada origem usurária determinou fosse reconhecida a inadequação da Taxa Referencial como critério de correção monetária, consoante evidenciado pelo Pretório Excelso à ocasião da apreciação da ADIn nº 493-0, na qual foi suspensa a vigência de inúmeros dispositivos confinados na Lei nº 8.177/91, o que veio a ocorrer, também, nas ADIns nos 959 e 768. Estava, assim, no âmbito jurisdicional, identificada a natureza de taxa de juros da TR. Sei, contudo, que, relativamente às relações contratuais travadas no âmbito do Sistema Financeiro da Habitação, o Pretório Excelso restringiu-se, nas várias oportunidades em que se debruçou sobre o tema, a interditar a violação ao ato jurídico perfeito, que vinha consignada no bojo do texto objeto do juízo abstrato de compatibilidade constitucional, in verbis: “CONSTITUCIONAL. CORREÇÃO MONETÁRIA. UTILIZAÇÃO DA TR COMO ÍNDICE DE INDEXAÇÃO. I. - O Supremo Tribunal Federal, no julgamento das ADIns 493, Relator o Sr. Ministro Moreira Alves, 768, Relator o Sr. Ministro Marco Aurélio e 959-DF, Relator o Sr. Ministro Sydney Sanches, não excluiu do universo jurídico a Taxa Referencial, TR, vale dizer, não decidiu no sentido de que a TR não pode ser utilizada como índice de indexação. O que o Supremo Tribunal decidiu, nas referidas ADIns, é que a TR não pode ser imposta como índice de indexação em substituição a índices estipulados em contratos firmados anteriormente a Lei 8.177, de 01.03.91. Essa imposição violaria os princípios constitucionais do ato jurídico perfeito e do direito adquirido. C.F., art. 5., XXXVI. II. - No caso, não há falar em contrato em que ficara ajustado um certo índice de indexação e que estivesse esse índice sendo substituído pela TR. É dizer, no caso, não há nenhum contrato a impedir a aplicação da TR. III. - R.E. não conhecido.” (RE 175678/MG - Relator Min. Carlos Velloso, DJ de 04.08.95) A convicção pela inaplicabilidade da variação da Taxa Referencial em casos que tais exsurge não da manifestação do Pretório Excelso, cuja operatividade ficou restrita aos ajustes negociais válidos entre as partes e em vigor, mas pelo fato de o índice, em face da sua composição, não atender às exigências das especiais regras do Sistema Financeiro da Habitação acerca dos critérios de correção do contrato de mútuo habitacional. Data da edição da Lei nº 4.380, de 21.08.64, a previsão de reajustamento contratual baseado na variação de índice geral de preços (art. 5º, caput ); idêntica vinculação foi anotada na Lei nº 4.864/65 (art. 1º, III). Após, o DL 19/66 também registrou, porém de modo obrigatório, o lançamento 145 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 de cláusula de escala móvel nos contratos de mútuo habitacional. A este propósito não serve um índice que está submetido a influências do mercado financeiro na fixação do custo do dinheiro a ser captado pelas instituições financeiras, não refletindo com isenção necessária o número-índice que traduz, o mais aproximadamente possível, a perda do valor de troca, mediante comparação, entre os extremos de determinado período, da variação do preço de certos bens (mercadorias, serviços, salários, etc.), para a revisão do pagamento das obrigações que deverá ser feita na medida desta variação. (Min. Moreira Alves, ADIn 493-0) Se a legislação de regência e instituidora do Sistema elegeu como indexador índice de preços, contraria a essência da regra pretender e permitir o uso de fator financeiro, atrelado unicamente a injunções do mercado, como falso índice de correção monetária. Traçando idêntico raciocínio, arremata o Juiz Federal Julier Sebastião da Silva: “Nesse roteiro, verifica-se que a cláusula de correção monetária dos contratos habitacionais foi albergada com o seu conceito legal estritamente delineado, qual seja, de variação do poder aquisitivo da moeda em face da espiral inflacionária, não estando nele compreendido qualquer outro fator financeiro estranho à sua natureza jurídica. A Lei nº 8.177/91, ao instituir a denominada Taxa Referencial - TR e determinar, por via do artigo 18, declarado inconstitucional pelo STF, que tal indicador fosse utilizado na correção dos saldos devedores dos contratos imobiliários, violou flagrantemente aos princípios inspiradores do Sistema Financeiro da Habitação, os quais não admitem a presença de qualquer outro índice, que não seja àquele pertinente à variação da inflação, como fator de reajustamento dos valores referentes ao empréstimo concedido pela instituição financeira.” (TRF 1ª Região - AC nº 1997.01.00.31652-0/BA - DJ em 15.04.2002) Forçoso reconhecer, ainda, que a manutenção da Taxa Referencial nas avenças habitacionais conspira contra a execução do contrato, ou, quando menos, prolonga-a sobremaneira, porquanto sendo a premissa básica do Sistema a equivalência salarial, e, sabendo-se que o salário não é reajustado com base na variação da TR, quando muito pelos índices que apanham a flutuação dos preços no período, ter-se-á descompasso entre os elementos do contrato, inchando, pela aplicação da barreira da equivalência salarial nas prestações, o saldo devedor por conta dos valores não atendidos pelo encargo mensal. Outro argumento de relevância é que, sendo a Taxa Referencial um fator financeiro apurado a partir da remuneração mensal média 146 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 líquida de impostos, dos depósitos a prazo fixo captados nas instituições financeiras, é nula a possibilidade de, em tempos de estabilização econômica, seu valor ser zero ou até mesmo refletir uma situação de deflação de preços, como verificado em alguns índices, porquanto sempre deverá ela apresentar, ainda que mínimo, um índice positivo, na medida que se trata de taxa de captação de recursos do setor privado, os quais, é da sua essência, devem ser remunerados. Refiro, ainda, que a circunstância da contratação eventualmente ostentar cláusula de escala móvel vinculada aos índices de correção monetária dos depósitos da caderneta de poupança, atualmente atrelados à variação da TR, não infirma em nada as razões que aduzi. Mesmo que assim travestida, a TR continua sendo índice impróprio para pautar as avenças habitacionais; deponho a forma em homenagem à essência. A propósito da não-utilização da TR como índice de correção monetária colaciono jurisprudência deste Tribunal: “ADMINISTRATIVO. SFH. TR. INAPLICABILIDADE. SUBSTITUIÇÃO. INPC. SUCUMBÊNCIA. NÃO DEVIDA. ILEGITIMIDADE PASSIVA DA UNIÃO FEDERAL. CES. APLICÁVEL. CONTRATO DE SEGURO. LÍCITA CLÁUSULA PROCURATÓRIA. ABUSIVIDADE. PROVA. CORREÇÃO DAS PRESTAÇÕES. VARIAÇÃO DA URV. PES/CP. INAPLICÁVEL À CORREÇÃO DO SALDO DEVEDOR.. 1. Nos contratos firmados anteriormente à publicação da Lei nº 8.177/91, no período em que a poupança ficou atrelada à TR, esta deverá ser substituída pelo INPC, por melhor refletir as variações do poder aquisitivo da moeda nacional. 2. Citado o litisconsorte passivo, responde o autor pelos honorários advocatícios em face do indevido chamamento para integrar a lide, mesmo quando a inclusão no pólo passivo decorreu de determinação judicial irrecorrida. 3. Conforme reiteradas decisões do Superior Tribunal de Justiça, a União não possui legitimidade passiva para integrar as ações em que se discute a aplicação das cláusulas contratuais dos contratos de mútuo financeiro regido pelo SFH. 4. Em contratos anteriores à Lei nº 8.962, de 28.07.93, é imprescindível a existência de cláusula contratual que justifique a cobrança do CES, oferecendo às partes os elementos necessários para delimitar seus direitos e obrigações. 5. Não há irregularidade na metodologia utilizada para a contratação de companhia de seguro, sendo lícita a cláusula procuratória inserta no contrato de mútuo que responsabiliza o agente financeiro pela contratação do seguro. Eventual excesso de mandato na contratação do seguro, depende de prova, que não foi produzida. 6. Considerando a introdução da URV como unidade monetária, bem como tendo em vista que a variação do salário mínimo relativa ao período imediatamente anterior a julho de 1994 deve ser repassada ao contrato, correto o reajuste das prestações efetuado pela CEF neste período. R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 147 7. Não há nenhuma nulidade ou ilegalidade na cláusula do contrato de mútuo que estabeleceu que o saldo devedor seria corrigido segundo os índices de remuneração dos depósitos de poupança ou contas vinculadas do FGTS, mantendo o equilíbrio do sistema, vez que não existe legislação que vede sua utilização ou mesmo interpretação dúbia. Ao revés, o que ali está pactuado resulta de expressa disposição legal, com redação clara e condizente com todo o Sistema Financeiro da Habitação. 8. Apelo da CEF improvido. Apelo da SASSE provido. Apelo dos autores parcialmente provido.” (AC 2001.04.01.058035-2/SC, 4ª Turma, Rel. Juiz João Pedro Gebran Neto, DJU 16.10.2002, p. 744) “PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. CONTRATO DE MÚTUO HIPOTECÁRIO. EMBARGOS INFRINGENTES. ILEGALIDADE NA APLICAÇÃO DO CES. FALTA DE PROVAS. EXTINÇÃO DO PROCESSO SEM JULGAMENTO DE MÉRITO. CRITÉRIO DE CORREÇÃO DO SALDO DEVEDOR. UTILIZAÇÃO DA TR . IMPROVIMENTO. 1. Pretensão fundada em questão de direito, devidamente impugnada pela Parte Requerida, tornando incontroversa a sua existência, dispensa a dilação probatória, não podendo ser extinto o processo sem julgamento de mérito sob o fundamento da falta de interesse de agir, em face da ausência de prova do fato constitutivo do direito perseguido. 2. A Taxa de Remuneração Básica aplicável aos depósitos de poupança não constitui índice que reflita a variação do poder aquisitivo da moeda, tendo sido declarada inconstitucional sua aplicação para estes fins, consoante decisão do Supremo Tribunal Federal, na ADIn nº 493-DF.” (EIAC 95.04.63274-2/PR, 2ª Seção, Rel. Des. Federal Edgard Lippmann, DJU 16.08.2001, p. 71) Da mesma forma, então, que inaplicável a Taxa Referencial para correção dos contratos vigentes à época da sua criação - Lei nº 8.177/91, forte na diretriz de resguardo do ato jurídico perfeito consagrada na ADIn nº 493-0/DF, os contratos firmados a posteriori, no âmbito do SFH, não podem sofrer sua incidência porque constitui idéia contrária às regras especiais do sistema e da sua tradicional vinculação à variação de índices de preços. Do uso do INPC Excluída a Taxa Referencial - TR como índice indexador da pactuação, no fito de emprestar operatividade à cláusula de escala móvel, em substituição deve-se adotar o INPC, que, além de ser índice vocacionado legalmente a aferir as variações no poder aquisitivo do padrão monetário nacional (art. 7º e seus parágrafos, da Lei nº 4.357/64), adequado, pois aos reclamos da legislação disciplinadora do sistema, já foi utilizado em outros períodos para este fim. 148 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 Da inaplicabilidade do IPC de março/90 - Plano Collor A meu sentir, descabida a incidência, sobre o contrato de mútuo, do IPC de março de 1990 (Plano Collor), no percentual de 84,32%. Editado o Plano Collor, houve alteração do índice de remuneração da poupança, utilizando-se novo indexador, o BTNF. A Medida Provisória nº 168, de 16 de março de 1990, que se converteu na Lei nº 8.024, de 12 de abril de 1990, dispôs no art. 6º, § 2º, que as quantias depositadas em caderneta de poupança, no que excedessem de NCz$ 50.000,00 (cinqüenta mil cruzados novos), seriam atualizadas monetariamente pela variação do BTN Fiscal. Entretanto, a CEF empregou, na atualização do saldo devedor e das prestações mensais do financiamento no mês de abril/90, o IPC no percentual de 84,32%. Uma vez estabelecido o critério de reajustamento da poupança, cujos recursos existentes até a data da nova lei serviram como fonte dos contratos de financiamento até então celebrados, o mesmo índice deve servir para a atualização do saldo financiado. Neste sentido, merece ser transcrito excerto do voto expendido pelo Min. Ruy Rosado de Aguiar no REsp nº 236.228/SP (DJU 26.06.2000): “Se considerarmos a remuneração dos novos contratos de poupança a fim de examinar a possibilidade de vinculá-los ao reajuste do financiamento concedido à autora, há de se concluir, como já o foi na eg. Primeira Seção e ficou bem exposto no voto do em. Min. Ari Pargendler, que esses novos contratos, efetuados entre os dias 19 a 28 de março, com primeiro aniversário entre 19 e 28 de abril, foram remunerados pelo BTNF, na forma da Circular nº 1.606/90, acima citada. Se se quiser dizer que a vinculação deve ser feita com os recursos utilizados pelos bancos comerciais, provenientes dos ativos financeiros transferidos ao Banco Central, ainda aí veremos que o índice usado como parâmetro é o BTNF, e não o IPC, como constou da Circular nº 1.633, de 11.04.90, do Bacen: (...) Bem se vê que a atualização pelo IPC das prestações dos contratos imobiliários vinculados à poupança, na segunda quinzena de abril de 1990, contrariou a lei e as disposições expedidas pela autoridade financeira, causando grande prejuízo a todos os mutuários que se encontram em situação semelhante à dos autos. Diz-se que decisão nesse sentido causará prejuízo ao sistema financeiro, mas a mim me parece que aconteceu exatamente o contrário: a economia popular, os mutuários, os devedores do sistema habitacional é que sofreram grave dano com o método usado para a correção do saldo das prestações e do saldo devedor. Afirma-se também que isso seria insuportável ao sistema, mas não é o que se pode recolher do comportamento da Caixa Econômica Federal, principal entidade que atua no setor, a qual propôs aos mutuários a renegociação das dívidas, oferecendo desconR. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 149 tos de 50% ou mais, conforme constou do Informe Azul nº 6: ‘O Presidente da CEF reafirmou, em 29.04.97, que ‘são muitas as vantagens oferecidas aos mutuários para a renegociação de seus contratos, incluindo a liquidação antecipada, a regularização dos contratos de gaveta, a colocação em dia das prestações atrasadas e a transferência do Sistema Hipotecário para o SFH’. (...) Insiste-se na tese de que a vinculação era com a poupança livre, e que os saldos bloqueados não são poupança livre. Na verdade, quando constou dos contratos celebrados em 1989, muito antes do Plano Collor, a expressão poupança livre não estava em oposição à poupança bloqueada. Esses recursos da poupança livre é que serviram para a vinculação ao reajuste do contrato imobiliário, e esses mesmos recursos é que, depois de transferidos ao Bacen, foram corrigidos na segunda quinzena de abril pelo BTNF. De qualquer forma, se quisermos nos ater somente às novas contas de poupança, abertas de 19 a 28 de março, cujos saldos ficaram liberados, isto é, se quisermos definir apenas estas como ‘poupança livre’, também estas tiveram o saldo corrigido pelo BTNF (Circular nº 1606/90). A alegação de que a Lei 8.024/90 não reproduziu dispositivo existente na medida provisória sobre o índice a ser utilizado para a correção dos depósitos de poupança realizados na segunda quinzena de março/90, não tinha nenhuma pertinência com o caso que se tratava: a Lei 8.024/90 foi editada em 12 de abril de 1990, sabendo-se que a norma aplicável ao contrato de depósito é aquela existente ao tempo da sua celebração, conforme pacífica jurisprudência do STF e do STJ; ademais, os recursos da poupança que serviram ao financiamento concedido aos recorrentes estavam bloqueados no Banco Central e foram remunerados pelo BTNF.” Sendo assim, o índice aplicável para o reajuste do saldo devedor do mútuo hipotecário, nos termos da Lei 8.024, de 12 de abril de 1990, é o BTNF (41,28%). Do sistema de cálculo da evolução do saldo devedor - prévio reajuste e posterior amortização O sistema de amortização adotado pela Caixa Econômica Federal é aquele segundo o qual a incidência dos juros e da correção monetária sobre o saldo devedor precede a amortização decorrente do pagamento da prestação mensal. Pretende a parte autora, com base no disposto na alínea c do art. 6º da Lei 4.380/64, que seja invertido tal procedimento, de forma que, primeiramente, se diminua do saldo devedor o valor da prestação paga, e, posteriormente, proceda-se à atualização. Sem razão o recorrente. Eis o teor do dispositivo legal que ampara a tese no sentido de que seja a atualização do saldo devedor precedida do abatimento do montante pago a título de prestação: 150 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 “Art. 6° O disposto no artigo anterior somente se aplicará aos contratos de venda, promessa de venda, cessão ou promessa de cessão, ou empréstimo que satisfaçam às seguintes condições: a) tenham por objeto imóveis construídos, em construção, ou cuja construção, seja simultaneamente contratada, cuja área total de construção, entendida como a que inclua paredes e quotas-partes comuns, quando se tratar de apartamento, de habitação coletiva ou vila, não ultrapasse 100 (cem) metros quadrados; b) o valor da transação não ultrapasse 200 (duzentas) vezes o maior salário-mínimo vigente no país; c) ao menos parte do financiamento, ou do preço a ser pago, seja amortizado em prestações mensais sucessivas, de igual valor, antes do reajustamento, que incluam amortizações e juros. (grifo nosso) (...)” A melhor exegese do citado artigo é no sentido de que a expressão “antes do reajustamento” refere-se à “de igual valor”, e não ao momento da amortização, como quer fazer crer o recorrente. A intenção do legislador foi determinar que “as prestações mensais, sucessivas, e de igual valor, antes do reajustamento, compreendam amortização e juros”. Ademais, a correção monetária não é um plus, e sim um minus que se evita. Se o agente financeiro abatesse do saldo devedor o montante oferecido a título de encargo mensal antes de reajustá-lo, como pretende a parte autora, estaria desconsiderando a correção monetária de trinta dias, o que, em um ambiente inflacionário como o nosso, é inadmissível. Absolutamente pacificada nesta Corte e no Superior Tribunal de Justiça a jurisprudência no sentido de que o saldo devedor deve ser atualizado antes da dedução do valor da prestação. Vejamos: “DIREITO CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE CONHECIMENTO SOB O RITO ORDINÁRIO. CONTRATO DE FINANCIAMENTO IMOBILIÁRIO. SISTEMA FINANCEIRO DA HABITAÇÃO. PLANO DE EQUIVALÊNCIA SALARIAL. SALDO DEVEDOR. SISTEMA DE PRÉVIO REAJUSTE E POSTERIOR AMORTIZAÇÃO. JUROS REMUNERATÓRIOS. LIMITE. TAXA REFERENCIAL. AUSÊNCIA DE IMPUGNAÇÃO ESPECÍFICA DO FUNDAMENTO DO ACÓRDÃO. DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL. AUSÊNCIA DE SIMILITUDE FÁTICA. - O sistema de prévio reajuste e posterior amortização do saldo devedor não fere a comutatividade das obrigações pactuadas no ajuste, uma vez que, de um lado, deve o capital emprestado ser remunerado pelo exato prazo em que ficou à disposição do mutuário, e, de outro, restou convencionado no contrato que a primeira parcela será paga apenas no mês seguinte ao do empréstimo do capital. (grifo nosso) - Estão limitados em 12% (doze por cento) ao ano os juros remuneratórios pactuados em contrato de financiamento imobiliário vinculados ao SFH e ao Plano de Equivalência R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 151 Salarial instituído pela Lei nº 8.692/93. - Afasta-se a admissibilidade do recurso especial na parte em que o recorrente formula impugnação genérica, não adstrita ao fundamento utilizado pelo acórdão recorrido, bem como se os arestos confrontados possuem base fática distinta. - Recurso especial a que não se conhece.” (REsp 427329 / SC; Recurso Especial 2002/0043183-8, STJ, Rel. Min. Nancy Andrighi, DJ 09.06.2003, p. 00266) “CIVIL. SFH. PCR. REDUÇÃO DE RENDA. IMPOSSIBILIDADE DE MANUTENÇÃO DO PERCENTUAL DE COMPROMETIMENTO. SALDO DEVEDOR. TR. AMORTIZAÇÃO. CAPITALIZAÇÃO. 1. No caso de redução da renda, não é assegurado o direito à revisão, de forma a preservar o comprometimento de renda de 30% pactuado, mas apenas o direito de renegociar as condições de amortização, mediante a dilatação do prazo de liquidação do financiamento. 2. O saldo devedor pode ser atualizado pela TR, enquanto índice aplicável aos depósitos de cadernetas de poupança. 3. Deve ser procedida a atualização do saldo devedor antes de sua amortização. (grifo nosso) 4. Inexiste interesse dos autores relativamente à declaração de proibição de anatocismo, já garantida pela sentença recorrida. 5. Apelo improvido.” (AC nº 2001.71.08.001666-0/RS, TRF4, Terceira Turma, Rel. Desa. Federal Marga Barth Tessler, DJU 18.06.2003, p. 591) Estando a sentença combatida em sintonia com tal diretriz jurisprudencial, afasto o pedido da autora de reforma no que tange ao momento da amortização. Da Tabela Price Medra acirrado debate, inclusive nos meios científicos ligados à matemática financeira, sobre a repercussão da aplicação do Sistema Price de Amortização, também chamado de Sistema Francês de Amortização. O dissídio cifra-se na configuração ou não da cotação sobreposta de juros - anatocismo, o que seria vedado no nosso sistema jurídico. Mesmo diante da cizânia científica instalada, não é dado ao magistrado furtar-se de decidir, até porque se a função jurisdicional devesse considerar apenas a faceta técnica alheia à seara jurídica, melhor seria declinar da competência para a academia, a qual, em concílio técnico, resolveria, com maior autoridade, a quaestio. O jus dicere desborda da exclusiva apreciação de dados técnicos, os quais, embora devam transitar no raciocínio do julgador, compõem apenas uma das suas nuanças; eles devem ser conjugados com os demais valores que estruturam social e juridicamente a comunidade atendida, tudo envolto pela salutar razoa152 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 bilidade. Foi o que fez o erudito Desembargador Adão Sérgio Cassiano do Nascimento, do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, que, em caso similiar, apreciou o tema de modo profundo, enfatizando as várias facetas da questão até concluir que o Sistema Francês de Amortização, no modo que concebido por Richard Price, contempla cotação de juros sobre juros, contrastando, assim, com o expresso veto legal a tal prática. (art. 4º do Decreto nº 22.626/33) Destaco, do alentado voto do Desembargador gaúcho, excertos que bem justificam o posicionamento que ora avalizo, poupando a transcrição das enfadonhas expressões matemáticas e cálculos aplicáveis ao caso concreto que se apreciava, in verbis: “Na temática da Tabela Price seguir-se-á, ao longo da fundamentação deste voto, a linha do estudo feito pelo eminente autor JOSÉ JORGE MESCHIATTI NOGUEIRA, no seu livro Tabela Price - Da Prova Documental e Precisa Elucidação do seu Anatocismo, Ed. Servanda, Campinas, 2002. E assim se o faz porque o estudo empreendido pelo referido autor partiu da consulta aos originais do livro de Richard Price sob o título Observations on Reversionary Payments, edições de 1783 e 1803, onde o religioso inglês desenvolveu as suas geniais Tabelas de Juro Composto. Na verdade, o trabalho do inglês Richard Price, ministro presbiteriano, foi desenvolvido tendo em vista um sistema de pagamento para seguro de vida e aposentadorias, elaborado a pedido de sociedade seguradora, tendo Price construído tabelas que denominou de Tables of Compound Interest (Tabelas de Juro Composto). Sobre essa perspectiva histórica, da origem ou motivação do trabalho de Price, assim escreveu o autor citado (Mesquiatti Nogueira, José Jorge. Op. cit. pp. 37/38): ‘O livro Observations on Reversionary Payments, de autoria do Dr. Richard Price, demonstra, com as devidas explicações do próprio autor, a relação dos quatro Teoremas ali propostos, com a aplicação do juro composto (juro capitalizado, juro sobre juro ou ainda anatocismo) em seu sistema de pagamentos reversíveis e parcelados. É importante destacar que Price elaborou as suas tabelas de juro composto a pedido da Society for Equitable Assurance on Live (p. 174, vol. I, ed. 1803), com a finalidade de estabelecer um método de pagamento para seguro de vida e aposentadorias que acabou sendo usado por seguradoras do mundo todo até hoje. No caso do Brasil, sua maior utilização dá-se, até agora, na área de financiamentos de bens de consumo e do Sistema Financeiro da Habitação. O livro ora referenciado e que apresentamos neste trabalho esclarece definitivamente pelos escritos do próprio autor que suas Tabelas, ou seja, as Tabelas de Price, tais como ele as denominou (Tables of Compound Interest), são de Juro composto. Destaco que somente no Brasil essas tabelas são conhecidas como Tabela Price, referenciando seu autor porque, se fossem conhecidas como o próprio autor as denominou, invariavelmente isso implicaria a informação de que são balizadas na capitalização de juro ...’. (Os destaques são do original). R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 153 (...) Por meio das fórmulas matemáticas acima explicitadas, percebe-se a estratosférica diferença entre os cálculos e a oneração respectiva deles decorrente: adotando-se a fórmula dos juros simples o crescimento é apenas aritmético e, adotando-se a fórmula da Tabela Price, o crescimento se dá em progressão geométrica (juros capitalizados ou compostos, inerentes à fórmula da Tabela Price). Essa realidade é comprovada pela própria palavra do Reverendo Richard Price, retirada de sua obra original, demonstrando a existência congênita de capitalização ou juros compostos no Sistema Price. O eminente autor antes referido, JOSÉ JORGE MESCHIATTI NOGUEIRA (op. cit. p. 57), para comprovar essa indiscutível realidade, vale-se da palavra do religioso inglês, transcrevendo verbum ad verbum, a seguinte passagem do original da obra de Price, apresentando, a seguir, a respectiva tradução para o português: ‘One penny put out at our Saviour´s birth to five per cent. compound interest, would, inde present year 1781, have increased to a greater sum than would be contained in TWO HUNDRED MILLIONS of earths, al folid gold. But, if put out to simple interest, it would, inde fame time have amounted to more than SEVEN SHILLINGS AND SIX-PENCE.’ ‘Um centavo de libra emprestado na data de nascimento de nosso Salvador a um juro composto de cinco por cento teria, no presente ano de 1781, resultado em um montante maior do que o contido em DUZENTOS MILHÕES de Terras, todas de ouro maciço. Porém, caso ele tivesse sido emprestado a juros simples ele teria, no mesmo período, totalizado não mais do que SETE XELINS E SEIS CENTAVOS.’ (Os destaques são do original). A passagem, a despeito do exagero do Reverendo Price, dá a exata idéia da magnitude da diferença de se computar juros simples e juros capitalizados ou compostos, e demonstra, de forma definitiva, que ditas Tabelas são constituídas à base de juros capitalizados. Então, a primeira ilegalidade contida no cálculo pela Tabela Price é a do crescimento geométrico dos juros que configura anatocismo ou capitalização, que é legalmente proibida em nosso sistema, nos contratos de mútuo, estando excetuados da vedação apenas os títulos regulados por lei especial, nos termos da Súmula nº 93 do STJ. (...) Verifica-se que, se os juros forem simples, a amortização mensal da dívida é maior desde a primeira prestação - tanto que ao final, no demonstrativo acima, o saldo é positivo (credor, e não devedor) -, com o que se verifica que a Tabela Price importa cobrança de juros maiores, pois, do contrário a amortização da dívida seria maior, ou no mínimo idêntica à dos juros simples, e o abatimento (amortização) do saldo devedor em cada parcela seria maior e, em conseqüência, os juros da parcela seguinte seriam calculados sobre saldo menor e, por conseguinte, os juros seriam menores. Mas, na Tabela Price acontece o contrário. Então, como antes referido, na Tabela Price, percebe-se que somente a amortização é que se deduz do saldo devedor. Os juros jamais são abatidos, o que acarreta amortização 154 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 menor e pagamento de juros maiores em cada prestação, calculados e cobrados sobre saldo devedor maior em decorrência da função exponencial contida na Tabela, o que configura juros compostos ou capitalizados, de modo que o saldo devedor é simples e mera conta de diferença. Além disso, tratando-se, como antes visto, de progressão geométrica, quanto mais longo for o prazo do contrato, mais elevada será a taxa e maior será a quantidade de juros que o devedor pagará ao credor. Na Price o saldo devedor - como mera conta de diferença (e esse é, digamos assim, mais um dos ‘truques’ da Tabela) - é maior do que na incidência de juros simples, de modo que as sucessivas incidências de juros ocorrem sempre sobre um valor ou uma base maior do que no cálculo dos juros simples. E isso ocorre porque se trata de taxa sobre taxa, juros sobre juros, função exponencial, progressão geométrica, ou como se queira chamar: anatocismo, capitalização ou contagem de juros de juros. Observa-se, claramente, que é na prestação da Price que estão embutidos ou, melhor dizendo, disfarçados, os juros compostos e onde exatamente se visualiza o anatocismo ou incidência de juros sobre juros ou taxa sobre taxa ou progressão geométrica. E isso porque, repita-se, o saldo devedor, no sistema da Price, não é propriamente o saldo devedor real, mas uma simples conta de diferença. No segundo exemplo acima (Situação ‘D’), conclui-se que, no cálculo com juros simples, sem a capitalização provocada pela função exponencial da Price, o saldo é credor, em face de uma amortização maior, já que os dados da dívida pactuada são exatamente os mesmos. (...) Em linguagem mais simples e numa síntese conclusiva incidental, poder-se-ia dizer que a Tabela Price não dá qualquer importância ao saldo devedor (já que o considera apenas como conta de diferença), pois, v. g., numa prestação de R$ 1.000,00, não importa se os juros são de R$ 500,00 e a amortização da dívida de R$ 500,00; ou se os juros são de R$ 700,00 e a amortização de R$ 300,00; ou o inverso, se os juros são de R$ 300,00 e a amortização de R$ 700,00, pois não importa o saldo devedor, maior ou menor, pois é sempre conta de diferença. Mas, em tais circunstâncias, o que ocorre é que os juros são muito superiores aos simples ou lineares; os juros pagos em cada prestação sempre são superiores porque incidem sobre um saldo devedor maior já que a amortização foi menor em benefício dos juros; se o saldo devedor não fosse mera conta de diferença, se os juros na Price não fossem capitalizados e se a amortização fosse a real, o saldo a cada parcela seria menor e os juros - que seriam calculados em cada parcela sobre saldo menor - por simples lógica matemática, também seriam menores. Entretanto, como já referido anteriormente, na Price os juros são capitalizados porque são calculados taxa sobre taxa em razão da função exponencial já aludida, contida na fórmula. ( ...) É que, como dito, é próprio da Tabela Price que, na fórmula de cálculo, não se adicione juros ao saldo devedor porque o mutuário já paga mais juros em cada prestação em prejuízo da amortização, que é menor exatamente porque os juros cobrados são maiores, superiores aos contratados, daí o ‘truque’ de o saldo devedor funcionar como conta de diferença que ‘encobre’ a cobrança abusiva por taxas superiores às contratadas e com anatocismo. R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 155 E não se adicionam os juros ao saldo devedor exatamente porque a taxa já é capitalizada, isto é, taxa sobre taxa, progressão geométrica ou juros compostos, capitalização ou anatocismo - como se queira apelidar, pois tudo é uma única e mesma realidade - por isso que permite a cobrança de juros muito superiores às taxas que são ajustadas entre as partes e postas nos contratos. Na verdade quando se afirma que a Tabela Price não adiciona juros ao saldo não se está dizendo nenhuma novidade. Todavia, isso não é o mesmo que dizer que não há cobrança de juros capitalizados ou compostos. É mais do que evidente que, se o mutuário já paga mais em função dos juros compostos embutidos nas parcelas mensais, resulta óbvio que não pode haver o que adicionar ao saldo devedor porque o mutuário já pagou juros maiores, de modo que seria duplo abuso ou duplo anatocismo se o mutuário, além de já pagar juros sobre juros embutidos nas parcelas, tivesse ainda que ver adicionados juros ao saldo devedor, sobre o qual seria calculada a nova parcela mensal com juros calculados também sobre aqueles outros juros que teriam sido assim, antes, adicionados ao saldo devedor. Seria, portanto, o supra-sumo do abuso ou do anatocismo. Então, quando se afirma que a Tabela Price não adiciona juros ao saldo, na verdade está se dizendo, de forma não expressa, mas implícita, que o saldo devedor será mera conta de diferença, porque serão cobrados juros maiores, por taxa superior à contratada como antes demonstrado, em prejuízo da amortização do saldo devedor que, de outra forma, seria muito menor. Ora, cobrar juros maiores na prestação, em prejuízo da amortização do saldo devedor, o qual poderia ser menor se a amortização fosse maior, tem o mesmo resultado do ponto de vista da abusividade, que incluir no saldo devedor juros não cobrados na parcela, formando um novo saldo sobre o qual incidem novos juros. A conclusão é intuitiva: não capitaliza os juros no saldo devedor porque capitaliza na prestação, em função do cálculo de taxa sobre taxa, juros sobre juros, ou simplesmente, de maneira mais técnico-matemática: em virtude da função exponencial, que gera uma progressão geométrica, contida na fórmula da Tabela Price. (...) Para se demonstrar esta realidade e se chegar ao cálculo da prestação mensal com juros de capitalização anual - o que atende parcialmente ao pedido dos autores - impõe-se também a exposição passo a passo do raciocínio matemático, com comparação das situações, demonstrando-se o custo total do financiamento para o mutuário ao final do contrato - que representa o valor que o credor efetivamente vai receber - tendo em conta os pagamentos das parcelas ao longo do prazo. É que, quando se analisa o custo efetivo de um financiamento, na maioria das vezes, até mesmo os especialistas negligenciam na questão do tempo - que é fator fundamental - e na mobilidade do capital no tempo, quando aquele é devolvido em parcelas ao mutuante, em longo prazo, circunstância que também diminui o risco do credor, sendo que, em tais circunstâncias, a soma das parcelas de devolução ou a multiplicação do valor de cada uma delas pelo número de parcelas, não representa o custo do financiamento, isto é, o valor total que o credor irá receber até o final do prazo do contrato, constituído de restituição do capital (amortização) e de juros embutidos em cada uma das parcelas. Comentando o tema, o autor já referido, JOSÉ JORGE MESCHIATTI NOGUEIRA 156 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 (op. cit. pp. 185/188), em suas análises da Tabela Price, após afirmar que se deve evitar que os menos avisados possam ter o impulso catastrófico de pensar que a soma das parcelas ou a multiplicação do seu valor pelo prazo pode ser a expressão representativa do efetivo custo do financiamento, assim se expressa, verbis: ‘De início, até por economia de tempo, podemos afirmar que esta hipótese não passa de uma falácia indutiva, ou de uma falsa lógica, que pode ser comparada a uma miragem no deserto, sendo até normal para aqueles que possuem o perfil de analista condicionado aos botões da calculadora financeira e que, logicamente, desconhecem os segredos da função exponencial, utilizarem-se desta prática incorreta, o que, aliás, sequer a máquina, quando operada corretamente, produz o resultado desastrado desta expressão. Inicialmente, devemos ter em mente que o princípio do juro e da sua quantidade, recebida ou paga, é uma função do tempo, e, até aqui, sem segredos. Assim devemos buscar compreender que, dentro da relação temporal, o dinheiro assume o mesmo mecanismo da reprodução crescente da progressão geométrica, semelhante ao mecanismo do crescimento da população tão cansativamente estudado em Malthus, o qual, aliás, foi fortemente criticado por Aristóteles, e, séculos depois, exposto brilhantemente por Marx em sua obra O Capital. A explicação dada, de que no tempo o dinheiro a juro tem o mesmo mecanismo do crescimento populacional, é esclarecida pela possibilidade de que o detentor do ‘capital-dinheiro’ possa produzir seu ganho por várias reaplicações do mesmo capital, acrescentado de juro acumulado, principalmente quando retornado em parcelas com o juro já embutido nelas, como é o caso da Tabela Price. No caso em questão, não podemos dizer que a elaboração de um cálculo adequado, que culmine com a obtenção do resultado real do custo da operação, possa resumir-se a uma conta tão simplista de adição e multiplicação. Logicamente, a premissa simplista cede lugar para uma complexidade matemática mais ampla, quando o dinheiro é olhado com os ‘olhos de águia’ das finanças. Percebe-se nesta ótica o quanto é obrigatória a consciência de que a mobilidade, gerada pelo reembolso do pagamento parcelado, promove o retorno parcial do valor do capital investido, o qual, por conseguinte, é antecipado a cada período, em relação ao seu vencimento final, possibilitando assim o efeito de novos ganhos, ao longo do tempo em que durar o contrato, resultante desta permissibilidade natural de reaplicação. Como já chamamos a atenção no parágrafo anterior, a reaplicação de cada parcela recebida pelo credor lhe proporciona a percepção de novo juro. Quanto mais reaplicar os valores recebidos em parcelas, mais ganho ele vai ter. Quando analisamos do ponto de vista do devedor, que, por realizar o pagamento da dívida em forma de parcelas, ou seja, antecipadamente, a cada pagamento realizado antes da expiração do prazo final do contrato, seguramente sofre uma diminuição efetiva do seu poder de compra, facilmente detectada pela comparação dos resultados obtidos com uma operação realizada pelo sistema de pagamento do principal mais juro, unicamente no final do contrato. A este princípio denominamos de liquidez. Assim, analisando do ângulo da Teoria Econômica, quanto mais liquidez, menor a taxa: o devedor leva desvantagem, pois não existe um mecanismo compensatório deste efeito para ele, a não ser a alternativa de acreditar R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 157 que o credor está cobrando uma taxa menor pelo retorno mais rápido do seu capital. Além da questão da liquidez, o Sistema Price propicia, ainda, uma diminuição do risco para o credor que também nunca é compensada para o devedor, pois a partir do momento em que ele começa a pagar sua dívida, ela diminui, diminuindo, também, o risco de insolubilidade do pagamento. Assim, é de suma importância destacar que o custo do dinheiro no tempo, no caso do Sistema Price, representa exatamente uma operação financeira com retorno a juro composto, e que a conseqüência mais marcante de sua característica está exatamente na decorrência da metodologia de seu cálculo que, invariavelmente, implica o ‘efeito’ de produzir o ganho da reaplicação como se o próprio tomador fosse o reaplicado. Podemos constatar esse efeito quando apuramos a incidência do juro, retornado de maneira inversamente proporcional ao prazo transcorrido, sobre cada parcela de amortização que representa a fração de devolução do capital emprestado.’ (Os destaques são do autor; os grifos foram acrescentados). A Tabela Price representa para o credor, como anteriormente já referido, sucessivas reaplicações, que ocorrem sempre após o pagamento de cada parcela mensal com juros embutidos - lembre-se que cada parcela compõe-se de uma parte de amortização (devolução do capital) e de outra parte de juros - e sempre com cálculo de novos juros sobre o saldo devedor, o qual se constitui apenas em mera conta de diferença. Essas relevantes circunstâncias, além de diferenciar o Sistema Price daquele outro, de pagamento do capital mais juros compostos de uma única vez e somente no final do prazo, faz com que, quanto mais longo for o prazo do contrato com pagamento parcelado, maior será o ganho de juros que terá o credor, pois maior será o número de reaplicações que irá fazer ao longo do prazo, já que o saldo da dívida não importa, porque, como dito, é apenas conta de diferença. (...) Observa-se, portanto, que, definitivamente, a simples soma das prestações, ou o valor da prestação simplesmente multiplicado pelo número de parcelas, jamais representará o custo total do financiamento, isto é, jamais representará o valor que o credor irá receber ao final do contrato, de forma parcelada ao longo do prazo do pacto. Pelas mesmas razões é que a operação inversa, isto é, a simples dedução do valor de cada prestação do saldo da dívida (custo total do financiamento) não pode jamais chegar em zero, já que cada parcela, como já referido, é composta de parte de amortização (restituição do capital) e parte de juros incidentes sobre o saldo devedor, o qual, como anteriormente referido, após o pagamento de cada parcela, representa ou é como se constituísse nova aplicação ou reaplicação de um novo capital, sendo ainda esse saldo mera conta de diferença. Esse efeito matemático só pode ser percebido - como antes visto, na citação transcrita, de José Jorge Meschiatti Nogueira, op. cit., p. 188 - quando apurada a incidência do juro retornado de maneira inversamente proporcional ao prazo transcorrido, sobre cada parcela que representa a fração de devolução do capital emprestado, como demonstra a tabela exposta no item c.2.2, acima. A citada tabela (item c.2.2) explicita o efeito de retorno dos juros. Sobre esse efeito, 158 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 assim se pronunciou o autor acima citado (op. cit. p. 189) em sua análise da obra de Price: ‘Foi esse efeito de retorno que Richard Price considerou ao elaborar suas tabelas, e, tanto o é, que ele denominou seu trabalho de observações sobre pagamentos reversíveis.’ (O destaque é do original). O mesmo autor referido (op. cit. pp. 189/190), a partir de tabelas que construiu em sua obra, esclarece que: ‘Existe, ainda, uma outra forma de visualizarmos esta relação tempo/custo de uma maneira um pouco menos complexa: construindo um quadro de participação percentual das parcelas em relação à dívida, podemos constatar que as parcelas nunca diminuem, mesmo havendo o decréscimo do saldo devedor. Pelo simples fato de existir a constância das parcelas e a diminuição da dívida a cada pagamento, nesse sistema, a relação parcela versus saldo devedor se torna crescente a cada período, o que significa que a parcela, na verdade, aumenta de forma dissimulada, a cada período.’ E conclui o escritor (p. 223): ‘... da primeira parcela cobrada até a última, a prestação permanece inalterada e o saldo devedor nunca deduz o juro que foi pago, assim sendo não precisaríamos ir mais longe na conclusão do anatocismo, uma vez que, para cada parcela paga, para apurarmos o saldo devedor, deve-se deduzir do total pago somente uma parte que é a amortização, por isso é que dizemos que as parcelas rendem em juro de juro visto que estas nunca decrescem, mesmo o saldo devedor estando menor a cada período, cuja demonstração já vimos anteriormente.’ Não se pode ainda esquecer, como acentua o ilustre autor aqui tantas vezes citado (op. cit., p. 221), e como já anteriormente referido, que ‘... a idéia de Price era demonstrar seu sistema de forma a provar que as suas parcelas surtem o mesmo efeito de um capital com juro agregado que rende novo juro, ou seja, juro de juro, também denominado de anatocismo, porém que fosse pago em frações e ainda destinado como finalidade de seguro de vida.’ Portanto, não há dúvida de que o Sistema Price foi construído para possibilitar que o detentor do capital recebesse parceladamente, ao longo de determinado prazo, o mesmo valor, com juros capitalizados, que receberia de uma única vez no final do prazo. Meschiatti Nogueira, em seu minucioso estudo sobre a obra original de Price, por este mesmo denominada de Observations on Reversionary Payments, definitivamente não deixa dúvida sobre essa questão da equivalência entre o credor receber o capital e juros capitalizados em parcelas ao longo do prazo e receber o mesmo valor de uma única vez no final do prazo (op. cit. p. 29): ‘É nessa obra que Price expõe seu conceito e método, utilizado no sistema de pagamentos periódicos com direito à remuneração em benefícios, ou seja, para se calcular o valor de uma série uniforme de pagamentos consecutivos e durante um certo tempo, para se receber uma remuneração futura pelo pagamento de rendas certas, em aposentadorias e seguros. Confecciona também a fórmula que produz a recuperação do capital, a ‘juro composto’, que é a mesma coisa que ‘juro sobre juro’ pelo sistema de pagamentos parcelados, pela qual se pode comparar e notar que o prestamista detentor do capital terá recebido no final, pelo sistema de pagamento parcelado, o mesmo valor que seria capitalizado, na aplicação de um capital do mesmo valor, a ‘juro composto’ (juro sobre juro), que neste caso e ao final produzirá os mesmos efeitos, com os mesmos resultados.’ (Os destaques são do original; os grifos foram acrescentados). R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 159 (...) Assim, têm razão, pois, os autores de verem calculadas as prestações de seu débito sem a aplicação da Tabela Price e pelo método de cálculo dos juros simples.” (AC nº 70002065662, julgamento em 23.10.2002) A organização do fluxo de pagamento constante, nos moldes do Sistema Francês de Amortização, então, concebe a cotação de juros compostos, o que é vedado legalmente, merecendo ser reprimida, ainda que expressamente avençado, uma vez que constituiu convenção abusiva. Destaque-se, contudo, tolerável a capitalização anual dos juros, a teor do art. 4º do Decreto 22.626/33 (É proibido contar juros dos juros: esta proibição não compreende a acumulação de juros vencidos aos saldos líquidos em conta corrente de ano a ano). Em arremate, abalizadas opiniões têm, de modo cauteloso, vetado, em casos que tais, a aplicação do método de cálculo dos juros simples, porquanto desfiguraria o sistema de amortização pela fórmula Price, expressamente eleito no contrato, embora as compreenda, ajuízo que não se pode emprestar validade a cláusulas contratuais injurídicas, havendo, neste caso, justa reserva ao pacta sunt servanda. Por outro lado, se problemas técnico-operacionais existem na adoção dos critérios legais, não me parece que o Direito deva se submeter às regras da matemática financeira, parcela da ciência elaborada pelo homem, que deve auxiliar a realização da justiça, não impedi-la. Da teoria da imprevisão A chamada teoria da imprevisão pede uma leitura, a meu sentir, diversa daquela constante em diversos arestos, em interpretação que ora se fortalece a ponto de institucionalizar-se com o advento do Novo Código Civil. Celso Marini (Novo Código Civil - Algumas Considerações Importantes sobre Contratos - Boletim Eletrônico IRIB/ANOREG-SP nº 643 -www.irib.org.br/opiniao/boletimel643c.asp) preleciona, verbis: “A função social do contrato no novo Código Civil é socializante. O artigo 421 expressa claramente essa idéia. O contrato tem função social. A função social do contrato, prevista no artigo em referência, constitui cláusula geral, a impor a revisão do princípio da relatividade dos efeitos do contrato em relação a terceiros, implicando a tutela externa do crédito. Constitui cláusula geral, que reforça o princípio da conservação do contrato, assegurando trocas úteis e justas. E não elimina o princípio da autonomia contratual, mas atenua ou reduz o alcance desse princípio quando presentes interesses metaindividuais ou interesse individual relativo à dignidade da 160 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 pessoa humana. ... Outra previsão importante do novo Código Civil é a tendente à relativização do princípio pacta sunt servanda (locução latina que significa a obrigatoriedade do cumprimento das cláusulas contratuais), uma vez que através dos artigos 478 e ss., esse princípio não é mais absoluto, podendo ser o contrato revisado em busca do equilíbrio contratual entre as partes (teoria da imprevisão). É importante anotar ainda que o contrato com o vício de lesão, não sendo revisado é passível de ser anulado. Por vício de lesão entendemos, objetivamente o desequilíbrio contratual resultante de situações sócio-econômicas imprevisíveis no momento da celebração do contrato e subjetivamente o dolo de aproveitamento que se constitui em manifesta vantagem excessiva de uma das partes em relação à outra.” Quero deixar aqui bem claro que não pretendo aplicável o Novo Código Civil a fatos anteriores à sua vigência. A citação acima guarda como escopo demonstrar uma tendência na evolução do Direito Civil, que consiste em temperar o pacta sunt servanda, impedindo que o contrato se torne fonte de pesadelo para o contratante que se haja surpreendido com um novo estado de coisas. Asseverar-se ausência de um fato novo que se possa erigir em álea imprevista parece-me, permissa venia, simplista. É claro que o retorno da inflação é um fato previsível. O fato absolutamente alheio ao comando do contratante não dotado de poderes divinatórios é que o retorno da hidra ocorra sem o correspondente reajuste salarial. A boa-fé do contratante albergou a idéia de que, advinda a inflação, os ganhos seriam compensados proporcionalmente. Seria excesso de otimismo? Ou seria exacerbado pessimismo imaginar que o valor da prestação não conseguisse abater absolutamente nada no saldo devedor, a ponto de perenizar-se o contrato de um tal modo que, com o passar do tempo, ficasse o infeliz adquirente do imóvel devendo vinte vezes mais do que o imóvel que pretendeu estar comprando? Evidentemente, o contrato sub examine está em crise. Isto é o que importa para a teoria da imprevisão. Perguntar-se-á, aqui: se o mutuário pudesse prever que a inflação superasse a tal ponto os reajustes salariais, teria feito o negócio? É possível em direito manter uma equação contratual distorcida a ponto de que uma das partes não apenas confisque o imóvel adquirido, mas até mesmo extrapole o valor deste, a ponto de perder o bem e ainda ficar devendo. 161 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 Dir-se-á, em contrapartida, que um contrato traz em si mesmo risco de lucro ou de prejuízo. É certo. Mas, a partir de um momento em que a patologia atinge a avença em tão elevado grau, passa a existir o dolo do aproveitamento. Terá a parte beneficiada direito de reduzir a outra à extrema miséria brandindo o instrumento do contrato? Ora, ninguém pode interpretar contrato do Sistema Financeiro de Habitação sem tomar em conta sua natureza marcadamente social. Tratássemos de um empréstimo comum e não haveria necessidade de intervenção estatal no sentido de criar um plano cujo confessado escopo é permitir aos menos favorecidos a aquisição da casa própria. Lê-se aqui, mesmo, a aquisição da casa própria; não, a eternização de verdadeiros alugueres que, mesmo adimplidos religiosamente, mascaram uma dívida que gradativamente mina o contrato, fazendo com que quem cumpriu todas as prestações ainda deva muito mais do que o valor do bem adquirido. Na gênese da relação contratual, o mutuário comprometeu determinado percentual de sua renda. Com tal parcela empenhada, pretendeu que pagaria a prestação da casa. Foi-lhe garantido que a prestação não subiria mais do que seu salário. Ora, evidentemente, a manutenção dessa proporcionalidade até o fim da avença quitaria o imóvel. Ou tudo não passaria de uma armadilha, previsível desde então a absoluta impossibilidade da quitação. Se não ocorreu álea alguma inviabilizando o contrato, se tudo ocorreu dentro de absoluta previsibilidade, é de dessumir que a modalidade de avença era verdadeira armadilha, maquiavelicamente imaginada com o intuito de ser simulacro de venda com posterior retomada em leilão judicial? Parece-me que a solução está, sim, na cláusula rebus sic stantibus que sempre entendi ínsita a qualquer contrato; e não vejo razão qualquer para excluir o mútuo quando irrecusavelmente vinculado à compra e venda, como é o caso do Sistema Financeiro de Habitação. Anísio José de Oliveira (A Teoria da Imprevisão nos Contratos, Leud, 2ª Edição, p. 139) registra em seu magistério: “O que informa a existência do contrato e sua execução é, sem dúvida, uma utilidade comum. Ele será útil a ambas as partes. O aparecimento de um estado de fato, imprevisto e inerente do tempo, influenciando sobre o vínculo contratual diretamente, causará inexoravelmente o desequilíbrio das prestações, fazendo a de um deles mais onerosa e desigual perante a outra. Desde que haja o desequilíbrio das prestações pode haver a resolução do contrato e a 162 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 liberação do devedor. Para julgamento da desproporção das prestações seria necessária uma medida oficial do seu valor. Com estes dois autores tem início a descrição pormenorizada das teorias com base na prestação, isto é, explica-se a cláusula rebus pela equipolência das prestações. Deve-se notar que esta idéia tem por base a figura do notável filósofo cristão Santo Tomás de Aquino, que defendia, entre outras coisas, a reciprocidade de igualdade dentro da sua tese sobejamente conhecida ‘Justiça Comutativa’. Justificava Giorgi que quando houver certo desequilíbrio na execução do contrato, se poderia alegar a cláusula rebus sic stantibus. Nos ajustes, continua ele, há e deve haver um determinado equilíbrio das prestações; deve existir uma justa proporção entre as partes. Logo, o desaparecimento dessa situação, o rompimento da igualdade natural, e pré-ordenada dos contratantes irá exigir da eqüidade e da justiça a sua intervenção, a fim de restabelecer a situação anterior, para fazer cessar a desigualdade ou a desproporcionalidade. Acentua enfaticamente Giorgi, in verbis: ‘Razões de eqüidade e justiça distributiva exigem que a lei obrigue o magistrado a restabelecer o equilíbrio legal, cortando todas as desigualdades entre as partes e estabeleça aquela utilidade comum que deu origem à celebração e execução do contrato’.” Concluindo, entendo aplicável à espécie a teoria da imprevisão, no sentido de ser possível a intervenção no contrato, afastando-se o pacta sunt servanda para manter o equilíbrio inicial e a própria viabilidade do contrato no atingimento de suas finalidades. Do seguro habitacional A imposição da contratação de seguro nos contratos habitacionais firmados no âmbito do Sistema Financeiro da Habitação foi instituída pela Lei 4.380/64 (art. 14), constando, ainda, no art. 2º da Lei 8.692/93. O valor e as condições do seguro habitacional são previstos no contrato, de acordo com as normas editadas pela Superintendência de Seguros Privados - SUSEP, órgão responsável pela fixação das condições gerais e limites das taxas de seguro após a extinção do BNH e a delegação de tal incumbência pelo Conselho Monetário Nacional. Assim, o valor do seguro não se encontra atrelado ao valor de mercado, decorrendo os reajustes do prêmio das instruções e circulares expedidas pela SUSEP. Neste sentido, colaciono jurisprudência desta Corte: “SISTEMA FINANCEIRO DA HABITAÇÃO. CESSÃO DE IMÓVEL FINANCIADO. CONTRATO DE GAVETA. LEGITIMIDADE ATIVA DO CESSIONÁRIO. ILEGITIMIDADE PASSIVA DO BACEN, DA UNIÃO FEDERAL, E DA SASSE CIA DE SEGUROS. PES/CP. CES. URV. TABELA PRICE. AMORTIZAÇÃO. ANATOCISMO. LIMITE DOS JUROS. TR. TAXA DE SEGURO. REPETIÇÃO DE INDÉBITO. R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 163 1. (...) 2. (...) 3. (...) 4. (...) 5. (...) 6. Em sendo o fundamento jurídico do pedido relacionado ao seguro, o excesso de poder praticado pela CEF ao contratar determinada seguradora, como mandatária do mutuário, não há que se falar em litisconsórcio passivo necessário da SASSE. 7. (...) 8. (...) 9. (...) 10. (...) 11. (...) 12. (...) 13. (...) 14. A taxa de seguro nos contratos do SFH sempre teve fonte legal expressa, independente dos valores de mercado. A revisão dos valores cobrados a este título depende de prova minuciosa do excesso com base estrita nos dispositivos regulamentares. (grifo nosso) 15. (...) 16. Apelo provido, para afastar a ilegitimidade passiva. No mérito, julgar parcialmente procedente o pedido.” (AC 200104010706529/PR, Quarta Turma, Relator(a) Juiz João Pedro Gebran Neto, DJU data: 23.10.2002, página: 731) No entanto, estando a taxa do seguro abrangida no encargo mensal e tendo ficado expressamente acordado no contrato sua regência segundo o Plano de Equivalência Salarial, devem ser respeitadas as determinações da SUSEP no reajuste do referido prêmio, mas limitadas à variação do salário do mutuário. Da limitação da taxa de juros A taxa de juros efetiva aplicada pelo agente financeiro - 11,02% - está realmente acima do limite legal imposto pela lei que regia o Sistema Financeiro de Habitação em janeiro de 1990, época em que foi firmado o contrato de mútuo habitacional em debate. Até a publicação da Lei 8.692/93, que, em seu art. 25, elevou o limite máximo da taxa efetiva de juros anual para 12% (doze por cento), vigorou a disposição do art. 6º, alínea e, da Lei 4.380/64, a qual determinava que a taxa efetiva de juros convencionada deveria ficar limitada à razão de 10% (dez por cento) ao ano. Outrossim, não procede o argumento no sentido de que, tendo o De164 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 creto-Lei nº 19/66 revogado o art. 5º da Lei 4.380/64, sem efeito ficou o art. 6º, e, do mesmo texto legal. Transcrevo, por pertinente, as referidas normas legais: “Art. 5º Observado o disposto na presente lei, os contratos de vendas ou construção de habitações para pagamento a prazo ou de empréstimos para aquisição ou construção de habitações poderão prever o reajustamento das prestações mensais de amortização e juros, com a conseqüente correção do valor monetário da dívida toda a vez que o salário mínimo legal for alterado. § 1° O reajustamento será baseado em índice geral de preços mensalmente apurado ou adotado pelo Conselho Nacional de Economia que reflita adequadamente as variações no poder aquisitivo da moeda nacional. (...) Art. 6° O disposto no artigo anterior somente se aplicará aos contratos de venda, promessa de venda, cessão ou promessa de cessão, ou empréstimo que satisfaçam às seguintes condições: a) tenham por objeto imóveis construídos, em construção, ou cuja construção, seja simultaneamente contratada, cuja área total de construção, entendida como a que inclua paredes e quotas-partes comuns, quando se tratar de apartamento, de habitação coletiva ou vila, não ultrapasse 100 (cem) metros quadrados; b) o valor da transação não ultrapasse 200 (duzentas) vezes o maior salário-mínimo vigente no país; c) ao menos parte do financiamento, ou do preço a ser pago, seja amortizado em prestações mensais sucessivas, de igual valor, antes do reajustamento, que incluam amortizações e juros; d) além das prestações mensais referidas na alínea anterior, quando convencionadas prestações intermediárias, fica vedado o reajustamento das mesmas, e do saldo devedor a elas correspondente; e) os juros convencionais não excedem de 10% ao ano; f) se assegure ao devedor, comprador, promitente comprador, cessionário ou promitente cessionário o direito a liquidar antecipadamente a dívida em forma obrigatoriamente prevista no contrato, a qual poderá prever a correção monetária do saldo devedor, de acordo com os índices previstos no § 1° do artigo anterior. (...)” Como se pode ver, ao mencionar o art. 5º no caput do art. 6º da Lei nº 4.380/64, o legislador quis apenas esclarecer que tipo de contrato poderia ser considerado como vinculado ao SFH. A posterior mudança nas regras de atualização monetária provocada pelo Decreto-Lei nº 19/66 não revogou a disposição relativa aos juros, não só por inexistir qualquer correlação entre as normas efetivamente revogadas e aquela do art. 6º, mas, também, por não ter sobrevindo, até a edição da Lei 8.692/93, R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 165 qualquer outra normatização acerca da limitação da taxa de juros. Assinale-se, ao final, que, embora a taxa de juros efetiva anual referida no contrato tenha sido inferior ao limite constitucionalmente previsto, ainda assim mostra-se ilegal sua imposição, pois extrapolou o teto de 10% (dez por cento) ao ano previsto na Lei 4.380/64, diploma especial aplicável no caso concreto. A propósito da limitação da taxa de juros a 10% (dez por cento) nos contratos firmados sob a égide da Lei 4.380/64, colaciono jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça: “CIVIL. CONTRATO DE COMPRA E VENDA DE IMÓVEL. SISTEMA FINANCEIRO DE HABITAÇÃO (SFH). AMORTIZAÇÃO. JUROS. COBRANÇA ACIMA DO TETO LEGAL (ART. 6º, E, DA LEI 4.380/64). REDUÇÃO. CABIMENTO. Se o contrato de compra e venda do imóvel financiado pelo SFH foi assinado sob a vigência da Lei 4.380/64, segundo a qual os juros convencionais para empréstimos na aquisição de habitação não poderia exceder de 10% (dez por cento) ao ano (art. 6º, letra e), hão de ser reduzidas as taxas de juros cobradas acima deste teto (10%). Recurso improvido.” (REsp 410197/SC; Recurso Especial 2002/0014780-0 Fonte DJ data:18.11.2002 p:00162 Relator Min. Garcia Vieira) Tenho eu, pois, que a taxa de juros efetiva do presente contrato, assinado sob a vigência da Lei nº 4.380/64, deve ficar limitada à razão de 10% (dez por cento). Da inclusão em cadastros restritivos ao crédito Tenho eu por descabida a inclusão do nome do mutuário em cadastros de devedores enquanto o contrato está sendo discutido judicialmente. Tal medida objetiva resguardar o mutuário dos nefastos efeitos da inclusão, que se traduzem notadamente no abalo da imagem e do crédito, haja vista que são eles fonte de consulta de instituições financeiras, bancárias e comerciais. O risco de prejuízo é de tal monta que, per si, já seria suficiente para evitar a inclusão em banco de dados de inadimplentes. Afastar, pois, a negativação na espécie constitui providência indispensável ao exercício pleno do direito de o mutuário discutir judicialmente o contrato de mútuo habitacional. Neste sentido, a jurisprudência abaixo colacionada: “ADMINISTRATIVO. PROCESSO CIVIL. CAUTELAR. REQUISITOS. RESTRIÇÃO DE CRÉDITO (SERASA) . MÚTUO HIPOTECÁRIO. AÇÃO REVISIONAL. PES / CP-40. 1. Pendendo de julgamento ação revisional do contrato de mútuo hipotecário, 166 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 que pode diminuir ou quitar a dívida, impõe-se a concessão da tutela cautelar, para que reste inibido o protesto e a inclusão do nome do contratante no cadastro de maus pagadores (SERASA). 2. Caracterizados o perigo de dano irreparável e a fumaça do bom direito. Aquele, face ao iminente abalo de crédito; esta, à luz dos precedentes do STJ que reconhecem a aplicabilidade do PES/CP e da SÚM-39 desta Corte. 3. Restrição de crédito que se evita enquanto pende discussão judicial acerca do quantum debeatur.”. (MC 97.04.53884-7/RS, Quarta Turma, Relator Juiz Paulo Afonso Brum Vaz, DJ DATA:29.07.98, página: 487) “PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. EXECUÇÃO EXTRAJUDICIAL (SL Nº 70/66). INSCRIÇÃO EM CADASTROS RESTRITIVOS DE CRÉDITO - IMPOSSIBILIDADE. SUSPENSÃO OU ÓBICE À INSTAURAÇÃO. APLICAÇÃO DA TR - INAPLICABILIDADE COMO ÍNDICE ANTERIOR À LEI Nº 8.177/91. 1. Na pendência de ação judicial questionando o quantum debeatur derivado de contrato de mútuo financeiro para aquisição de casa própria (SFH), relação obrigacional informada em direito de caráter social, não cabe a inscrição do nome do mutuário no cadastro de inadimplentes. 2. Suspende-se cautelarmente a execução extrajudicial embasada no Decreto-Lei nº 70/66, ou obsta-se a sua instauração, conquanto não se lhe negue a constitucionalidade, quando o mutuário do SFH promove medida judicial ao propósito da revisão dos reajustes contratuais de valores, para o atendimento eficaz a garantia fundamental (CF, art. 5º, XXXV), eis que naquele procedimento não é dado ao devedor promover a defesa de direito que entender sustentar, senão, apenas, proceder à purgação da mora ou quitar o débito pelos valores reclamados. Vencido o Relator. 3. A incidência da taxa referencial sobre os contratos de mútuo habitacional celebrados antes da publicação da Lei nº 8.177/91 é inviável, haja vista que a mesma não constitui índice de correção monetária, mas sim de remuneração de capital, portanto, indiferente às variantes do custo de vida.” (AG 2001.04.01.067018-3/RS, Quarta Turma, Relator p/Acórdão Juiz Amaury Chaves de Athayde, Relator Juiz Valdemar Capeletti, DJU Data:26.06.2002 página: 614) Do reajuste do encargo mensal - PES/CP - autônomos e assemelhados O contrato firmado entre as partes, e classificado como de adesão, deixou insofismavelmente expressa sua regência segundo o Plano de Equivalência Salarial. Tendo sido avençado no contrato expressamente o Plano de Equivalência Salarial - Categoria Profissional (PES-CP), o reajuste dos encargos mensais de contratos de mútuo vinculados ao Sistema Financeiro de Habitação deve ficar limitado aos índices de aumento dos salários da categoria profissional do mutuário. Tal entendimento vem corroborado pelo enunciado da Súmula nº 39 deste Regional, verbis: “Aplica-se o 167 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 índice da variação do salário da categoria profissional do mutuário para o cálculo do reajuste dos contratos de mútuo habitacional com a cláusula PES, vinculados ao SFH.” No presente caso, a autora está vinculada à categoria “Trabalhador sem Vínculo Empregatício” (fl. 105). Às categorias que não são assalariadas, restou pacificado o entendimento desta Corte no sentido de que deve prevalecer a variação do salário mínimo para o reajuste dos encargos mensais do empréstimo. Vejamos: “CIVIL. PROCESSO CIVIL. AÇÃO ORDINÁRIA. SFH. CONTRATO DE MÚTUO HABITACIONAL. CLÁUSULA PES. REAJUSTE DE PRESTAÇÕES. Exsurge a legitimidade passiva da Caixa Econômica Federal, pois integra a lide na condição de sucessora do BNH. Os autores, como notório, tiveram que comprovar renda bastante para assumir os encargos do empréstimo imobiliário que pleitearam, mas de maneira a não comprometer também o orçamento familiar. Neste ponto é que reside a vinculação dos reajustes com os de seus salários, respeitadas as demais cláusulas contratuais. Em havendo opção pela cláusula PES, os reajustes das prestações do financiamento habitacional devem se dar pelas UPCs, limitados, porém, aos índices dos aumentos salariais concedidos aos autores. Como não pertencem a categoria profissional específica, deve ser tomado como parâmetro para o reajuste das prestações do mútuo habitacional os fatores de aumento do salário mínimo, por esse o entendimento da Corte, em respeito ao princípio do Pacta Sunt Servanda. Apelos improvidos. Sentença mantida.” (AC nº 94.04.44076-0/RS, Quarta Turma, Rel. Des. Federal Dirceu de Almeida Soares, DJU 17.03.99, p. 667) “ADMINISTRATIVO. SFH. PRINCIPAL: CRITÉRIO DE REAJUSTE DAS PRESTAÇÕES. MUTUÁRIO AUTÔNOMO. VARIAÇÃO DO SALÁRIO MÍNIMO. DEMAIS PEDIDOS IMPROCEDENTES POR FALTA DE PROVAS. CAUTELAR: ADAPTAÇÃO DO VALOR DA EXECUÇÃO EXTRAJUDICIAL PARA FINS DE PURGAÇÃO DA MORA. Tratando-se de mutuário autônomo, é cediça a orientação jurisprudencial desta Corte, no sentido de admitir a variação do salário mínimo como limite máximo para reajuste das prestações. Os autores não comprovaram as demais lesões de direito alegadas. Na lide cautelar, há que se adaptar o valor da execução extrajudicial, oportunizando-se aos mutuários purgarem a mora.” (AC nº 2000.04.01.091757-3/RS, Terceira Turma, Rel. Des. Federal Paulo Afonso Brum Vaz, DJU 27.06.2001) Assinalo que tal entendimento está em consonância com o art. 7º, inc. IV, da Constituição Federal, que veda a vinculação do salário mínimo para qualquer fim, uma vez que o mesmo é aplicado como limitador para o reajuste contratualmente previsto, de modo a garantir a manutenção do comprometimento de renda inicialmente pactuado. 168 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 Da repetição do indébito em dobro (art. 42, parágrafo único, do CDC) O art. 23 da Lei 8.004/90 prevê expressamente a possibilidade de restituição dos valores eventualmente pagos a maior pelo mutuário, nos seguintes termos: “Art. 23. As importâncias eventualmente cobradas a mais dos mutuários deverão ser ressarcidas devidamente corrigidas pelos índices de atualização dos depósitos de poupança, em espécie ou através de redução nas prestações vincendas imediatamente subseqüentes.” A r. sentença entendeu aplicável à espécie a disposição do art. 42, parágrafo único, do CDC, que estabelece, verbis: “Art. 42. Na cobrança de débitos o consumidor inadimplente não será exposto a ridículo, nem será submetido a qualquer tipo de constrangimento ou ameaça. Parágrafo único. O consumidor cobrado em quantia indevida tem direito à repetição do indébito, por valor igual ao dobro do que pagou em excesso, acrescido de correção monetária e juros legais, salvo hipótese de engano justificável.” Merece reforma o decisum, no ponto. Entende-se aplicável a repetição em dobro tão-somente naquelas hipóteses em que há prova de que o credor agiu com má-fé. Não havendo comprovação do comportamento malicioso do credor, no sentido de ter agido de forma consciente, ou seja, sabendo que não tem o direito pretendido, não há como se exigir a repetição em dobro. Embora a regra do art. 42, parágrafo único, do CDC, seja diversa daquela do art. 1.531 do antigo Código Civil, entende-se que o requisito da má-fé está igualmente presente no dispositivo do Estatuto Consumerista. A propósito colaciono jurisprudência desta Corte: “SFH. PRELIMINAR DE COISA JULGADA. SEGURO. LIQUIDAÇÃO ANTECIPADA. LEI Nº 10.150/00. FALTA DE COMPROVAÇÃO DO PREENCHIMENTO DOS REQUISITOS LEGAIS. CDC. CES. LEGALIDADE. CRITÉRIO DE REAJUSTE DO SALDO DEVEDOR. TABELA PRICE. TAXA DE MANUTENÇÃO DE CRÉDITO. - Rejeita-se a preliminar de coisa julgada ante a falta de identidade de pedidos. - Inexiste interesse de agir contra parte da sentença que acolheu pretensão versada no apelo. Recurso não conhecido em relação às taxas de seguro. - A declaração de quitação antecipada da dívida, mediante a concessão de descontos previstos pela Lei nº 10.150/00, imprescinde de comprovação do preenchimento dos requisitos legais pertinentes, razão pela qual improcede o respectivo pedido. - Conquanto se admita a incidência do CDC a contratos do SFH, indemonstrada a má-fé do agente financeiro, não há falar em restituição em dobro do indébito. (grifo R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 169 nosso) - É legal a cobrança do coeficiente de equiparação salarial - CES no cálculo do encargo mensal, mesmo antes do advento da Lei nº 8.692/93. - Na ausência de previsão contratual expressa, o reajustamento do saldo devedor deve pautar-se pelo critério estabelecido na legislação do SFH vigente à data da contratação, não se destinando a esta finalidade o PES. - O mecanismo de amortização da Tabela Price não implica, necessariamente, capitalização de juros. Entretanto, verificada esta prática nos meses em que houve amortização negativa, impõe-se a revisão do contrato de modo a afastá-la. - É devida a cobrança da taxa de manutenção de crédito e administração legal e contratualmente estipulada.” (AC 2001.71.00.011425-7/RS, Quarta Turma, Relator p/Acórdão Juiz Valdemar Capeletti, Relator Juiz Edgard Lippmann, DJU data:18.12.2002, página: 887) Não podendo ser identificados, no caso presente, a má-fé ou o dolo, ou, ainda, a culpa do agente financeiro, deve ser afastado o direito à repetição em dobro. Por todo o exposto, voto no sentido de dar parcial provimento ao apelo da CEF para afastar a repetição do indébito em dobro, permanecendo o direito à repetição, e dar parcial provimento ao apelo da autora para determinar a revisão do contrato com: a) a exclusão do Coeficiente de Equiparação Salarial - CES; b) o afastamento da TR como índice de atualização do saldo devedor, substituindo-a pelo INPC; c) o afastamento do IPC como índice de correção referente ao mês de março/90, substituindo-o pelo BTNF; d) o reajuste da taxa de seguro com base nas determinações da SUSEP, limitado à variação salarial da autora (salário mínimo); e) a limitação da taxa de juros a 10% ao ano. Ante a sucumbência mínima da autora, condeno a CEF ao pagamento de honorários advocatícios fixados em 10% sobre o valor da condenação e das custas processuais. É o voto. 170 APELAÇÃO CÍVEL Nº 2001.71.00.029955-5/RS R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 Relator: O Exmo. Sr. Des. Federal Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz Relator p/Acórdão: O Exmo. Sr. Juiz Federal José Paulo Baltazar Junior Apelante: Roberto Zanette Advogados: Drs. Cesar Pereira Lima Lopes e outro Apelada: União Federal Advogado: Dr. Luís Henrique Martins dos Anjos EMENTA Administrativo. Servidor público federal. Exoneração. Art. 54 da Lei nº 9.784/99. Decadência. Transcorridos mais de cinco anos do trânsito em julgado da decisão que não reconheceu o direito do servidor de ser investido no cargo de Contador Classe A, referência NS5, TRT 4ª Região, a administração decai do direito de proceder à exoneração. O art. 54 da Lei nº 9.784/99 não faz distinção entre atos nulos e anuláveis, a não ser no caso de má-fé, sendo que ambas as hipóteses admitem convalidação pelo decurso do tempo. Inaplicável, quanto aos juros moratórios, o art. 1º-F da Lei 9.494/97, incluído pela Medida Provisória 2.180-35, de 24.08.2001, segundo jurisprudência pacífica do E. STJ, em relação a ações em curso quando de sua edição, pelo fato desta norma possuir natureza material, com reflexos na esfera jurídica das partes. Apelação provida. ACÓRDÃO Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide a Egrégia Terceira Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por maioria, dar provimento à apelação, vencido o Desembargador Federal Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz, nos termos do relatório, voto e notas taquigráficas que ficam fazendo parte integrante do presente julgado. Porto Alegre, 30 de setembro de 2003. Juiz Federal José Paulo Baltazar Junior, Relator p/Acórdão. R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 171 RELATÓRIO O Exmo. Sr. Des. Federal Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz: A r. sentença recorrida, a fls. 340/1, bem esclarece a controvérsia, verbis: “Roberto Zanette ajuíza a presente ação contra a União, objetivando o reconhecimento do direito de permanecer no cargo no Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região em vista da decadência do direito da União de demiti-lo e, em antecipação de tutela, seja determinada a suspensão dos efeitos do ato de exoneração. Narra que em 1983 ajuizou medida cautelar contra a União, requerendo o reconhecimento do direito de ser investido no cargo de Contador Classe ‘A’, referência NS5, Código TRT 4ª Região. A medida liminar foi deferida e o autor empossado no cargo. A sentença julgou improcedente a ação e cassou a liminar concedida. A apelação foi improvida, sendo que o trânsito em julgado ocorreu em 15.06.94. A sucumbência foi executada pela União e os autos foram baixados em 05.03.95. Em 12.06.01, a União requereu o desarquivamento do feito para análise, de modo que foi expedida a Portaria nº 2.333, de 06 de julho de 2001, declarando a vacância do cargo de Analista Judiciário, Área Administrativa, Especialidade Contabilidade, Classe ‘C’, Padrão 35, ocupado por Roberto Zanette. Na oportunidade, o autor encontrava-se em Licença Saúde desde setembro de 1999. Entende que houve a ocorrência de prescrição, vez que a União deixou de aplicar no lapso de tempo adequado a demissão do autor. Alega que o prazo de prescrição das ações pessoais contra a Fazenda Pública é de cinco anos, de modo que constitui em regra em favor de todas as Fazendas, autarquias, fundações públicas e estatais. Cita a Súmula 150 do STF. Sustenta que a União perdeu o direito de executar a decisão do processo, em vista da prescrição do prazo para a execução. O pedido de antecipação de tutela foi indeferido, assim como o pedido de vista ao Ministério Público. A parte autora interpôs agravo de instrumento da decisão. Citada, a União contestou. Aduz, em preliminar, que os documentos juntados não se prestam a provar os fatos por não estarem autenticados, bem como propugna a perda de objeto. No mérito, alega que o requerente pretende instituir nova modalidade de provimento em cargo público, incompatível com os princípios da legalidade, da moralidade, da impessoalidade e da igualdade. Assevera que desde o advento da Constituição Federal de 1988 não existe outra modalidade de provimento em cargo público que não seja pela aprovação em concurso público, salvo cargos em comissão. De outro lado, sustenta que não se trata de executar a sentença transitada em julgado, mas retornar à situação anterior à sua propositura, vez que foi revogada a liminar com a improcedência. Assinala que o autor tinha conhecimento do fato de que estava durante todo o período prestando serviço ilegalmente, e por permanecer no cargo de má-fé, não pode se beneficiar. Ainda, alega que a doença do requerente não pode servir de fundamento para a suspensão do ato, vez que se refere ao cargo e não à pessoa do requerente. Entende que o prazo prescricional é de vinte anos, pois não se aplica ao caso o Dec. Nº 20.910/32. Assinala que o art. 7º da Lei nº 6.035/74 não se aplica ao 172 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 caso do requerente. Requer a improcedência da ação. A União foi intimada para cumprir com urgência a determinação de reintegração do autor, face ao feito suspensivo concedido no despacho do agravo de instrumento. O agravo foi improvido. A parte autora apresentou réplica. Intimadas sobre provas, as partes nada requereram. Vieram os autos conclusos para sentença.” Interposta a apelação, postula o recorrente a reforma do julgado. O MPF manifestou-se pela não-intervenção no feito. É o relatório. VOTO O Exmo. Sr. Des. Federal Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz: Para rejeitar o pedido, a fls. 342/3, anotou, com inteiro acerto, a ilustre Juíza Federal, verbis: “O autor requer a declaração do direito de permanecer investido no cargo de Contador do TRT/4ª Região face à convalidação que entende ocorrida em vista da decadência do direito da União de demiti-lo. Da situação descrita pelas partes nos autos, vislumbra-se que, efetivamente, o autor em nenhum momento teve o direito à ocupação tranqüila e definitiva do cargo em questão. De outro modo, é possível dizer que não houve, por parte da Administração, o reconhecimento ao requerente da prerrogativa de ocupar o cargo, e que a sua ocupação era estritamente provisória, em situação conferida pelo Poder Judiciário, até a análise mais pormenorizada do caso em sentença. Assim, deve-se atentar para o fato de que não foi a Administração, e sim o Poder Judiciário, que autorizou a posse no cargo em caráter precário. Com o proferimento da sentença de improcedência do pleito, a medida liminar foi cassada. A partir deste momento, o ato que determinou a posse do requerente em caráter provisório foi desconstituído pelo mesmo Poder que a constituiu. Ademais, não pode ser admitido o argumento da parte autora no sentido de que não foi realizada a execução da sentença em tempo hábil, o que teria acarretado a prescrição do direito de executar a decisão do processo para a União. Primeiramente, não há propriamente uma execução a ser promovida no caso em tela. Tendo sido proferida uma sentença declaratória negativa da existência de um direito, há que simplesmente ser determinada a desconstituição da situação deferida precariamente em antecipação de tutela, ato cuja realização caberia de ofício ao Juízo, já que por este foi autorizada. Portanto, a execução é incabível, pois, além da condenação da sucumbência, não há o que ser executado. De outro lado, é errôneo o entendimento do requerente quanto à prescrição do direito da União de promovê-la. O Decreto nº 20.910/32, que o requerente utiliza como fundamento para definir o prazo prescricional da ação, somente se aplica às ações promovidas a favor ou contra a Fazenda Pública, o que não é o caso. Destarte, deve R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 173 ser aplicada à hipótese a regra geral da legislação civil para a fixação do prazo prescricional. Não havendo previsão legal definindo o prazo para declaração de vacância do cargo, deve ser aplicada, por meio da analogia, a regra geral para as ações pessoais do Código Civil vigente à época, que é de 20 anos. Observe-se que a Lei nº 9.784/99 fixou novos prazos para a União anular seus atos administrativos. Eis o que prescreve o art. 54 da citada lei: ‘Art. 54. O direito da Administração de anular os atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os destinatários decai em cinco anos, contados da data em que foram praticados, salvo comprovada má-fé.’ Apesar de estabelecer o prazo de cinco anos para prescrição do direito da União, como preconiza o autor, esta nova norma possui vigência somente a partir de sua publicação, de modo que não é aplicável ao caso em tela. Uma questão a ser considerada ainda é a permanência do autor no cargo mesmo após a ciência do trânsito em julgado da sentença. O autor tinha conhecimento da irregularidade de sua situação, e ainda assim continuou ocupando o cargo e exercendo as atividades como se nada tivesse acontecido. Pode-se considerar que o autor agiu de má-fé ao permanecer no cargo, de modo que não pode se beneficiar de uma situação cujo objeto do direito lhe foi negado, pela inércia da Administração em decretar a vacância. O autor assumiu o risco de permanecer em situação irregular e ser destituído do cargo a qualquer momento, e não seria admissível conferir-lhe a vantagem do cargo por sua atitude reprovável. Desse modo, resta concluir que a Portaria nº 2.333/01, que decretou a vacância do cargo do autor, não pode ser encarada como a execução do julgado. Trata-se meramente de ato que visou a efetivar a determinação judicial relativa à cassação da liminar, já que, tendo sido desconstituído o vínculo jurídico em sentença, o que restava ao autor era mera situação de fato na ocupação do cargo, do qual não decorre qualquer efeito jurídico. Quanto à questão relativa à prescrição, sendo a hipótese abrigada pela regra geral do Código Civil de vinte anos para as ações pessoais, incabível a aplicação de seus efeitos no presente caso, pois não houve o transcurso do referido prazo desde o trânsito em julgado da ação. Diante disso, deve a ação ser julgada improcedente.” Correto o decisum. Quando do julgamento do agravo de instrumento, a fls. 321/3, anotei em meu voto, verbis: “Em seu parecer, a fls. 255/6, anotou o douto MPF, verbis: ‘Trata-se de agravo de instrumento interposto contra decisão proferida pelo juiz monocrático, que indeferiu pedido de antecipação dos efeitos da tutela jurisdicional em ação interposta pelo agravante pleiteando sua permanência no cargo que exercia por força do decurso do tempo. Alega ter tomado posse do cargo de contador do TRT por força de medida liminar em 1983. Contudo, apesar desta ter sido posteriormente julgada 174 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 improcedente e transitado em julgado 15.06.94, não executou a União a sentença. A decisão agravada baseia-se na ausência de verossimilhança, sendo o silêncio administrativo mero fato e, portanto, impossível de convalidação. Primeiramente, cumpre salientarmos que falta a fumaça de bom direito ao pleito do agravante, sendo o silêncio administrativo mero fato e, portanto, impossível de convalidar-se. Na realidade, não é o silêncio um ato jurídico, e tampouco, um ato administrativo, mas sim uma declaração jurídica. Aquele que nada declara não pratica ato administrativo algum. Além disso, verifica-se que não houve omissão apenas da Administração, mas também do agravante que, mesmo tendo ciência da sentença equívoca permaneceu no cargo. De igual forma, não pode a doença do agravante servir de fundamento para a suspensão do ato administrativo que declarou vago o cargo que o mesmo ocupava. Por outro lado, não pode o agravante ser mantido em um cargo que, naquela época, exigia a formação em Ciências Contábeis sendo o mesmo apenas Técnico em Contabilidade. Por fim, salienta-se ser o ato administrativo nulo em sua origem, na medida em que, obteve o autor o cargo tão-somente em sede de liminar concedida pelo juízo a quo, tendo a mesma sido posteriormente revogada. Isto significa que o autor não é portador legítimo do direito pretendido e, portanto, não deve obter, agora, aposentadoria por regime jurídico único, sob pena de violação ao Princípio Administrativo do Interesse Público. Em conclusão, qualquer que seja a ótica pela qual se examina a antecipação de tutela em casos como este, não há como pretendê-la jurídica, justa ou possível dentro de nosso sistema jurídico. Isto posto, opina o Parquet pelo improvimento do presente agravo e conseqüente manutenção da decisão interlocutória proferida.’ Ao indeferir a antecipação de tutela, à fl. 236, assinalou o ilustre Juiz Federal, verbis: ‘Colhe-se da inicial que o Autor tomou posse no cargo de contador do TRT da 4ª Região, em 21.11.83, por força de liminar concedida em ação cautelar. Essa liminar foi cassada, tendo sido julgada improcedente a pretensão do Autor vertida em ação principal. Essa decisão de improcedência, por seu turno, teria transitado em julgado em 15.06.94. E, apesar disso, o cargo do Autor somente foi declarado vago em julho deste ano. Em essência, entende o Autor que teria sido efetivado no cargo público em comento pelo transcurso do tempo. E, sendo assim, requer medida antecipatória que o mantenha no referido cargo público. Neste momento delibatório e de cognição sumária, tenho que o pedido provisório do Autor não pode ser acolhido, por falta de verossimilhança. Desde o trânsito em julgado da decisão da ação principal, a Administração manteve-se silente, porquanto não deu vazão ao seu poder-dever de afastar de um cargo público uma pessoa que não era servidor público. O silêncio, no Direito Administrativo, não constitui um ato, mas, sim, um fato. Nesse sentido, doutrina Celso Antônio Bandeira de Mello, in Curso de Direito Administrativo, Malheiros, 2000, p. 355. 175 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 Logo, tenho que não se pode considerar que o silêncio da Administração tenha funcionado como um ato administrativo de provimento do cargo público em comento. Como tal silêncio não era um ato, não há falar em convalidação de fato jurídico-administrativo. E, sendo assim, não há cogitar de transcurso de prazo decadencial para que a Administração o invalidasse. Diante disso, entendo que não se deve suspender os efeitos do ato administrativo que declarou vago o cargo que vinha sendo ocupado pelo Autor.’ Dessa forma, nos termos dos pronunciamentos antes transcritos, cujos fundamentos adoto, não se encontram presentes, no caso, os pressupostos do art. 273 do CPC. Por esses motivos, conheço do agravo de instrumento, negando-lhe provimento. É o meu voto.” Ademais, a Lei nº 9.784/99 não se aplica ao caso dos autos, pois ela só tem vigência a partir de sua publicação, que é posterior. Por outro lado, mesmo assim, o disposto no art. 54 da Lei nº 9.784/99 não se aplica ao ato nulo. Nesse sentido, precedente da Corte de que fui relator, verbis: “APELAÇÃO EM MANDADO DE SEGURANÇA Nº 2001.71.00.001459-7/RS RELATOR: DES. FEDERAL CARLOS EDUARDO THOMPSON FLORES LENZ APELANTE: INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL – INSS ADVOGADO: Patricia Helena Bonzanini APELADO: ROBERTO LOPES DOS SANTOS ADVOGADO: Aloisio Jorge Holzmeier e outros REMETENTE: JUÍZO FEDERAL DA 10ª VARA FEDERAL DE PORTO ALEGRE/RS EMENTA ADMINISTRATIVO. ATO ADMINISTRATIVO. REVOGAÇÃO. SÚMULA 473 DO STF. DECADÊNCIA. ART. 54 DA LEI Nº 9.784/99. EFEITOS. 1. O disposto no art. 54 da Lei nº 9.784/99 não se aplica ao ato nulo, pois é pacífico o entendimento do STF de que não há falar-se em direito subjetivo à manutenção dos efeitos de ato administrativo, se praticado em desconformidade com a lei (in RTJ 143/251; 146/658). No mesmo sentido, a lição da doutrina: Miguel Reale, in Revogação e Anulamento do Ato Administrativo, 2ª edição, Forense, 1980, pp. 65 e seguintes; Themístocles B. Cavalcanti, in Teoria dos Atos Administrativos, RT, 1973, p.185; Ruy Cirne Lima, in Princípios de Direito Administrativo, 6ª edição, RT, 1987, p.93; Pontes de Miranda, in Tratado de Direito Privado, 4ª edição, RT, 1983, t. IV, pp.20/1. Pertinente, a respeito, o magistério de Paul Roubier, verbis: ‘La non-observation des conditions de validité posées par la loi à la confection de cet acte aura pour sanction une action de nullité ou en rescision, c’est à-dire une action qui n’entrait aucunement dans les vues de l’auter (ou des auteurs) de l’acte juridique. Ici encore cette action n’est pas fondée sur la violation d’un droit antérieur, elle 176 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 est fondée sur une infraction à un devoir, le devoir d’observer les conditions légales de validité de l’acte posées par la loi.’ (In Droits Subjectifs et Situations Juridiques, Dalloz , Paris, 1963, pp. 74/75). É o princípio insculpido na Súmula 473 do STF. 2. Provimento da apelação e da remessa oficial. ACÓRDÃO Vistos e relatados estes autos entre as partes acima indicadas, decide a Terceira Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por maioria, vencida a Desembargadora Federal Maria de Fátima Freitas Labarrère, dar provimento à apelação e à remessa oficial, nos termos do relatório, voto e notas taquigráficas que ficam fazendo parte integrante do presente julgado. Porto Alegre, 12 de novembro de 2002. Des. Federal Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz – Relator”. Por esses motivos, conheço da apelação, negando-lhe provimento. É o meu voto. VOTO-VISTA O Exmo. Sr. Juiz Federal José Paulo Baltazar Junior: Tenho que merece provimento a apelação, por aplicação do art. 54 da Lei 9.784/99, do seguinte teor: “Art. 54. O direito da Administração de anular os atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os destinatários decai em cinco anos, contados da data em que foram praticados, salvo comprovada má-fé.” No caso dos autos, mesmo desconsiderando o período em que o apelante exerceu o cargo por determinação judicial, de 1983 a 1994, desde então até 2001 o autor permaneceu no cargo por inércia da administração em dar cumprimento à decisão judicial desfavorável que transitara em julgado. Sobre a possibilidade de retroação do referido art. 54, há precedentes do STJ e deste Tribunal, como segue: “ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. MANDADO DE SEGURANÇA. SERVIDOR PÚBLICO. PENSIONISTA. PERCEPÇÃO DE PROVENTOS COM PARCELAS DE GRATIFICAÇÃO INCORPORADAS POR FORÇA DA PORTARIA 474/87 - MEC. ANULAÇÃO DO ATO. DECADÊNCIA. (...) III - A Administração Pública tem o prazo de cinco anos para anular ato administrativo gerador de efeitos favoráveis para os destinatários, salvo se comprovada má-fé (art. 54 da Lei nº 9.784/99). IV - In casu, o parecer nº 203 da Advocacia Geral da União, que considerou ilegal a forma de remuneração das funções gratificadas nos termos da Portaria 474/87, somenR. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 177 te foi editado em 1999, quando escoado, há muito, o lustro decadencial. Precedente. Recurso parcialmente conhecido e nessa parte desprovido.” (STJ, REsp nº 444126/PR, Rel. Min. Félix Fischer, 5ª T., un., DJ 10.03.2003, p. 294) “ADMINISTRATIVO - MANDADO DE SEGURANÇA PREVENTIVO - FUNCIONÁRIOS DA CONAB - ANISTIA - REVISÃO DOS ATOS - IMPOSSIBILIDADE - PRESCRIÇÃO ADMINISTRATIVA - § 1º DO ART. 54 DA LEI 9.784/99 - SEGURANÇA CONCEDIDA. 1 - Pode a Administração utilizar de seu poder de autotutela, que possibilita a esta anular ou revogar seus próprios atos, quando eivados de nulidades. Entretanto, deve-se preservar a estabilidade das relações jurídicas firmadas, respeitando-se o direito adquirido e incorporado ao patrimônio material e moral do particular. Na esteira de culta doutrina e consoante o art. 54, parág. 1º, da Lei nº 9.784/99, o prazo decadencial para anulação dos atos administrativos é de 05 (cinco) anos da percepção do primeiro pagamento. No mesmo sentido, precedentes desta Corte (MS nos 7.455/ DF, Rel. Ministro VICENTE LEAL, DJU de 18.03.2002 e 6.566/DF, Rel. p/acórdão Ministro PEÇANHA MARTINS, DJU de 15.05.2000). 2 - No caso sub judice, tendo sido os impetrantes anistiados e readmitidos pela Portaria nº 237, de 21.12.94, publicada em 23.12.94, decorridos, portanto, mais de cinco anos entre a sua edição e a data da impetração, em 12.03.2001, não pode a Administração Pública revisar tal ato em razão da prescritibilidade dos atos administrativos. 3 - Segurança concedida para afastar eventual desconstituição do atos de anistia em benefício dos impetrantes, determinando suas manutenções no serviço público federal. Custas ex lege. Honorários advocatícios incabíveis, nos termos das Súmulas 512/STF e 105/STJ.” (STJ, MS nº 7436/DF, Rel. Min. Jorge Scartezzini, 3ª S., un., DJ 17.02.2003, p. 218) “ADMINISTRATIVO. PORTARIA 474/87 DO MINISTRO DA EDUCAÇÃO. PARECER AGU 203/99. LEI Nº 9.784/99, ART. 54. DECADÊNCIA DO DIREITO DA ADMINISTRAÇÃO ANULAR A INCORPORAÇÃO DE QUINTOS E DÉCIMOS CALCULADOS COM BASE NO VEÍCULO INQUINADO DE ILEGAL. 1. A Portaria 474/87, em que pese padecer de vício de origem, por ter regulado matéria submetida à reserva legal, foi revogada pela Lei 8.168/91 e teve seus efeitos anteriores validados pela Lei 8.911/94, que assegurou a manutenção dos quintos incorporados até então. É cabível a convalidação, por lei, do vício original, pois a ordem constitucional não veda a retroatividade legal, salvo quando importar em prejuízo ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada, sendo que os autos tratam de hipótese contrária. 2. A Administração, através do Parecer 203/99, da AGU, reduziu os vencimentos e os proventos dos que incorporaram quintos ou décimos calculados segundo os critérios da mencionada Portaria, em flagrante ofensa ao disposto no art. 54 e § 1º, da Lei 9.784/99, que estabeleceu prazo decadencial de cinco anos para a anulação dos atos administrativos havidos como ilegais, de que tenham decorrido efeitos favoráveis aos destinatários, e que determinou que o prazo seja contado a partir do primeiro pagamento, quando se tratar de efeitos patrimoniais contínuos. 3. Hipótese em que o prazo se consumou, devendo-se tomar como dies a quo o da incorporação dos quintos ou décimos e não o da concessão da pensão, que já foi calculada computando-se as parcelas incorporadas a este título, as quais vinham sendo recebidas há mais de cinco anos pelo instituidor 178 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 da pensão. 4. A lei não faz distinção entre as hipóteses de nulidade e anulabilidade, ao tratar da invalidação dos atos administrativos e dos seus limites temporais. 5. Apelação e remessa oficial desprovidas.” (TRF 4ª R., AMS nº 71185/PR, Rel. Juíza Tais Schilling Ferraz (convocada), 3ª T., m., DJU 20.02.2002, p. 1100) “MANDADO DE SEGURANÇA. SERVIDOR PÚBLICO. PRELIMINARES REJEITADAS. QUINTOS INCORPORADOS. LIMITAÇÃO AO PODER DE AUTOTUTELA DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. LEI Nº 9.784/99. DECADÊNCIA QÜINQÜENAL. DIREITO ADQUIRIDO. 1. Preliminares argüidas rejeitadas. 2. Não obstante haja a fixação, por intermédio da Portaria nº 474/87, de valores remuneratórios das Funções Comissionadas (FC) e das Funções Gratificadas (FG) e, posteriormente, com o advento da Lei nº 8.168/91, haja a determinação da transformação das funções de confiança em cargos de direção - CDs e em funções gratificadas - FGs, provocando redução nas respectivas remunerações, é incabível que a Administração Pública proceda à anulação dos atos administrativos atinentes à incorporação dos quintos nas remunerações ou nos proventos, durante a vigência da Lei nº 7.596/87, uma vez que se operou a decadência pelo transcurso do prazo de cinco anos, previsto no art. 54 da Lei nº 9.784/99, norma consistente na limitação ao poder de autotutela. 3. O art. 54 da Lei nº 9.784/99 traduz-se em regra assecuratória do princípio da segurança jurídica, consistente no sentido de impedir que a Administração Pública, a qualquer tempo, proceda à anulação, sem maiores óbices, de atos com aparência de ilegalidade concernente a direitos dos administrados. 4. Somente os servidores que incorporaram em seus vencimentos ou proventos os valores da Função Comissionada (FC) antes do advento da Lei nº 8.168/91, estarão assegurados de sofrer qualquer redução, em razão de estarem sob o pálio do princípio constitucional do direito adquirido.” (TRF 4ª R., AMS nº 69954/RS, Rel. Des. Fed. Valdemar Capeletti, 4ª T., un., DJU 30.05.2001, p. 440 DJU 30.05.2001) Não vejo, tampouco, impossibilidade de aplicação do dispositivo por se tratar de ato nulo. Em primeiro, lugar, por não haver consenso sobre a classificação dos atos administrativos, entre nulos e anuláveis, sendo que, mesmo admitida a diferença, também aqueles admitem convalidação, como expõe Régis Fernandes de Oliveira (Ato Administrativo. 3a. ed., São Paulo : RT, 1992, pp. 133 e ss.). Em segundo lugar, o dispositivo legal antes referido não faz tal distinção, não cabendo ao intérprete fazê-lo. Nesse ponto, destaco que o apelante, conquanto não contasse com o diploma de nível superior de contador, possuindo apenas o diploma de técnico em contabilidade (fl. 23), possui graduação superior em economia (fl. 24), de modo que o ato questionado mais se aproximaria da anulabilidade. Além disso, o sentido dos institutos da decadência e da prescrição é R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 179 justamente de pacificar as relações controvertidas pelo decurso do tempo. Se a lei, no caso presente, não fez distinção entre atos nulos e anuláveis, sem ressalvas, a não ser no caso de má-fé, tem-se que em ambas as hipóteses se admite a convalidação pelo decurso do tempo. Levo em conta, ainda, a aplicação do princípio da moralidade administrativa (CF, art. 37), no particular aspecto da boa-fé, de resto expressamente consagrado no inciso IV do parágrafo único do art. 2º da já citada Lei nº 9.784/99. Segundo Egon Bockmann Moreira (Processo Administrativo. Princípios Constitucionais e a Lei 9.784/99. São Paulo : Malheiros, 2000, p. 91): “Do princípio da boa-fé deriva, pelo menos, o seguinte: (...) c) proibição à inação inexplicável e desarrazoada, vinculada a exercício de direito, que gera legítima confiança da outra parte envolvida; (...) g) impossibilidade do inciviliter agere (condutas egocêntricas, brutais e cegas aos direitos de terceiros, violadoras da dignidade humana); h) dever do favor acti (dever de conservação dos atos administrativos, explorando-se ao máximo a convalidação; i) lealdade no fator tempo (proibição ao exercício prematuro de direito ou dever, ao retardamento desleal do ato e à fixação de prazos inadequados); (...)” Na mesma linha a construção alemã do princípio da proteção à confiança, a que se refere Hartmut Maurer, nos seguintes termos, especificamente no que diz com a retratação de atos administrativos: “Ponto de partida foi o entendimento que a questão sobre a retratabilidade de atos administrativos beneficentes antijurídicos é dominada por dois princípios, ou seja, por um lado, pelo princípio da legalidade da administração, que exige a eliminação de atos administrativos antijurídicos e, por outro, pelo princípio de proteção à confiança, que pede manutenção do ato administrativo beneficente. Como ambos os princípios requerem validez, mas também estão em conflito um com o outro, deve, segundo a opinião do Tribunal Administrativo Federal, ser ponderado e examinado, no caso particular, a qual interesse - ao interesse público na retratação ou ao interesse individual na existência do ato administrativo - é devido a primazia.” (MAURER, Hartmut. Elementos de Direito Administrativo Alemão. Trad. Luís Afonso Heck., Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2001, pp. 70-1) No caso presente, a ponderação acima referida deve levar em conta os aspectos abaixo analisados. Embora vencedora na ação originária, a administração, por mais de 180 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 cinco anos, silenciou, deixando de dar execução à sentença com trânsito em julgado. Não se pode ignorar, tampouco, o período de tramitação da ação originária, tudo a fazer com que o apelante tenha permanecido no exercício do cargo por quase vinte anos, por demora da justiça e inércia da administração. Não se pode ignorar, tampouco, a circunstância de estar o apelante, no momento do afastamento do cargo, incapacitado para o exercício de atividade laborativa, como atesta o documento da fl. 13 e comprova a certidão das fls. 271-2. Afastar o autor vai, também, de encontro ao direito fundamental social à previdência social (CF, arts. 6º e 7º, XXIV), bem como quanto ao princípio da universalidade da cobertura e do atendimento que informa a seguridade social (CF, art. 194, I). Com efeito, tendo trabalhado por quase vinte anos no serviço público, deixou o apelante de se vincular ao regime geral de previdência social. Se excluído do serviço público, agora que sofre de enfermidade, restará sem cobertura no regime previdenciário dos servidores e também no regime geral, em situação que também contraria o princípio da moralidade administrativa, como acima referido. Registro que não se poderia exigir do apelante que tomasse a iniciativa de invocar o julgamento desfavorável perante a administração, provocando a saída do cargo, pois tal providência cabia ao órgão. Nesse quadro, merece provimento a apelação. Juros Sempre foi o entendimento do Superior Tribunal de Justiça de que o percentual cabível a título de juros moratórios em débitos relativos aos vencimentos de servidores públicos é de 1% ao mês nos termos do art. 3º do Decreto-Lei nº 2.322/67, visto que tais prestações têm caráter eminentemente alimentar: “PROCESSO CIVIL. JUROS. DIFERENÇAS DE REMUNERAÇÃO E DE PROVENTOS. 28,86%. No cálculo das diferenças de remuneração e de proventos devidos a servidores públicos devem incidir juros moratórios na taxa de 1,0% ao mês, em face da natureza alimentar da dívida. Precedentes do STJ. Recurso conhecido e provido.” ( STJ, 5ª Turma, REsp 195964/SC, Rel. Min. Gilson Dipp, DJ de 15.03.99, p. 283) “PROCESSO CIVIL. JUROS MORATÓRIOS. DEL 75/66. DEL 2.322/87. R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 181 1. Sobre as diferenças resultantes do pagamento de reajuste nos vencimentos de servidores federais devem incidir juros moratórios calculados à taxa de 1% ao mês, em face da natureza alimentar da dívida. 2. Recurso conhecido e provido.” (STJ, 6ª Turma, REsp 175827/SC, Rel. Min. Fernando Gonçalves, DJ de 07.12.98, p. 116) Através da 3ª Seção, o entendimento restou pacificado naquela Corte, no julgamento dos Embargos de Divergência 58.337/SP, cujo acórdão foi ementado pelo Eminente Ministro Fernando Gonçalves nos seguintes termos: “ADMINISTRATIVO. APOSENTADORIA. COMPLEMENTAÇÃO. DÉBITO. JUROS MORATÓRIOS. TAXA. 1. Incidem juros moratórios de 1% (um por cento) ao mês sobre dívida resultante de complementação de aposentadoria, em face de sua natureza salarial. Não tem relevância eventual distinção entre débito de índole estatutária ou trabalhista, pois ambas são de cunho eminentemente alimentar, sendo que quanto a esta última a taxa de 1% (um por cento) é fixada pelo art. 3º do Decreto-Lei nº 2.322, de 26 de fevereiro de 1967. Solução igual para situações idênticas. 2. Precedentes do STJ - REsp nº 5.657/SP- interpretação magnânima. 3. Embargos rejeitados.” (EREsp 58.337/SP, Rel. p/ac. Min. Fernando Gonçalves, DJ de 22.09.97. RSTJ 104:375-386) A possibilidade de aplicação das disposições do Decreto-Lei nº 2.322/87, que regula os débitos de origem trabalhista deve-se ao fato de que as dívidas de salários, pensões, proventos de aposentadoria e benefícios previdenciários são típicas dívidas de valor em razão de sua natureza alimentar. Assim, com amparo no art. 5º da Lei de Introdução ao Código Civil, impõe-se a adoção dos juros de mora de 1% ao mês, observando-se que também quanto à correção monetária das dívidas de valor, em razão da sua relevância e finalidade, firmou-se a construção jurisprudencial - hoje amplamente aceita nos Tribunais do País - que determina sua incidência a partir do momento em que deveria ter sido efetuado o pagamento. Assim, deve ser mantida a interpretação analógica acima, para aplicar o índice de 1% ao mês, com fulcro no art. 3º do Decreto-Lei nº 2.322/87 e § 1º do art. 39 da Lei 8.177/91. A edição da Medida Provisória 2.180-35, de 24 de agosto de 2001, 182 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 que incluiu o art. 1º-F à Lei 9.494/97, em nada altera esta situação. O entendimento já se encontra consolidado no STJ em relação a ações em curso quando da edição da referida MP. O fato desta norma ter natureza material, com reflexos na esfera jurídica das partes, não permite sua aplicação em processos em andamento. (EDREsp 437817/MG, Rel. Min. José Arnaldo da Fonseca, DJ de 19.11.2002; REsp 495702/RS, Rel. Min. Félix Fischer, DJ de 02.06.2003, p. 347) Pelas razões acima expostas, dou provimento à apelação, para: a) declarar a decadência do direito da União de declarar a vacância do cargo ocupado por Roberto Zanette; b) condenar a União a: b.1) praticar os atos administrativos necessários a tanto; b.1) pagar os vencimentos desde a data do indevido afastamento, atualizados monetariamente e acrescidos de juros de mora de 1% a.m. a contar da citação (CPC, art. 219), conforme fundamentação acima; b.2) pagar honorários advocatícios no percentual de 10% (dez por cento) sobre o valor do principal a final apurado. É como voto. AGRAVO DE INSTRUMENTO Nº 2002.04.01.039975-3/RS Relator: O Exmo. Sr. Des. Federal Amaury Chaves de Athayde Agravante: Ministério Público Advogado: Dr. Luís Alberto d’ Azevedo Aurvalle Agravada: Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS Advogados: Drs. Armando Eduardo Pitrez e outro EMENTA Administrativo e Processual Civil. Ensino superior. Exame vestibular. Prova de língua estrangeira. Tutela antecipada. Conjugados os legais pressupostos, cabe o deferimento de tutela antecipada para, em concurso vestibular para acesso a curso de ensino superior, afastar a exigência da prova de inglês como língua estrangeira única, na medida em que sua implantação esteja a consubstanciar inovação na proximidade da realização dos exames. ACÓRDÃO Vistos e relatados estes autos entre as partes acima indicadas, decide a Quarta Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por una183 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 nimidade, dar parcial provimento ao recurso, nos termos do relatório, voto e notas taquigráficas que ficam fazendo parte integrante do presente julgado. Porto Alegre, 7 de maio de 2003. Des. Federal Amaury Chaves de Athayde, Relator. RELATÓRIO O Exmo. Sr. Des. Federal Amaury Chaves de Athayde: Trata-se de agravo de instrumento tempestivo, interposto de r. decisão (fls. 382 a 388) exarada em ação civil pública promovida pelo Ministério Público Federal em face da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, perante o MM. Juízo da 12ª Vara Federal de Porto Alegre/RS. A insurgência é oposta contra o indeferimento de antecipação de tutela, consistente em proibição à demandada/recorrida da exigência de prestação de prova de língua estrangeira moderna única (inglês) no concurso vestibular de 2003, em relação aos cursos que indica (Ciências da Computação, Engenharia de Computação, Bacharelado em Estatística, Engenharia Química, Engenharia de Minas, Medicina da UFRGS e Medicina da FFFCMPA). Em exame preambular (fls. 392 a 395), deferi parcialmente o requestado efeito suspensivo ao recurso, marcando o prazo de 5 (cinco) dias para as gestões à reabertura de prazo para que os candidatos ao exame vestibular manifestem opção. Fi-lo exceto no tocante ao curso de Ciências da Computação, a cujo ingresso a objurgada exigência registra-se ocorrente já há 8 (oito) anos. O correspondente agravo regimental resultou provido, à unanimidade, em parte (fl. 474), reduzindo a aplicação da decisão deste Relator tão-somente aos cursos de medicina da UFRGS e da FFFCMPA, com modificação de prazo. O MM. Juízo a quo prestou informações. (fls. 398 a 400) A parte agravada, instada, apresentou a sua resposta. (fls. 430 a 457) É o relatório. Sem revisão. VOTO O Exmo. Sr. Des. Federal Amaury Chaves de Athayde: Merece parcial acolhida a pretensão recursal. Confiro. Já por ocasião do julgamento do agravo regimental nesta douta Turma, considerara: 184 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 “A decisão recorrida registra: ... Prima facie, tenho presente que, a princípio, contra o Poder Público não é cabível trato preambular sem sua prévia audiência ou que esgote, no todo ou em parte, o objeto da ação, cuja solução definitiva, ademais, só produzirá depois de confirmada em segundo grau de jurisdição. Não por isso, no entanto, há de se prestigiar empeço imediato ao desiderato acautelatório in casu. O óbice legal impende ser bem interpretado, tanto quanto o alcance do colimado trato em momento preambular. De aí, é forte a conclusão no sentido de que a tutela final pode ser antecipada, sim, sob conformação eminente de instrumentalidade, enquanto não atuar de maneira exauriente, irreversível, mas para acautelar a preservação de sua própria efetividade, dizendo com a utilidade mesma da ação e do processo, se in fine vier a ser definitivamente concedida. Assim o é em face do prestígio a valores jurídicos impostergáveis e dada a equação fática delineada na relação de origem — como se verá adiante —, sempre tendo em mira a limitação cognitiva desta sede. Assim fixado, prossigo. Desde logo fixo que a controvérsia não reside na possibilidade de a Administração, na generalidade, alterar os requisitos necessários ao ingresso em seu quadro discente, ou que a Instituição demandada, ao fazê-lo, esteja a exercer competência própria. Controverte-se, isto sim, em torno da possibilidade de a modificação ser aplicada imediatamente ou mesmo em período insuficiente aos fins. E aí, em juízo próprio a esta sede, firmo-me pela negativa, com o temperamento que adiante explicito. Para exame nesta quadra preambular, ao trato perseguido pelo recorrente, abstraindo consideração exaustiva de todos os seus argumentos (e bem assim de toda a fundamentação de suporte à r. decisão recorrida), é forte concluir que o mesmo está a merecer agasalho em parte. Isso porque o regramento administrativo objurgado inovou nas exigências em meio a período normal, padronizado e mínimo de preparação (apontado pelo autor/recorrente como iniciado a partir da quinta série de ensino fundamental e que se poderia reduzir, na melhor das hipóteses, ao tempo de ensino médio – três anos). Importante ressaltar, nesse passo, o argumento segundo o qual a obrigatoriedade, instituída pela Lei de Diretrizes e Bases do Ensino (Lei nº 9.394/96, art. 26, § 5º), de ensino de língua estrangeira a partir da quinta série de ensino fundamental não está restrita ao inglês, garantida, ao revés, à comunidade escolar a opção. O pré-requisito fundamental para ingresso na universidade é a conclusão da formação regular e, nessa, o estudo da língua inglesa não é obrigatório. A deliberação acerca do novo critério de seleção não levou em conta os efeitos desse critério sobre a orientação do ensino médio (como se impunha, a teor do artigo 51 da Lei citada). Ao assim agir, a autarquia/administração inequivocamente provocou restrição de acesso e discriminação entre os interessados pois, inequivocamente, não competirão em igualdade de condições aqueles que, ao início do mencionado período de preparação, detinham a justa e assentada expectativa de aproveitar o conhecimento já haurido, ou em formação, de outro idioma estrangeiro, diverso da língua inglesa. R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 185 Dispor em contrário implicará admitir surpresa aos administrados cuja formação se deu sob condições há muito em vigor, o que também estabelece empeço à assertiva fundamental da Instituição, no sentido de que almeja a qualificação dos futuros profissionais. Sabe-se, a formação se dará durante o curso e não está necessariamente jungida ao conhecimento prévio de idioma dominante na literatura especializada. Aos fins, há as consagradas cadeiras de idioma estrangeiro técnico, ofertadas indistintamente pelas universidades. Na seqüência, impende notar que nesta época (setembro) os alunos estão por encerrar o derradeiro período letivo e detêm a justa expectativa de seguir os rumos traçados anteriormente. Como disse antes, não se discute a possibilidade ou a necessidade de instituir novos requisitos, mas, sim, a forma como se os implementa, revelando-se, por isso, insuficiente aludir in genere à necessidade de estabelecer novo parâmetro de seleção. Eis a essência do thema decidendum. No mínimo, é caso de se aplicar, em favor do administrado, os princípios da razoabilidade e da estabilidade das relações, bem assim o direito à não-surpresa. De outra parte, a perspectiva de prejuízo grave, quiçá irreparável, tenho-na por presente e preponderante sobre aquela que possa, se existente de fato, acometer a recorrida. Isso porque a negativa da antecipação atuará de modo a interromper (ou, no mínimo, adiar) o ingresso de milhares de estudantes em curso superior. É digna de acolhida, pois, prima facie, incluso sob caráter instrumental, a satisfação do trato initio litis no processo de origem, sob pena de não mais se fazer necessária ao cabo do integral processamento da ação, e aí já transcorrido o prazo mínimo de preparação antes aludido. Se assim é na generalidade, o mesmo não ocorre especificamente com o curso de Ciências da Computação, em relação ao qual não se conjugam, como seria de rigor, os legais requisitos. Resulta ausente o fundado receio de dano ao se constatar que a exigência sob comento vem sendo feita há oito anos, desde a implantação do referido curso. ANTE O EXPOSTO Defiro em parte a atribuição de efeito suspensivo ativo ao presente agravo, projetando parcial deferimento de tutela antecipada na ação de origem. Faço-o para afastar a objurgada exigência sustentada pela demandada/recorrida no sentido de submeter os candidatos no concurso vestibular de 2003 à prova de língua estrangeira moderna única (inglês), isso em relação aos cursos de Engenharia de Computação, Bacharelado em Estatística, Engenharia Química, Engenharia de Minas, Medicina da UFRGS e Medicina da FFFCMPA. Ainda, para dar efetividade ao presente decisum, determino à UNIVERSIDADE proceder à abertura de prazo adicional aos fins de oportunizar, aos candidatos inscritos, sem ônus a esses, a opção por língua estrangeira diversa – elencando aquelas que foram dadas à opção no igual concurso do ano fluente –, prazo esse que fixo em vinte e oito dias e meio (idêntica extensão qual à que foi aberta às inscrições no próprio concurso vestibular de 2003), sendo o que a UNIVERSIDADE deve cumprir no prazo 186 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 máximo de 05 (cinco) dias, contados de sua intimação, ensejando a manifestação dos interessados pelos iguais meios propiciados à inscrição no certame, como os especifica o correspectivo Edital de Abertura. Gizo, outrossim, que a divulgação da abertura do prazo adicional acima referido, à conta da agravada, haverá de ser feita pelos mesmos veículos de comunicação utilizados para abertura do próprio concurso vestibular, bem como em idêntico número de inserções. ... É oportuno lembrar que nesta quadra, porque de todo inapropriada, não se está a julgar a ação de origem. O juízo definitivo fá-lo-á por primeiro o MM. Juízo a quo, resguardada a sua Instância. Aqui se cuida, apenas, do trato initio litis que se projeta àquela ação, com embasamento em consabidos requisitos legais próprios que, rigorosamente, não obrigam nem esgotam o julgamento final. Animo-me, portanto, a ratificar os fundamentos de que me servi na prolação da decisão agravada. In genere, para repercutir a concessão da tutela antecipada, como entendi adotar, a verossimilhança do direito invocado pelo recorrente MINISTÉRIO PÚBLICO, autor da ação de origem, eu a reconheço nos termos mesmos expostos no decisum que subscrevi. A meu sentir, a orientação trilhada não arrosta, em absoluto, o disposto no artigo 93, inciso IX, do Estatuto Político Nacional, nela própria estando ínsita a sua justificação, conquanto dela possa discordar a UNIVERSIDADE. Vale gizar, compreendo não estar em liça, neste momento, qualquer juízo de valor sobre o mérito administrativo da atuação da autarquia, dizendo com a eleição do idioma inglês como área obrigatória – a implemento da diversificação de língua estrangeira –, para formar no quadro de áreas de conhecimento investigadas em exame vestibular. Logo, não interferem as conveniências ou os elevados propósitos da Instituição, tanto como as qualificadas indicações que a mesma invoca a seu respaldo, de igual forma como não interferem os estudos internos, previamente realizados para a introdução da novel exigência, ainda que dados a público ou a segmentos representativos da área da educação. Pelas mesmas razões, penso não haver óbice legal à atuação do Estado-Juiz in casu, essa a qual, rigorosamente, se limita ao exame da legalidade extrínseca do momento em que se quer fazer produzir a exigência vergastada. E nesse mister, reafirmo, o fator temporal milita em desfavor da UNIVERSIDADE. Justamente, aliás, em razão do igual fator temporal é que se conforma o requisito da urgência para o trato antecipatório na ação. Isso porque, da ausência do trato antecipatório, consoante consignei, advém perspectiva de prejuízo grave, quiçá irreparável, atuando a modo de interromper (ou, no mínimo, adiar) o ingresso de milhares de estudantes em curso superior. Assim, efetivamente, coexistem os pressupostos necessários à sustentação do provimento antecipatório hostilizado, sendo certo, de resto, que a argumentação de fundo econômico que se lhe queira opor, não tem o condão de debilitá-lo. Não se duvida da existência de elevados custos pelos quais responde a Administração na realização da seleção de novos acadêmicos ao ensino superior que ministra. Presentes, porém, os princípios fundamentais a que ela se submete (C.F., art. 37), os correspectivos ônus lhe correspondem mesmo, como elemento de meio, para R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 187 a consecução da sua finalidade, que é preponderante, de aí que a garantia de acesso igualitário aos bancos acadêmicos de terceiro grau aporta valor maior a resguardar. Seguindo, em face da alegação de que o decisum agravado é contraditório – eis que refere à necessidade de um prazo mínimo de três anos para a implantação da modificação questionada, mas afeta-a em relação a vários cursos, quando a mesma modificação somente é nova para os cursos de medicina –, antes, devo afirmar que a alusão ao prazo não está feita a modo de fixá-lo peremptório senão meramente a efeito comparativo. De qualquer modo, ainda que não o seja sob o caráter de contradição, porquanto a referência importante não está feita no teor da r. decisão de 1º Grau, alerta-me a mesma alegação para, em melhor exame, admitir que a decisão de minha lavra não deve permanecer com a extensão que lhe foi dada. Sucede que se aos cursos de Engenharia de Computação, Bacharelado em Estatística, Engenharia Química e Engenharia de Minas a exigência combatida na ação de origem já vem sendo feita há mais tempo – respectivamente, há quatro e há sete anos nos dois primeiros, e há três anos nos outros dois –, registra-o o MM. Juízo a quo em suas informações (fls. 399/400), em relação a eles, pelo igual fato, o argumento da urgência não cabe ser acolhido. Penso estar bem claro na decisão ora sub examen, a sua orientação basilar é no sentido de estabelecer empeço à implantação de exigência nova (a prova de inglês como língua estrangeira única) ao próximo exame vestibular do ano de 2003; o que se obsta é a investida contra o princípio da não-surpresa, da segurança. Na medida, pois, em que tal exigência não se faça nova para ingresso em algum curso – como já ressalvado no tocante ao curso de Ciências da Computação, em relação a esse, naturalmente, não há inovação a obliterar. Em linha de coerência, é o mesmo dizer que na circunstância pontual se faz ausente o requisito do periculum in mora, o que é o bastante para vedar a tutela antecipada no quanto concernente. Destarte, é forte excluir da produção do decisum preambular do presente agravo de instrumento aqueles referidos cursos, não sendo demais repetir a sua indicação: Engenharia de Computação, Bacharelado em Estatística, Engenharia Química e Engenharia de Minas. A mesma decisão se mantém apenas no que refere aos cursos de medicina da UFRGS e da FFFCMPA. No que diz com a alegação de impossibilidade de atendimento da ordem no prazo assinado, na verdade, a mesma resulta prejudicada. É o que se dá porquanto, como já mencionado no relatório, em função de pedido apartado, deferi a dilatação do mesmo prazo, a modo de factibilizar o cumprimento da decisão dentro das balizas nela indicadas. Por último, tendo em conta as considerações aduzidas no referido petitório em separado (fls. 459 a 461), tenho por acolhê-las ao propósito de reduzir o prazo de reabertura de oportunidade para os candidatos ao concurso vestibular manifestarem sua 188 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 opção para prova de língua estrangeira. Visto que o decisum faço-o por afetar apenas os cursos de medicina da UFRGS e da FFFCMPA, o que importa incluso na diminuição de destinatários, e também porque se acena com a possibilidade de manutenção do cronograma para a realização das provas, tomo por razoável, na consonância do pedido, fixar o aludido prazo em 18 (dezoito) dias. ...” É como reafirmo agora em definitivo, certo que as razões do MM. Juízo a quo e tampouco os fundamentos do recurso (de resto amplamente cotejados pela douta Turma) não operam em sentido contrário. Ante o exposto, dou provimento parcial ao recurso. Faço-o projetando parcial deferimento de tutela antecipada na ação de origem e assim afastar a objurgada exigência sustentada pela demandada/recorrida no sentido de submeter os candidatos no concurso vestibular de 2003 à prova de língua estrangeira moderna única (inglês), isso em relação aos cursos de Medicina da UFRGS e Medicina da FFFCMPA, com a modificação de prazo, nos termos da fundamentação. É o voto. APELAÇÃO EM MANDADO DE SEGURANÇA Nº 2002.70.00.061453-0/PR Relator: O Exmo. Sr. Juiz Federal José Paulo Baltazar Junior Apelante: Milton Alves Cardoso Junior Advogado: Dr. Bernardo Rucker Apelada: Universidade Federal do Paraná Advogado: Dr. Luís Henrique Martins dos Anjos EMENTA Administrativo. Ensino superior. Jubilamento. O administrado tem o direito de formular alegações e apresentar documentos antes da decisão, os quais serão objeto de consideração pelo órgão competente (Lei nº 9.784/99, art. 3º, III), de modo que o ato de jubilamento deve ser precedido de prévia manifestação do aluno. Fere o princípio da proporcionalidade, por inadequação, já que não atinge os fins da norma, o jubilamento de acadêmico para o qual remanescem apenas quatro disciplinas para a conclusão do curso, e apresenta motivação razoável para a perda do prazo de conclusão. Apelação provida. R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 189 ACÓRDÃO Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide a Egrégia Terceira Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por unanimidade, dar provimento à apelação, nos termos do relatório, voto e notas taquigráficas que ficam fazendo parte integrante do presente julgado. Porto Alegre, 30 de setembro de 2003. Juiz Federal José Paulo Baltazar Junior, Relator. RELATÓRIO O Exmo. Sr. Juiz Federal José Paulo Baltazar Junior: Trata-se de apelação de sentença que denegou a segurança pleiteada por Milton Alves Cardoso Junior, impetrada contra o ato de jubilamento do Presidente do Conselho de Ensino e Pesquisa da Universidade Federal do Paraná. Sustenta o apelante a nulidade do referido ato por não ter sido antecedido do devido procedimento administrativo que lhe fosse assegurada a ampla defesa. Além disso, aduz a violação do princípio constitucional da isonomia, haja vista a prorrogação do curso deferida para outros alunos que se encontravam em situação semelhante a do recorrente. Com as contra-razões, subiram os autos a esta Corte para a devida apreciação. O Ministério Público Federal opinou pelo desprovimento do recurso. É o relatório. VOTO O Exmo. Sr. Juiz Federal José Paulo Baltazar Junior: A Lei nº 9.784, de 29 de janeiro de 1999, como disposto textualmente em seu art. 1º: “...estabelece normas básicas sobre o processo administrativo no âmbito da Administração Federal direta e indireta, visando, em especial, à proteção dos direitos dos administrados e ao melhor cumprimento dos fins da Administração.” No caso presente, o atendimento a ambos os objetivos visados pela lei autorizam a reforma da sentença, como passo a analisar. A nova lei, em seu art. 2º, na esteira da garantia constitucional (CF, art. 5º, LV), assegura o contraditório e a ampla defesa. Explicitando tais mandamentos, o art. 3º, ao tratar dos direitos do administrado, vem assim redigido, no que interessa aqui: 190 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 “Art. 3º O administrado tem os seguintes direitos perante a Administração, sem prejuízo de outros que lhe sejam assegurados: (...) III - formular alegações e apresentar documentos antes da decisão, os quais serão objeto de consideração pelo órgão competente;” No caso presente, tal disposição legal não foi respeitada, uma vez que o impetrante não foi ouvido antes da decisão tomada no sentido do jubilamento, objeto da comunicação da fl. 33. Isso, apenas, seria fundamento suficiente para a anulação do procedimento administrativo. Mas não é só, uma vez que também a aplicação do princípio da proporcionalidade conduz à reforma da decisão atacada. O termo proporcionalidade origina-se da tradução do alemão Verhältnismässigkeit. Na Alemanha é utilizado, também, o termo Übermassverbot, ou proibição de excesso, com o mesmo significado. Com efeito, o que é excessivo não pode ser proporcional. Há, então, um avanço em relação ao princípio da reserva legal, passando-se para o princípio da reserva legal proporcional. (MENDES, Gilmar Ferreira. Os Direitos Individuais e suas limitações: Breves Reflexões. In: MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Hermenêutica Constitucional e Direitos Fundamentais. Brasília : Brasília Jurídica, 2000, p. 24) Na jurisprudência do STF é corrente, também, a expressão razoabilidade, decorrência da construção norte-americana da reasonableness, outra vertente da proporcionalidade. (DORIA, Antônio Roberto Sampaio. Direito Constitucional Tributário e Due Process of Law. Rio de Janeiro : Forense, 1986) São três os subprincípios que integram o princípio da proporcionalidade, a saber: necessidade (Notwendigkeit), adequação (Geeignetheit) e proporcionalidade em sentido estrito, também chamada de justa medida, no sentido de adaptação ao caso concreto (Angemessenheit). (HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha, p. 255-256, os marginais 317-319) Para que se atenda ao subprincípio da necessidade, em existindo várias medidas possíveis para alcançar a finalidade pretendida, deve ser eleita aquela menos nociva aos interesses do cidadão. Em outras palavras, deve ser escolhido, sempre que possível o meio mais suave ou menos gravoso. 191 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 Quer dizer, a violação da vida privada não pode ser simplesmente um meio para obviar a dificuldade da administração de chegar a uma determinada informação, como, por exemplo, na sistemática violação do sigilo financeiro para possibilitar penhora em ação de execução fiscal, sem que o exeqüente verifique a existência de outros bens penhoráveis. Segundo Hesse, a limitação não é necessária quando um meio mais ameno seria suficiente para atingir idêntica finalidade. (HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha. p. 256, nº marginal 318) Quer dizer, a restrição deve ser a menor possível, através do meio menos gravoso. O subprincípio da adequação (Geeignetheit) deve ser entendido como exigência de que a restrição deve ser apta a produzir o fim colimado, pois, do contrário, há de ser considerada inconstitucional. Tal verificação somente pode ser levada a cabo diante de uma situação concreta. É possível transpor isso perfeitamente para a situação de um juiz colocado diante de um pedido de autorização para que se forneçam documentos ou informações protegidas por sigilo financeiro, o que somente será adequado se os dados pretendidos são contemporâneos ao fato que se pretende investigar. Finalmente, o subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito, serve para indicar, entre as possibilidades jurídicas, se o meio utilizado encontra-se em proporção com o fim perseguido, da relação entre meios e fim (Zweck-Mittel). É o momento da ponderação dos bens em jogo. De acordo com Barros: “A diferença básica entre o princípio da necessidade e o princípio da proporcionalidade em sentido estrito está, portanto, no fato de que o primeiro cuida de uma otimização com relação a possibilidades fáticas, enquanto este envolve apenas a otimização de possibilidades jurídicas.” (BARROS, Suzana de Toledo. O Princípio da Proporcionalidade e o Controle de Constitucionalidade das Leis Restritivas de Direitos Fundamentais. Brasília : Brasília Jurídica, 2000, p. 84.) Acrescentamos que, além da necessidade, também a adequação é verificada concretamente. Essa construção guarda estrita relação com a dimensão dos direitos fundamentais como princípios, ou seja, como “...normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível, dentro das possibilidades 192 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 jurídicas e fáticas existentes”, como mandados de otimização (ALEXY, Robert. Teoria de Los Derechos Fundamentales. p. 86). Ora, vistos os direitos fundamentais como princípios e, portanto, normas passíveis de colisão, é que é possível falar em ponderação com base na proporcionalidade, o que não seria possível em se tratando de regras. Pretende-se, então, conferir a máxima eficácia aos direitos fundamentais, atendido o princípio da concordância prática. (HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha. p. 66, nº marginal 72) Ao contrário de outros ordenamentos constitucionais, como o de Portugal, a CRFB de 1988 não consagra, expressamente, o princípio da proporcionalidade. Nos termos do item 2 do art. 18 da Constituição Portuguesa: “A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.” Apesar disso, ainda ao tempo da CRFB de 1967, Celso Antônio Bandeira de Mello, examinando a questão da igualdade, já destacava a supremacia da Constituição na eleição dos fatores de discriminação, ao afirmar que: “ ...não basta a exigência de pressupostos fáticos diversos para que a lei distinga situações sem ofensa à isonomia. Também não é suficiente o poder-se argüir fundamento racional, pois não é qualquer fundamento lógico que autoriza desequiparar, mas tão-só aquele que se orienta na linha de interesses prestigiados na ordenação jurídica máxima.” (O Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. 2ª ed., São Paulo : RT, 1984, p. 56, com destaque por nossa conta.) Se assim era ao tempo da CRFB anterior, o que parece correto, com maior razão se dá à luz do texto atual, cujo § 2º do art. 5º prevê que: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.” Aliás, também a Lei Fundamental da Alemanha, berço do princípio da proporcionalidade, não o consagra no texto de forma expressa. Lembre-se que o art. 1º da CRFB estabelece que a República Federativa do Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito, para, no inciso III, consagrar a dignidade da pessoa humana como seu fundamento. Mais além, reconhece o direito à igualdade (CRFB, art. 5º, caput). No plano das R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 193 relações internacionais, o Brasil rege-se pela “prevalência dos direitos humanos” (CRFB, art. 4º, II). Estão consagrados no texto, também, o princípio da legalidade (CRFB, art. 5º, II) e a garantia do devido processo legal (CRFB, art. 5º, LIV), interpretado não só em seu aspecto formal, mas também substantivo, tal como construído na jurisprudência norte-americana. (CASTRO, Carlos Roberto de Siqueira. O Devido Processo Legal e a Razoabilidade das Leis na nova Constituição do Brasil, Rio de Janeiro: Forense, 1989, p. 7-33.) A garantia do devido processo (CRFB, art. 5º, LIV), em sua vertente substantiva, pode ser vista como fundamento para a aplicação do princípio da proporcionalidade ao direito nacional, sendo essa posição, aliás, apontada como majoritária na doutrina. (BUECHELE, Paulo Armínio Tavares. O Princípio da Proporcionalidade e a Interpretação da Constituição. Rio de Janeiro : Renovar, 1999, p. 146.) Isso já foi, aliás, afirmado pelo Min. Moreira Alves, nos seguintes termos: “A Constituição, em seu art. 5º, inciso LIV - e aqui trata-se de direitos não apenas individuais, mas também coletivos e aplica-se, inclusive, às pessoas jurídicas - estabelece que: ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal. Processo legal, aqui, evidentemente, não é o processo da lei, senão a Constituição não precisaria dizer aquilo que é óbvio, tendo em vista, inclusive o inciso II do art. 5º que diz: ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude da lei. Este princípio constitucional que tem a sua origem histórica nos Estados Unidos, lá é interpretado no sentido de abarcar os casos em que há falta de razoabilidade de uma norma. Por isso mesmo já houve quem dissesse que é um modo de a Suprema Corte americana ter a possibilidade de certa largueza de medidas para declarar a inconstitucionalidade de leis que atentem contra a razoabilidade.” (STF, ADIs nos 966-4 e 958-3, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ 20.05.94, p. 26.021. No mesmo sentido: ADIMC -1407/ DF, Rel. Min. Celso de Mello, Pl., DJ 24.11.00, p. 86) Nesse ponto, vale citar Bonavides, o qual, após enumerar vários dispositivos constitucionais que tratam da proporcionalidade em campos específicos do ordenamento constitucional, afirma: “Poder-se-á enfim dizer, a esta altura, que o princípio da proporcionalidade é hoje axioma do Direito Constitucional, corolário da constitucionalidade e cânone do Estado de direito, bem como regra que tolhe a ação ilimitada do poder do Estado no quadro de juridicidade de cada sistema legítimo de autoridade. A ele não poderia ficar estranho, pois, o Direito Constitucional brasileiro. Sendo, como é, princípio que embarga o alargamento dos limites do Estado ao legislar sobre matéria que abrange direta ou 194 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 indiretamente o exercício da liberdade e dos direitos fundamentais, mister se faz proclamar a força cogente de sua normatividade.” (BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 10ª ed., Malheiros, São Paulo, 2000, p. 397) Em conclusão, embora não figure explicitamente na CRFB, é possível afirmar ser o princípio da proporcionalidade derivado do texto constitucional, com fundamento no princípio do estado de direito, do devido processo substantivo, da dignidade da pessoa humana, ou mesmo da igualdade material. No plano infraconstitucional, a já citada Lei nº 9.784, de 29 de janeiro de 1999, representa justamente a consagração normativa do princípio da proporcionalidade, fazendo expressa menção, em seu art. 2º, à razoabilidade e à proporcionalidade, para, a seguir, no inciso IV do parágrafo único, estabelecer que: “(...) Nos processos administrativos serão observados, entre outros, os critérios de: (...) VI - adequação entre meios e fins, vedada a imposição de obrigações, restrições e sanções em medida superior àquelas estritamente necessárias ao atendimento do interesse público;” No caso em exame, tenho que o jubilamento se revela medida desproporcionada, por inadequação, já que a restrição não atende ao fim colimado pela norma. Ora, as regras que estabelecem limites para conclusão do curso nas instituições públicas de ensino superior têm por finalidade evitar a permanência do aluno por tempo excessivo no curso, impedindo o acesso de outros estudantes. No caso concreto, porém, verifica-se que faltam ao impetrante apenas cinco disciplinas (fl. 27) para a conclusão do curso, o que não pode ser tido como fator impediente ao acesso de outros interessados no curso. De outro lado, não vejo como o jubilamento atenda ao interesse público, na medida em que todo o tempo dispendido para cursar as demais disciplinas terá sido perdido. Ao final, até por razões de eqüidade, não podem ser desconsideradas as circunstâncias pessoais que cercam o caso concreto. O impetrante, ao longo do ano de 2000, esteve no exterior (fl. 26) estudando a língua inglesa, tendo lá trabalhado (fl. 28). Sobreveio a gravidez de sua parceira R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 195 (fl. 30) e o nascimento de sua filha. (fl. 207) Assim, embora o impetrante não tenha sido exatamente um acadêmico exemplar, não vejo como razoável coartar a possibilidade de rápida conclusão do curso para um jovem pai de criança de tenra idade, obrigando o impetrante a submeter-se a novo vestibular para ingresso no curso da UFPR, com as dificuldades inerentes a quem há tempo se encontra afastado dos bancos escolares do ensino médio, ou a concluir o curso em uma instituição privada, de ingresso mais facilitado, mas com os custos daí decorrentes e as complicações de adaptação curricular. Além disso, se o impetrante, ao tempo do início da faculdade, teve uma vida acadêmica atribulada, é certo que agora vem se empenhando em retornar para encaminhar à conclusão. Prequestionamento: O prequestionamento quanto à legislação invocada fica estabelecido pelas razões de decidir, o que dispensa considerações a respeito, vez que deixo de aplicar os dispositivos legais tidos como aptos a obter pronunciamento jurisdicional diverso do que até aqui foi declinado. Pelas razões expostas, dou provimento à apelação para assegurar ao impetrante a reabertura de matrícula para cumprir as disciplinas faltantes para conclusão do curso. É como voto. APELAÇÃO EM AÇÃO CIVIL PÚBLICA Nº 2002.72.02.000898-6/SC Relator: O Exmo. Sr. Des. Federal Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz Apelante: Ministério Público Federal Apelado: Amarildo Sperandio de Bairro Advogada: Dra. Janice de Bairros Apelados: Soc. Jornalística Diário do Iguaçu Ltda./ME e outro Advogados: Drs. José Correia de Amorim e outro EMENTA Administrativo. Ação civil. Pública. Interesses difusos. Ofensa moral. Comunidade indígena. Inviolabilidade parlamentar. 1. No caso dos autos, vislumbra-se a ocorrência de manifestações de cunho discriminatório, que, por via de conseqüência, ofendem a honra e 196 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 dignidade da Comunidade Indígena Toldo Chinbangue. Destarte, assiste razão o pleito de indenização por danos morais. 2. No tocante à vereança, a imunidade material está adstrita ao exercício do mandato parlamentar. 3. No que concerne à legitimidade da Sociedade Jornalística, bem andou o ilustre Magistrado em reconhecê-la, à luz do disposto no art. 49, § 2º, da Lei nº 5.250/67 e na Súmula 221 do Eg. STJ. É de ser rejeitada, também, a alegada imunidade do apelado Amarildo, em razão de sua condição de Vereador. Ora, os fatos perpetrados pelo apelado não guardam relação de causalidade com o exercício da função parlamentar, não podendo, portanto, servir de pretexto à incidência do disposto no art. 29, VIII, da CF/88. Nesse sentido, orienta-se a jurisprudência do Eg. STJ, verbis: “RHC. CONSTITUCIONAL. PENAL. IMUNIDADE. VEREADOR. Os vereadores, à semelhança dos deputados e senadores, no exercício da respectiva atividade, gozam de imunidade a fim de ser desenvolvido, sem peias, o mandato. Cumpre desenvolvê-la na Câmara Municipal. Inadequado, em princípio, valer-se da imprensa, notadamente quando a referência desairosa a terceiros.” (RHC 7910, Processo nº 1998.00.667989, rel. Luiz Vicente Cernichiaro, STJ, 6ª Turma, decisão 25.11.98) Ora, é inegável que, no contexto descrito na r. sentença, a fls. 164/5, a declaração do Vereador, bem como a charge publicada no Jornal Diário do Iguaçu, apresentaram caráter ofensivo à população indígena local, impondo-se a reparação pelo dano moral, sendo digno de louvor a atuação vigilante do Parquet. A respeito, deliberou o Eg. STJ, verbis: “CIVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL. LEI DE IMPRENSA. NOTÍCIA JORNALÍSTICA. ABUSO DO DIREITO DE NARRAR. ASSERTIVA CONSTANTE DO ARESTO RECORRIDO. IMPOSSIBILIDADE DE REEXAME NESTA INSTÂNCIA. MATÉRIA PROBATÓRIA. ENUNCIADO Nº 7 DA SÚMULA/STJ. DANO MORAL. DEMONSTRAÇÃO DE PREJUÍZO. DESNECESSIDADE. VIOLAÇÃO DE DIREITO. RESPONSABILIDADE TARIFADA. DOLO DO JORNAL. INAPLICABILIDADE. NÃO RECEPÇÃO PELA CONSTITUIÇÃO DE 1988. PRECEDENTES. RECURSO DESACOLHIDO. 1. Tendo constado do aresto que o jornal que publicou a matéria R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 197 ofensiva à honra da vítima abusou do direito de narrar os fatos, não há como reexaminar a hipótese nesta instância por envolver análise das provas, vedada nos termos do enunciado nº 07 da Súmula/STJ. 2. Dispensa-se prova de prejuízo para demonstrar a ofensa ao moral humano, já que o dano moral, tido como lesão à personalidade, ao âmago e à honra da pessoa, por vez é de difícil constatação, haja vista os reflexos atingirem parte muito própria do indivíduo - seu interior. De qualquer forma, a indenização não surge somente nos casos de prejuízos, mas também pela violação de um direito. 3. Agindo o jornal internacionalmente, com o objetivo de deturpar a notícia, não há que se cogitar, pelo próprio sistema da Lei de Imprensa, de responsabilidade tarifada. 4. A responsabilidade tarifada da lei de Imprensa não foi recepcionada pela Constituição de 1988, não se podendo admitir, no tema, a interpretação da lei conforme a Constituição.” (REsp nº 85019, Processo nº 1996.00.00726-8, STJ, 4ª Turma, Rel. Sálvio de Figueiredo Teixeira, DJ 18.12.98, p. 291) Ademais, in casu, não há sequer violação à liberdade de imprensa, garantida pelos arts. 5º, IX, e 220, caput, e § 1º, todos da CF/88, pois tais garantias constitucionais encontram limites na própria Lei Maior quando cometidos abusos, como no caso em apreço. Nesse sentido, é bastante a leitura dos depoimentos de fls. 116/121, para a constatação do dano ocasionado à comunidade indígena local. Ao proferir o seu voto na Suprema Corte dos Estados Unidos, no julgamento Chambers v. Florida, 309 U.S. 227, em 1940, assinalou o Justice Hugo Black, verbis: “Under our constitutional system, courts stand against any winds that blow as havens of refuge for those who might otherwise suffer because they are helpless, weak, outnumbered, or because they are nonconforming victims of prejudice and public excitement. Due process of law, preserved for all by our Constitution, commands that no such practice as that disclosed by this record shall send any accused to his death. No higher duty, no more solemn responsibility, rests upon this Court, than that of translating into living law and maintaining this constitutional shield deliberately planned and inscribed for the benefit of every human being subject to our Constitution - of whatever race, creed, or persu198 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 asion.” (In Mr. Justice Black and the Bill of Rights, by Irving Dilliard, New York, 1963, p. 69) Em outra obra, o mesmo Justice Hugo Black acrescentou, verbis: “Creio ter deixado clara a minha convicção de que a Constituição garante absoluta liberdade de palavra, e não hesitei em aplicar a Primeira Emenda para proteger idéias que detesto. Tenho também votado, constantemente, na Corte para anular, por inconstitucionais, todas as leis contra a obscenidade e a difamação. Ao assegurar absoluta proteção à liberdade de palavra, entretanto, tive sempre o cuidado de estabelecer diferença entre palavra e conduta. Assim, logo no princípio do meu voto vencido, no caso Beauharnais versus Illinois, 343 U.S. 250, julgado em 1952, assinalei que ‘a condenação assenta no conteúdo do panfleto, e não na época, no modo ou no lugar da sua distribuição’. Tal distinção, a que desejo devotar o restante deste capítulo, foi muito bem descrita pelo Juiz Douglas, no seu voto vencido, no caso Roth versus United States, 354 U.S. 476 (1957), no qual declarou: ‘A liberdade de expressão pode ser suprimida, se e na medida em que estiver tão intimamente unida à ação ilegal, seja parte inseparável dela’.” (In A Constitutional Faith, Alfred A. Knopf, New York, 1968, p. 53) Dessa forma, sendo incontroversos os fatos alegados na inicial, impõe-se o provimento do apelo, condenando os apelados no pagamento da quantia de R$ 100.000,00 como reparação por danos morais à comunidade indígena, atualizados monetariamente desde a citação, juros de mora, a partir da citação, na forma postulada à fl. 16, a e b, acrescido das despesas processuais e honorários advocatícios que fixo em 10% sobre o valor da condenação. 4. Provimento da apelação. ACÓRDÃO Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide a Egrégia 3ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por unanimidade, dar provimento à apelação, nos termos do relatório, voto e notas taquigráficas que ficam fazendo parte integrante do presente julgado. Porto Alegre, 9 de dezembro de 2003. Des. Federal Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz, Relator. R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 199 RELATÓRIO O Exmo. Sr. Des. Federal Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz: É este o teor da r. sentença recorrida, a fls. 162/172, verbis: “O Ministério Público Federal ajuizou ação civil pública contra Amarildo Sperandio de Bairros, Alex Carlos Tiburski dos Santos e Sociedade Jornalística Diário do Iguaçu alegando que em 31.01.01 veiculou-se no jornal de circulação regional O Diário do Iguaçu matéria em que o vereador Amarildo de Barros praticou e induziu discriminação e preconceito em relação à raça indígena, mediante expressões e palavras injuriosas. No mesmo dia, circulou no referido jornal uma charge do réu Alex dos Santos, praticando e induzindo à discriminação e ao preconceito aos indígenas, bem como incitando a prática de homicídio contra os índios da Comunidade Indígena Toldo Chimbangue. O membro do parquet ainda elencou fundamentos jurídicos sobre o dano moral, sua quantificação para o caso em tela, requerendo, ao final, a condenação solidária dos demandados para pagarem à Comunidade Toldo Chimbangue, a título de reparação por danos morais, a quantia de R$ 100.000,00, com os acréscimos legais. Contestando, a Sociedade Jornalística Diário do Iguaçu Ltda. alegou, preliminarmente, ilegitimidade passiva ad causam. No mais, asseverou que não houve ofensa moral, pois o jornal limitou-se a apenas publicar as falas de um vereador e a charge de um artista, exercendo o direito de crítica, sem ultrapassar as normas do bom jornalismo. A divulgação da entrevista e da charge estão assegurados pela direito à livre expressão do pensamento (inciso IV do art. 5º da CF) e direito à crítica artística (art. 5º, IX, CF). Invocou o direito à liberdade de imprensa. Aduziu não haver dano moral aos índios, e que nenhuma gravosidade a seus valores ou sua vida decorreu da veiculação das notícias/charge, não havendo o que indenizar, e até pelo contrário, a visibilidade da matéria nos jornais possibilita a resolução dos problemas existentes. Pugnou pelo acolhimento da preliminar, ou depois, pela rejeição do pedido. Amarildo Sperandio de Bairros, por sua vez, alegou inexistir discriminação contra os índios, pois vereador que é, representa os eleitores e deve demonstrar suas opiniões, tendo-o feito contrariamente ao pleito indígena pelo acréscimo da área das terras indígenas, sem qualquer discriminação, ainda mais que como edil foi eleito para defender os direitos fundamentais e promover a justiça social. Acrescentou que está sob o pálio da inviolabilidade parlamentar ao exercer o seu direito de opinião como vereador, no exercício do cargo, não se podendo responsabilizá-lo civilmente a título de dano moral. Pleiteou a rejeição da pretensão apresentada em juízo. Por fim, o réu Alex Carlos Tiburski dos Santos também afirmou inexistir qualquer ofensa moral aos silvícolas pela publicação da charge, ainda mais porque os conflitos entre os índios e os colonos da localidade Sede Trentin são notórios, e a exposição de charge, ainda que satírica, burlesca, deformada, está escudada no direito constitucional à liberdade de pensamento e manifestação artística. Que não há prova de dano moral para a comunidade indígena, devendo-se afastar as alegações do MPF. O Ministério Público Federal manifestou-se sobre as contestações, refutando as 200 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 preliminares aventadas, e no mérito, contestou a inocorrência de dano moral, buscou afastar a imunidade parlamentar, e repisando os argumentos iniciais, reavivou o pedido exordial. Realizou-se audiência de instrução e julgamento, colhendo-se prova oral (fls. 112/124), sendo ainda trazidos aos autos depoimentos colhidos em processo criminal tramitado perante a segunda vara desta circunscrição judiciária. As partes apresentaram memoriais, analisando o direito agora também à luz da prova oral colhida em juízo. Relatados. Decido. 1. Deve ser afastada a preliminar de ilegitimidade passiva ad causam argüida pela sociedade jornalística ré. É que o art. 49, § 2º, da Lei nº 5.250/67, dispõe que ‘e a violação de direito ou prejuízo ocorre mediante publicação ou transmissão em jornal, periódico, ou serviço de radiodifusão, ou de agência noticiosa, responde pela reparação do dano a pessoa natural ou jurídica que explora o meio de informação ou divulgação’. Assim, responde solidariamente com o emitente da opinião ou autor do escrito (ou mesmo charge) a sociedade jornalística, entendimento, aliás, já consagrado na Súmula 221 do Superior Tribunal de Justiça, ao prever que ‘são civilmente responsáveis pelo ressarcimento de dano, decorrente de publicação pela imprensa, tanto o autor do escrito quanto o proprietário do veículo de divulgação’. 2. Quanto à charge publicada pelo Jornal Diário do Iguaçu, de autoria de Alex Carlos Tiburski dos Santos. Charge é, segundo o dicionário Aurélio, uma ‘representação pictórica, de caráter burlesco e caricatural, em que se satiriza um fato específico, em geral de caráter político e que é do conhecimento público’. Não vislumbro em relação ao desenho qualquer ofensividade à honra ou dignidade dos silvícolas, não incorrendo o agente em discriminação ou incitação à discriminação racial contra aqueles. Ao lado da possível e inteligente interpretação da charge feita pelo Ministério Público Federal, de que o desenho lá exposto visa ridicularizar o índio, até com um telefone celular [o que a meu ver não é descrédito algum, antes implica em reconhecer a inteligência dos índios, que à margem da educação formal do branco, aprendem a lidar com as tecnologias inventadas por estes e estranhas à cultura indígena], em pânico e em fuga, acossado pelo agricultor e ameaçado de ir ‘sete palmos abaixo da terra’, ainda instigando-se a prática de homicídio contra o silvícola, há uma outra interpretação possível, se não tão inteligente, tão plausível quanto a acima discorrida. Parece-me absolutamente possível que o chargista tenha querido representar em seu trabalho pictórico a sua indignação quanto à conduta intimidadora dos agricultores. A charge, ainda que simples e com poucas palavras, dá ensejo à interpretação deduzida pelo Ministério Público Federal, assim como torna possível esta idéia agora por mim imaginada, de que há abuso dos agricultores, desproporção entre o pleito dos indígenas e a força usada para rechaçá-lo. Assim, cabe também ao leitor, de acordo com o discernimento que tenha ao ler o jornal, fazer também a sua interpretação do que lá está estampado. Não posso, aprioristicamente, querer imaginar o juízo feito pelo leitor e censurá-lo, R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 201 querendo que somente uma faceta do conflito possa ser desvendada, e a outra deva ser negada. Há aqui o conflito entre a visão de interesses de uma maioria (proprietários de terra) e de uma minoria (no conceito de Canotilho adiante citado), e dependendo do lado ao qual o leitor mais se afeiçoe ou se identifique, diferentemente poderá interpretar o trabalho do réu Alex Carlos Tiburski dos Santos. Não há ofensa, não há dano, não há dever de indenizar decorrente da publicação da charge, nem para o seu autor nem para o veículo de comunicação que a trouxe estampada. 2.1. Apenas para não deixar de consignar, conquanto a própria lógica do raciocínio acima já bastasse para afastar a alegação de incitação à prática de homicídio (dada a viabilidade mesmo de ser a manifestação do chargista crítica à postura dos agricultores), vê-se que não ocorreu tal prática delituosa decorrente da publicação da charge, porque não há prova escorreita do dolo, da vontade de instigar, induzir ou estimular a prática do crime de homicídio, quando é, no mínimo, dupla a possibilidade de interpretação do material publicado. 3. Sobre a inviolabilidade material dos parlamentares: Parece-me existir o nexo de implicação recíproca entre as palavras proferidas por AMARILDO SPERANDIO DE BARROS, por meio da imprensa escrita, e sua condição de vereador, pois se cuida de fato notório o conflito estabelecido no Município entre os índios e os agricultores na localidade Sede Trentin. O parlamentar municipal exerce, além dos clássicos papéis de legislador e fiscalizador da administração pública, simetricamente ao desempenhado pelos parlamentares em nível estadual e federal, o papel de ser a voz política de seus representados, podendo exarar opiniões que não correspondam à vontade geral, mas que expressem, sem sombra de dúvida, o entendimento de uma parcela da população, e tal direito de expressão política deve ser respeitada e resguardada. Pode-se não concordar com a opinião do vereador - e isto configura o constitucional direito de opinião em contrário a uma outra já formulada. O Supremo Tribunal Federal julgou que ‘para o Tribunal, a inviolabilidade alcança toda manifestação do congressista onde se possa identificar um laço de implicação recíproca entre o ato praticado, ainda que fora do estrito exercício do mandato, e a qualidade de mandatário político do agente’ (RE 2107917 / RJ, Relator(a): Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, DJ 18.06.01, p. 12, j. em 12.08.98). Esta implicação entre o ato publicado no jornal e a qualidade de mandatário político do réu Amarildo está presente no caso em exame. Concluo, assim, que as manifestações do vereador estão compreendidas na esfera de proteção da imunidade parlamentar material concedida aos edis, nos limites previstos na Constituição Federal - por suas palavras e votos no exercício do mandato, no município e nos limites dos interesses municipais e à pertinência para com o mandato (art. 29, VIII). Tal ilação se reforça ainda mais pelo caráter político que a própria reportagem assumiu, quando publicada no jornal Diário Iguaçu. Eis o título: ‘Vereadores opinam sobre conflito em Sede Trentin’. Não resta dúvida de que a opinião do réu foi expedida exatamente em razão do cargo que ocupava. 202 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 Ademais, ao lado da opinião deste vereador do PFL, na mesma reportagem, foi dada voz a vereadores do PT e do PPS, que com mais suavidade, é certo, também opinaram que, no mínimo, se os agricultores perdessem área para a reserva indígena deveriam ser indenizados. Umas mais amenas, outras mais agressivas, foram dadas opiniões lícitas por três vereadores, - e dadas no exercício do mandato, até pelo caráter político que a própria reportagem consignou. Assim, mesmo que a manifestação do réu Amarildo fosse causadora do dever de indenizar (e não foi, a meu sentir, como abaixo explico, traçando breves linhas sobre o direito de opinião), estaria o vereador eximido desta responsabilização pela inviolabilidade parlamentar. Isto porque a inviolabilidade do parlamentar é geral e não específica para o juízo criminal e o seu significado é o de que ele é insusceptível de punição por delito comum ou de opinião no exercício do mandado. Ora, se o vereador, em tais condições, não exerce o crime de injúria, ou difamação, como pode cometer ato punível a título de dano moral. Se o delito não se pune, como punir a sanção civil? Neste sentido, consagrou o Supremo Tribunal Federal: EMENTA: CONSTITUCIONAL. VEREADOR: IMUNIDADE MATERIAL: C.F., art. 29, VIII. RESPONSABILIDADE CIVIL. I. - Imunidade material dos vereadores por suas palavras e votos no exercício do mandato, no município e nos limites dos interesses municipais e à pertinência para com o mandato. II. - Precedentes do S.T.F.: RE 140.867-MS; HC 75.621-PR, Moreira Alves, ‘DJ’ de 27.03.98; RHC 78.026-ES, O. Gallotti, 1ª T., 03.11.98. III. - A inviolabilidade parlamentar alcança, também, o campo da responsabilidade civil. (Precedente do S.T.F.: RE 210.917- RJ, S. Pertence, Plenário, 12.8.98. IV. - R.E. conhecido e provido. RE 220687 / MG Relator(a)- Min. CARLOS VELLOSO, DJU 28.05.99, j. em 13.04.99). Da mesma forma, agora com a possibilidade de se alegar imunidade judiciária (art. 142 do CP), pode o Ministério Público Federal, por exemplo, sempre alegar que age corretamente, mesmo quando qualifica a manifestação de um dos réus de infantilóide, irresponsável, leviana, ou outros adjetivos não abonadores que pretenda usar (fl. 98), e que certamente não contribuem para o bom andamento dos trabalhos judiciários e efetiva busca da justiça. 3.1. Em decorrência da imunidade parlamente, exime-se também o veículo jornalístico da responsabilização civil, pois ao transcrever opinião do vereador o fez publicando a opinião como fato, e não como juízo. 4. Não fosse pela imunidade, ainda assim, tanto o réu Amarildo quanto a empresa jornalística não praticaram atos ilícitos (discriminação e incitação à discriminação), tendo apenas, respectivamente, manifestado e veiculado opiniões lícitas, ainda que contrárias, aos direitos dos indígenas. Reforço ponto que já ataquei em parágrafo anterior: as manifestações do vereador Amarildo foram colocadas dentro de um quadro do jornal em que foram chamados a opinar três vereadores de diferentes partidos políticos, foram consignadas todas as opiniões. Parece-me claro que o jornal quis dar enfoque institucional (opinião parlamentar) à matéria. Ademais, todos os entrevistados disseram, quando menos, que os agricultores deveriam ser R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 203 indenizados se a área contenciosa fosse incorporada ao território indígena. Também acho importante renovar a observação de que era notório (e não suposto como mencionado pela PGR às fls. 08) o conflito entre índios e agricultores na localidade Sede Trentin, como se infere do próprio site do Ministério Público Federal (www.prsc. mpf.gov.br), que reproduz notícia veiculada no jornal Diário Catarinense. Tal conflito, com certeza, acirra os ânimos entre os litigantes, e faz nascer, naturalmente, no ser humano, a disposição a se colocar de um ou de outro lado do conflito, de acordo com os seus valores e até mesmo expressar opiniões sobre a contenda. Transcrevo excerto da nota comprobatória do já antigo conflito: ‘TENSÃO EM ÁREA CONTESTADA (Publicado no Jornal Diário Catarinense de 30.06.02) ‘Dois incêndios ocorridos em menos de duas horas, há quatro dias, em uma casa e em um depósito da comunidade de Sede Trentin, em Chapecó, aumentaram a tensão na área reivindicada por índios Kaingang. (...)’ Assim, havendo o inequívoco conflito, a imprensa buscou o posicionamento dos líderes da comunidade. A crítica do réu à comunidade indígena foi, sem sombra de dúvida, incisiva, mas contida dentro de limites razoáveis do direito à livre opinião. Transcrevo as palavras do vereador: ‘O conflito em Sede Trentin vem preocupando lideranças dos mais diversos setores de Chapecó. Enquanto os indígenas Kaingang exigem mais 912 hectares de terra, os proprietários da área exigem indenização total e não só das benfeitorias, como prevê a Constituição. ‘Para o vereador Amarildo de Bairros (PFL) um absurdo os índios quererem ainda mais terra, se não produzem. Lembra o vereador que ‘muitos que estão hoje na reserva de Toldo Chimbangue não são indígenas autênticos. Todos nós sabemos disso, quando vemos índios louros, olhos claros’ lamenta. ‘Amarildo vai mais além, quando questiona o fato de os indígenas de Sede Trentin exigirem somente os direitos, ‘recusando os deveres que lhes caberiam também’. Destaca ainda o vereador pefelista que ‘esses indígenas vivem em outra cultura. Eles já conseguiram muita terra, e agora ainda querem tomar de quem produz, defende Bairros, para quem a área de 900 hectares ‘já está bom demais, porque nada produz’ (fl. 24). A manifestação pode denotar desconhecimento da realidade indígena, pois produzir (em escala industrial) sabidamente não é comportamento da etnia indígena. Aprende-se em qualquer livro escolar que os índios são coletores e praticam agricultura de subsistência, e este é um traço cultural que impende seja preservado e garantido, e até por isto demandam que a área de suas reservas seja de dimensões razoáveis. No mais, a conclusão de que os índios querem os seus direitos, eximindo-se dos deveres em contrapartida, é fala de senso comum, e, embora descabida, não denota discriminação. Os índios até outro dia eram incapazes, no antigo Código Civil (art. 6, III), e tornavam-se capazes à medida que se iam aculturando, digo, ‘se adaptando à civilização do País’. Ora, o próprio Código Civil difundia a idéia da incapacidade do índio, e que este se tornava responsável à medida em que aderia aos ‘iluminados’ costumes da 204 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 civilização. A própria lei a meu ver, discriminava o índio, que só passava a ser sujeito de direito e obrigações se quisesse viver como o ‘branco civilizado’. Assim, os silvícolas, incapazes que eram ex lege, efetivamente não possuíam obrigações enquanto não cumprissem a condição prevista no par. único do art. 6º do antigo CC. Para constar, menciono que o novo diploma civilista relega à legislação especial a definição sobre a capacidade do índio (art. 4º, parágrafo único, Lei nº 10.406/02). Quanto à assertiva de que há muitos brancos morando dentro da aldeia, pode-se ser uma generalização, uma hipérbole, mas o fato é que na prova oral colheu-se que pelo menos uma pessoa ‘branca’ passou a morar com os índios, adaptando-se a sua cultura, e outros são casados com brancos (fl. 121). Assim, todavia admita o exagero, tal fato não é absoluta mentira. Assim, analisadas minudentemente, as palavras do vereador, críticas às pretensões indígenas, estas não denegriram os índios. Concluo que as palavras de Amarildo, ainda que desconsiderada a imunidade material, constituem típica manifestação lícita de opinião. 5. Os índios são uma minoria étnica. CANOTILHO conceitua, ‘Minoria será, fundamentalmente, um grupo de cidadãos de um Estado, em minoria numérica ou em posição não dominante nesse Estado, dotado de características étnicas, religiosas ou lingüísticas que diferem das da maioria da população, solidários uns com os outros e animados de uma vontade de sobrevivência e de afirmação da igualdade de facto e de direitos com a maioria’ (Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Lisboa: Almedina, 5ª ed., p. 385) Tais minorias, certamente devem ter seu direito de sobrevivência e afirmação garantido. Isto não lhes torna imunes às críticas. Tais minorias têm que conviver com opiniões favoráveis e contrárias às suas pretensões, com opiniões reacionárias, conservadoras, progressistas, e admiti-las, garantindo-se o direito individual à opinião. Dou dois exemplos: É direito pensar e expressar a opinião de que um latifundiário que tenha 900 hectares de terra, ainda que improdutivos, possa conservar a área, dado o seu direito de propriedade (pensar de acordo com os interesses da maioria); é também lícito expressar a opinião pela imoralidade da manutenção daquela imensa área do latifundiário, devendo ser desapropriada para dá-la ao Movimento Sem Terra (defesa dos interesses de uma minoria, segundo o conceito de minoria nos dado por Canotilho). Nenhuma dessas idéias é, a meu ver discriminadora, embora axiologicamente diversas. Manifestá-las é direito de opinião a se resguardar. É claro que o caso não refere a minorias etnológicas. Da mesma forma, os judeus, uma minoria, injustamente perseguida e dizimada no século passado, na Segunda Guerra Mundial, exatamente por serem uma minoria no mundo acham-se no direito de perseguir os palestinos, uma minoria dentro do Estado de Israel (onde os judeus são a maioria). Pode-se criticar os judeus por sua postura frente aos palestinos? Pode-se criticar os palestinos? Em um ou outro momento, de um ou outro prisma, tais civilizações e etnias são minorias e podem, sim, ser criticadas sem que isto implique discriminação. Defender a causa semita ou palestina e criticar a parte contrária é direito que deve ser assegurado. R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 205 Acho importante esta idéia para que não se cristalize o senso comum de que as minorias são intangíveis e pairam acima do bem e do mal, brilhantemente resumido por Luís Nassif: ‘A luta das minorias por seus direitos, que é fundamental, passou a se sobrepor às análises individuais’ (‘O Terrorismo e a Mídia’, in Revista CEJ nº 18, set. 2002, p. 54-62). A meu ver, a expressão individual no caso em concreto deve ser resguardada e não deve gerar indenização quando se adscreve ao território da crítica não discriminatória, ainda que contrária aos índios. Concluindo, no plano constitucional deve-se decidir sobre o balanceamento entre o direito à honra, à dignidade, à intimidade, à vida privada, e à liberdade de informação, com a interpretação dos artigos 5º, X, e 220 da Constituição Federal. Neste processo entendo que se deve dar prevalência ao direito de livre opinião e liberdade de informação, uma vez que foram exercidos dentro de limites razoáveis, não malferindo objetivamente a honra e a dignidade da Comunidade Toldo Chimbangue, embora os índios tenham se manifestado contrariamente em audiência (fl. 116). Não posso deixar de observar que o cacique da reserva indígena, mencionou, nesta mesma audiência, que ‘especificamente com relação a essa reportagem não recorda de nenhum fato envolvendo membros da sociedade contra a população indígena’ (fls. 116). Às fls. 120 o cacique da comunidade Toldo Chimbangue reafirma a inexistência efetiva de discriminação ou violência em decorrência destas reportagens. Embora os índios tenham se sentido subjetivamente prejudicados, o fato é que, objetivamente, não se verificou discriminação racial decorrente dos fatos. Assim, conquanto os comentários possam não ser os mais abonadores possíveis em relação aos índios, e à charge, dentre outras, também possa ser dada interpretação infensa aos indígenas, pelas razões acima expostas tenho que não houve conduta punível e não há dano que mereça ser reparado. DISPOSITIVO: Ante o exposto, rejeito o pedido. Isento o autor de custas e honorários advocatícios, ex lege (art. 18 da Lei nº 7.347/85).” Interposta a apelação, postula o Parquet a reforma do julgado, alegando, em síntese, a fls. 184/191, verbis: “Ninguém olvida da capacidade persuasiva dos meios de comunicação social - e no caso, os jornais impressos - na formação da opinião pública, ante a sua penetração na sociedade, mormente em face de sua grande circulação pela Região Oeste de Santa Catarina. Em face disso, cabe aos operadores dos veículos de comunicação de massa velar pela garantia dos direitos constitucionais. O direito de expressão caminha lado a lado do direito da inviolabilidade, da honra e imagem das pessoas, e aquele não é absoluto, tendo por limite a observância dos direitos fundamentais insculpidos na Carta Magna. Dessa forma, o direito do indivíduo de dizer o que pensa, não o exime de ser responsabilizado pelas ofensas irrogadas a outrem de forma desarrazoada. O regime democrático garante o direito à liberdade de expressão. Tal prerrogativa, contudo, não se traduz no propósito de assegurar a impunidade da imprensa. A condenação por dano moral urge até mesmo para coibir o abuso crescente que se vislumbra na publicação de matérias com o fito de incrementar a venda de seus 206 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 exemplares. Outro aspecto que merece melhor análise por essa Egrégia Corte de justiça diz respeito a abrangência do jornal no qual foi publicada as matérias com conotação racista e incitação à prática de crime contra a comunidade indígena Kaingang, ocupante da Reserva denominada Toldo Chimbangue. As matérias jornalísticas que deram azo à propositura da presente demanda foram publicadas em jornal de grande circulação no Oeste de Santa Catarina, propalando as matérias tendenciosas à um grande número de leitores, fomentando o repúdio às comunidades indígenas. 2.3 DA CONDENAÇÃO POR DANOS MORAIS. A indenização decorrente do dano moral está assegurada pelos incisos V e X do art. 5º da Constituição Federal, constando entre os direitos e garantias fundamentais. Ante a comprovação do dano moral sofrido pela comunidade indígena em apreço, surge o dever de indenizar. Os índios da referida etnia tiveram sua integridade moral extremamente afetada pela publicação das matérias jornalísticas que deram azo à propositura da presente demanda. Houve a violação de direito subjetivo do grupo étnico; de direitos fundamentais expressos na Constituição: ‘art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: X. são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;’ (grifos nossos) ‘art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.’ É cediço que o dano juridicamente reparável nem sempre pressupõe um dano econômico. Pode ter havido única e exclusivamente um dano moral. ‘Um ato lesivo ao patrimônio moral de outrem às vezes acarreta conseqüências econômicas detrimentosas para o agravado, ao passo que outras vezes não terá este efeito. Em uma e outra hipóteses, entretanto, é cabível a responsabilização por dano moral. A Constituição de 1988 expressamente prevê (no art. 5º, X) indenização por dano material ou moral, decorrente de violação da intimidade, da vida privada, da honra ou da imagem das pessoas, sem distinguir se o agravo provém de pessoa de direito público ou de direito privado.’ (BANDEIRA DE MELLO. Op. Cit., p. 594) (grifo nosso) No presente caso houve um dano moral. O substrato social ali existente sofreu prejuízo de ordem extrapatrimonial e patrimonial, ou seja, houve um dano coletivo, o qual da mesma forma, é passível de indenização. A questão da coletivização dos direitos fundamentais encontra base doutrinária em CANOTILHO, que afirma: ‘O processo de fundamentalização, constitucionalização e positivação dos direitos fundamentais colocou o indivíduo, a pessoa, o homem, como ponto central da titularidade de direitos. Todavia, existe sempre um problema de delimitação do âmbito dessa R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 207 titularidade. (1) - todos os indivíduos têm os direitos reconhecidos pelas normas de direitos fundamentais, ou serão apenas os cidadãos portugueses os únicos dotados de ‘subjetividade jurídica’ para lhes ser atribuída a titularidade de direitos fundamentais?; (2) - só as ‘pessoas naturais’ têm direitos ou a titularidade estende-se também a ‘substratos sociais’ (organizações, associações, pessoas coletivas)?; (3) - quando começa e acaba a titularidade de direitos fundamentais?’ (Op. cit., pp. 566/567) Mais adiante, então, ele esclarece, ao analisar o artigo 12º/2 (‘as pessoas colectivas gozam dos direitos e estão sujeitas ao deveres compatíveis com a sua natureza’, conforme CANOTILHO, op. cit., p. 570) da Constituição da República Portuguesa: ‘Ao reconhecer-se ‘às pessoas colectivas direitos compatíveis com a sua natureza’ pretende-se não apenas que se tenha em conta a ‘essência’ do direito Fundamental concreto, mas também a ‘essência’ da pessoa colectiva em causa (pessoa colectiva dotada de personalidade jurídica, pessoa colectiva sem personalidade jurídica, pessoa colectiva de substrato pessoal, como as associações, ou de substrato patrimonial, como as fundações, pessoa colectiva de direito público ou pessoa colectiva de direito privado) Por pessoas colectivas entendem-se aqui diferentes ‘unidades organizatórias’: pessoas colectivas nacionais e estrangeiras, e pessoas colectivas de direito público (associações, fundações). A extensão dos direitos e deveres fundamentais às pessoas colectivas (pessoas jurídicas) significa que alguns direitos não são ‘direitos do homem’ puros, podendo haver titularidade de direitos fundamentais e capacidade de exercício por parte de pessoas não identificadas como cidadãos de ‘carne e osso.’ (Op. cit., pp. 570/571) (grifo nosso) Assim, pode-se ver que os direitos fundamentais não são hermeticamente ligados a um indivíduo; não há uma exclusividade na proteção. Tais direitos podem também ser coletivizados pela reunião de direitos individuais ou por sua unicidade dentre a coletividade. A charge publicada no jornal Diário do Iguaçu, no dia 31 de janeiro de 2001, não enseja, de forma alguma, outra interpretação distinta como preconiza o douto Magistrado em seu decisum monocrático na fl. 165. A charge em testilha dá azo tão-somente a uma única interpretação: incitação à prática de homicídio e discriminação racial contra a comunidade indígena Kaingang, ocupantes da reserva denominada Toldo Chimbangue, sita na localidade de Sede Trentin, no interior de Chapecó/SC, ocasionando grave dano à comunidade indígena, razão pela qual deverá ser indenizada. O juízo a quo, ao prolatar o seu decisum, rejeitou o pedido. Entre os argumentos do magistrado ressai a assertiva de que não houve qualquer ofensividade à honra ou dignidade dos silvícolas, mormente em relação à charge veiculada no jornal. Analisando a matéria jornalística constante na fl. 25, resta cristalino a ofensa à dignidade da etnia indígena em comento, tanto que os pais de crianças indígenas temeram pela integridade física de seus filhos matriculados em escolas fora da reserva. Houve sim e de forma veemente incitação à discriminação social contra a comunidade indígena Kaingang. 2.4 DA IMUNIDADE MATERIAL DO VEREADOR. A Constituição da República, em relação à imunidade material dos vereadores, 208 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 estabeleceu no artigo 29, VIII, in verbis: Art. 29. ... VIII - inviolabilidade dos Vereadores por suas opiniões, palavras e votos no exercício do mandato e circunscrição do Município; Conforme se depreende do texto constitucional, a imunidade material garantida ao edil, no exercício da vereança, não é absoluta, restringindo-se unicamente às opiniões, palavras e votos proferidos no exclusivo exercício do mandato eletivo. Dessa forma, não fica vedado ao exercente de cargo eletivo expressar opiniões pessoais, mesmo que desabonadoras e ofensivas, desde que haja um laço de implicação recíproca entre o ato praticado e a qualidade de mandatário político. No presente caso, a imunidade material reconhecida pelo eminente julgador acerca da ofensa irrogada pelo requerido Amarildo de Bairros em face do exercício da função de vereança merece ser rechaçada, uma vez que há uma total desvinculação da opinião, desabonadora e ofensiva exarada, a qual se reveste de caráter estritamente pessoal, e o exercício do cargo político. Ademais, é cediço que o campo da responsabilidade criminal e civil são distintos. Isso em face da característica de fragmentariedade do direito penal, o qual tem caráter subsidiário, devendo atuar quando os demais campos do direito não sejam capazes de exercer a tutela ao bem jurídico predispostos por outros ramos do direito. Disso se infere que, embora possa ter o edil imunidade material acerca de possível atuação criminal, tal situação não o exime de responder por danos morais quando praticar conduta delituosa, não abarcada pela esfera penal. Não se olvida que os tribunais pátrios têm estendido aos vereadores a inviolabilidade parlamentar pela prática de atos de natureza civil. No entanto, conforme ressalto de forma reiterada, tal instituto engloba, tão-somente, os atos praticados no exercício do mandato, o que não é o caso do presente feito. A opinião exarada no jornal Diário do Iguaçu, gize-se, exprimiu opinião pessoal, destituída do caráter político aventado pelo juízo a quo. 2.5 DA FRAGILIDADE E HIPOSSUFICIÊNCIA DA ETNIA INDÍGENA. No atual contexto social, a alegação de que se deve defender a não cristalização do senso comum que as minorias são intangíveis e pairam acima do bem e do mal soa jocosa, porquanto desconsidera a real situação de abandono e descaso em que se encontram essas minorias étnicas. Para aferir a veracidade de tal fato basta uma rápida visita a uma reserva indígena de qualquer região para constar essa realidade. A situação de miserabilidade que se encontram essas minorias, somada aos preconceitos sociais ainda prevalentes em certas camadas da nossa sociedade, afasta, e muito, essas classes de seres humanos da proteção do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana. A prevalecer tal entendimento, como o constante na sentença de que ‘No mais, a conclusão de que os índios querem os seus direitos, eximindo-se dos seus deveres em contrapartida, é fala de senso comum, e, embora descabida, não denota discriminação’, chegaremos ao absurdo de vermos a inércia dos poderes constituídos aliados ao R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 209 preconceito enraizados na sociedade, colaborar de forma decisiva para a dizimação das comunidades indígenas ainda remanescentes, a pretexto de tornar prevalentes os ‘iluminados costumes da civilização contemporânea’. Os indígenas brasileiros possuem um capítulo particular e um reconhecimento específico às suas tradições, crenças e costumes, sendo detentores do direito fundamental à dignidade. Tal direito atribuído aos indígenas goza do mesmo regime constitucional que instrumentaliza os demais direitos e garantias individuais da Constituição. A importância do indivíduo, não se restringindo a questão indígena, ter seus traços distintivos culturais respeitados pelo Poder Público e pela sociedade não implica discussão. Mas quando se trata das etnias indígenas, que possuem costumes e tradições completamente diferentes da sociedade ocidental, o reconhecimento desta diferença, em nível constitucional, assume uma relevância extraordinária. O princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, que não possui somente uma dimensão ética mas possui eficácia, é um valor que direciona a conclusão acima exposta. (‘O que se pretende com os argumentos ora esgrimidos é demonstrar que o princípio da dignidade da pessoa humana pode, com efeito, ser tido como critério basilar - mas não exclusivo - para a construção de um conceito material de direitos fundamentais. Além disso, abstraindo-se, por ora, os demais referenciais a serem analisados, é preciso ter sempre em mente que determinada posição jurídica fora do catálogo, para que efetivamente possa ser considerada equivalente, por seu conteúdo e importância, aos direitos fundamentais do catálogo, deve, necessariamente, ser reconduzível de forma direta e corresponder ao valor maior da dignidade da pessoa humana.’ (SARLET, Ingo. op. cit., p. 115) Tal eficácia esta disposta entre os diversos direitos que compõe o rol das garantias fundamentais estabelecidas na nossa Constituição. É um princípio que nutre de valor tais direitos e direciona uma interpretação que deve ser sempre cotejada com a dignidade da pessoa humana. Em outras palavras: não basta ter vida, é necessário que esta vida seja uma vida digna. Os princípios dispostos na Carta Constitucional revelam valores maiores que se estabelecem de forma fundante e essencial nas normas fundamentais, no Estado e nas relações deste com a sociedade. Afirma Rogério Gesta Leal que: ‘Em outras palavras, significa dizer que os princípios constitucionais, por sua própria essência, evidenciam mais do que comandos generalíssimos estampados em normas, em normas da Constituição. Expressam opções políticas fundamentais, configuram eleição de valores éticos e sociais como fundantes de uma idéia de Estado e de Sociedade. Os princípios não expressam somente uma natureza jurídica, mas também política, ideológica e social, como, de resto, o Direito e as demais normas de qualquer sistema jurídico. Contudo, expressam uma natureza política, ideológica e social, normativamente predominante, cuja eficácia no plano da práxis jurídica deve se impor de forma altaneira e efetiva.’ (LEAL, Rogério Gesta. Perspectivas hermenêuticas dos Direitos Humanos e Fundamentais no Brasil. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000. p. 168) De todo o exposto, evidencia-se que sentença prolatada pelo juízo a quo merece ser reformada em sua integralidade, porquanto a mesma deu prevalência, de forma absoluta, à liberdade de imprensa, sob o argumento de que a mesma foi exercida den- 210 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 tro dos limites razoáveis do direito à informação. Tal decisão fere, sobremaneira, os direitos fundamentais da pessoa humana, notadamente o direito à honra, à dignidade, à intimidade e à vida privada.” Os apelados apresentaram contra-razões. O MPF opinou pelo provimento do recurso. É o relatório. À revisão. VOTO O Exmo. Sr. Des. Federal Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz: Conheço da apelação e dou-lhe provimento. Em seu parecer, a fls. 207/221, anotou a culta Procuradora Regional da República, Dra. Ieda Hoppe Lamaison, verbis: “I - Breve síntese da lide Trata-se de apelação interposta em Ação Civil Pública ajuizada pelo Ministério Público Federal objetivando a condenação dos Demandados, Amarildo Sperandio de Bairros, Alex Carlos Tiburski dos Santos e Sociedade Jornalística Diário do Iguaçu, a reparação por danos morais à Comunidade Indígena Kaigang do Toldo Chinbangue, tendo em vista a configuração de ato discriminatório, bem como a incitação de prática criminosa contra os índios daquela comunidade. Na sentença a quo (fls. 162/172) o magistrado singular houve por bem julgar improcedente o pedido inicial, haja vista, no seu entender, não serem os comentários formulados ‘os maios desabonadores possíveis em relação aos índios, e que da charge não se pode inferir interpretação ofensiva aos indígenas’. Irresignado, o parquet federal interpôs recurso de apelação (fls. 174/191) reiterando os argumentos que fomentaram ajuizamento da presente ação. Com contra-razões do demandado Amarildo (fls. 193/200) sobrevieram os autos para parecer. É o breve relato. Efetivamente, o núcleo da discussão reside em definir se a charge e a declaração produzidas ofenderam a honra ou dignidade dos índios da Comunidade Indígena Toldo Chinbangue. Nesse tocante, pede-se vênia para divergir da interpretação proferida pelo douto magistrado em primeira instância, seguindo as razões, ordenadamente, articuladas abaixo. II - A dizimação da cultura indígena no Brasil Antes de adentrar o mérito da demanda, se faz necessária análise preliminar de questões históricas relativas à cultura indígena no Brasil. A dizimação da cultura indígena, sem sombra de dúvida, é a grande e irremediável seqüela do processo de ‘colonização’ no país. De fato, o modelo de dominação européia, além de produzir inúmeros estragos, deturpou a imagem do índio ao decorrer dos tempos. R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 211 O eurocentrismo dos exploradores que aqui apartaram propagou, sem respeitar inúmeras diferenças culturais existentes, a imagem corrompida de que os índios seriam preguiçosos e pouco afeitos ao trabalho. Na verdade, essa idéia teve por objetivo omitir o desinteresse econômico do europeu em relação ao índio (Segundo relatos históricos, índios foram preteridos por negros, haja vista a adaptação desses últimos ao trabalho no campo, sua maior expectativa de vida e o seu excelente valor de mercado) e também olvidar a resistência desenvolvida por essas populações à invasão ocorrida no Brasil e no restante da América Latina. Dessa construção histórica decorrem o preconceito e o desprezo que perseguem os índios até os dias de hoje. A grande realidade é que os índios foram e continuam sendo excluídos, em virtude de não terem uma cultura vinculada ao consumismo mantenedor da sociedade capitalista. Sob esses aspectos, o professor da PUC/SP, Marcos Ribeiro Ferreira (Dois ou três motivos para eleger a temática indígena para estudo - Marcos Ribeiro Ferreira. Mural de debates da APROPUC SP) enfatiza: ‘De aspectos como estes, tem resultado o estabelecimento de uma confusão entre a condição de indígena e aquela reconhecida como sendo a dos pobres na sociedade capitalista. O que poderia ser considerado diferença cultural é tratado como incapacidade da população indígena. Nesse caso, é apontado um tipo de incapacidade para o consumo, já que essas populações se mantêm há séculos em contato com a população branca mas mantém um padrão de consumo reduzido (a frugalidade simplesmente é incompreensível para a perspectiva consumista). Por outro lado, a incapacidade do Estado em atender às necessidades da população é tratada no plano das diferenças culturais. Neste caso, todo tipo de manipulação ocorre sob o argumento de preservação dos interesses indígenas. Um exemplo candente na comunidade que é acompanhada por nosso grupo de estudos: como o gasoduto que vem da Bolívia tinha sido traçado pelo meio de uma reserva indígena de Guaranis Mbia, próxima à cidade de Florianópolis, toda a aldeia teve que ser transferida. Na argumentação estava o interesse de oferecer terras para agricultura e não a pouca disposição de fazer desviar o traçado para não perturbar a vida daquela população.’ Como o exposto acima, os pressupostos para indesejável discriminação sofrida pelos índios são encontrados na própria história de formação do território brasileiro. Infelizmente, os herdeiros do legado indígena ainda sofrem os reflexos do odioso processo de destruição cultural ocorrido no Brasil. III - A Discriminação Racial no Brasil Com efeito, a discriminação destinada aos indígenas é o principal reflexo do processo de dizimação cultural por eles sofrida. Todavia, quiçá motivada pela grande diversidade étnica existente, a discriminação racial é geralmente omitida no Brasil. Historicamente, autoridades e, em muitas vezes, a própria população ignoram a influência negativa do racismo. Subsidiados na cultura que ainda impregna a sociedade brasileira, meios de comunicação, entes públicos e até mesmo o judiciário demonstram certa ‘tolerância’ ao definir ou coibir atitudes notoriamente discriminatórias. Na verdade, existem aqui formas sutis de racismo e de intolerância que, há mais 212 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 de um século após a abolição da escravidão, continuam a produzir efeitos insidiosos contra a inserção sócio-econômica de índios e afro-descendentes - algo realmente antagônico ante a estrutura social brasileira. Certamente a obscuridade do problema da discriminação é o principal entrave à evolução da discussão. Nessa linha segue o entendimento de Alexandre Vidal Porto (Artigo: Racismo brasileiro, sim. Alexandre Vidal Porto, assessor da Secretaria dos Direitos Humanos do Ministério da Justiça): ‘... existe um racismo brasileiro, não o da segregação legal nas escolas ou em transportes públicos como no apartheid sul-africano, ou que tampouco provoca distúrbios nas ruas do Rio Janeiro, como já provocou em Los Angeles. Mas um tipo de racismo e de intolerância próprios, que causam miséria e exclusão e com que parte considerável da população brasileira é forçada a conviver’. Essas manifestações veladas de discriminação, característica peculiar da sociedade brasileira, também são percebidas no âmbito dos meios de comunicação. É notória a influência da mídia na relação entre as pessoas. Hoje, os meios de comunicação são, de fato, grandes formadores de opinião dentro do mundo globalizado. Nesse sentido, devem, ou pelo menos deveriam, estarem atentos às evoluções e aos problemas inerentes à sociedade que abrangem, atuando, por assim dizer, como auxiliares do Estado na resolução de conflitos de comportamento. Corrobora tal pensamento, a Procuradora Federal dos Direitos do Cidadão, Maria Menezes de Farias (Trecho de palestra ministrada no Seminário: Direito à diferença e seu tratamento pela mídia Organizado pela Associação Comercial e Industrial de Uberaba) ‘Hoje, existe no país uma divergência cultural que pode auxiliar na formação do preconceito das pessoas. A mídia é uma grande formadora de opiniões e precisa estar atenta para estas questões que podem mudar o comportamento da sociedade’. Contudo, ao contrário do que deveria ser feito, as empresas de comunicação ocultam o problema da discriminação, deixando de incluir pessoas de outras raças - principalmente negros e índios - em seus veículos de exploração. Não bastasse isso, quando são apresentados, em regra, têm suas imagens apresentadas de forma negativa e pejorativa. Tal realidade dificulta a formação de uma cultura menos preconceituosa dentro da sociedade. Frente o contexto acima exposto, será fundamentado o presente parecer. III - Da ocorrência de dano moral na charge e nas declarações publicadas Compulsando os autos, vislumbra-se a ocorrência de ofensa a moral e dignidade da Comunidade indígena da localidade de Sede Trentin. Nesse tocante, reportando a função social dos meios de comunicação supramencionada, não há quaisquer dúvidas sobre a necessidade de indenização por danos morais daquela comunidade indígena. Ora, beira a irresponsabilidade o desenho e os dizeres publicados, haja vista, principalmente, o clima de conflito que pairava sobre aquela região. No que tange à charge, denota-se um caráter notoriamente tendencioso e consubstanciado aos interesses dos agricultores daquele município. Diferentemente do que sustentou o Juiz singular, não existe possibilidade de dupla interpretação da intenção do chargista. O elemento emblemático para tal conclusão encontra-se no próprio desenho. Senão vejamos. O conflito de interesses que originou a presente demanda residia na disputa entre R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 213 índios e agricultores da cidade de Chapecó. Os primeiros exigiam mais 912 hectares de uma área de terra de propriedade dos segundos, que, em contrapartida, além de indenização pelas benfeitorias realizadas, como previsto na Constituição Federal, pleiteavam o ressarcimento total dos prejuízos decorrentes da desapropriação. Conforme inclusive relatou o Demandado Amarildo, a irresignação dos proprietários de terra tinha como objeto a alegação de ilegitimidade de alguns índios para o pleito da terra, eis que, segundo sustentavam, esses estariam vivendo numa cultura distinta de sua original ou não eram indígenas autênticos. Nessa linha, com base no posicionamento defendido pelos colonos daquela região, foi formulada a charge. A inclusão de um índio munido com um aparelho de telefone celular no desenho corrobora o entendimento acima exposto. Do contrário, questiona-se: Qual seria a necessidade de incluir no desenho um índio com um aparelho de telefone celular? De fato, o chargista demonstra que aquele índio estava sendo acossado, não por estar pleiteando a terra que lhe é de direito, mas sim por tirar proveito da condição prevista constitucionalmente. Ao que transparece, seguindo a linha de raciocínio do chargista, o simples fato de o índio estar atento às inovações tecnológicas ocorridas na sociedade (e o telefone celular talvez configure o maior exemplo disso) o desvincularia de sua identidade cultural, comprometendo, por conseguinte, a obtenção dos direitos assegurados pela Constituição Federal. Nesse sentido, francamente, é um absurdo sugerir que o acesso dos silvícolas aos referidos avanços tecnológicos abalaria sua identidade e legitimidade para o pleito da terra. Assim, inobstante o respeito ao Juiz singular, não merece prosperar a interpretação de que o desenho objetivava tão-somente reconhecer a inteligência dos silvícolas. Concessa venia tal conclusão tange a inocência e, a contrario sensu, traz embutida a idéia de que os índios não são inteligentes. Não há dúvida, a intenção dos demandados foi, além de ironizar, ridiculizar a imagem dos índios da Comunidade Toldo Chinbangue, bem como ratificar o preconceito à cultura indígena. Outro ponto fundamental não enfrentado pela sentença a quo, refere-se às conseqüências da publicação rechaçada. Como demonstrado nos autos, a divulgação da charge gerou clima de intranqüilidade entre os índios da região, principalmente aqueles cujos filhos estavam matriculados em escolas fora da reserva. De registrar ainda que, em virtude do indiscutível conflito existente, qualquer manifestação maliciosa poderia acirrar os ânimos entre as partes, possibilitando um desfecho indesejado para discussão. Sob esse ponto, utiliza-se o próprio exemplo apresentado pelo Juiz a quo: O conflito de interesses entre latifundiários e o Movimento Sem Terra. É preciso recordar, no episódio entre ruralista e os colonos do Movimento Sem Terra em São Gabriel no Rio Grande do Sul, declarações e incitações ofensivas veiculadas em Rádios e folhetins da cidade por pouco não geraram um conflito civil, face o notório clima de animosidade preexistente. Não fosse a intervenção do aparelho estatal, bem como o clamor nacional por manifestações pacíficas, as conseqüências poderiam ter sido as piores. Por esses motivos, reitera-se a grande responsabilidade dos meios de comunicação 214 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 ao veicular esse tipo de informação, haja vista a forte influência que exercem no âmbito social. Em situações como acima, infelizmente, denota-se que o interesse das empresas de mídia está restrito unicamente à vantagem econômica proporcionada pela matéria jornalística, representada de forma efetiva na incrementação da venda de seus exemplares. No que concerne principalmente às minorias historicamente excluídas, deve-se iniciar um processo de revigoração da imagem pejorativa e negativa culturalmente criada pelas empresas de telecomunicações. Para tanto, é fundamental que os mecanismos de informação jornalística retomem a sua função de auxiliares do Estado na formação democrática da opinião pública, vinculando-se exclusivamente a critérios que garantam a imparcialidade e idoneidade da informação prestada. Tal objetivo será alcançado apenas a partir da inibição de práticas, respeitados os limites da censura e do direito à liberdade de expressão consagrado na Carta Magna, como a reportada nos autos. Ademais, é preciso atentar, a incitação à prática criminosa (Homicídio, artigo 121 do Código Penal) patenteada na charge ora repelida. Tal conclusão, resta inclusive confirmada, na indicação constante nos autos (fl. 187) de que os pais de crianças indígenas, após a publicação ‘jornalística’, temeram pela integridade física de seus filhos matriculados em escolas fora da reserva. Ora, essa constatação reforça a necessidade de condenação dos demandados, ainda mais frente a campanha nacional pelo desarmamento da população defendida pelas instituições do Estado, a iniciativa privada e própria mídia. O clamor pelo desarmamento da população tem como pano de fundo coibir a atividade criminosa no país, atingindo um dos pontos mais importante dessa cadeia: o tráfico de armas. Cadeia, pois, de fato, o que mantém o crime organizado e, em decorrência, fomenta a violência no Brasil, é o entrelaçamento existente entre os seus ramos de atuação (tráfico de entorpecentes, tráfico de armas, lavagem de dinheiro, etc.). Em síntese, a intenção política de tal campanha é viabilizar a diminuição das taxas de violência no Brasil. Frente a essa constatação, é realmente lamentável que um jornal - que, teoricamente, deveria estar imbuído na campanha contra a violência, assumindo, assim, a condição social a ele atribuída - faça incitação a prática criminosa como a representada na charge em comento. Em assim sendo, a condenação dos demandados se impõe nesse caso. Relativamente ao Vereador Amarildo Sperandio de Bairros, é preciso consubstanciar além dos argumentos acima, o fato de não estar protegido pela benesse da imunidade parlamentar. O inciso VIII, do artigo 29, da Constituição Federal dispõe o seguinte: ‘Art. 29 O Município reger-se-á por lei orgânica, votada em dois turnos, com o interstício mínimo de dez dias, e aprovada por dois terços dos membros da Câmara Municipal, que promulgará, atendidos os princípios estabelecidos nesta Constituição, na Constituição do respectivo Estado e os seguintes preceitos: VIII - inviolabilidade dos Vereadores por suas opiniões, palavras e votos no exercício do mandato e circunscrição do Município;’ Como exaustivamente demonstrado pelo Recorrente, a incidência da inviolabilidade parlamentar tem como requisito o nexo de causalidade entre manifestação de vontade R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 215 e o exercício do mandato do demandado. Destarte, ante o caráter pessoal e ofensivo das declarações proferidas pelo referido Vereador consubstanciado na ausência de respaldo parlamentar - já que as declarações foram proferidas fora do âmbito da Câmara Municipal e desvinculadas as funções políticas - a condenação pelos danos causados é medida que se impõe no caso em tela. IV - Quanto ao Direito de Indenização As tradições, a cultura e o conhecimento indígena integram o patrimônio cultural brasileiro, vez que se referem à identidade, à ação e à memória de um dos grupos formadores da sociedade, cabendo ao Estado a proteção desse patrimônio cultural, punindo-se e evitando-se, na forma da lei, quaisquer danos e ameaças a eles relativos. Como demonstrado, as declarações e charge acima ofenderam a honra e dignidade dos índios daquela comunidade ora representada. Conforme expõe Osmar Veronese (Subscritor de ação indenizatória de danos morais em Santo Ângelo - RS promovida contra Rádio Cruz Alta e Ruberval Alves Schutz em out/2002): ‘...a imprensa é essencial num Estado Democrático de Direito, há ela de balizar sua atividade no estrito parâmetro legal, arcando com as sanções previstas sempre que invadir a esfera da pessoa.’ Logo ‘o direito de expressão caminha lado a lado do direito da inviolabilidade da honra e imagem das pessoas, e aquele não é absoluto tendo por limite a observância dos direitos fundamentais insculpidos na Carta Magna. Dessa forma, o direito do indivíduo de dizer o que pensa, não exime de ser responsabilizado pelas ofensas irrogadas a outrem, de forma desarrazoada. O regime democrático garante o direito à liberdade de expressão. Ta1 prerrogativa, contudo, não se traduz no propósito de assegurar a impunidade da imprensa.’(Fls. 184 dos autos originais) A honra e dignidade, alguns dos maiores bens que um indivíduo pode possuir, estão protegidos pela Constituição Federal, sendo a última inclusive um dos fundamentos elencados no artigo 1º da Lei Fundamental, consoante se infere o dispositivo a seguir transcrito: ‘Artigo 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado democrático de direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo político.’ No tocante à dignidade da pessoa humana, Ingo Wolfgang Sarlet (SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 2ª Edição. Editora Livraria do Advogado 392p) define: ‘Inicialmente, cumpre salientar que a dignidade, como qualidade intrínseca da pessoa humana, é algo que simplesmente existe, sendo irrenunciável e inalienável, na medida em que constitui elemento que qualifica o ser humano como tal e dele não pode ser 216 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 destacado, de tal sorte que não se pode cogitar na possibilidade de determinada pessoa ser titular de uma pretensão a que lhe seja concedida a dignidade’. Consubstanciada nesse princípio, a honra também é protegida pela Carta Magna, segundo artigo 5º, inciso X, in verbis: ‘Artigo 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (omissis) X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;’ Nessa esteira, ‘a honra constitui um bem jurídico de enorme relevância e, como tal, encontra-se ínsita na própria idéia de dignidade do próximo, conceito nuclear do Estado Democrático de Direito. A honra não é, portanto, outra coisa que o conjunto daquelas qualidades que se atribuem à pessoa, seja ela física ou jurídica, e que são necessárias para o cumprimento dos papéis específicos de que estão incumbidas’. (Subscritor de ação indenizatória de danos morais em Santo Ângelo - RS promovida contra Rádio Cruz Alta e Ruberval Alves Schutz em out/2002) Ora, conforme o exaustivamente demonstrado, houve flagrante ofensa a honra e dignidade dos silvícolas daquela região Catarinense, reportada na charge pejorativa, que inclusive incita a prática de crime contra índios, bem como nas declarações discriminatórias formulados pelo Vereador demandado. Em assim sendo, subsidiada nas razões supra, bem como no princípio da igualdade insculpido na Constituição Federal, a Comunidade indígena Toldo Chinbangue merece receber indenização pelas ofensas morais formuladas pelos demandados. Por fim, pergunta este agente: Será que a decisão teria sido a mesma se no lugar do indígena, na charge, estivesse um judeu? Ante o exposto, opina o Ministério Público Federal pelo provimento do recurso, determinando a reforma da decisão que rejeitou o pedido de indenização por danos morais requerido em primeira instância.” Com efeito, o parecer antes transcrito, cujos fundamentos adoto, demonstrou a configuração dos pressupostos que autorizam a procedência da ação. No que concerne à legitimidade da Sociedade Jornalística, bem andou o ilustre Magistrado em reconhecê-la, à luz do disposto no art. 49, § 2º, da Lei nº 5.250/67 e na Súmula 221 do Eg. STJ. É de ser rejeitada, também, a alegada imunidade do apelado Amarildo, em razão de sua condição de Vereador. Ora, os fatos perpetrados pelo apelado não guardam relação de causalidade com o exercício da função parlamentar, não podendo, portanto, R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 217 servir de pretexto à incidência do disposto no art. 29, VIII, da CF/88. Nesse sentido, orienta-se a jurisprudência do Eg. STJ, verbis: “RHC. CONSTITUCIONAL. PENAL. IMUNIDADE. VEREADOR. Os vereadores, à semelhança dos deputados e senadores, no exercício da respectiva atividade, gozam de imunidade a fim de ser desenvolvido, sem peias, o mandato. Cumpre desenvolvê-la na Câmara Municipal. Inadequado, em princípio, valer-se da imprensa, notadamente quando a referência desairosa a terceiros.” (RHC 7910, Processo nº 1998.00.66798-9, rel. Luiz Vicente Cernichiaro, STJ, 6ª Turma, decisão 25.11.98) Ora, é inegável que, no contexto descrito na r. sentença, a fls. 164/5, a declaração do Vereador, bem como a charge publicada no Jornal Diário do Iguaçu, apresentaram caráter ofensivo à população indígena local, impondo-se a reparação pelo dano moral, sendo digno de louvor a atuação vigilante do Parquet. A respeito, deliberou o Eg. STJ, verbis: “CIVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL. LEI DE IMPRENSA. NOTÍCIA JORNALÍSTICA. ABUSO DO DIREITO DE NARRAR. ASSERTIVA CONSTANTE DO ARESTO RECORRIDO. IMPOSSIBILIDADE DE REEXAME NESTA INSTÂNCIA. MATÉRIA PROBATÓRIA. ENUNCIADO Nº 7 DA SÚMULA/STJ. DANO MORAL. DEMONSTRAÇÃO DE PREJUÍZO. DESNECESSIDADE. VIOLAÇÃO DE DIREITO. RESPONSABILIDADE TARIFADA. DOLO DO JORNAL. INAPLICABILIDADE. NÃO RECEPÇÃO PELA CONSTITUIÇÃO DE 1988. PRECEDENTES. RECURSO DESACOLHIDO. 1. Tendo constado do aresto que o jornal que publicou a matéria ofensiva à honra da vítima abusou do direito de narrar os fatos, não há como reexaminar a hipótese nesta instância por envolver análise das provas, vedada nos termos do enunciado nº 07 da Súmula/STJ. 2. Dispensa-se prova de prejuízo para demonstrar a ofensa ao moral humano, já que o dano moral, tido como lesão à personalidade, ao âmago e à honra da pessoa, por vez é de difícil constatação, haja vista os reflexos atingirem parte muito própria do indivíduo - seu interior. De qualquer forma, a indenização não surge somente nos casos de prejuízos, mas também pela violação de um direito. 3. Agindo o jornal internacionalmente, com o objetivo de deturpar a notícia, não há que se cogitar, pelo próprio sistema da Lei de Imprensa, de responsabilidade tarifada. 4. A responsabilidade tarifada da lei de Imprensa não foi recepcionada pela Constituição de 1988, não se podendo admitir, no tema, a interpretação da lei conforme a Constituição.” (REsp nº 85019, Processo nº 1996.00.00726-8, STJ, 4ª Turma, Rel. Sálvio de Figueiredo Teixeira, DJ 18.12.98, p. 291) Ademais, in casu, não há sequer violação à liberdade de imprensa, garantida pelos arts. 5º, IX, e 220, caput, e § 1º, todos da CF/88, pois 218 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 tais garantias constitucionais encontram limites na própria Lei Maior quando cometidos abusos, como no caso em apreço. Nesse sentido, é bastante a leitura dos depoimentos de fls. 116/121, para a constatação do dano ocasionado à comunidade indígena local. Ao proferir o seu voto na Suprema Corte dos Estados Unidos, no julgamento Chambers v. Florida, 309 U.S. 227, em 1940, assinalou o Justice Hugo Black, verbis: “Under our constitutional system, courts stand against any winds that blow as havens of refuge for those who might otherwise suffer because they are helpless, weak, outnumbered, or because they are nonconforming victims of prejudice and public excitement. Due process of law, preserved for all by our Constitution, commands that no such practice as that disclosed by this record shall send any accused to his death. No higher duty, no more solemn responsibility, rests upon this Court, than that of translating into living law and maintaining this constitutional shield deliberately planned and inscribed for the benefit of every human being subject to our Constitution - of whatever race, creed, or persuasion.” (In Mr. Justice Black and the Bill of Rights, by Irving Dilliard, New York, 1963, p. 69) Em outra obra, o mesmo Justice Hugo Black acrescentou, verbis: “Creio ter deixado clara a minha convicção de que a Constituição garante absoluta liberdade de palavra, e não hesitei em aplicar a Primeira Emenda para proteger idéias que detesto. Tenho também votado, constantemente, na Corte para anular, por inconstitucionais, todas as leis contra a obscenidade e a difamação. Ao assegurar absoluta proteção à liberdade de palavra, entretanto, tive sempre o cuidado de estabelecer diferença entre palavra e conduta. Assim, logo no princípio do meu voto vencido, no caso Beauharnais versus Illinois, 343 U.S. 250, julgado em 1952, assinalei que ‘a condenação assenta no conteúdo do panfleto, e não na época, no modo ou no lugar da sua distribuição’. Tal distinção, a que desejo devotar o restante deste capítulo, foi muito bem descrita pelo Juiz Douglas, no seu voto vencido, no caso Roth versus United States, 354 U.S. 476 (1957), no qual declarou: ‘A liberdade de expressão pode ser suprimida, se e na medida em que estiver tão intimamente unida à ação ilegal, seja parte inseparável dela’.” (In A Constitutional Faith, Alfred A. Knopf, New York, 1968, p. 53) R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 219 Dessa forma, sendo incontroversos os fatos alegados na inicial, impõe-se o provimento do apelo, condenando os apelados no pagamento da quantia de R$ 100.000,00 como reparação por danos morais à comunidade indígena, atualizados monetariamente desde a citação, juros de mora, a partir da citação, na forma postulada à fl. 16, a e b, acrescido das despesas processuais e honorários advocatícios que fixo em 10% sobre o valor da condenação. Por esses motivos, conheço da apelação, e dou-lhe provimento. É o meu voto. AGRAVO DE INSTRUMENTO Nº 2003.04.01.038645-3/PR Relator: O Exmo. Sr. Des. Federal Luiz Carlos de Castro Lugon Agravante: Mario Ferreira Leite Advogado: Dr. Luís Henrique Martins dos Anjos Agravado: Nilson Souza Advogado: Dr. Walter Barbosa Bittar Interessada: União Federal Advogado: Dr. Luís Henrique Martins dos Anjos EMENTA Agravo de instrumento. Administrativo. Atos lesivos praticados por agentes do Estado no exercício da função. Ônus do Estado. Ressarcimento posterior. 1. Conquanto também os membros do Ministério Público possam ser responsabilizados pessoalmente por atos que pratiquem no exercício de seu munus ou nas funções típicas, quando procedam com dolo ou fraude 220 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 (CPC, art. 85), a ação judicial, diante do artigo 37, § 6º, da Constituição Federal, deverá ser dirigida contra a Fazenda Pública, dada a condição de agentes públicos que aqueles envergam. 2. O ônus de indenizar recai sobre o Estado; a ação regressiva somente é possível se identificado o dolo ou a fraude na autuação do representante do parquet. Assim, o ônus recai sobre o Estado, num primeiro momento. O dano causado pelo agente público deverá ser ressarcido pela pessoa jurídica de direito público com o posterior regresso. ACÓRDÃO Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide a Egrégia 3ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por unanimidade, dar provimento ao agravo de instrumento, nos termos do relatório, voto e notas taquigráficas que ficam fazendo parte integrante do presente julgado. Porto Alegre, 2 de dezembro de 2003. Des. Federal Luiz Carlos de Castro Lugon, Relator. RELATÓRIO O Exmo. Sr. Des. Federal Luiz Carlos de Castro Lugon: Trata-se de agravo de instrumento no qual o agravante pede a suspensão de decisão que determinou a sua citação em ação indenizatória em face de instauração de inquérito civil público para apuração de suposta prática de improbidade administrativa pelo agravado. Sustenta que somente a União deve responder diretamente por eventuais danos morais, podendo, se for o caso, mover ação regressiva para ressarcir-se. Deferido o efeito suspensivo postulado. Sem contra-razões, retornaram os autos para julgamento. É o relatório. VOTO O Exmo. Sr. Des. Federal Luiz Carlos de Castro Lugon: Conquanto também os membros do Ministério Público possam ser responsabilizados pessoalmente por atos que pratiquem no exercício de seu munus ou nas R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 221 funções típicas, quando procedam com dolo ou fraude (CPC, art. 85), a ação judicial, diante do artigo 37, § 6º, da Constituição Federal, deverá ser dirigida contra a Fazenda Pública, dada a condição de agentes públicos que aqueles envergam. Sobre o tema leciona Bandeira de Mello, citado por Yussef Cahali: “A atividade funcional do estado, como ser abstrato, realidade acidental, formada de relações de seres substanciais, os seres humanos, se efetiva mediante a ação destes, pessoas físicas, seus agentes, mas no seu nome e por sua conta, como centro de atribuições, para ser objeto do exercício de poderes e cumprimento de deveres, que exteriorizam a personalidade do Estado, como ser capaz de direitos e obrigações... A manifestação da vontade de ditos agentes, segundo as respectivas atribuições, forma a vontade unitária da pessoa jurídica, Estado-sociedade, pois são a eles imputadas como sua vontade”. (in: Responsabilidade Civil do Estado, 2ª ed. S. Paulo:Malheiros, 1995. p.11) Na visão de Yussef Said Cahali: “No contexto da atividade não-jurisdicional dos órgãos vinculados ao Poder Judiciário insere-se a atividade do Ministério Público, cujos membros, no desempenho dos misteres que lhes são cometidos, podem, no exercício da função, provocar danos a terceiros, determinantes de responsabilidade indenizatória do Estado”. (in: Responsabilidade Civil do Estado, 2ª ed. S. Paulo:Malheiros, 1995. p.645) Com efeito, a culpa é eivada de subjetivismo na sua aferição dando azo a interpretações as mais variadas o que leva ao natural acanhamento da atuação do membro do Ministério Público. Ao que tudo indica a sociedade não espera um Ministério Público retraído e receoso, sendo certo que ele é o único agente público que realmente é livre para agir, na acepção da palavra, em prol da coletividade, sem qualquer ingerência externa - só está adstrito à sua consciência e à lei. A regra norteadora da responsabilidade civil estatal tem sede no § 6° do art. 37 da Constituição da República: “As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.”. Assim, o ônus recai ao Estado e ao agente, sendo que o dano causado pelo agente público deverá ser ressarcido pela pessoa jurídica de direito público com o posterior regresso. Hely Lopes Meirelles assevera que: “Todavia, o dispositivo constitucional veda a transferência dessa responsabilidade ao servidor imputável, 222 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 impondo seu chamamento a juízo não pelo lesado, mas pela entidade interessada em ressarcir-se, a qual, para tanto, deverá demonstrar a culpa do referido servidor, em ação autônoma”, concluindo que: “O legislador constituinte bem separou as responsabilidades: o Estado indeniza a vítima; o agente indeniza o Estado, regressivamente”. (in Direito Administrativo Brasileiro, 18ª ed., pág. 370) De forma incisiva obtempera José Afonso da Silva: “A obrigação de indenizar é da pessoa jurídica a que pertencer o agente. O prejudicado há que mover a ação de indenização contra a Fazenda Pública respectiva ou contra a pessoa jurídica privada prestadora de serviço público, não contra o agente causador do dano. O princípio da impessoalidade vale aqui também”. Após referir que o terceiro prejudicado não tem ônus de provar culpa ou dolo do agente, menciona que qualquer dos dois “é problema das relações funcionais que escapa à indagação do prejudicado. Cabe à pessoa jurídica acionada verificar se seu agente operou culposa ou dolosamente para o fim de mover-lhe ação regressiva assegurada no dispositivo constitucional, visando a cobrar as importâncias despendidas com o pagamento da indenização. Se o agente não se houve com culpa ou dolo, não comportará ação regressiva contra ele, pois nada tem de pagar”. (in Curso de Direito Constitucional Positivo, 15ª ed., São Paulo, Malheiros,1998) Como visto, o posicionamento doutrinário é no sentido da responsabilização do Estado e posterior do membro do Ministério Público, à guisa de regresso. De sua parte, o Supremo Tribunal Federal, em julgamento do RE nº 228.977-2 (rel. Min. Néri da Silveira, DJ 12.04.2002), parece ter chancelado o posicionamento de que os agentes políticos responderão apenas regressivamente, em função da carga representativa da sua atuação, embora o recurso extremo tratasse de atuação de magistrado, cujo tratamento é análogo ao membro do Ministério Público. Do voto condutor, retira-se o seguinte excerto, citando o saudoso Hely Lopes Meirelles (in Direito Administrativo Brasileiro, 18ª ed., pág. 72): “Os agentes políticos exercem funções governamentais, judiciais e quase-judiciais, elaborando normas legais, conduzindo os negócios públicos, decidindo e atuando com independência nos assuntos de sua competência. São as autoridades públicas supremas do governo e da Administração na área de sua atuação, pois não estão hierarquizadas, sujeitando-se apenas aos graus e limites constitucionais e legais R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 223 de jurisdição. Em doutrina, os agentes políticos têm plena liberdade funcional, equiparável à independência dos juízes nos seus julgamentos e, para tanto, ficam a salvo da responsabilidade civil por seus eventuais erros de atuação, a menos que tenham agido com culpa grosseira, má-fé ou abuso de poder. ‘Nesta categoria encontram-se os Chefes do Executivo (Presidente da República, Governadores e Prefeitos) e seus auxiliares imediatos (Ministros e Secretários de Estado e de Município); os membros das Corporações Legislativas (Senadores, Deputados e Vereadores); os membros do Poder Judiciário (Magistrados em geral); os membros do Ministério Público (Procuradores da República e da Justiça, Promotores e Curadores Públicos)....’ ‘2.1. Tais agentes, portanto, não agem em nome próprio, mas em nome do Estado, exercendo função eminentemente pública, de modo que não há como lhes atribuir responsabilidade direta por eventuais danos causados a terceiros no desempenho de suas funções. ... 2.2. Ora, o § 6º do art. 37 é expresso ao estabelecer que as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa. O texto constitucional não restringiu a responsabilidade do Estado aos atos praticados pelos funcionários públicos como na 224 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 DIREITO PENAL E PROCESSUAL PENAL R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 225 226 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 MANDADO DE SEGURANÇA Nº 2000.04.01.027904-0/PR Relator: O Exmo. Sr. Des. Federal José Germano da Silva Impetrantes: Edson Junji Torihara e outro Advogados: Drs. Alberto Zacharias Toron e outros Impetrado: Juízo Substituto da 1ª Vara Federal Criminal de Foz do Iguaçu/PR Interessado: Ministério Público Advogado: Dr. Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz EMENTA Mandado de segurança. Inquérito policial. Advogado. Acesso. Necessidade de sigilo. Justificativa. Ordem denegada. 1. O direito do advogado a ter acesso a inquérito policial não é absoluto, devendo ceder diante da necessidade do sigilo na investigação, examinada no caso concreto. 2. Tratando-se de exceção à regra geral, a autoridade policial deverá apresentar as razões da necessidade do sigilo. 3. Ausência de direito líquido e certo. Ordem denegada. ACÓRDÃO Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide a Egrégia Primeira Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por maioria, denegar a ordem, nos termos do relatório e notas taquigráficas que ficam fazendo parte integrante do presente julgado. R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 227 Porto Alegre, 6 de fevereiro de 2001. Des. Federal José Germano da Silva, Relator. RELATÓRIO O Exmo. Sr. Des. Federal José Germano da Silva: Trata-se de mandado de segurança impetrado por Edson Junji Torihara e outro contra ato do MM. Juiz Federal da 1ª Vara Criminal Federal de Foz do Iguaçu/PR, que indeferiu pedido de vista e extração de cópias, em cartório, dos autos do inquérito policial nº 98.101.1108-8 (IPL/PF nº 199/98). Sustentam os impetrantes, em síntese, que a decisão atingiu o “direito líquido e certo previsto no artigo 7º, XIII e XIV, da Lei nº 8.906/94, que garante ao advogado constituído o direito de examinar e extrair cópias dos autos de inquérito policial, ainda que esteja sob sigilo”. (fl. 03) A liminar foi indeferida à fl. 38, por não ter sido verificada, pelo menos em nível de cognição sumária, relevância na fundamentação. Inconformados, os impetrantes interpuseram agravo regimental, no qual, sustentam, em síntese, que é evidente a “patente violação a direito líquido e certo dos agravantes, uma vez que fere frontalmente a garantia constitucional do livre exercício profissional, além de violar expresso texto inserto em Lei Federal especial (artigo 5º, inciso XIII, da Constituição Federal e artigo 7º, incisos I, XIII e XIV, da Lei nº 8.906/94)”. (fl. 47) O Regimental foi improvido. (fls. 55-59) O Ministério Público Federal ofertou seu parecer (fls. 62-67), opinando pela denegação da ordem. À fl. 69 dos autos, a Ordem dos Advogados do Brasil peticionou requerendo sua admissão como assistente no processo, forte no art. 49 e parágrafo da Lei nº 8.906/94. Intimados para falar sobre o pedido de assistência, os impetrantes se manifestaram favoráveis ao ingresso da Ordem no feito e o Ministério Público Federal pelo indeferimento do pedido de assistência. É o relatório. VOTO O Exmo. Sr. Des. Federal José Germano da Silva: Preliminarmente, indefiro o pedido de assistência formulado pela Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional do Rio Grande do Sul (OAB-RS), porquanto o ins228 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 tituto da assistência não se amolda aos limitados contornos do mandado de segurança, porque vai de encontro à própria natureza de seu procedimento, que visa à celeridade e efetividade da prestação jurisdicional. (Precedentes: - STJ, MS 5602, processo 1998.00.02216-3/DF, Primeira Seção, Rel. Min. Adhemar Maciel, DJ 26.10.98, p. 04; - TRF-4ª Região, AI nº 94.04.17575-7/PR, Rel. Juíza Marga Barth Tessler, Rel. p/Acórdão Juiz Amir José Finocchiaro Sarti, Quinta Turma, DJ 22.05.96, p. 33505) Como bem ressaltou o Ministério Público Federal, o legislador de 1973 afastou o instituto da intervenção de terceiros, especialmente a assistência, do rito do writ of mandamus. Explicita a douta Procuradora Regional – Dra. Irene Coifman Branchtein: “Tanto que, através da Lei 6.071/74, cuidou de alterar a antiga redação do art. 19 da Lei 1.533/51, que passou a dispor que ‘aplicam-se ao processo do mandado de segurança os artigos do CPC que regulam o litisconsórcio’.” E conclui o raciocínio: “Ora, se o legislador quisesse manter a possibilidade da assistência no mandado de segurança, como antes expressamente admitia a Lei, certamente teria consignado tal entendimento na alteração feita, o que, como se vê, não ocorreu”. (fl. 74) Por outro lado, a Lei nº 8.906/94 (art. 49) não pode sobrepor-se à lei processual aplicável à espécie, que regula o rito do mandado de segurança e não acolhe a assistência. Quanto ao mérito, melhor sorte não socorre os impetrantes. Inicialmente, deve-se ressaltar que há uma antinomia aparente de princípios (conflito entre a garantia constitucional do livre exercício profissional, art. 5º, XIII, com o inciso XXXIII, in fine, do mesmo artigo, que trata do direito à informação, ressalvados os casos em que o sigilo seja imprescindível). Em tais casos, o intérprete e aplicador do direito deve eleger qual o interesse preponderante para o caso específico e aplicá-lo, sem que, com isso, esteja descuidando dos demais princípios norteadores da matéria. Cabe ao aplicador do direito, em casos que tais, valer-se do princípio da proporcionalidade mencionado pelo Magistrado a quo, útil instrumento para a solução de conflitos, de tensão entre princípios. Na lição do Mestre Paulo Armínio Tavares Buechele, in O princípio da Proporcionalidade e a Interpretação da Constituição, Ed. Renovar, 1999, 194 p.: R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 229 “... Portanto, é no conflito de direitos, concretamente revelado e sem que se possam hierarquizá-los, que o Princípio da Proporcionalidade se mostrará de extrema praticidade, permitindo ao intérprete (juiz, advogado, promotor ou, mesmo, ao simples cidadão) definir qual dos interesses contrapostos deverá preponderar naquela situação específica, na medida em que melhor atenda aos requisitos da adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito.”. (p. 169) O inquérito policial é procedimento administrativo anterior ao processo. Situa-se em fase pré-processual e serve de instrumento de levantamento de elementos que apontem a ocorrência de um delito, a materialidade e sua autoria. Assim, não se lhe aplicam os princípios processuais constitucionais do contraditório e da ampla defesa. O i. Prof. Tourinho Filho assim discorre sobre o tema (in Processo Penal, Vol. 1, Ed. Saraiva, São Paulo, 1998, 20ª ed.): “Com o sigilo haverá restrição à defesa? Evidentemente, não. Se no inquérito não há acusação, claro que não pode haver defesa. E, se não pode haver defesa, não há cogitar-se de restrição de uma coisa que não existe. Por isso mesmo os Advogados dos indiciados, quando se fizer necessário o sigilo, não podem acompanhar os atos do inquérito policial. Este é mera colheita de provas, mero procedimento informativo sobre o fato infringente da norma e sua autoria. O jus accusationis não se exerce nessa fase. A acusação inicia-se com o oferecimento da denúncia ou queixa. Proposta a ação, sim, é que deve haver o regular contraditório, erigido, aliás, entre nós, à categoria de dogma constitucional, como se infere do inc. LV do art. 5º da CF (a propósito, RT, 522/396, e DJU, 16.09.77, p. 628). Argumenta-se, com base nesse dispositivo constitucional, que, mesmo na fase do inquérito, a defesa deverá ser plena. Há, entretanto, manifesto equívoco. O texto constitucional fala em ‘acusados’, e no inquérito policial não há ‘acusados’, e sim ‘indiciados’. O que o legislador quis dizer e o que realmente diz o texto legal é que em juízo, isto é, iniciada a acusação, Defesa e Acusação devem situar-se no mesmo plano, com os mesmos direitos, embora colocados em pólos opostos, e, então, a defesa será ampla, ‘com todos os recursos essenciais a ela ...’. E em que consistirá essa ampla defesa? Responde o saudoso Frederico Marques: em resguardar os ‘direitos fundamentais’ do indiciado, como é, por exemplo, o direito à liberdade, pois a Polícia não pode, sem autorização judicial, prender quem quer que seja a não ser em flagrante delito”. (pp. 210-211) Embora o ilustre jurista mais adiante afirme que “Como o Estatuto da Advocacia” – referindo-se à Lei nº 8.906/94 – “é lei federal, e posterior ao CPP, logo, o sigilo dos inquéritos praticamente desapareceu”. Não, todavia, quando houver evidente necessidade de se o manter, o que é também, como visto acima, dispositivo constitucional, e que se resolve 230 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 por meio do princípio da proporcionalidade já explicitado. Veja-se, pois, que o sigilo é da natureza do inquérito policial, quando o Juiz e o Ministério Público entenderem que o acesso aos autos configurará em um desserviço à apuração dos fatos ou prejudicar o interesse da sociedade. Como bem salientou a douta Procuradora Regional da República – Dra. Heloísa Pêgas Morganti – em seu parecer (fls. 62-67), “... Tal medida não afronta o direito do advogado em ter vista e cópia do procedimento investigatório, com base no artigo 7º, incisos XIII e XIV, da Lei nº 8.906/94, como diz a impetração, visto estar adequado aos preceitos constitucionais do art. 5º, inciso XXXIII e LX, ...”. Tal fato evidencia-se pela simples leitura dos dispositivos citados: “XXXIII – todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado”. “LX – a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem”. Assim o entendimento dos comentaristas da Lei nº 8.906/94, que passo a transcrever: “Direito a exame de processos e documentos Os incisos XIII a XVI, do artigo 7º, minudenciam as hipóteses mais comuns do direito de acesso e exame de inquéritos e processos judiciais ou administrativos findos ou em andamento e documentos, com ou sem procuração, nos órgãos públicos ou judiciários. A única restrição é quando estejam em regime de sigilo, previsto em lei. É a lei que estabelece, caso a caso, o regime de sigilo, para prevenir dano irreparável aos direitos, à imagem, à reputação, à intimidade das pessoas, como ocorre com os conflitos do status familiar. A possibilidade do exame, sem procuração específica, justifica-se. O advogado pode estar ante situação de urgência ou necessita de exame prévio, para decidir se aceita ou não o patrocínio da causa. O direito de ter vista dos processos é mais abrangente do que o de simples exame. Pressupõe o patrocínio da causa e é imprescindível para o seu desempenho. Em nenhuma hipótese pode ser obstado, nem mesmo quando em regime de sigilo. O direito de vistas associa-se ao de retirar os processos do cartório ou da repartição competente, para poder manifestar-se nos prazos legais. A obstrução é crime, inclusive por abuso de autoridade, além da responsabilidade civil do infrator desse preceito legal.” (in CoR. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 231 mentários ao Novo Estatuto da Advocacia e da OAB, Paulo Luiz Neto Lôbo, co-edição Conselho Federal da OAB e Brasília Jurídica, Brasília-DF, 1994, pp. 55-56) – (grifei) Vê-se, pois, que o nobre Conselheiro da OAB faz a distinção, afirmando que o direito de ter vista é mais abrangente que o de simples exame. Neste sim, caso presente, o regime de sigilo é previsto em lei e se mantém. Ainda da doutrina é oportuno destacar: “47. Exame dos autos Os direitos inscritos no inciso XII do art. 7º já existiam no inciso XIV do anterior Estatuto, havendo sido acrescido, neste atual, o direito de exame dos autos aos órgãos do Executivo e do Legislativo, ampliando os poderes do advogado, que poderá, assim, examinar também autos de processos administrativos (em sentido amplo), já que o direito se estende, também, a processos que corram perante a administração e perante as casas do Legislativo. Quando o dispositivo fala em órgãos do Poder Judiciário, da administração pública e do Legislativo, refere-se, é lógico, a órgãos destes poderes de qualquer hierarquia, e em qualquer esfera, municipal, estadual ou federal. Há ainda duas observações a fazer: o advogado tem este direito, mesmo sem ter procuração da parte interessada, mas, por outro lado só poderá, nestas condições, ter acesso a processos que não estejam sujeitos a sigilo ou, conforme o caso, correndo em segredo de justiça. É claro, porém, que tendo procuração poderá manusear qualquer processo, pois tem legitimidade para tal, oriunda do mandato. Agora, a vista não poderá ser negada nem mesmo sob a alegação de que os autos ‘estão conclusos’ ao magistrado.” (in Comentários ao Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, Orlando de Assis Corrêa (Organizador), AIDE Editora, pp. 53-54) Como visto, este comentarista também destaca a situação em que há necessidade de sigilo. Logo, o direito do advogado de ter acesso aos autos do inquérito policial não é absoluto como querem fazer crer os impetrantes. Deve se submeter ao interesse maior, qual seja o sucesso na apuração de delitos que devem ser reprochados e punidos. O direito do advogado de ter acesso a inquérito policial, repito, não é absoluto, devendo ceder diante da necessidade do sigilo na investigação, examinada no caso concreto. Tratando-se de exceção à regra geral, a autoridade policial deverá apresentar as razões da necessidade do sigilo. Tal situação se afigura no presente caso, uma vez que tanto a autoridade policial quanto a apontada autoridade coatora justificaram a necessidade 232 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 de se manter o sigilo dos inquéritos. Conforme se colhe das informações da autoridade apontada coatora, segundo o Magistrado, a manutenção do sigilo se apresenta indispensável tanto para resguardar as informações como também para a proteção de todos os envolvidos. Destacou, ainda, que a gravidade dos fatos investigados, o número de inquéritos policiais que apuram o cometimento de crimes de evasão de divisa/sonegação fiscal (212 inquéritos), que obrigaram a autoridade policial a seguir uma linha de investigação padrão, o montante envolvido na ordem de 10 bilhões de reais, através da fronteira de Foz do Iguaçu/PR, o risco à integridade física de todos que atuam nas investigações (Policiais, AFRFs, Procuradores da República e Magistrados – o automóvel de um dos Procuradores foi baleado e foram-lhe enviadas duas cartas com suspeita de conterem explosivos, mais as ameaças feitas a outro), tudo isso demonstra à saciedade a necessidade de se manter o sigilo dos atos investigatórios. Caso contrário, correr-se-á o risco de, no mínimo, ver-se prejudicado todo o trabalho desenvolvido por vários órgãos públicos, o prejuízo de todo o esforço desenvolvido em prol da coletividade, da sociedade. Esta Corte já teve oportunidade de se manifestar em processos análogos e trago a seguinte ementa, ilustrativa no conteúdo, da e. 2ª Turma: “MANDADO DE SEGURANÇA. INQUÉRITO POLICIAL. SEGREDO DE JUSTIÇA. VISTA DOS AUTOS. ART. 20 DO CPP. AUSÊNCIA DO DIREITO LÍQUIDO E CERTO INVOCADO. ART. 7º, INCISO XIV, DA LEI 8.906/94, ART. 5º, INCISO XXXIII, DA CF/88. Em que pese no inciso XIV do art. 7º do Estatuto da OAB estar previsto o direito do advogado de acesso aos autos de inquérito policial, bem como o de copiar peças e tomar apontamentos do mesmo, a questão em debate comporta solução singela, porquanto a Constituição Federal, ao mesmo tempo que consagra a inviolabilidade dos atos dos advogados no exercício da profissão, dispõe em seu art. 5º, inciso XXXIII, que será garantido o sigilo quando imprescindível à segurança da sociedade e do Estado. O fato das investigações correrem em segredo de justiça não macula o princípio constitucional da ampla defesa, haja vista que na fase inquisitorial não se cogita da incidência deste princípio, tampouco o do contraditório e o do devido processo legal, não vigendo o in dubio pro reo, até porque não há acusação formalizada, inexistindo, portanto, relação processual que reclame a observância aos já referidos princípios. Corrobora este entendimento a própria natureza inquisitiva e sigilosa do inquérito, que se caracterizou por ser um procedimento informativo sobre o fato e sua provável autoria, consubstanciando-se numa mera proposta de trabalho, direcionada ao dominus litis. Conforme a lição de Mirabete, o inquérito policial ‘...constitui-se em um dos poucos R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 233 poderes de autodefesa que é reservado ao Estado na esfera da repressão ao crime, com caráter nitidamente inquisitivo, em que o réu é simples objeto de um procedimento administrativo, salvo em situações excepcionais em que a lei o ampara (formalidades do auto de prisão em flagrante, nomeação de curador a menor, etc.).’. O sigilo do inquérito policial necessário à elucidação do fato ou exigido pelo interesse da sociedade e, no caso presente, pelo que ressalta dos autos, por ambos os motivos, ‘tem ação profilática e preventiva, tudo em benefício do Estado e do cidadão’ (José Carlos de Lucca, RT 699/429-30). Saliente-se, ainda, que havendo disposições constitucionais conflitantes, sendo possível a eleição de qualquer delas ao deslinde da questão debatida, cabe aferir qual terá maior relevância, à luz do contexto fático, - do qual se depreende quais são os interesses preponderantes -, a justificar o sacrifício de outra, com menor relevância. Entendo que, in casu, considerando que no inquérito policial prepondera o segredo e o sigilo dos elos, e que nessa fase, vige o in dubio pro societate, tenho por eleger a inquisitorialidade do inquérito, revestida do necessário sigilo, como preponderante. Segurança denegada.” (MS nº 2000.04.01.004653-7/PR, Rel. Juiz Marcelo De Nardi, 2ª Turma, unânime, DJ 23.08.2000, p. 159) Assim, inexistente ilegalidade ou abuso de poder, porquanto ausente o direito líquido e certo dos impetrantes. Ante o exposto, meu voto é no sentido de denegar a ordem. 234 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 EMBARGOS INFRINGENTES E DE NULIDADE EM ACR Nº 2000.04.01.076601-7/PR Relator: O Exmo. Sr. Des. Federal José Germano da Silva Embargante: S. V. O. F. B. Advogados: Dr. João de Oliveira Franco Junior Dr. Valdemar Bernardo Jorge Dr. Rodrigo Sanchez Rios Embargado: Ministério Público Advogado: Dr. Luís Alberto d’ Azevedo Aurvalle Interessado: J. O. F. N. Advogados: Dr. João de Oliveira Franco Junior Dr. Valdemar Bernardo Jorge Dr. Rodrigo Sanchez Rios EMENTA Penal. Embargos infringentes em apelação criminal. Crime societário. Omissão no recolhimento das contribuições previdenciárias. Art. 95, d, Lei 8.212/91. Autoria. Responsabilidade do sócio-cotista. Teoria do domínio do fato. Contrato social. Gestão efetiva. Prova. Ônus. Prova trazida pela defesa incapaz de afastar a imputação do delito. Condenação mantida. 1. Em se tratando de crimes societários, a responsabilidade pela prática do ilícito deve recair sobre todos os diretores da empresa, tanto os que participaram ativamente da prática delituosa, quanto os que se omitiram, não agindo para evitar que o delito fosse perpetrado, devendo-se entender por “diretor” aquele sócio com efetiva participação na administração da empresa, e não aquele que apenas formalmente consta no contrato social como tal, sem real ingerência na empresa. Aplicação da teoria do domínio do fato. 2. Para concluir por um decreto condenatório, deve o magistrado analisar a prova com cautela, perquirindo quem realmente dirigia a empresa e tinha a disponibilidade dos recursos, sob pena de aplicar-se, na esfera criminal, a responsabilidade objetiva derivada do contrato social. 3. A mera retirada de pró-labores, bem como o fato de figurar o sócio como diretor no quadro social da empresa, por si só, não configuram R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 235 gestão. 4. Hipótese em que foi feita a prova, pela acusação, de que, durante o período da dívida, a embargante fazia parte da gerência da empresa, atuando como diretora superintendente, com efetivo poder de gestão. 5. Não há falar em inversão do ônus da prova, já que a prova foi feita pela acusação, que, no caso, logrou demonstrar que a administração da empresa era realizada também pela co-ré, situação jurídica não combatida pela frágil prova trazida pela defesa. 6. Mantida a condenação pelo delito de omissão no recolhimento das contribuições previdenciárias – art. 95, d, da Lei nº 8.212/91. Embargos infringentes desprovidos. ACÓRDÃO Vistos e relatados estes autos entre as partes acima indicadas, decide a Quarta Seção do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por maioria, vencido o Desembargador Federal Volkmer de Castilho, negar provimento aos embargos infringentes, nos termos do relatório, voto e notas taquigráficas que ficam fazendo parte integrante do presente julgado. Porto Alegre, 21 de agosto de 2003. Des. Federal José Germano da Silva, Relator. RELATÓRIO O Exmo. Sr. Des. Federal José Germano da Silva: Trata-se de embargos infringentes e de nulidade opostos contra acórdão proferido no julgamento de apelação criminal, o qual, por maioria, deu parcial provimento ao apelo dos réus/apelantes apenas para o fim de reduzir a pena aplicada e modificar a espécie da pena restritiva de direitos, mantendo, contudo, a condenação decorrente das sanções do art. 95, d, da Lei nº 8.212/91. Constou na ementa do acórdão embargado: “(...) A responsabilidade penal é sempre subjetiva. Os crimes praticados na pessoa jurídica ou por meio dessa somente podem ser punidos através de apuração da responsabilidade individual dos seus mandatários, desde que comprovada a sua efetiva participação nos fatos. A responsabilidade penal dos administradores pode resultar tanto de haverem praticado o fato delituoso quanto de haverem permitido que ele ocorresse, se tinham a obrigação e a possibilidade concreta de evitá-lo – é dizer, se tinham o domínio do fato, como acontece, de regra, nas empresas familiares em que todos os sócios detêm 236 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 amplos poderes de administração. (...)” (fl. 267) A embargante visa, com a interposição do presente recurso, a fazer vingar a tese exarada no voto vencido, da lavra do eminente Desembargador Volkmer de Castilho, que, com base no art. 386, IV, do CPP, a absolveu, por entender não estar provada sua participação no delito. Para tanto, alega: a) não poder a embargante figurar como partícipe ou co-autora do delito em questão, carecendo de supedâneo fático e jurídico a tese do voto do relator que referiu estar-se diante de um simples caso de co-autoria; b) “dever haver uma valoração distinta entre a tipicidade aparente enquanto condição da ação e o juízo necessário sobre a tipicidade concreta para a imputação penal em sentença condenatória” (fl. 282), não podendo, nos crimes societários, os mesmos critérios adotados para a formulação da denúncia ser adotados também para a imputação em sentença condenatória; c) não possuir a situação típica por si só o condão de acarretar a imputação criminal, pois, sendo o delito omissivo puro, possui certos elementos configuradores – no caso, o § 3º do art. 95 imputa a responsabilidade aos administradores que tenham participado da gestão da empresa, não satisfazendo a embargante tal requisito; d) que a mera retirada de pró-labores, bem como o fato de constar o nome da embargante no quadro social da empresa não configuram gestão; e) não ter o Ministério Público produzido prova da efetiva participação da embargante na administração da empresa Jofran Veículos LTDA., ônus seu; f) ter o voto do relator invertido o ônus da prova, na medida em que afirma não ter a prova testemunhal consistência para afastar a presunção constante no tipo penal; g) que sua condenação se fundamentou apenas no inquérito policial, o qual possui caráter inquisitivo, não sendo submetido ao contraditório, não podendo, portanto, ser mantida; h) que, por não possuir a gestão da empresa, a embargante não possuía a capacidade concreta de ação, tampouco conhecimento da situação típica, nem a possibilidade física real de realizar a ação ordenada; i) que, apesar de ocupar o quadro societário da empresa, isto não se dava no mundo fático, sendo todas as decisões tomadas pelo co-denunciado; j) não poder a pena passar da pessoa do condenado, sendo aplicável ao caso o princípio constitucional da pessoalidade da pena, constante no artigo 5º, XLV, da CF. Requer a sua absolvição. R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 237 Às fls. 293-299, o Ministério Público Federal apresenta impugnação aos embargos infringentes, propugnando pela manutenção do acórdão recorrido. É o relatório. À douta revisão. VOTO O Exmo. Sr. Des. Federal José Germano da Silva: O caso, ora em julgamento, resume-se à seguinte questão: a delimitação da responsabilidade dos sócios pelo delito de omissão no recolhimento das contribuições previdenciárias. Sustenta a embargante que o simples fato de constar no quadro societário da empresa não autoriza a imputação da reprimenda penal a ela, que, tendo sido mera sócia-cotista, não exerceu atos de gestão ou administração na empresa. Fundamentou o relator do acórdão atacado, em síntese, que os crimes societários podem ser frutos da ação de alguns e da omissão de outros, razão pela qual, segundo entende, “o delito deve ser imputado não apenas ao diretor que participou ativamente da prática, como ainda àquele diretor que não agiu para evitar que o delito fosse perpetrado”. (fl. 261) Estou de acordo com a tese defendida pelo culto Desembargador Amir José Finocchiaro Sarti no acórdão ora impugnado. Contudo, e apesar de seu percuciente voto, permito-me tecer algumas considerações acerca desta questão. Entendo que, em se tratando de crimes societários, categoria na qual não raro se enquadra o delito de omissão no recolhimento das contribuições previdenciárias – art. 95, d, da Lei nº 8.212/91 –, a responsabilidade pela prática do ilícito deve recair sobre o diretor com poderes de gestão, com poderes de administração da sociedade, não bastando para comprovar tal gerência o mero fato de constar o nome do sócio no contrato social. Com efeito, a lei prescreve que a autoria do delito é atribuída ao administrador que tenha participado da gestão da empresa, nos termos do parágrafo 3º do mesmo art. 95 acima referido: “§ 3º. Consideram-se pessoalmente responsáveis pelos crimes acima caracterizados o titular de firma individual, os sócios solidários, gerentes, diretores ou administradores que participem ou tenham participado da gestão da empresa beneficiada, assim como 238 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 o segurado que tenha obtido vantagens.” (Grifei.) Da interpretação deste dispositivo legal, entendo, como alegado pela embargante, que, para fins de imputar-se a prática do delito ao sócio, não basta apenas ele figurar no contrato social como administrador ou diretor. Deve haver a comprovação de que realmente ele participava da gestão da empresa, com efetivo poder de decisão. Neste sentido, é a jurisprudência majoritária desta Corte: “PENAL. APROPRIAÇÃO DE CONTRIBUIÇÕES PREVIDENCIÁRIAS. A responsabilidade penal do sócio gerente precisa ser demonstrada material e subjetivamente, não bastando a presunção da autoria pela gerência. Absolvição confirmada.” (TRF 4ª Região; Apelação Criminal nº 92.04.22006-6/RS; 3ª Turma; Relator Juiz Volkmer de Castilho; julgado em 10.12.92; in DJ de 03.03.93, p.6175) Entretanto, comungo do entendimento exposto no decisum recorrido quando ele argumenta que o delito deve ser imputado a todos os diretores da empresa, tanto os que participaram ativamente da prática delituosa, quanto os que se omitiram, não agindo para evitar que o delito fosse perpetrado. Todavia, acrescento que, por “diretor”, deve-se entender como sendo aquele sócio com efetiva participação na administração da empresa, e não aquele que simplesmente aparece no contrato social como tal. Nesta linha de pensamento, a meu ver, somente pode ser responsabilizado pelo crime aquele sócio que efetivamente participava da gerência da empresa, tomando as decisões relativas a ela, e não o sócio que meramente constava no contrato social, porém sem a participação na gerência da empresa. Isto porque uma condenação criminal, com todas as conseqüências que dela derivam, tanto no plano pessoal, quanto no plano social, é por demais gravosa para atingir quem não teve real envolvimento com a prática delituosa. Inúmeros são os casos de empresas familiares, algumas formadas por cônjuges, onde a esposa consta no contrato social com função meramente formal; outras compostas por irmãos, parentes, onde todos figuram no contrato social, muitas vezes até como diretores, retirando inclusive pro labore, porém sem a real ingerência no dia-a-dia da firma. Não é rara também a sociedade na qual um dos diretores cuida apenas da parte técnica da empresa, vale dizer, da atividade-fim, enquanto outro ocupa-se da parte financeira, da administração dos recursos econômicos, agindo com total poder e com a confiança daquele. 239 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 Por isso, tenho que, para concluir por um decreto condenatório, deve o magistrado analisar a prova com cautela, perquirindo quem realmente dirigia a empresa e tinha a disponibilidade dos recursos, sob pena de aplicar-se, na esfera criminal, a responsabilidade objetiva derivada do contrato social. Assim, passa o foco da questão para a instrução, voltada para a autoria do delito. No caso ora em julgamento, examinei detidamente a prova acostada nos autos. Desta minuciosa análise, pude concluir, conforme também constatado pelo Desembargador Amir José Finocchiaro Sarti, que a embargante – S. V. O. F. B. – de fato, tinha participação ativa na empresa Jofran Veículos Ltda. Senão vejamos. Em seu interrogatório judicial, a ora embargante diz ter participado do contrato social da empresa durante certo tempo “porque herdou tal participação com a morte de sua mãe por volta de 1990”. (fl. 53) Não é o que ressai dos autos. Consoante o atestado de óbito acostado à fl. 290 do inquérito policial em anexo, vê-se que a mãe da recorrente, Dora Vidal de Oliveira Franco, também sócia na firma, faleceu em 1º de novembro de 1989. Ora, a recorrente ingressara na sociedade muito antes. De acordo com a Quarta Alteração do Contrato Social da empresa (fls. 42-47 dos autos apensos), verifica-se a entrada da embargante na sociedade em 28 de fevereiro de 1986, ou seja, mais de três anos antes do falecimento de sua mãe, caindo por terra, portanto, tal alegação. Ainda em seu interrogatório, a embargante refere expressamente que nunca retirou pro labore nem recebia lucros. Mais uma vez, a prova contraria frontalmente as declarações da embargante. Nas cópias das declarações de imposto de renda dos anos correspondentes ao delito (1995 e 1996), nas quais, diga-se ainda, a própria embargante se declara “diretora de empresas”, está claramente demonstrado que a embargante recebeu pro labore, tendo como fonte pagadora a Jofran Veículos LTDA. (fls. 122-128). Na declaração do imposto de renda de 1996, referente ao ano-calendário de 1995, período em que se deu a maior parte do não-recolhimento, nota-se que a embargante declarou, a título de rendimentos tributáveis recebidos de pessoas jurídicas, a quantia de R$6.063,00, pagos 240 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 pela Jofran Veículos.(fl. 127) A prova demonstra ainda que a empresa passou por várias alterações contratuais, sendo que a embargante chegou inclusive a exercer a função de “diretora-presidente” (Oitava Alteração Contratual – fls. 60-66 do inquérito), durante um ano, não se podendo crer que nunca tivesse tido influência nas decisões da empresa. Importante salientar, neste tópico, que, na época da infração em tela, a embargante estava investida na função de “diretora superintendente”, cargo que ocupou de 1989 até 1996. (Nona Alteração Contratual, Cláusula 9ª - fls. 67-72 do IP) Neste ponto, aliás, chama atenção ainda o fato de que, tão logo a empresa foi autuada pelo INSS pelo não-recolhimento das contribuições, a embargante retirou-se da sociedade. Explica-se. A Notificação Fiscal de Lançamento de Débito que originou a presente ação penal foi lavrada em 29 de março de 1996, data também em que foi concluído, pela autarquia previdenciária, o Relatório Fiscal em que se constatou que a empresa descontou contribuições dos salários dos empregados e não as repassou ao INSS. Em 10 de junho de 1996, foi feita a Décima Alteração Contratual (fls. 299-302 do IP), tão-somente para o fim de afastar a embargante da administração da firma, nos seguintes termos: “(...) a partir do presente instrumento de alteração contratual, a sócia S. V. O. F. B. deixa de fazer parte da gerência da sociedade passando a condição de simples quotista (...)”. (fl. 299) Em 04 de julho de 1996, celebrou-se a Décima Primeira Alteração Contratual (fls. 282-286 dos autos anexos), exclusivamente para o efeito de efetuar-se a retirada da embargante da sociedade, com a cessão e transferência da totalidade de sua participação. É curioso o fato de que a embargante exercia o cargo de diretora superintendente desde 1989, e, assim que constatada pelo INSS a infração, alterou o contrato social para afastar-se da gerência da sociedade, para, logo em seguida, promover nova alteração, desta vez desligando-se totalmente da empresa. Evidente que tal situação não configura prova concreta da tentativa da embargante de burlar a lei penal, porém, em conjunto com as demais provas, diga-se de passagem, contundentes, é mais um elemento de convencimento para o juízo condenatório. R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 241 O exame da prova demonstra ainda que, desde o ingresso da embargante na sociedade, ela sempre deteve uma participação no capital social equivalente ao dobro dos demais sócios (pessoa física), somente perdendo para uma pessoa jurídica que fazia parte da sociedade. Assim, fica difícil crer que não tivesse ingerência na sociedade, possuindo sempre quota muito maior do que a dos outros sócios, inclusive do que a de seu irmão, J. O. F. N., co-réu nesta ação, a quem se quer atribuir a gestão de empresa e a conseqüente responsabilidade pelo delito. Cumpre destacar que a prova trazida pela embargante para comprovar sua alegada inocência é insuficiente para tanto. O que se vê nos autos são apenas as declarações do co-réu J. O. F. N., vale lembrar, irmão da embargante, no sentido de que somente a ele cabia administrar financeiramente o empreendimento, já que a co-ré S. V. O. F. B., sua irmã, não detinha poderes de gerência; bem como as declarações de duas testemunhas trazidas pela defesa, mencionando que a ré não tinha poder de gestão da empresa. No tocante a estes depoimentos, convém observar, de sua leitura, que as testemunhas, duas ex-funcionárias das empresas dos denunciados à época dos fatos, mencionaram que a embargante não tinha a gestão da empresa, sendo sócia-cotista. Porém, isto foi dito como resposta à pergunta dirigida pela defesa, de quem, aliás, não se poderia esperar outra coisa. Deve ser levado em conta o fato de que tal afirmação, além de ser extremamente genérica, não esclarecendo, com a exatidão necessária à elucidação dos fatos, quais atividades encaixam-se no conceito das depoentes de “administração”, aparece nos autos de forma isolada, sem mais elementos que a comprovem, e contrariando toda a documentação juntada pela acusação. Registro ainda que concordo com a alegação da embargante, bem como da fundamentação do voto divergente, no sentido de que a mera retirada de pró-labores, bem como o fato de figurar o nome do sócio no quadro social da empresa, por si só, não configuram gestão. Contudo, in casu, entendo ter sido feita a prova, pela acusação, de que, durante o período da dívida, a embargante fazia parte da gestão da empresa, atuando como diretora superintendente. Por fim, esclareço que estou de acordo com o posicionamento adotado pelo acórdão embargado, o qual aplicou a teoria do domínio do fato, equipa242 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 rando os diretores que realmente agiram com aqueles que, podendo impedir a execução do ilícito, isto é, detendo o domínio do fato, omitiram-se. Apenas acrescento que, nestes casos, deve ser feita a distinção entre duas situações jurídicas diversas: a do sócio que apenas consta formalmente no contrato social, sem efetiva ingerência na empresa, e a do diretor que possui poderes de gestão. Este último responde, sim, pelas infrações praticadas pela sociedade, mesmo que não tenha participado ativamente daquela decisão, pois, tendo poder de administração da empresa, nada fez para impedir a perpetração do delito. Deve ser ressaltado, porém, que, nos crimes societários, a efetiva gestão da empresa deve ser comprovada pela acusação, aplicando-se, no caso do delito de omissão no recolhimento das contribuições previdenciárias, o que dispõe o mencionado parágrafo 3º do art. 95 da Lei nº 8.212/91. No caso, o Ministério Público logrou demonstrar que a administração da empresa era realizada também pela co-ré S. V. O. F. B., situação jurídica que não foi combatida pela defesa, que trouxe prova extremamente frágil para afastar as conclusões a que se chega a partir da farta documentação acostada pelo MP. Vale dizer, a defesa não fez a contraprova capaz de demonstrar o que alegava, não se podendo acolher sua alegação de inversão do ônus da prova, já que a prova foi feita pela acusação. Friso, finalmente, que a condenação da embargante não teve base apenas no inquérito policial, como ela alega, mas em ampla prova documental, bem como em seu interrogatório judicial e outros elementos, sendo-lhe dadas todas as oportunidades para que exercesse sua defesa, não se podendo falar, como pretende, na ausência do contraditório. Perde relevo também a tese da embargante de infringência ao princípio constitucional da pessoalidade da pena, constante no artigo 5º, XLV, da CF/88, pois, conforme fundamentado, restou clara a responsabilidade pessoal da embargante pelo delito pelo qual foi condenada. Ante o exposto, nego provimento ao recurso, para manter a condenação da ré, ora embargante, S. V. O. F. B., pela prática do crime previsto no art. 95, d, da Lei 8.212/91, conforme descrito na denúncia. É o voto. VOTO DIVERGENTE O Exmo. Sr. Des. Federal Volkmer de Castilho: Vou pedir licença ao R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 243 e. Relator e aos que o acompanham para perseverar no entendimento que havia desenvolvido no voto vencido, na Turma. Não vou insistir, embora os termos do voto estejam nos autos, mas quero fazer apenas alguns reparos, porque me parece que a leitura que faz o e. Relator, dos documentos que há nos autos, pode também suportar uma leitura diversa. S. Exa. fez referência, em vários momentos, à condição da embargante de filha, de herdeira ou de ser detentora de capital que fosse decorrente de relações de família. Isso é verdade. É verdade também, como diz o e. Relator, que são várias e sucessivas as alterações do contrato social em que ela passava de Presidente para Superintendente, para simples cotista, para sócio-gerente, enfim, a demonstrar tudo, e a explicação era porque ela tinha a maioria do capital, que ela tinha de constar dentro do contrato social pela condição de capitalista maior, mas isso mostra que quem gerenciava a empresa era, realmente, o irmão, que foi também denunciado e, ele, condenado, e aqui não é o embargante, porque, na Turma, foi unânime a condenação do J. O. F. N. A minha dúvida, a minha divergência com a maioria, é esta: a prova que se tem nos autos não mostra, pelo menos no meu sentir, com evidência, que a Sra. S. V. O. F. B. fosse, realmente, a administradora ou a gerente do empreendimento. Na dúvida, por isso, votei pela absolvição, e penso que esses argumentos, a despeito do bem-alinhavado voto do e. Relator, não suportam a condenação. Estou dando provimento ao recurso para fazer prevalecer o voto vencido, com a vênia da maioria. APELAÇÃO CRIMINAL Nº 2002.04.01.034339-5/PR 244 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 Relator: O Exmo. Sr. Des. Federal Paulo Afonso Brum Vaz Apelantes: W. N. A. K. N. Advogados: Drs. João Pinto Ribeiro Neto e outros Apelado: Ministério Público Federal EMENTA Processo penal. Interrogatório. Ausência justificada dos réus. Revelia decretada. Nulidade do processo. Prescrição. Proibição de reformatio in pejus indireta. O interrogatório constitui, além de meio de prova, um meio de defesa do acusado. Não se decreta a revelia de réu que, embora não compareça à audiência na data designada pelo juiz para o interrogatório, peticiona imediatamente justificando a ausência e requer a designação de nova data para ser ouvido. Em recurso exclusivo do réu, a eventual anulação da sentença condenatória não permite, no momento de novo decreto porventura também condenatório, a aplicação de pena superior àquela fixada na sentença anulada, sob pena de reformatio in pejus indireta. Sendo possível, por ocasião do julgamento do recurso de apelação, verificar, pelo montante da pena aplicada, a ocorrência da prescrição, deve o colegiado decretar, de pronto, a extinção da punibilidade. ACÓRDÃO Vistos e relatados estes autos entre as partes acima indicadas, decide a Oitava Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por unanimidade, dar provimento ao apelo para acolher a preliminar suscitada, declarando a nulidade do processo a partir da decretação de revelia, bem como declarar extinta a punibilidade dos réus, ante a ocorrência da prescrição, nos termos do relatório, voto e notas taquigráficas que ficam fazendo parte integrante do presente julgado. Porto Alegre, 22 de outubro de 2003. Des. Federal Paulo Afonso Brum Vaz, Relator. RELATÓRIO O Exmo. Sr. Des. Federal Paulo Afonso Brum Vaz: O Ministério 245 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 Público Federal ofereceu denúncia contra W. N. e A. K. N., dando-os como incursos nas sanções do art. 95, d, da Lei nº 8.212/91, c/c art. 5º da Lei nº 7.492/86 e art. 71 do Código Penal, em continuidade delitiva, porquanto os denunciados, na qualidade de responsáveis pela administração da empresa W. N. e Cia. Ltda., deixaram de recolher aos cofres do INSS, no prazo legal, as contribuições previdenciárias descontadas dos salários de seus funcionários, relativas a períodos compreendidos entre 12/92 a 03/97. As NFLDs nos 32.565.386-0, 32.565.372-0, 32.565.3852, 32.565.388-7, 32.565.381-0 (constantes, respectivamente, às fls. 03, 112, 278, 305 e 397 do processo administrativo em apenso) informam que o montante do débito consolidado, em 01.04.97, é de R$ 147.724,13. A denúncia foi recebida em 29.10.98. (fl. 48) Os réus, embora regularmente citados (fls. 57/58), deixaram de comparecer à audiência de interrogatório (fl. 62), juntando posteriormente justificativas consideradas ilegítimas pelo MM. Julgador, que decretou a revelia dos acusados (fl. 79). O defensor constituído, devidamente intimado, não apresentou defesa prévia ou arrolou testemunhas. (fl. 112) Sentenciando, em 26.03.2002 (fls. 284/302), a magistrada de primeiro grau julgou procedente a ação penal, condenando os acusados nas sanções do art. 168, A, c/c art. 71, ambos do Código Penal, a 02 (dois) anos e 08 (oito) meses de reclusão e ao pagamento de 40 (quarenta) dias-multa, no valor unitário de 1/5 (um quinto) do salário mínimo. As penas corporais foram substituídas pela prestação de serviços à comunidade e prestação pecuniária de 10 (dez) salários mínimos para cada um dos réus. Inconformada, apela a defesa, alegando preliminares de a) nulidade do feito a partir da decretação da revelia, vez que o não-comparecimento dos acusados à audiência de interrogatório foi devidamente justificado; b) nulidade do feito por cerceamento de defesa, em face da inexistência de intimação da data da audiência da oitiva das testemunhas de acusação, realizada no juízo deprecado; c) tumulto processual, ante a concessão de oportunidade para a defesa prévia após a inquirição das testemunhas arroladas pela acusação; d) ofensa ao princípio do devido processo legal, devido à inobservância de formalidade essencial à validade da denúncia, qual seja, in casu, a realização de prova pericial. No mérito, pugnam os acusados pelo reconhecimento do estado de necessidade a albergar a conduta delitiva, sustentando a caracterização da excludente 246 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 de culpabilidade consubstanciada na inexigibilidade de conduta diversa por dificuldades financeiras enfrentadas pela empresa. Contra-arrazoado o recurso (fls. 589/602), sobem os autos a esta Corte. Nesta instância, o parecer exarado pelo Ministério Público Federal (fls. 609/612) é pelo improvimento do recurso, devendo ser reconhecida a extinção parcial da punibilidade, em relação aos fatos ocorridos anteriormente a 29.10.94. É o relatório. À revisão. VOTO O Exmo. Sr. Des. Federal Paulo Afonso Brum Vaz: Sustentam os réus a nulidade do feito a partir da decretação da revelia, uma vez que seu não-comparecimento à audiência de interrogatório foi devidamente justificada. Consoante se depreende do mandado de citação e intimação (fl.57), o qual foi devidamente cumprido, o interrogatório foi designado para 17 de dezembro de 1998, às 14h. Na mesma data, certificou-se (fl. 62) que a audiência não havia sido realizada, tendo em vista o não-comparecimento dos réus. Estes, no dia seguinte (18.12.98), protocolizaram petição requerendo fosse designada nova data para interrogatório, uma vez que não haviam podido comparecer em juízo na data anteriormente aprazada, por motivo que entendiam ser justificado. A ré A. K. N. afirmava estar cumprindo pena em regime domiciliar; o réu W. E. N. alegou motivo de saúde, juntando atestado médico. O magistrado, entendendo ilegítimas as justificativas apresentadas, decretou a revelia dos acusados, uma vez que (fl.79) o réu W. E. N. junta atestado médico sem constar o número do CID e com data ilegível. A ré A. K. N. alega o cumprimento de prisão domiciliar, juntando, no entanto, cópia da sentença prolatada em embargos de execução em trâmite perante a 1a Vara Cível da Comarca de Guarapuava/PR. De fato, a ré A. K. N. não juntou documento comprovando o cumprimento de pena em regime de prisão domiciliar. No entanto, quando peticionou requerendo nova data para interrogatório, requereu fosse comunicado com antecedência ao Juiz da Vara Cível de Guarapuava, para que este a autorizasse a ausentar-se de seu domicílio no horário da audiência R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 247 (fl.63). Desta forma, não é crível que a requeresse tal providência se esta não fosse realmente necessária. Quanto ao réu W. E. N., a data do atestado, ao contrário do afirmado, é perfeitamente legível: 17.12.98. E, ainda que referido documento não seja muito específico, não mencionando qual o problema de saúde do réu, há que se ressaltar que o mesmo possui fé pública. Não tendo sido produzida qualquer prova contrária, impõe-se a consideração de sua legitimidade. Ademais, merece registro que os réus, um dia após a data marcada para serem interrogados, peticionaram nos autos requerendo fosse designada outra data. Desta forma, demonstraram cabalmente o desejo de exercerem seu direito de defesa. Diferentemente é o caso daquele réu que, intimado por diversas vezes, não comparece em juízo ardilosamente e, quando condenado, defende o cerceamento de sua defesa por ausência de interrogatório. Não é esta a situação configurada nos presentes autos, em que os réus manifestaram expressamente a vontade de serem interrogados. Ressalto, por oportuno, que a doutrina vem entendendo que, mesmo após a prolação da sentença, é possível o interrogatório do réu, uma vez que este ato constitui, além de meio de prova, um meio de defesa do acusado. Esta é a lição de Fernando Capez (In: Curso de Processo Penal, 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 282/283): “Sendo manifestação de autodefesa do acusado e, como consignado, só podendo ser por ele renunciado, o interrogatório é ato fundamental no desenvolvimento da relação jurídica processual, embora não seja indispensável, fator que fica, entretanto, a critério do titular do direito, que é o réu. Daí asseverar o Código de Processo Penal, imperativamente, no art. 185, que ‘o acusado, que for preso, ou comparecer, espontaneamente ou em virtude de intimação, perante a autoridade judiciária, no curso do processo penal, será qualificado e interrogado.’ Da mesma forma, no art. 564, III, e, há nulidade insanável em caso de ausência de interrogatório de réu presente. Portanto, perfeitamente recepcionados pela nova ordem constitucional os dispositivos mencionados.” No mesmo sentido, o seguinte precedente desta Corte: “PENAL. MANDADO DE SEGURANÇA. CRIME CONTRA O MEIO AMBIENTE. (...) 39. O interrogatório, como se sabe, caracteriza-se como um ato de prova e de defesa. Revela o fato e todos os componentes a serem analisados no que se refere à imputação criminal. Uma prova acusatória sem uma confissão exige muito maior carga de convencimento do que outra que corrobora uma confissão. Essa é uma 248 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 evidência de que o interrogatório constitui prova. Por certo que não tem eficácia exclusiva, podendo até mesmo caracterizar o crime de auto-acusação falsa descrito no art. 341 do Código Penal. Também contém eficácia de defesa o interrogatório, sendo esta a precípua função dele, por isso ficando obrigado o juízo a ouvir o interrogando em qualquer fase do processo, sob pena de lesão ao princípio da ampla defesa. O réu, ao falar em juízo, tem a oportunidade de esclarecer a situação fática, explicar os motivos de sua ação, revelar fatos desconhecidos em seu proveito, dar sua interpretação referentemente a provas já colhidas, etc (...)”. (MS 200204010138430/PR, TRF da 4a Região, Sétima Turma, 26.02.2003, Relator Des. Federal Fábio Bittencourt da Rosa) E, considerando que o art. 564, III, e, preceitua que há nulidade insanável em caso de ausência de interrogatório de réu presente, impõe-se a declaração de nulidade do presente feito a partir da decretação de revelia dos réus. Neste sentido, o seguinte precedente: “HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. AUSÊNCIA DO INTERROGATÓRIO DO ACUSADO. MEIO DE PROVA E MEIO DE DEFESA. POSSIBILIDADE DE REALIZAÇÃO ATÉ O TRÂNSITO EM JULGADO. RÉU. INTIMAÇÃO DA SENTENÇA CONDENATÓRIA. RENÚNCIA AO DIREITO DE RECORRER. DEFESA TÉCNICA. ANUÊNCIA. CONSTRANGIMENTO ILEGAL INOCORRENTE. ORDEM DENEGADA. 1. O interrogatório do réu constitui, além de um meio de prova, o momento processual oportuno para que o acusado forneça a sua versão sobre os fatos criminosos que lhe são imputados. 2. ‘O acusado, que for preso, ou comparecer, espontaneamente ou em virtude de intimação, perante a autoridade judiciária, no curso do processo penal, será qualificado e interrogado.’ (artigo 185 do Código de Processo Penal). 3. O interrogatório deve ser realizado, sempre que possível, até o trânsito em julgado, sob pena de, em estando presente o réu, declarar-se a nulidade do processo. 4. Regularmente intimados da sentença condenatória o réu e seu defensor, não há falar em nulidade do processo por ausência de interrogatório na hipótese de o acusado expressamente consignar seu desejo de não apelar e a defesa técnica que o representa não demonstrar inconformismo com a edição do decreto condenatório, requerendo, tão-somente, a concessão dos benefícios da suspensão condicional da pena, o que restou, na espécie, deferido. 5. Ordem denegada”. (HC 200001097555/SP, STJ, Sexta Turma, 24.09.2001, relator Ministro Hamilton Carvalhido) Como, não obstante a declaração de nulidade do feito, a pena fixada na decisão anulada não poderia ser majorada em outra sentença condenatória que viesse a ser proferida, sob pena de incorrer-se em reformatio in pejus indireta, impõe-se, desde logo, o reconhecimento da prescrição R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 249 da pretensão punitiva, aplicada que foi, para ambos os réus, descontado o acréscimo da continuidade delitiva, a pena de 2 anos de reclusão. Tendo a denúncia sido recebida em 29.10.98 e o presente recurso de apelação julgado em 22.10.03, já se pode ver que o direito de punir estaria, no momento de prolação de decreto porventura condenatório, irremediavelmente extinto. Pelo exposto, voto no sentido de dar provimento ao apelo para acolher a preliminar suscitada, declarando a nulidade do processo a partir da decretação de revelia, reconhecendo, entretanto, a extinção da punibilidade dos réus, ante a ocorrência da prescrição. RECURSO CRIMINAL EM SENTIDO ESTRITO Nº 2002.70.02.005725-7/PR Relator: O Exmo. Sr. Des. Federal Luiz Fernando Wowk Penteado Recorrente: Ministério Público Advogado: Dr. Luís Alberto d’ Azevedo Aurvalle Recorrido: A. R. C. Advogado: Dr. Renato Martins Lopes EMENTA Processual Penal. Penal. Recurso em sentido estrito. Apresentação intempestiva das razões recursais. Tráfico internacional de entorpecentes. Art. 12, caput, c/c art. 18, I, da Lei nº 6.368/76. Recebimento da denúncia. Valoração jurídica pelo juiz. Competência. Art. 109, V, CF. Perpetuatio jurisdiciones. 1. O oferecimento intempestivo das razões recursais não impede o conhecimento do recurso em sentido estrito, de acordo com o entendimento jurisprudencial dominante. 250 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 2. No momento do recebimento da denúncia, não cabe ao magistrado, em regra, alterar a valoração jurídica do fato delituoso efetivada pelo órgão acusador. No caso do crime de tráfico internacional de entorpecentes, cuja tipicidade resta demonstrada pela análise conjunta dos arts. 12, caput, e 18, I, da Lei nº 6.368/76, desconsiderar a majorante, no juízo de prelibação, significa o mesmo que operar verdadeira desclassificação do tipo penal, anteriormente à dilação probatória. 3. Demonstrada por indícios de prova a internacionalidade do delito, a competência para o processamento e julgamento do feito é da Justiça Federal, nos termos do inc. V do art. 109 da CF, ainda que haja posterior desclassificação para o tráfico interno de drogas, em razão da aplicação do princípio da perpetuatio jurisdiciones. Precedentes deste TRF. ACÓRDÃO Vistos e relatados estes autos entre as partes acima indicadas, decide a Oitava Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por unanimidade, conhecer do recurso para dar-lhe provimento, nos termos do relatório, voto e notas taquigráficas que ficam fazendo parte do presente julgado. Porto Alegre, 14 de maio de 2003. Des. Federal Luiz Fernando Wowk Penteado, Relator. RELATÓRIO O Exmo. Sr. Des. Federal Luiz Fernando Wowk Penteado: O Ministério Público Federal, com base no Inquérito Policial nº 510/02, oriundo da Delegacia de Polícia Federal de Foz do Iguaçu/PR, ofereceu denúncia contra A. R. C., como incurso nas sanções dos arts. 12, caput, e 18, inciso I, ambos da Lei nº 6.368/76, c/c a Lei nº 10.409/2002 (Antitóxicos), pela prática do fato delituoso assim descrito na inicial acusatória (fls. 28/29): “No dia 06.08.2002, por volta das 6:00 horas, no Posto de Pedágio localizado na BR 277, no Município de Santa Terezinha de Itaipu (PR), sentido Foz-Cascavel, o denunciado, com vontade livre e consciente, trazia consigo e transportava em 6 (seis) pneus do caminhão que conduzia (FORD/CARGO 1418, ano 1990, cor branca, placas MBQ – 6730, de Joinville/SC, chassi 9BFXXXLP8LDB17276), 178 tabletes prensados de ‘maconha’, envoltos em fita adesiva de cor bege e transparente, totalizando 179.035 (cento e setenta e nove mil e trinta e cinco) gramas, conforme auto de apreensão e laudo R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 251 de constatação provisória de fls. 5 e 8, respectivamente. A droga foi acondicionada e escondida nos pneus do caminhão em território paraguaio, sendo que o denunciado ganhou R$ 500,00 (quinhentos reais) para promover tal ingresso no Brasil. O denunciado foi preso em flagrante pelos policiais federais Mário Roberto Esteves de Lima Ribeiro e Rafael Lopes Nunes, e ulteriormente encaminhado à DPF/FOZ”. Ao receber a denúncia, o juiz singular declarou-se incompetente para apreciar o feito, declinando para a Justiça Estadual de Foz do Iguaçu/PR o seu julgamento, sob a alegação de inexistir prova da internacionalidade do tráfico, não incidindo, in casu, o inc. V do art. 109 da Constituição Federal. (fls. 8/11) O MPF interpôs recurso em sentido estrito da decisão, com fundamento no art. 581, II, do CPP, sustentando basicamente que (fls. 16/27): não cabe, em juízo de prelibação, a apreciação e o julgamento antecipado quanto à majorante ou causa de aumento de pena descrita na peça inicial, no caso, a causa de aumento do inc. I do art. 18 da Lei nº 6.368/76, o que, na prática, equivale à verdadeira desclassificação do delito no momento do recebimento da denúncia, somente sendo possível nova tipificação após a instrução probatória; que os fatos descritos na exordial acusatória tipificaram o delito de tráfico internacional de entorpecentes com base em indícios constantes nos autos de inquérito policial, os quais deveriam ser cotejados no decorrer da instrução processual; e que, ainda que não comprovada a internacionalidade descrita na denúncia e o fato fosse desclassificado para o crime de tráfico interno de entorpecentes, a competência continuaria sendo da Justiça Federal, em razão do princípio da perpetuatio jurisdiciones. O recorrido apresentou contra-razões (fls.39/46), apontando, primeiramente, a intempestividade das razões de recurso. Quanto ao mérito, defendeu a decisão recorrida em virtude de não caracterizada a situação prevista no inciso V do artigo 109 da CF, aduzindo que, efetivamente, não há prova da internacionalidade do fato, sendo que o único elemento juntado foi a cópia do Auto de Prisão em Flagrante, no qual não consta a confissão do indiciado de que a droga teria vindo do exterior. O representante do Ministério Público Federal junto a este Tribunal, enquanto custos legis, ofereceu parecer (fls. 52/56), opinando pelo provimento do recurso. 252 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 É o relatório. VOTO O Exmo. Sr. Des. Federal Luiz Fernando Wowk Penteado: Primeiramente, entendo que não merece acolhida a argüição de negativa de seguimento ao recurso criminal, levantada pelo recorrido, pois, inobstante a dicção do art. 588 do CPP, deve ser adotada a posição do representante do Ministério Público Federal junto a esta Corte, Procurador Regional da República José Ricardo Lira Soares que, no parecer das fls. 52/56, defendeu entendimento, baseado em jurisprudência do STJ, de que “a intempestividade das razões do recurso estrito não impede o seu conhecimento”. Também nessa linha, os seguintes julgados deste TRF: “RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. TEMPESTIVIDADE. QUEBRA DE FIANÇA. PRISÃO. A apresentação tardia das razões constitui mera irregularidade, não impedindo o conhecimento do recurso - Precedente do STJ. Omissis.” (RSE nº 2000.70.02.002703-7/PR, 8ª Turma, Rel. Des. Fed. Amir José Finocchiaro Sarti, julg. 02.08.2001, in DJU 05.09.2001 p. 1073) “PROCESSUAL PENAL. RECURSO CRIMINAL EM SENTIDO ESTRITO. APRESENTAÇÃO INTEMPESTIVA DAS RAZÕES RECURSAIS. CONTRABANDO/DESCAMINHO. LIBERDADE PROVISÓRIA. OMISSIS. 1. A apresentação intempestiva das razões recursais, ou até mesmo sua não-apresentação, não configura óbice ao conhecimento do recurso em sentido estrito. Entendimento jurisprudencial. 2 a 4. omissis.”(RSE nº 2001.70.02.001717-6/PR, 7ª Turma, Rel. Des. Fed. José Germano da Silva, julg. 16.10.2001, in DJU 31.10.2001, p. 1336) Quanto ao mérito, nas razões do recurso (fls. 16/27), o parquet sustenta que o juiz, quando do recebimento da denúncia e após análise das provas coligidas no inquérito policial, declinou da competência desta Justiça Federal, em razão de não ter vislumbrado prova da internacionalidade do delito, contrariando a doutrina e jurisprudência majoritárias, no sentido de que a opinio delicti cabe ao MPF e não ao julgador. Argumenta o Ministério Público Federal que: “(...) os fatos descritos na denúncia narraram e tipificaram o delito de tráfico internacional de entorpecentes com base nas evidências e indícios existentes nos autos do Inquérito Policial, os quais seriam submetidos ao devido cotejo probatório no decorrer da instrução processual”. R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 253 Mais adiante, aduz o órgão acusador que: “(...) a delimitação dos fatos delituosos será feita pelo Ministério Público Federal, ou seja, cabe ao órgão acusador propor a ação penal quanto às condutas que entende penalmente relevantes, devendo narrar todas as circunstâncias do crime; assim, não cabe ao juiz proceder a desclassificação do delito no momento do recebimento da denúncia, somente podendo aplicar nova tipificação após a instrução probatória.” (fls.17/18). Com lastro no contexto relatado, alega o recorrente, ainda, que o argumento utilizado pelo juiz a quo de que o errôneo processamento perante a Justiça Federal geraria nulidades absolutas insanáveis não pode prosperar, uma vez assente na jurisprudência que, se após a regular instrução probatória perante o juízo federal, não ficar comprovada a internacionalidade da conduta narrada na inicial e o fato tiver de ser desclassificado, por exemplo, para tráfico interno de entorpecentes, a competência continua sendo desta Justiça, devido ao princípio da perpetuatio jurisdiciones. Conforme se depreende, a discussão primordial a ser enfrentada no presente recurso, identifica-se com a possibilidade, ou não, de o julgador, no momento do recebimento da denúncia, concluir pela incompetência do Juízo quando entender ausente, na exordial acusatória, prova da existência de elemento ou circunstância objetiva que demonstre ser o crime próprio de julgamento na esfera federal, ou, por exclusão, na estadual. Segundo assevera o MPF, tal possibilidade equivaleria a poder dar ao fato delituoso, já na fase da denúncia, definição jurídica diversa da atribuída pelo parquet, operando verdadeira desclassificação do tipo penal, antes mesmo da instrução processual, o que seria vedado ao Juiz, segundo a legislação vigente e a jurisprudência dominante. Contudo, antes de adentrar-se no ponto central da controvérsia, vejamos a questão da competência criminal da Justiça Federal. Na lição do processualista Victor Eduardo Rios Gonçalves, promotor de justiça e professor em São Paulo: “Nos termos do art. 109, V, da Constituição Federal, são julgados pela Justiça Federal os crimes previstos em tratado ou convenção internacional, quando, iniciada a execução no país, o resultado tenha ou devesse ter ocorrido no estrangeiro, ou reciprocamente. Assim, por ser objeto de tratado internacional, o dispositivo abrange os crimes de tráfico, de forma que se pode concluir que o tráfico internacional de entorpecentes é de competência da Justiça Federal, enquanto o tráfico doméstico é apurado na esfera estadual”. (in Crimes Hediondos, Tóxicos, Terrorismo, Tortura, 2ª edição, ed. Saraiva, pág. 73) 254 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 Nesse mesmo sentido, dispõe a Súmula nº 522 do Supremo Tribunal Federal, in verbis: “Salvo ocorrência de tráfico para o exterior, quando então a competência será da Justiça Federal, compete à Justiça dos Estados o processo e julgamento dos crimes relativos a entorpecentes”. No caso em tela, o juiz monocrático entendeu não contido na denúncia, embasada em inquérito policial, qualquer elemento que pudesse comprovar a internacionalidade do tráfico de entorpecentes, circunstância a qual, configurada na majorante do artigo 18, inciso I, da Lei nº 6.368/76, desloca a competência para o exame do feito para a Justiça Federal, forte no referido inciso V do artigo 109 da Carta Magna. Registre-se que o dispositivo contido no art. 18, I, da precitada Lei Antitóxicos, atua como uma norma de extensão a definir a tipicidade do tráfico internacional de entorpecentes, razão pela qual esse delito só pode ser avaliado com a leitura conjunta, in casu, dos arts. 12 e 18, inc. I, a qual, necessariamente, desloca a competência para esta Justiça Federal para processar e julgar o feito. Isso porque o precitado aumento só se aplica aos crimes de tráfico com o exterior. Também assim leciona Vicente Greco Filho, na obra intitulada Tóxicos: Prevenção – Repressão (5ª edição, ed. Saraiva, págs. 124/125): “O termo tráfico limita a aplicação da causa de aumento de pena às hipóteses dos arts. 12 e 13 da lei, quando estiver presente o comércio, excluindo-se os casos de fornecimento gratuito, ministração sem fim de lucro, etc.;(...) sabemos que qualquer delito de tráfico de entorpecente o Brasil já se obrigou a reprimir, através da ratificação de convenções internacionais; seria absurdo concluir-se, então, que haveria o aumento de pena toda vez que alguém fosse acusado dos crimes do art. 12 ou 13; devemos entender, então, que somente incide o aumento de pena do inciso I do artigo comentado quando há tráfico com o exterior (...)”. Todavia, ao examinar-se a denúncia, juntada às fls. 28/29 dos autos, constata-se que a mesma preencheu os requisitos do art. 41 do CPP, descrevendo corretamente o fato delituoso, bem como fazendo constar a qualificação do acusado e a classificação do crime, indicando o tipo penal em que o fato concreto se subsume. E, ao desconsiderar, ainda na fase de instauração do processo, qualquer elemento caracterizador da internacionalidade do delito em tese perpetrado, fazendo um juízo prévio das provas coligidas no inquérito R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 255 policial, e, em conseqüência disso, declinando da competência para a Justiça Estadual, entendo que, efetivamente, o juiz singular incorreu, de certa forma, em uma desclassificação do delito, no caso, de tráfico internacional para tráfico interno, com reflexos no curso do processo, em evidente prejulgamento do feito, à margem do contraditório. Em razão de a tipificação contida na denúncia ser provisória, posto que sujeita à alteração no curso do processo por aditamento do MP (art. 569, CPP), ou por emenda ou pela mutação (arts. 383 e 384, CPP), tenho que o juiz, mesmo diante de eventual incorreção da capitulação na inicial acusatória, só deve determinar o encaminhamento dos autos para outro juízo supostamente competente para a análise da causa, quando se sentir totalmente convencido, após a avaliação do conjunto fáctico-probatório trazido ao seu exame, com a devida observância do contraditório. Só então, após a dilação probatória, poderá dar ao fato a definitiva qualificação jurídica e, se for o caso, declarar-se incompetente para o processamento e julgamento do feito. Essa é a lição, acerca da classificação do crime, de Julio Fabbrini Mirabete (in Código de Processo Penal Interpretado, 9ª edição, ed. Atlas, pág. 197): “(...)A eventual alternatividade da classificação jurídica ou o equívoco quanto ao tipo penal não torna, porém a denúncia inepta. Mesmo que o juiz esteja impedido de alterar a classificação do crime por ocasião do recebimento da denúncia, não é ela definitiva, podendo ser alterada no decorrer do processo, quer em aditamento do Ministério Público (art. 569), quer pelo próprio magistrado (arts. 383 e 384). Isto porque o acusado se defende da imputação contida no fato descrito na denúncia e não da classificação que lhe deu o requerente.” Ou seja, se é dada ao juiz a prerrogativa de não ficar adstrito à capitulação feita pelo MP, em razão da máxima narra mihi factum, dabo tibi jus, já que o réu se defende do fato que se lhe imputa, e não da classificação do tipo penal feita pelo órgão acusador, com muito mais razão não pode o magistrado desconsiderar circunstância elementar, ou, no caso, a causa de aumento consubstanciada no inciso I do art. 18 da prefalada Lei Antitóxicos, desde que perfeitamente descrita na denúncia, e, ao seu arbítrio, dar ao fato qualificação jurídica diversa, com implicações a fixação da competência para o exame da causa. Como já dito, no caso concreto, o fato pelo qual o réu estaria sendo 256 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 processado está perfeitamente descrito na peça acusatória e a apreciação do mesmo pelo juiz deve ser feita pelo seu conteúdo, no decorrer da instrução. Tampouco houve mudança dos fatos narrados na denúncia. Caso contrário, em assim procedendo, estará incorrendo em evidente prejulgamento do feito, à margem do contraditório, investindo-se no papel simultâneo de acusador e julgador. Em suma, a eventual capitulação errônea, feita pelo órgão acusador, tem momento certo para o respectivo acertamento, não cabendo ao magistrado antecipar-se às hipóteses elencadas na lei de regência. (arts. 383, 384, 410 e 569, do CPP) Nessa esteira, os precedentes do e. STJ, no seguinte teor: “DENÚNCIA. RECEBIMENTO. CAPITULAÇÃO PELO JUIZ DO FATO SUPOSTAMENTE DELITUOSO. INADMISSIBILIDADE. RECURSO ORDINÁRIO PARCIALMENTE PROVIDO. Não cabe ao Juiz, ao receber a denúncia, classificar o crime nela descrito. A definição jurídica dos fatos supostamente delituosos cabe ao Ministério Público como titular que é da ação penal (art. 41 do CPP).” (RHC nº 4881/RJ, Rel. Min. Anselmo Santiago, julg. 24.10.95) “PENAL E PROCESSUAL PENAL. CRIME PRATICADO POR PREFEITO (DL 201/67). RECEBIMENTO DA DENÚNCIA. VALORAÇÃO JURÍDICA E IMPUTATIO FACTI. No ato do recebimento da denúncia, em regra, é incabível alterar a valoração jurídica efetivada pelo Parquet. O acusado se defende da imputatio facti. A imputatio iuris, em princípio, só pode ser alterada nas hipóteses estabelecidas em lei (arts. 410, 569, 383 e 384 do CPP). Recurso provido.” (REsp nº 250976/RS, Rel. Min. Félix Fischer, DJ 14.08.00, pág. 194) Por outro lado, a argumentação defendida pelo juiz a quo de que o indevido processamento perante a Justiça Federal geraria nulidades absolutas insanáveis não encontra guarida na jurisprudência dominante, que tem decidido a questão à luz do princípio da perpetuatio jurisdiciones. Este TRF tem mantido a competência da Justiça Federal no caso de haver a desclassificação do crime de tráfico internacional para o delito de tráfico interno de entorpecentes, por aplicação analógica do art. 81 do CPP. Isso porque esse dispositivo é expresso no sentido de que a competência permanece mesmo diante da desclassificação do delito para outro que não se inclua na competência da respectiva Justiça, ainda que tal norma diga com a hipótese de reunião de processos por conexão e continência. 257 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 À propósito, confiram-se os seguintes acórdãos: “APELAÇÃO CRIMINAL. TRÁFICO DE ENTORPECENTES. COMPETÊNCIA. PERPETUATIO JURISDICIONES. MATERIALIDADE AUTORIA. PENA. AGRAVANTE. ART. 62, I, DO CP. MAJORANTE. ART. 18, III, DA LEI Nº 6.368/76. CONDENAÇÃO. MULTA. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. 1. A competência se fixa no momento do recebimento da denúncia. Ainda que haja posterior desclassificação, no caso de tráfico internacional para tráfico interno, deve ser preservada a competência da Justiça Federal, princípio da perpetuatio jurisdictiones, pela aplicação analógica do art. 81, caput, do CPP. 2. Comprovadas a materialidade e autoria pelo delito de tráfico de entorpecentes, devem os réus responder com as sanções do art. 12 da Lei nº 6.368/7 6. 3.a 7. omissis.” (ACR Nº 2001.71.04.0040223-6/RS, 7ª Turma, Rel. Des. Fed. José Germano da Silva, julg. 12.03.2002, in DJU 24.04.2002 p. 1160 ) “PENAL E PROCESSUAL PENAL. TRÁFICO DE ENTORPECENTES. INTERNACIONALIDADE. COMPETÊNCIA. JUSTIÇA FEDERAL. LAUDO TOXICO-LÓGICO. NULIDADES. PENA. SUBSTITUIÇÃO. 1. A competência da Justiça Federal para julgar crime de tráfico internacional de entorpecentes é fixada no momento do oferecimento da denúncia e por aplicação analógica do art. 81 do CPP, sendo prorrogada ainda que na decisão final haja desclassificação para tráfico interno. 2. Para a caracterização do tráfico internacional basta a circunstância objetiva de que o entorpecente tenha sido introduzido em território nacional para fins de comércio, não se exigindo, para sua caracterização, uma complexa cooperação entre agentes de territórios nacionais diversos. 3. A materialidade e a autoria restaram plenamente demonstradas nos autos, onde ficou comprovada que a droga - maconha e cocaína - era proveniente do Uruguai e o réu a comercializava no território nacional. 4.a 8. omissis.” (ACR Nº 1998.04.01.060702-2/RS, 2ª Turma, Rel. Juiz Jardim de Camargo, julg. 06.05.99, in DJU 21.07.99 p. 200) Dessa forma, demonstrada a internacionalidade do tráfico, firma-se a competência da Justiça Federal, sendo que, caso contrário, será ela da Justiça Estadual - hipótese de tráfico interno, salvo em se tratando de caso de delegação da competência, prevista nos §§ 3º e 4º do art. 109 da CF, bem como no art. 27 da Lei Antitóxicos e também na Súmula nº 54 do extinto Tribunal Federal de Recursos. O parecer do representante do Ministério Público Federal junto a esta Corte, Procurador Regional da República José Ricardo Lira Soares, à fl. 55, cuja síntese é aqui transcrita, corrobora a tese esposada: “Cumpre frisar que o inquérito policial, peça informativa em que se baseou a denúncia no presente caso, buscou colher o máximo de elementos probatórios possí- 258 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 veis (art. 6º, III, do Código de Processo Penal – CPP), mas tais provas resignam-se a formar a opinio delicti do órgão ministerial, e geralmente têm de ser confirmadas durante a instrução criminal, que concede maiores elementos tendentes a formar a convicção do magistrado atuante no processo. Enfim, não se pode exigir que no oferecimento da denúncia já estejam sobejamente comprovadas a autoria e a materialidade do delito, bem como a necessidade de incidência da causa de aumento da pena. Assim, tendo em vista os fatos narrados na denúncia, no sentido da internacionalidade do delito, a competência deve prosseguir na Justiça Federal, o que não impede que, posteriormente, diante das provas formadas, seja dada nova qualificação jurídica à conduta perpetrada”. Por fim, cumpre ressaltar que o Auto de Prisão em Flagrante do réu A. R. C., constante do Inquérito Policial nº 510/02, que embasou a denúncia, e juntado às fls. 4/6 do presente recurso, constitui forte indício da materialidade do crime imputado ao acusado, sendo suficiente para que a denúncia não seja rejeitada, nos termos do inc. I do art. 43 do CPP, bem como para fixar a competência desta Justiça Federal. Contrariamente à tese defendida pelo juiz a quo, de inexistência de provas (no caso em tela, ausência de comprovação da internacionalidade do delito) uma vez que os “dados teriam sido obtidos, unicamente, por via de entrevista informal do indiciado, que teria sido levada a efeito pelos policiais (...)” (fl. 9), adoto a posição defendida nas razões recursais, pelo agente ministerial, no sentido de que “considerando que o ordenamento jurídico admite o depoimento dos policiais como prova, inclusive para a aplicação de decreto condenatório, nada mais lógico que o mesmo depoimento também possa embasar a classificação do crime no oferecimento da denúncia”. (fl. 24) Isso posto, conhecendo do recurso, voto no sentido de dar-lhe provimento, para fixar a competência desta Justiça Federal para o processamento e julgamento do feito, determinando, in continenti, a remessa dos autos ao Juízo de origem, nos termos da fundamentação supra. R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 259 APELAÇÃO CRIMINAL Nº 2002.71.13.001501-6/RS Relator: O Exmo. Sr. Des. Federal Luiz Fernando Wowk Penteado Apelante: Ministério Público Federal Apelado: J. B. G. Advogado: Defensoria Pública da União – Dr. Fabricio Von Mengden Campezatto Apelado: N. R. Advogado: Dr. Inácio Capelari EMENTA Penal. Estelionato. Tipicidade. Parcelas do seguro-desemprego. Crime eventualmente permanente de ação continuada. Princípio da insignificância. Exame particularizado do caso. Condenação. Cálculo da pena. 1. A fraude cometida contra o Programa de Seguro-Desemprego, a exemplo do que ocorre com os estelionatos contra a previdência social, caracteriza-se por ser um crime eventualmente permanente de ação continuada, cuja consumação se prolonga no tempo, constituindo um crime único, para o qual se impõe o cômputo do dano total oriundo da permanência do agente na situação de ilicitude ao invés do valor individualizado de cada parcela. 2. Para fins de aplicação do princípio da insignificância ao delito de estelionato contra o seguro-desemprego, necessária a análise particularizada de cada caso, buscando-se evitar o reconhecimento do crime de bagatela a hipóteses nas quais, apesar de haver um ínfimo prejuízo, se detecta o envolvimento de organizações criminosas direcionadas a lesar o patrimônio público. 3. Partindo dos critérios usualmente utilizados na fixação do conceito de “pequeno valor do prejuízo”, previsto na tipificação legal do artigo 171, § 1º, do Código Penal, a jurisprudência desta Corte tem entendido razoável a adoção do montante aproximado de 02 (dois) salários mínimos para determinar o grau de lesividade considerado significante. 4. Comprovada a rescisão fictícia de contrato de trabalho para fins de recebimento de parcelas do seguro-desemprego, encontram-se preenchidas a materialidade e autoria previstas na figura típica do estelionato. 5. Em face do sistema trifásico, ausentes circunstâncias judiciais 260 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 desfavoráveis aos denunciados e incidindo a causa de aumento prevista no § 3º do artigo 171, as sanções definitivas aplicadas aos réus devem ser de 01 (um) ano e 04 (quatro) meses de reclusão. 6. Presentes os pressupostos do artigo 44 do Codex Criminal, os acusados fazem jus à substituição da pena privativa de liberdade por duas restritivas de direitos, consistentes na de realização de serviços à comunidade ou a entidades públicas e na de prestação pecuniária. ACÓRDÃO Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide a Egrégia 8ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por unanimidade, dar provimento à apelação, nos termos do relatório, voto e notas taquigráficas que ficam fazendo parte do presente julgado. Porto Alegre, 26 de novembro de 2003. Des. Federal Luiz Fernando Wowk Penteado, Relator. RELATÓRIO O Exmo. Sr. Des. Federal Luiz Fernando Wowk Penteado: O Ministério Público Federal ofereceu denúncia contra J. B. G. e N. R., dando-os como incursos na sanção prevista no artigo 171, caput, combinado com o parágrafo 3º do Código Penal, por conta da imputação dos seguintes fatos, in verbis (fls. 03/06): “(...) Ocorre que, no período (13.06.2000 a 02.01.2001) em que laborou sem a devida anotação na CTPS, o denunciado J. B. G., com o concurso do denunciado N. R., ao efetuarem a simulação da referida rescisão, na condição de administrador da empresa empregadora, percebeu indevidamente o benefício de seguro-desemprego, no total de 5 parcelas, no período de 11.09.2000 a 20.11.2000, sendo o valor de R$ 282,52, cada, causando prejuízo à União no montante de R$ 1.412,60 (um mil, quatrocentos e doze reais e sessenta centavos), conforme se depreende do extrato constante na fl. 21, encaminhado pela Caixa Econômica Federal, agência de Bento Gonçalves/RS, e da cópia dos comprovantes do efetivo pagamento do benefício nas fls.22/23.(...)” A exordial foi recebida em 25.06.2002 (fl. 02). Sentenciando às fls. 106/112, o magistrado de 1º Grau julgou improcedente a pretensão punitiva para, com fundamento no artigo 386, inciso III, do Código de Processo Penal, absolver os réus das acusações. A sentença foi publicada em cartório em 07.04.2003. (fl. 113) Inconformado, o órgão ministerial, sob o argumento de que o princípio R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 261 da insignificância não teria aplicação no caso em tela, interpôs apelação objetivando a reforma da sentença absolutória. (fls. 114/118) Com contra-razões (fls. 121/125 e 127/130), subiram os autos a esta Corte. O parecer da Procuradoria Regional da República foi no sentido de dar provimento ao recurso. (fls. 136/141) É o relatório. À revisão. VOTO O Exmo. Sr. Des. Federal Luiz Fernando Wowk Penteado: Conforme se depreende dos autos, o magistrado a quo entendeu adequada a aplicação do princípio da insignificância ao delito de estelionato contra o Fundo de Auxílio ao Trabalhador (FAT), consistente na retirada fraudulenta do seguro-desemprego. Sustentou, em resumo, que o ganho obtido a partir de cada uma das parcelas do referido benefício teria atingido, individualizadamente, valores próximos ao do salário mínimo vigente, resultando um prejuízo insignificante ao patrimônio público. Trago à baila trecho da decisão ora recorrida que sintetiza a fundamentação da sentença de 1º Grau (fl. 110): “(...) Ora, o prejuízo ocasionado foi de R$ 1.412,60, segundo a denúncia. Cada parcela recebida indevidamente pelo acusado tinha o valor de R$ 282,52, pouco mais de um salário mínimo mensal. Neste sentido, cada ato praticado, se tomado isoladamente, resultou em prejuízo insignificante, de pouco mais que um salário mínimo mensal. É sabido que a jurisprudência considera o prejuízo de um salário mínimo como algo insignificante, insuscetível de ensejar a sanção criminal. No caso concreto, mais motivos existem para justificar a absolvição, já que se verificou em audiência o baixo grau de instrução do acusado, o que lhe impossibilitaria arquitetar uma verdadeira ‘fraude’ contra o ente público. Por conseguinte, não estão presentes nos autos elementos que levem à conclusão de que se está diante de fato típico. Deve-se ter atenção aos detalhes do caso concreto para não levar a sanção criminal a fatos de pouca reprovabilidade. (...)” Inicialmente, há de se apontar o equívoco empregado pelo juiz monocrático ao considerar, para fins de aferição do montante do prejuízo patrimonial causado, o valor individualizado de cada parcela atinente ao seguro-desemprego. Na hipótese, a exemplo do que ocorre com os estelionatos contra a previdência social, se está diante de um crime eventualmente permanente de ação continuada, cuja consumação se prolonga no tempo, constituindo um crime único. Dada essa natureza, impõe-se 262 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 que seja computado o dano total oriundo da permanência dos acusados na situação de ilicitude, ou seja, R$ 1.412,60 (hum mil, quatrocentos e doze reais e sessenta centavos). Sabido que, recentemente, a legislação criminal passou a sofrer uma efetiva influência do caráter fragmentário imposto pelo Estado Social e Democrático de Direito, fazendo com que o Direito Penal não se concentre sobre todos os fatos de uma determinada realidade, mas apenas sobre aqueles mais relevantes, assim entendidos os acontecimentos que afetam os bens mais fundamentais à vida em coletividade e provoquem considerável abalo social. Decorrência dessa nova orientação de política criminal, surgiu, por obra do penalista alemão Claus Roxin, o chamado princípio da insignificância. Dissertando a respeito, Fernando Capez tece os seguintes comentários: “(...) Segundo tal princípio, o Direito Penal não deve preocupar-se com bagatelas, do mesmo modo que não podem ser admitidos tipos incriminadores que descrevam condutas incapazes de lesar o bem jurídico. A tipicidade penal exige um mínimo de lesividade ao bem jurídico protegido, pois é inconcebível que o legislador tenha imaginado inserir em um tipo penal condutas totalmente inofensivas ou incapazes de lesar o interesse protegido. Se a finalidade do tipo penal é tutelar um bem jurídico, sempre que a lesão for insignificante, a ponto de se tornar incapaz de lesar o interesse protegido, não haverá adequação típica. É que no tipo não estão descritas condutas incapazes de ofender o bem tutelado, razão pela qual os danos de nenhuma monta devam ser considerados fatos atípicos.(...)” (Curso de Direito Penal, Parte Geral. Volume 1. Editora Saraiva. 5ª Edição, fls. 13/14) Considerando que o bem jurídico tutelado pela norma insculpida no artigo 171 do Código Criminal é o patrimônio, o exame da insignificância termina por reportar ao montante econômico do dano causado, tendo como ponto de partida a noção de “pequeno valor do prejuízo” prevista para a figura típica do estelionato privilegiado. (§1º) Dentro dessa diretriz, e consciente da necessidade de a questão ser analisada de forma particularizada, caso a caso, buscando-se evitar o reconhecimento do crime de bagatela nas hipóteses em que, apesar de haver valor ínfimo de prejuízo, se detecta o envolvimento de organização criminosa direcionada a lesar o Programa do Seguro-Desemprego, a jurisprudência desta Corte tem adotado como critério indicador da não263 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 -lesividade nesta espécie de estelionato o valor de, aproximadamente, 02 (dois) salários mínimos. Na hipótese sub judice, haja vista o acusado J. B. G. ter se locupletado ilicitamente de 05 (cinco) parcelas do seguro-desemprego, totalizando a soma de R$ 1.412,60 (hum mil, quatrocentos e doze reais e sessenta centavos), impossibilitada está a tese da atipicidade da conduta por insignificância do resultado. Ademais, importa destacar que antecede à análise do princípio da insignificância aquela relativa à natureza do bem jurídico afetado pela prática do crime. No caso em tela, o estelionato teve por objeto a obtenção fraudulenta de benefício de caráter eminentemente social, o qual, por se sobrepor aos interesses individuais dos réus, impede a consideração, tão-somente, do valor nominal da vantagem indevida. Nessa linha, vem se manifestando esta Corte, conforme os acórdãos a seguir transcritos: “PENAL. PROCESSO PENAL. ESTELIONATO. FRAUDE AO SEGURO-DESEMPREGO. ART. 171, § 3º, DO CP. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. INAPLICABILIDADE. PRESCRIÇÃO RETROATIVA. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE. CP, ARTS. 107, IV, 109, V, E 110, § 1º. 1. Configura o crime de estelionato o recebimento indevido de parcelas do seguro-desemprego, pela utilização fraudulenta de duas Carteiras de Trabalho, sendo inaplicável em tais casos, o princípio da insignificância, porque o prejuízo não se resume às verbas recebidas indevidamente, mas se estende a todo o sistema previdenciário, que é um patrimônio abstrato dos trabalhadores. (...)” (TRF4R, ACR nº 2002.04.01.003986-4/ PR, 7ª Turma, Relator: Des. Vladimir Freitas, j. 06.08.2002); “PENAL E PROCESSUAL PENAL. REJEIÇÃO DA DENÚNCIA. ESTELIONATO. SEGURO-DESEMPREGO. FRAUDE. INAPLICABILIDADE DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. 1. Configura o delito de estelionato a percepção de seguro-desemprego ao tempo em que o agente exercia atividade remunerada. 2. O tipo penal previsto no art. 171 do Código Penal procura tutelar tanto o interesse social da confiança mútua nos relacionamentos patrimoniais individuais, quanto o interesse público em impedir o emprego do engano para induzir quem quer que seja a prestações indevidas, com prejuízo alheio. 3. Nesta espécie delitiva (art. 171, CP), a lesão ao bem jurídico protegido pela norma penal não pode ser mensurada, pois aqui o bem tutelado não é a integridade do erário, como nos crimes fiscais. Inaplicabilidade do princípio da insignificância.(...)” (TRF4R, RSE nº 2001.70.01.002276-0/PR, 7ª Turma, Relator: Des. Fábio Bittencourt da Rosa, j. 23.04.2002); 264 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 “ESTELIONATO. ART. 171, § 3º, DO CP. PERCEPÇÃO INDEVIDA DE SEGURO-DESEMPREGO. CONTRATO DE TRABALHO CONCOMITANTE AO BENEFÍCIO. USO DE DUAS CTPS. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA AFASTADO. DECRETO CONDENATÓRIO. PRESCRIÇÃO. (...) 2. Princípio da insignificância afastado, em razão do nítido emprego de fraude (uso de duas carteiras de trabalho) a evidenciar conduta dolosa do acusado, considerando, ainda, a destinação social dos valores recebidos indevidamente.(...)”. (TRF4ªR, ACR nº 2002.04.01.002967-6/PR, 8ª Turma, Relator: Des. Federal Élcio Pinheiro de Castro, j. 18.03.2002) Assim, afastada a incidência do conceito de crime de bagatela, passe-se ao exame da materialidade e autoria. A consecução de vantagem ilícita por J. B. G., em detrimento do Fundo de Amparo ao Trabalhador, mediante participação de N. R., na qualidade de empregador, restou plenamente verificada no processo. Inicialmente, a Justiça do Trabalho declarou a continuidade do vínculo empregatício de J. B. G. com a empresa CONSTRUMAC Materiais de Construção Ltda., no período de 02.06.97 a 13.07.2001, bem como a anulação da rescisão contratual ocorrida em 13.06.2000 (fl. 13). Ademais, é de se referir que o magistrado trabalhista fundamentou sua decisão no reconhecimento judicial da própria reclamada quanto à prestação de serviço por J. B. G., sem o devido registro na CTPS, no interregno entre os dois contratos firmados - 14.06.2000 a 31.12.2000- (fls. 13/14). Nessa seara, trago trechos do presente julgado, in verbis: “(...) Afirma o demandante na inicial ter laborado para a empresa, sem solução de continuidade, no período de 02.06.97 a 13.07.2001. Pretende seja declarada nula a rescisão contratual ocorrida em 13.06.2000, e, declarada a unidade contratual no período retrocitado. A reclamada reconhece a existência de labor sem o registro em CTPS no período de 14.06.2000 a 31.12.2000, argumentando que a CTPS do autor não foi anotada no período porque ele se negou a entregá-la para a devida assinatura, usando desculpas evasivas, uma vez que encontrava-se em gozo do seguro-desemprego.(...)”. (fl. 13) Consta nos autos, também, o extrato de consulta da CEF, confirmando o pagamento das 05 (cinco) parcelas do seguro-desemprego ao réu J. B. G., atinentes ao intervalo de 13.06.2000 a 09.11.2000 (fl. 27). De outra banda, a prova judicial revelou divergências entre as versões apresentadas pelos dois apelados quanto ao cargo ocupado por J. B. G. no seu retorno à empresa CONSTRUMAC Materiais de Construção Ltda., após o período no qual trabalhou sem a devida assinatura na CTPS. Para 265 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 tal verificação, importante reproduzir na íntegra os depoimentos prestados por ambos os envolvidos: “(...) O réu ainda é proprietário desta empresa. O réu J. B. G. trabalhou na empresa do interrogando por 2 ou 3 anos, no período de 1997 a 2000. Em razão das dificuldades que estava passando teve vários pedidos de falência. J. B. G. exercia a função de motorista, com o veículo da empresa caminhão Mercedes ano 1969, sendo que colocou este caminhão à venda e demitiu o denunciado J. B. G.. Como não vendeu o caminhão logo, J. B. G. pediu para ficar de motorista mais alguns meses até vender o caminhão. (...) Quando vendeu o caminhão no início de novembro, não havia mais função para o réu J. B. G., pois não havia mais caminhão para dirigir. J. B. G. pediu para ficar mais um tempo, mas aí na condição de serviços gerais, e não de motorista. Então o interrogando readmitiu J. B. G., com outra função e outro salário. Enquanto o caminhão ficou na empresa, J. B. G. trabalhou como caminhoneiro, entre 3 a 5 meses, sendo eu recebia salário, e pagava recibos. Sabia que J. B. G. poderia pedir seguro-desemprego, mas não sabia se ele havia pedido. (...) Não se lembra de J. B. G. ter falado em pedir o seguro-desemprego, mas afirma que ele tinha direito, pois tinha as guias na mão. (...)” (fl. 59 - N. R.); “(...) O réu afirma que foi despedido, porém não se recorda a data em que isso ocorreu. Disse que ficou afastado de 15 a 30 dias, e depois retornou para a empresa, porque precisava trabalhar. Conversou com o patrão, Sr. N. R., para continuar trabalhando, sendo que ele aceitou, porque acha que ele precisava do interrogando, e o interrogando precisava do trabalho. Continuou trabalhando com um outro caminhão caçamba, de marca Chevrolet. Até que o interrogando saiu de lá, o caminhão não tinha sido vendido. Não sabe se depois ele foi vendido. Disse que o réu N. R. queria vender um caminhão Mercedes - 1113. Que era o que o réu estava trabalhando antes do retorno ao trabalho. O interrogando retornou ao emprego, mas passou a trabalhar com caminhão diferente, e esse caminhão da GM não era para ser vendido. (...) Disse que foi demitido de verdade, não havendo simulação. Voltou para a empresa porque estava difícil de conseguir emprego, sendo que até foi baixado o salário para que pudesse voltar. A empresa do Sr. N. R. estava em dificuldades. N. R. não falou sobre os motivos da demissão. (...) Passou a trabalhar normalmente neste período, como trabalhava anteriormente, só que com o salário menor e sem carteira assinada. Era igualmente subordinado ao Sr. N. R. Prestava serviços apenas para a empresa Construmac. Estava sempre à disposição do Sr. N. R. Na prática, a relação de trabalho não se modificou, continuando como empregado da empresa Construmac. (...) Na época, achava que o seguro-desemprego era uma ajuda. Ele solicitou tal ajuda porque não sabia se iria conseguir emprego ou não, pois no momento em que solicitou o benefício, não estava trabalhando na Construmac. Quando voltou para esta empresa, continuou recebendo, e não sabia que tinha que informar que havia retornado para o trabalho.(...)”. (fl. 60 e verso - J. B. G.) Conforme se denota, N. R. afirmou que J. B. G., mesmo após sua demissão, em 12.06.2001, exerceu a função de motorista de um caminhão 266 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 Mercedes que estava destinado à alienação, mantendo-se nesta condição até início de novembro, quando, negociado o veículo, teria sido legalmente recontratado para o cargo de serviços gerais. Entretanto, diverso foi o discurso de J. B. G., ao sustentar que após a nova contratação firmada com a pessoa jurídica CONSTRUMAC, continuou na atividade de motorista, agora de um caminhão GM, não tendo passado para o posto de serviços gerais. De igual forma, não se revela crível que a empresa empregadora, envolta em graves dificuldades financeiras, capazes de justificarem o desfazimento de patrimônio e empregado, tenha alterado, abruptamente, sua política administrativa, readmitindo o mesmo funcionário, poucos dias após sua demissão, demonstrando um incoerente interesse e condição de mantê-lo, ainda que por salário inferior, apesar de não existir nos autos nenhuma prova a esse respeito. Seria muito mais plausível, em tal situação, uma simples renegociação de valores, sem que houvesse a necessidade da dispensa. Outrossim, depreendeu-se dos depoimentos apresentados pelos réus, um modus operandi que a prática forense revelou ser comum à espécie de estelionato objeto da presente ação. Ou seja, empregador e empregado que, em comum acordo, resolvem assinar a resolução fícta do contrato de trabalho objetivando, normalmente, a retirada de valores atinentes ao seguro-desemprego e ao FGTS, em favor do trabalhador, e, em contrapartida, a diminuição dos gastos salariais para o patrão durante o período no qual houve a prestação irregular do serviço. Surpreendente, também, a coincidência existente entre os intervalos nos quais o réu J. B. G. esteve indevidamente empregado e recebendo os valores públicos do seguro-desemprego, aproximadamente 05 (cinco) meses, voltando, logo após o esgotamento das parcelas a que faria jus, a ter a sua situação trabalhista regularizada. Além disso, advoga contra J. B. G. o fato de constar nos autos recibos comprovando os depósitos das parcelas do benefício social pleiteado junto à CEF, os quais indicam ter ocorrido o efetivo recebimento a contar de setembro/2001 (fl. 28), informação esta que vai de encontro ao depoimento prestado por este denunciado em juízo, no sentido de ter requerido o seguro-social no exíguo prazo em que esteve realmente desocupado – “15 a 30 dias”. 267 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 Ademais, consta na ação trabalhista que a CTPS de J. B. G. não teria sido assinada pela CONSTRUMAC Materiais de Construção Ltda. em virtude de o empregado ter se negado “a entregá-la para a devida assinatura, usando desculpas evasivas, uma vez que encontrava-se em gozo do seguro-desemprego” (fl. 13), corroborando a prova do dolo na sua conduta ilícita. De igual forma, face à ciência da justificativa dada pelo funcionário para deixar de regularizar sua situação na empresa, o co-réu N. R. fica impedido de argüir a ausência de conhecimento do delito que se perpetuaria com a manutenção de J. B. G. em seu empreendimento. Desta feita, entendo presentes elementos suficientes quanto à materialidade e à autoria, inafastável um juízo condenatório de ambos os acusados. Relativamente à dosimetria da pena, em obediência ao sistema trifásico determinado pelo artigo 68 do Código Sancionador, temos, a título do exame das circunstâncias judiciais do artigo 59, que a culpabilidade dos réus foi normal para a espécie delitiva em questão. Não há notícias de antecedentes criminais. Quanto à conduta social e à personalidade dos acusados não foram encontrados dados suficientes nos autos, razão pela qual as considero neutras. Os motivos foram próprios do crime de estelionato (obtenção de vantagem) e as suas circunstâncias regulares ao tipo. Por fim, as conseqüências da infração foram reduzidas não havendo, também, que se cogitar de comportamento da vítima. Posta essa análise, importa fixar a pena-base no mínimo legal (1 ano). Na segunda fase da aplicação da pena, consideram-se as circunstâncias agravantes e atenuantes, as quais inexistiram no caso em tela. Por fim, há que se contabilizar as causas de aumento e diminuição previstas para a figura típica. Na hipótese em tela, tendo os réus praticado estelionato em detrimento de entidade de direito público (FAT), aplicável a majoração de 1/3 prevista no § 3º do artigo 171 da Carta Penal, ficando a pena definitiva em 01 (um) ano e 04 (quatro) meses. 268 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 Considerando a regra firmada no artigo 33, parágrafo 2º, alínea c, do Código Penal e a favorabilidade das circunstâncias judiciais do artigo 59, determino como regime inicial de cumprimento da pena o aberto. Em virtude de estarem presentes os pressupostos do artigo 44 do Codex Criminal, os denunciados fazem jus à substituição da pena privativa de liberdade aplicada por duas restritivas de direitos, quais sejam, uma de realização de serviços à comunidade ou a entidades públicas, pelo mesmo período das reprimendas substituídas; e outra de prestação pecuniária de 01 (um) salário mínimo para entidade pública ou com destinação social, a ser determinada pelo juízo da execução. No que pertine à multa, sob a égide do sistema bifásico contemplado no artigo 49 do Caderno Penal - circunstâncias judiciais e situação econômica do réu - e atentos à necessária proporcionalidade que a sanção pecuniária deve guardar com a pena privativa de liberdade, fixo em 39 dias-multa, à razão de 1/30 (um trigésimo) do salário mínimo vigente ao tempo do fato. Com o trânsito em julgado para as partes: a) cumpram-se as disposições do artigo 809, § 3º, do Código de Processo Penal; b) expeça-se ofício ao Egrégio Tribunal Regional Eleitoral, para fins do disposto no artigo 15, inciso III, da Constituição Federal; c) lance-se o nome dos réus no rol de culpados; Ante o exposto, voto no sentido de dar provimento à apelação do Ministério Público, de modo a condenar os réus à pena privativa de liberdade, de 01 (um) ano e 04 (quatro) meses de reclusão, em regime aberto, a ser substituída por duas restritivas de direitos, e multa, no total de 39 (trinta e nove) dias-multa, a razão de 1/30 do salário mínimo vigente à época dos fatos. R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 269 HABEAS CORPUS Nº 2003.04.01.030678-0/RS Relatora: A Exma. Sra. Desa. Federal Maria de Fátima Freitas Labarrère Impetrantes: Enio Duarte Fernandez Junior e outro Impetrado: Juízo Substituto da 2ª Vara Federal de Rio Grande/RS Paciente: F. Q. R. EMENTA Habeas corpus. Falso testemunho. Retratação do agente. Comunicabilidade aos partícipes. Extinção da punibilidade. Trancamento da ação penal. Extinta a punibilidade no crime de falso testemunho por força da retratação realizada oportuno tempore, não subsiste a punibilidade em relação aos demais agentes, já que restaurada a verdade sobre os fatos juridicamente relevantes. Ordem concedida. ACÓRDÃO Vistos e relatados estes autos entre as partes acima indicadas, decide a Sétima Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por unanimidade, conceder a ordem de Habeas Corpus, nos termos do relatório, voto e notas taquigráficas que ficam fazendo parte integrante do presente julgado. Porto Alegre, 26 de agosto de 2003. Desa. Federal Maria de Fátima Freitas Labarrère, Relatora. RELATÓRIO A Exma. Sra. Desa. Federal Maria de Fátima Freitas Labarrère: Enio Duarte Fernandez Junior e outro impetram o presente Habeas Corpus para fins de trancamento da ação penal 2003.71.01.000328-3, em favor de F. Q. R. Nos dizeres da inicial, o paciente foi denunciado por suposta prática de infração ao artigo 342, § 1º, do Código Penal por ter, segundo a denúncia, concorrido a induzir o Sr. Avelino Terra – testemunha de acusação nos autos da Ação Penal 2000.71.01.000050-5 – a prestar falso testemunho. Referem os impetrantes que a testemunha foi presa em flagrante e, logo 270 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 após, efetuou a retratação, tanto perante a autoridade policial quanto em juízo, tendo sido declarada extinta a punibilidade, nos termos do artigo 107, inciso VI, do Código Penal. Argumentam que não há justa causa para a ação penal, em vista da extinção da punibilidade do agente, circunstância que se comunica aos demais envolvidos no delito, de modo que, sob o aspecto processual, a retratação válida no crime previsto no artigo 342, § 1º, do Código Penal estende-se aos co-autores, tornando impunível o fato. Requerem: a) seja liminarmente concedida a ordem determinando o trancamento da ação penal nº 2003.71.01.000328-3, em vista da manifesta ausência de justa causa e da extinção da punibilidade; b) notificação da autoridade coatora. A medida liminar foi deferida, e as informações foram prestadas pela autoridade dita coatora. (fls. 121/122) O parecer do Ministério Público Federal é pela denegação da ordem de Habeas Corpus, devendo a Ação Penal iniciada contra o paciente merecer regular prosseguimento. É o relatório. VOTO A Exma. Sra. Desa. Federal Maria de Fátima Freitas Labarrère: Como é cediço, o delito de falso testemunho previsto no artigo 342 do Código Penal é classificado como crime de mão-própria, sendo a execução do delito de caráter eminentemente pessoal. No entanto, determinado segmento doutrinário entende que, se o agente induz a testemunha a prestar falso testemunho em juízo, sobre fato relevante para a solução de lide penal, resta configurada a participação no crime do artigo 342 do Código Penal. Trata-se, pois, de crime de mão-própria, como já referido, que admite a co-autoria ou participação sob as formas de indução e auxílio. É firme a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal no sentido de admitir a caracterização de co-autoria/participação no crime de falso testemunho, quando a testemunha é induzida por outrem à prática do falso, conforme se extrai dos seguintes julgados: “EMENTA: Recurso ordinário. Habeas corpus. Falso testemunho (art. 342 do CP). R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 271 Alegação de atipicidade da conduta, consistente em depoimento falso sem potencialidade lesiva. Aferição que depende do cotejo entre o teor do depoimento e os fundamentos da sentença. Exame de matéria probatória, inviável no âmbito estreito do writ. Co-autoria. Participação. Advogado que instrui testemunha a prestar depoimento inverídico nos autos de reclamação trabalhista. Conduta que contribuiu moralmente para o crime, fazendo nascer no agente a vontade delitiva. Art. 29 do CP. Possibilidade de co-autoria. Relevância do objeto jurídico tutelado pelo art. 342 do CP: a administração da justiça, no tocante à veracidade das provas e ao prestígio e seriedade da sua coleta. Relevância robustecida quando o partícipe é advogado, figura indispensável à administração da justiça (art. 133 da CF). Circunstâncias que afastam o entendimento de que o partícipe só responde pelo crime do art. 343 do CP. Recurso ordinário improvido.” (RHC 81327 / SP, Relator(a): Min. Ellen Gracie Northfleet, Publicação: DJ Data - 05.04.02) “EMENTA: HABEAS-CORPUS. CO-AUTORIA ATRIBUÍDA A ADVOGADO EM CRIME DE FALSO TESTEMUNHO. POSSIBILIDADE. Advogado que instrui testemunha a apresentar falsa versão favorável à causa que patrocina. Posterior comprovação de que o depoente sequer estava presente no local do evento. Entendimento desta Corte de que é possível, em tese, atribuir a advogado a co-autoria pelo crime de falso testemunho. Habeas-Corpus conhecido e indeferido.” (HC 75037 / SP - São Paulo, Relator(a): Min. Marco Aurélio, Rel. p/Acórdão Min. Maurício Corrêa, Publicação: DJ DATA-20.04.01) Superada tal questão, impõe-se a análise da questão relativa à comunicabilidade da retratação do agente. Dispõe o parágrafo 2º do artigo 342 do Código Penal que “o fato deixa de ser punível se, antes da sentença no processo em que ocorreu o ilícito, o agente se retrata ou declara a verdade”. A questão da comunicabilidade da retratação não é pacífica. No entanto, é da interpretação literal da norma penal em referência que se extrai a melhor solução à espécie. Se o legislador disciplinou causa de extinção de punibilidade por razões de política criminal para fins de proteção dos interesses da justiça – já que mais atende à justiça a descoberta da verdade do que a punição do falso testemunho – prevendo que o “fato deixa de ser punível”, certo é que tal condição aproveita aos co-autores do delito. Desta forma, extinta a punibilidade no crime de falso testemunho por força da retratação de um dos concorrentes realizada oportuno tempore, não subsiste a punibilidade em relação aos demais agentes, já que restaurada a verdade sobre os fatos juridicamente relevantes. Nestes termos, voto no sentido de conceder a ordem. 272 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 HABEAS CORPUS Nº 2003.04.01.041096-0/PR Relator: O Exmo. Sr. Des. Federal Élcio Pinheiro de Castro Impetrantes: Antônio Acir Breda e outros Impetrado: Juízo Federal da 2ª Vara Federal Criminal de Curitiba/PR Paciente: R. C. EMENTA Habeas corpus. “Lavagem de dinheiro”. Remessa fraudulenta de numerário ao exterior. Contas CC5. Dispensa de inquérito policial. Litispendência parcialmente caracterizada. Princípio do juiz natural. Poder geral em matéria de prova não acarretador de impedimento. Lei nº 9.664/98. Resolução nº 314 do CJF e 20 do TRF 4ª Região. Legalidade firmada pela Quarta Seção desta Corte. Quebra de sigilo telefônico. Prevenção. Ausência. Pressupostos da prisão preventiva. Fundamentação. Art. 312 do CPP. Indícios de autoria. Ofensa à ordem pública. Liberdade provisória. Concessão inviável. Artigos 7º da Lei nº 9.034/95, 30 da Lei nº 7.492/86 e 3º da Lei nº 9.613/98. Ordem denegada. 1. In casu, o Paciente responde a duas demandas penais: uma ajuizada perante a 1a Vara Federal Criminal de Foz do Iguaçu/PR – investigando o possível cometimento dos delitos inscritos nos artigos 16, 21 e 22 da Lei nº 7.492/86 c/c art. 288 do CP em virtude da remessa de R$ 607.668,00 (seiscentos e sete mil, seiscentos e sessenta e oito reais) entre 07.04.97 e 26.06.97, ao Banco Integración, do Paraguai – e outra em trâmite na 2a Vara Federal Criminal de Curitiba, apurando a prática de idênticas infrações, desta vez pelo provável envio de R$ 631.251.003,53 (seiscentos e trinta e um milhões, duzentos e cinqüenta e um mil, três reais e cinqüenta e três centavos) entre 1996 e 1998, ao mesmo destino. 2. Ainda que ofertada a denúncia pelo Ministério Público sem o respectivo inquérito policial, isso não macula a ação penal e o respectivo decreto prisional, até porque a persecutio criminis in iudicio pode ser proposta independentemente da existência do aludido apuratório. Ademais, caso reconhecida, seria hipótese de nulidade relativa, havendo necessidade de demonstração do efetivo prejuízo (art. 563/CPP) o que sequer foi cogitado nos autos. 3. A circunstância de restar caracterizada parcial litispendência (relativa ao envio de R$ 80.140,60 via CC-5) não elide, R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 273 por si só, a custódia preventiva imposta eis que prejudicada a persecução penal de parcela mínima dos fatos narrados na inicial. 4. O fato de haver a autoridade impetrada inquirido outras testemunhas que não as arroladas na peça acusatória de maneira alguma a torna impedida para o julgamento do feito, porquanto os artigos 502, parágrafo único, e 156 do CPP facultam ao Magistrado o poder geral ex officio em matéria de prova quando achar necessário. 5. A Lei nº 9.664/98 preceitua, em seu art. 3o, que “caberá ao Tribunal Regional Federal da 4a Região, mediante ato próprio, especializar Varas em qualquer matéria, estabelecer a respectiva localização, competência e jurisdição, bem como transferir sua sede de um município para o outro, de acordo com a conveniência do Tribunal e a necessidade de agilização da prestação jurisdicional”. 6. Tendo em conta esse diploma legal, bem como o disposto na Resolução nº 314 do CJF, a Presidência desta Corte editou a Resolução nº 20/03 providenciando, entre outras medidas, a especialização de Varas Federais Criminais para processar e julgar crimes contra o Sistema Financeiro Nacional e de “lavagem” ou ocultação de bens, direitos e valores (Leis nos 7.492/86 e 9.613/98). 7. Ao Poder Judiciário não é vedado decidir sobre a especialização (e conseqüente modificação da competência) de seus órgãos, porquanto tal prerrogativa é ínsita à garantia de auto-organização inscrita no artigo 99 da Magna Carta. 8. Descabe cogitar de prevenção face a decisum quebrando o sigilo telefônico do agente, na medida em que inexistem dois juízos igualmente competentes (art. 83, CPP), sendo-o, na espécie, tão-só o de Curitiba/PR. 9. As circunstâncias de primariedade, bons antecedentes, emprego e residência fixa, por si sós, não são suficientes para elidir o decreto prisional, se devidamente fundamentado nas hipóteses elencadas no artigo 312 do CPP. 10. A garantia da ordem pública consubstancia-se não somente em evitar novos crimes. Leva em consideração, também, o grande impacto social causado. Assim, a gravidade do ilícito cometido, a par de outros fatores, é elemento hábil a fundamentar custódia ante tempus. 11. Nos termos do artigo 312, in fine, da Lei Adjetiva Penal, basta a existência de um mínimo de elementos indicativos do autor do delito, sendo desnecessária a mesma certeza exigida para a prolação do decreto condenatório. 12. O art. 30 da Lei nº 7.492/86, por sua vez, autoriza a decretação de prisão preventiva face à magnitude da lesão causada ao Sistema Financeiro 274 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 Nacional. 13. Relatando a exordial intensa e efetiva participação do Paciente na quadrilha, incabível a concessão do benefício da liberdade provisória (art. 7º da Lei nº 9.034/95). 14. A Lei nº 9.613/98 (que dispõe sobre “lavagem” ou ocultação de bens, direitos e valores) preceitua, em seu artigo 3o, primeira parte, que “os crimes disciplinados nesta lei são insuscetíveis de fiança e liberdade provisória”, de modo que havendo sido o agente acusado da prática de tal espécie delituosa (art. 1o, incisos VI e VII, c/c § 4o) resta justificada a prisão ante tempus. 15. Ademais, impõe-se, na espécie, a manutenção do encarceramento provisório, eis que o denunciado encontra-se foragido, havendo indicativos da existência de significativo patrimônio no exterior. 16. Ordem denegada. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos entre as partes acima indicadas, decide a Oitava Turma do Tribunal Federal da 4ª Região, por unanimidade, denegar a ordem, nos termos do relatório, voto e notas taquigráficas que ficam fazendo parte integrante do presente julgado. Porto Alegre, 29 de outubro de 2003. Des. Federal Élcio Pinheiro de Castro, Relator. RELATÓRIO O Exmo. Sr. Des. Federal Élcio Pinheiro de Castro: Cuida-se de habeas corpus, com pretensão liminar, impetrado por Antônio Acir Breda e outros, em favor de R. C., contra ato do MM. Juiz da 2ª Vara Federal Criminal de Curitiba impondo segregação preventiva nos autos da ação penal número 2003.70.00.039532-0. Segundo se infere do caderno processual, o Parquet ofereceu denúncia (fls. 45/108) contra o agente face à suposta prática, em co-autoria, dos delitos capitulados nos arts. 288 e 299 do Código Penal (CP), artigos 4o, 16 e 22 da Lei nº 7.492/86 e 1o, VI e VII, § 4o, da Lei nº 9.613/98. Nos dizeres da exordial, “durante as investigações da Polícia Federal, ficou claro que D. C. (vulgo ‘Pingo’) e R. C., proprietários da empresa Sigla Câmbio e Turismo, sediada em Curitiba, são sócios de fato da empresa Casa de Câmbios Imperial SRL. Os denunciados, com a sucursal paraguaia, tinham o real escopo de facilitar a respectiva remessa ilegal de valores para o Paraguai e outros países, através de conta CC5 (de não-residentes). Outrossim, além de D. C. constar como sócio de direito da empresa Phoenix, continuou a gerir tal empresa R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 275 mesmo após 25.09.98, juntamente com seu irmão e denunciado R. C. (...)”. (fl. 63) Recebida a inicial em 08.08.2003 (fls. 110/115), o MM. Juiz a quo, em face do requerimento formulado pelo Ministério Público Federal, decretou a prisão preventiva do Paciente e outros denunciados (fls. 117/122) como forma de garantir a ordem pública e assegurar a aplicação da lei penal. Contra essa ordem de acontecimentos foi interposto o presente mandamus. Nas razões (fls. 02/43), aduzem os Impetrantes, em suma, que o Paciente está sofrendo constrangimento ilegal à sua liberdade de locomoção, uma vez que a custódia cautelar foi ordenada por autoridade incompetente. Nesse escopo, sustentam que as Resoluções nos 314 do Conselho da Justiça Federal (CJF) e 20 desta Corte, ao criarem Varas especializadas na apuração de delitos contra o Sistema Financeiro Nacional e de “lavagem” ou ocultação de bens, direitos e valores – no caso a 2ª Vara Federal Criminal de Curitiba – afrontaram diretamente o princípio do Juiz Natural, em razão da inexistência de lei autorizando tal especificidade, porquanto as referidas resoluções são atos meramente administrativos. Além de aventarem que as referidas normas não poderiam alcançar fatos anteriormente praticados, salientam que, antes de oferecida a denúncia, o Juízo Federal de Foz do Iguaçu já havia proferido atos decisórios na fase das investigações (quebra do sigilo telefônico) razão por que sua competência estava firmada pela prevenção, nos termos do artigo 83 do CPP. De outro lado, asseveram estar caracterizada a litispendência entre as ações penais nos 97.101.2388-2 e 2003.70.00.039532-0 (tramitando perante a 1a Vara Federal Criminal de Foz do Iguaçu/PR e 2a Vara Federal Criminal de Curitiba, respectivamente) uma vez que, nas suas palavras, “o delito é um só (promover evasão de divisas através das empresas Phoenix e Imperial), os réus são os mesmos (sócios de fato e de direito das referidas empresas) e as operações são coincidentes, tanto que no presente feito há expressas referências aos depósitos objeto da ação penal de Foz do Iguaçu/PR (...). Ademais, o período dos fatos também é praticamente o mesmo (96/98) (...). Em razão disso, não há como deixar de reconhecer a litispendência, eis que manifesta a reiteração da mesma denúncia – que apenas incluiu novas operações”. (fls. 26/27) De modo que, falecendo competência à autoridade coatora, resta nulo, na sua ótica, o decreto prisional exarado contra o Paciente. Mencionam 276 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 violação ao artigo 12 do Diploma Processual, alegando que o inquérito policial não acompanhou a denúncia ofertada pelo Parquet. Aduzem, ainda, estar o Magistrado singular impedido (art. 252, II, CPP) porquanto “após o cumprimento do mandado de prisão expedido contra o irmão do paciente, D. C., determinou a separação do procedimento através do despacho de fls. 129/130. Nessa ocasião, a digna autoridade jurisdicional criou um rol de testemunhas de acusação completamente desvinculado da denúncia do MPF, contrariando o princípio elementar do processo penal no Estado de Direito democrático, que é a imparcialidade”. (fl. 34) Por fim, sustentam a desnecessidade da custódia cautelar (eis que o réu é primário, detém ocupação lícita e residência fixa) destacando que “a suposta ‘magnitude da lesão’, por si só, não justifica a prisão preventiva, já que não há evidência alguma de que o Paciente pretenda evadir-se do foro da causa”. (fl. 40) Nesse contexto, requerem a concessão liminar da ordem e sua posterior confirmação pela Turma para que seja revogado o decreto prisional. A tutela de urgência foi indeferida. (fls. 233/239) A ínclita autoridade impetrada prestou informações (fls. 252/254) em que pugnou pela legalidade do guerreado decisum, juntando, ainda, documentos. (fls. 255/259) Oficiando no feito (fls. 261/283), a douta Procuradoria Regional da República opinou pela denegação da ordem. É o relatório. VOTO O Exmo. Sr. Des. Federal Élcio Pinheiro de Castro: O decisum que indeferiu a pretensão liminar (fls. 233/239) praticamente esgotou o exame da questão sub judice, razão pela qual, para evitar desnecessária tautologia, tomo a liberdade de reproduzir parte de seu conteúdo: “Em que pesem os doutos fundamentos constantes da exordial, não se verifica, por ora, razões suficientes para o afastamento da r. decisão hostilizada. Com efeito, não há falar em nulidade da medida constritiva face à suposta incompetência do Juízo por violação ao princípio do Juiz Natural, eis que o magistrado a quo apenas deu cumprimento à Resolução nº 20 desta Corte (que determinou a especialização da 2a Vara Federal Criminal de Curitiba para processar e julgar os delitos previstos nas Leis nos 7.492/86 e 9.613/98) cuja legalidade já foi, inclusive, firmada por esta Turma e R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 277 pela 4ª Seção deste Regional, como se verifica das ementas a seguir: ‘PENAL. PROCEDIMENTO CRIMINAL. COMPETÊNCIA. SISTEMA FINANCEIRO NACIONAL. ‘LAVAGEM’ DE DINHEIRO. RESOLUÇÃO Nº 314/CJF. RESOLUÇÃO Nº 20/TRF 4a REGIÃO. 1. Tratando-se de procedimento criminal, a competência é determinada pela exegese das Resoluções nº 32 do Conselho da Justiça Federal e nº 20 desta Corte, com a especialização da 2a Vara Criminal de Curitiba/PR para processar crimes contra o Sistema Financeiro Nacional e de ‘lavagem’ ou ocultação de bens, direitos e valores. 2. Negado provimento ao recurso em sentido estrito.’ (8ª Turma, RSE nº 2003.72.05.003328-8/SC, Rel. Des. Luiz Fernando Wowk Penteado, julgado em 27.08.2003); ‘PENAL E PROCESSUAL PENAL. CONFLITO DE COMPETÊNCIA. JUÍZO FEDERAL DE CURITIBA E DE FOZ DO IGUAÇU. CRIMES DE LAVAGEM DE DINHEIRO, SONEGAÇÃO FISCAL E EVASÃO DE DIVISAS. CONTAS CC-5. CONTAS DE DOMICILIADO NO EXTERIOR. VARA ESPECIALIZADA. RESOLUÇÃO Nº 20/2003 DESTE TRF-4ª REGIÃO. Tratando-se de inquérito policial em que se averigua a prática, em tese, de crime de lavagem de dinheiro, por meio de contas CC-5, contas de domiciliados no exterior, em conexão com outros delitos, tais como sonegação fiscal, evasão de divisas e formação de quadrilha, no Estado do Paraná, a competência para processar e julgar o feito é da 2ª Vara Federal Criminal de Curitiba, nos termos da alínea c do art. 1º c/c art. 6º da Resolução nº 20, de 26 de maio de 2003, editada pela Presidência deste Regional.’ (4ª Seção, CC nº 2003.04.01.007588-5/PR, Rel. Des. José Germano da Silva, DJU de 25.06.2003, p. 555/556). Quanto à alegação de inexistência de lei autorizando a especialização das Varas Federais e sua competência no tocante aos fatos anteriormente praticados, mister transcrever excerto do voto do eminente Desembargador Luiz Fernando Wowk Penteado referente ao primeiro julgado retromencionado, que, mutatis mutandis, aplica-se in totum ao caso sub judice: ‘(...) Assim, a rigor, em se tratando de ‘procedimento’ criminal e não de ação penal, deve ser enviado ao Juízo competente definido na citada Resolução. Nesse sentido ressalto que a Corte apenas traduz a indicação do Conselho da Justiça Federal, conforme a Resolução nº 314. Giza a Lei nº 5.010/66: ‘Art. 12. Nas seções Judiciárias em que houver mais de uma Vara, poderá o Conselho da Justiça Federal fixar-lhes sede em cidade diversa da Capital, especializar Varas e atribuir competência por natureza de feitos a determinados Juízes.’ Consta na Lei nº 7.727/89: ‘Art. 11 (...) Parágrafo único. Até a promulgação da lei a que se refere este artigo, aplicam-se à administração da Justiça Federal de primeiro e segundo graus, no que couber, as disposições da Lei nº 5.010, de 30 de maio de 1996, respeitadas as normas constitucionais pertinentes.’ Dispõe a Lei nº 9.664/98: ‘Art. 3º. Caberá ao Tribunal Regional Federal da 4ª Região, mediante ato próprio, especializar Varas em qualquer matéria, estabelecer a respectiva localização, competência e jurisdição, bem como transferir sua sede de um Município para outro, de acordo com a conveniência do Tribunal e a necessidade de agilização da prestação jurisdicional.’ Logo, não há qualquer ilegalidade ou mesmo inconstitucionalidade. A alegação de gravame ao disposto na Convenção Americana dos Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica) na criação de juízo posterior aos fatos serem julgados, junto com a afirmação de que a especialização constituirá juízo de exceção (art. 278 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 5º, XXXVII, da CF) não merecem maiores digressões, porquanto a Vara Criminal de Florianópolis/SC era preexistente aos supostos delitos e não foi especialmente criada para tal apreciação.’ Efetivamente, não se cogita de ofensa ao aludido princípio, inscrito nos incisos do art. 5o da CF/88 (‘XXXVII - não haverá juízo ou tribunal de exceção; LIII - ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente’). Isso porque, na lição de Alexandre de Moraes (in Direito Constitucional, Editora Atlas, SP, 9a edição, 2001, p. 103), ‘juiz natural é somente aquele integrado no Poder Judiciário, com todas as garantias institucionais e pessoais previstas na Constituição Federal. Assim, somente os juízes, tribunais e órgãos jurisdicionais previstos na CF/88 se identificam ao juiz natural, princípio que se estende ao poder de julgar também previsto em outros órgãos. O referido princípio deve ser interpretado em sua plenitude, de forma a proibir-se não só a criação de tribunais ou juízos de exceção, mas também de respeito absoluto às regras objetivas de determinação de competência, para que não seja afetada a independência e imparcialidade do órgão julgador.’ In casu, não foi criado nenhum juízo de exceção, pelo contrário, a ação penal número 2003.70.00.039532-0 teve sua competência firmada em 08.08.2003, posteriormente à edição das Resoluções nos 314/CJF (12.05.2003) e 20 deste Regional (26.05.2003). (...) Por derradeiro, o fato de não ter o inquérito policial acompanhado a denúncia ofertada pelo Ministério Público não implica macular a ação penal e o respectivo decreto prisional, até mesmo porque, como é cediço, a persecutio criminis in iudicio pode ser proposta independentemente da existência do aludido apuratório. Afora isso, caso reconhecida, seria hipótese de nulidade relativa, havendo necessidade de demonstração do efetivo prejuízo (art. 563/CPP) circunstância que sequer foi cogitada nos autos. Diante do exposto, não vislumbrando, por ora, flagrante ilegalidade ao status libertatis do Paciente, indefiro a liminar. Solicitem-se informações à digna autoridade impetrada, que as prestará no prazo de 05 (cinco) dias. Após, abra-se vista ao Ministério Público Federal. Intimem-se. Publique-se.” Complementando a fundamentação supra, cabe ratificar que ao contrário do que se alegou na exordial, não há falar em nulidade do decreto constritivo por suposta incompetência do juízo. Por certo descabe aos Tribunais a criação de novéis estruturas, tais como cartórios ou cargos. Isso não acarreta, todavia, impedimento ao Judiciário para decidir acerca da especialização material de Varas, porquanto tal prerrogativa é ínsita ao poder de auto-organização inscrito no artigo 99 da CF/88. Nesse sentido, resolveu o Conselho da Justiça Federal editar, em 12 de maio do corrente ano, a Resolução 314, dispondo que: “os Tribunais Regionais Federais, na sua área de jurisdição, especializarão varas federais criminais com competência exclusiva ou concorrente, no prazo de sessenta dias, para processar e julgar os crimes contra o sistema financeiro nacional e de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores”. (publ. no DJU de 14.05.2003) R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 279 Por outro lado, a Lei nº 9.664, de 19.06.98, dispõe no seu art. 3o, verbis: “Caberá ao Tribunal Regional Federal da 4a Região, mediante ato próprio, especializar Varas em qualquer matéria, estabelecer a respectiva localização, competência e jurisdição, bem como transferir sua sede de um município para outro, de acordo com a conveniência do Tribunal e a necessidade de agilização da prestação jurisdicional.” Procurando regulamentar o diploma mencionado, a Presidência desta Corte editou, no dia 20 de maio do corrente ano, a Resolução nº 20, a qual preceitua, em resumo, o seguinte: “O PRESIDENTE DO TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 4ª REGIÃO, usando de suas atribuições legais e regimentais, tendo em vista o decidido no PA nº 03.11.00025-8, pelo Conselho de Administração, em sessão realizada no dia 26 de maio de 2003, e CONSIDERANDO a determinação contida na Resolução nº 314, de 12 de maio de 2003, do Conselho da Justiça Federal, que determina a especialização de varas federais criminais para processar e julgar crimes contra o Sistema Financeiro Nacional e de ‘lavagem’ ou ocultação de bens, direitos e valores; CONSIDERANDO que a especialização de varas tem se revelado medida salutar, com notável incremento na qualidade e na celeridade da prestação jurisdicional; CONSIDERANDO as dificuldades de processamento dos delitos referidos, por conta da peculiaridade e complexidade da matéria envolvida; CONSIDERANDO que os Tribunais Regionais Federais possuem autorização legal para especializar varas, de acordo com o disposto nos arts. 11 e 12 da Lei nº 5.010/66 c/c o art. 11, parágrafo único, da Lei nº 7.727/89, resolve: Art. 1º. Especializar as seguintes varas criminais para processar e julgar os crimes contra o sistema financeiro nacional e de ‘lavagem’ ou ocultação de bens, direitos e valores: a) 1ª Vara Criminal de Porto Alegre, Rio Grande do Sul; b) Vara Criminal de Florianópolis, Santa Catarina; c) 2ª Vara Criminal de Curitiba, Paraná. (...) § 3º. A 2ª Vara Criminal de Curitiba, além da competência ora atribuída, manterá a competência para os feitos do júri. Art. 2º. Serão processados perante vara criminal especializada os crimes previstos no art. 1º , qualquer que seja o meio, modo ou local de execução. § 1º. As varas criminais especializadas são consideradas juízo criminal especializado em razão da matéria e terão competência sobre toda a área territorial compreendida em cada seção judiciária. § 2º. Serão processados e julgados perante as varas criminais especializadas as ações e incidentes relativos a seqüestro e apreensão de bens, direitos ou valores, pedidos de restituição de coisas apreendidas, busca e apreensão, hipoteca legal e quaisquer outras medidas assecuratórias, bem como todas as medidas relacionadas com a repressão penal de que trata o caput deste artigo, inclusive medidas cautelares antecipatórias ou preparatórias. (...)” Assim, o Magistrado a quo agiu em observância ao ato normativo supracitado – cuja legalidade já foi, inclusive, firmada nesta Corte – não havendo falar em suposta prevenção face ao decisum de fls. 127/129 (quebra de sigilo telefônico do Paciente) na medida em que inexistem 280 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 dois juízos igualmente competentes (artigo 83 do CPP) sendo-o tão-só o de Curitiba/PR, conforme retromencionado. Já as questões relativas à listispendência e ao impedimento do julgador monocrático foram examinadas por ocasião da análise dos habeas corpus nos 2003.04.01.037278-8 e 2003.04.01.033707-7 – no que tange ao acusado D. C., versando sobre os mesmos fatos e delitos ora em debate – cujos fundamentos, não apoiados em caráter exclusivamente pessoal, aplicam-se integralmente na hipótese dos autos, razão pela qual, objetivando evitar desnecessária tautologia, transcrevo parte das razões ali expostas: “No tocante à suposta litispendência entre os processos nos 7.101.2388-2 e 2003.70.00.039532-0, cabe aferir que analisando o caderno processual, verifica-se que aquela demanda – ajuizada perante a 1a Vara Federal Criminal de Foz do Iguaçu/PR – investiga o possível cometimento dos delitos inscritos nos artigos 16, 21 e 22 da Lei nº 7.492/86 c/c art. 288 do CP (fls. 278/279) em virtude da remessa de R$ 607.668,00 (seiscentos e sete mil, seiscentos e sessenta e oito reais) entre 07.04.97 e 26.06.97 (fl. 257), ao Banco Integración, do Paraguai. Por outro lado, o segundo processo-crime, em trâmite na 2a Vara Federal Criminal de Curitiba, apura a prática de idênticas infrações, só que desta vez pelo provável envio de R$ 631.251.003,53 (seiscentos e trinta e um milhões, duzentos e cinqüenta e um mil, três reais e cinqüenta e três centavos), entre 1996 e 1998, ao mesmo destino (fl. 79). Logo, ao menos neste juízo perfunctório, é possível afirmar que, se efetivamente há litispendência, a mesma não elide, por si só, a custódia preventiva imposta neste último feito, como aliás bem elucidou o Juízo a quo nas informações prestadas, verbis: ‘A defesa propôs, recentemente, exceção de litispendência, que ainda não chegou ao seu término, não tendo este juízo ainda uma avaliação completa. De todo modo, cumpre adiantar que a ação penal em questão tem por objeto remessas fraudulentas efetuadas a partir de dezenas de contas específicas abertas em nome de ‘laranjas’, e cuja responsabilidade foi atribuída, entre outros, ao Paciente. As contas em questão foram declinadas na inicial. O objetivo da força-tarefa do MPF em Curitiba foi o de racionalizar a persecução penal através de uma visão global de todo o esquema fraudulento. Até então, a persecução penal estava sendo pulverizada, com a propositura de uma ação penal por ‘conta laranja’, o que evidentemente não englobava todo o esquema criminoso. A ação penal ora proposta é, então, única. (...) Quando muito, haverá litispendência parcial em relação a essas contas, devendo-se excluir da ação penal ora combatida as remessas referentes àquelas contas. Portanto, não está em tramitação nenhuma outra ação penal que tenha por objeto todas as contas fraudulentas relacionadas na inicial, nem todas as remessas efetuadas a partir delas.’ Ademais, estando em curso exceção de litispendência e em face da complexidade da matéria, não é razoável antecipar-se ao decisum a ser exarado pelo Juízo monocrático, sob pena de indevida supressão de grau jurisdicional. Mais adequado, sim, aguardar o trâmite do incidente previsto no art. 110 da Lei Adjetiva Penal. A par disso, o fato de R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 281 haver a autoridade impetrada inquirido outras testemunhas que não as arroladas na peça acusatória de maneira alguma a torna impedida para o julgamento do feito, porquanto o art. 502, parágrafo único, do CPP faculta ao Magistrado o poder geral ex officio em matéria de prova quando achar necessário, ao dispor que ‘o juiz poderá determinar que se proceda, novamente, a interrogatório do réu ou a inquirição de testemunhas e do ofendido, se não houver presidido a esses atos na instrução criminal.’ Também consta do artigo 156 do mesmo diploma legal que o ‘o juiz poderá, no curso da instrução ou antes de proferir a sentença, determinar, de ofício, diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante’.” (HC nº 2003.04.01.037278-8 – decisão liminar) Nessa linha, cabe destacar que a ínclita autoridade coatora juntou documentos evidenciando ter parcialmente acolhido a exceção de litispendência proposta na ação penal nº 2003.70.00.043123-3. Ressalvou, todavia, “não se tratar da mesma ação, tendo ambas objetos bastante diferenciados, o que é ilustrado pela disparidade dos valores das remessas em uma e outra. É o caso, porém, de reconhecer litispendência parcial, excluindo-se do objeto da presente ação penal as remessas efetuadas a partir da conta de Olmar Gavazzoni e através dos depósitos na conta CC5 da Casa de Câmbio Imperial, que totalizaram R$ 80.140,60” (fl. 255). De modo que restando prejudicada a persecução penal no tocante à parcela mínima dos fatos narrados na peça acusatória, não há perquirir acerca de descabimento da segregação cautelar. Por fim, insta gizar que, ao contrário do que se alegou na exordial, o provimento ora em debate apontou pormenorizadamente a necessidade da prisão ante tempus do acusado, expondo sua provável participação na empreitada criminosa, sendo-lhe imputado, conforme cópia da peça acusatória acostada aos autos pelo MM. Juiz a quo (fls. 45/108), os delitos capitulados nos artigos 288 e 299 do CP; 4º, 16 e 22 da Lei nº 7.492/86 e 1º, VI e VII, c/c § 4º da Lei nº 9.613/98. Os indícios de autoria restaram demonstrados na hipótese, principalmente a partir da transcrição, na denúncia, de vários testemunhos prestados em sede inquisitorial e outros elementos indicando a aparente ligação de R. C. com a cadeia delitiva, verbis: “(...) Durante as investigações da Polícia Federal nos inquéritos acima referidos, ficou claro que D. C. (vulgo ‘Pingo’) e R. C., proprietários da empresa Sigla Câmbio e Turismo, sediada em Curitiba, são sócios de fato da empresa Casa de Câmbios Imperial SRL. Tais denunciados, com a sucursal paraguaia, tinham o real escopo de facilitar a respectiva remessa ilegal de valores para o Paraguai e outros países, através de CC5 (de não-residentes). Outrossim, além de D. C. constar como sócio de direito da empresa 282 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 Phoenix, veja-se que continuou a gerir tal empresa mesmo após 25.09.98, juntamente com seu irmão e denunciado R. C. Neste momento, trazemos à baila alguns depoimentos e documentos importantes ao deslinde da quaestio: (...) José Aparecido Pinheiro da Silva disse nos IPs nos 419/98 e 556/98 que ‘na realidade Guilhermo Spindula Vilanueva trata-se de um testa-de-ferro do Sr. R. C., pessoa de alto poder aquisitivo, com empresas no Paraguai, em Curitiba e em Foz do Iguaçu, muito embora algumas não sejam registradas em seu próprio nome; que o Sr. R. C., no Paraguai, além de possuir a Casa de Câmbios Imperial, também é proprietário da Imperial Tabacos’. (...) Ailton Bortolotti disse no IPL nº 256/98 que ‘conhece R. C. em razão deste ser proprietário da Casa de Câmbios Imperial – PY, se recordando que este teve uma certa vez na agência do Banco Del Paraná, quando ocorreu o problema com a Casa de Câmbios Imperial’. (...) Aliás, importante salientar que foram apreendidas no apartamento do denunciado R. C. 160 ações ordinárias da empresa Imperial Tabacos AS/Ciudad Del Este, séries I a XVI, contendo cada série 10 títulos ao portador, no valor individual de dez milhões em guaranis, o que importa em praticamente R$ 1.000.000,00 (um milhão de reais). Impende ainda asseverar que R. C. assina como Presidente da Imperial Tabacos e Oscar Antero Cardenas Morel (sócio de direito da Casa de Câmbios Imperial) assina em tais ações como Diretor – o que comprova a ligação entre os dois e a propriedade de tal empresa e da Casa de Câmbios Imperial.” (fls. 63/64, 66 e 69) Esse suporte fático é o bastante para demonstrar “indício suficiente de autoria” consoante exige o artigo 312, in fine, do CPP. Isso não implica a comprovação da acusação formulada contra o Paciente, tampouco a desconsideração definitiva das alegações vertidas na impetração. Logo, as questões expostas na inicial deverão ser instruídas e devidamente avaliadas no curso da instrução da ação penal. Não há como se estabelecer, prima facie, a procedência ou não das alegações da defesa – especialmente no tocante à inocência do acusado – que devem ser sopesadas no regular exercício do contraditório, erigido, aliás, à categoria de dogma constitucional. (art. 5º, LV, CF) Repito: somente na instrução probatória, mediante a análise conjunta de todos os elementos de prova constantes do processo, poder-se-á esclarecer melhor a conduta do Paciente no que pertine à aventada não-participação na empreitada criminosa. Frente a esse quadro, e considerando os delitos imputados na exordial, incide, na espécie, a regra do art. 7º da Lei nº 9.034/95 – que expressamente veda a concessão da liberdade provisória, com ou sem fiança, “aos agentes que tenham tido intensa e efetiva participação na organização criminosa” – como apropriadamente decidiu o E. Superior Tribunal de Justiça em situação análoga, verbis: 283 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 “HABEAS CORPUS. ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA. ARTIGO 7º DA LEI Nº 9.034/95. LIBERDADE PROVISÓRIA. INSUSCETIBILIDADE ÀQUELES QUE TENHAM TIDO EFETIVA E INTENSA PARTICIPAÇÃO NAS CONDUTAS DELITIVAS. GARANTIA DE APLICAÇÃO DA LEI PENAL. POSSIBILIDADE REAL DE FUGA DO PACIENTE PARA O EXTERIOR. EXCESSO DE PRAZO NA FORMAÇÃO DA CULPA. INSTRUÇÃO ENCERRADA. 1. A vedação à liberdade provisória prevista no artigo 7º da Lei 9.034/95 constitui instrumental de que dispõe o Estado para desarticular a organização criminosa. Trata-se, pois, de mecanismo político-jurídico apto a combater a sofisticação e a ousadia do grupo, privando, ad cautelam, a liberdade daqueles que nela tenham tido intensa e efetiva participação, preservando, por conseguinte, a ordem pública. 2. Caracterizada a intensa e efetiva participação dos agentes na organização criminosa - tendo-os como responsáveis pelo transporte de mercadorias que ingressavam no território nacional sem a devida fiscalização da autoridade competente, valendo-se de informações privilegiadas e, em contraprestação, oferecendo vantagem indevida a agentes públicos - há de se preservá-los sob custódia preventiva. 3. a 5. (omissis). 6. Eventuais condições pessoais favoráveis ao réu, tais como primariedade e bons antecedentes, não lhe são garantidoras do direito à revogação da prisão preventiva, se existem outras que, como reconhecidas na decisão impugnada, lhe recomendam a custódia cautelar. 7. Ordem denegada.” (HC nº 16116/ RS, 6a Turma, Relator Ministro Hamilton Carvalhido, decisão de 14.08.2001, publicada no DJU de 18.02.2002, p. 504) De outro lado, a jurisprudência pátria tem manifestado entendimento de que a gravidade do delito aliada à magnitude da lesão – art. 30 da Lei nº 7.492/86 – consubstanciam base suficiente para a prisão ante tempus, como forma de garantir a ordem pública. A propósito, vejam-se os seguintes julgados: “CRIMINAL. LIBERDADE PROVISÓRIA. NECESSIDADE DA CUSTÓDIA DEMONSTRADA. PRESENÇA DOS REQUISITOS AUTORIZADORES. CONDIÇÕES PESSOAIS FAVORÁVEIS. IRRELEVÂNCIA. RECURSO DESPROVIDO. I – omissis. II – Não se vislumbra ilegalidade nas decisões que mantiveram as custódias cautelares dos pacientes, se demonstrada a necessidade da prisão, atendendo aos termos do art. 312 do CPP e da jurisprudência dominante, sendo que a gravidade do delito pode ser suficiente para motivar a segregação provisória como garantia da ordem pública. Precedentes. III – Condições pessoais favoráveis dos pacientes - como primariedade, residência no foro do delito e emprego certo, etc. – não são garantidoras de eventual direito à liberdade provisória, se a manutenção da custódia é recomendada por outros elementos dos autos. IV – omissis.” (STJ, RHC nº 10138/DF, Rel. Min. Gilson Dipp, 5ª Turma, publ. no DJU de 22.08.2000) “HABEAS CORPUS. PRISÃO PREVENTIVA. CONVENIÊNCIA DA INSTRUÇÃO CRIMINAL. MAGNITUDE DA LESÃO CAUSADA. ABUSO DO DIREITO CONSTITUCIONAL DE DEFESA. I – É de ser mantido o decreto de prisão preventiva 284 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 devidamente fundamentado, com indicação objetiva da necessidade da medida constritiva para aplicação da lei penal e conveniência da instrução criminal. II – A custódia é medida que se impõe porque a garantia da ordem pública visa não só prevenir que se pratiquem novos delitos, mas também acautelar o meio social e a própria credibilidade da justiça ante a repercussão dos fatos. III – O artigo 30 da Lei nº 7.492/86 expressamente autoriza a decretação da prisão preventiva em razão da magnitude da lesão causada. IV – omissis.” (TRF da 4ª Região, HC nº 1999.04.01.054887-3/PR, 1a Turma, Rel. José Germano da Silva, publ. no DJU de 19.07.2000, p. 64) Se isso não bastasse, a Lei nº 9.613/98 (que dispõe sobre “lavagem” ou ocultação de bens, direitos e valores) preceitua, em seu artigo 3º, primeira parte, que “os crimes disciplinados nesta lei são insuscetíveis de fiança e liberdade provisória”, de modo que havendo sido o Paciente acusado da prática de tal espécie delituosa (art. 1o, incisos VI e VII, c/c § 4o – fls. 103/105) resta justificada a prisão ante tempus. Ademais, impõe-se, na espécie, a manutenção do encarceramento provisório, eis que, conforme noticiou o ilustre julgador singular, “diferentemente de D. C., irmão do Paciente, R. C. encontra-se foragido desde a decretação da sua prisão”. (fl. 252) Em face do exposto, denego a ordem. HABEAS CORPUS Nº 2003.04.01.042600-1/PR Relator: O Exmo. Sr. Des. Federal Élcio Pinheiro de Castro Impetrantes: Arnaldo Malheiros Filho e outros Impetrado: Juízo Subst. da 2ª Vara Federal Criminal de Foz do Iguaçu/ PR Pacientes: S. R. A. R. M. J. EMENTA R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 285 Habeas corpus. Crimes contra o sistema financeiro nacional (artigos 4º e 22 da Lei 7.492/86). Quadrilha. Inaplicabilidade da resolução nº 20/2003 desta Corte. Atos de gestão praticados na filial sediada em Foz do Iguaçu/PR. Competência desta circunscrição judiciária. Denúncia. Delitos de autoria coletiva. Narração genérica. Inépcia descaracterizada. 1. Na hipótese dos autos, os Pacientes foram denunciados pela suposta prática das infrações previstas nos artigos 4º e 22 da Lei nº 7.492/86 bem como da estatuída no art. 288 do Código Penal. 2. Embora a peça acusatória verse sobre crimes contra o Sistema Financeiro Nacional, não é caso de se aplicar a Resolução nº 20 desta Corte (especializando Varas Federais para o julgamento desses delitos e os de “lavagem de dinheiro”) uma vez que a ação penal foi proposta antes da edição da aludida norma – que se deu em 26.05.2003 (publicada no DJU de 29.05.2003) – dispondo seu art. 6º, § 2º, que “as ações penais não serão redistribuídas”. 3. Descabido cogitar-se, na espécie, de remessa do feito à Justiça Federal de São Paulo (sede principal da empresa administrada pelos acusados) eis que os atos de gestão fraudulenta (delito mais grave e, portanto, prevalente, conforme o art. 78, II, a, do CPP) foram perpetrados, em tese, na filial localizada em Foz do Iguaçu/PR, aí restando consumados. Cabível, na espécie, a inteligência firmada pelo art. 70 da Lei Adjetiva Penal (“a competência será, de regra, determinada pelo lugar em que se consumar a infração, ou, no caso de tentativa, pelo lugar em que for praticado o último ato de execução”). 4. Tratando-se de crimes de autoria coletiva, a jurisprudência deste Regional e dos Tribunais Superiores tem admitido sejam os fatos narrados sem a particularização da conduta de cada agente – remetendo-se para a instrução do feito o devido esclarecimento das respectivas ações criminosas – sem que isso configure inépcia da exordial. 5. Ordem denegada. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos entre as partes acima indicadas, decide a Oitava Turma do Tribunal Federal da 4ª Região, por unanimidade, denegar a ordem, nos termos do relatório, voto e notas taquigráficas que ficam fazendo parte integrante do presente julgado. Porto Alegre, 12 de novembro de 2003. 286 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 Des. Federal Élcio Pinheiro de Castro, Relator. RELATÓRIO O Exmo. Sr. Des. Federal Élcio Pinheiro de Castro: Cuida-se de habeas corpus, com pretensão liminar, impetrado por Arnaldo Malheiros Filho, Ricardo Camargo Lima e Alexandre Sinigallia Camilo Pinto, em favor de S. R. A. e R. M. J., objetivando o trancamento da ação penal número 97.1013489-2, em trâmite perante a 2ª Vara Federal Criminal de Foz do Iguaçu. Segundo se infere do caderno processual, o Ministério Público, com lastro no Inquérito Policial nº 527/97, ofereceu denúncia (fls. 85/112) – protocolada em 22.04.2003 – contra os Pacientes pela suposta prática, em co-autoria com outros agentes, dos delitos tipificados nos artigos 4º e 22 da Lei nº 7.492/86, bem como o previsto no artigo 288 do Código Penal, por terem participado, na condição de responsáveis pela empresa INVESTSUL LTDA., de “trama delituosa, desenvolvida mediante organização criminosa, para a realização de inúmeros atos de gestão fraudulenta e remessa de recursos, de forma ilícita, para o exterior”. (fl. 88) A peça acusatória foi recebida em 03.06.2003. (fls. 114/115) Sustentam os Impetrantes, em suma, ser manifesta a incompetência do juízo, apontado como coator, para processar e julgar os fatos narrados na inicial, porquanto o próprio Ministério Público, em face de precedentes, já havia se manifestado pela remessa do inquérito – que embasou a ação penal ora hostilizada – para a circunscrição judiciária de Curitiba/ PR. Relatam que a: “D. autoridade coatora, no entanto, afirmou que já havia reconhecido sua incompetência em outros feitos semelhantes ao presente, mas optou por, naquele momento, deixar de declinar dela em favor do Juízo de Curitiba, pois foram remetidos cerca de dez inquéritos àquele juízo natural, sendo possível que fosse suscitado um eventual, hipotético, futuro e incerto conflito negativo de competência e, portanto, prudente aguardar-se manifestação futura desse E. Tribunal” (fl. 07). Salientam ser incompreensível tal decisum pois, tendo admitido a incompetência em casos semelhantes, não poderia acolher a exordial, uma vez que não possuía legitimidade para tanto. Asseveram, ainda, que, em verdade, a competência é da Justiça Federal de São Paulo, “isso porque a argumentação de que poderia haver gestão fraudulenta relacionada ao R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 287 Banestado e sua diretoria (conferindo competência, portanto, a Curitiba, local de sua sede e gestão) não se concretizou na denúncia. A inicial apontou a ocorrência de suposto crime de gestão fraudulenta praticado por outra instituição financeira: a empresa InvestSul Distribuidora de Títulos e Valores Mobiliários Ltda., sendo o local de sua gestão – de acordo com a própria denúncia – sua sede, localizada na Av. Ipiranga, 318, bl. A, conj. 1002, São Paulo/SP. Note-se: a denúncia imputa aos Pacientes a prática de gestão fraudulenta da InvestSul, que teria se dado em São Paulo, sede da instituição. Logo, o Juízo competente será uma das Varas Criminais da Justiça de São Paulo, uma vez que esse delito é mais severamente apenado do que os demais imputados na exordial. Nesse caso, havendo conexão de causas, isto é, sendo impossível cindir o processo, aplica-se a regra do art. 78, II, a, do CPP, que determina ser o foro prevalente aquele no qual teria sido cometida a infração mais grave”. (fl. 09) Alegam também inépcia da denúncia, aduzindo que na inicial “não há fatos concretos e determinados, tão-somente ilações desprovidas de qualquer validade jurídica” (fl. 16) e não ter sido individualizada a conduta de cada um dos Pacientes. Nesse contexto, requerem a concessão liminar da ordem “apenas para suspender o andamento da Ação Penal nº 97.1013489-2, em trâmite perante a 2ª Vara Federal Criminal de Foz do Iguaçu/PR, para que nenhum ato seja realizado naquele processo até o julgamento do presente habeas corpus, especialmente o interrogatório já designado”. (fl. 39) A tutela de urgência foi indeferida. (fls. 137/143) A autoridade impetrada prestou informações (fl. 147/50) anexando, na oportunidade, cópia de peças processuais (fls. 151-85). Oficiando no feito (fls. 187/194), a douta Procuradoria Regional da República opinou pela denegação da ordem. É o relatório. VOTO O Exmo. Sr. Des. Federal Élcio Pinheiro de Castro: O decisum que indeferiu a pretensão liminar (fls. 137/143) praticamente esgotou o exame da questão sub judice, razão pela qual, para evitar desnecessária tautologia, tomo a liberdade de reproduzir parte de seu conteúdo: “Em que pesem os doutos fundamentos elencados na inicial, não se constata, por ora, motivos suficientes para o deferimento da medida de urgência. No tocante à competência jurisdicional, mister referir inicialmente que, embora a denúncia verse também sobre crime contra o Sistema Financeiro Nacional, não é caso de aplicação da Resolução nº 20 desta Corte (especializando Varas Federais para o julgamento desses delitos e os de ‘lavagem de dinheiro’) uma vez que a ação penal foi proposta em 22.04.2003, antes, portanto, da edição da aludida norma, que se deu em 26.05.2003 (DJU de 288 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 29.05.2003) dispondo o art. 6º, § 2º, que ‘as ações penais não serão redistribuídas’. Por outro lado, compulsando os autos, verifica-se que, de fato, o Ministério Público, ainda na fase inquisitorial, manifestou-se pela remessa dos autos ao Juízo de Curitiba/ PR, porquanto outros procedimentos semelhantes já haviam sido para lá encaminhados ao fundamento de que o delito mais grave investigado – art. 4º da Lei nº 7.492/86 – se deu nas sedes de instituições financeiras sediadas naquela capital, sendo caso de aplicação da regra estatuída no artigo 78, inc. II, a, do Diploma Processual. Observe-se o seguinte excerto da promoção ministerial de fls. 45/80: ‘(...) Portanto, considerando que está inegavelmente caracterizada a ocorrência do crime de gestão fraudulenta tanto do BANESTADO quanto do Banco ARAUCÁRIA, delitos estes praticados na capital do Estado do Paraná, onde estava inclusive a sede das referidas instituições, sendo a este cominada pena máxima de 12 (doze) anos de reclusão, a competência para o processo e julgamento da respectiva ação penal, a teor do que dispõe o art. 78, II, a, do CPP, é da Justiça Federal em Curitiba/PR (...).’ Entretanto, o caso sub judice não versa sobre atos irregulares praticados nos referidos bancos, uma vez que a denúncia relata expressamente que os acusados ‘geriram, de forma fraudulenta, consideradas as devidas culpabilidades em função dos seus graus de atuação, a instituição financeira InvestSul Ltda.’ Em razão disso, os Impetrantes postulam a remessa dos autos à Justiça Federal de São Paulo, sede da aludida empresa. Contudo, em exame perfunctório da exordial acusatória, verifica-se que os atos, em tese, irregulares foram perpetrados na filial localizada em Foz do Iguaçu. A propósito, veja-se o seguinte trecho da denúncia: ‘(...) Na condição de verdadeiros responsáveis pela empresa InvestSul Ltda., S. R. A., R. M. J. e L. F. A., em co-autoria com o funcionário R. K., gerente do empreendimento em Foz do Iguaçu, geriram de forma fraudulenta o empreendimento, uma vez que puseram no contrato social o nome de terceiras pessoas, como Patrícia Mastrandea Anspach Magri (esposa de R. M. J.) e Roberta Ribeiro de Moraes (esposa de S. R. A.) a fim de se esquivarem de possível responsabilização e ocultarem suas participações na perpetração de graves ilícitos por meio da pessoa jurídica referida. No desempenho efetivo da gestão do empreendimento InvestSul – Distribuidora de Títulos e Valores Mobiliários Ltda., com sede em São Paulo e filial nesta cidade, os supranominados, com a participação de M. C., O. S. e em co-autoria com o contador E. J. S., em mais atos de gestão fraudulenta, constituíram as empresas laranjas, M. C. e Cia Ltda. e O. A. S. e Cia. Ltda., abrindo contas bancárias para a movimentação de contas correntes em nome delas, além da abertura de conta corrente em nome da própria pessoa física O. S. A irrealidade das empresas constituídas denota-se pelo fato de ambos serem funcionários da Investsul, pela inúmera prova testemunhal produzida, pelos módicos recursos encontrados em nome do cidadão de nome Osvaldo e pelos dados periciais, além das demais provas, que demonstram a lógica do esquema criminoso desenvolvido. Ainda, em mais atos de gestão fraudulenta, foram constituídas as empresas GBO Câmbio e Turismo Ltda. e Serjos Tour Ltda., pelos responsáveis da Investsul, já arrolados, com a co-autoria de J. L., que figura como preposto dos estabelecimentos e é proprietário da Embremer e da SEATLE CÂMBIO E TURISMO, empresas que realizaram transações com a INVESTSUL, como se constata dos documentos acostados ao feito (...). Sem prejuízo dos atos ilícitos acima considerados, cuja R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 289 consumação foi plena, a demonstrar a prática continuada de atos de gestão fraudulenta pelos responsáveis pela empresa InvestSul, ora com co-autoria de outros agentes, ora valendo-se de atos executivos materiais de participação de terceiros, passou-se a perpetrar a remessa ilegal de recursos para o exterior, mediante coligação com bancos internacionais, como o Integración, o IFE Banco Rural, Araucária, del Paraná, Câmbios Plata SRL, Casa de Câmbios Imperial SRL, Tupy Câmbio SRL, dentre outros, investigados em diversos apuratórios que se encontram em tramitação. Ocorre que os responsáveis pela empresa InvestSul, mediante o uso das empresas laranjas constituídas, propiciavam vultosas transferências internacionais cujos montantes serão abaixo especificados, de valores extremamente exorbitantes em atenção ao curto período investigado. No Laudo 940/00 foi apurada a movimentação ocorrida na conta da pessoa física O. A. S., entre agosto e novembro de 1997; na conta da empresa GBO Câmbio e Turismo Ltda., no período de setembro a dezembro de 1997. Foram apreciadas no Laudo 1507/00 as transações ocorridas na conta da firma O. A. S., no período de abril a agosto de 1997. Para esta prática, houve novamente a autoria de S. R. A., L. F. A., R. M. J. e R. K., na condição de gestores efetivos da casa de Câmbio InvestSul, com a participação de M. C., O. A. S. (laranjas das firmas O. S. e M. C.) e em co-autoria com J. L. (preposto das contas laranja GBO e Serjos), M. G. e É. C. G., os dois últimos responsáveis pela realização das transações junto ao Banco Integración, bem como pela abertura da conta corrente laranja em nome de Carla Minela (esposa de É. C. G.) que realizou depósitos na conta laranja da empresa O. A. S., bem como pelo recebimento de cheques levados pelo funcionário da InvestSul, O. A. S., referentes a diversas transações promovidas com a finalidade de obscurecer a verdadeira origem dos recursos, bem como seu verdadeiro destino, que será a remessa para outros bancos internacionais, por meio do Banco Integración. Tal conduta de envio vultoso de numerário ao exterior, por meio do acerto criminoso dos agentes referidos, verifica-se facilmente pela prova testemunhal e documental já fartamente elencada e considerada, bem como pelos dados dos laudos produzidos, que serão abaixo referidos. (...) Ademais, além dos testemunhos de M. G. e de M. C., temos, quanto à autuação conjunta entre tais denunciados e os responsáveis pela InvestSul, a análise do texto produzido em computador apreendido na empresa referida, pelo Laudo 19333 (fl. 494) constando mensagem que tem como subscritor o então diretor do Banco Integración, É. G., além da lista de telefones referentes a muitos dos ora denunciados (...). Cabe frisar, ainda, que em relação a tais contas, principalmente da GBO, eram feitas retiradas altíssimas em numerário para carregamento por empresa de transporte de valores, destinados à InvestSul, como relatado pelo funcionário da empresa PROSEGUR, JOSÉ WAGNER ESPERANDIO, ouvido à fl. 1893, e pelo denunciado M. C. (...).’ Subsidiariamente, extrai-se da inicial outros fatos relacionados com a suposta gestão fraudulenta da aludida empresa efetivados na filial de Foz do Iguaçu, razão por que, a priori, firma-se a competência desse Juízo Federal. Nesse sentido, cito o seguinte julgado: ‘PROCESSUAL PENAL. CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. CRIME CONTRA O SISTEMA FINANCEIRO (ART. 17 DA LEI Nº 7.492/86). I – O delito previsto no art. 17 da Lei nº 7.492/86 é de mera conduta, sendo pois prescindível qualquer resultado material para a sua consumação. II – O locus delicti, impróprio, 290 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 ocorreu na agência filial aonde se deram as condutas imputadas. Conflito conhecido, declarando-se competente o juiz suscitante.’ (STJ, 3ª Seção, CC nº 19796/SP, Rel. Min. Félix Fischer, publ. no DJU de 29.06.98).” Complementando essa ordem de idéias, cabe destacar que a ilustre autoridade impetrada corroborou, em seus informes, a inteligência supra, acrescentando, ainda, o que segue: “(...) Não se sustenta a argumentação no sentido de que a competência seria do Juízo Federal da Circunscrição Judiciária de São Paulo. Os atos de gestão fraudulenta a que se refere a denúncia foram praticados no âmbito da filial da InvestSul de Foz do Iguaçu/PR. Em tal espécie delituosa, a competência não há de ser fixada necessariamente pelo local da sede da empresa, pois os atos que a caracterizam podem ser praticados em local diverso, como o foram no caso concreto. Com efeito, não haveria sentido em processar a ação penal em local absolutamente desvinculado daquele onde o fato ilícito foi perpetrado e gerou seus efeitos. Trata-se de mera aplicação da norma inscrita no art. 70 do CPP, segundo a qual a competência jurisdicional é determinada, no âmbito penal, como regra, pelo lugar da infração. Com efeito, a repercussão causada pelo crime naquele meio social específico, assim como a maior facilidade na colheita da prova, fazem com que o foro natural mais adequado para julgamento seja o do local onde o crime foi praticado.”. (fls. 148/149) A par disso, da leitura da peça acusatória (fls. 85/112) depreende-se que a denúncia, embora extensa (em razão da própria complexidade dos fatos e do número de pessoas), preenche os requisitos elencados no artigo 41 do CPP, expondo os atos irregulares praticados – constituição de empresas por intermédio de laranjas, remessa ilegal de numerário para o exterior, etc. – e a suposta participação dos agentes envolvidos, além de narrar práticas delitivas que, ao menos nessa via estreita do habeas corpus, se enquadram nas hipóteses legais, sendo, portanto, em tese, típicas, deixando consignada, ainda, a existência de provas testemunhal, documental e pericial a justificar a pretensão punitiva. Por fim, tratando-se de crimes de autoria coletiva, a jurisprudência do R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 291 Egrégio Superior Tribunal de Justiça tem admitido que na peça vestibular sejam os fatos narrados sem a particularização da conduta de cada agente, remetendo-se para a instrução do feito o devido esclarecimento das respectivas ações criminosas. Nesse sentido, os Acórdãos assim ementados: “PROCESSUAL PENAL. DENÚNCIA. INÉPCIA. CRIME SOCIETÁRIO. INOCORRÊNCIA. RECEBIMENTO. FUNDAMENTAÇÃO. DISPENSA. 1. Se há extensa e profunda descrição dos fatos delituosos, em conformidade com o art. 41 do CPP, possibilitando aos Pacientes exercitar amplo direito de defesa, não há como acolher a suscitada inépcia da denúncia, notadamente, versando a espécie sobre crime de autoria coletiva (societário), onde a aferição e a delimitação da conduta pormenorizada de cada co-réu deverão acontecer na instrução criminal, sob o crivo do contraditório e dentro da amplitude probatória proporcionada pelo processo penal. 2. (omissis). 3. Ordem denegada.” (HC nº 17.411/RS, Relator Ministro Fernando Gonçalves, publicado no DJU de 11.03.2002, p. 282) “PENAL. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. APROPRIAÇÃO INDÉBITA DE CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA. REJEIÇÃO DA DENÚNCIA. CONEXÃO INSTRUMENTAL. OCORRÊNCIA. NFLDs DIVERSAS. ART. 76, III, C/C ART. 82 DO CPP. INDIVIDUALIZAÇÃO DAS CONDUTAS EM CRIMES SOCIETÁRIOS. DESNECESSIDADE. PRECEDENTES. RECURSO ESPECIAL CONHECIDO E PROVIDO. 1. (omissis). 2. Nos crimes societários é dispensável a descrição minuciosa e individualizada da conduta de cada acusado. Basta que a denúncia narre a prática delituosa de forma a possibilitar o exercício da ampla defesa. Precedentes do STJ e do STF. 3. Recurso especial conhecido e provido.” (REsp nº 243073/RJ, 5a Turma, Rel. Min. Laurita Vaz, publ. no DJU de 30.06.003, p. 283) Na mesma linha, a orientação do Supremo Tribunal Federal, v.g.: “EMENTA: (1) Habeas Corpus. Crimes contra a ordem tributária (Lei nº 8.137, de 1990). Crime societário. (2) Alegada inépcia da denúncia, por ausência de indicação da conduta individualizada dos acusados. Impugnação ao despacho de recebimento, por ausência de fundamentação. (3) Inexigibilidade de fundamentação do despacho de recebimento da inicial. Precedentes (RHC 65.471, Rel. Min. Moreira Alves; HC 72.286, Rel. Min. Maurício Corrêa). (4). Tratando-se de crimes societários, não é inepta a denúncia em razão da mera ausência de indicação individualizada da conduta de cada indiciado. (5) Configura condição de admissibilidade da denúncia em crimes societários a indicação de que os acusados sejam de algum modo responsáveis pela condução da sociedade comercial sob a qual foram supostamente praticados os delitos. Precedentes (RHC 65.369, Rel. Min. Moreira Alves; HC 73.903, Rel. Min. Francisco Rezek; HC nº 74.791, Rel. Min. Ilmar Galvão; HC 74.813, Min. Sydney Sanches; HC nº 75.263, Rel. Min. Néri da Silveira). (6) Habeas corpus indeferido.” (HC nº 82242/ RS, 2a Turma, Rel. Min. Gilmar Mendes, publ. no DJU de 11.10.2002) Em face do exposto, denego a ordem. 292 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 HABEAS CORPUS Nº 2003.04.01.045047-7/RS Relator: O Exmo. Sr. Des. Federal Paulo Afonso Brum Vaz Impetrantes: Francisco Carlos Miranda e outro Impetrado: Juízo Substituto da 1ª Vara Federal das Execuções Fiscais de Porto Alegre/RS Paciente: G. L. H. Réu Preso Interessado: Instituto Nacional do Seguro Social - INSS Advogada: Dra. Sibele Regina Luz Grecco EMENTA Processo penal. Habeas corpus. Depositário infiel. Promessa de pagamento imediato de mais da metade da dívida e do restante em sessenta dias. Concessão da ordem. Ao depositário infiel de bem oferecido à penhora é possível elidir a prisão pela entrega da coisa ou pagamento do valor executado. Mostra-se razoável a concessão de habeas corpus em favor de executado que, estando preso, promete, para se livrar da prisão, pagar imediatamente mais da metade da dívida e o restante em 60 (sessenta) dias, ressalvado, ao juiz de primeiro grau, o poder de expedir nova ordem caso a promessa não seja cumprida. ACÓRDÃO Vistos e relatados estes autos entre as partes acima indicadas, decide a 8ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por unanimidade, conceder a ordem, nos termos do relatório, voto e notas taquigráficas que ficam fazendo parte integrante do presente julgado. Porto Alegre, 5 de novembro de 2003. Des. Federal Paulo Afonso Brum Vaz, Relator. RELATÓRIO O Exmo. Sr. Des. Federal Paulo Afonso Brum Vaz: Cuida-se de habeas corpus impetrado contra ato que determinou prisão de G. L. H., depositário infiel de bens penhorados em execução fiscal que tramita na Vara especializada de Porto Alegre. Deferida a liminar e prestadas as informações, o Ministério Público Federal opinou pela concessão da ordem. R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 293 É o relatório. VOTO O Exmo. Sr. Des. Federal Paulo Afonso Brum Vaz: Por ocasião da análise do pedido de liminar, assim me manifestei: “No caso do depositário infiel, é sabido que a prisão pode ser elidida pela entrega do bem ou pelo pagamento do valor respectivo. Os impetrantes deste habeas corpus, em emenda à inicial, vêm informar que o paciente, para uma dívida aproximada de R$ 5.390,00, se compromete a pagar R$ 3.000 imediatamente e o restante de forma parcelada. A despeito de a proposta não compreender o montante integral da dívida, considero-a perfeitamente razoável. Deve o paciente, desse modo, depositar, no juízo de origem, em 48 horas, o valor de R$ 3.000,00, ficando o restante do débito para ser saldado em 60 dias, a contar do depósito inicial. Descumprida a proposta, evidentemente que estará o juiz de primeiro grau livre para decretar novamente a prisão. Defiro a liminar.” Não vejo motivo algum para alterar o entendimento que embasou a concessão do pedido de liminar, cujos termos foram acolhidos inclusive pelo órgão do Ministério Público Federal: “... Na situação dos autos, não tendo os bens penhorados sido localizados para a realização do leilão, nem o paciente encontrado nos endereços conhecidos nos autos, foi ele citado por edital para apresentar os bens objeto de penhora ou o seu equivalente em dinheiro no prazo de 24h (vinte e quatro horas), sob pena de prisão. Restando silente, a medida coercitiva foi decretada e cumprida nos termos do mandado judicial. Considerando, entretanto, que o ora paciente propôs a quitação imediata de mais de 50% (cinqüenta por cento) da dívida, e a do saldo em 60 (sessenta) dias, e que a prisão não tem um objetivo em si mesmo, mas o de compelir ao cumprimento da obrigação, afigura-se razoável possa a proposta em questão elidi-la no presente caso, desde que tal depósito seja efetivamente feito nos termos sinalados, e sem prejuízo de que nova ordem seja expedida em caso de descumprimento. Destarte, cabível a concessão da ordem na situação dos autos, devendo, contudo, antes do julgamento de mérito, ser confirmado o depósito efetivo do valor proposto pelo paciente no aditamento à inicial. ...”. Pretende o MPF, a título de precaução, seja confirmada a realização, pelo paciente, do depósito. A providência, porém, mostra-se desnecessária, conferido que foi ao magistrado poder para expedir nova ordem de prisão caso a obrigação assumida não venha a ser honrada. Ante o exposto, concedo a ordem. 294 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 RECURSO DE HABEAS CORPUS (EX OFFICIO) Nº 2003.70.00.026114-5/PR Relatora: A Exma. Sra. Desa. Federal Maria de Fátima Freitas Labarrère Impetrante: A. M. M. Advogada: Dra. Silvia Fernanda Batista da Silva Impetrado: Comandante do Cindacta 2 Remetente: Juízo Substituto da 1ª Vara Federal Criminal de Curitiba/PR Paciente: A. M. M. EMENTA Habeas corpus. Sanção disciplinar militar. Imposição de penalidade sem observâncias aos princípios constitucionais do devido processo legal com observância da ampla defesa e contraditório. Compete à Justiça Federal apreciar Habeas Corpus contra sanção imposta em procedimento administrativo militar – por não se tratar de crime militar – mas de mera infração administrativa. A inidoneidade do remédio constitucional do Habeas Corpus diz com o debate do mérito da decisão, mas não com o exame do aspecto formal e legalidade da pena imposta. Hipótese em que a sanção administrativa foi aplicada em desobediência às garantias fundamentais constitucionalmente asseguradas de realização prévia do devido processo legal com a observância do contraditório e da ampla defesa. Remessa oficial improvida. ACÓRDÃO Vistos e relatados estes autos entre as partes acima indicadas, decide a Sétima Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por unanimidade, negar provimento à remessa oficial, nos termos do relatório, voto e notas taquigráficas que ficam fazendo parte integrante do presente julgado. Porto Alegre, 7 de outubro de 2003. Desa. Federal Maria de Fátima Freitas Labarrère, Relatora. RELATÓRIO A Exma. Sra. Desa. Federal Maria de Fátima Freitas Labarrère: Sílvia Fernanda B. da Silva impetrou Habeas Corpus em favor de A. R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 295 M. M., postulando a concessão de salvo-conduto, visando a afastar ato supostamente ilegal praticado pelo Comandante do CINDACTA II, consistente em imposição de sanção militar. A teor da inicial, no dia 21.03.2003, o impetrante não obteve êxito em terminar tarefa que lhe foi atribuída, vindo a concretizá-la somente no primeiro dia útil subseqüente, motivo pelo qual lhe foi imposta reprimenda de quatro dias de detenção. Inconformado, o impetrante interpôs pedido de reconsideração, o qual só foi julgado após o integral cumprimento da sanção. Em 23 de maio de 2003, o impetrante foi notificado da aplicação de nova sanção, consistente na detenção por mais 04 (quatro) dias, desta vez em decorrência de não ter cientificado por escrito o seu Oficial Superior, contra o qual iria apresentar representação. Sustenta o impetrante que a pena é de todo indevida, seja porque não praticou o ato de representação, seja porque não foi respeitado o artigo 34 do Decreto nº 76.322/75. As informações foram prestadas pela autoridade dita coatora. (fls.21/25) Foi deferida, em exame preliminar, a suspensão da sanção imposta, com a expedição do mandado de salvo-conduto. (fls. 96/98) Ouvido o Ministério Público Federal, sobreveio a sentença que julgou o pedido procedente para, em definitivo, conceder a ordem de Habeas Corpus liberatório, ressaltando que a decisão também servirá de salvo-conduto contra todo e qualquer constrangimento ilegal decorrente de sanções disciplinares aplicadas sem observância da regra inserta no art. 34 do Decreto 76.322/75. Vieram os autos a esta Corte por força da remessa ex officio prevista no artigo 574, inciso I, do CPP. (fl.121) O parecer do Ministério Público Federal é pela manutenção da sentença concessiva de Habeas Corpus. É o relatório. VOTO A Exma. Sra. Desa. Federal Maria de Fátima Freitas Labarrère: Cuida-se de remessa oficial de sentença concessiva de Habeas Corpus, conforme previsão do artigo 574, inciso I, do Código de Processo Penal, a cujo teor “os recursos serão voluntários, excetuando-se os seguintes 296 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 casos, em que deverão ser interpostos, de ofício, pelo juiz: I – da sentença que conceder habeas corpus;”. Da competência da Justiça Federal Compete à Justiça Federal apreciar Habeas Corpus contra sanção imposta em procedimento administrativo militar – por não se tratar de crime militar – mas de mera infração administrativa. Do cabimento de Habeas Corpus Estatui o artigo 142, § 2º, da Constituição Federal: “Não caberá habeas corpus em relação a punições disciplinares militares”. O dispositivo legal em comento tem por fim resguardar o Poder Disciplinar das Forças Armadas, uma vez que a hierarquia e disciplina constituem-se em princípios basilares das corporações militares. No entanto, a limitação imposta pelo constituinte diz com a análise do mérito da decisão administrativa disciplinar militar. Não abrange o exame de sua legalidade, aí compreendido o atendimento ao princípio do devido processo legal, insculpido no artigo 5º, inciso LV, da Constituição Federal. Desta forma, a inidoneidade do remédio constitucional do Habeas Corpus diz com o debate do mérito da decisão, mas não com o exame do aspecto formal e legalidade da pena imposta. A propósito da questão, já decidiu o Superior Tribunal de Justiça que, “ao mesmo tempo em que a Constituição Federal reza no seu art. 142, § 2º, que não caberá Habeas Corpus em relação a punições disciplinares militares, dispõe ela em seu artigo 5º, inciso XXXV, que a Lei não excluirá de apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito. Assim, como qualquer outro ato administrativo, o ato de punição disciplinar não pode fugir ao controle jurisdicional no sentido de que seja aferida sua legalidade pelo exame dos requisitos de que deve achar-se revestido”. (JSTJ 4/452) R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 297 298 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 DIREITO PREVIDENCIÁRIO R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 299 300 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 EMBARGOS INFRINGENTES EM AC Nº 2001.04.01.014778-4/RS Relator: O Exmo. Sr. Des. Federal Victor Luiz dos Santos Laus Embargante: Rita Dequi Ribeiro Advogado: Dr. Everton Tapia de Oliveira Embargado: Instituto Nacional do Seguro Social - INSS Advogada: Dra. Liane Francisca Huning Pazinato EMENTA Previdenciário. Embargos infringentes. Aposentadoria por idade rural. Autotutela administrativa. Restabelecimento. Entrevista administrativa. Termo de homologação firmado pelo Ministério Público. 1. O art. 207 da CLPS não deve ser considerado recepcionado pela CF/88, pois tendo essa última constitucionalizado a subsunção da Administração Pública ao dogma da legalidade (art. 37), não há que se falar em decadência ou prescrição administrativa como óbices à aplicação da Súmula 473 do STF. 2. Com efeito, segundo a inteligência que se extrai do referido enunciado, in casu, havendo dúvida razoável demonstrada pelos elementos colhidos no procedimento de revisão encetado pela autarquia - e não mero reexame de provas ou mudança superveniente de interpretação – revela-se não só possível, mas devida, a suspensão ou o cancelamento do benefício, ainda que transcorrido um lustro, sem que a isso possa-se imputar malferimento à estabilidade das relações jurídicas. 3. A homologação da declaração de exercício de atividade rural pelo R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 301 Ministério Público, em período anterior à vigência da Lei 9.063/95, aliada à eficácia relativa que deve ser emprestada à entrevista administrativa em que o segurado comparece perante o Instituto, conforme precedentes deste Colegiado, fazem prova plena do exercício do labor campesino discutido nos autos. ACÓRDÃO Vistos e relatados estes autos entre as partes acima indicadas, decide a 3ª Seção do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por maioria, dar provimento aos embargos infringentes, vencido o Desembargador Federal Nylson Paim de Abreu, tendo manifestado ressalva o Juiz Ricardo Teixeira do Valle Pereira, nos termos do relatório, voto e notas taquigráficas que ficam fazendo parte integrante do presente julgado. Porto Alegre, 11 de dezembro de 2003. Des. Federal Victor Luiz dos Santos Laus, Relator. RELATÓRIO O Exmo. Sr. Des. Federal Victor Luiz dos Santos Laus: Cuida-se de embargos infringentes opostos em 30.07.2001 contra acórdão da Colenda Sexta Turma desta Corte que deu provimento à apelação interposta pelo INSS e à remessa oficial para julgar improcedente o pedido de restabelecimento de aposentadoria rural por idade concedida à parte autora em 30.08.91 e cancelada aos 01.12.97 (fl. 90), após procedimento de revisão ter apontado erro no deferimento daquele amparo. Segundo a tese majoritária, o trabalho agrícola em regime de economia familiar, em que pese tenha sido demonstrado documentalmente, inclusive com Termo de Homologação firmado por agente do Ministério Público, restou descaracterizado ante as declarações prestadas pela parte autora em entrevista realizada perante o Instituto, oportunidade em que informou seu afastamento da lida no curso da carência, bem assim porque seu marido, em companhia de quem por algum tempo tratou da lavoura, era aposentado pelo RGPS, o que à míngua de prova em contrário, indicava a não indispensabilidade dos rendimentos auferidos com a agricultura para o sustento da família. Busca a embargante a prevalência do voto vencido, de autoria do Desembargador Federal Luiz Carlos de Castro Lugon, cujo entendimento 302 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 foi o de que: (a) após um lustro, consuma-se a prescrição administrativa, (b) o Termo de Homologação do Ministério Público era prova bastante ao reconhecimento da atividade rural e (c) o voto condutor relevara a circunstância de o marido da autora ter sido jubilado. Admitido o recurso, fluiu in albis o prazo para resposta. (fl. 206) É o relatório. À revisão. VOTO O Exmo. Sr. Des. Federal Victor Luiz dos Santos Laus: Antes de mais nada, registro que, embora o dispositivo do voto minoritário tenha feito alusão à negativa de provimento apenas da remessa oficial, é intuitivo da sua leitura que também desacolheu a apelação do INSS, estando correta a certidão de julgamento da fl. 185. Na seqüência, cumpre-me o cotejo analítico dos votos dissonantes na Turma, a bem de corretamente demarcar o efeito translativo destes embargos. (art. 530 do CPC) Principio pelo pronunciamento da lavra do Desembargador Federal Luiz Carlos de Castro Lugon: “Maxima venia concessa, ouso divergir do ilustre Relator quanto à solução emprestada à espécie em exame. Inicialmente, cabe enfatizar um tópico que aconselha rejeitado o recurso: o transcurso de longos anos, além de um lustro, desde a concessão do benefício. Saliento que o ilustre professor de direito, Hely Lopes Meirelles, na obra Direito Administrativo Brasileiro, Malheiros, 19ª Edição, p. 189, embora admita que a Administração pode rever seus próprios atos, faz registrar: ‘Finalmente, vejamos os efeitos da prescrição diante dos atos nulos. A nosso ver, a prescrição administrativa e a judicial impedem a anulação no âmbito da Administração ou pelo Poder Judiciário. E justifica-se essa conduta porque o interesse na estabilidade das relações jurídicas entre o administrado e a Administração ou entre esta e seus servidores é também de interesse público, tão relevante quando só [sic] demais. Diante disso, impõe-se a estabilização dos atos que superem os prazos admitidos para sua impugnação, qualquer que seja o vício que se lhes atribua. Quando se diz que os atos nulos podem ser invalidados a qualquer tempo, pressupõe-se, obviamente, que tal anulação se opere enquanto não prescritas as vias impugnativas internas e externas, pois, se os atos se tornarem inatacáveis pela administração e pelo Judiciário, não há como pronunciar-se sua nulidade. Embora a doutrina estrangeira negue essa evidência, os autores pátrios mais atualizados com o Direito Público contemporâneo a reconhecem. Como entre nós as ações pessoais contra a Fazenda Pública prescrevem em cinco anos e as reais em R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 303 vinte, nesses prazos é que podem ser invalidados os respectivos atos administrativos por via judicial. Quanto à prescrição administrativa, dependerá de norma legal que a institui em cada caso.’ (...) A prescrição administrativa tem sido contemplada neste Tribunal, conforme mostram os julgados seguintes: ‘PROCESSUAL CIVIL. MANDADO DE SEGURANÇA. LEGITIMIDADE RECURSAL. PRESCRIÇÃO ADMINISTRATIVA. MANUTENÇÃO DE BENEFÍCIO PREVIDENCIÁRIO. 1. Em mandado de segurança, a legitimidade para recorrer cabe à pessoa jurídica de direito público e não à autoridade apontada como coatora. 2. A mudança de entendimento da administração ou o mero intento de regularizar o processo administrativo não autorizam a revogação do ato concessivo do benefício, devendo ser respeitada a prescrição administrativa. 3. Apelo não conhecido e remessa oficial improvida.’ (AMS 431775-2-RS, Rel. Juíza Virgínia Scheibe, DJ 25.03.98, p. 491) (...) Além da documentação apresentada pela Autora, já analisada no voto-condutor, que corroba o pedido inicial, existe, nos autos, termo de homologação do Ministério Público (fl. 51), reconhecendo que a segurada exerceu atividade rural de 1985 a 1991. A administração pode rever seus próprios atos; constitui arrogante temeridade, contudo, desfazer ou olimpicamente desconhecer atos emanados do Ministério Público. Não está o Parquet, evidentemente, subordinado ao INSS. (...) Ressalte-se que o fato de o marido da Autora ser funcionário aposentado foi considerado irrelevante no voto-condutor. (...)” Transcrevo, agora, parte do voto vencedor subscrito pelo Relator, Desembargador Federal Nylson Paim de Abreu: “(...) A comprovação da atividade rural, ao tempo do requerimento (1991), poderia ser feita por quaisquer das formas estabelecidas no artigo 106 da Lei nº 8.213/91, com a redação vigente à época, assim elencadas: (...) Para atender àquela exigência legal, foram juntados aos autos, os seguintes documentos: certidão de casamento, datada de 1946, sem qualificação profissional (fl.49); termo de homologação do Ministério Público, relativo a sua atividade rural de 1985 a 1991 (fl. 51); folha de informação rural (fl. 53); escritura pública de compra e venda de imóvel rural (fl. 54); nota fiscal em nome do seu esposo, datada de 1976 (fl. 58); e certificados de cadastro junto ao INCRA, em nome do esposo, referentes a imóvel rural com 7,1 ha, relativos a 1986, 1988 a 1991 (fls. 59-61). Não foi produzida prova testemunhal, já que a autora silenciou por ocasião do despacho da fl. 43, que determinou especificassem as partes as provas que pretendiam produzir. 304 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 Por determinação do Juízo, foi tomado o depoimento pessoal da autora, nos seguintes termos: ‘Disse ser proprietária de área rural, junto com seu marido, de uma área aproximada de 7,5 hectares. Que mudou-se para a cidade há mais ou menos 03 anos, e mesmo assim continua indo trabalhar em suas terras. Pelo que lembrar nunca comercializaram a produção, pois era tão pouco o que se vendia, que não dá para ser considerado como comercialização. Que plantavam milho, feijão, batata, mandioca, apenas para consumo. Que a terra nunca esteve arrendada, mas em determinado período havia um morador, com regime de parceria.’ (fl. 107) Na via administrativa, a autora prestou as seguintes informações: ‘Que mora na cidade de Palmeiras há mais ou menos 42 anos e que desde mais ou menos 1987 não trabalha mais por motivo de doença (coração). Que ia para a lavoura, com o esposo, de vez em quando antes de 1988, porque ele trabalhava na cidade, e as terras ficam mais ou menos 2km longe de sua casa. Quando ia, isto antes de 1988, fazia alguns serviços de tirar leite, limpar plantas.’ (fl. 31) Na entrevista, afirmou, ainda, que seu esposo recebe benefício de pensão urbana (fl. 29). Em se tratando de ação de natureza previdenciária em que, via de regra, a prova documental carreada nos autos não tem a consistência suficiente para formar o convencimento do julgador acerca dos fatos constitutivos do direito alegado pela autora, faz-se mister a oitiva das partes e de testemunhas com o intuito de corroborar o início de prova material produzido. Assim, como a própria autora deixou de produzir a prova testemunhal que pudesse corroborar o início de prova material indireta, ônus que lhe competia e do qual não se desincumbiu, não há como acolher a pretensão. Por oportuno, registre-se ainda, que, ouvida a autora na via administrativa, esta informou que não trabalhava na agricultura desde 1988, o que se mostra crível em virtude de sua avançada idade, eis que nascida em 18-6-23 (fl. 49). Ademais, o fato do seu marido ter exercido atividade urbana em lapso temporal que se encontra dentro do prazo carencial de que trata o art. 142 da Lei nº 8.213/91, não afastaria a sua condição de segurada especial, se restasse comprovado o efetivo exercício da atividade rural e a indispensabilidade de tal atividade. Entrementes, não foi produzida qualquer prova no sentido de que a atividade rural fosse indispensável para a sua subsistência. Assim sendo, diante da precariedade da prova documental, já que inexistem documentos que comprovem o efetivo exercício da atividade rural, aliás, a própria autora, no depoimento prestado em juízo, invoca tal atividade basicamente para o consumo, ausência de prova testemunhal e percepção de aposentadoria por outro regime pelo seu esposo, é inviável o seu enquadramento como segurada especial. (...)” Da análise dos trechos antes reproduzidos, constata-se que malgrado alguns aspectos relativos à prova coligida tenham sido valorizados pelo R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 305 voto divergente, ao fim e ao cabo, o âmago da controvérsia residiu na natureza do ato de cancelamento do benefício, tida por aquele como revogação, já que a jubilação era anulável; logo, sujeita à prescrição administrativa qüinqüenal, enquanto que para a maioria estava configurada hipótese de anulação, pelo que sendo a aposentação nula, a ela não seria oponível referido fator impediente. A prejudicial fora suscitada ainda na fase de recurso à JRPS, com arrimo no art. 207 da CLPS (fl. 80) e depois na réplica, sendo atualizada por ocasião das contra-razões, quando então lastreada no art. 54 da Lei 9.784/99. Creio que se o noticiado afastamento da atividade agrícola no período de carência lançava dúvida sobre a qualidade de segurada especial da parte autora, a autarquia estava obrigada a auditar a concessão do benefício (art. 206 da CLPS), mesmo que o requerimento de inativação estivesse formalmente instruído como se de trabalhadora rural se tratasse. Neste sentido: “Ato administrativo: erro de fato que redunda em vício de legalidade e autoriza a anulação (Súmula 473): retificação de enquadramento de servidora beneficiada por ascensão funcional, fundada em erro quanto a sua situação anterior: validade. 1. O poder de autotutela da administração autoriza a retificação do ato fundado em erro de fato, que, cuidando-se de ato vinculado, redunda em vício de legalidade e, portanto, não gera direito adquirido. 2. Tratando-se de ato derivado de erro quanto à existência dos seus pressupostos, faz-se impertinente a invocação da tese da inadmissibilidade da anulação fundada em mudança superveniente da interpretação da norma ou da orientação administrativa, que pressupõe a identidade de situação de fato em torno do qual variam os critérios de decisão.” (STF, RMS 21.259-DF, 1ª Turma, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJU 08.11.91, apud STJ, RMS 9.286-RO, 5ª Turma, Rel. Min. Gilson Dipp, DJU 07.02.2000, grifei) Desta forma, analiso os fundamentos da preliminar argüida. A meu ver, com a devida vênia, diversa deve ser a compreensão jurídica a ser emprestada ao dever-poder da Administração de anular os próprios atos, quando eivados de nulidade, pois se é possível que em função da mora da Fazenda, o resultado positivo da sua revisão depare-se com situações consolidadas temporalmente, não é menos legítimo obtemperar que a hermenêutica principiológica e constitucional que justifica aquela excepcional competência não comunga da tese de que a ilegalidade possa ser purgada pelo tempo, pois é-lhe conatural a idéia da predominância 306 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 do interesse público. A propósito: “A Administração Pública tem o dever de zelar pela legalidade, moralidade e eficiência de seus atos, condutas e decisões, bem como por sua adequação ao interesse público, e pode anulá-los se considerá-los ilegais ou imorais e revogá-los caso entenda que os mesmos são inoportunos e inconvenientes, independentemente da atuação do Poder Judiciário. Como salientam García de Enterria e Tomás Fernández, a autotutela ‘é um privilégio subjetivo da administração, que a utiliza quando for necessário, mas não necessariamente em todos os seus atos jurídicos’. Esse é o entendimento consagrado pelo Supremo Tribunal Federal, em suas Súmulas 346 e 473: Súmula 346: ‘A administração pública pode declarar a nulidade dos seus próprios atos’. Dessa forma, conforme decidiu o Supremo Tribunal Federal, ‘a Administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornem ilegais, porque deles não se originam direitos’. Súmula 473: ‘A administração pode anular os seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornem ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência e oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial.’” (MORAES, Alexandre. Direito constitucional administrativo. São Paulo: ATLAS, 2002. p. 118-119) Assim, tenho para mim que, in casu, o art. 207 da CLPS não deve ser considerado recebido pela Lei Maior (art. 37, caput e § 5º), pois se ela constitucionalizou a subsunção da Administração ao dogma da legalidade e estabeleceu a imprescritibilidade das ações de ressarcimento decorrentes de condutas lesivas ao erário, cuja disciplina dada pela Lei 8.429/92 alcança também os beneficiários de concessões irregulares, é porque optou o constituinte, em casos de maior gravidade, por não mais admitir a decadência ou a chamada prescrição administrativa, de modo a precatar a moralidade pública. Por outro lado, creio ser plausível entender-se que apenas as condutas eivadas de vícios de somenos importância, ou seja, incidentes sobre elementos secundários do ato são passíveis de convalidação, enquanto que aquelas onde forem verificados defeitos relativos a aspectos essenciais reclamam sua retirada do mundo jurídico. A propósito: “Seguindo neste lança, ao menos em parte, o magistério de Antônio Carlos Cintra do Amaral aderindo à sua tese de que é critério importantíssimo (para o autor tal critéR. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 307 rio é simplesmente decisivo) para distinguir os tipos de invalidade a possibilidade ou impossibilidade de convalidar-se o vício do ato. Por isso o autor citado prefere rejeitar a terminologia nulos e anuláveis, cifrando-se às expressões atos convalidáveis e atos não-convalidáveis. (...) 163. São nulos: a) os atos que a lei assim os declare; b) os atos em que é racionalmente impossível a convalidação, pois se o mesmo conteúdo (é dizer, o mesmo ato) fosse novamente produzido, seria reproduzido a invalidade anterior. Sirvam de exemplo: os atos de conteúdo (objeto) ilícito; os praticados com desvio de poder; os praticados com falta de motivo vinculado (salvo superveniência dele); os praticados com falta de causa. 164. São anuláveis: a) os que a lei assim os declare; b) os que podem ser repraticados sem vício. Sirvam de exemplo: os atos expedidos por sujeito incompetente; os editados com vício de vontade; os proferidos com defeito de formalidade.” .(BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. São Paulo: Malheiros, 1995. p. 276 e 281) Ora, se o deferimento da aposentadoria derivou do exame de documentação formalmente perfeita, mas que omitia o aspecto detectado somente na auditoria (fl. 52), em tese o servidor foi induzido em erro quanto à subsunção do fato à norma, pelo que nenhuma a cogitação da “prescrição administrativa” alvitrada, não podendo o ato ser aproveitado (mantido) pela Administração ou reproduzido tal qual foi gerado (restabelecido) pelo Judiciário, eis que haveria renovação de vício anterior, devendo ser pronunciada, por ambos, sua invalidade. Por tudo isso, entendo não haver impedimento a que o Instituto, mediante o devido processo legal, possa revisar o ato mesmo após um qüinqüênio da concessão, nas hipóteses em que da análise mais detida sobre os elementos então apresentados ou da consideração de dados omitidos naquele momento, fique demonstrado, em princípio, uma dúvida razoável acerca da justeza do benefício, isto é, do enquadramento do interessado na condição de segurado especial. Sim, porquanto em tais situações, mercê do princípio da legalidade, é vedado ao administrador deixar de agir; porém – insisto – ao dizer isto não estou a referendar o reexame injustificado das provas que deram suporte ao ato deferitório, muito menos a olvidar a indispensável estabilidade das relações jurídicas. 308 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 Quanto ao art. 54 da Lei 9.784/99 (“O direito da Administração de anular os atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os destinatários decai em cinco anos, contados da data em que foram praticados, salvo comprovada má-fé.”), três objeções em escala crescente de prejudicialidade devem ser levantadas à sua aplicação (i) o princípio da especialidade, (ii) o direito intertemporal e (iii) a sua inconstitucionalidade. No que tange à primeira, se o INSS desde 10.12.97 (Lei 9.528 – nova redação ao art. 69 da Lei 8.212) deve, permanentemente, realizar um programa de revisão (motivo não adotado especificamente neste voto em razão de que tempus regit actum), o tratamento reservado aos procedimentos administrativos no âmbito da Administração Pública Federal conflita com o regime próprio existente na matéria previdenciária, pelo que sobre ela nega-se-lhe a regência. Conquanto à segunda, Caio Mário da Silva Pereira, com o rigor de costume, adverte: “Quando uma lei atinge os efeitos dos atos jurídicos praticados ou as situações constituídas, ou os direitos subjetivos adquiridos sob o império da lei caduca, diz-se que é retroativa. Os princípios de direito intertemporal têm por escopo indagar em que casos ocorre a retroatividade da lei, e formular as regras, segundo as quais o aplicador se informa de quando o efeito imediato da lei não envolve uma atuação retrooperante. Noutros termos, sob a rubrica direito intertemporal, a ciência jurídica formula os princípios que devem nortear o intérprete na conciliação daqueles dois cânones fundamentais do ordenamento jurídico, que são a lei do progresso e o conceito da estabilidade das relações humanas. (...) Toda a matéria, entretanto, de direito intertemporal, qualquer que seja a forma, legislativa ou doutrinária, subjetiva ou objetiva, abstrata ou prática, por que se encare, tem de partir de um conceito fundamentalmente estruturado na essência do próprio ordenamento jurídico: o princípio da irretroatividade das leis. (...)”. (Instituições de direito civil. 13ed. Rio de Janeiro: Forense, vol. I, 1992. p. 98-99) Logo, presumo seja especioso dizer que se a eficácia normativa é, regra geral, ex nunc, o efeito retroativo (o cancelamento deu-se em 01.12.97, conforme o relatório) deve vir expressamente contemplado, uma vez ser do senso comum e boa hermenêutica, que as leis excepcionais (instituidora da decadência, no caso) interpretam-se restritivamente. Finalmente, no que tange à última, como afirmei alhures, penso que o art. 54 da Lei 9.784/99 ao gizar sobre a manutenção de atos eivados R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 309 de nulidade, certo que os anuláveis foram objeto do dispositivo seguinte (“Art. 55. Em decisão na qual se evidencie não acarretarem lesão ao interesse público nem prejuízo a terceiros, os atos que apresentarem defeitos sanáveis poderão ser convalidados pela própria Administração.”) mostra-se na contramão do percurso escolhido por seu pressuposto de validade (art. 37, caput e § 5º, da CF), na medida em que não se concebe como possa a Administração negar o princípio da moralidade ao relevar o desfazimento de atos ilegais pelo só passar de um lustro, se, ao revés, deveria contribuir para o ressarcimento dos cofres públicos. Portanto, entendendo o embargado que estava diante de hipótese de anulação, à vista dos informes que chegaram ao seu conhecimento provindos da embargante, não havia que cogitar de prescrição administrativa (art. 207 da CLPS). Rejeito a preliminar. No entanto, como se tratava, já consignei, de uma dúvida razoável, disto não decorre automaticamente o improvimento dos embargos. Passo à prova. Disse a sentença, reformada pelo voto majoritário (fls. 124/125): “(...) No presente feito, a aposentadoria da autora foi cancelada sob o argumento de que não comprovou atividade rural nos cinco anos anteriores à concessão. No caso em tela, foi considerado pelo INSS, como período básico, de 1985 à 1991. Este período é o constante do Termo de Homologação do Ministério Público de fls. 51, e também foi o afirmado pelo Sindicato na ‘Folha de Informação Rural’ de fls. 53. Quando da entrevista feita com a autora no procedimento de revisão do benefício, esta afirmou que deixou de trabalhar na lavoura em 1987, diante por motivo de doença cardíaca, e que seu marido trabalhava na cidade (fls. 77). Em juízo, a autora afirmou que sempre trabalhou na agricultura, e veio residir na cidade há aproximadamente três, mas que permanece trabalhando na agricultura (fls. 107). O INSS cancelou o benefício, aparentemente, com base apenas no depoimento da autora, e não comprovou em juízo outros dados que podem ter sido colhidas unilateralmente no âmbito administrativo, pois sequer arrolou testemunhas ou comprovou a alegada atividade urbana do cônjuge. É sabido que o serviço agrícola exige grande esforço físico, e o fato da autora reduzir suas atividades diante da idade e problemas de saúde, não retira seu direito à aposentadoria, depois de exercer a atividade agrícola durante toda a sua vida. (...)” De minha parte, estimo adequada a citada avaliação do conjunto probatório. O dado relevante a desfazer a celeuma está em que as alusões à paralisação do trabalho rural pela autora e à percepção de aposentadoria 310 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 por seu marido, em companhia de quem se dedicava ao amanho da terra, apenas constaram de entrevista administrativa, ao passo que a qualidade de segurado especial foi afirmada em Termo de Homologação firmado pelo Ministério Público. Em casos símeis, assim tem decidido esta Seção: “PREVIDENCIÁRIO. EMBARGOS INFRINGENTES. RESTABELECIMENTO. APOSENTADORIA POR IDADE RURAL. ENTREVISTA ADMINISTRATIVA. HOMOLOGAÇÃO. MINISTÉRIO PÚBLICO. 1. A ‘entrevista’ realizada administrativamente pelo INSS não compromete, por si, o conjunto probatório em sentido contrário trazido aos autos. 2. Tendo sido o termo de homologação do exercício de atividade rural pelo Ministério Público expedido antes do advento da Lei 9.063/95, que alterou o art. 106 da Lei 8.213/91, esse documento faz prova plena do exercício de atividade rural. 3. Embargos infringentes improvidos.” (EIAC 1998.04.01.069251-7, Rel. Des. Federal Antônio Albino Ramos de Oliveira, DJU 30.10.2002) Destarte, revelou-se correto o restabelecimento do benefício. (fl. 131) R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 311 312 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 DIREITO PROCESSUAL CIVIL R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 313 314 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NA AMS Nº 1999.04.01.027933-3/RS Relator: O Exmo. Sr. Des. Federal Antônio Albino Ramos de Oliveira Embargante: Instituto Nacional do Seguro Social - INSS Advogado: Dr. Cesar Campos de Azevedo Embargado: Acórdão de fls. Interessado: Luiz Felipe Lima Machado Advogado: Dr. Volnei Carlos Bruch EMENTA Embargos de declaração – Mandado de segurança – Autoridade federal – Juiz estadual – Incompetência – Omissão. 1 – A Constituição Federal delegou competência ao juiz estadual para processar e julgar as causas em que for parte instituição de previdência social, no foro do domicílio dos segurados ou beneficiário sempre que a comarca não seja sede de vara do juízo federal (art. 109, § 3º). Essa delegação de competência, entretanto, não alcança o mandado de segurança contra ato de autoridade federal, cujo julgamento cabe exclusivamente aos juízes federais (art. 109, VIII), ainda que, conforme numerosos precedentes, trate de matéria previdenciária. Trata-se de competência absoluta, matéria de ordem pública, que deve ser apreciada de ofício pelo Tribunal, pois diz respeito aos pressupostos de constituição e desenvolvimento válido do processo. 2 – Embargos de declaração acolhidos, com efeitos infringentes, para R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 315 anular a sentença e determinar a remessa dos autos ao Juízo Federal competente. ACÓRDÃO Vistos e relatados estes autos entre as partes acima indicadas, decide a Quinta Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por unanimidade, acolher os embargos de declaração, nos termos do relatório, voto e notas taquigráficas que ficam fazendo parte integrante do presente julgado. Porto Alegre, 13 de março de 2003. Des. Federal Antônio Albino Ramos de Oliveira, Relator. RELATÓRIO O Exmo. Sr. Des. Federal Antônio Albino Ramos de Oliveira: O INSS apresentou embargos de declaração contra acórdão desta Turma que, com a relatoria do Desembargador Federal Valdemar Capeletti, confirmou a sentença prolatada no mandado de segurança impetrado por Luiz Felipe Lima Machado contra o Chefe do Posto de Benefícios do INSS de Venâncio Aires, determinando que este “aprecie as provas a ele submetidas para comprovação de sua atividade rural em regime de economia familiar, independentemente do recolhimento das contribuições previdenciárias”. O embargante aduz que o Ministério Público Estadual ventilou preliminar de incompetência absoluta do Juiz de Direito que sentenciou no feito, e o relator, em que pese ter feito menção dessa preliminar em seu relatório, não examinou a questão em seu voto. Salientou que, a teor da Súmula n° 216 do Tribunal Federal de Recursos, “compete à Justiça Federal processar e julgar mandado de segurança impetrado contra ato de autoridade previdenciária, ainda que localizada em comarca do interior”. Salientou, ainda, que, conforme o art. 109, VIII, da Constituição Federal, aos juízes federais compete processar e julgar os mandados de segurança contra ato de autoridade federal, ainda que a matéria seja previdenciária. Sanada a omissão, requer seja declarada a nulidade do feito e a remessa dos autos ao Juízo Federal competente. É o relatório. VOTO 316 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 O Exmo. Sr. Des. Federal Antônio Albino Ramos de Oliveira: O acórdão efetivamente foi omisso quanto à questão da competência, pelo que, suprida a omissão, passo ao seu exame. A Constituição Federal delegou competência ao juiz estadual para processar e julgar as causas em que for parte instituição de previdência social, no foro do domicílio dos segurados ou beneficiário sempre que a comarca não seja sede de vara do juízo federal (art. 109, § 3º). Essa delegação de competência, entretanto, não alcança o mandado de segurança contra ato de autoridade federal, cujo julgamento cabe exclusivamente aos juízes federais (art. 109, VIII), ainda que, conforme numerosos precedentes, trate de matéria previdenciária. Trata-se de competência absoluta, matéria de ordem pública, que deve ser apreciada de ofício pelo Tribunal, pois diz respeito aos pressupostos de constituição e desenvolvimento válido do processo. Confiram-se os julgados deste Tribunal: “CONSTITUCIONAL. COMPETÊNCIA. MANDADO DE SEGURANÇA CONTRA ATO DE AUTORIDADE DA PREVIDÊNCIA SOCIAL. 1. É da competência do Juiz Federal o processamento e julgamento dos mandados de segurança contra ato de autoridade federal, mesmo se tratando de autoridade vinculada a órgãos da Previdência Social (CF-88, ART-109, INC-7). 2. Processada e julgada ação mandamental por juiz estadual, compete ao TRF, nestes casos, o conhecimento do recurso, por força do PAR-4 do ART-109 da CF-88.” (AMS 95.04.19048-0/RS, 6ª Turma, Rel. Juiz Carlos Sobrinho, DJ de 17.09.97, p. 75277) “COMPETÊNCIA. AÇÃO PREVIDENCIÁRIA. ART-109, INC-8, DA CF-88. JUÍZO ESTADUAL NÃO INVESTIDO DE COMPETÊNCIA DELEGADA. SÚM-55/STJ. 1. Dispõe o INC-8 do ART-109 da CF-88 que aos juízes federais compete julgar ‘os mandados de segurança e os habeas data contra ato de autoridade federal, excetuados os casos de competência dos tribunais federais’. 2. Na espécie, é manifesta a incompetência do juízo de 1º grau para o julgamento da causa, por não se tratar de Juiz Estadual no exercício de competência delegada. (...)”. (AMS 94.04.06355-0/RS, Turma de Férias, Rel. Juíza Maria de Fátima Freitas Labarrère, DJ de 25.03.98, p. 493) “PROCESSO CIVIL. CONSTITUCIONAL. MANDADO DE SEGURANÇA. COMPETÊNCIA. ATO DE AUTORIDADE FEDERAL. ART-109, INC-8, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. 1. O julgamento de mandado de segurança impetrado contra ato de autoridade federal é da competência exclusiva da Justiça Federal, consoante dispõe o art-109, inc-8, da CF-88. 2. Hipótese que não se confunde com a competência delegada à Egrégia Justiça R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 317 Estadual para o julgamento de ação de natureza previdenciária. 3. (...) 4. (...)”. (AMS 94.04.50874-8/PR, 6ª Turma, Rel. Juiz Nylson Paim de Abreu, DJ de 05.03.97, p. 12185) “PROCESSUAL CIVIL. MANDADO DE SEGURANÇA. COMPETÊNCIA ABSOLUTA. 1. Consoante o disposto na SÚM-216 do extinto TFR, ‘Compete à Justiça Federal processar e julgar mandado de segurança impetrado contra ato de autoridade previdenciária, ainda que localizada em comarca do interior’. 2. Nulo é o feito processado na Justiça Estadual, devendo os autos serem remetidos à Justiça Federal com jurisdição sobre o domicílio da Impetrante.” (REO 93.04.430160/RS, 5ª Turma, Rel. Juíza Virgínia Scheibe, DJ de 16.07.97, p. 54826) “PREVIDENCIÁRIO. MANDADO DE SEGURANÇA. INCOMPETÊNCIA DA JUSTIÇA ESTADUAL. ATO DE AUTORIDADE FEDERAL. 1. É incompetente a Justiça Estadual para julgar mandado de segurança contra ato de autoridade federal, ainda que do órgão previdenciário. (CF-88, ART-109, INC-8) 2. É nula a sentença. Remessa dos autos ao Juízo Federal.” (AMS 94.04.44438-3/ SC, 5ª Turma, Rel. Juíza Maria Lúcia Leiria, DJ de 26.11.97, p. 102350) “PREVIDENCIÁRIO. SENTENÇA PROLATADA POR JUIZ DE DIREITO EM MANDADO DE SEGURANÇA IMPETRADO CONTRA ATO DE AUTORIDADE FEDERAL. SENTENÇA QUE SE ANULA. 1. A sentença prolatada por juiz de direito em mandado de segurança impetrado contra ato de autoridade federal é nula já que o processo é da competência exclusiva de juízes federais, a teor do art-109, INC-7, da CF-88. 2. A delegação contida no PAR-3 do art-109 da CF-88, estende-se apenas às ações ordinárias e sumárias envolvendo instituição de previdência social e segurado. 3. Sentença que se anula por força do que restou decidido em Conflito de Competência julgado pelo Superior Tribunal de Justiça, juntamente com os atos decisórios. 4. Remessa oficial conhecida para anular a sentença e atos decisórios. Recurso voluntário prejudicado.” (AMS 92.04.20868-6/PR, 5ª Turma, Rel. Juiz Álvaro Eduardo Junqueira, DJ de 05.08.98, p. 591) Destaco, ainda, precedente do TRF da 1ª Região: “PREVIDENCIÁRIO E PROCESSUAL CIVIL - MANDADO DE SEGURANÇA CONTRA AUTORIDADE FEDERAL, POSTULANDO O RESTABELECIMENTO DE BENEFÍCIO PREVIDENCIÁRIO - INCOMPETÊNCIA DA JUSTIÇA ESTADUAL DA COMARCA EM QUE DOMICILIADO O SEGURADO - INAPLICABILIDADE DO ART. 109, § 3º, DA CF/88 - APLICAÇÃO DO ART. 109, VIII, DA CF/88 - SÚMULA Nº 216 DO TFR. I - A competência para processar e julgar mandado de segurança fixa-se pela sede da autoridade impetrada, e, em se tratando de writ ajuizado contra ato comissivo ou omissivo de autoridade federal, a competência para processá-lo e julgá-lo é, tão-somente, 318 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 da Justiça Federal, a teor do art. 109, VIII, da CF/88. II - Em matéria de mandado de segurança contra autoridade federal, nada remanesce, à luz do art. 109, VIII, da CF/88, na competência da Justiça Estadual da Comarca em que domiciliado o segurado, pela aplicação do art. 109, § 3º, da mesma Carta. III – ‘Compete à Justiça Federal processar e julgar Mandado de Segurança impetrado contra ato de autoridade previdenciária, ainda que localizada em comarca do interior.’ (Súmula nº 216 do TFR). IV - Ajuizado mandado de segurança perante a Justiça Estadual da Comarca na qual domiciliado o impetrante, contra ato de autoridade previdenciária federal, sediada na capital do Estado, anulam-se os atos decisórios, determinando-se a remessa dos autos à Justiça Federal com jurisdição sobre a autoridade impetrada, nos termos do art. 109, VIII, da CF/88 e do art. 113, § 2º, do CPC. V - Remessa oficial provida. VI - Apelação prejudicada.” (AMS 1998. 01.00.029977-4/PI, 2ª Turma do TRF da 1ª Região, Rel. Juíza Assusete Magalhães, DJ de 14.06.99, p. 412) Como o magistrado acreditava estar no exercício de jurisdição federal delegada, aplicável o art. 108, II, da Constituição Federal, sendo esta Turma competente para anular a sentença. Nesse sentido: “MANDADO DE SEGURANÇA. AÇÃO IMPETRADA CONTRA ATO DE AUTORIDADE PREVIDENCIÁRIA PERANTE JUÍZO ESTADUAL. ATOS DECISÓRIOS NULOS. Em Mandado de Segurança impetrado contra ato de autoridade previdenciária, processada e julgada por Juiz Estadual entendendo que se encontrava investido de jurisdição federal, o Tribunal Regional Federal é competente para reexaminar a sentença proferida.” (AMS 1999.04.01.055012-0/RS, 5ª Turma, Rel. Juíza Virgínia Scheibe, rel. p/acórdão Juiz Tadaaqui Hirose, DJ de 27.06.2001, p. 680) Voto no sentido de acolher os embargos de declaração para, com efeitos infringentes, anular a sentença e determinar a remessa dos autos ao Juízo Federal competente, prejudicadas a apelação e a remessa oficial. É o voto. R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 319 AGRAVO DE INSTRUMENTO Nº 2002.04.01.006098-1/RS Relator: O Exmo. Sr. Des. Federal Amaury Chaves de Athayde Agravante: CRT Brasil Telecom S/A Advogados: Drs. Ricardo Barbosa Alfonsin e outros Agravado: Ministério Público Advogado: Dr. Luís Alberto d’ Azevedo Aurvalle Interessado: Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul Advogada: Dra. Vera Lúcia da Silva Sapko Interessada: Agência Nacional de Telecomunicações - ANATEL Advogado: Dr. Arodi de Lima Gomes EMENTA Processual Civil. Competência. Ação civil pública. Local do dano. É da Vara Federal com jurisdição sobre os municípios que interessam, e não do juízo da Capital, a competência para conhecer e julgar ação civil pública cujo objeto se limita a produzir efeitos locais. ACÓRDÃO Vistos e relatados estes autos entre as partes acima indicadas, decide a Quarta Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por unanimidade, negar provimento ao recurso, nos termos do relatório, voto e notas taquigráficas que ficam fazendo parte integrante do presente julgado. Porto Alegre, 7 de maio de 2003. Des. Federal Amaury Chaves de Athayde, Relator. RELATÓRIO O Exmo. Sr. Des. Federal Amaury Chaves de Athayde: Trata-se de agravo de instrumento tempestivo interposto de r. decisão (fls. 77/78), exarada pelo MM. Juízo da 1ª Vara Federal de Santo Ângelo/RS, julgando improcedente exceção de incompetência incidente na ação civil pública proposta pelo Ministério Público Federal em face de CRT Brasil Telecom, versando, em suma, sobre reabertura de lojas de atendimento ao público. Sustenta a excipiente/agravante que deve ser modificada a r. decisão objurgada pois, em síntese, a competência para o conhecimento e decisão da ação não é determinada pela amplitude do pedido, e sim pela causa petendi. Por isso, é de rigor fixar a competência no Juízo da Capital, 320 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 por prevenção, onde já está em andamento a ação civil pública de nº 2002.71.00.000264-2, perante a 10ª Vara Federal. O recurso foi processado sem efeito suspensivo. (fl. 392) A parte agravada apresentou resposta. (fls. 265 a 274 e 394) É o relatório. Sem revisão. VOTO O Exmo. Sr. Des. Federal Amaury Chaves de Athayde: Não merece acolhida a pretensão recursal. Com efeito. Sob um primeiro aspecto, porque é absolutamente inviável o reconhecimento de prevenção entre dois processos em relação aos quais o próprio suscitante reconhece diversidade de objetos ou pedidos, aí refletindo, por óbvio, a competência do juízo. Na seqüência e consoante bem o explicita o MM. Juízo a quo, o pedido na ação de origem está jungido à reabertura de lojas e pontos de atendimento em municípios que integram a circunscrição de Santo Ângelo/RS, com fundamento em disposições do Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90). De aí fixar-se a competência pelo local do dano, na generalidade e com atenção aos termos do pedido. Como já exposto, o pedido, na ação de origem, está restrito aos postos de atendimento localizados nas cidades afetas à circunscrição indicada, nada autorizando a alteração de competência, existindo, ao revés, previsão legal no sentido da r. decisão objurgada. (v. Lei nº 7.347/85, arts. 16 e 21; Lei nº 8.078/90, art. 93, I) Ao final, mas não menos importante, há de se considerar que a pretensa identidade de causa de pedir e a alegada possibilidade de multiplicação de ações perante juízos distintos não implicam revogação do princípio dispositivo, isto é, não determinam a compulsoriedade de propositura de ação com pedido na amplitude dilargada e imaginada possível pelo demandado. Ante o exposto, nego provimento ao recurso. É como voto. R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 321 AGRAVO DE INSTRUMENTO Nº 2002.04.01.019240-0/SC Relator: O Exmo. Sr. Des. Federal Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz Agravante: Paulo Henrique Cardoso Advogados: Drs. Flávio Luiz Yarshell e outros Dr. Carlos Roberto Fornes Mateucci Agravado: Ministério Público Advogado: Dr. Luís Alberto d’ Azevedo Aurvalle Interessados: Rafael Valdomiro Greca de Macedo Artplan-Prime Publicidade S/A Advogado: Dr. Rodrigo de Carvalho Interessados: Ricardo Dalcanale Bornhausen Fernanda Maria Barreto Bornhausen Sá Evidencia Perich Prestação de Serviços e Com. de Imp. e Exp. Ltda. BD Produções Artísticas e Culturais Ltda. Beatriz Ferreira Lessa Cesário Melantonio Netto Fundação da Universidade Federal do Paraná para o desenvolvimento da Ciência da Tecnologia e da Cultura - FUNPAR União Federal Advogado: Dr. José Diogo Cyrillo da Silva Interessados: Embratur Instituto Brasileiro de Turismo e outro Advogado: Dr. Júlio Cesar Barbosa Melo EMENTA Administrativo e Processual Civil. Ação de improbidade administrativa. Petição inicial. Requisitos. Ilegitimidade passiva ad causam. Decisão do Tribunal de Contas da União. Efeitos. 1. Ação de Improbidade Administrativa, de alto destaque na vida democrática da Nação, notadamente para fiscalizar o agente público, no pertinente ao patrimônio público que lhe está afeto, enseja, através de meios prontos e eficazes, alcançar judicialmente a decretação de invalidade dos atos lesivos ao erário, obrigando os responsáveis ao ressarcimento do dano causado. 322 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 A demanda, contudo, deverá ser idônea para produzir os efeitos procurados, ou seja, uma decisão de mérito. Para isso há certas exigências, de cunho processual, que precisam transparecer na petição inicial que necessita estar apta ao estabelecimento da relação processual. Destarte, a peça vestibular deve ser precisa quanto à indicação do fato e os fundamentos jurídicos do pedido; para a espécie, o ato cuja decretação de invalidade postula, o vício que o contaminou e em que consistiu sua lesividade ao patrimônio público da entidade indicada. Dessa forma, os fatos, antes da citação, devem estar devidamente expostos, bem como os fundamentos do pedido, para que os réus possam, com base neles, oferecer a sua defesa. No caso em exame, a inicial não apontou o ato ilícito atribuído ao recorrente, a justificar a sua permanência na presente ação, na forma do art. 282, III, do CPC. Com efeito, é ônus do autor da ação de improbidade administrativa apresentar na peça vestibular a indicação precisa do fato e dos fundamentos jurídicos da demanda, ou seja, o ato cuja decretação de invalidade postula, o vício de ilegalidade e a sua lesividade ao patrimônio público. No que concerne ao recorrente não se aponta, de forma concreta e objetiva, como e em que condições teria praticado os atos de improbidade que lhe são imputados, sobretudo considerando-se que o agravante não exerce função pública. Argumenta-se que, após a instrução, poderia o Parquet comprovar ditos fatos. In casu, a prova é exclusivamente documental e, no caso do agravante, a inicial encontra-se instruída apenas em matéria de jornal, o que, com a devida vênia, não justifica o ônus de figurar como réu em ação de improbidade administrativa. Pelo contrário, os documentos que constam do processo corroboram a tese sustentada pela defesa. A defesa do recorrente demonstra que a sua atuação nos fatos foi meramente consultiva, não tendo o condão de vincular a decisão do agente público, por apresentar caráter opinativo. (FÁBIO MEDINA OSÓRIO, in Improbidade Administrativa, 2ª edição, São Paulo, p.113) Por conseguinte, o recorrente é parte passiva ilegítima no feito, impondo-se a sua exclusão do processo, nos termos do art. 267, VI, do CPC. R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 323 2. Ademais, a Eg. Corte de Contas, acolhendo o pronunciamento do Parquet junto àquele Tribunal, afastou o caráter ilícito de grande parte dos fatos noticiados na peça vestibular, o que, na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, impede o seu reexame na via judicial, a não ser quanto ao seu aspecto formal ou tisna de ilegalidade manifesta, o que não se verifica no caso em exame (RE nº 55.821-PR, rel. Ministro Victor Nunes Leal, in RTJ 43/151; REsp nº 8.970-SP, rel. Ministro Gomes de Barros, in RJSTJ 30/378, respectivamente). Em julgado publicado na RSTJ, volume 30, pp.395/7, assinalou o eminente Ministro Gomes de Barros, quando do julgamento do REsp nº 8.970/SP, verbis: “III - Sustentam os recorrentes ser impossível a reapreciação judicial de atos administrativos, cuja regularidade foi atestada pelo Tribunal de Contas. Trazem, em socorro de sua tese, afirmação de que o Acórdão recorrido destoa da Jurisprudência tradicionalmente consagrada no Supremo Tribunal Federal. Como paradigma, citam o Acórdão relativo ao MS nº 7.280, do qual relator o saudoso Min. Henrique D’Ávila, resumido nesta ementa: “TRIBUNAL DE CONTAS - Apuração de alcance dos responsáveis pelos dinheiros públicos - Ato insuscetível de revisão perante a Justiça comum - Mandado de Segurança não conhecido. - Ao apurar o alcance dos responsáveis pelos dinheiros públicos, o Tribunal de Contas pratica ato insuscetível de revisão na via judicial a não ser quanto ao seu aspecto formal ou tisna de ilegalidade manifesta”. (fl.3.881) Em seu relatório, o saudoso Ministro transcreveu o Parecer do então Procurador-Geral da República - o igualmente saudoso Ministro Carlos Medeiros Silva, in verbis: “Conforme decidiu o Pretório Excelso, no Mandado de Segurança nº 6.960 (sessão de 31 de julho de 1959, decisão unânime, relator o Sr. Ministro Ribeiro da Costa), não cabe mandado de segurança contra decisão do Tribunal de Contas que julgou contas de responsáveis por dinheiros públicos. Disse, então, o Sr. Min. Ribeiro da Costa: “a decisão sobre a tomada 324 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 de contas de gastos de dinheiros públicos, constituindo ato específico do Tribunal de Contas da União ex vi do disposto no artigo nº 77, II, da Constituição Federal, é insuscetível de impugnação pelo mandado de segurança, no concernente ao próprio mérito do alcance apurado contra o responsável, de vez que não cabe concluir de plano, sobre a ilegalidade desse ato, salvo se formalmente eivado de nulidade substancial, o que, na espécie, não é objeto de controvérsia”. (fl. 3.968) No voto, com que conduziu o Tribunal Pleno, o Ministro Henrique D’Ávila observou: “Na realidade o Tribunal de Contas quando da tomada de contas dos responsáveis por dinheiros públicos, pratica ato insuscetível de impugnação na via judicial, a não ser quanto ao seu aspecto formal ou ilegalidade manifesta. Na espécie o que o impetrante impugna é o mérito da ação do Tribunal de Contas. Entende ele que não existia o apontado, ou seria menor do que o apurado. O assunto é evidente que não pode ser tratado através processo expedido do mandado de segurança. Só pelos meios mais regulares é que poderá o impetrante demonstrar o contrário, ou invalidar a apuração feita pelo Tribunal de Contas União.” (fls. 3.968/9) Como se percebe, o Supremo Tribunal Federal não reconhece na decisão do Tribunal de Contas a força da coisa julgada material. A Corte admite se reveja acórdão de Tribunal de Contas, “em seu aspecto formal” ou em caso de “ilegalidade manifesta”. Esta velha jurisprudência veio a ser confirmada em acórdão conduzido pelo saudoso Ministro Victor Nunes Leal, e reduzida a ementa nestes termos: “TRIBUNAL DE CONTAS. Julgamento das contas de responsáveis por haveres públicos. Competência exclusiva, salvo nulidade por irregularidade formal grave (MS 6.960, 1959), ou manifesta ilegalidade aparente (MS 7.280, 1960)”. (RTJ 43/151) Merece destaque, neste aresto, a manifestação do saudoso Ministro Barros Monteiro, nestas palavras: “A segunda questão, de serem preclusivas e insuscetíveis de apreciação pelo Judiciário as decisões do Tribunal de Contas, eu acolho, com reservas, diante do preceito do artigo 150, § 4º, da CF, que reproduziu o R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 325 dispositivo da Constituição anterior, segundo o qual não se pode subtrair da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão do direito individual. Mas, feita essa ressalva, estou de pleno acordo em que não se pode chegar a outra conclusão senão àquela do acórdão mencionado pelo eminente Ministro Victor Nunes, do qual foi Relator o Ministro Henrique D’Ávila, e que exprime o pensamento deste Tribunal. As decisões do Tribunal de Contas não podem ser revistas pelo Poder Judiciário, a não ser quanto ao seu aspecto formal.”. (RTJ 43/157) Destes pronunciamentos resta clara uma constatação: “é impossível desconstituir o ato administrativo ungido pela aprovação do Tribunal de Contas, sem rescindir a decisão deste colegiado. E para rescindi-la, é necessário que nela se apontem irregularidades formais graves ou ilegalidades manifestas.” Nesse sentido, ainda, a lição do saudoso Prof. Ruy Cirne Lima, em sua conceituada obra Pareceres (Direito Público), Livraria Sulina Editora, 1963, Porto Alegre, pp.246/7, verbis: “Tem, portanto, entre nós, o Tribunal de Contas, jurisdictio; falta-lhe, porém, competência para o judicium e, a fartiori, competência para dá-lo e cometê-lo a outrem, porque, estranha à sua função, naquele ou neste aspecto, a idéia de ação (em sentido material). Certo, são, as decisões do Tribunal de Contas, terminativas, quando julga, ele, as contas dos responsáveis por dinheiros ou bens públicos (Const. Fed. Art.77, II). Esse julgamento compete-lhe, porém, em função do ato político (F. GIESE, GRUND-GESETZ FÜR DIE BUNDESREPUBLIK DEUTSCHLAND, Frankfurt, a. M., 1955, p.190; F. GIESE, DIE VERFASSUNG DES DEUTSCHEN REICHES, Berlin, 1931, p.211) do Congresso Nacional, que julga as contas do Poder Executivo (Const. Fed. Art.66, VIII). E como a competência do Tribunal de Contas, acerca do julgamento das contas dos responsáveis por dinheiros ou bens públicos, somente lhe é atribuída em função daquele ato político (RUY BARBOSA, Comentários, cit. T. VI, p.451; RUBEN ROSA, Direito e Administração, Rio de Janeiro, 1940, p.25 e 26), as decisões do Tribunal de Contas, nessa matéria, não poderiam, por isso mesmo, ficar sujeitas a reexame judiciário. O julgamento político exclui o pronunciamento judicial ulterior, nos mesmos termos em que o julgado criminal exclui a ação civil, “...não se poderá...questionar mais sobre a existência do fato, ou quem seja o autor...” (art.1525, Cód. 326 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 Civil). De outro lado, o julgamento político tem precedência necessária sobre o pronunciamento judiciário (Cf. AURELIANO LEAL, Teoria e prática da Constituição Federal brasileira, t. I, Rio de Janeiro, 1925, p.493). Em conseqüência, nem antes nem depois das decisões do Tribunal de Contas, enquanto às contas dos responsáveis por dinheiros ou bens públicos, toca, aos Juízes e Tribunais comuns, pronunciar-se sobre o fato sujeito, ou quem lhe seja o autor. A eficácia exclusiva e terminativa das decisões do Tribunal de Contas, nessa matéria, não é mais, no entanto, do que uma aplicação do princípio de independência e harmonia dos poderes políticos (Const. Fed., art.36).” 3. Agravo de instrumento conhecido e provido. ACÓRDÃO Vistos e relatados estes autos entre as partes acima indicadas, decide a Terceira Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por unanimidade, dar provimento ao agravo de instrumento, nos termos do relatório, voto e notas taquigráficas que ficam fazendo parte integrante do presente julgado. Porto Alegre, 3 de dezembro de 2002. Des. Federal Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz, Relator. RELATÓRIO O Exmo. Sr. Des. Federal Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz: Trata-se de agravo de instrumento onde o recorrente, a fls.03/16, alega, verbis: “1. Trata-se de ação civil pública ajuizada pelo Agravado, em face do Agravante e outros, cujo fundamento é a suposta prática de atos de improbidade administrativa que teriam sido praticados pelos demandados, ao ensejo da montagem do pavilhão brasileiro na EXPO-2000, em Hannover, Alemanha. 2 . Entendendo ter sido incluído no pólo passivo dessa demanda sem que existisse – ou sequer fosse indicado - qualquer elemento objetivo de sua efetiva participação nos alegados atos de improbidade, e considerando os severos ônus e prejuízos decorrentes da litispendência, o ora Agravante ingressou espontaneamente nos autos (em 05.10.00), mesmo antes de sua citação, e postulou sua pronta exclusão do feito, juntando documentos. 3. Na seqüência, determinou-se a oitiva do Agravado, sobrevindo r. decisão que, rejeitando as ponderações e fundamentos expostos pelo ali demandado, houve por bem mantê-lo no pólo passivo da relação processual, quando menos até o oferecimento das contestações e réplica pelo ali demandante. R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 327 PRELIMINARMENTE: DA TEMPESTIVIDADE DO PRESENTE RECURSO. 4. Postos sumariamente esses fatos, cumpre consignar, em caráter preliminar e ainda que de forma breve, que a tempestividade do presente recurso está plenamente assegurada e acima de qualquer dúvida 5. Com efeito, quer se considere a r. decisão que manteve o ora Agravante no processo, quer se considere, apenas ad argumentandum tantum, a primeira r. decisão pela qual se ordenou a citação do Recorrente (e dos demais demandados), o recurso está sendo interposto dentro do prazo legal. 6. Quanto à decisão que, rejeitando os argumentos apresentados pelo réu Agravante, manteve-o no processo (data venia, decisão que verdadeiramente ensejou interesse recursal), a mesma foi publicada no Diário Oficial de 20.10.00, oportunidade em que, intimadas as partes presentes nos autos, começou a fluir o prazo para impugnação. 7. Quanto à outra decisão (a primeira), aqui considerada apenas a título de argumentação (porque, a rigor, apenas se limitou a ordenar a citação), tendo-se em conta que o réu, ora Agravante, ingressou espontaneamente nos autos em 05.10.00, mesmo em relação a dito provimento este recurso está sendo apresentado dentro regra do art. 191 do CPC. De qualquer forma, a matéria aqui ventilada - carência de ação por ilegitimidade ad causam passiva - inscreve-se naquelas de ordem pública, sobre as quais não se opera preclusão e que podem e devem ser conhecidas, inclusive de ofício, a qualquer momento e em qualquer grau ordinário de jurisdição. DO MÉRITO RECURSAL: DA MANIFESTA ILEGITIMIDADE AD CAUSAM PASSIVA DO AGRAVANTE E DA NECESSIDADE DE EXCLUSÃO. ‘A litispendência é realmente um vínculo quase sempre indesejado e é por isso que a lei impõe requisitos para a formação de processo viável (os pressupostos processuais), sem os quais ele não deveria ter sido formado e em razão de cuja falta há de ser extinto. Não é sem razão que ao demandado se oferecem as exceções processuais, constituindo para ele um bem a absolutio ab instantia, ou seja, a libertação (‘absolvição’) do pesado vínculo que o processo significa: a litigiosidade da coisa, ineficácia das alienações, as repercussões sociais e econômicas do processo pendente (abalo ou restrições ao crédito), constituem a tessitura desse incômodo que o processo representa’ (CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO, Execução Civil, 5ª ed., Malheiros, p. 399) 8. Como visto, o presente recurso volta-se contra r. decisão que, rejeitando fundamentos expostos para imediata exclusão do Agravante do pólo passivo da demanda que lhe moveu (e a outros) o Agravado, manteve-o no feito, quando menos até que os réus contestem o pedido e que o autor, aqui Agravado, oferte réplica. Contudo, e sempre preservada a convicção da ilustre juíza oficiante, a exclusão se impõe porque o Recorrente é parte passiva manifestamente ilegítima, podendo e devendo essa impertinência subjetiva ser reconhecida de plano. 9. Muito embora os argumentos já expendidos em primeiro grau não tenham sensibilizado a Digna Magistrada oficiante, é preciso reiterar que um simples exame dos elementos coligidos aos autos (trazidos aqui em sua integralidade), revela que o Recorrido não participou, direta ou indiretamente, dos atos aqui inquinados de inválidos, 328 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 não fazendo parte do grupo de pessoas ‘envolvidas no negócio jurídico administrativo questionado’. 10. Com a máxima vênia, a inclusão do Agravante no rol dos demandados significa, para falar o menos, um lamentável equívoco. É que, mesmo se considerados os próprios termos da inicial (portanto, sem necessidade de maiores ou mais profunda indagações em fase probatória), vê-se que este Agravante sequer em tese poderia ter concorrido para a prática de qualquer um dos fatos narrados na peça vestibular. E que fique claro: o Agravante não nega, como adiante será visto, que tenha participado de pavilhão brasileiro em Hannover; isso é público, notório e, a rigor, motivo de orgulho para o Recorrente. A questão relevante, contudo, é a de saber, EM FACE DOS SUPOSTOS ATOS DE IMPROBIDADE TAIS QUAIS DESCRITOS NA INICIAL, se essa reconhecida participação teve - ou se poderia ter - alguma interferência útil ou relevante nos mencionados atos. DA IMPOSSIBILIDADE, MESMO EM TESE, DE TER ESTE AGRAVANTE PARTICIPADO DOS SUPOSTOS DE IMPROBIDADE ATOS ARROLADOS NA INICIAL 11. Para que se constate esse clamoroso e lamentável equívoco, bastará - até mesmo sem necessidade de ler a infindável e, data venia, pouco objetiva peça vestibular – que se atenha à ‘recapitulação’ que está nas pp. 35 e ss. da inicial, de cuja leitura resultará que: - o Recorrente não foi e nunca poderia ter sido responsável por ‘dispensa de licitação’; - o Recorrente não deu e nunca poderia ter dado ‘permissão ou ordem para despesas não autorizadas’; - o Recorrente não foi e nunca poderia ter sido responsável pelo conteúdo do edital de licitação; - o Recorrente não foi e nunca poderia ter sido responsável por ‘estudos preliminares’ para a discutida concorrência; - o Recorrente não foi e nunca poderia ter sido responsável por coletar ‘documentos essenciais’ para a licitação; - o Recorrente não foi e nunca poderia ter sido responsável por ‘subcontratação’ entre empresas; - o Recorrente não foi e nunca poderia ter sido responsável por ‘dotação orçamentária’; - o Recorrente não foi e nunca poderia ter sido responsável por ‘contratação de parentes políticos’; - o Recorrente não foi e nunca poderia ter sido parte em qualquer um dos atos e contratos indicados na inicial; - o Recorrente não foi e nunca poderia ter sido responsável por convênio celebrado entre a Embratur e o Ministério dos Esportes e Turismo. 12. Doutos Julgadores: a única imputação particularizada de atos ao Agravante, contida na inicial, é vaga e inconsistente e – considerados os pesados ônus que a litispendência representa – não justificaria sequer procedimento investigatório; muito menos sua inclusão no pólo passivo. De fato, com relação ao Recorrente, a inicial R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 329 FUNDA-SE EXCLUSIVAMENTE DE UMA (1) MATÉRIA JORNALÍSTICA que, ao invés de comprovar o suposto envolvimento desse demandado, desmente-o. Veja-se o trecho específico da inicial: ‘Examinando as atas do COMISSARIADO-GERAL de julho de 1999 em diante fica evidente a participação do Sr. CESARIO MELANTÔNIO NETTO e também do Sr. PAULO HENRIQUE CARDOSO. O Sr. PAULO HENRIQUE CARDOSO é réu, por ter coonestado, também, com as ilicitudes a construção de um PAVILHÃO de forma totalmente ilegal, tal como co-responsável pela escolha da firma da Sra. BIA LESSA. Sobre este réu, vejamos a transcrição de um trecho de uma reportagem da Revista Época, publicada em 27.03.2000, onde o mesmo admite a responsabilidade pessoal no Pavilhão da Feira: ‘A FEIRA DA DISCÓRDIA Verba para evento comandado por filho de FH aguça a ciumeira dos organizadores da comemoração (...) Paulo Henrique Cardoso participou de pelo menos 20 reuniões com representantes de ministérios para montar o projeto de Hannover. Vice-presidente do Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável, o filho de Fernando Henrique tenta manter-se alheio à polêmica. ‘Não entrei na parte de recursos, pois isso é muito chato’, diz. ‘Minha participação está restrita ao que o pavilhão deve exibir’. O estande brasileiro elegeu como temas o meio ambiente e o desenvolvimento sustentável. A Embratur gastará R$ 6 milhões para erguer e administrar o pavilhão na Alemanha, com área de 3.200 metros quadrados’ (grifos no original) 13. Ora, essa mesma matéria trazida como FUNDAMENTO ÚNICO DA INICIAL (no que diz com este Demandado) permite que se constate - de forma isenta - qual a participação do Recorrente nos fatos em questão, a saber: - o Ministério das Relações Exteriores, em 19.02.00, através de sua Assessoria de Relações Federativas, solicitou ao CONSELHO EMPRESARIAL BRASILEIRO PARA O DESENVOLVIMENTO SUSTENTADO - CEBDS, na pessoa seu Presidente, o Doutor Felix de Bulhões, a indicação de ‘dois ou três membros’ daquela entidade privada, ‘para integrarem na condição de Comissários, a Comissão Geral do Brasil para a Exposição Universal do Ano 2.000’ (cf . incluso documento; grifamos); - a solicitação assim feita pelo Ministério, conforme ali expressamente consignado, teve ‘por objetivo estreitar a colaboração entre a Comissão Geral e o Conselho’, tudo ‘com vistas a assegurar ao Brasil o mais alto nível técnico de participação no evento’; - esse mesmo CONSELHO EMPRESARIAL BRASILEIRO PARA O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL respondeu ao Ministério, indicando ‘dois membros da direção do CBDES’: o ora Agravante e o senhor PAULO MANOEL PROTÁSIO (cf. incluso documento); - pela Portaria nº 3, de julho de 1.999, o mesmo Ministério das Relações Exteriores constituiu o COMISSARIADO GERAL DO BRASIL PARA A EXPOSIÇÃO UNIVERSAL DO ANO 2.000. Nesse mesmo ato, foi estabelecida a composição do Comissariado, como um (a) ‘Comissário-Geral’ e cinco (5) ‘Comissários-Gerais Adjuntos’ – dentre os quais, dois (2) membros do supracitado CEBDS (cf. incluso documento); 330 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 - mediante Portaria subseqüente do mesmo Ministério, foram nomeados o Comissário-Geral – CESÁRIO MELANTONIO NETO – e os cinco (5) Comissários-Adjuntos; dentre os quais o vice-presidente do CEBDS, que vem a ser o ora agravante. 14. Doutos Julgadores: o exame mais cuidadoso de como e porque o Recorrente veio a participar das reuniões em que discutido o assunto ‘exposição de Hannover’ dá a exata medida de qual o papel pelo mesmo ali desempenhado; frise-se, mais uma vez, como um (dentre outros) dos representantes dos CEBDS. 15. E por que e para que o Ministério das Relações Exteriores solicitou a participação do CEBDS? Simples, lógico e natural: o objeto daquela exposição internacional, para o pavilhão do Brasil, girava em torno do tema HOMEM/NATUREZA/SUSTENTABILIDADE; tema esse para o qual o mesmo citado CEBDS reunia - como de fato reúne - notória capacitação. Diante desse quadro, nobre Julgador, emerge claramente o papel desempenhado por aquele CONSELHO, através de seus Comissários-Adjuntos nomeados: auxiliar os órgãos governamentais responsáveis pelo processo, exclusivamente naquilo para o que o CEBDES estava capacitado, sito é, para as discussões em torno dos conceitos e temas referentes a desenvolvimento sustentado. Vale lembrar que o CONSELHO EMPRESARIAL BRASILEIRO PARA O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL – CEBDS, conforme dá conta a inclusa documentação, é entidade sem fins lucrativos, criada em 1.997, e que integra a rede de conselhos vinculada ao WORLD BUSINESS COUNCIL FOR SUSTAINABLE DEVELOPMENT. Ele é constituído por importantes empresas da economia nacional e tem inegável representatividade junto à sociedade civil, credenciando-se para, em parceria com órgãos governamentais, contribuir para a promoção do chamado desenvolvimento sustentável (cf. inclusos documentos). 16. Mais ainda: diante desse quadro, que resulta da prova literal contida nos autos, emerge a extensão das possibilidades e das funções a cargo dos representantes do CEBDS (dentre os quais este Agravante): nenhum poder decisório, nenhum poder de empenho ou comprometimento de verbas, nenhum poder para determinar cláusulas ou condições contratuais, nenhuma ingerência sobre licitação (aliás, muito anterior ao ingresso dos membros do CEBDS), nenhum poder de praticar ou sequer influenciar a prática dos atos que a inicial acoima de ilegais; apenas atividade consultiva específica na área de conhecimento e atuação do CEBDS. Vale dizer: IMPOSSIBILIDADE LÓGICA, MESMO EM TESE, DE O AGRAVANTE PRATICAR OS ATOS DE IMPROBIDADE TAIS QUAIS DESCRITOS NA INICIAL. Nesse particular aspecto, convém dizer que a insistente assertiva do Agravado de que o Agravante teria indicado a Ré Bia Lessa não pode ser aceita porque: a) não corresponde à realidade e é fruto da imaginação do Recorrido; b) a assertiva, por sobre ser completamente inverídica, não encontra qualquer respaldo em elemento objetivo dos autos; c) o fato foi negado pela própria Bia Lessa; d) os elementos nos autos indicam que o Agravado fez - mas não se retratou - uma confusão (feita pela Imprensa, que se retratou) entre Bia Lessa e Bia Aidar; e) ainda que o Agravante tivesse cogitado do nome em questão (o que não ocorreu), não tinha poder decisório para determiná-lo – o R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 331 que, por si só, evidencia o absurdo da alegação. Isso tudo, aliás, e ao contrário do que entendeu sua Excelência, só é confirmado pelo teor das atas de reunião do Comissariado, que o Agravado sequer se deu ao trabalho de juntar, mas que o Recorrente trouxe aos autos, sem, contudo e com renovada vênia, merecer a devida atenção pela DD. Magistrada oficiante. Dos aludidos documentos, vê-se que a participação deste Demandado cingiu-se ao debate de idéias ACERCA EXCLUSIVAMENTE DO TEMA DA EXPOSIÇÃO (desenvolvimento sustentado). Nesse particular, o Ministério Público não foi capaz de indicar – porque, de fato, não há – um ato, documento ou papel que tivesse sido subscrito pelo ora Agravante. Como, então, admitir tão desarrazoada acusação?? E mais: toda essa atividade desempenhada pelo CEBDS, que teve no Agravante apenas um representante, desenrolou-se de forma meritória, rigorosamente sem qualquer custo ou ônus para os cofres públicos; o que, aliás, não é negado pelo Agravado em momento algum. 17. Ora, com o devido respeito, é muito fácil ao Recorrido vir na inicial, valendo-se de uma matéria jornalística cujo conteúdo cuidou de distorcer, e afirmar que este Agravante teria ‘participado’ de todo o processo referente à EXPO 2000, sem, contudo, agir com lealdade e dizer adequadamente qual foi essa participação. É muito fácil para o Agravado - infelizmente com o beneplácito da r. decisão agravada - fazer alegações inconsistentes e incompletas para, no mínimo de forma equivocada (para não dizer com má-fé), arrastar para o processo alguém que nenhuma participação efetiva ou juridicamente relevante teve, repita-se, nos atos narrados na inicial (praticados com improbidade). DA IMPOSSIBILIDADE DE SE INCLUIR ALGUÉM NO PROCESSO COM BASE EM MATÉRIA JORNALÍSTICA E COM BASE EM FATOS QUE SEQUER DIZEM RESPEITO AO OBJETO DO PROCESSO 18. Com todo o respeito que merece o Agravado, suas manifestações nos autos são, para dizer o menos, inusitadas: ao invés de se fundar em fatos, funda-se em matérias jornalísticas (que, supostamente e apenas a seus olhos, incriminariam o Agravante); ao invés de invocar a lição da doutrina ou da jurisprudência, o Agravado cita ‘colunistas’. Ora, com todo o respeito, como se pode tolerar a inclusão de alguém no pólo passivo de uma demanda, com todos os ônus que daí decorrem, com base em citações de ‘colunistas’?? 19. Isso tudo é tanto mais grave quando se constata que o próprio Ilustre subscritor da inicial ufana-se ao falar da ‘simbiose’ entre o Ministério Público e a imprensa, NA QUAL O PRIMEIRO ‘ALIMENTA’ A SEGUNDA, PARA DEPOIS DELA UTILIZAR-SE PARA FUNDAMENTAR SUAS INCURSÕES EM JUÍZO: ‘A simbiose entre a imprensa e o MP é bastante salutar, principalmente considerando o fluxo de informações. (...) Ao anunciar a denúncia e pedido de cassação, de forma consciente, SABIA QUE AMPLIARIA O MOVIMENTO DO ESTADO E DA OPINIÃO PÚBLICA IMPULSIONANDO O MOVIMENTO PELA CASSAÇÃO. SABIA QUE HAVERIA UMA ONDA AVASSALADORA QUE ARRESTÁRIA INDECISOS, INCLUSIVE JUÍZES 332 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 HESITANTFS. (...) Nós fazemos nossa parte e tentamos nos credenciar como guardiães da justiça e da legalidade. O JUIZ QUE DECIDA, QUE ASSUMA O ÔNUS DA FORMA COMO FOI COLOCADA. Se o juiz não decretar a prisão, ficará em palpos de aranha. (cf. Jornal Folha de São Paulo, edição de 09.09.00, não desmentido em qualquer momento pelo Ilustre Procurador; grifos e versais não constam no original). 20. Doutos Julgadores: é esse o caso dos autos. O Ministério Público parte de ‘notícias’ que ele próprio semeou e cria deliberadamente uma situação de desconforto para quem vai julgar. Só assim, com a devida vênia, é que se pode entender a r. decisão agravada que, colocada nos ‘palpos de aranha’, criados pelo próprio Agravado, lamentavelmente não teve suficiente independência para reconhecer que inexiste qualquer elemento subjetivo ou razoável que justifique a presença do Agravante no feito. 21. Mas isso não é tudo: além de fundar sua demanda em uma única matéria jornalística (repita-se, completamente distorcida), o Agravado, agora em manifestação sobre o pedido de exclusão imediata feito pelo Agravante, confirma que não há nada de objetivo ou concreto contra o Recorrente ao perder-se em uma série de imputações – muitas delas de caráter altamente infamante e que serão objeto de medidas adequadas, inclusive na seara penal – que NÃO GUARDAM QUALQUER RELAÇÃO COM O OBJETO DO LITÍGIO e que demonstram o descalabro e a completa sandice que é a inclusão do Agravante no pólo dessa demanda. Veja-se: ‘Não foi o MPF quem introduziu o filho do Presidente no meio de tramas envolvendo milhões e dispensas de licitações e sim o próprio Sr. PAULO HENRIQUE CARDOSO, que passeia por diversos cargos na Administração Pública’ (cf . fls. 1.232) . Perguntase: quais seriam esses ‘cargos’?? A resposta é: o Agravado não os soube indicar pela simples razão de que eles não existiram, tendo o Agravante se limitado a ocupar o cargo de Diretor da Rádio do MEC, há mais de oito (8) anos passados, a convite do então presidente da fundação Roquete Pinto, o Sr. Walter Clark. Mas, para argumentar, ainda, que cargos tivessem sido ocupados: que relação desses ‘cargos’ haveria com os fatos descritos na inicial?? ‘Não foi o MPF quem ‘colocou’ o Sr. PAULO HENRIQUE no meio dos atos administrativos apontados como ilícitos. E sim ele mesmo, que passeia pelos cargos da Administração com imensa desenvoltura infringindo princípios basilares como o da moralidade pública, etc.’ (cf. fls. 1.235). Novamente, não se soube indicar quais seriam esses ‘cargos’, porque isso não encontra respaldo nos autos, nem na realidade das coisas. E, de novo, é o caso de se indagar: quais os ‘cargos’ ocupados pelo Agravante que guardariam mínima relação com o objeto da ação?? ‘O Sr. PAULO HENRIQUE CARDOSO é apontado pela mídia como homem de muitos talentos, mas que transita pela Administração Pública com enorme ligeireza, (cf. fls.1.236). De novo, é preciso negar enfaticamente esse suposto ‘trânsito’, existente apenas na fértil e nefasta imaginação do Agravado. E, ainda uma vez, é caso de se indagar: o que se quer dizer com ‘enorme ligeireza’?? Como se pode incluir alguém no pólo passivo de uma demanda desta gravidade porque a ‘mídia’ disse isso ou aquilo?? R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 333 Enfim: qual a relação objetiva disso com os fatos narrados na inicial?? ‘Ou seja, o Sr. PAULO HENRIQUE CARDOSO, além de ter tido como esposa a filha do Banco Nacional, banco envolvido num dos maiores escândalos financeiros dos últimos anos, com milhares de créditos fictícios criados para esconder a situação de descalabro do Banco e ainda assim beneficiário de régios contratos de bilhões numa das operações do PROER’ (cf. fl.1.239). Indaga-se: O que o casamento do Agravante tem com os fatos narrados na inicial ?? O que a questão envolvendo o Banco Nacional tem a ver com o Recorrente e, pior, com os fatos objeto deste processo?? Como o Agravado ousa fazer tão leviana e disparatada assertiva, sendo que o nome do Agravante jamais foi associado por quem quer que fosse ao referido episódio!! Como pode se admitir que o Recorrido, sem noção da importância do papel que desempenha em uma Democracia, pode fazer tais assertivas a quem, sem embargo da filiação, sempre se pautou pela mais absoluta discrição??.. . 22 . Doutos Julgadores: não se pode tolerar que o exercício do direito de ação e, em particular o da ação civil pública, que são garantias do Estado de Direito, sejam de tal forma vilipendiados, prestando-se a tamanhos e tão graves desvios. O Agravado nada tem de objetivo contra o Agravante, exceto um inexplicável e intolerável intuito de persegui-lo através do processo. O que se pede é que o Poder Judiciário, com independência e sem receio dos ‘palpos de aranha’ ardilosamente criados pelo Agravado, reconheça que, em um Estado de Direito, não se pode tolerar a pendência de um processo desta gravidade sem justa causa.” O Ministério Público Federal apresentou contra-razões. O Parquet opinou pelo improvimento do recurso. É o relatório. VOTO O Exmo. Sr. Des. Federal Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz: Conheço do agravo de instrumento e dou-lhe provimento. Com efeito, in casu, em nenhum momento da inicial, é apontada pelo Parquet, de forma concreta, a ilegalidade e a lesividade ao patrimônio público atribuído ao agravante. Na inicial da ação cautelar preparatória da ação de improbidade administrativa, a fls.40/43, consta em relação ao agravante, verbis: “Juridicamente, foi o ex-Ministro RAFAEL GRECA quem coordenou a participação do Brasil no evento, dado que presidiu o comitê da Expo Hannover 2000, que era integrado pelo mesmo como Presidente e tinha o Ministro Cesário Melantonio como Comissário Geral junto à organização do evento na Alemanha, auxiliado pelo Sr. PAULO HENRIQUE CARDOSO. A responsabilidade do ex-Ministro RAFAEL GRECA é clara tanto por presidir o Comitê quanto por ser então o Ministro que deveria ter fiscalizado e exercido o controle finalístico sobre a autarquia, EMBRATUR. 334 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 Examinando as atas do COMISSARIADO-GERAL de julho de 1999 em diante fica evidente a participação do Sr. CESÁRIO MELANTONIO NETTO e também do Sr. PAULO HENRIQUE CARDOSO. O Sr. PAULO HENRIQUE CARDOSO é réu, por ter coonestado, também, com as ilicitudes a construção de um PAVILHÃO de forma totalmente ilegal, tal como co-responsável pela escolha da firma da Sra. BIA LESSA. Sobre este réu, vejamos a transcrição de um trecho de uma reportagem da Revista Época, publicada em 27.03.2000, onde o mesmo admite a responsabilidade pessoal no Pavilhão da Feira: ‘A FEIRA DA DISCÓRDIA Verba para evento comandado por filho de FH aguça a ciumeira dos organizadores da comemoração (...) Paulo Henrique Cardoso participou de pelo menos 20 reuniões com representantes de ministérios para montar o projeto de Hannover. Vice-presidente do Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável , o filho de Fernando Henrique tenta manter-se alheio à polêmica. ‘Não entrei na parte de recursos, pois isso é muito chato’, diz. ‘Minha participação está restrita ao que o pavilhão deve exibir’. O estande brasileiro elegeu como temas o meio ambiente e o desenvolvimento sustentável. A Embratur gastará R$ 6 milhões para erguer e administrar o pavilhão na Alemanha, com área de 3.200 metros quadrados’. (DOC.04). Para demonstrar, de forma irrefutável, a responsabilidade dos réus, basta a leitura de um parecer jurídico da EMBRATUR, que segue transcrito abaixo. E a leitura das causas de pedir descritas no corpo desta petição, que historia os fatos: ‘NOTA TÉCNICA Nº 177/2000 Para viabilizar a atuação da EMBRATUR no evento, foi celebrado o convênio nº 01/2000 em 18 de fevereiro do corrente ano (DOU de 21.02.2000), por solicitação daquele Ministério, que possuía a previsão de crédito orçamentário no montante de R$ 14.100.000,00 (catorze milhões e cem mil reais) na funcional programática 23.0695.0417.1592.0003, visando a realização da Exposição Universal do ano 2000 em Hannover. Para coordenar a participação do Brasil no evento foi constituído um comitê da Expo Hannover 2000, que era integrado pelo Ministro RAFAEL GRECA como Presidente e o Ministro CESÁRIO MELANTÔNIO como Comissário Geral junto à organização do evento na Alemanha. O Itamaraty realizou o pagamento de dois milhões de marcos alemães pela área onde teria de se construir o estande do país, restando portanto ao referido Comitê da Expo 2000, procurar viabilizar a construção do mesmo, com área de 3.200m2. Para realização do Projeto de concepção, criação, desenvolvimento, serviços e direção geral e supervisão artísticas da montagem e desmontagem do Pavilhão do Brasil, foi contratada a artista BIA LESSA por intermédio da FUNPAR, Fundação da Universidade Federal do Paraná para o Desenvolvimento da Ciência, da Tecnologia e da Cultura. A FUNPAR, por seu turno, havia celebrado com o Ministério do Esporte e Turismo o convênio de cooperação Técnica Financeira nº 05/99, de 31 de agosto de 1999, R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 335 processo nº 58000.000352199-59, visando a realização do Expo2000. Quando o convênio 1/2000 foi celebrado com a EMBRATUR em 18.02.2000 e publicado no DOU de 21.02.2000, estávamos a apenas três meses do início do evento que ocorrerá no dia 1º de junho, o que praticamente inviabilizou qualquer abertura de licitação, como seria desejável à Administração. Isso porque, devido aos valores envolvidos, a modalidade de licitação seria a concorrência de âmbito internacional inclusive, tendo em vista o país onde se daria a execução dos serviços, a Alemanha. (...) Resta claro que, não tinha a EMBRATUR como deixar de lançar mão dos dois únicos instrumentos que possui para viabilizar a participação do país na Expo 2000 em Hannover quais sejam: o convênio com a FENACTUR – Federação Nacional de Turismo ou a utilização do contrato que possui com a empresa ARTPLAN PRIME, decorrente da concorrência nº02/99. A Primeira alternativa então, concretizou-se como sendo a realização de parceria com a FENACTUR, o que resultou na formalização do 1º termo aditivo ao Convênio nº 05/2000, tendo como objeto a administração da participação do Brasil na Expo 2000, publicada no DOU de 23 de fevereiro. Referida escolha, teve como lastro o fato de que, a Fenactur já administra em parceria há vários anos, a participação da EMBRATUR nas feiras internacionais, além de não representar em custo adicional, como seria o caso da agência de publicidade, que faz jus às comissões previstas no contrato pelos serviços que presta. Como sabido, a FENACTUR em 21 de março, um mês após a formalização da parceria, declinou de realizar a Expo 2000 em parceria com a EMBRATUR por problemas de ordem operacional, o que implicou na rescisão do 1º termo aditivo em 22 de março, restando como única alternativa a agência ARTPLAN PRIME. (...) À Presidência, Brasília, 23 de maio de 2000. Júlio Cesar Barbosa Melo Procurador Geral’. (DOC. N. 0 1) Pela Nota Técnica acima, firmada pelo Procurador Geral da EMBRATUR, esta autarquia celebrou o convênio nº 01/2000 em 18 de fevereiro do corrente ano (DOU de 21.02.2000), por solicitação do Ministério do Esporte e Turismo. Tudo foi coordenado pelo Comitê da Expo Hannover 2000, que era integrado pelo MINISTRO RAFAEL GRECA como Presidente e o MINISTRO CESÁRIO MELANTÔNIO como Comissário Geral junto à organização do evento na Alemanha, tendo como Comissário-Geral adjunto o Sr. PAULO HENRIQUE CARDOSO. Sobre a responsabilidade dos membros do Comissariado e da firma da Sra. BIA LESSA no acompanhamento de todo o projeto, na construção e nas compras para o Pavilhão do Brasil na Feira de Hannover, vejamos o teor de um ofício que responder a várias dúvidas do MPF, o OF. PRESI.CHGAB. nº 908/00, firmado pelo Dr. WALTER BATISTA ALVARENGA, Assessor do Presidente da EMBRATUR, de 08.09.2000, ao responderem a perguntas do MPF, confessou: 336 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 ‘- Quanto ao 7º item do ofício MPF/PRDF/LF Nº 178: Quando da desmontagem do estande, que ocorrerá a partir do dia 1º de novembro próximo, será feito inventário de todo o material adquirido pelo Governo Brasileiro, que será posteriormente anexado aos autos. Até decisão sobre a destinação dos objetos comprados, a Embaixada do Brasil em Berlim - Alemanha, deverá mantê-los sob sua guarda. Tal decisão deverá levar em conta todas as circunstâncias que envolvem o caso e a relação custo/beneficio, respeitando-se sempre a legislação vigente, tendo como escopo fundamental resguardar os interesses do Poder Público. Quanto aos procedimentos de compra, cumpre esclarecer que o Comissariado Geral do Brasil para a EXPO HANNOVER elegeu a produtora artística Sra. Bia Lessa, para A COORDENAÇÃO DA EXECUÇÃO DOS TRABALHOS e para definir o que comprar, de quem comprar e a quanto comprar, para que o projeto não viesse a sofrer desfiguração. Há que se ressaltar o acompanhamento permanente, pela Sra. Bia Lessa, e POR MEMBROS DO COMISSARIADO EM HANNOVER, de TODOS os passos para a viabilização do PROJETO, antes mesmo do início da montagem DO PAVILHÃO PARA A EXPOSICÃO’.(DOC. 02) Sendo o projeto da autoria da firma da Sra. BIA LESSA, BD Produções Artísticas e Culturais Ltda., e sendo tudo acompanhado pelos membros do COMISSARIADO, que coordenavam todos os trabalhos, fica mais que demonstrado a responsabilidade dos mesmos. Inclusive pelo fato de que os membros do Comissariado foram os responsáveis diretos pela escolha da firma da Sra. BIA LESSA e, de acordo com atas transcritas no corpo desta petição, acompanharam e discutiram cada detalhe do projeto da construção do Pavilhão e das compras de materiais para o mesmo. Dentre os membros do Comissariado que se destacaram, inclusive perante a mídia, nas deliberações referidas estão o Comissariado Geral do Pavilhão, o Sr. CESÁRIO MELANTÔNIO NETTO e o Comissariado Geral Adjunto, o Sr. PAULO HENRIQUE CARDOSO. Quem escolheu a subcontratada PERICHI/EVIDÊNCIA, um consórcio de firmas, foi o Comissariado Geral da EXPO-2000, conforme consta, por exemplo, no ofício do Sr. ROSTON NASCIMENTO, Diretor de Marketing da EMBRATUR, a ARPLAN-PRIME, em 21.03.2000 e na resposta do Sr. RICARDO DALCANALE BORHAUSEN ao Sr. ROSTON NASCIMENTO, em 22.03.2000. Este fato também consta da carta da ARTPLAN PRIME S/A, firmada pelo Sr. RICARDO DALCANALE BORHAUSEN, à PERICH/EVIDENCIA, de 22.03.2000, que segue anexa, onde está dito expressamente: ‘considerando que a Comissão Interministerial da EXPO 2000 e a FENACTUR realizaram processo seletivo com tal destinação, onde a PERICH/EVIDENCIA foi escolhida’. (DOC. 03) Para realização do Projeto de concepção, criação, desenvolvimento, serviços e direção geral e supervisão artísticas da montagem e desmontagem do Pavilhão do Brasil, foi contratada a artista BIA LESSA por intermédio da FUNPAR, Fundação da Universidade Federal do Paraná para o Desenvolvimento da Ciência, da Tecnologia e da Cultura, restando demonstrado que a escolha da empresa da Sra. BIA LESSA foi R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 337 decisão do Comissariado Geral da EXPO 2000, presidido pelo Sr. CESÁRIO MELANTONIO e pelo Sr. PAULO RENRIQUE CARDOSO.” Em alentado parecer, onde são analisados os pressupostos processuais que autorizam o ajuizamento da ação popular, leciona o ilustre Ministro Thompson Flores, ex-Presidente do Supremo Tribunal Federal, em magistério aplicável ao caso dos autos, verbis: “(...) 5. A ação em comentário, erigida em garantia constitucional, de alto destaque na vida democrática da Nação, atribui a ‘qualquer cidadão’ como parcela do Povo, de onde provém todo o poder, como é expressa a própria Lei Maior (art.1º, § 1º), legitimidade ativa para fiscalizar a Administração, no pertinente ao patrimônio público que lhe está afeto, ensejando-lhe, através de meios prontos e eficazes, alcançar judicialmente, a decretação e invalidade dos atos que sejam lesíveis ao Erário, obrigando os responsáveis ao ressarcimento do mal causado. Não poderia, como nem seria curial, que instaurasse ele a grave lide, sem que ‘aparelhado’ estivesse para ela. 6. Por isso, acentuou com propriedade José Afonso da Silva (ob. cit., p. 221, nº 189): ‘(...) A demanda, contudo, deverá ser idônea, para produzir os efeitos procurados, ou seja, uma decisão de mérito. Para isso há certas exigências que precisam transparecer na petição inicial que necessita ser apta ao estabelecimento da relação processual. (...) A demanda popular propõe-se por petição na forma do art. 158 do CPC, com todos os requisitos ali especificados e mais os que no caso concreto exigir.’ O socorro ao CPC citado deflui do disposto no art.22 da Lei 4.717/65; e o invocado art. 158 corresponde ao art. 282 do CPC vigente. 7. Destarte, o libelo inicial deve ser preciso quanto à indicação do fato e os fundamentos jurídicos do pedido; para a espécie, o ato cuja decretação de invalidade postula, o vício que o contaminou e em que consistiu sua lesividade ao patrimônio público da entidade indicada. É possível que o autor, de início, não disponha de todos os elementos necessários, porque não tenham sido fornecidos pelas entidades em questão. O remédio está, claramente, assegurado no art. 7º, I, b, e § 2º, da Lei 4.717. O certo, porém, é que os fatos, antes da citação devem estar devidamente expostos, bem como os fundamentos do pedido, para que os réus possam, com base neles, oferecer sua defesa. (In Revista de Processo, 61/221).” No caso em exame, a inicial não apontou o ato ilícito atribuído ao recorrente, a justificar a sua permanência na presente ação, na forma do art. 282, III, do CPC. Com efeito, é ônus do autor da ação de improbidade administrativa apresentar na peça vestibular a indicação precisa do fato e dos fundamentos jurídicos da demanda, ou seja, o ato cuja decretação de invalidade postula, o vício de ilegalidade e a sua lesividade ao patrimônio público. 338 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 No que concerne ao recorrente, não se aponta, de forma concreta e objetiva, como e em que condições teria praticado os atos de improbidade que lhe são imputados. Argumenta-se que, após a instrução, poderia o Parquet comprovar ditos fatos. In casu, a prova é exclusivamente documental e, no caso do agravante, a inicial encontra-se instruída apenas em matéria de jornal, o que, com a devida vênia, não justifica o ônus de figurar como réu em ação de improbidade administrativa. Pelo contrário, os documentos que constam do processo corroboram a tese sustentada pela defesa. Em seu memorial, a fls. 1.359/1.361, anotou, com acerto, o procurador do agravante, verbis: “Trata-se de ação civil pública ajuizada pelo Agravado, em face do Agravante e outros, cujo fundamento é a suposta prática de atos de improbidade administrativa que teriam sido praticados pelos demandados, ao ensejo da montagem do pavilhão brasileiro na EXPO-2000, em Hannover, Alemanha. 2. Ocorre, contudo, que o ora Agravante foi incluído no pólo passivo dessa demanda sem que existisse – ou sequer fosse indicado – qualquer elemento objetivo de sua efetiva participação nos alegados atos de improbidade, razão pela qual postulou sua pronta exclusão do feito, juntando documentos. 3. Indeferido tal requerimento, volta-se o presente agravo contra essa decisão, vez que a exclusão se impõe porque o Recorrente é parte passiva manifestamente ilegítima, podendo e devendo essa impertinência subjetiva ser reconhecida de plano. 4. E isso porque o Recorrente não participou, direta ou indiretamente, dos atos aqui inquinados de inválidos, não fazendo parte do grupo de pessoas ‘envolvidas no negócio jurídico administrativo questionado’. Mesmo se considerados os próprios termos da inicial (portanto, sem necessidade de maiores ou mais profundas indagações em fase probatória), vê-se que este Agravante sequer em tese poderia ter concorrido para a prática de qualquer um dos fatos narrados na peça vestibular. 5. Com relação ao Recorrente, a inicial FUNDA-SE EXCLUSIVAMENTE DE UMA (1) MATÉRIA JORNALÍSTICA que, ao invés de comprovar o suposto envolvimento desse Demandado, desmente-o. E isso é tanto mais evidente porque lá se esclarece inquestionavelmente a atuação do Recorrente: representante do CONSELHO EMPRESARIAL BRASILEIRO PARA O DESENVOLVIMENTO SUSTENTADO - CEBDS, órgão instado pelo Ministério das Relações Exteriores a indicar alguns de seus membros ‘para integrarem, na condição de Comissários, a Comissão Geral do Brasil para a Exposição Universal do Ano 2.000’, que girava em torno do tema HOMEM/NATUREZA/ SUSTENTABILIDADE. 6. Como órgão consultivo, o Agravante não foi e nunca poderia ter sido responsável por ‘dispensa de licitação’; por ‘permissão ou ordem para despesas não autorizadas’; R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 339 pelo conteúdo do edital de licitação; por ‘estudos preliminares’ para a discutida concorrência; por coletar ‘documentos essenciais’ para a licitação; por ‘subcontratação’ entre empresas; por ‘dotação orçamentária’; por ‘contratação de parentes políticos’; pela celebração de contratos ou convênio entre a Embratur e o Ministério dos Esportes e Turismo. 7. Doutos Julgadores: a única imputação contida na inicial, é vaga, inconsistente e – considerados os pesados ônus que a litispendência representa - não justificaria sequer procedimento investigatório; muito menos sua inclusão no pólo passivo. De fato, o exame mais cuidadoso de como e porque o Recorrente veio a participar das reuniões em que discutido o assunto ‘Exposição de Hannover’ dá a exata medida de qual papel pelo mesmo ali desempenhado; frise-se, mais uma vez, como um (dentre outros) dos representantes do CEBDS, instituição cujo papel, desempenhado através de seus Comissários-Adjuntos nomeados era auxiliar os órgãos governamentais responsáveis pelo processo, exclusivamente naquilo para o que o CEBDS estava capacitado, isto é, para as discussões em torno dos conceitos e temas referentes a desenvolvimento sustentado. Vale lembrar que o CONSELHO EMPRESARIAL BRASILEIRO PARA O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL - CEBDS, conforme dá conta a inclusa documentação, é entidade sem fins lucrativos, criada em 1.997, e que integra a rede de conselhos vinculada ao WORLD BUSINESS COUNCIL FOR SUSTAINABLE DEVELOPMENT. Ele é constituído por importantes empresas da economia nacional e tem inegável representatividade junto à sociedade civil, credenciando-se para, em parceria com órgãos governamentais, contribuir para a promoção do chamado desenvolvimento sustentável. 8. Diante desse quadro, emerge a extensão das possibilidades e das funções a cargo dos representantes do CEBDS (dentre os quais este Agravante): nenhum poder decisório, nenhum poder de empenho ou comprometimento de verbas, nenhum poder para determinar cláusulas ou condições contratuais, nenhuma ingerência sobre licitação (aliás, muito anterior ao ingresso dos membros do CEBDS), nenhum poder de praticar ou sequer influenciar a prática dos atos que a inicial acoima de ilegais; apenas atividade consultiva específica na área de conhecimento e atuação do CEBDS. Vale dizer: IMPOSSIBILIDADE LÓGICA, MESMO EM TESE, DE O AGRAVANTE PRATICAR OS ATOS DE IMPROBIDADE TAIS QUAIS DESCRITOS NA INICIAL.” A defesa do recorrente demonstra que a sua atuação nos fatos foi meramente consultiva, não tendo o condão de vincular a decisão do agente público, por apresentar caráter opinativo. (Fábio Medina Osório, in Improbidade Administrativa, 2ª edição, São Paulo, p.113) Por conseguinte, o recorrente é parte passiva ilegítima no feito, impondo-se a sua exclusão do processo, nos termos do art.267, VI, do CPC. Ademais, é oportuno registrar, quando do exame da questão pelo TCU, o pronunciamento do ilustre representante do Parquet perante 340 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 aquela Corte, a fls.1.393/4, verbis: “Trata-se de Relatório de Auditoria realizada no Instituto Brasileiro de Turismo - Embratur - e nos Ministérios das Relações Exteriores e do Esporte e Turismo com o objetivo de verificar a regularidade dos gastos de recursos públicos na montagem e divulgação do pavilhão do Brasil na Exposição Universal de Hannover, Alemanha, ocorrida no período de junho a outubro deste ano. Dentre os aspectos analisados pela Unidade Técnica, pensamos que mereçam ainda algumas considerações a contratação da empresa B.D. Produções Artísticas e Culturais Ltda. para desenvolvimento do projeto do pavilhão brasileiro. A empresa BD Produções Artísticas e Culturais Ltda., representante exclusiva da artista Bia Lessa, foi contratada por intermédio da Fundação Universidade do Paraná para o Desenvolvimento da Ciência, da Tecnologia e da Cultura - Funpar, que, havia celebrado convênio com o Ministério do Esporte e Turismo - Convênio 05/99-MET (vol. 1, fls. 15 a 23). Esse convênio foi objeto da Decisão nº 118/2000-TCU-Plenário (Ata nº 8/2000), tendo-se firmado que a natureza do ajuste era contratual, caracterizada pela prestação de serviços pela Funpar como contrapartida pelo pagamento efetuado pelo Ministério. Ficou afastado, no entanto, qualquer indício de má-fé, restando caracterizada a falta de estrutura do recém-criado Ministério para levar a cabo, com pessoal próprio, suas atribuições à frente do Comitê Executivo das Comemorações do V Centenário do Descobrimento do Brasil. A contratação da BD Produções Artísticas e Culturais Ltda. deu-se por inexigibilidade de licitação fundada no inciso III do art. 25 da Lei 8.666/93 (contratação de profissional de setor artístico, diretamente ou por intermédio de representante exclusivo). A Unidade Técnica, no entanto, entendeu que o contrato firmado com a Funpar atribuiu à empresa responsabilidades superiores aos limites de qualificação artística de sua representada, tendo sido necessária a subcontratação de técnicos em diversas áreas específicas para detalhamento do projeto do pavilhão. Sobre essa questão foi ouvida a Sra. Maria Teresa Bonnatto de Castro, ex-Secretária Executiva do Ministério do Esporte e Turismo, entendendo-se que ela teria permitido ou tacitamente autorizado a Funpar a proceder a celebração do contrato com a BD Produções Artísticas (fls. 65 e 74). Das justificativas apresentadas pela ex-Secretária (fls. 129 a 134), destacamos os seguintes trechos: a) em outubro de 1999, o Comissariado Geral responsável pela participação brasileira na Exposição de Hannover solicitou à Sra. Beatriz Lessa um pré-projeto artístico para o pavilhão brasileiro; b) esse pré-projeto foi aprovado pelos integrantes do Comitê Executivo do V Centenário do Descobrimento e pelo Comissariado-Geral de Hannover, em reuniões realizadas nos dias 25 de novembro e 14 de dezembro de 1999; c) as informações sobre as mencionadas decisões foram enviadas à conveniada Funpar para que verificasse a possibilidade legal da contratação do projeto; d) a Funpar contratou a BD produções para a execução de projetos de concepção, R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 341 criação e serviços de direção geral e montagem construtiva e de instalação do Pavilhão Brasil e para a padronização gráfica dos materiais a serem produzidos; e) o projeto de concepção artística da exposição brasileira aprovado pelo Comitê Executivo do V Centenário e pelo Comissariado Geral é uma instalação multimídia, em que ‘o projeto arquitetônico e de engenharia são a própria concepção artística’ ou ‘a montagem construtiva’; ‘as paredes são os materiais nelas empregados, o som é o equipamento utilizado, os computadores, as máquinas de cinema e vídeo, os painéis, as obras de arte, a iluminação, formam um conjunto indivisível’; ‘a composição artística do espaço é a própria arquitetura do projeto’; f) ‘o Brasil instalou sua exposição dentro de um prédio construído pelo Expo 2000’; ‘o projeto aprovado pelo Comitê Executivo do V Centenário e pelo Comissário Geral da Expo 2000 não previa a construção de um novo edifício, como foi o caso de vários outros países, como o México, a Venezuela, o Japão, etc.., e sim a ocupação de parte um prédio’; ‘as paredes e pisos desta instalação’, até onde acompanhei, seriam feitos artesanalmente no Brasil - ressaltando as qualidades do País nessa área - e enviados a Hannover para montagem; g) ‘na verdade, estive como Secretária-Executiva do MET e do Comitê Executivo do V Centenário por cerca de 45 dias após a reunião do dia 25 de novembro que definiu o projeto apresentado pela BD Produções, não tendo acompanhado o desenvolvimento depois disto’. Parte das alegações apresentadas pela Sra. Maria Teresa Bonnatto de Castro estão comprovadas pela ata da reunião do Comissariado Geral do Brasil para a Expo-2000, realizada em 14.12.99. De acordo com aquele documento, fica claro que o projeto desenvolvido pela Sra. Bia Lessa foi bem recebido por todos os participantes da reunião, que concordaram com a celebração do contrato entre a Funpar e a BD Produções. Também está evidenciada que a definição dos aspectos técnicos relacionados ao projeto que deveria ser apresentado pela BD Produções estava a cargo da Sra. lara Dreger, arquiteta contratada pela própria Funpar, que exerceu as funções de Gerente Executiva do Projeto Brasil para a Expo 2000 (vol. 3, fls. 63 a 92). Assim, parece-nos claro que a ex-Secretária Executiva do Ministério do Esporte e Turismo não teve participação decisiva na especificação precisa do objeto do contrato, sendo injusto que se lhe impute a responsabilidade pela prática de um ato que, na verdade, recebeu a anuência de todos os membros do Comitê Executivo do V Centenário e do Comissariado Geral. Por outro lado, quanto ao mérito, vê-se que não é desarrazoado que o projeto de divisão espacial dos diversos ambientes que compuseram o pavilhão brasileiro, o projeto de iluminação, e o projeto acústico estivessem sob a direta supervisão da artista contratada. De se ver ainda que o objeto do contrato celebrado com a BD Produções era predominantemente artístico, ainda que incluísse, além do projeto arquitetônico, projetos complementares (hidráulico, elétrico e anti-incêndio), que, na verdade, tiveram caráter acessório. Relativamente aos pagamentos efetuados a fim de dar execução à montagem e divulgação do pavilhão do Brasil na Exposição Universal de Hannover, Alemanha, inclusive 342 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 os efetuados em favor da empresa Artplan, não há nos autos qualquer elemento que comprove a existência de superfaturamento, conforme bem assevera a Unidade Técnica. Por essas razões, considerando a inexistência de sobrepreço, fraude ou desvios, e considerando serem de natureza formais as falhas imputadas a esta servidora, dissentimos da proposta de aplicação de multa à Sra. Maria Teresa Bonnatto de Castro (incisos I e II do subitem 16.1, à fl. 182), anuindo às demais propostas oferecidas pela Unidade Técnica (inciso III e alíneas do subitem 16.1, às fls. 182/183; e incisos I e II e respectivas alíneas, à fl. 196).” Em seu voto, anotou o ilustre Ministro do TCU, Humberto Guimarães Souto, a fls.1.420/3, verbis: “(...) Antes porém de adentrar no exame de mérito do presente processo, cumpre ressaltar que a importância da participação do Brasil na Exposição Universal de Hannover é um fato incontestável. Para corroborar esta assertiva, basta que se atente para alguns dados relativos ao fluxo turístico mundial hoje existente, os quais evidenciam o enorme potencial que o mercado alemão representa. De acordo com dados remetidos pela EMBRATUR, a despesa turística dos alemães no exterior é superada apenas pela dos americanos. Segundo a Organização Mundial de Turismo – OMT, em 1997, os americanos gastaram no exterior US$ 51 bilhões e os alemães US$ 46,2 bilhões. O fluxo emissivo internacional alemão engloba cerca de 80 milhões de turistas/ano. No plano nacional, cabe destacar que a chegada de turistas alemães ao Brasil sofreu um incremento considerável na última década. De um total de 62.311 turistas/ano, em 1990, passou-se a 282.846, em 1999. Esses turistas geraram uma receita cambial estimada em US$ 355 milhões. (...) Registro, desde logo, que a análise técnica empreendida pela 6ª Secretaria de Controle Externo, cujo inteiro teor incorporei ao Relatório que antecede este Voto, abordou com propriedade a quase totalidade dos aspectos relevantes das decisões que nortearam a participação do Brasil na EXPO 2000, sendo as suas proposições acolhidas pelo Ministério Público junto a este Tribunal, havendo divergência apenas quanto ao entendimento a respeito da contratação da empresa B.D. Produções Artísticas e Culturais Ltda., assunto ao qual me reportarei mais adiante. (...) Ante a indiscutível impossibilidade material de se realizar o processo licitatório previsto em lei, e considerando a grave ameaça de prejuízos, não só financeiros com a perda dos valores já adiantados a título de aluguel da área, mas, principalmente, à imagem do país, não tenho dúvida de que o aproveitamento de empresas já selecionadas em licitações anteriores e cujos contratos estavam em vigor foi uma medida que veio a contribuir para a viabilização da participação nacional no evento, atendendo, assim, ao interesse público. (...) Tendo em vista não terem sido realizadas licitações para adjudicação dos serviços pertinentes ao evento e, também, considerando a magnitude dos recursos envolvidos, R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 343 a principal preocupação desloca-se para a verificação da compatibilidade dos gastos praticados. Quanto a essa questão, os documentos acostados aos autos não deixam dúvidas de que o custo por metro quadrado pago pelo Brasil situou-se em patamar bem inferior ao de outros países, conforme demonstrado no Relatório que antecede esse Voto. Contudo, o mais importante no que se refere a esse ponto não é a simples comparação internacional, que poderia por si só comportar outros questionamentos, mas sim promover estudos comparativos que levem em conta outras participações nacionais. Em informações complementares juntadas ao processo, a EMBRATUR apresenta a relação existente entre os gastos efetuados na Expo de Lisboa em 1998 e os de Hannover, cujos esclarecimentos transcrevemos a seguir, como forma de demonstrar não terem sido desarrazoados os gastos ora em exame. (...) Conjugando as informações recém-prestadas com o fato de que a Artplan havia obtido um orçamento de outra empresa com preços superiores aos constantes da proposta formulada pela Perich/Evidência, parece-me que se possa admitir os preços cobrados para a realização dos serviços de montagem e desmontagem do pavilhão do Brasil em Hannover como compatíveis com os serviços prestados por aquela empresa.” Ou seja, em nenhum momento o agravante foi responsabilizado ou sequer referida a sua participação nos fatos noticiados na inicial, o que corrobora, mais uma vez, a tese sustentada pela defesa de não dispor o recorrente de qualquer ingerência na prática de atos administrativos – inclusive por não exercer função pública – cuja legalidade é questionada na presente ação. Ademais, a Eg. Corte de Contas, acolhendo o pronunciamento do Parquet junto àquele Tribunal, afastou o caráter ilícito de grande parte dos fatos noticiados na peça vestibular, o que, na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, impede o seu reexame na via judicial, a não ser quanto ao seu aspecto formal ou tisna de ilegalidade manifesta, o que não se verifica no caso em exame. (RE nº 55.821-PR, rel. Ministro Victor Nunes Leal, in RTJ 43/151; REsp nº 8.970-SP, rel. Ministro Gomes de Barros, in RJSTJ 30/378, respectivamente) Em julgado publicado na RSTJ, volume 30, pp.395/7, assinalou o eminente Ministro Gomes de Barros, quando do julgamento do REsp nº 8.970/SP, verbis: “III - Sustentam os recorrentes ser impossível a reapreciação judicial de atos administrativos, cuja regularidade foi atestada pelo Tribunal de Contas. Trazem, em socorro de sua tese, afirmação de que o Acórdão recorrido destoa da Jurisprudência tradicionalmente consagrada no Supremo Tribunal Federal. 344 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 Como paradigma, citam o Acórdão relativo ao MS nº 7.280, do qual relator o saudoso Min. Henrique D’Ávila, resumido nesta ementa: ‘TRIBUNAL DE CONTAS - Apuração de alcance dos responsáveis pelos dinheiros públicos - Ato insuscetível de revisão perante a Justiça comum - Mandado de Segurança não conhecido. - Ao apurar o alcance dos responsáveis pelos dinheiros públicos, o Tribunal de Contas pratica ato insuscetível de revisão na via judicial a não ser quanto ao seu aspecto formal ou tisna de ilegalidade manifesta’ (fls.3.881). Em seu relatório, o saudoso Ministro transcreveu o Parecer do então Procurador-Geral da República - o igualmente saudoso Ministro Carlos Medeiros Silva, in verbis: ‘Conforme decidiu o Pretório Excelso, no Mandado de Segurança nº 6.960 (sessão de 31 de julho de 1959, decisão unânime, relator o Sr. Ministro Ribeiro da Costa), não cabe mandado de segurança contra decisão do Tribunal de Contas que julgou contas de responsáveis por dinheiros públicos. Disse, então, o Sr. Min. Ribeiro da Costa: ‘a decisão sobre a tomada de contas de gastos de dinheiros públicos, constituindo ato específico do Tribunal de Contas da União ex vi do disposto no artigo nº 77, II, da Constituição Federal, é insuscetível de impugnação pelo mandado de segurança, no concernente ao próprio mérito do alcance apurado contra o responsável, de vez que não cabe concluir de plano, sobre a ilegalidade desse ato, salvo se formalmente eivado de nulidade substancial, o que, na espécie, não é objeto de controvérsia’ (fl. 3.968). No voto, com que conduziu o Tribunal Pleno, o Ministro Henrique D’Ávila observou: ‘Na realidade o Tribunal de Contas quando da tomada contas dos responsáveis por dinheiros públicos, pratica ato insuscetível de impugnação na via judicial, a não ser quanto ao seu aspecto formal ou ilegalidade manifesta. Na espécie o que o impetrante impugna é o mérito da são do Tribunal de Contas. Entende ele que não existia o apontado, ou seria menor do que o apurado. O assunto, é evidente que não pode ser tratado através processo expedido do mandado de segurança. Só pelos meios mais regulares é que poderá o impetrante demonstrar o contrário, ou invalidar a apuração feita pelo Tribunal de Contas União.’ (fls. 3.968/9). Como se percebe, o Supremo Tribunal Federal não reconhece na decisão do Tribunal de Contas a força da coisa julgada material. A Corte admite se reveja acórdão de Tribunal de Contas, ‘em seu aspecto formal’ ou em caso de ‘ilegalidade manifesta’. Esta velha jurisprudência veio a ser confirmada em acórdão conduzido pelo saudoso Ministro Victor Nunes Leal, e reduzida a ementa nestes termos: ‘TRIBUNAL DE CONTAS. Julgamento das contas de responsáveis por haveres públicos. Competência exclusiva, salvo nulidade por irregularidade formal grave (MS 6.960, 1959), ou manifesta ilegalidade aparente (MS 7.280, 1960)’ (RTJ 43/151). Merece destaque, neste aresto, a manifestação do saudoso Ministro Barros Monteiro, nestas palavras: ‘A segunda questão, de serem preclusivas e insuscetíveis de apreciação pelo Judiciário as decisões do Tribunal de Contas, eu acolho, com reservas, diante do R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 345 preceito do artigo 150, § 4º, da CF, que reproduziu o dispositivo da Constituição anterior, segundo o qual não se pode subtrair da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão do direito individual. Mas, feita essa ressalva, estou de pleno acordo em que não se pode chegar a outra conclusão senão àquela do acórdão mencionado pelo eminente Ministro Victor Nunes, do qual foi Relator o Ministro Henrique D’Ávila, e que, exprime o pensamento deste Tribunal. As decisões do Tribunal de Contas não podem ser revistas pelo Poder Judiciário, a não ser quanto ao seu aspecto formal.’ (RTJ 43/157). Destes pronunciamentos resta clara uma constatação: é impossível desconstituir o ato administrativo ungido pela aprovação do Tribunal de Contas, sem rescindir a decisão deste colegiado. E para rescindi-la, é necessário que nela se apontem irregularidades formais graves ou ilegalidades manifestas.” Nesse sentido, ainda, a lição do saudoso Prof. Ruy Cirne Lima, em sua conceituada obra Pareceres (Direito Público), Livraria Sulina Editora, 1963, Porto Alegre, pp.246/7, verbis: “Tem, portanto, entre nós, o Tribunal de Contas, jurisdictio; falta-lhe, porém, competência para o judicium e, a fartiori, competência para dá-lo e cometê-lo a outrem, porque, estranha à sua função, naquele ou neste aspecto, a idéia de ação (em sentido material). Certo, são, as decisões do Tribunal de Contas, terminativas, quando julga, ele, as contas dos responsáveis por dinheiros ou bens públicos (Const. Fed. Art.77, II). Esse julgamento compete-lhe, porém, em função do ato político (F. GIESE, GRUNDGESETZ FÜR DIE BUNDESREPUBLIK DEUTSCHLAND, Frankfurt, a. M., 1955, p.190; F. GIESE, DIE VERFASSUNG DES DEUTSCHEN REICHES, Berlin, 1931, p.211) do Congresso Nacional, que julga as contas do Poder Executivo (Const. Fed. Art.66, VIII). E como a competência do Tribunal de Contas, acerca do julgamento das contas dos responsáveis por dinheiros ou bens públicos, somente lhe é atribuída em função daquele ato político (RUY BARBOSA, COMENTÁRIOS, cit. T. VI, p.451; RUBEN ROSA, DIREITO E ADMINISTRAÇÃO, Rio de Janeiro, 1940, p.25 e 26), as decisões do Tribunal de Contas, nessa matéria, não poderiam, por isso mesmo, ficar sujeitas a reexame judiciário. O julgamento político exclui o pronunciamento judicial ulterior, nos mesmos termos em que o julgado criminal exclui a ação civil, ‘...não se poderá...questionar mais sobre a existência do fato, ou quem seja o autor...’ (art.1525, 346 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 DIREITO TRIBUTÁRIO R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 347 348 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 RECURSO ORDINÁRIO TRABALHISTA Nº 96.04.06136-4/RS Relator: O Exmo. Sr. Des. Federal Surreaux Chagas Recorrentes: Pedro Lair Kuhn e outros Advogados: Drs. Milton José Munhoz Camargo e outros Recorrente: Caixa Econômica Federal - CEF Advogados: Drs. Heloisa Sabedotti e outros Recorridos: (os mesmos) EMENTA Reclamatória trabalhista. CEF. Correção de enquadramento inicial. Prescrição. Ato único do empregador. Diferenças salariais por desvio de função. Promoções. Correção monetária. Taxa referencial diária – TRD e TR. Lei 8.177/91 e Lei 8.660/93. O enquadramento funcional é ato único do empregador. Transcorrido o lapso bienal entre o ato de enquadramento funcional e o ajuizamento da ação, prescrito está o pedido e não apenas as parcelas de trato sucessivo, visto que se trata de prescrição do fundo de direito. Assim, confirma-se a prescrição do fundo de direito em relação aos reclamantes admitidos há mais de dois anos antes do ajuizamento da ação. No caso de reclamantes admitidos antes do transcurso do biênio legal, se foram contratados como auxiliares de escritório, mas exerceram as funções de escriturário, fazem jus à correção do seu enquadramento inicial no cargo de Escriturário, desde a admissão. A existência de quadro de carreira vincula o empregador. O quadro R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 349 é apenas óbice para ação de equiparação salarial e não para a correção de enquadramento, reenquadramento, reclassificação, promoção, etc. Na jurisprudência, a matéria se pacificou através do Enunciado 127 do TST: “Quadro de pessoal organizado em carreira, aprovado pelo órgão competente, excluída a hipótese de equiparação salarial, não obsta reclamação fundada em preterição, enquadramento ou reclassificação.” Descabem as progressões funcionais se os reclamantes não trazem para os autos as normas que regulam a movimentação dos empregados no quadro de carreira, pois a falta de prova obsta o exame da pretensão. Em relação aos reclamantes cujas pretensões à correção de enquadramento funcional foram consideradas prescritas, não impede o reconhecimento do direito às diferenças salariais por desvio de função, na forma da Súmula nº 223 do extinto TFR: “O empregado durante o desvio funcional tem direito à diferença salarial ainda que o empregador possua quadro de pessoal organizado em carreira.” Não se confundem correção de enquadramento funcional e diferenças salariais decorrentes de desvio de função. Essas figuras têm identidade distinta e fundamentos próprios. A correção de enquadramento se funda no parágrafo 2º do art. 461 da CLT (os dispositivos deste artigo não prevalecerão quando o empregador tiver pessoal organizado em quadro de carreira, hipótese em que as promoções deverão obedecer aos critérios de antigüidade e merecimento). O desvio de função, no art. 460 da CLT (na falta de estipulação do salário ou não havendo prova sobre a importância ajustada, o empregado terá direito a perceber salário igual ao daquele que, na mesma empresa, fizer serviço equivalente, ou do que for habitualmente pago para serviço semelhante). Entendo que o desvio de função implica – analogicamente – a falta de estipulação do salário no tocante à função para a qual o empregado foi desviado, sendo aplicável por analogia a citada regra. É aplicável na correção monetária dos débitos trabalhistas a TRD instituída no art. 39, § 1º, da Lei nº 8.177/91 e a TR, a partir da Lei 8.660/93, que extinguiu a TRD. Recurso ordinário da CEF desprovido e recurso ordinário dos reclamantes provido em parte. 350 ACÓRDÃO R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 Vistos e relatados estes autos entre as partes acima indicadas, decide a Segunda Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por unanimidade, negar provimento ao recurso ordinário da Caixa Econômica Federal e dar provimento em parte ao recurso ordinário dos reclamantes, nos termos do relatório, voto e notas taquigráficas que ficam fazendo parte integrante do presente julgado. Porto Alegre, 16 de dezembro de 2003. Des. Federal Surreaux Chagas, Relator. RELATÓRIO O Exmo. Sr. Des. Federal Surreaux Chagas: Pedro Lair Kuhn e outros 186 reclamantes propõem Reclamatória Trabalhista contra a Caixa Econômica Federal – CEF, postulando compelir o reclamado a reenquadrá-los no cargo de Escriturário, a partir das respectivas admissões, e, a contar de 01.01.85, no cargo de Escriturário Nível “A” ou “B”, conforme o tempo de serviço de cada um, observadas as normas de progressão funcional vigentes na empresa; condenar a demandada ao pagamento de diferenças salariais decorrentes dos reenquadramentos ou de desvio de função, com reflexos em todas as parcelas salariais; retificação na CTPS e registros funcionais, juros legais e correção monetária. Referem que foram admitidos na reclamada depois de se submeterem a concurso público para o cargo de Auxiliar de Escritório, cujos resultados foram homologados em 1981; que, na data da convocação ao concurso, o cargo de Auxiliar de Escritório não estava inserido no quadro de carreira da demandada, conforme comprova o Ofício DEPES nº 277/82; que a realização de concurso público para o provimento do cargo de Auxiliar de Escritório tinha por objetivo confessado a contenção de despesas, de vez que os candidatos admitidos como auxiliares de escritório deveriam exercer, desde o início, as atribuições de escriturário, mas ganhar menos; que os demandantes, desde logo, passaram a exercer, em sua plenitude, a totalidade das tarefas exercidas pelos titulares do cargo de Escriturário, que era a classe inicial da carreira de Técnico Administrativo. Mencionam que a Lei nº 7.211, de 16.07.84, que entrou em vigor em 01.01.85, transformou o quadro de carreira da demandada, de forma que o cargo de Auxiliar de Escritório passou a integrá-lo sob a denominação de Escriturário Básico; que o antigo cargo de Escriturário passou a R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 351 denominar-se de Escriturário Intermediário “A”; que o antigo cargo de Auxiliar Administrativo, de Escriturário Intermediário “B”; e o antigo cargo de Graduado, de Escriturário Superior. Sustentam que, exercendo desde a admissão as atribuições do cargo de Escriturário, fazem jus à correção do seu enquadramento inicial para a função de Escriturário e, a contar de 01.01.85, a de Escriturário Intermediário “A” ou “B”, ou ao salário desses cargos por desvio de função. É indeferida a inclusão no feito de novos reclamantes como litisconsortes ativos. (fl. 333) À audiência, a reclamada contesta o feito, argüindo, em preliminar, a prescrição do direito à ação, pois se passaram mais de dois anos entre o ato de enquadramento e o ajuizamento da reclamatória. No mérito, alega que o cargo de Auxiliar de Escritório foi criado pela Diretoria da empresa, sendo devidamente homologado pelo Ministério da Fazenda; que as atribuições do cargo não guardam identidade com o de Escriturário e foi concebido como inicial da carreira de Técnico Administrativo, com igual possibilidade de seus integrantes concorrerem à promoção e acesso previstos na regulamentação de pessoal; e que não houve desvio de função. Realiza-se perícia técnica (Laudos a fls. 1148/77 e 1216/7). Juntam-se documentos, encerrando-se a instrução. Os litigantes, em razões finais, se reportam à inicial e à defesa prévia. As propostas de conciliação são recusadas. O MM. Juízo, sentenciando, julga procedente em parte a reclamatória trabalhista para condenar a reclamada a pagar aos reclamantes as diferenças salariais entre o cargo de Auxiliar de Escritório e Escriturário no período de setembro de 1984 até 1º de janeiro de 1985 e, a partir daí, entre o cargo de Escriturário Básico e Escriturário Intermediário “A” no primeiro nível e demais consectários legais. Os valores serão apurados em liquidação de sentença, com correção monetária desde o vencimento, de acordo com a variação sucessiva da ORTN, OTN, BTN, INPC e do IPC-r, com inclusão dos expurgos inflacionários de janeiro de 1989, março, abril e maio de 1990 (IPC). Os juros serão contados na forma prevista pela legislação trabalhista. A CEF opõe embargos de declaração, que são providos para declarar que a prescrição foi analisada em preliminar de mérito; que o pedido de 352 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 enquadramento está prescrito para quase todos os litisconsortes, salvo para Pedro Lair Kuhn, Gisele da Silva Hipólito, Madelone Metzdorf e Patrícia Barros; que, para estes, o pedido de enquadramento foi julgado improcedente; que, quanto ao segundo pedido – desvio de função – é devido para todos os litisconsortes, obedecida a prescrição bienal (TRF, Súmula nº 223); que os descontos previdenciários e fiscais, neste ato, são deferidos. Inconformados, os reclamantes e a reclamada interpõem recurso ordinário. Os reclamantes, nas razões de recurso, alegam que não se operou a prescrição, pois a ação visando ao reenquadramento, pela natureza do seu objeto, não prescreve nunca; que se trata de reconhecer ato nulo, que não prescreve jamais, atingindo a prescrição apenas as prestações mensais; mas mesmo que se entenda que o ato de enquadramento seja ato único do empregador, ainda assim, a prescrição não seria total mas parcial. Invocam jurisprudência e o Enunciado nº 294 do TST. Assim, requerem que seja afastada a prescrição. Reiteram o pedido de enquadramento. Sustentam que o quadro de pessoal organizado em carreira não é óbice ao deferimento da pretensão; ao contrário, é a existência de quadro de pessoal que viabiliza a pretensão; que ficou demonstrado que os reclamantes exerciam, de fato, tarefas mais complexas e de maior responsabilidade, que, no quadro de pessoal da demandada, eram atribuídas ao cargo de Escriturário, até janeiro de 1985, e ao cargo de Escriturário Intermediário “A”, a contar de tal data; que, assim sendo, é imperioso o enquadramento dos reclamantes nos cargos exercidos, observadas as promoções que fazem jus, ante o seu tempo de serviço e as normas constantes do quadro de pessoal da reclamada. Com relação às diferenças salariais deferidas em decorrência do desvio de função, alegam que a sentença incorreu em equívoco quando determinou que, para apuração, fosse considerado o primeiro nível salarial. Diz que essa determinação vem criar nova injustiça, penalizando os reclamantes; que o reconhecimento do direito às diferenças salariais não pode prejudicar o direito dos reclamantes aos acréscimos de salários decorrentes de promoções por antigüidade, tanto quanto atendidos os interstícios fixados no quadro de carreira da reclamada; assim, hão de ser reconhecidas aos reclamantes as promoções que fazem jus. Apontam equívoco na fixação R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 353 da correção monetária. Aduzem equivocada a determinação para que a correção monetária das parcelas deferidas seja efetuada pelo IPC-r desde a sua criação. Pedem que a atualização monetária das parcelas deferidas seja efetuada até a data da satisfação do crédito e segundo a variação da TRD, desde a publicação da Lei nº 8.177/91. A CEF, no recurso, busca a sua absolvição, alegando que ficou comprovada a existência de quadro de carreira; que o cargo de auxiliar de escritório se insere na carreira de técnico administrativo; que a proposta de criação do cargo de Auxiliar de Escritório foi aprovada pelo Ministro da Fazenda; que o posterior Plano de Cargos e Salários da CEF o mantém como cargo inicial da carreira de técnico administrativo, passando a corresponder ao cargo de Escriturário Básico; que o enquadramento se fez de forma automática e sem prejuízo aos empregados; que a alteração do quadro ocorreu a partir de 10.09.80, anteriormente ao início da relação de trabalho; que os empregados, quando ingressaram na CEF, aderiram ao quadro de carreira, ao qual estava integrado o cargo para o qual prestaram concurso público e foram admitidos; que o laudo pericial não comprova que as atividades desempenhadas pelos reclamantes fossem idênticas às atribuições do cargo de Escriturário; que não foram descritas na inicial e no laudo pericial as atividades realizadas pelos reclamantes; que é inverossímil generalizar as atribuições realizadas por 157 reclamantes; que a decisão se respaldou em situação genérica. Transcrevem jurisprudência e doutrina. Contra-arrazoam os reclamantes, e sobem os autos. O Ministério Público Federal opina pelo improvimento dos recursos ordinários. É o relatório. À revisão. VOTO O Exmo. Sr. Des. Federal Surreaux Chagas: Prescrição da ação de correção do enquadramento Os reclamantes foram admitidos na CEF entre 1981 e 1984 para exercerem o cargo de Auxiliar de Escritório, depois de aprovados em concurso público. Pleiteiam o reenquadramento no cargo de Escriturário Básico, a partir das respectivas admissões, e, a contar de 01.01.85, no cargo de Es354 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 criturário Intermediário Nível “A” ou “B”, conforme o tempo de serviço de cada um, observadas as normas de progressão funcional vigentes na empresa. A reclamatória trabalhista foi ajuizada em 05 de setembro de 1986. A sentença de 1º grau entende prescrita a pretensão de correção de enquadramento com os seguintes fundamentos, salvo quanto a quatro reclamantes: “A reclamada entende que o pedido de enquadramento está prescrito, tendo em vista que os litisconsortes foram admitidos entre 1981 e 1984 após seleção em concurso público. Realmente, a pretensão de reenquadramento desde a admissão no cargo de Escriturário está prescrita, tendo em vista que o enquadramento é ato único do empregador, prescrevendo em dois anos a ação de revisão, salvo em relação aos litisconsortes Pedro Lair Kuhn, Gisele da Silva Hipólito, Madelone Metzdorf e Patrícia Edelurdes Bastos Barros que foram admitidas após 05 de setembro de 1984.” (fl. 1246) Mantém-se a decisão, visto que é pacífico na jurisprudência que o enquadramento do empregado constitui ato único do empregador, prescrevendo em dois anos a ação de revisão do ato, conforme as seguintes ementas: “EMENTA 1. DIREITO DO TRABALHO. 2. Recurso Ordinário. Caixa Econômica Federal. Enquadramento. Existência de cargos com as mesmas atribuições e remuneração diferenciada. Prescrição. 3. Sendo o enquadramento ato único do empregador, prescrita está a ação de reenquadramento após transcorrido o biênio do art. 11 da CLT. ... (omissis)”. (Relator Juiz Gilson Dipp, processo nº 95.04.36427-6/RS, DJ 08.05.96, pág. 29322) “EMENTA TRABALHISTA. REENQUADRAMENTO. PRESCRIÇÃO DO FUNDO DE DIREITO. O enquadramento é ato único do empregador. Desta maneira, transcorrido o lapso bienal entre o ato de enquadramento funcional e o ajuizamento da ação prescrito está o pedido e não apenas as parcelas de trato sucessivo. Trata-se de prescrição do fundo de direito. ... (omissis)”. (Relator Des. Federal Vilson Darós, RO 93.04.40133-0, DJ de 17.04.96, p. 25069) “EMENTA REVISÃO DE ENQUADRAMENTO. ATO ÚNICO. PRESCRIÇÃO. TRABALHISTA. 1. Enquadramento no quadro de carreira é ato único, correndo, na hipótese, a prescrição do fundo de direito. ... (omissis)”. (Relator Des. Federal Wellington Mendes de Almeida, RO R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 355 93.04.40745-1/RS, DJ 04.12.96, p. 93936) Assim, mantém-se o reconhecimento da prescrição total. Correção de enquadramento inicial Examino o pedido em relação aos empregados admitidos após 05 de setembro de 1984 (Pedro Lair Kuhn, Gisele da Silva Hipólito, Madelone Metzdorf e Patrícia Edelurdes Bastos Barros), cujas pretensões não restaram prescritas. A CEF alega que o cargo de Auxiliar de Escritório foi criado pela Diretoria da empresa, sendo devidamente homologado pelo Ministério da Fazenda; que as atribuições do cargo não guardam identidade com o de Escriturário e foi concebido como inicial da carreira de Técnico Administrativo, com igual possibilidade de seus integrantes concorrerem à promoção e ao acesso previstos na regulamentação de pessoal; e que não houve desvio de função. Data venia, a alegação da reclamada não merece prosperar. O cargo de Auxiliar de Escritório não estava inserido no quadro de carreira da demandada, conforme comprova o Ofício DEPES nº 277/82. A realização de concurso público para o provimento do cargo de Auxiliar de Escritório tinha por objetivo confessado a contenção de despesas. Veja-se o que diz o referido ofício do Chefe de Departamento de Pessoal da demandada ao gerente-geral da CEF/RS: “Em 1980 a diretoria da CEF aprovou o cargo de auxiliar de escritório em separado, em regime de urgência, devido às necessidades de pessoal provenientes da grande expansão da CEF prevista para o biênio 81/82 e porque o plano de cargos proposto encontrava-se, à época, em sua etapa final de elaboração, com perspectivas de homologação imediata pelo Sr. Ministro da Fazenda.” (grifou-se) (fl. 03) A contenção de despesas pela criação de cargo em separado resulta evidenciado no ofício do Presidente da CEF ao Ministro da Fazenda, transcrito no laudo pericial à fl. 1150, verbis: “Pelo Plano de Cargos e Salários vigente, o ingresso se dá no cargo de Escriturário Referência 35, correspondente ao inicial de carreira, que hoje apresenta remuneração alta se comparada com a média observada no mercado de trabalho do país. Para corrigir essa distorção e atender ao disposto no mencionado Decreto-lei nº 1.798, o novo PCS prevê a criação do cargo de Auxiliar de Escritório, cuja remuneração mensal para o inicial da carreira será de Cr$ 10.574,00 (dez mil, quinhentos e setenta e quatro cruzeiros), ou seja, 57,3% do valor da remuneração do atual cargo inicial.” 356 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 O laudo pericial demonstra que as atribuições do cargo de Auxiliar de Escritório e de Escriturário eram distintas nos manuais de especificação das funções, mas na prática não existia qualquer distinção entre as atividades confiadas a um e a outro cargo, verbis: “Como se constata pela Carta de fls. 62/80, a idéia original quando proposta a criação do cargo de Auxiliar de Escritório era a de atribuir aos empregados neste classificados tarefas (verbis) ‘caracterizadas por menor complexidade em relação às tarefas executadas pelos concursados saídos do atual processo seletivo’. Nos manuais de especificação dos cargos também se constata a previsão de atribuições e responsabilidades distintas. Na prática, porém, constata-se que não existe qualquer distinção entre as atividades confiadas a um e a outro cargo. Pode-se afirmar com convicção de que, de fato, as atribuições dos Escriturários Básicos (antigos Auxiliares de Escritório) são absolutamente idênticas às dos Escriturários.” (fl. 1109) O conjunto da prova produzida nos autos evidencia que os reclamantes citados, desde a admissão, passaram a exercer, em sua plenitude, a totalidade das tarefas exercidas pelos titulares do cargo de escriturário, que era a classe inicial da carreira de técnico administrativo. Nenhuma prova produzida pela reclamada infirma essa conclusão de desvio de função. Os auxiliares de escritório somente foram inseridos no quadro de pessoal da reclamada – na carreira de Técnico Administrativo – com o advento da Lei 7.211/84, com vigência a partir de 1°.01.85. O cargo de Auxiliar de Escritório passou a integrar o quadro de carreira sob a denominação de Escriturário Básico. O antigo cargo de Escriturário passou a denominar-se de Escriturário Intermediário “A”; o cargo de Auxiliar Administrativo passou a Escriturário Intermediário “B”; e o antigo Graduado, a Escriturário Superior. Ora, se os reclamantes foram admitidos como auxiliares de escritório, mas exerceram as funções de escriturário, fazem jus à correção do seu enquadramento inicial no cargo de Escriturário, desde a admissão. A existência de quadro de carreira vincula o empregador. O quadro é apenas óbice para ação de equiparação salarial e não para a correção de enquadramento, reenquadramento, reclassificação, promoção, etc. Sobre a matéria, bem diz Amauri Mascaro Nascimento: “Havendo quadro de carreira não cabe a um empregado ingressar com ação de equiparação salarial. Justifica-se essa restrição porque o quadro já constitui uma prévia R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 357 equiparação das funções semelhantes em torno de salários aproximados. Todavia, uma empresa pode não observar as normas que esta própria estabeleceu no quadro, quer deixando de efetuar promoções nos termos que fixou em sua norma interna regulamentar, quer classificando empregados incorretamente, com o que há a necessidade de abrir a possibilidade de ações judiciais corretivas. A ação com esse fim destina-se à reclassificação do empregado no quadro, caso em que também receberá diferenças salariais, não a título de equiparação, mas de reclassificação. Há ações judiciais destinadas a obter promoção por sentença. Quando se trata de promoção por Antigüidade e desde que a empresa deixou de cumprir as cláusulas regulamentares, a Justiça do Trabalho tem acolhido pretensões dessa natureza. Quando se trata de promoção por merecimento, o entendimento que prevalece é o de que não pode o juiz interferir na esfera de determinação do empregador.” (in Iniciação ao Direito do Trabalho, 18ª edição, 1992, LTR, pág. 332) Na jurisprudência, a matéria se pacificou através do Enunciado 127 do TST: “Quadro de pessoal organizado em carreira, aprovado pelo órgão competente, excluída a hipótese de equiparação salarial, não obsta reclamação fundada em preterição, enquadramento ou reclassificação.” A partir de 1º de janeiro de 1985, os citados reclamantes devem ser reenquadrados no nível inicial do cargo de Escriturário Intermediário “A”. Conforme já foi visto, com o advento da Lei 7.211/84, com vigência a partir de 1°.01.85, o cargo de Auxiliar de Escritório passou a integrar o quadro de carreira sob a denominação de Escriturário Básico. O antigo cargo de Escriturário passou a Escriturário Intermediário “A”. Não cabe o deferimento de promoção dos reclamantes em nível acima do inicial ou no cargo de Escriturário Intermediário “B”, visto que os reclamantes não produzem qualquer prova que ampare a pretensão. Os postulantes não trazem para os autos as normas que regulam a movimentação dos empregados no quadro de carreira, o que obsta o exame da pretensão. Não cabe presumir-se que os reclamantes seriam promovidos. Outrossim, a questão não pode ser remetida para liquidação, visto que não há certeza sobre o direito dos reclamantes, na falta de qualquer adminículo de prova sobre os fatos constitutivos do direito. Assim, defere-se aos reclamantes Pedro Lair Kuhn, Gisele da Silva Hipólito, Madelone Metzdorf e Patrícia Edelurdes Bastos Barros a correção do seu enquadramento inicial para o nível inicial do cargo de Escriturário, desde a admissão, e, a partir de 1º.01.85, no nível inicial 358 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 do cargo de Escriturário Intermediário “A”, com diferenças salariais resultantes e reflexos postulados na inicial. Diferenças salariais por desvio de função em favor dos reclamantes remanescentes A sentença de 1º grau defere a todos os reclamantes diferenças salariais entre o cargo de Auxiliar de Escritório e Escriturário no período de setembro de 1984 até 1º de janeiro de 1985 e, a partir daí, entre o cargo de Escriturário Básico e Escriturário Intermediário “A” no primeiro nível. O termo inicial foi fixado em setembro de 1984 porque anteriormente incidiu a prescrição bienal. A reclamatória foi ajuizada em 05 de setembro de 1986. Com os seguintes fundamentos a sentença de 1º grau acolhe a pretensão: “O desvio de função ocorre comumente quando o detentor de um cargo com menor número de atribuições, exerce funções de um cargo com atribuições mais complexas. O laudo pericial na fl. 1151, afirma que formalmente existem diferenças entre os extintos cargos de Auxiliar de Escritório e Escriturário, porém na prática os ocupantes dos dois cargos exerciam funções idênticas. A reclamada não produziu qualquer prova que informe esta afirmação pericial. O extinto, porém sempre Egrégio TFR editou a Súmula nº 223, vazada nestes termos: ‘O empregado, durante o desvio funcional, tem direito a diferença salarial, ainda que o empregador possua quadro de pessoal organizado em carreira’. Assim, se por um lado está prescrita a ação de enquadramento para a maioria dos litisconsortes e é improcedente para os remanescentes, no aspecto atinente ao desvio de função, são devidas as diferenças salariais no período não atingido pela prescrição bienal. Com o advento da Lei 7.211/84 os demandantes passaram a ocupar a partir de janeiro de 1985 o cargo de Escriturário Básico e, conforme o laudo, continuaram exercendo as funções, agora, de Escriturário Intermediário.” (fl. 1147) Nenhum reparo merece a r. sentença de 1º grau. As mesmas razões fáticas mencionadas no exame da pretensão de correção de enquadramento se aplicam aos reclamantes remanescentes no tocante ao desvio de função. Explicitando melhor. Se os reclamantes foram admitidos como auxiliares de escritório, mas exerceram efetivamente funções de Escriturário e de Escriturário Intermediário “A” a partir de 1º.01.85, fazem jus às respectivas diferenças salariais por desvio de função, em conformidade com a Súmula 223 do extinto TFR. R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 359 Súmula nº 223 do extinto TFR: “O empregado, durante o desvio funcional, tem direito à diferença salarial, ainda que o empregador possua quadro de pessoal organizado em carreira.” A jurisprudência do Colendo STJ e deste Regional em casos envolvendo a CEF é nesse sentido: “EMENTA TRABALHISTA – SERVIDORES DA CAIXA ECONÔMICA FEDERAL – DESVIO FUNCIONAL – ENQUADRAMENTO – SÚMULA Nº 233/TFR – DIFERENÇA SALARIAL – PRESCRIÇÃO. I – Se a lesão aos direitos é de natureza permanente, renovando-se mensalmente, a prescrição só alcança as diferenças salariais anteriores ao biênio que precedeu o ajuizamento da ação. II – Restando comprovada a identidade de atribuições exercidas pelos auxiliares de escritório e pelos escriturários, tem aplicação ao caso a Súmula nº 233 do extinto TFR. III – Se o empregador possui quadro de pessoal organizado em carreira, o desvio funcional não confere direito a reenquadramento ou reclassificação, assegurando-se tão-só a percepção de diferença. IV – Recurso não conhecido.” (Relator: Exmo. Ministro Waldemar Zveiter, Recurso Especial nº 128.995/Paraná. DJ de 30.03.98) “EMENTA RECLAMATÓRIA TRABALHISTA. CEF. DESVIO DE FUNÇÃO. PRESCRIÇÃO. O empregado em desvio de função tem o direito de receber a diferença salarial, enquanto perdurar a situação, ainda que já prescrito eventual direito a reenquadramento ou reclassificação, sendo inexigíveis apenas as parcelas vencidas há mais de dois anos. Recurso não conhecido.” (Relator Ministro Ruy Rosado de Aguiar, RE 131.532RS, DJ de 22.09.97) “TRABALHISTA. CEF. PLANO DE CARGOS E SALÁRIOS. REENQUADRAMENTO. DESVIO DE FUNÇÃO. PRESCRIÇÃO. I – Incabível o reenquadramento dos auxiliares de escritório no cargo de escriturário porquanto legalmente aprovado o cargo de auxiliar integrando o plano de carreira da categoria. II – Caracterizado o desvio funcional, o empregado tem direito à diferença salarial enquanto durou a situação de desvio. III – Somente estão prescritas as parcelas anteriores ao biênio que precedeu o ajuizamento da reclamatória.” (Relator Des. Federal Jardim de Camargo. Relator p/o acórdão: Juiz Antônio Albino Ramos de Oliveira (convocado), RO 95.04.28831-6/ RS, DJ de 11.06.97) Outrossim, não cabe deferir-se aos reclamantes diferenças salariais com as progressões funcionais. Não se confundem correção de enquadra360 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 mento funcional e diferenças salariais decorrentes de desvio de função. Essas figuras têm identidade distinta e fundamentos próprios. A correção de enquadramento se funda no parágrafo 2º do art. 461 da CLT (os dispositivos deste artigo não prevalecerão quando o empregador tiver pessoal organizado em quadro de carreira, hipótese em que as promoções deverão obedecer aos critérios de antigüidade e merecimento). O desvio de função, no art. 460 da CLT (na falta de estipulação do salário ou não havendo prova sobre a importância ajustada, o empregado terá direito a perceber salário igual ao daquele que, na mesma empresa, fizer serviço equivalente, ou do que for habitualmente pago para serviço semelhante). Entendo que o desvio de função implica – analogicamente – a falta de estipulação do salário no tocante à função para a qual o empregado foi desviado, sendo aplicável por analogia a citada regra. Pela mesma razão se mantém o deferimento de diferenças salariais com base no nível inicial, visto que não cabe a aplicação de correção de enquadramento no quadro de carreira por estar prescrita a ação, fazendo jus os reclamantes às diferenças salariais por desvio de função e não como direito fundado no quadro de carreira. Outrossim, ressalte-se que o reconhecimento do direito de correção de enquadramento funcional em favor dos reclamantes Pedro Lair Kuhn, Gisele da Silva Hipólito, Madelone Metzdorf e Patrícia Edelurdes Bastos Barros afasta o deferimento em relação a eles de diferenças salariais por desvio de função. Correção monetária A sentença de 1º grau defere correção monetária com base na variação da ORTN, OTN, BTN, INPC e do IPC-r, com inclusão dos expurgos inflacionários de janeiro de 1989, março, abril e maio de 1990 (IPC). Os reclamantes alegam que não cabe limitar a atualização monetária a julho de 1995; que os créditos trabalhistas devem ser corrigidos desde o vencimento até a data do efetivo pagamento; e que a correção monetária, a partir da vigência da Lei nº 8.177/91, deve ser contada segundo a variação da TRD. A sentença foi prolatada em julho de 1995. É impossível exigir que o Juiz explicite os índices de correção monetária até o cumprimento da obrigação. Isso não significa que o juízo limitou o deferimento da corR. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 361 reção monetária até julho de 1995 ou a vigência de determinado índice. Está implícito na sentença que os valores deverão ser corrigidos até a data da satisfação do débito, de acordo com os sucessivos índices que sejam aplicáveis. Quanto à TRD, a matéria é regulada no art. 39, § 1º, da Lei nº 8.177/91: “Art. 39 – Os débitos trabalhistas de qualquer natureza, quando não satisfeitos pelo empregador nas épocas próprias assim definidas em lei, acordo ou convenção coletiva, sentença normativa ou cláusula contratual sofrerão juros de mora equivalentes à TRD acumulada no período compreendido entre a data de vencimento da obrigação e o seu efetivo pagamento. § 1º Aos débitos trabalhistas constantes de condenação pela Justiça do Trabalho ou decorrentes dos acordos feitos em reclamatória trabalhista, quando não cumpridos nas condições homologadas ou constantes do termo de conciliação, serão acrescidos, nos juros de mora previstos no caput, juros de um por cento ao mês, contados do ajuizamento da reclamatória e aplicados pro rata die, ainda que não explicitados na sentença ou no termo de conciliação.” Valentin Carrion, na obra Comentários à Consolidação das Leis do Trabalho, comentando o art. 833 da CLT, observa: “TRD, Taxa Referencial Diária, acumulada é uma correção monetária camuflada (L.8.177/91, art. 39), apesar de ter sido denominada de juros de mora; sobre aquela taxa ainda incidem juros de 1% ao mês (juros simples, e não mais compostos, como anteriormente, aplicados de acordo com o número de dias transcorridos – pro rata die). Com a extinção da TRD (L.8660/93, v. Índice da Legislação), a remuneração da correção monetária passou a ser feita pela TR da data do vencimento da obrigação (mantida pela URV). Os efeitos da lei não podem retroagir, nem tacitamente (§ 1º) nem quando a lei expressamente se refere ao mês anterior à vigência. (§ 2º)” A Subseção de Dissídios Individuais 1(SDI 1) do Tribunal Superior do Trabalho confirma a adoção da Taxa Referencial (TR) na correção monetária dos débitos trabalhistas. Apesar de ser denominada de “juros de mora” pela lei, a TR Diária (TRD) constitui fator de correção monetária, afirma o Ministro Moura França. Segundo ele, não procede o argumento de que a aplicação da Lei 8.177/91, que instituiu a TR, resulta na incidência de juros sobre juros. A questão foi examinada no julgamento de recurso (agravo regimental) do Carrefour – Comércio e Indústria Ltda. contra decisão da 1ª Turma do TST. Assim já decidiu o TRT/7ª Região, Processo 4284/99, Juiz Victor 362 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 César da Frota Pinto, DO de 22.10.99: “EMENTA Lei 8.177/91. TAXA REFERENCIAL. CONSTITUCIONALIDADE. A taxa referencial (TR) prevista no artigo 39 da Lei 8.177/91 é o índice utilizado para corrigir os débitos relativos a verbas trabalhistas oriundas de sentença condenatória na Justiça do Trabalho, não havendo que se falar em inconstitucionalidade, seja da referida Lei, seja do índice nela previsto.” Assim, a partir da vigência da Lei 8.177/91, defere-se correção monetária de acordo com a TRD e, a partir da Lei 8.660/93, que extinguiu a TRD, correção monetária de acordo com a TR. Mas se ressalta que o deferimento da TRD e TR a título de correção monetária implica que os juros de mora incidentes nos créditos trabalhistas, a partir de 04.03.91, são calculados na base de 1% ao mês, de forma simples, nos termos do art. 883 da CLT, e não conforme o disposto no § 1º do art. 39 da Lei nº 8.177/91. Ante o exposto, nego provimento ao recurso ordinário da CEF e dou provimento em parte ao recurso ordinário dos reclamantes para deferir correção monetária de acordo com a TRD a partir da vigência da Lei 8.177/91 e a TR a partir da Lei 8.660/93, bem como deferir a Pedro Lair Kuhn, Gisele da Silva Hipólito, Madelone Metzdorf e Patrícia Edelurdes Bastos Barros a correção do seu enquadramento inicial para o nível inicial do cargo de Escriturário, desde a admissão, e, a partir de 1º.01.85, no nível inicial do cargo de Escriturário Intermediário “A”, com diferenças salariais resultantes e reflexos postulados na inicial, ficando prejudicado o deferimento a eles de diferenças salariais por desvio de função. É como voto. APELAÇÃO CÍVEL Nº 2000.04.01.047537-0/PR R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 363 Relator: O Exmo. Sr. Des. Federal Wellington Mendes de Almeida Apelante: Instituto Nacional do Seguro Social - INSS Advogado: Dr. Gustavo da Silva Brasil Apelada: Employer Organização de Recursos Humanos Ltda. Advogada: Dra. Lucyanna Joppert Lima Lopes EMENTA Tributário. Anulatória. Lançamento único. Inclusão de parcelas indevidas. Artigo 148 do CTN. Diante da inidoneidade da documentação fiscal apresentada pelo contribuinte, pode o Fisco proceder ao lançamento por aferição indireta sem, contudo, utilizar-se dos mesmos documentos, de duvidosa regularidade, para tal estimativa sob pena de afronta ao princípio da razoabilidade. Apelação improvida. ACÓRDÃO Vistos e relatados estes autos entre as partes acima indicadas, decide a 1ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por unanimidade, negar provimento à apelação nos termos do relatório, voto e notas taquigráficas que ficam fazendo parte integrante do presente julgado. Porto Alegre, 17 de dezembro de 2003. Des. Federal Wellington Mendes de Almeida, Relator. RELATÓRIO O Exmo. Sr. Des. Federal Wellington Mendes de Almeida: Trata-se de ação ordinária onde se busca o reconhecimento da nulidade do lançamento fiscal constante da NFLD nº 32.179.388-9, lavrada pelo INSS, compreendendo o período de dez/90 a dez/93, referente à falta de contribuições previdenciárias de trabalhadores temporários contratados pela autora e que prestavam serviços a empresas tomadoras. Alega a autora que a fiscalização, ao calcular a contribuição previdenciária devida, não descontou os valores correspondentes ao salário-família e aos adiantamentos salariais, além de ter se equivocado no cálculo do salário-de-contribuição. Ressalta, ainda, que a falta de identificação (nome, CGC) da empresa tomadora dos seus serviços em algumas GRPS, bem como ausência de número, data e valor da fatura/ 364 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 duplicata, jamais poderia ser motivo para, glosadas, serem utilizadas como base imponível da lavratura de auto de infração. Ao fim, sustenta ter ocorrido irregularidade na emissão do relatório fiscal de débito face à ausência de dados individualizados de cada tomadora de serviço. O magistrado a quo julgou procedente a demanda por entender incorreta a formalização da Notificação Fiscal de Lançamento de Débito, a qual não observou as exigências da Ordem de Serviço nº 87/93–INSS/ DAF. Considerou que a inclusão de parcelas indevidas no levantamento de salários-de-contribuição, em várias faturas, torna ilíquido o crédito. Condenou a Autarquia Previdenciária ao pagamento de custas e honorários de advogado fixados em R$ 1.000,00. Em suas razões, aduz o INSS, diante da inidoneidade da documentação apresentada pela autora ao Fisco, circunstância demonstrada pela prova pericial, incide na espécie o artigo 148 do CTN, o qual possibilita o arbitramento, pela autoridade coatora, do valor que servirá de base de cálculo do tributo. Quanto à necessidade de individualização dos empregados da autora, assevera que as próprias faturas emitidas pela recorrida (acompanhadas de uma relação com o nome dos empregados) serviram de base para a aferição indireta do salário-de-contribuição. Requer o restabelecimento do lançamento fiscal. Contra-arrazoado o recurso, os autos foram remetidos a este Tribunal. É o relatório. VOTO O Exmo. Sr. Des. Federal Wellington Mendes de Almeida: O art. 148 do CTN estabelece que, quando o cálculo do tributo tenha por base, ou tome em consideração o valor ou o preço de bens, direitos, serviços ou atos jurídicos, a autoridade lançadora, mediante processo regular, arbitrará aquele valor ou preço sempre que sejam omissos ou não mereçam fé as declarações ou os esclarecimentos prestados, ou os documentos expedidos pelo sujeito passivo ou pelo terceiro legalmente obrigado, ressalvada, em caso de contestação, avaliação contraditória, administrativa ou judicial. O arbitramento é facultado ao fisco na hipótese de haver possibilidade de apuração de base de cálculo real e não presumida, pois, sendo ato administrativo vinculado, deve ser pautado pela busca da verdade R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 365 material. Nesse sentido, filio-me ao entendimento esposado por Roque Carrazza, in verbis: “A Constituição, ao disciplinar as competências tributárias, estabeleceu, ainda, que, por vezes, de modo implícito e com uma certa margem de liberdade para o legislador – a norma padrão de incidência (o arquétipo genérico, a regra-matriz) de cada exação. Noutros termos, ela apontou a hipótese de incidência possível, o sujeito ativo possível, o sujeito passivo possível, a base de cálculo possível e a alíquota possível, das várias espécies e subespécies de tributos. Em síntese, o legislador, ao exercitar a competência tributária, deverá ser fiel à norma-padrão de incidência do tributo, pré-traçada na Constituição. O legislador (federal, estadual, municipal ou distrital), enquanto cria tributo, não pode fugir deste arquétipo constitucional...” (In: Curso de Direito Constitucional Tributário, 11ª edição, Malheiros, São Paulo, 1998). No caso dos autos, o agente fiscal, em relatório de fls. 33-36, aduziu que as folhas de pagamento, nos moldes utilizados pela autora, contrariam as normas e padrões administrativos estabelecidos. Ora, diante da inidoneidade da documentação fiscal apresentada pela recorrida, não poderia o Fisco proceder ao lançamento por aferição indireta sem, contudo, utilizar-se dos mesmos documentos irregulares para tal estimativa sob pena de afronta ao princípio da razoabilidade. Válida a transcrição de excerto da sentença: “(...) Houve lançamento único, decorrente de levantamento, no período, de várias faturas, onde parcela delas indevidamente não considerou descontos de salário família e verba de adiantamento salarial. Não é possível a direta exclusão das parcelas indevidas, já que se referem a faturas várias e indébitos diversos, sendo daí necessária a completa revisão pelo INSS, ainda que então adotando os cálculos da perícia, com a retificação de fl. 360. Não se trata aqui de mera alteração de cálculo aritmético, que manteria a liquidez do lançamento, mas da inclusão de várias parcelas indevidas durante longa parte do período examinado, o que exige maior grau de exame, em revisão por processo administrativo contraditório, e não autoriza a direta fixação em Juízo do montante correto. Assim, necessária é a anulação da NFLD questionada”. (fl. 364) 366 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 O Laudo Pericial (fls. 315-322) aponta erro no lançamento fiscal, uma vez que não foram compensados os valores referentes às verbas do salário-família nem dos adiantamentos pagos aos empregados. Ademais, atesta que as relações anexas às faturas não permitem a identificação do salário-de-contribuição de cada empregado (base para aferir a contribuição do trabalhador), estando, portanto, prejudicada a análise do valor sobre o qual incidiu o recolhimento. Face à impossibilidade de retificação do lançamento, nego provimento à apelação. É o voto. APELAÇÃO CÍVEL Nº 2000.72.03.001737-9/SC Relator: O Exmo. Sr. Des. Federal Dirceu de Almeida Soares Apelantes: Sul Portas Ind. de Portas Ltda. e outro Advogados: Drs. Francisco Deradi e outros Apelante: União Federal (Fazenda Nacional) Advogada: Dra. Dolizete Fátima Michelin Apelados: (os mesmos) EMENTA Tributário. Denúncia espontânea. Parcelamento. Juros moratórios. Aplicação da taxa SELIC. Legalidade. Caução. Título da dívida pública. Verba honorária. 1. A simples confissão de dívida acompanhada do pedido de parcelamento do débito não configura denúncia espontânea capaz de ensejar o afastamento da multa moratória, nos moldes preconizados pelo art. 138 do CTN. 2. A taxa SELIC possui base legal determinando sua incidência R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 367 no campo tributário, sustentada pela possibilidade aberta pelo § 1º do art. 161 do CTN. O descumprimento da obrigação tributária impõe o dever de o contribuinte inadimplente indenizar o Fisco pela impossibilidade de contar com o valor devido. A aplicação da taxa SELIC mostra-se apropriada a traduzir as repercussões econômicas no erário público causadas pelo inadimplemento da obrigação tributária. 3. Não se admite a utilização dos títulos de dívida pública como garantia de débitos para com a União. 4. A fixação da verba honorária, quando calculada com base no § 4º do art. 20 do CPC, não necessita enquadrar-se nos limites percentuais do § 3º do referido artigo, mas atende os mesmos critérios para apreciação, enumerados nas alíneas do § 3º. ACÓRDÃO Vistos e relatados estes autos entre as partes acima indicadas, decide a Segunda Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por unanimidade, negar provimento ao apelo da autora e dar provimento ao recurso da União, nos termos do relatório, voto e notas taquigráficas que ficam fazendo parte integrante do presente julgado. Porto Alegre, 21 de outubro de 2003. Des. Federal Dirceu de Almeida Soares, Relator. RELATÓRIO O Exmo. Sr. Des. Federal Dirceu de Almeida Soares: Trata-se de ação ordinária objetivando o afastamento da taxa SELIC e da multa moratória incidentes no parcelamento de débitos relativos à COFINS, em vista da configuração da denúncia espontânea. Alegou, além disso, a inconstitucionalidade da contribuição em exame, ao fundamento da sua incidência sobre a mesma base de cálculo da contribuição ao PIS, caracterizando hipótese de bis in idem. Requereu, em sede de antecipação de tutela, a suspensão da exigibilidade do parcelamento, oferecendo em caução do débito Título da Dívida Pública. Foi atribuído à causa o valor de R$ 29.259,85 (vinte e nove mil, duzentos e cinqüenta e nove reais e oitenta e cinco centavos). O pedido de antecipação de tutela foi indeferido à fl. 67. Processado regularmente o feito, sobreveio sentença julgando parcialmente procedente a ação, declarando o direito da parte autora tão-somente 368 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 à exclusão da multa moratória no parcelamento, ao fundamento da configuração, no caso dos autos, da hipótese do art. 138 do CTN. Reconheceu, entretanto, a exigibilidade da Taxa SELIC na atualização monetária do parcelamento, bem como a impossibilidade da utilização de Apólices da Dívida Pública para caucionamento de débitos tributários. Em face da sucumbência mínima da União, condenou a parte autora ao pagamento da verba honorária, a qual fixou em R$ 1.000,00 (um mil reais). Apelou a parte autora, repisando os termos da exordial. Sustentou a admissibilidade da caução mediante aproveitamento de Título da Dívida Pública. Pleiteou o afastamento da Taxa SELIC, bem como a compensação dos valores pagos indevidamente no parcelamento com débitos da COFINS. Requereu, por fim, a redução da verba honorária. A União apelou, sustentando, preliminarmente, a impossibilidade jurídica do pedido, em virtude da superveniência da rescisão do referido parcelamento. No mérito, alegou ser devida a multa moratória aplicada, ao argumento de que o parcelamento não caracteriza o pagamento integral do débito. Prequestionou, outrossim, os dispositivos legais pertinentes. Presentes as contra-razões de ambas as partes, vieram os autos a este Tribunal. Sem reexame necessário em vista do disposto no § 2º do art. 475 do CPC. É o relatório. VOTO O Exmo. Sr. Des. Federal Dirceu de Almeida Soares: I. Preliminar Impossibilidade jurídica do pedido Consoante expôs o MM. Juízo a quo, “a pretensão deduzida pela autora na presente demanda não se restringe somente à suspensão do parcelamento”. Na verdade, versa a controvérsia acerca da inclusão da multa moratória no parcelamento efetivado pela demandante, bem como a utilização da Taxa SELIC na atualização monetária do débito, sendo irrelevante o fato de o acordo de parcelamento ter sido rescindido, pois as questões em exame envolvem os valores já cobrados pela Fazenda, adimplidos pela parte autora em momento anterior à rescisão do referido contrato. R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 369 Assim, não merece prosperar a irresignação da União, no ponto. II. Mérito a) Denúncia Espontânea. Parcelamento. Controverte-se sobre a incidência de multa moratória no parcelamento fiscal em face do disposto no art. 138 do CTN, in verbis: “Art. 138. A responsabilidade é excluída pela denúncia espontânea da infração, se for o caso, do pagamento do tributo devido e dos juros de mora, ou do depósito da importância arbitrada pela autoridade administrativa, quando o montante do tributo dependa de apuração. Parágrafo único. Não se considera espontânea a denúncia apresentada após o início de qualquer procedimento administrativo ou medida de fiscalização, relacionados com a infração.” Como bem referido pelo eminente Desembargador Federal Surreaux Chagas por ocasião do julgamento, unânime, pela 2ª Turma desta Corte, da Apelação Cível nº 2001.70.00.033627-6, em 02.09.2003, a confissão de dívida não se confunde com denúncia espontânea, posto que essa pressupõe, além da inexistência de qualquer procedimento administrativo ou ato fiscalizatório relacionado com a infração, o pagamento do tributo devido e dos juros ou, quando o débito depender de apuração, do depósito da importância arbitrada pela autoridade administrativa. No caso, a parte autora alega ter confessado espontaneamente o seu débito junto ao Fisco e obtido seu parcelamento. Todavia, a confissão da dívida fiscal atrelada a acordo de parcelamento não configura denúncia espontânea capaz de ensejar o afastamento da multa moratória, nos moldes preconizados pelo art. 138 do CTN. Nesse sentido, o enunciado da Súmula nº 208 do extinto Tribunal Federal de Recursos: “A simples confissão de dívida, acompanhada do seu pedido de parcelamento, não configura a denúncia espontânea.” Por outro lado, o § 1º do art. 155-A do CTN, acrescido pela Lei Complementar nº 104/2001, dispõe expressamente que é devida a incidência da multa nos parcelamentos, verbis: “Art. 155-A. O parcelamento será concedido na forma e condição estabelecida em lei específica. § 1º. Salvo disposição de lei em contrário, o parcelamento do crédito tributário não 370 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 exclui a incidência de juros e multas. § 2º. Aplicam-se, subsidiariamente, ao parcelamento, as disposições desta Lei, relativas à moratória.” Ademais, está pacificado o entendimento no âmbito do STJ no sentido de que o benefício da denúncia espontânea da infração, previsto no art. 138 do CTN, não é aplicável em caso de parcelamento do débito, desde o julgamento do REsp 284.189/SP pela Primeira Seção daquela Corte, em 17.06.2002, relatado pelo Ministro Franciulli Netto. O acórdão foi assim ementado: “RECURSO ESPECIAL – ALÍNEAS A E C – TRIBUTÁRIO – PARCELAMENTO DE DÉBITO DE ICMS DECLARADO E NÃO PAGO – EXCLUSÃO DA MULTA MORATÓRIA – IMPOSSIBILIDADE – ALÍNEA A - PRETENSA VIOLAÇÃO AO ART. 138 DO CTN – INOCORRÊNCIA– SÚMULA 208 DO TFR – § 1º DO ARTIGO 155-A DO CTN (ACRESCENTADO PELA LC 104/01) – DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL CONHECIDA, PORÉM NÃO PROVIDO O RECURSO PELA ALÍNEA C. O instituto da denúncia espontânea da infração constitui-se num favor legal, uma forma de estímulo ao contribuinte, para que regularize sua situação perante o fisco, procedendo, quando for o caso, ao pagamento do tributo, antes do procedimento administrativo ou medida de fiscalização relacionados com a infração. Nos casos em que há parcelamento do débito tributário, não deve ser aplicado o benefício da denúncia espontânea da infração, visto que o cumprimento da obrigação foi desmembrado, e só será quitada quando satisfeito integralmente o crédito. O parcelamento, pois, não é pagamento, e a este não substitui, mesmo porque não há a presunção de que, pagas algumas parcelas, as demais igualmente serão adimplidas, nos termos do artigo 158, I, do mencionado Codex. Esse parece o entendimento mais consentâneo com a sistemática do Código Tributário Nacional, que determina, para afastar a responsabilidade do contribuinte, que haja o pagamento do devido, apto a reparar a delonga do contribuinte. Nesse sentido, o enunciado da Súmula nº 208 do extinto Tribunal Federal de Recursos: ‘a simples confissão de dívida, acompanhada do seu pedido de parcelamento, não configura denúncia espontânea’. A Lei Complementar n. 104, de 10 de janeiro de 2001, que acresceu ao Código Tributário Nacional, dentre outras disposições, o artigo 155-A, veio em reforço ao entendimento ora esposado, ao estabelecer, em seu § 1º, que ‘salvo disposição de lei contrário, o parcelamento do crédito tributário não exclui a incidência de juros e multas’. Recurso especial não conhecido pela alínea a e conhecido, mas não provido pela alínea c”. (DJU de 26.05.2003) No mesmo sentido, AI nº 2003.04.01.019014-5/PR, 2ª Turma, Rel. Des. Federal Fábio Bittencourt da Rosa, julgado em 29.07.2003, ocasião em que referiu os seguintes precedentes do STJ: “AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. TRIBUTÁRIO. PARCELAMENTO DE DÉBITO. EXCLUSÃO R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 371 DA MULTA MORATÓRIA. IMPOSSIBILIDADE. A egrégia Primeira Seção deste Superior Tribunal de Justiça firmou o entendimento de que ‘a simples confissão de dívida, acompanhada do seu pedido de parcelamento, não configura denúncia espontânea’ (Súmula 208 – TRF). Cabível, portanto, a incidência de multa moratória sobre o montante parcelado’ (REsp. nº 378.795/GO, Primeira Seção, julgado em 17 de junho de 2002, relator o subscritor deste). Agravo regimental a que se nega provimento.” (AGRAGA 435660/SP, T2, STJ, Rel. Ministro Franciulli Netto, DJ 23.06.2003, p. 320) “TRIBUTÁRIO – AGRAVO REGIMENTAL – EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA – PARCELAMENTO – DENÚNCIA ESPONTÂNEA – ARTS. 138 E 155-A DO CTN – EXIGIBILIDADE DA MULTA MORATÓRIA – POSIÇÃO REVISTA PELA PRIMEIRA SEÇÃO. 1. A Primeira Seção desta Corte, revendo a jurisprudência em torno do parcelamento do débito, concluiu que este não equivale a pagamento e, portanto, não se trata de denúncia espontânea, capaz de ensejar o afastamento da multa moratória. 2. Agravo regimental improvido.” (AEDAG 452049/RS, STJ, S1, Rel. Ministra Eliana Calmon, DJ 16.06.2003, p. 255) “TRIBUTÁRIO. DENÚNCIA ESPONTÂNEA. PARCELAMENTO DO DÉBITO. MULTA MORATÓRIA. APLICABILIDADE. ENTENDIMENTO DA 1ª SEÇÃO. 1. O instituto da denúncia espontânea exige que nenhum lançamento tenha sido feito, isto é, que a infração não tenha sido identificada pelo fisco nem se encontre registrada nos livros fiscais e/ou contábeis do contribuinte. 2. A denúncia espontânea não foi prevista para que favoreça o atraso do pagamento do tributo. Ela existe como incentivo ao contribuinte para denunciar situações de ocorrência de fatos geradores que foram omitidas, como é o caso de aquisição de mercadorias sem nota fiscal, de venda com preço registrado aquém do real, etc. 3. Nos casos em que há parcelamento do débito tributário, não deve ser aplicado o benefício da denúncia espontânea da infração, visto que o cumprimento da obrigação foi desmembrado, e só será quitada quando satisfeito integralmente o crédito. O parcelamento, pois, não é pagamento, e a este não substitui, mesmo porque não há a presunção de que, pagas algumas parcelas, as demais igualmente serão adimplidas, nos termos do art. 158, I, do mencionado Codex (REsp 284.189/SP, Rel. Min. Franciulli Netto, julg. em 17.06.2002, 1ª Seção). 4. Recurso especial provido.” (REsp 496996/PR, STJ, T1, Rel. Ministro José Delgado, DJ 09.06.2003, p. 191) “TRIBUTÁRIO. DENÚNCIA ESPONTÂNEA. CONFISSÃO DE DÍVIDA ACOMPANHADA DE PEDIDO DE PARCELAMENTO. EXCLUSÃO DA MULTA. ART. 138 DO CTN. INCABIMENTO. 1. Diante da jurisprudência atual da Corte Superior, o benefício da denúncia espontânea da infração, previsto no art. 138 do CTN, não é aplicável em caso de parcelamento do débito. 2. Apelação improvida.” (AMS 2001.71.12.005119-6/RS, TRF-4, T1, Rel. Juiz Wellington Mendes de Almeida, DJ 18.06.2003, p. 495) Dessarte, cabível a incidência de multa moratória sobre o montante parcelado, merecendo, pois, confirmação a sentença no tópico. b) Legalidade da taxa SELIC 372 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 Embora o entendimento jurisprudencial amplamente majoritário seja no sentido da legalidade, a questão da aplicação da taxa SELIC ao campo tributário é controvertida, principalmente por envolver, além das questões jurídicas, considerações de ordem econômica. A aplicação da taxa SELIC ao campo tributário tem base legal, prevista nas Leis nos 9.065/95, 9.250/95 e 9.430/96. A SELIC corresponde ao índice composto pela taxa de juros e pela variação inflacionária do período. Assim, abrange ela tanto a recomposição do valor da moeda como os juros. Por isso afasta a aplicação cumulativa de qualquer outro indexador ou taxa de juros. Nas palavras do eminente Des. Federal Wellington Mendes de Almeida (EIAC nº 2000.04.01.106987-9/SC, 1ª Seção, unânime, DJU de 19.09.2001), “a taxa SELIC representa a taxa de juros reais e a taxa de inflação no período mensurado, remunerando o capital e, ao mesmo tempo, recuperando a desvalorização da moeda. Face à sua natureza mista, não se pode aplicá-la cumulativamente com outros índices de atualização ou taxa de juros.” Cumpre explicitar, ainda, que o fato de lei ordinária haver determinado a aplicação da SELIC não traz nenhum óbice de natureza constitucional, porquanto juros de mora não são matéria reservada à lei complementar, consoante o disposto no art. 146, III, da CF/88. Ademais, ainda que fosse tal matéria afeta à lei complementar, não haveria afronta ao Código Tributário Nacional – reconhecidamente recepcionado como lei complementar – pois o § 1º do art. 161, ao prever os juros moratórios incidentes sobre os créditos não satisfeitos no vencimento, estipulou taxa de 1% ao mês, se a lei não dispuser de modo diverso. Abriu, dessa forma, possibilidade ao legislador ordinário tratar da matéria. Além disso, não previu tal dispositivo que a taxa deveria ser fixa, nem impôs qualquer outra condição. Assim, a aplicação dos juros de mora deve atender ao disposto na lei que os pretenda regular. E assim o fizeram as Leis nos 9.065/95, 9.250/95 e 9.430/96, ao determinar a incidência da SELIC, aplicando, ainda, critério isonômico, ao prever a aplicação da mesma taxa tanto à atualização dos tributos recolhidos em atraso, quanto à repetição de tributos pagos indevidamente. Outra impugnação recorrente contra a SELIC é a natureza distinta dos juros. Os remuneratórios resultam da utilização consentida de capital de terceiros, remunerando-o, enquanto os moratórios representam 373 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 compensação por descumprimento de obrigação, tendo, portanto, caráter indenizatório. O caráter indenizatório, muitas vezes, é tomado como pena imposta ao devedor em atraso com o cumprimento da obrigação. Esta visão dos juros afeiçoa-se, particularmente, às obrigações resultantes de mútuo, em que ambos (compensatórios e moratórios) podem estar presentes. Por outro lado, nas obrigações em que está ausente a incidência de juros compensatórios, os moratórios têm acentuado seu conteúdo indenizatório. Caio Mário da Silva Pereira, ao tratar dos juros, explica: “O que caracteriza a distinção entre um e outro é que do juro compensatório é afastada a idéia de culpa, o que não se dá com o moratório, que assenta no pressuposto do retardamento do devedor no cumprimento da obrigação.” (Instituições de Direito Civil, v. II, Ed. Forense, 6.ª ed., p. 111) Mais adiante, ao analisar a mora, ensina o ilustre mestre civilista: “Responde, na verdade, o devedor pelos prejuízos a que der causa o retardamento da execução (Código Civil, art. 956; Anteprojeto de Código de Obrigações, art. 193); obrigado fica a indenizar o credor pelo dano que o atraso lhe causar, seja mediante o pagamento de juros moratórios legais ou convencionais, seja ressarcindo o que o retardo tiver gerado.” (grifei) (Idem, p. 269) A obrigação tributária é exemplo de obrigação em que está ausente a aplicação de juros compensatórios, pois o que existe em favor do Fisco é um direito de crédito, decorrente da referida obrigação, e não propriedade sobre parte do patrimônio do contribuinte. Dessa forma, o descumprimento da obrigação tributária impõe o dever de o contribuinte inadimplente indenizar o Fisco pela impossibilidade de contar com o valor devido. Assim, tomados os juros substantivamente, ou seja, sem a adjetivação de moratórios ou compensatórios, são eles destinados a compensar a indisponibilidade de certa quantia, quer tenha a impossibilidade do uso decorrido de ato voluntário, quer resulte da impontualidade. A natureza distintiva tem origem na causa, não na finalidade da incidência dos juros. Entretanto, a aplicação da SELIC, notoriamente de natureza compensatória, não transforma os moratórios incidentes sobre o débito tributário em compensatórios. O Código Tributário Nacional, como outros diplomas legais que trataram os juros, estipulou-os em percentual fixo, em face, principalmente, da dificuldade de ser avaliado o montante do prejuízo causado ao credor, 374 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 em especial nas obrigações por quantia certa. Isto não obsta encontrar e aplicar critério que aproxime a indenização do efetivo prejuízo do credor. Neste ponto, a aplicação da taxa SELIC mostra-se mais apropriada a traduzir as reais repercussões econômicas no erário público, causadas pelo inadimplemento da obrigação tributária. Isto porque os títulos da dívida pública – emitidos para suprir o déficit financeiro – estão, em grande parte, vinculados à referida taxa. O déficit é gerado, entre outros, pela queda na arrecadação, em virtude do não pagamento de tributos, o que obriga o governo a tomar empréstimos, incidindo sobre eles a taxa debatida. Com a aplicação da SELIC ao campo tributário há uma tendência de equilibrarem-se os custos financeiros de captação pelo Tesouro à receita de juros que este recebe pelo retardamento do contribuinte na satisfação do débito tributário. Nesse sentido, o entendimento de Sacha Calmon Navarro Coêlho, ao comentar a natureza jurídica do juro moratório: “O art. 161, depois de falar nos juros pela mora, refere-se às penalidades cabíveis, distinguindo os institutos. Está claro que a mora compensa o pagamento a destempo, e que a multa o pune. Os juros de mora em Direito Tributário possuem natureza compensatória (se a Fazenda tivesse o dinheiro em mãos já poderia tê-lo aplicado com ganho ou quitado seus débitos em atraso, livrando-se, agora ela, da mora e de suas conseqüências). Por isso os juros moratórios devem ser conformados ao mercado, compensando a indisponibilidade do numerário. A multa, sim, tem caráter estritamente punitivo, e por isso é elevada em todas as legislações fiscais, exatamente para coibir a inadimplência fiscal ou ao menos para fazer o sujeito passivo sentir o peso do descumprimento da obrigação no seu termo. Cumulação de penalidades? Os juros não possuem caráter punitivo, somente a multa.” (grifei) (Curso de Direito Tributário, 6. ed., Ed. Forense, p. 696-97) Embora empregue, o renomado autor, o termo compensatório para qualificar os juros, a justificativa para a aplicação deles ao campo tributário expressa inegável conteúdo indenizatório, no sentido acima apresentado. Frise-se, por outro lado, que os juros moratórios não se confundem com o crédito tributário, tampouco com a multa tributária. Aquele que cumpre as obrigações tributárias no momento apropriado está infenso à incidência deles sobre o quantum devido. Não há, dessa forma, aumento de tributo sem lei autorizadora, inexistindo, assim, afronta ao princípio da legalidade. Há, em verdade, indenização do credor pelo inadimpleR. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 375 mento do devedor, apurada de forma a refletir com bastante fidelidade os prejuízos. Ainda, não ofende a segurança jurídica a determinação da taxa SELIC por órgão do Poder Executivo, no caso, o Comitê de Política Monetária (COPOM). A criação do Comitê buscou proporcionar maior transparência e ritual adequado ao processo de estabelecimento da política monetária e definição da taxa de juros. Além disso, a taxa é fixada previamente, valendo para os trinta dias seguintes, o que possibilita ao contribuinte conhecer o montante da dívida. Apresenta, com tal característica, mais segurança que a definição da correção monetária, cujo valor, apurado também por entidade ligada ao Executivo (IBGE), somente torna-se conhecido no final do período de apuração. A limitação dos juros em 12% ao ano também não encontra amparo. O STF, na ADIn nº 4/91, analisou a questão no âmbito constitucional, assim decidindo: “EMENTA: Ação direta de Inconstitucionalidade. Taxa de juros reais até doze por cento ao ano (parágrafo 3º do art. 192 da Constituição Federal). [. . .] 6. Tendo a Constituição Federal, no único artigo em que trata do Sistema Financeiro Nacional (art. 192), estabelecido que este será regulado por lei complementar, com observância do que determinou no caput, nos seus incisos e parágrafos, não é de se admitir a eficácia imediata e isolada do disposto em seu parágrafo 3º, sobre taxa de juros reais (12% ao ano), até porque estes não foram conceituados. Só o tratamento global do Sistema Financeiro Nacional, na futura lei complementar, com a observância de todas as normas do caput, dos incisos e parágrafos do art. 192, é que permitirá a incidência da referida norma sobre juros reais e desde que estes também sejam conceituados em tal diploma.” Segundo o ensinamento de José Afonso da Silva, ao discorrer sobre a eficácia da sentença proferida no processo da ação direta de inconstitucionalidade genérica: “[. . .] Em suma, a sentença aí faz coisa julgada material, que vincula as autoridades aplicadoras da lei, que não poderão mais dar-lhe execução sob pena de arrostar a eficácia da coisa julgada, uma vez que a declaração de inconstitucionalidade em tese visa precisamente atingir o efeito imediato de retirar a aplicabilidade da lei. Se não fosse assim, seria praticamente inútil a previsão constitucional de ação direta de inconstitucionalidade genérica.” (Curso de Direito Constitucional Positivo, 20. ed., Malheiros Editores, p. 54/55) Portanto, uma decisão em apelação cível não poderia contrastar outra proferida em sede de ação declaratória de inconstitucionalidade, sem ca376 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 racterizar invasão de competência e afronta à coisa julgada. Entendendo o STF pela eficácia contida da norma constitucional que dispõe sobre juros e sua limitação, inaplicável tal dispositivo até que satisfeitas as condições determinadas na decisão. Por fim, a jurisprudência firmou-se no sentido de considerar legítima a aplicação da SELIC no âmbito tributário, como se denota da seguinte ementa: “PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ESPECIAL. EXECUÇÃO FISCAL. VIOLAÇÃO AO ARTIGO 535 DO CPC. INEXISTÊNCIA. CDA. VALIDADE. SÚMULA Nº 07/STJ. TAXA SELIC. LEGALIDADE. [. . .] III – Quanto à aplicação da taxa SELIC, a jurisprudência desta Corte consolidou o entendimento no sentido de que, a partir de 1º de janeiro de 1996, passou a ser legítima sua aplicação no campo tributário, em face da determinação contida no parágrafo 4º do artigo 39 da Lei nº 9.250/95. [. . .]” (STJ, AgREsp. 438.757/MG, Rel. Min. Francisco Falcão, unânime, DJU 02.12.2002) c) Caução – Títulos da Dívida Pública Entendo que não assiste razão à parte autora. Com efeito, não há como ser concedida antecipação da tutela assegurando a utilização dos títulos de dívida pública como garantia de débitos para com a União, tendo em vista a falta de liquidez desses títulos, os quais não têm cotação em bolsa, sendo certo que a jurisprudência não tem admitido a realização de penhora sobre Títulos da Dívida Pública, conforme se extrai dos seguintes Acórdãos. “RECURSO ESPECIAL. EXECUÇÃO FISCAL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. INDEFERIMENTO DA SUBSTITUIÇÃO DE BEM PENHORADO POR TÍTULO DA DÍVIDA PÚBLICA. RECUSA DA EXEQÜENTE. POSSIBILIDADEDE. AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO. Não se pode olvidar que o objetivo primordial da penhora é a conversão do bem em dinheiro, pela arrematação para que se satisfaça o crédito exeqüendo, daí por que vir o dinheiro em primeiro lugar na ordem de nomeação de bens à penhora. A substituição preconizada pelo artigo 15, I, da Lei nº 6.830/80, tem a propósito de garantir à execução maior liqüidez, uma vez que o executado somente poderá substituir o bem constrito judicialmente ‘por depósito em dinheiro ou fiança bancária’, dentre os quais não se inclui o Titulo da Dívida Pública, isto porque o objetivo da execução é obter igual resultado que se conseguiria com o cumprimento da prestação, qual seja, receber em dinheiro. R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 377 Embora se possa argumentar que os títulos públicos não necessitem de cotação em Bolsa de Valores, porque presumível a solvabilidade do Poder Público, é assente na jurisprudência desta egrégia Corte Superior que, embora corrigidos por índices que mantenham, de forma nominal, seu valor real, esses títulos têm valor reduzido e são de difícil resgate. Se os Títulos da Dívida Pública não trazem ao credor a segurança de que deles se extrairá o quantum necessário para realizar a execução, perfeitamente razoável a recusa justificada da Fazenda exeqüente, exercendo seu direito à substituição dos bens penhorados, preconizado pelo artigo 15 da Lei nº 6.830/80. Impõe-se o não conhecimento do recurso especial pela ausência do prequestionamento explícito dos dispositivos de lei federal tidos por objurgados (Súmula nº 282 do Supremo Tribunal Federal), entendido como o necessário e indispensável exame da questão pela decisão atacada. Os artigos 620 e 656, inciso I, ambos do Código de Processo Civil, indicados no recurso especial, tidos por violados, não foram enfrentados pelo v. acórdão guerreado. Precedentes. Recurso Especial não conhecido. Decisão por unanimidade.” (STJ – Segunda Turma – REsp nº 259.942/MG – Rel. Min. Franciulli Netto – Data do Julgamento: 12.06.2001 - Publicação no DJ de 11.09.2001) “PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. PRESSUPOSTOS DE ADMISSIBILIDADE. PREQUESTIONAMENTO. AUSÊNCIA. ´TÍTULOS DA DÍVIDA PÚBLICA. NOMEAÇÃO À PENHORA. RECUSA. (omissis) Pacificou-se o entendimento, neste Superior Tribunal de Justiça, no sentido de que é lícita a recusa da nomeação à penhora dos Títulos da Dívida Pública, em virtude da ausência de liquidez e por não serem tais títulos resgatáveis em bolsa de valores. Agravo improvido.” (AGA Nº 353517/RS, STJ, Primeira Turma, Relator Ministro Garcia Vieira, in DJ de 17.09.01, p. 126) “PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL CONTRA DECISÃO QUE NEGOU PROVIMENTO A AGRAVO DE INSTRUMENTO PARA FINS DE FAZER SUBIR RECURSO ESPECIAL. PENHORA. APÓLICE DA DÍVIDA PÚBLICA. ORDEM PREVISTA NO ARTIGO 11 DA LEI 6830/80. PRECEDENTES. 1. (omissis) 2. Acórdão a quo que, em ação executiva fiscal, indeferiu a nomeação à penhora de Apólice da Dívida Pública. 3. Não tendo a devedora obedecido a ordem prevista no art. 11 da Lei nº 6.830/80, visto que em primeiro lugar está o dinheiro e não os Títulos da Dívida Pública, é lícito ao credor e ao julgador a não aceitação da nomeação à penhora desses títulos, pois a execução é feita no interesse do exeqüente e não do executado. 378 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 4. Precedentes. 5. Agravo regimental improvido.” (AGA Nº 323180/SP, STJ, Primeira Turma, Relator Ministro José Delgado, in DJ de 07.05.01, p. 133) “EXECUÇÃO FISCAL. PENHORA. APÓLICES DA DÍVIDA PÚBLICA. As apólices da dívida pública não se prestam para garantia de débito fiscal, não só por inexistir cotação em bolsa mas também por não se revestirem de liquidez e certeza.” (AGVAG Nº 1999.04.01.108449-9, TRF-4R, Relator Juiz Élcio Pinheiro de Castro, in DJ de 05.04.00, p. 293) Além disso, consoante salientou a eminente Juíza Tania Escobar, “se é certo que a execução se faz pelo modo menos gravoso para o devedor, também é certo que não se faça de forma a inviabilizar o crédito do exeqüente”. (AG nº 97.04.17635-0/RS, publicado no DJU de 01.10.97, página 80696) d) Honorários advocatícios Considerando o § 4º do art. 20 do CPC e os critérios previstos nas alíneas a, b e c do § 3º do mesmo artigo, bem assim os precedentes desta Turma e da 1ª Seção desta Corte (v.g., EIAC nº 2000.04.01.107276-3/PR, Rel. Des. Federal Wellington Mendes de Almeida, DJ de 10.10.2001), majoro a verba honorária para R$ 1.500,00 (um mil e quinhentos reais), em vista da sucumbência integral da parte autora. Em face do exposto, nego provimento ao apelo da parte autora e dou provimento ao recurso da União para reconhecer cabível a incidência de multa moratória sobre o montante parcelado, nos termos da fundamentação supra. APELAÇÃO CÍVEL Nº 2001.70.08.003349-6/PR Relator: O Exmo. Sr. Des. Federal Wellington Mendes de Almeida Apelante: Posto Atlântico D’ America Ltda. R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 379 Advogado: Dr. Fábio Dutra Apelada: União Federal (Fazenda Nacional) Advogada: Dra. Dolizete Fátima Michelin EMENTA Tributário. PIS. COFINS. Operações envolvendo derivados de petróleo. Substituição tributária progressiva. Restituição preferencial e imediata. Inteligência do art. 150, § 7º, da CF. Não-cumulatividade. 1. O PIS e a COFINS, na sistemática de substituição tributária, admitem a restituição imediata, conforme o mecanismo de preços. Entretanto, tal regime de recolhimento não implica transformá-los em não-cumulativos. 2. Desimporta, no âmbito fiscal, que o preço de revenda seja inferior ao do fato gerador presumido, eis que, realizado o fato imponível, surge desde logo a obrigação tributária, sendo dever do substituto cumpri-la. 3. Apenas nos casos em que não ocorrido o fato gerador a Constituição possibilita a restituição que, no caso de ser buscada pelo substituído, interessado econômico, sê-lo-á na via judicial. 4. O e. STF já reconheceu que o fato gerador presumido é definitivo, não dando ensejo a restituição ou complementação do imposto pago quando a base de cálculo efetiva configurar-se menor do que a eleita pelo legislador. 5. Apelação provida em parte. ACÓRDÃO Vistos e relatados estes autos entre as partes acima indicadas, decide a 1ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por unanimidade, dar parcial provimento à apelação, nos termos do relatório, voto e notas taquigráficas que ficam fazendo parte integrante do presente julgado. Porto Alegre, 17 de dezembro de 2003. Des. Federal Wellington Mendes de Almeida, Relator. RELATÓRIO O Exmo. Sr. Des. Federal Wellington Mendes de Almeida: Posto Atlântico D´America Ltda. ajuizou ação ordinária visando à declaração do direito de compensar os valores pagos em excesso a título de PIS e COFINS em razão do regime de substituição tributária instituído pelo 380 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 art. 4o da Lei 9.718/98, devidamente atualizados. Aduz que o dispositivo obriga as refinarias ao recolhimento do PIS e da COFINS devidos pelos distribuidores e comerciantes varejistas, calculados sobre o preço de venda da refinaria multiplicado por quatro. Afirma que a Medida Provisória 1.858-11/99 alterou a redação do artigo, restringindo sua incidência às vendas de gasolina automotiva, óleo diesel e gás liqüefeito de petróleo. Destaca que a base de cálculo estimada é superior à efetivamente praticada quando da revenda, donde o excesso ser suscetível de restituição. Alega violação a inúmeros preceitos constitucionais, esgrimindo, ainda, a impossibilidade da imediata e preferencial restituição, conforme esquadrinhado no art. 150, § 7o, da CF. Após regular processamento, foi o feito sentenciado, tendo o juiz a quo julgado improcedente o pedido e condenado o autor ao pagamento de honorários calculados em 15% sobre o valor da causa. Inconformada, a autora manejou apelação, reanimando o intento inaugural. Com contra-razões, vieram os autos a este Tribunal. É o que me cumpria relatar. VOTO O Exmo. Sr. Des. Federal Wellington Mendes de Almeida: A questão cinge-se ao reconhecimento da constitucionalidade do regime de substituição tributária instituído pelo art. 4o da Lei 9.718/98 em relação às distribuidoras e aos comerciantes varejistas de derivados de petróleo. Dois argumentos importam para o desfecho da controvérsia. Primeiro, tenha-se que a substituição tributária, enquanto sistemática de recolhimento, embora afeita aos tributos indiretos, não traz como pressuposto a não-cumulatividade. É dizer, se instituída a substituição tributária em relação a tributos não-cumulativos, mister que exista a possibilidade de abatimento do montante recolhido na entrada com a importância devida na saída, a não ser nas hipóteses em que a lei, isentando alguma das etapas, determinar a anulação do crédito. Não obstante, quando regular a sistemática de recolhimento de tributos cumulativos, a exegese a ser conferida ao art. 150, § 7o, da CF, que assegura a imediata e preferencial restituição da quantia paga, implica reconhecer que é dirigida somente ao contribuinte de direito, ou seja, o substituto da relação R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 381 jurídico-tributária, responsável pelo recolhimento. E isso porque ele paga por obrigação que, em rigor, não é sua, pois é o substituído quem realiza o fato gerador, no caso, presumido. Então, somente as refinarias de petróleo, em hipóteses tais, teriam legitimidade para alegar a impossibilidade de restituição. A elas é permitido o ressarcimento do valor pago a título de tributos de terceiros através do mecanismo de preços. Todavia, a própria Constituição garante a devolução dos valores pagos a maior, postulados em juízo pelo substituto, como interessado econômico, porém apenas quando não realizado o fato gerador. A fim de preservar o princípio da isonomia, a lei fixa critério comum a ser utilizado como base de cálculo, desimportando o fato de, nas transações com o consumidor final, os comerciantes varejistas não lograrem revender o produto por preço superior ao da base imponível estimada. Importa salientar que, consumado este, surge desde logo a obrigação tributária, acarretando ao substituto tributário o dever de cumpri-la. Na espécie, trata-se de tributos que não se sujeitam ao regime de abatimento em etapas posteriores, constituindo a pretensão da autora em ver-se beneficiada da regra típica de impostos como o ICMS e o IPI, cuja característica principal é a não-cumulatividade. O PIS e a COFINS servem a objetivos outros que não meramente arrecadatórios, o que se extrai dos dizeres do art. 195, caput, da CF, segundo o qual a seguridade social será financiada por toda a sociedade, e por isso mesmo não há vedação a que incidam em mais de um estágio da cadeia produtiva. A segunda constatação a merecer destaque é a de que o e. STF já se pronunciou acerca da impossibilidade de restituição do imposto recolhido em excesso na sistemática de substituição tributária progressiva, quando a base de cálculo real for menor do que a presumida. “TRIBUTÁRIO. ICMS. SUBSTITUIÇÃO TRIBUTÁRIA. CLÁUSULA SEGUNDA DO CONVÊNIO 13/97 E §§ 6º E 7º DO ART. 498 DO DEC. Nº 35.245/91 (REDAÇÃO DO ART. 1º DO DEC. Nº 37.406/98), DO ESTADO DE ALAGOAS. ALEGADA OFENSA AO § 7º DO ART. 150 DA CF (REDAÇÃO DA EC 3/93) E AO DIREITO DE PETIÇÃO E DE ACESSO AO JUDICIÁRIO. Convênio que objetivou prevenir guerra fiscal resultante de eventual concessão do benefício tributário representado pela restituição do ICMS cobrado a maior quando a operação final for de valor inferior ao do fato gerador presumido. Irrelevante que não tenha sido subscrito por todos os Estados, se não se cuida de concessão de benefício (LC 24/75, art. 2º, INC. 2º). Impossibilidade de exame, nesta ação, do decreto, que tem natureza regulamentar. A EC nº 03/93, ao 382 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 introduzir no art. 150 da CF/88 o § 7º, aperfeiçoou o instituto, já previsto em nosso sistema jurídico-tributário, ao delinear a figura do fato gerador presumido e ao estabelecer a garantia de reembolso preferencial e imediato do tributo pago quando não verificado o mesmo fato a final. A circunstância de ser presumido o fato gerador não constitui óbice à exigência antecipada do tributo, dado tratar-se de sistema instituído pela própria Constituição, encontrando-se regulamentado por lei complementar que, para definir-lhe a base de cálculo, se valeu de critério de estimativa que a aproxima o mais possível da realidade. A lei complementar, por igual, definiu o aspecto temporal do fato gerador presumido como sendo a saída da mercadoria do estabelecimento do contribuinte substituto, não deixando margem para cogitar-se de momento diverso, no futuro, na conformidade, aliás, do previsto no art. 114 do CTN, que tem o fato gerador da obrigação principal como a situação definida em lei como necessária e suficiente à sua ocorrência. O fato gerador presumido, por isso mesmo, não é provisório, mas definitivo, não dando ensejo a restituição ou complementação do imposto pago, senão, no primeiro caso, na hipótese de sua não-realização final. Admitir o contrário valeria por despojar-se o instituto das vantagens que determinaram a sua concepção e adoção, como a redução, a um só tempo, da máquina-fiscal e da evasão fiscal a dimensões mínimas, propiciando, portanto, maior comodidade, economia, eficiência e celeridade às atividades de tributação e arrecadação. Ação conhecida apenas em parte e, nessa parte, julgada improcedente.” (ADIn 1851/AL, Relator Min. Ilmar Galvão, julg. 08.05.2002, Pleno, DJ 22.11.2002, pág. 55) Também obedece a esse diapasão a seguinte manifestação oriunda deste Sodalício: “PIS. COFINS. COMBUSTÍVEIS DERIVADOS DE PETRÓLEO. SUBSTITUIÇÃO TRIBUTÁRIA ‘PARA A FRENTE’. LEGITIMIDADE ATIVA. ART. 4° DA LEI 9.718/98. ART. 150, PAR. 7°, DA CF/88. EC 3/93. - Possuem legitimidade ativa para pleitear a restituição da COFINS e do PIS os comerciantes varejistas de combustíveis, porquanto são eles que arcam com o ônus econômico da tributação, embora o recolhimento se dê sob o regime de substituição tributária ‘para a frente’. - O Supremo Tribunal Federal, ao versar sobre a substituição tributária ‘para a frente’ na sistemática do ICMS, esclareceu que ‘a imediata e preferencial restituição’ do valor do imposto pago (art. 150, par. 7°, da CF/88) cinge-se às hipóteses de não-ocorrência do fato gerador presumido, não extensiva às situações em que este ocorre, mas a menor.” (AC 200071080115760/RS, 2ª Turma, DJU 23.10.2002, pág. 581, Relator Juiz Vilson Darós, decisão unânime) Quanto aos honorários, merece trânsito a pretensão da apelante. Com efeito, firmou-se nesta Turma orientação pela qual as verbas sucumbenciais destinadas aos patronos das partes devem ser fixadas à razão de 10% sobre o valor da causa, que, no caso, foi estabelecido em R$ R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 383 257.293,31 (duzentos e cinqüenta e sete mil, duzentos e noventa e três reais e trinta e um centavos). Malgrado o entendimento ordinário, na hipótese, sopesando fatores como a complexidade da demanda, o labor desenvolvido e o tempo despendido com a causa, arbitro os honorários de advogado em 5% (cinco pontos percentuais) sobre o valor da causa. Do exposto, dou parcial provimento à apelação, para reduzir os honorários ao importe de 5% sobre o valor da causa. APELAÇÃO EM MANDADO DE SEGURANÇA Nº 2001.72.05.004902-0/SC Relator: O Exmo. Sr. Des. Federal Vilson Darós Apelante: Instituto Nacional do Seguro Social - INSS Advogada: Dra. Mariana Gomes de Castilhos Apelantes: Fundação Universidade do Vale do Itajaí - Univali e outro Advogados: Drs. Sergio Roberto Back e outros Apelados: (os mesmos) Remetente: Juízo Federal da 1ª Vara Federal de Blumenau/SC EMENTA Mandado de segurança. Lei em tese. Imunidade artigo 195, parágrafo 7º, da Carta Magna/88. Requisitos do artigo 55 da Lei nº 8.212/91. Leis nos 9732/98 e 10.260/01. Não há falar em ofensa à Súmula nº 266 do STF, que dispõe ser incabível a impetração do mandamus contra lei em tese, porquanto a Lei nº 10.260/2001 possui efeitos concretos à medida que determina obrigações que atingem a impetrante “a partir do primeiro semestre de 2001”. Embora o parágrafo 7º do artigo 195 da CF/88 mencione isenção, o Su384 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 premo Tribunal Federal, no julgamento da ADIn nº 2.028-5, de 14.07.99, reconheceu como verdadeira “imunidade” o benefício ali previsto. O comando previsto no parágrafo 7º do artigo 195 da CF/88 não exige lei complementar, mas remete à lei ordinária o estabelecimento das exigências legais para a concessão do benefício da imunidade. Precedentes do STF. O Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADIn nº 2028-5 – DF, datado de 11.11.99, referendou a concessão da medida liminar para suspender, até a decisão final da ação direta, a eficácia do art. 1º, na parte em que alterou a redação do art. 55, inciso III, da Lei nº 8.212, de 24.07.99, e acrescentou-lhe os §§ 3 º, 4 º e 5 º, bem como dos arts. 4º, 5 º e 7º da Lei nº 9732, de 11.12.98. A mesma Corte, no julgamento da ADI nº 2545-7, em 01.02.2002, por unanimidade, deferiu a medida acauteladora para suspender, com eficácia ex tunc, o inciso IV do artigo 12, e o artigo 19 e seus §§ 1 º, 2º, 3 º, 4 º e 5 º, ambos da Lei nº 10.260, de 12 de julho de 2001, razão pela qual resta afastada a aplicação deste diploma legal no caso em comento. Com o julgamento da ADIn nº 2.028-5/DF e ADIn nº 2.545-7, ainda que em liminar, restaram suspensas as alterações introduzidas pelas Leis nº 9.732, de 1998, e nº 10.260, de 2001, ao artigo 55 da Lei nº 8.212, de 1991, o qual, por conseqüência, permanece hígido na sua redação original. ACÓRDÃO Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide a Egrégia Segunda Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por unanimidade, dar provimento ao apelo das impetrantes e negar provimento ao apelo do INSS e à remessa oficial, nos termos do relatório e notas taquigráficas que ficam fazendo parte integrante do presente julgado. Porto Alegre, 11 de março de 2003. Des. Federal Vilson Darós, Relator. RELATÓRIO O Exmo. Sr. Des. Federal Vilson Darós: Trata-se de ação mandamental, com pedido liminar, em que as impetrantes, Fundação Universidade R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 385 do Vale do Itajaí – Univali e Associação Catarinense das Fundações Educacionais – ACAFE, pretendem afastar a aplicação da Lei nº 10.260, de 12 de julho de 2001, sob o argumento de ilegalidade e inconstitucionalidade do referido diploma legal. Alegam, em síntese, que a lei em questão é inconstitucional, porquanto somente lei complementar pode regular as limitações constitucionais do poder de tributar, nos termos do artigo 146, II, da Constituição Federal, sendo que a referida lei fere a imunidade tributária de que trata o artigo 195, § 7º da Carta Magna de 1988. Sustentam que a Lei nº 10.260/2001, em sendo lei ordinária, não poderia impor novos requisitos à imunidade da quota patronal pela qual estão as impetrantes abarcadas, razão pela qual impetram o presente mandamus. Indeferida liminar (fl.401). Desta decisão, agravaram de instrumento as impetrantes, tendo sido negado provimento ao recurso. (fl. 519) Processado regularmente o feito, sobreveio sentença, concedendo parcialmente a segurança, apenas para reconhecer a inconstitucionalidade apenas da expressão “a partir do primeiro semestre de 2001” contida no art. 19, caput, da Lei 10.260, de 13.07.2001, por violação ao disposto no art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal, e, via de conseqüência, declarar que a impetrante não está sujeita às obrigações contidas no artigo 19 da referida lei, ressalvada nova alteração legislativa. Sem condenação em honorários. Irresignado, apelou o INSS, sustentando: a) ilegitimidade passiva; b) inexistência de direito líquido e certo, atacando-se lei em tese; c) as entidades de educação não estão abrangidas pela imunidade de que trata o art. 195, § 7º, da CF/88; d) validade da exação. Apelaram as impetrantes, reiterando os argumentos expostos na exordial no sentido da inaplicabilidade de todo o artigo 19 da Lei nº 10.260/2001. Com as contra-razões, vieram os autos a este Tribunal. É o relatório. VOTO O Exmo. Sr. Des. Federal Vilson Darós: Autoridade Coatora Sustenta o INSS a carência de ação, porquanto houve errônea in386 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 dicação da autoridade coatora, devendo figurar como tal o Chefe do Serviço de Arrecadação da Gerência Executiva do INSS em Blumenau, tendo em vista a nova estrutura interna do INSS. Todavia, tenho que, apesar de constar na exordial como autoridade coatora o Gerente de Arrecadação da Previdência Social, as informações foram prestadas pela autoridade correta, a qual teve apenas mudança na denominação, conforme salientado pelo magistrado singular à fl. 485. Liquidez e certeza do direito – lei em tese Alega o INSS, em sede de apelo, ofensa à Súmula nº 266 do STF, que dispõe ser incabível a impetração do mandamus contra lei em tese. Entretanto, tenho que a Lei nº 10.260/2001 possui efeitos concretos à medida que determina obrigações que atingem a impetrante “a partir do primeiro semestre de 2001”, razão pela qual é perfeitamente atacável por esta via eleita. Imunidade ou isenção - artigo 195, § 7º, CF - Lei nº 10.260/2001 A impetrante pretende afastar a aplicação da Lei nº 10.260, de 12 de julho de 2001, sob o argumento de ilegalidade e de inconstitucionalidade do referido diploma legal. Alega, em síntese, que a lei em questão é inconstitucional, porquanto somente lei complementar pode regular as limitações constitucionais do poder de tributar, nos termos do artigo 146, II, da Constituição Federal, sendo que a referida lei fere a imunidade tributária de que trata o artigo 195, § 7º, da Carta Magna de 1988, que assim dispõe: “Art. 195 – CF/88 – A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais: (...) § 7º – São isentas de contribuição para a seguridade social as entidades beneficentes de assistência social que atendam às exigências estabelecidas em lei.” Embora o parágrafo 7º do artigo 195 da CF/88 mencione isenção, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADIn nº 2.028-5, de 14.07.99, reconheceu como verdadeira “imunidade” o benefício previsto na Carta Constitucional. Para elucidar a questão, merece transcrição parte do voto proferido pelo Ministro Celso de Mello, no julgamento da RMS 22.192-9/DF: 387 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 “A cláusula inscrita no art. 195, parágrafo 7º da Carta Política – não obstante referir-se impropriamente à isenção de contribuição para a seguridade social – contemplou as entidades beneficentes de assistência social com o favor constitucional da imunidade tributária, desde que por elas preenchidos os requisitos fixados em lei. (...) A análise inscrita no art. 195, § 7º, da Constituição permite concluir que a garantia constitucional da imunidade pertinente à contribuição para a seguridade social só pode validamente sofrer limitações normativas, quando definidas estas em sede legal, como requisitos necessários ao gozo da especial prerrogativa de caráter jurídico financeiro em questão”. Sempre entendi que o comando previsto no parágrafo 7º, artigo 195, da CF/88 remete à lei complementar o estabelecimento das exigências legais para a concessão do benefício da imunidade, pois compete à referida espécie legislativa regular as limitações constitucionais ao poder de tributar. (CF, art. 146, II) Entretanto, essa não é a posição do Supremo Tribunal Federal, que reiteradamente tem manifestado orientação diversa. Delimitação do conceito de assistência social de que trata o art. 195, § 7º, da CF/88 Inicialmente, cumpre analisar o conceito de assistência social previsto no artigo 195,§ 7º, da Carta Magna de 1988, para, após, efetuar a análise dos requisitos para a concessão da imunidade. O Supremo Tribunal Federal já se manifestou quanto à abrangência do conceito de assistência social de que trata o normativo constitucional (art. 195, § 7º), na ADIn nº 2028-5 – DF, quando do julgamento da liminar, em 11.11. 99, Relator Ministro Moreira Alves: “Do exame sistemático da Constituição, verifica-se que a Seção relativa à Assistência Social não é exauriente do que se deva entender como Assistência Social, pois, além de não se referir a carentes em geral, mas apenas à família, crianças, adolescentes, velhos e portadores de deficiência sem sequer exigir de todos estes que sejam carentes, preceitua, em seu artigo 203, que ela se fará independentemente de contribuição social, a indicar que será gratuita, o que só se compatibilizará com o disposto no parágrafo único do art. 149 – que permite que os Estados, o Distrito Federal e os Municípios instituam contribuição cobrada de seus servidores para o custeio, em benefício destes, de sistemas de previdência e assistência social – se entender que, para a Constituição, o conceito de assistência social é mais amplo não só do doutrinário, mas também do adotado pelo art. 203 para a disciplina específica prevista nele e no dispositivo que lhe segue. (...) Esse conceito mais lato de assistência social – e que é admitido pela Constituição 388 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 – é o que parece deva ser adotado para a caracterização dessa assistência prestada por entidades beneficentes, tendo em vista o cunho nitidamente social de nossa Constituição. Aliás, esta Corte tem entendido que a entidade beneficente de assistência social, a que alude o § 7º do art. 195 da Constituição, abarca a entidade beneficente de assistência educacional.” (assim no ROMS 22192, rel. Min. Celso de Mello, no ROMS 22.360, rel. Min. Ilmar Galvão, e, anteriormente, no MI 232 de que fui relator, os dois primeiros relativos à Associação Paulista da Igreja Adventista do Sétimo Dia que presta assistência educacional, e o último com referência ao Centro de Cultura Professor Luiz Freire) “Relativamente à questão de fundo, atente-se para o caráter linear e abrangente do § 7º do artigo 195 da Constituição Federal : Art. 195 - § 7 º - São isentas de contribuição para a seguridade social as entidades beneficentes de assistência social que atendam às exigências estabelecidas em lei. (...) No preceito, cuida-se de entidades beneficentes de assistência social, não estando restrito, portanto, às instituições filantrópicas... Indispensável, é certo, que se tenha o desenvolvimento da atividade voltada aos hipossuficientes, àqueles que, sem prejuízo do próprio sustento e o da família, não possam dirigir-se aos particulares que atuam no ramo buscando lucro, dificultada que está, pela insuficiência de estrutura, a prestação do serviço pelo Estado. Ora, no caso, chegou-se à mitigação do preceito, olvidando-se que nele não se contém a impossibilidade de reconhecimento do benefício quando a prestadora de serviços atua de forma gratuita em relação aos necessitados, procedendo à cobrança junto àqueles que possuam recursos suficientes. A cláusula que remete à disciplina legal - e, aí, tem-se a conjugação com o disposto no inciso II do artigo 146 da Carta da República, pouco importando que nela própria não se haja consignado a especificidade do ato normativo - não é idônea a solapar o comando constitucional, sob pena de caminhar-se no sentido de reconhecer a possibilidade de o legislador comum vir a mitigá-lo, a temperá-lo. As exigências estabelecidas em lei não podem implicar verdadeiro conflito com o sentido, revelado pelos costumes, da expressão ‘entidades beneficentes de assistência social’. Em síntese, a circunstância de a entidade, diante, até mesmo, do princípio isonômico, mesclar a prestação de serviços, fazendo-o gratuitamente aos menos favorecidos e de forma onerosa aos afortunados pela sorte, não a descaracteriza, não lhe retira a condição de beneficente. Antes, em face à escassez de doações nos dias de hoje, viabiliza a continuidade dos serviços, devendo ser levado em conta o somatório de despesas resultantes do funcionamento e que é decorrência do caráter impiedoso da vida econômica. Portanto, também sob o prisma do vício de fundo, tem-se a relevância do pedido inicial, notando-se, mesmo, a preocupação do Excelentíssimo Ministro de Estado da Saúde com os ônus indiretos advindos da normatividade da Lei nº 9732 /98, no que veio a restringir, sobremaneira, a imunidade constitucional, praticamente inviabilizando - repita-se uma vez que não são comuns, nos dias de hoje, as grandes doações, a filantropia pelos mais aquinhoados - a assistência social, a par da precária prestada pelo Estado, que o § 7 º do artigo 195 da Constituição Federal visa a estimular”. Em verdade, a assistência social, segundo o artigo 203 da CF/88, tem 389 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 por objetivo, inclusive, “a promoção da integração ao mercado de trabalho” (inciso III), de modo que a prestação assistencial à educação visa exatamente a atender tal finalidade, sendo englobada, assim, pelo conceito de assistência social. Nessa linha, encontra-se também a doutrina pátria: “(...) As instituições de assistência social possuem amplitude maior, se comparadas às instituições de educação. Sobre as instituições de assistência social, escreve José Eduardo Soares de Melo: ‘Os serviços desenvolvidos pelas entidades beneficentes suplementam as atividades essenciais do Estado no que concerne à educação, e assistência médica, hospitalar, farmacêutica, dentária, por ser notória a insuficiência do Executivo nas prestações de tais serviços. Tais atividades traduzem uma natural utilidade pública, razão pela qual as manifestações formais, oficiais, unilaterais por parte do governo (federal, estadual e municipal) representam simples atos declaratórios, sem qualquer natureza constitutiva.’” (Imunidades Tributárias, Yoshiaki Ichihara, Editora Atlas, 2000, fl. 275) “ (...) Por essa razão, as imunidades são quase sempre interpretadas extensivamente, por força do art. 111 do Código Tributário Nacional, as isenções comportam uma interpretação o mais das vezes restritiva. Como se percebe, o constituinte utilizou-se mal do vocábulo ‘isenção’, pois pretendeu, de rigor, outorgar uma autêntica imunidade. Essa imunidade é extensiva às entidades beneficentes de assistência social, ainda aqui cabendo a interpretação a que me referi, no sentido de ‘assistência social lato sensu’, aplicável às limitações constitucionais ao poder de tributar.” (Comentários à Constituição do Brasil, Celso Ribeiro Bastos e Ives Gandra Martins, 8º volume, 2ª edição, 2000, p. 114/115) Claro está que a imunidade de que trata o parágrafo 7º do artigo 195 da Carta Política de 1988 abarca as entidades que prestam serviços a pessoas carentes, de forma gratuita, relativos à assistência social em seu sentido lato, qual seja, assistência à saúde e à educação. Ressalta-se que a circunstância de a entidade mesclar a prestação de serviços, fazendo-o gratuitamente aos menos favorecidos e de forma onerosa aos afortunados pela sorte, não a descaracteriza, não lhe retira a condição de beneficente segundo entendimento do Pretório Excelso. Desta forma, não há óbice à concessão do benefício às entidades sem fins lucrativos de caráter beneficente, assistencial e, também, educacional, apesar do parágrafo 7º do art. 195 da Carta Magna/88 referir apenas “as entidades beneficentes de assistência social”, não assistindo razão ao INSS sob este aspecto. Requisitos para fruição da imunidade – art. 195, § 7º, da CF/88 390 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 429-432, 2004 O cerne do presente feito envolve a discussão a respeito dos requisitos a serem cumpridos para a fruição da imunidade de que trata o artigo 195, § 7º da Carta Magna de 1988. Como afirmei alhures, sempre me posicionei que tais requisitos, por se tratar de uma limitação ao poder de tributar, deviam ser buscados no Código Tributário Nacional, por força do que dispõe o art. 146, inciso II, da Carta Política Brasileira. No entanto, a posição da mais alta Corte do País é no sentido de que o parágrafo 7º do art. 195 reclama lei ordinária, e não complementar, para estabelecer os requisitos a serem obedecidos pelas entidades que buscam a imunidade prevista. Veja-se, a respeito, o voto do eminente Ministro Moreira Alves, no julgamento do Mandado do Injunção nº 232-1/RJ, verbis: “(...) o parágrafo 7º do artigo 195 não concedeu direito de imunidade às entidades beneficentes de assistência social, direito esse que apenas não pudesse ser exercido por falta de regulamentação, mas somente lhes outorga a expectativa de, se vierem a atender as exigências a ser estabelecidas em lei, verão nascer, para si, o direito em causa. O que implica dizer que esse direito não nasce apenas do preenchimento da hipótese de incidência contida na norma constitucional, mas, depende, ainda, das exigências fixadas em lei ordinária, como resulta claramente do disposto no referida parágrafo 7º. ...” (grifei) Superada esta questão, é preciso verificar se há lei ordinária a estabelecer os requisitos de que trata o parágrafo 7º do artigo 195 da Constituição Federal. Nessa linha, deparamo-nos com o artigo 55 da Lei nº 8.212, de 1991, que fixou tais parâmetros: “Lei nº 8.212/91 - Art. 55. Fica isenta das contribuições de que tratam os arts. 22 e 23 desta Lei a entidade beneficente de assistência social que atenda aos seguintes requisitos cumulativamente: I - seja reconhecida como de utilidade pública federal e estadual ou do Distrito Federal ou municipal; II - seja portadora do Registro e do Certificado de Entidade Beneficente de Assistência Social, fornecidos pelo Conselho Nacional de Assistência Social, renovado a cada três anos; (Redação dada pela Medida Provisória nº 2.187-13, de 24.08.01) III – promova a assistência social beneficente, inclusive educacional ou de saúde, a menores, idosos, excepcionais ou pessoas carentes. IV - não percebam seus diretores, conselheiros, sócios, instituidores ou benfeitores, remuneração e não usufruam vantagens ou benefícios a qualquer título; V - aplique integralmente o eventual resultado operacional na manutenção e desenvolvimento de seus objetivos institucionais apresentando, anualmente ao órgão do INSS competente, relatório circunstanciado de suas atividades. (Redação dada pela R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 429-432, 2004 391 Lei nº 9.528, de 10.12.97) § 1º Ressalvados os direitos adquiridos, a isenção de que trata este artigo será requerida ao Instituto Nacional do Seguro Social-INSS, que terá o prazo de 30 (trinta) dias para despachar o pedido. § 2º A isenção de que trata este artigo não abrange empresa ou entidade que, tendo personalidade jurídica própria, seja mantida por outra que esteja no exercício da isenção.(...)” Posteriormente, em 11 de dezembro de 1998, foi editada a Lei nº 9.732/98, regulamentada pelo Decreto nº 3039/99, modificando alguns destes requisitos para a obtenção da imunidade, trazendo critérios mais rígidos para a concessão do benefício. Vejamos: “Art. 1o Os arts. 22 e 55 da Lei nº 8.212, de 24 de julho de 1991, passam a vigorar com as seguintes alterações: (...) ‘Art.5 5. ... ... III - promova, gratuitamente e em caráter exclusivo, a assistência social beneficente a pessoas carentes, em especial a crianças, adolescentes, idosos e portadores de deficiência; ... § 3o Para os fins deste artigo, entende-se por assistência social beneficente a prestação gratuita de benefícios e serviços a quem dela necessitar. § 4o O Instituto Nacional do Seguro Social - INSS cancelará a isenção se verificado o descumprimento do disposto neste artigo. § 5o Considera-se também de assistência social beneficente, para os fins deste artigo, a oferta e a efetiva prestação de serviços de pelo menos sessenta por cento ao Sistema Único de Saúde, nos termos do regulamento.” (NR) Contudo, a inconstitucionalidade desta nova lei foi suscitada perante o Supremo Tribunal Federal, na ADIn nº 2028-5 – DF, tanto no aspecto formal quanto no material. Quanto ao primeiro, foi questionada a regulamentação da limitação ao poder de tributar através de lei ordinária, o que violaria o disposto no artigo 146, inciso II, da CF/88. Quanto ao aspecto material, a lei ordinária em comento teria estabelecido diversas restrições ao gozo da imunidade que não estão previstas no texto constitucional, limitando a extensão do benefício, como é o caso da exigência de que as entidades assistenciais prestassem serviços exclusivamente gratuitos para poderem usufruir da regra imunizante. Em sede liminar de controle de constitucionalidade, o órgão Pleno do Supremo Tribunal Federal entendeu que a tese de necessidade de lei complementar, com fundamento no artigo 146, inciso II, da Carta Magna de 392 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 429-432, 2004 1988, não poderia ser acatada, porquanto, se acolhida, a suspensão da Lei nº 9.732/98 implicaria a vigência da redação originária da Lei nº 8.212/91, a qual, por ser lei ordinária, também não poderia regular a norma imunizante. Entretanto, em não sendo atacada subsidiariamente, naquela ADIn, a Lei nº 8.212/91, não poderia ser acatada a tese de inconstitucionalidade formal naquele feito. Por outro lado, o Pretório Excelso acolheu a tese de inconstitucionalidade material, no sentido de que os dispositivos legais atacados limitavam a extensão da imunidade, desvirtuando o conceito constitucional de entidade beneficente de assistência social, como se extrai do voto do Relator Ministro Moreira Alves: “(...) As exigências estabelecidas em lei não podem implicar verdadeiro conflito com o sentido, revelado pelos costumes, da expressão ‘entidades beneficentes de assistência social’. Em síntese, a circunstância de a entidade, diante, até mesmo, do princípio isonômico, mesclar a prestação de serviços, fazendo-o gratuitamente aos menos favorecidos e de forma onerosa aos afortunados pela sorte, não a descaracteriza, não lhe retira a condição de beneficente. Antes, em face à escassez de doações nos dias de hoje, viabiliza a continuidade dos serviços, devendo ser levado em conta o somatório de despesas resultantes do funcionamento e que é decorrência do caráter impiedoso da vida econômica. Portanto, também sob o prisma do vício de fundo, tem-se a relevância do pedido inicial, notando-se, mesmo, a preocupação do Excelentíssimo Ministro de Estado da Saúde com os ônus indiretos advindos da normatividade da Lei nº 9732 /98, no que veio a restringir, sobremaneira, a imunidade constitucional, praticamente inviabilizando - repita-se uma vez que não são comuns, nos dias de hoje, as grandes doações, a filantropia pelos mais aquinhoados - a assistência social, a par da precária prestada pelo Estado, que o § 7 º do artigo 195 da Constituição Federal visa a estimular. (...)” No mesmo julgamento, porém, restou claro que, suspenso o art. 1º da Lei nº 9.732, de 1998, no que alterou a redação do art. 55 da Lei nº 8.212, de 1991, permaneceu válida e eficaz a redação original, como se vê do voto do eminente Relator da ADIn já referida: “(...) É evidente que tais entidades, por serem beneficentes, teriam de ser filantrópicas (por isso, o inciso II do artigo 55 da Lei nº 8212/91, que continua em vigor, exige que a entidade ‘seja portadora de certificado ou do registro de Entidade de Fins Filantrópicos fornecido pelo Conselho Nacional de Serviço Social, renovado a cada três anos’). ...” (grifo nosso) Nessa direção, aliás, há expressa disposição legal: “a concessão de medida cautelar torna aplicável a legislação anterior acaso existente, salvo expressa manifestação em sentido contrário.” (Lei nº 9.868/99, art. 11) R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 429-432, 2004 393 Por fim, em 12 de julho de 2001, foi editada a Lei nº 10.260 que estabeleceu, paralelamente aos requisitos previstos no artigo 55 da Lei nº 8.212, de 1991, obrigação especial às instituições de ensino. Em verdade, os requisitos constantes no artigo 55 da Lei nº 8.212/91 devem ser analisados em consonância com o artigo 195, § 7º, da Carta Magna de 1988, bem como com o conceito de assistência social delimitado pelo Supremo Tribunal Federal. Assim, as entidades beneficentes de assistência social só farão jus à concessão do benefício imunizante se estiverem enquadradas no conceito de assistência social delimitado pelo Supremo Tribunal Federal, bem como se preencherem os requisitos de que trata o artigo 55 da Lei nº 8.212/91. Essa é a atual orientação jurisprudencial pátria: “ENTIDADE ASSISTENCIAL SEM FINS LUCRATIVOS. IMUNIDADE E ISENÇÃO. EFEITOS DO RECONHECIMENTO DA IMUNIDADE 1. Nos termos do parágrafo 7º do artigo 195 da Constituição são ‘isentas de contribuição para a seguridade social as entidades beneficentes de assistência social que atendam às exigências estabelecidas em lei’. 2. Não havendo, no texto constitucional, a expressa exigência de lei complementar, é legítimo o estabelecimento das aludidas exigências mediante lei ordinária, não se aplicando o disposto no artigo 146, inciso II, da Constituição, uma vez que esta, no tocante às contribuições sociais, estabelece regime especial no que concerne às limitações ao poder de tributar (Carta Magna, art. 195, §§ 6º e 7º), sendo, portanto, constitucionais os requisitos previstos no artigo 55 da Lei 8.212/91. 3. A impetrante não atende ao requisito previsto no artigo 55, inciso II, da Lei 8.212/91, pois não é portadora do certificado ou do registro de entidade de fins filantrópicos, o que impõe seja indeferida a segurança. 4. Apelação e remessa providas.” (Origem: TRF Primeira Região Classe: AMS - Apelação em mandado de segurança – 01000322351 - Processo: 199701000322351 UF: MG Órgão Julgador: Segunda Turma Suplementar Data da decisão: 20.08.2002 Documento: TRF100135321 Fonte DJ Data: 05.09.2002 p. 108 Relator(a) Juiz Leão Aparecido Alves, conv.) “CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. IMUNIDADE. ENTIDADE BENEFICENTE DE ASSISTÊNCIA SOCIAL. INSTITUIÇÃO EDUCACIONAL. ART.195, § 7º, CF/88. EXIGÊNCIAS ESTABELECIDAS EM LEI. APLICAÇÃO DO ART. 55 DA LEI Nº 8.212/91. ILEGALIDADE DO ATO QUE CANCELOU ISENÇÃO EM FACE DE EXIGÊNCIA DE CUMPRIMENTO DE REQUISITO PREVISTO NO INCISO IV DO ART. 2º DO DECRETO 752/93. As entidades beneficentes, para que se beneficiem da imunidade prevista no § 7º do art. 195, devem, além de qualificarem-se como entidade beneficente de assistência social, atender às exigências estabelecidas em lei. Aplicam-se à contribuição da seguridade social, para efeito da imunidade prevista no artigo 394 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 433-451, 2004 195, § 7º, da CF/88, os requisitos estabelecidos pelo art. 55 da Lei nº 8.212/91. Não pode a autoridade administrativa cancelar isenção fiscal com fundamento em Decreto que regulamentou de forma ilegal dispositivo constitucional reservado à disciplina da Lei. O preenchimento dos requisitos estabelecidos pelo art. 55 da Lei 8.212/91 pela autora dá-lhe o direito de permanecer usufruindo da isenção que foi cancelada. Apelo da autora provido.” (Origem: TRF - Primeira Região Classe: AC - Apelação Cível – 01000640887 - Processo: 200001000640887 UF: MG Órgão Julgador: Quarta Turma Data da decisão: 28.05.2002 Documento: TRF100132046 Fonte: DJ Data:25.06.2002 p.82 Relator(a) Desembargador Federal Hilton Queiroz) Análise do caso concreto Pretende a parte impetrante afastar a aplicação da Lei nº 10.260, de 12 de julho de 2001, sob o argumento de ilegalidade e inconstitucionalidade do referido diploma legal. Alega, em síntese, que a lei em questão é inconstitucional, porquanto somente lei complementar pode regular as limitações constitucionais do poder de tributar, nos termos do artigo 146, II, da Constituição Federal, sendo que a referida lei fere a imunidade tributária de que trata o artigo 195, § 7º, da Carta Magna de 1988. A tese de que cabe somente à lei complementar estabelecer os requisitos para a fruição da imunidade restou rechaçada, como se viu alhures. É certo, nos dizeres do Supremo Tribunal Federal, que o comando previsto no art. 195, § 7º, da CF/88 remete à lei ordinária. Aqui, porém, a impetrante se insurge contra a exigência posta no art. 19 da Lei nº 10.260, de 2001, que restringiu, em relação às instituições de ensino, como é o caso da impetrante, a fruição do benefício constitucional. O dispositivo legal assim está posto: “Lei nº 10.260/2001 - Art. 19. A partir do primeiro semestre de 2001, sem prejuízo do cumprimento das demais condições estabelecidas nesta Lei, as instituições de ensino enquadradas no art. 55 da Lei nº 8.212, de 24 de julho de 1991, ficam obrigadas a aplicar o equivalente à contribuição calculada nos termos do art. 22 da referida Lei na concessão de bolsas de estudo, no percentual igual ou superior a 50% dos encargos educacionais cobrados pelas instituições de ensino, a alunos comprovadamente carentes e regularmente matriculados. § 1o A seleção dos alunos a serem beneficiados nos termos do caput será realizada em cada instituição por uma comissão constituída paritariamente por representantes da direção, do corpo docente e da entidade de representação discente. § 2o Nas instituições que não ministrem ensino superior caberão aos pais dos alunos regularmente matriculados os assentos reservados à representação discente na comissão de que trata o parágrafo anterior. § 3o Nas instituições de ensino em que não houver representação estudantil ou de pais organizada, caberá ao dirigente da instituição proceder à eleição dos representantes R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 433-451, 2004 395 na comissão de que trata o § 1o. § 4o Após a conclusão do processo de seleção, a instituição de ensino deverá encaminhar ao MEC e ao INSS a relação de todos os alunos, com endereço e dados pessoais, que receberam bolsas de estudo. § 5o As instituições de ensino substituirão os alunos beneficiados que não efetivarem suas matrículas no prazo regulamentar, observados os critérios de seleção dispostos neste artigo.” Tenho que assiste razão à instituição de ensino, ora impetrante, uma vez que o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADIn nº 2545-7, em 01.02.2002, por unanimidade, deferiu a medida acauteladora para suspender, com eficácia ex tunc, o inciso IV do artigo 12 e o artigo 19 e seus §§ 1 º, 2º, 3 º, 4 º e 5 º, ambos da Lei nº 10.260, de 12 de julho de 2001, razão pela qual resta afastada a aplicação deste diploma legal no caso em comento. O acórdão restou assim ementado: “AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ARTIGOS 12, CAPUT, INCISO IV, E 19, CAPUT, E PARÁGRAFOS 1º, 2º, 3º, 4º E 5º DA LEI Nº 10.260, DE 13.07.2001. INSTITUIÇÕES DE ENSINO SUPERIOR. FUNDO DE FINANCIAMENTO AO ESTUDANTE DE ENSINO SUPERIOR (FIES). EXIGÊNCIA, PELO ART. 19 DA MENCIONADA LEI, DE APLICAÇÃO DO EQUIVALENTE À CONTRIBUIÇÃO DE QUE TRATA O ART. 22 DA LEI Nº 8.212/91 NA CONCESSÃO DE BOLSAS DE ESTUDO. VIOLAÇÃO AO DISPOSTO NO ART. 195, § 7º DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. IMUNIDADE QUE SE ESTENDE ÀS ENTIDADES QUE PRESTAM ASSISTÊNCIA SOCIAL NO CAMPO DA SAÚDE E DA EDUCAÇÃO. ART. 12, CAPUT, DA REFERIDA LEI. FIXAÇÃO DE CONDIÇÕES PARA RESGATE ANTECIPADO DE CERTIFICADOS JUNTO AO TESOURO NACIONAL. INEXISTÊNCIA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ART. 12, INCISO IV. RESGATE CONDICIONADO À AUSÊNCIA DE LITÍGIO JUDICIAL TENDO COMO OBJETO CONTRIBUIÇÕES SOCIAIS ARRECADADAS PELO INSS OU CONTRIBUIÇÕES RELATIVAS AO SALÁRIO-EDUCAÇÃO. APARENTE AFRONTA AO ART. 5º, XXXV. 1. O art. 19 da Lei nº 10.260/01, quando determina que o valor econômico correspondente à exoneração de contribuições seja obrigatoriamente destinado a determinada finalidade, está, na verdade, substituindo por obrigação de fazer (conceder bolsas de estudo) a obrigação de dar (pagar a contribuição patronal) de que as entidades beneficentes educacionais estão expressamente dispensadas. 2. O art. 12, caput, da Lei nº 10.260/01, ao fixar condições para o resgate antecipado dos certificados, teve como Objetivo excluir da possibilidade de acesso ao crédito imediato dos valores correspondentes a tais certificados aquelas entidades que apresentem débitos para com a previdência. Tal medida, antes de agressiva ao texto constitucional, corresponde a atitude de necessária prudência, tendente a evitar que devedores da previdência ganhem acesso antecipado a recursos do Tesouro Nacional. 396 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 433-451, 2004 3. O inciso IV do referido art. 12, quando condiciona o resgate antecipado a que as instituições de ensino superior ‘não figurem como litigantes ou litisconsortes em processos judiciais em que se discutam contribuições sociais arrecadadas pelo INSS ou contribuições relativas ao salário-educação.’, aparentemente afronta a garantia constitucional inserida no art. 5º, XXXV. 4. Medida cautelar deferida.” Desta forma, tendo sido suspensa a eficácia do artigo 19 e seus parágrafos da Lei nº 10.260/2001, tenho que os requisitos a serem cumpridos pela parte impetrante para fazer jus à imunidade são aqueles previstos no artigo 55 da Lei nº 8.212/91, na sua redação original, os quais, como nos dão conta os autos, estão satisfeitos. Nessas condições, reconhecida a condição de entidade beneficente e, portanto, favorecida com a imunidade tributária de que trata o parágrafo 7º do artigo 195 da Constituição Federal, é de se conceder a segurança pleiteada. Dispositivo Isso posto, dou provimento à apelação das impetrantes e nego provimento ao apelo do INSS e à remessa oficial, nos termos da fundamentação. É o voto. APELAÇÃO CÍVEL Nº 2002.04.01.031415-2/RS Relatora: A Exma. Sra. Desa. Federal Maria Lúcia Luz Leiria Apelante: Instituto Nacional do Seguro Social - INSS Advogada: Dra. Mariana Gomes de Castilhos Apelada: Construtora Sebben Ltda. Advogado: Dr. Hildo Wollmann Remetente: Juízo Federal da 3ª Vara das Execuções Fiscais R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 433-451, 2004 397 de Porto Alegre/RS EMENTA Responsabilidade do contratante e empreiteiro. Solidariedade. Aferição indireta. Liquidez e certeza do título. 1. Na vigência da Emenda Constitucional 8/77, as contribuições previdenciárias não tinham reconhecida a natureza jurídica tributária, sujeitando-se a prazo prescricional de 30 anos. Contudo, a partir da Constituição Federal de 1988, as contribuições previdenciárias passaram a ser consideradas como tributos, observando o disposto no Código Tributário Nacional para verificação de prescrição e decadência. 2. Existe, sim, responsabilidade solidária, sem benefício de ordem, decorrente de lei, entre o contratante dos serviços e subempreiteiros no que diz respeito ao recolhimento das contribuições previdenciárias. E tal dispositivo objetiva coibir a sonegação fiscal, facilitando a fiscalização das obras de construção civil pela autarquia. 3. A solidariedade sem benefício de ordem decorre da aplicabilidade das normas do Código Tributário Nacional, em especial de seu artigo 124, às contribuições previdenciárias, a partir da promulgação da Constituição de 1988. Por outro lado, no que diz respeito às parcelas devidas anteriores à Constituição Federal, não subsiste tal regra, uma vez que a CLPS, lei aplicável à época, não dispunha nesse sentido. Aliás, o entendimento consubstanciado na Súmula 126 do extinto TFR era justamente de que havia benefício de ordem entre o contratante dos serviços de mão-de-obra e o construtor. 4. Dessa forma, deve-se afastar, em relação às contribuições anteriores à promulgação da Constituição Federal, a cobrança baseada na responsabilidade solidária entre contratante dos serviços e empreiteiros, sem benefício de ordem, posto que não era essa a hipótese legal. 5. Todavia, quanto às contribuições posteriores à Constituição Federal e não fulminadas pela decadência, em face da existência de responsabilidade solidária, era prescindível a verificação dos documentos dos subempreiteiros pelo INSS, cuja conduta de fiscalizar diretamente a construtora não configurou irregularidade. Era sim ônus da embargante comprovar que o débito não mais existia, ou seja, era seu dever comprovar a realização dos pagamentos e o recolhimento das contribuições 398 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 433-451, 2004 devidas, na forma da lei. Contudo, assim não procedeu. 6. Nos procedimentos fiscalizatórios, em regra, a fiscalização deve se ater à escrita contábil e demais documentos apresentados pela empresa fiscalizada. A exceção, todavia, dá-se quando há sonegação ou recusa de apresentação da escrita contábil e/ou dos documentos pertinentes, bem como quando houver desconsideração do material por irregularidade. Nessa situação, pode o fisco proceder a uma aferição indireta, arbitrando o valor devido. 7. Apurada a ausência de documentos necessários à fiscalização – in casu, comprovantes do pagamento, não há que se falar em ilegalidade no procedimento da autarquia que procedeu à aferição indireta, uma vez que se trata de faculdade do INSS, prevista expressamente em lei e que objetiva apurar os valores devidos, quando os documentos disponíveis não se configuram confiáveis e suficientes. 8. A Certidão de Inscrição em Dívida Ativa tem presunção de liquidez e certeza, em face da observância das prescrições legais, sendo exigível, salvo apresentação de prova robusta e inequívoca. Não havendo aponte de irregularidade ou erro específico no cálculo do montante devido, resta incólume a presunção de exigibilidade do título. ACÓRDÃO Vistos e relatados estes autos entre as partes acima indicadas, decide a Primeira Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por unanimidade, dar parcial provimento à apelação e à remessa oficial, nos termos do relatório, voto e notas taquigráficas que ficam fazendo parte integrante do presente julgado. Porto Alegre, 3 de dezembro de 2003. Desa. Federal Maria Lúcia Luz Leiria, Relatora. RELATÓRIO A Exma. Sra. Desa. Federal Maria Lúcia Luz Leiria: Trata-se de recurso de apelação e remessa oficial interpostos contra sentença (fls. 132-139) que julgou procedentes embargos à execução fiscal. Em suas razões de apelo (fls. 142-153), sustentou o INSS basicamente que: a) há responsabilidade solidária entre o contratante da mão-de-obra e o empreiteiro; b) a responsabilidade solidária só pode ser ilidida pela R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 433-451, 2004 399 comprovação do recolhimento prévio das contribuições, consoante disposição legal; c) não se deu a prescrição das contribuições devidas até 05.10.88, acolhida pelo Juízo de 1º Grau; d) não se deu a decadência das contribuições devidas no período posterior à Constituição Federal de 1988 até 31.12.89. Com contra-razões às fls. 156-160, subiram os autos. É o relatório. VOTO A Exma. Sra. Desa. Federal Maria Lúcia Luz Leiria: Preliminarmente, cumpre verificar se há ocorrência de prescrição ou decadência no caso em tela. O débito fiscal objeto da presente execução diz respeito ao pagamento de contribuições previdenciárias, compreendendo parcelas devidas entre janeiro de 1985 a março de 1991. O apelante alega que as parcelas anteriores à Constituição Federal de 1988 não estão prescritas porquanto o prazo para a cobrança desses valores seria de trinta anos. Ainda, alega não ter se dado a decadência na forma acolhida pelo MM. Juízo a quo, posto que a contagem do prazo deveria se dar conforme interpretação conjunta dos artigos 173, I, e 150, § 4º, do Código Tributário Nacional. No caso em tela, tenho que merece reforma a sentença prolatada pelo MM. Juízo a quo. Na vigência da Emenda Constitucional 8/77, as contribuições previdenciárias não tinham reconhecida a natureza jurídica tributária, sujeitando-se a prazo prescricional de 30 anos. Contudo, a partir da Constituição Federal de 1988, as contribuições previdenciárias passaram a ser consideradas como tributos, observando o disposto no Código Tributário Nacional para verificação de prescrição e decadência. É o que se lê da ementa, que ora transcrevo, in verbis: “PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. EXECUÇÃO FISCAL. CONTRIBUIÇÕES PREVIDENCIÁRIAS E AO FGTS. PRESCRIÇÃO E DECADÊNCIA. PRAZO DE TRINTA ANOS. O FGTS e as contribuições previdenciárias só tiveram a natureza jurídica concebida como tributária até o advento da emenda constitucional num. 8/77, quando perderam essa característica e passaram a ser consideradas contribuições sociais, cujo prazo de prescrição e decadência, não mais regulado pelo Código Tributário Nacional, ficou 400 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 433-451, 2004 estabelecido em trinta anos. Precedentes. Recurso a que negou provimento. Decisão unânime.” (REsp 97926/SP, Fonte DJ de 11.11.96, p. 43674, Relator Min. Demócrito Reinaldo, julgado em 10.10.96, 1ª Turma) Assim, não há que se falar em prescrição das parcelas devidas no período compreendido entre 01/85 e 05.10.88, posto que o prazo do INSS para a cobrança do débito é de trinta anos. Quanto às parcelas devidas após a Constituição Federal, as quais seguem as regras do Código Tributário Nacional, tenho que acertada a decisão do MM. Juízo de 1º Grau. Isso porque, da ocorrência do fato gerador é que corre o prazo decadencial de cinco anos para a constituição do crédito tributário, a qual se dá pelo lançamento, que o torna exigível. Nos termos do artigo 173, I, do Código Tributário Nacional, conta-se o prazo do primeiro dia do exercício seguinte àquele em que o lançamento poderia ter sido efetuado. Assim, sendo o débito em questão relativo 11.88 a 03.91, operar-se-ia a decadência nos dias 1º.01.94, 1º.01.95, 1º.01.96 e 1º.01.97, respectivamente. Conforme se lê do documento das fls. 8 e seguintes, a notificação fiscal de lançamento se deu em 30.05.95, fora, portanto, do prazo legal, em relação aos débitos compreendidos entre 11.88 e 12.89. Inscrito em dívida ativa o crédito fiscal, inicia-se o prazo prescricional de que trata o artigo 174 do CTN, também de cinco anos, para a conseqüente execução fiscal, interrompendo-se o prazo pela citação pessoal do devedor, nos termos do artigo 174 do CTN. Esse prazo teria seu fim em 30.05.2000. Conforme o documento da fl. 02 dos autos em apenso, a inicial da execução fiscal data de 13.11.96, dentro do prazo legal. No mérito, impõe-se ressaltar que existe, sim, responsabilidade solidária, sem benefício de ordem, decorrente de lei, entre o contratante dos serviços e subempreiteiros no que diz respeito ao recolhimento das contribuições previdenciárias. E tal dispositivo objetiva coibir a sonegação fiscal, facilitando a fiscalização das obras de construção civil pela autarquia. Isso porque, em casos como o em tela, em que existem dezenas de subempreiteiras contratadas (fls. 103 e seguintes), seria ineficiente, quase inviável, exigir que a fiscalização se dirigisse a cada uma delas, quando o contratante do serviço de mão-de-obra tem o dever legal de responder pelo pagamento. A centralização da fiscalização no contratante, antes de contrariar a lei, atende a um mandamento legal, facilitando a R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 433-451, 2004 401 arrecadação e coibindo a sonegação em prejuízo dos segurados. Não é outro o entendimento desta Corte, conforme se lê das ementas, que ora transcrevo, in verbis: “EXECUÇÃO FISCAL. EMBARGOS. CONTRIBUIÇÕES PREVIDENCIÁRIAS. SOLIDARIEDADE DO CONTRATANTE DOS SERVIÇOS. ART. 31 DA LEI 8.212/91. REQUISITOS DA CDA. PRESUNÇÃO DE LIQUIDEZ E CERTEZA. CONDOMÍNIO. AFERIÇÃO INDIRETA. 1. Cuidando-se de uma das condições da ação, isto é, legitimidade de parte, cabível o conhecimento da alegação em qualquer grau de jurisdição. 2. A solidariedade pelo pagamento das contribuições previdenciárias prevista no art. 31, caput, em sua redação original, não comporta benefício de ordem, consoante dispõe o art. 124 do CTN. 3. Presentes os requisitos legais e indicada a legislação pertinente a cada acréscimo, não há falar em nulidade do título executivo. 4. A presunção de liquidez e certeza da CDA apenas pode ser elidida mediante apresentação de provas inequívocas. 5. Nos termos do art.33, § 4º, da Lei 8.212/91, com relação à execução de obra de construção civil, o condomínio deve apresentar prova regular e formalizada do montante dos salários pagos. Caso contrário, este será apurado mediante cálculo da mão-de-obra empregada, proporcional à área construída e ao padrão de execução da obra. 6. No caso em tela, desde logo se conclui que a autoridade administrativa, ao efetuar o lançamento das exações que reputava devidas, decorrentes da diferença entre o que o Embargante recolheu e o que deveria ter pago, fundamentou o procedimento de forma adequada, tendo referido os vícios e deficiências da escrituração e que deram a necessária legitimidade ao arbitramento efetuado.” (TRF – 4ª Região, Processo: AC 2002.04.01.028244-8 UF: SC, Segunda Turma, Data da Decisão: 17.09.2002, Fonte DJU de 09.10.2002, p. 661, Relator Juiz Dirceu de Almeida Soares) “AGRAVO DE INSTRUMENTO. TRIBUTÁRIO. SOLIDARIEDADE PASSIVA ENTRE CONTRATANTE E O EXECUTOR DOS SERVIÇOS. ARTS. 31 DA LEI 8.212/91 E 124 DO CÓDIGO TRIBUTÁRIO NACIONAL. DIREITO DE REGRESSO. AFERIÇÃO INDIRETA. 1. A teor do que estabelece o parágrafo único do art. 124 do CTN, havendo solidariedade no débito, não há falar em benefício de ordem. 2. Ao contratante é assegurado o direito de regresso em relação ao executor dos serviços, ressalvado inclusive o direito à retenção de importâncias para a garantia do cumprimento da obrigação. 3. O INSS poderá proceder à aferição indireta do tributo nas hipóteses previstas no art. 33, PAR-6º, da Lei 8.212/91.” (TRF – 4ª Região, Processo: AI 1999.04.01.0101623 UF: PR, Primeira Turma, Data da Decisão: 01.06.99, Fonte DJ de 04.08.99, p. 535, Relator Juiz Vladimir Freitas) Cumpre remarcar que a solidariedade sem benefício de ordem de402 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 433-451, 2004 corre da aplicabilidade das normas do Código Tributário Nacional, em especial de seu artigo 124, às contribuições previdenciárias, a partir da promulgação da Constituição de 1988. Por outro lado, contudo, assiste razão à embargante no que diz respeito às parcelas devidas anteriores à Constituição Federal, uma vez que a CLPS, lei aplicável à época, não dispunha nesse sentido. Aliás, o entendimento consubstanciado na Súmula 126 do extinto TFR era justamente de que havia benefício de ordem entre o contratante dos serviços de mão-de-obra e o construtor. Dessa forma, deve-se afastar, em relação às contribuições anteriores à promulgação da Constituição Federal, a cobrança baseada na responsabilidade solidária entre contratante dos serviços e empreiteiros, sem benefício de ordem, posto que não era essa a hipótese legal. Todavia, quanto às contribuições posteriores à Constituição Federal e não fulminadas pela decadência, em face da existência de responsabilidade solidária, tenho que era prescindível a verificação dos documentos dos subempreiteiros pelo INSS, cuja conduta de fiscalizar diretamente a construtora não configurou irregularidade. Era, sim, ônus da embargante comprovar que o débito não mais existia, ou seja, era seu dever comprovar a realização dos pagamentos e o recolhimento das contribuições devidas, na forma da lei. Contudo, assim não procedeu. Ainda, não verifico ilegalidade no procedimento da autarquia em realizar aferição indireta nessa situação. Nos procedimentos fiscalizatórios, em regra, a fiscalização deve se ater à escrita contábil e demais documentos apresentados pela empresa fiscalizada. A exceção, todavia, dá-se quando há sonegação ou recusa de apresentação da escrita contábil e/ou os documentos pertinentes, bem como quando houver desconsideração do material por irregularidade. Nessa situação, pode o fisco proceder a uma aferição indireta, arbitrando o valor devido. Ocorre que, no caso em tela, o INSS, ao realizar a fiscalização, não obteve os documentos e comprovantes de recolhimento pertinentes, razão pela qual passou ao arbitramento do valor devido. O embargante se insurge contra a aferição, alegando que não poderia ter sido realizada, uma vez que foi apresentada escrita contábil. Todavia, tenho que não se verifica in casu atuação da autarquia em desconformidade com a lei. Isso porque a aferição indireta é cabível quando há irregularidade da escrita fiscal, bem como quando estão ausentes docu403 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 433-451, 2004 mentos necessários à fiscalização. Apurada a ausência de documentos necessários à fiscalização – in casu, comprovantes do pagamento, não há que se falar em ilegalidade no procedimento da autarquia que procedeu à aferição indireta, uma vez que se trata de faculdade do INSS, prevista expressamente em lei e que objetiva apurar os valores devidos, quando os documentos disponíveis não se configuram confiáveis e suficientes. A Certidão de Inscrição em Dívida Ativa tem presunção de liquidez e certeza, em face da observância das prescrições legais, sendo exigível, salvo apresentação de prova robusta e inequívoca. Não havendo aponte de irregularidade ou erro específico no cálculo do montante devido, resta incólume a presunção de exigibilidade do título. Quanto à aferição do valor devido em percentual do valor das notas fiscais, tenho que acertada, uma vez que os parâmetros para arbitramento do valor das contribuições devidas são bastante amplos, daí por que é razoável uma aferição indireta baseada em percentual dos valores consignados nas respectivas notas fiscais para pagamento da mão-de-obra, entre outros elementos. Tendo em vista o provimento parcial do apelo, configurando sucumbência recíproca, condeno cada uma das partes a arcar com os honorários de seu patrono, consoante dispõe o art. 21 do Código de Processo Civil, estipulados em 10% do valor dos embargos. Tenho por prequestionados os artigos 124, 150, § 4º, e 173, I, do Código Tributário Nacional; art. 21 do Código de Processo Civil; 139, caput e parágrafos, da CLPS; 30 da Lei nº 8.212/91; 144 da Lei nº 3.807/60. Diante do exposto, voto no sentido de dar parcial provimento à apelação e à remessa oficial, para acolher a alegação de que não se deu a prescrição das parcelas devidas anteriores à Constituição Federal de 1988, em relação às quais deve-se observar o benefício de ordem; bem como para julgar procedente a cobrança das parcelas posteriores à Constituição Federal de 1988 não fulminadas pela decadência, reconhecendo, in casu, a configuração de responsabilidade solidária, sem benefício de ordem, conforme fundamentação supra. 404 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 433-451, 2004 AGRAVO DE INSTRUMENTO Nº 2002.04.01.054086-3/SC Relator: O Exmo. Sr. Des. Federal Vilson Darós Agravante: Instituto Nacional do Seguro Social - INSS Advogada: Dra. Mariana Gomes de Castilhos Agravados: Reunidas S/A Transportes Coletivos e outros Advogados: Drs. Gerson Vanzin Moura da Silva e outros EMENTA Penhora e garantia do juízo. Admissibilidade dos embargos à execução. O fato de a penhora realizada não atingir todo o débito exeqüendo, sendo insuficiente para garantir a execução, é questão que não inibe o recebimento dos embargos. A condição de admissibilidade dos embargos à execução é encontrar-se seguro o juízo através de penhora, e não que o valor do bem constritado ou a quantia penhorada sejam suficientes, nada impedindo que o credor requeira oportunamente reforço de penhora. ACÓRDÃO Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide a Egrégia Segunda Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por unanimidade, negar provimento ao agravo de instrumento e julgar prejudicado o agravo regimental, nos termos do relatório e notas taquigráficas que ficam fazendo parte integrante do presente julgado. Porto Alegre, 11 de março de 2003. Des. Federal Vilson Darós, Relator. RELATÓRIO O Exmo. Sr. Des. Federal Vilson Darós: Cuida-se de agravo de instrumento interposto da decisão do MM. Juízo a quo que recebeu os embargos à execução opostos, suspendendo a execução fiscal. Insurge-se o INSS contra tal decisão, asseverando, em apertada síntese, que, para oferecimento de embargos à execução, é imprescindível que o juízo da execução fique seguro pela penhora devidamente eficaz. Alega que a penhora não é suficiente, porque, além de ser inferior ao valor do crédito exeqüendo, também garante outros créditos, que, somados, ultrapassam R$ 9.000.000,00 (nove milhões de reais). Anexa avaliação oficial efetuada em 19 de novembro de 2002 – fls. 42-43 –, 405 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 433-451, 2004 dando conta de que o bem penhorado foi avaliado em R$ 1.311.536,70 (um milhão trezentos e onze mil quinhentos e trinta e seis reais e setenta centavos), preço, portanto, inferior ao débito da executada. Pleiteou a concessão do efeito suspensivo ativo, que foi indeferido. Dessa decisão, agravou regimentalmente o INSS. Intimada, a parte agravada ofereceu resposta, retornando os autos para julgamento. É o relatório. VOTO O Exmo. Sr. Des. Federal Vilson Darós: Tenho que a insurgência da agravante não merece prosperar. Vejamos. Dispõe o parágrafo 1º do art. 16 da Lei das Execuções Fiscais que não serão admitidos embargos do executado antes de garantida a execução. A penhora realizada garante o juízo e oportuniza a oposição de embargos. Após sua realização, não cabe ao juiz indagar da sua adequação ou não, uma vez já satisfeito o requisito de admissibilidade dos embargos, qual seja, a existência de penhora. Por outro lado, se o valor do bem penhorado for inferior ao débito, cabe ao exeqüente requerer o reforço de penhora, mas isso não acarreta a suspensão dos embargos. Nesse sentido, são as decisões a seguir ementadas: “EXECUÇÃO FISCAL. PENHORA E GARANTIA DO JUÍZO. ADMISSIBILIDADE DOS EMBARGOS A EXECUÇÃO. REFORÇO DE PENHORA. O fato de a penhora realizada não atingir todo o débito a final cobrado, sendo insuficiente para garantir a execução, é questão que não inibe o recebimento dos embargos. A condição de admissibilidade dos embargos de devedor é encontrar-se seguro o juízo através de penhora, e não que o valor do bem constritado ou a quantia penhorada sejam suficientes. A complementação da quantia ou reforço de penhora podem dar-se no curso dos embargos ou após o seu julgamento (JTAERGS 178/106 ).” (Catálogo: unânime. TR4 - Relator: Juíza Tania Escobar - Acórdão - RIP: 04053949- Decisão: 23.05.96 - Proc: AG - Num: 0405394-9 Ano: 96 UF: RS - Turma: 02 - Região: 04 - Agravo de Instrumento - DJ - Data: 05.06.96 - p. 038398) “AGRAVO DE INSTRUMENTO. EMBARGOS À EXECUÇÃO FISCAL. REFORÇO DE PENHORA. PRÉVIA AVALIAÇÃO. 1. O que a lei exige como pressuposto de admissibilidade dos embargos à execução é a segurança do juízo com a penhora. 406 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 433-451, 2004 2. Se o valor do bem penhorado for inferior ao débito, cabe ao exeqüente requerer o reforço de penhora, mas isso não acarreta a suspensão dos embargos. 3. Não há necessidade de laudo de avaliação feito por avaliador oficial se há certidão nos autos, que tem fé pública, e o valor da alíquota constante estava atualizado na época da penhora. 4. Agravo de Instrumento parcialmente provido.” (Catálogo: unânime. TR4 - Relator: Juiz Fábio Bittencourt da Rosa - Acórdão - RIP: 04488368 - Decisão: 05.08.97 - Proc: AG - Num: 0448836-8 - Ano: 96 UF: SC - Turma: 01 Região: 04 - Agravo de Instrumento - DJ - Data: 03.09.97 - p. 070663) No caso em comento, bens foram penhorados, garantindo, assim, ao devedor a oposição de embargos. A necessidade de reforçar a penhora ou até substituir bens já penhorados não reabre o prazo para os embargos, não havendo, portanto, prejuízo algum à exeqüente, que poderá exercer o preconizado no art. 15 da Lei de Execuções Fiscais. Veja-se, acerca da matéria, a jurisprudência a seguir ementada: “EMBARGOS À EXECUÇÃO. PENHORA INSUFICIENTE. ART. 737 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. SUSPENSÃO DOS EMBARGOS. DISSÍDIO. 1. A insuficiência da penhora para garantir o Juízo não acarreta a suspensão dos embargos, podendo, como no caso, ser determinado, apenas, o respectivo reforço. 2. Recurso especial conhecido e desprovido.” (STJ - Superior Tribunal de Justiça Classe: REsp - Recurso Especial - 345827 Processo: 200101212817 UF: RS Órgão Julgador: Terceira Turma - Data da decisão: 18.06.2002 Documento: STJ000446235 Fonte: DJ Data: 26.08.2002 - p.214, Relator(a) Carlos Alberto Menezes Direito) “EMBARGOS À EXECUÇÃO. PRAZO PARA INTERPOSIÇÃO. TERMO INICIAL. REFORÇO DE PENHORA. INTEMPESTIVIDADE. 1. O prazo para interposição dos embargos à execução é uno, inadmitindo fracionamento. 2. Aceito o bem penhorado como suficiente para a garantia da instância, passa a fluir o prazo para os embargos, e prossegue a execução. 3. Incabível a reabertura sistemática do prazo a cada nova penhora. 4. Apelação improvida.” (Catálogo: unânime. TR4 - Relator: Juiz Fábio Bittencourt da Rosa - Acórdão - RIP: 04397944 - Decisão: 23.08.94 - Proc.: AC - Num: 0439794-4 Ano: 93 UF: SC - Turma: 03 - Região: 04 - Apelação Cível - DJ - Data: 21.09.94 p. 052837) “EXECUÇÃO FISCAL - EMBARGOS DO DEVEDOR - REFORÇO DE PENHORA – POSSIBILIDADE. I - O artigo 15, inciso II, da Lei nº 6.830/80 dispõe que será deferido pelo Juiz à Fazenda Pública o reforço da penhora insuficiente, que se apura pela avaliação ou pela alienação judicial, em qualquer fase do processo, ou seja, mesmo quando em curso embargos do devedor, e da primeira penhora que passa a correr o prazo para a interposição R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 433-451, 2004 407 ou oferecimento de embargos. O reforço é um incidente da execução que será deferido pelo Juiz a requerimento do credor e o devedor poderá oferecer recurso próprio. Caso não concorde com tal reforço, ainda assim, o prazo para embargos não fica renovado, vez que a execução é una e indivisível. II - Recurso improvido, para manter a sentença.” (TR2 - Relator: Juiz Henry Barbosa - Acórdão - Decisão: 19.04.95 - Proc: AC - Num: 0220691-2 - Ano: 93 - UF: ES Turma: 01 - Região: 02 - Apelação Cível - DJ Data: 27.06.95)” Isso posto, nego provimento ao agravo de instrumento e julgo prejudicado o agravo regimental, nos termos da fundamentação. É o voto. APELAÇÃO EM MANDADO DE SEGURANÇA Nº 2002.70.00.014508-6/PR Relatora: A Exma. Sra. Desa. Federal Maria Lúcia Luz Leiria Apelante: Município de Curitiba Advogados: Drs. Ronnie Kohler e outro Apelado: Ordem dos Advogados do Brasil - Secção do Paraná Advogado: Dr. João Marcello Tramujas Bassaneze Remetente: Juízo Substituto da 2ª Vara Federal de Curitiba/PR EMENTA Tributário. ISS. Sociedades de advocacia. 1. Não há irregularidade na representação da OAB, uma vez que os Conselhos Seccionais têm personalidade jurídica própria, com jurisdição sobre os respectivos territórios, de acordo com o disposto nos artigos 45, §2º, e 57 da Lei nº 8.906/94. Assim, prescindem de autorização individual para a defesa da classe dos advogados (artigo 44, II, da Lei nº 8.906/94). 2. Não há in casu incompetência da Justiça Federal, tendo em vista que a Ordem dos Advogados do Brasil tem, sim, natureza jurídica de 408 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 433-451, 2004 autarquia, revestida de caráter especial. 3. Existe prevenção contra o eventual ato de autoridade consubstanciado na autuação por falta de recolhimento de tributo (ISS), bem como na não-admissão no regime fixo anual de tributação por meio de ISS de sociedades de advocacia registradas no Município de Curitiba, independentemente do número de trabalhadores em relação ao número de sócios, pelo que cabível a impetração de mandado de segurança. 4. A Lei Complementar municipal 40/01 inovou, ampliando a prescrição legal aplicável, formulando exigência que acaba por impor condições diferentes às sociedades dedicadas às mesmas atividades, baseadas em fator irrelevante para o desempenho dos serviços. 5. Ora, uma vez que o Decreto-Lei nº 406/68 foi recepcionado pela nova ordem constitucional, a lei complementar municipal se apresenta como instrumento inidôneo a alterar previsão de norma geral, tendo excedido sua competência. 6. A imposição de condição – in casu possuir no máximo dois trabalhadores em relação a cada sócio – em nada modifica a condição do serviço prestado pela sociedade de advocacia contribuinte de ISS, razão pela qual excluir do regime fixo anual de tributação pelo ISS sob esse fundamento ofende a isonomia e contraria a Constituição Federal. ACÓRDÃO Vistos e relatados estes autos entre as partes acima indicadas, decide a 1ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por unanimidade, negar provimento à apelação e à remessa oficial, nos termos do relatório, voto e notas taquigráficas que ficam fazendo parte integrante do presente julgado. Porto Alegre, 10 de dezembro de 2003. Desa. Federal Maria Lúcia Luz Leiria, Relatora. RELATÓRIO A Exma. Sra. Desa. Federal Maria Lúcia Luz Leiria: Trata-se de recurso de apelação e remessa oficial, em Mandado de Segurança, com pedido de provimento liminar, interpostos contra sentença (fls. 107121) que concedeu a segurança para determinar à autoridade impetrada que inclua no regime fixo anual de tributação por meio do ISS todas as sociedades profissionais de advocacia registradas junto à impetrante no 409 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 433-451, 2004 Município de Curitiba, independentemente do número de trabalhadores que possuam em relação a cada sócio. O provimento liminar foi deferido às fls. 82-88. Em suas razões de apelo (fls. 127-160), sustentou o Município de Curitiba, basicamente, que: a) há irregularidade na representação da OAB; b) há incompetência da Justiça Federal no caso; c) indevida a utilização de ação mandamental; d) o art. 10, V, da Lei Complementar Municipal atende ao princípio da pessoalidade. Com contra-razões às fls. 207-212, subiram os autos. O Ministério Público Federal aviou parecer (fls. 218-221), opinando pelo não-provimento do recurso de apelação. É o relatório. VOTO A Exma. Sra. Desa. Federal Maria Lúcia Luz Leiria: No caso em tela, tenho que não merece reforma a sentença do MM. Juízo de 1º Grau. Primeiramente, verifico que não há irregularidade na representação da OAB. Isso porque os Conselhos Seccionais têm personalidade jurídica própria, com jurisdição sobre os respectivos territórios, de acordo com o disposto nos artigos 45, § 2º, e 57 da Lei nº 8.906/94. Assim, prescindem de autorização individual para a defesa da classe dos advogados. (artigo 44, II, da Lei nº 8.906/94) Também não há in casu incompetência da Justiça Federal, uma vez que a Ordem dos Advogados do Brasil tem, sim, natureza jurídica de autarquia, revestida de caráter especial. Melhor sorte não merece a preliminar de inadequação da via eleita, sendo cabível a ação mandamental, tendo em vista que existe prevenção contra o eventual ato de autoridade consubstanciado na autuação por falta de recolhimento de tributo (ISS), bem como na não-admissão no regime fixo anual de tributação por meio de ISS de sociedades de advocacia registradas no Município de Curitiba, independentemente do número de trabalhadores em relação ao número de sócios. Quanto ao mérito, noto que o impetrado funda seu procedimento no artigo 10, V, da Lei Complementar Municipal de Curitiba nº 40/01, que dispõe, in verbis: “Art. 10. As sociedades profissionais, cujos serviços se referirem aos itens 1, 4, 8, 25, 52, 88, 89, 90, 91 e 92 da lista de serviços do anexo I, que faz parte desta Lei, 410 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 433-451, 2004 ficarão sujeitas ao imposto na forma fixa, multiplicado pelo número de profissionais habilitados, sócios, empregados ou não, que prestem serviço em nome da sociedade, embora assumindo responsabilidade pessoal, desde que: ... V – possua para auxílio de sua atividade, no máximo, dois trabalhadores com ou sem vínculo empregatício, em relação a cada sócio;” Por outro lado, quanto ao ISS dispõe o Decreto-Lei nº 406/68 – norma geral de tributação: “Art. 9º. A base de cálculo do imposto é o preço do serviço: § 1º Quando se tratar de prestação de serviços sob a forma de trabalho pessoal do próprio contribuinte, o imposto será calculado, por meio de alíquotas fixas ou variáveis, em função da natureza do serviço ou de outros fatores pertinentes, nestes não compreendida a importância paga a título de remuneração do próprio trabalho. ... § 3º Quando os serviços a que se referem os itens 1, 4, 8, 25, 52, 88, 89, 90, 91 e 92 da lista anexa forem prestados por sociedades, estas ficarão sujeitas ao imposto na forma do § 1º, calculado em relação a cada profissional habilitado, sócio, empregado ou não, que preste serviços em nome da sociedade, embora assumindo responsabilidade pessoal, nos termos da lei aplicável.” O Supremo Tribunal Federal reconheceu a recepção dos dispositivos acima transcritos do referido decreto-lei, entendendo que não apenas não contraria a Constituição Federal, como também seguem a regra do artigo 146, III, a, da Carta Magna. (Informativo 169 do STF: RE 236.604-PR. Precedentes: RE220.323-MG, RE 200324-RJ) Como se lê, a lei complementar municipal inovou, ampliando a prescrição legal aplicável, formulando exigência que acaba por impor condições diferentes às sociedades dedicadas às mesmas atividades, baseadas em fator irrelevante para o desempenho dos serviços. Ora, uma vez que o referido decreto-lei foi recepcionado pela nova ordem constitucional, a lei complementar municipal se apresenta como instrumento inidôneo a alterar previsão de norma geral, tendo excedido sua competência. Se o estabelecido no artigo 9º, §§ 1º e 3º, do Decreto-Lei 406/68 é constitucional, forçoso concluir que a disposição da lei que o contraria não o é. A imposição de condição – in casu possuir no máximo dois trabalhadores em relação a cada sócio – em nada modifica a condição do serviço prestado pela sociedade de advocacia contribuinte de ISS, razão pela qual R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 453-459, 2004 411 excluir do regime fixo anual de tributação pelo ISS sob esse fundamento ofende a isonomia e contraria a Constituição Federal. Aliás, não é outro o entendimento do egrégio Superior Tribunal de Justiça, tal como se lê da ementa, que ora transcrevo, in verbis: “Tributário. ISS. Sociedade Uniprofissional de Prestação de Serviço. Advogado. Decreto-Lei 406/68 (art. 9º, §§ 1º e 3º). Decreto-Lei 834/69. Lei Complementar nº 56/87. Leis Municipais/RJ 691/84 e 2080/93. 1. Sociedade profissional, sem caráter empresarial ou comercial, integrada por advogados para a prestação de serviços especializados, com responsabilidade pessoal, beneficia-se de tratamento fiscal diferenciado previsto em lei de específica regência (Dec. Lei 406/68, art. 9º, §§ 1º e 3º). 2. Precedentes jurisprudenciais. 3. Recurso provido.” (REsp nº 199700224481 – RJ, 1ª Turma, Data da decisão: 31.08.99, Fonte DJ de 03.11.99, p.81 e RSTJ v. 129, p. 79, Relator Milton Luiz Pereira) Tenho por prequestionados os artigos: 109, I, e 146, III, da Constituição Federal; 9º do Decreto-Lei 406/68; 45, § 2º, do Estatuto da OAB; 91 do CPC; 2-A da Lei nº 9.494/97. Diante do exposto, nego provimento à apelação e à remessa oficial. É o voto. APELAÇÃO EM MANDADO DE SEGURANÇA Nº 2002.71.05.000289-3/RS Relator: O Exmo. Sr. Des. Federal Surreaux Chagas Apelante: Remi Umberto Klockner Advogados: Drs. Geraldo Diehl Xavier e outros Apelado: Instituto Nacional do Seguro Social - INSS Advogada: Dra. Mariana Gomes de Castilhos 412 EMENTA R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 453-459, 2004 Tributário. Contribuição previdenciária incidente sobre a produção agrícola. Funrural. Recepção pela Constituição Federal de 1988. Empregador rural. Leis nos 8.212/91, 8.540/92 e 8.870/94. No regime da Lei Complementar nº 11/71, a previdência dos trabalhadores rurais era custeada por duas modalidades de contribuição ao FUNRURAL, quais sejam, a devida pelos produtores rurais, incidente sobre o valor comercial dos produtos rurais (Lei Complementar 11/71, art. 15, I, c/c Lei 6.195/74, art. 5º), e a devida pelas empresas vinculadas à previdência social urbana, incidente sobre a folha de salários. (Lei Complementar 11/71, art. 15, II) A Lei nº 7.787/89 extinguiu a contribuição das empresas urbanas sobre a folha de salários em favor da previdência rural, mas não a incidente sobre a comercialização de produtos rurais, que foi recepcionada pela Constituição de 1988 e permaneceu exigível com advento da Lei nº 8.212/91. A nova lei apenas reduziu o campo de abrangência das contribuições sobre o resultado da produção rural, limitando-a aos produtores que desenvolviam a atividade sem empregados, denominados de segurados especiais. Com o advento das Leis 8.540/92 e 8.870/94, foi alargada a base de incidência das contribuições sobre a produção rural, sendo extensível aos produtores empregadores – pessoas físicas e jurídicas – que ficaram desonerados da contribuição sobre a folha de salários de seus empregados. A possibilidade de sucesso parcial na pretensão dependeria de ter havido indevido recolhimento de contribuições calculadas sobre a produção no período em que a lei desobrigou o produtor rural desta espécie de contribuição, substituindo-a pela incidente sobre a folha de salários, período esse que vai do início da vigência da Lei 8.212/91, em 05.12.91, até a edição da Lei 8.542/92, o que ensejaria eventual direito à compensação. Contudo, não há qualquer demonstração no caso de que tenha havido retenção indevida de contribuições incidentes sobre a comercialização da produção do autor ou, na qualidade de adquirente, sobre a produção de produtores rurais empregadores no período em questão, o que afasta a possibilidade de se acolher a pretensão sob esse fundamento. Apelação desprovida. ACÓRDÃO R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 453-459, 2004 413 Vistos e relatados estes autos entre as partes acima indicadas, decide a Segunda Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por unanimidade, negar provimento à apelação, nos termos do relatório, voto e notas taquigráficas que ficam fazendo parte integrante do presente julgado. Porto Alegre, 16 de setembro de 2003. Des. Federal Surreaux Chagas, Relator. RELATÓRIO O Exmo. Sr. Des. Federal Surreaux Chagas: Remi Umberto Klockner impetra Mandado de Segurança contra o Gerente Executivo do INSS em Ijuí/RS, objetivando o reconhecimento da inexigibilidade da contribuição incidente sobre a produção agrícola destinada ao FUNRURAL a partir da edição da Lei 7.787/89, cumulada com pedido de compensação do indébito. Alega que a contribuição ao FUNRURAL, instituída pela Lei Complementar nº 11/71, não foi recepcionada pela Constituição Federal de 1988; que esta Carta trouxe alterações substanciais no tocante ao sistema de custeio dos benefícios da seguridade social, segundo regras expressas, estabelecidas no art. 195, II, e § 8º; mas mesmo que se entenda que a contribuição ao FUNRURAL, juntamente com outras exações, tenha sido recepcionada pela CF/88, a contribuição restou definitivamente extinta a partir da vigência da Lei nº 7.787/89, em 01.09.89, uma vez que o respectivo percentual de 2,5% foi embutido na alíquota de 20% da contribuição sobre a folha de salário, instituída pelo art. 195, I, da CF. A autoridade coatora presta informações. O MM. Juízo, sentenciando, denega a segurança. Inconformado, o impetrante interpõe recurso de apelação, repisando os argumentos expendidos na inicial. Regularmente processado o recurso, sobem os autos. O Ministério Público opina pelo desprovimento do apelo da impetrante. É o relatório. VOTO O Exmo. Sr. Des. Federal Surreaux Chagas: O impetrante, produtor rural empregador pessoa física, postula a compensação das contribuições 414 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 453-459, 2004 previdenciárias incidentes sobre a comercialização da sua produção agrícola. Alega que a contribuição ao FUNRURAL, instituída pela Lei Complementar nº 11/71, não foi recepcionada pela Constituição Federal de 1988; que esta Carta trouxe alterações substanciais no tocante ao sistema de custeio dos benefícios da seguridade social, segundo regras expressas, estabelecidas no art. 195, II, e § 8º; mas mesmo que se entenda que a contribuição ao FUNRURAL, juntamente com outras exações, tenha sido recepcionada pela CF/88, a contribuição restou definitivamente extinta a partir da vigência da Lei nº 7.787/89, em 01.09.89, uma vez que o respectivo percentual de 2,5% foi embutido na alíquota de 20% da contribuição sobre a folha de salário, instituída pelo art. 195, I, da CF. A apreciação da pretensão torna necessário o exame da evolução histórica da legislação sobre as contribuições para o FUNRURAL. As contribuições para o FUNRURAL no regime da Lei Complementar nº 11/71 Anteriormente à unificação dos regimes de previdência urbana e rural levada a cabo pelas Leis 8.212 e 8.213/91 em atendimento ao preceito contido no art. 194, II, da CF/88, a previdência do trabalhador rural consistia no Programa de Assistência ao Trabalhador Rural – PRÓ-RURAL, cuja execução competia ao FUNRURAL – Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural, entidade autárquica. O custeio do PRÓ-RURAL derivava fundamentalmente de duas contribuições: uma, devida pelos produtores rurais, consistente em 2,5% sobre o valor comercial dos produtos rurais, e recolhida, em regra, pelo adquirente, consignatário ou cooperativa, após abater a contribuição do valor dos produtos (Lei Complementar 11/71, art. 15, I, c/c Lei 6.195/74, art. 5º); outra, devida pelas empresas vinculadas à previdência social urbana, incidente sobre a folha de salários, à alíquota de 2,4% (Lei Complementar 11/71, art. 15, II). Esta contribuição era recolhida juntamente com a contribuição devida à previdência urbana. As contribuições em tela foram recepcionadas pela Constituição Federal de 1988, conforme entendimento pacificado neste Tribunal. (AMS 95.04.14555-8, Rel. Des. Federal Vladimir Passos de Freitas, DJU de 23.12.98) A Lei 7.787/89 e a extinção da contribuição ao FUNRURAL devida 415 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 453-459, 2004 pelas empresas urbanas A contribuição devida para o FUNRURAL pelas empresas vinculadas à previdência urbana, incidente sobre a folha de salários, foi extinta expressamente a partir de setembro/89 pela Lei 7.787/89 (art. 3º, § 1º), quando a contribuição previdenciária das empresas rurais e urbanas foi unificada, à alíquota de 20% sobre a folha de salários. Contudo, a alteração produzida pela Lei 7.787/89 diz respeito apenas à contribuição devida ao FUNRURAL pelas empresas urbanas, incidente sobre a folha de salários. De fato, a contribuição para o FUNRURAL devida pelos produtores rurais, incidente sobre o resultado da comercialização, não foi atingida pela Lei 7.787/89. O Regime de Previdência Rural instituído pela Lei Complementar 11/71 persistiu até a regulamentação das Leis 8.212 e 8213/91, mantendo-se a contribuição referida destinada ao FUNRURAL. A propósito, a jurisprudência do STJ e deste TRF tem entendido que a contribuição social incidente sobre a produção agrícola não foi extinta pela Lei 7.787/89, passando a integrar o novo Plano de Custeio da previdência: “TRIBUTÁRIO. CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA. LEI 7.787, DE 1989. ART. 3. PAR. 1º. O art. 3, par. 1, da Lei 7.787, de 1989, suprimiu a contribuição sobre a folha de salários, prevista no art. 15, II, da Lei Complementar nº 11, de 1971, e não a contribuição incidente sobre o valor dos produtos rurais. Recurso conhecido e provido.” (STJ, 2ª Turma, REsp 168.920, Rel. Min. Ari Pargendler, DJU 03.08.98) “TRIBUTÁRIO. CONTRIBUIÇÃO SOCIAL. COMERCIALIZAÇÃO DE PRODUTOS RURAIS. EXIGIBILIDADE. ABATE DE AVES PRÓPRIAS. CONTRATO DE PARCERIA. FATO GERADOR. 1 A contribuição das empresas suprimida pela Lei nº 7.787/89 é aquela sobre a folha de salários destinada ao FUNRURAL, não a incidente sobre a comercialização de produtos rurais, no percentual de 2,5%, a qual permaneceu exigível mesmo após o advento da Lei nº 8.212/91, quando sua alíquota restou majorada para três por cento. (...)” (TRF4, 2ª Turma, AC 1999.04.01.094805-0/PR, Relator p/Acordão Des. Federal Élcio Pinheiro de Castro, DJU de 09.05.2001) O novo Plano de Custeio da Previdência - Lei 8.212/91 A instituição do novo Plano de Custeio da Previdência Social (Lei 8.212/91), com a unificação dos regimes de previdência urbana e rural, também não importou na extinção dessa forma de contribuição. Reduziu-se apenas o campo de sua abrangência, pois somente os produtores que desenvolviam a atividade sem empregados continuaram a contribuir sobre 416 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 453-459, 2004 o resultado da produção. A Lei 8.212/91, em sua redação original (art. 25), manteve a contribuição incidente sobre o resultado da comercialização, imputada aos então denominados segurados especiais (produtor rural individual, sem empregados, ou que exerce a atividade rural em regime de economia familiar), à alíquota de 3%. Esta forma de contribuição dos segurados especiais permanece até hoje, em seus princípios fundamentais. Outrossim, os demais produtores rurais empregadores, pessoas físicas equiparadas a autônomos pela legislação previdenciária (Lei 8.212/91, art. 12, V, a), bem como pessoas jurídicas (empresas rurais), passaram a recolher contribuições sobre a folha de salários de seus empregados (idem, art. 15, I e par. único, c/c art. 22), sistemática que se manteve até a edição das Leis 8.540/92 e 8.870/94, respectivamente. Portanto, ao ser instituído o novo Plano de Custeio da Previdência com a edição da Lei 8.212/91, os produtores rurais contribuíam para a Previdência ou sobre o resultado da comercialização – caso dos segurados especiais – ou sobre a folha de salários – caso dos produtores empregadores, pessoas físicas ou jurídicas. As Leis 8.540/92 e 8.870/94 e a extensão da contribuição incidente sobre a produção aos produtores rurais empregadores - pessoas físicas e pessoas jurídicas Posteriormente, o legislador entendeu por alargar a base de incidência das contribuições sobre a produção, em detrimento da incidente sobre a folha de salários. Inicialmente, os produtores rurais empregadores pessoas físicas voltaram a recolher sobre o resultado das vendas a partir da Lei 8.540/92, que deu nova redação ao art. 25 da Lei 8.212/91, atribuindo-lhes a obrigação de contribuir da mesma forma que os segurados especiais e exonerando-os da contribuição sobre a folha de salários de seus empregados (§ 5º do art. 22 da Lei 8.212/91, acrescido pela Lei 8.540/92). Num segundo momento, os empregadores rurais pessoas jurídicas também deixaram de recolher sobre a folha de salários e passaram a contribuir sobre a receita proveniente da comercialização de sua produção, conforme previsto no art. 25 da Lei 8.870, de 15.04.94: “Art. 25 - A contribuição prevista no art. 22 da Lei 8.212, de 24 de julho de 1991, devida à seguridade social pelo empregador, pessoa jurídica, que se dedique à produção rural, passa a ser a seguinte: I – dois e meio por cento da receita bruta proveniente da comercialização de sua R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 453-459, 2004 417 produção; II – um décimo por cento da receita bruta proveniente da comercialização de sua produção, para o financiamento da complementação das prestações por acidente do trabalho.” A forma de arrecadação é a mesma das contribuições do segurado especial, ou seja, o recolhimento compete ao adquirente, consignatário ou cooperativa. Empresas agroindustriais – Lei 8.870/94, art. 25, § 2º A Lei 8.870/94 ainda previu a incidência de contribuições previdenciárias sobre o valor comercial da produção no caso de empresas agroindustriais, promovendo a substituição da contribuição incidente sobre a folha de salários de sua parte agrícola pela contribuição “a ser calculada sobre o valor estimado da produção agrícola própria, considerado seu preço de mercado” (art. 25, § 2º). Assim, essas empresas agroindustriais contribuiriam de forma mista, com base na folha de salários no relativo à sua produção industrial e, no tocante à produção rural, com base no valor estimado da produção primária. Contudo, o STF declarou inconstitucional o § 2º do art. 25 daquela lei, que institui a contribuição calculada sobre o valor estimado da produção agrícola, sob o fundamento de que a contribuição incidente sobre esta base de cálculo, que não está prevista no texto constitucional, somente poderia ser instituída por lei complementar. O acórdão foi assim ementado: “AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. CONTRIBUIÇÃO DEVIDA À SEGURIDADE SOCIAL POR EMPREGADOR, PESSOA JURÍDICA, QUE SE DEDICA À PRODUÇÃO AGROINDUSTRIAL (§ 2º DO ART. 25 DA LEI Nº 8.870, DE 15.04.94, QUE ALTEROU O ART. 22 DA LEI 8.212, DE 24.07.91): CRIAÇÃO DE CONTRIBUIÇÃO QUANTO À PARTE AGRÍCOLA DA EMPRESA, TENDO POR BASE DE CÁLCULO O VALOR ESTIMADO DA PRODUÇÃO AGRÍCOLA PRÓPRIA, CONSIDERADO O SEU PREÇO DE MERCADO. DUPLA INCONSTITUCIONALIDADE (CF, ART. 195, I E SEU § 4º). PRELIMINAR: PERTINÊNCIA TEMÁTICA. 1. (...) 2. Mérito. O art. 195, I, da Constituição prevê a cobrança de contribuição social dos empregadores, incidente sobre a folha de salários, o faturamento e o lucro; desta forma, quando o § 2º do art. 25 da Lei 8.870/94 cria contribuição social sobre o valor estimado da produção agrícola própria, considerado o seu preço de mercado, é ele inconstitucional porque usa uma base de cálculo não prevista na lei maior. 3. O § 4º do art. 195 da Constituição prevê que a lei complementar pode instituir 418 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 453-459, 2004 outras fontes de receita para a seguridade social; desta forma, quando a Lei 8.870/94 serve-se de outras fontes, criando contribuição nova, além das expressamente previstas, é ela inconstitucional, porque é lei ordinária, insuscetível de veicular tal matéria. 4. Ação direta julgada procedente, por maioria, para declarar a inconstitucionalidade do § 2º do art. 25 da Lei 8.870/94.” (ADIn 1103-1, Rel. p/acórdão Min. Maurício Corrêa, DJU 25.04.97) Portanto, no caso, a inconstitucionalidade se resume às contribuições vertidas pelas empresas agroindustriais com base no valor estimativo da produção rural. Contudo, essa contribuição cuja inconstitucionalidade foi declarada não guarda nenhuma relação com a questão discutida nos autos. Com efeito, o impetrante, na condição de produtor rural, postula a repetição de contribuições incidentes sobre a comercialização de sua própria produção, não tendo retido nem recolhido contribuições devidas por empresas agroindustriais. Portanto, a declaração de inconstitucionalidade não aproveita ao autor, sendo impertinente a utilização da decisão do STF como argumento em prol de sua tese. A constitucionalidade da contribuição social incidente sobre o valor da produção agrícola Uma vez mapeada a evolução legislativa relativa à contribuição social incidente sobre a produção agrícola, é necessário que se enfrentem as alegações de incompatibilidade dessa contribuição com os preceitos contidos na Constituição Federal de 1988. A contribuição social incidente sobre o valor da produção não padece de inconstitucionalidade por não estar prevista em lei complementar. Com efeito, o Supremo Tribunal Federal já assentou que as contribuições para a Seguridade Social podem ser instituídas por lei ordinária quando compreendidas nas hipóteses do art. 195, I, da CF/88 (RREE 146.733 e 138.284). No caso em tela, a instituição de contribuição sobre o valor da produção rural subsume-se na hipótese de contribuição sobre a receita bruta ou faturamento (conceitos que se equivalem, segundo entendimento do STF), prevista no inciso I do art. 195 da CF/88. Ademais, como vimos, a contribuição sobre a produção agrícola sempre teve amparo na lei, sem solução de continuidade, sendo incorreto afirmar-se que ela teria sido extinta com a edição da Lei 7.787/89 e posteriormente reinstituída por ato administrativo. 419 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 Outrossim, o fato de o art. 195, § 8º, da CF/88 prever que os produtores rurais que exercem suas atividades em regime de economia familiar devam contribuir à Seguridade Social sobre o resultado da comercialização de produtos não exclui a possibilidade do legislador de determinar que o empregador também contribua para a previdência social em razão de seu faturamento. Esta base de cálculo está prevista no texto constitucional e são diversos os contribuintes sujeitos à exação nestes termos. Assim, pela redação da Carta Federal, a contribuição dos segurados especiais à Previdência Social somente pode ser feita daquela forma; contudo, isso não significa que outros não possam ser compelidos a pagar a exação com base no resultado da comercialização. Portanto, nos aspectos pertinentes ao caso dos autos, a contribuição não padece de qualquer inconstitucionalidade. Conclusões e o caso em exame Concluindo, a contribuição incidente sobre o resultado da comercialização da produção agrícola, instituída no regime previdenciário anterior, foi adotada pelo novo regime previdenciário, sem solução de continuidade. Essa forma de contribuição não foi extinta pela Lei 7.787/89. As modificações produzidas nessa contribuição restringiram-se às alíquotas e, temporariamente, à sujeição passiva. Os produtores individuais ou em regime de economia familiar, sem empregados, sempre recolheram dessa forma e assim continuam contribuindo. Os empregadores rurais também recolhem e recolheram contribuições sobre a produção, com exceção do período que vai desde o início da vigência da Lei 8.212/91, na sua redação original, até a vigência da Lei 8.542/92, no caso de empregadores pessoas físicas, ou da Lei 8.870/94, no caso de empregadores pessoas jurídicas, períodos nos quais suas contribuições incidiram sobre a folha de salários. A única contribuição incidente sobre a produção agrícola cuja inconstitucionalidade foi reconhecida é a devida pelas empresas agroindustriais, na forma da Lei 8.870/94, que é absolutamente impertinente no caso. O autor, produtor rural empregador pessoa física, postula o reconhecimento da inexigibilidade das contribuições incidentes sobre a sua produção rural, retidas pelo adquirente ou cooperativa quando do pagamento da produção. 420 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 A única possibilidade de sucesso parcial na pretensão dependeria de ter havido indevido recolhimento de contribuições calculadas sobre a produção no período em que a lei desobrigou o produtor rural desta espécie de contribuição, substituindo-a pela incidente sobre a folha de salários, período esse que, como vimos, vai do início da vigência da Lei 8.212/91, em 05.12.91, até a edição da Lei 8.542/92, o que ensejaria eventual direito à compensação. Contudo, no caso, não há qualquer demonstração de que tenha havido retenção indevida de contribuições incidentes sobre a comercialização da produção do autor ou, na qualidade de adquirente, sobre a produção de produtores rurais empregadores no período em questão, o que afasta a possibilidade de se acolher a pretensão sob este fundamento. Portanto, não havendo qualquer inconstitucionalidade a macular a contribuição em foco, e não havendo prova do efetivo recolhimento no período em que ela era indevida, merece confirmação a sentença, que denega a segurança. Em face do exposto, nego provimento à apelação. É como voto. APELAÇÃO CÍVEL Nº 2002.71.07.008672-3/RS Relator: O Exmo. Sr. Des. Federal Dirceu de Almeida Soares Apelante: Rubifrut Com. de Frutas Ltda. Advogados: Drs. Clóvis José Garbin e outro Apelante: Instituto Nacional do Seguro Social - INSS Advogada: Dra. Mariana Gomes de Castilhos Apelados: (os mesmos) EMENTA R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 421 Tributário. Produtor rural. Atividade conexa. Lançamento fiscal. Contribuição conforme a atividade preponderante. Antecipação da tutela. Suspensão do crédito. 1. O processamento elementar – lavagem, seleção e embalagem – aplicado aos produtos agrícolas pelo produtor rural não configura, segundo o art. 25 da Lei nº 8.212/91, atividade industrial. 2. Possuindo a atividade principal – plantio e processamento elementar, a caracterizar a situação de produtor rural – estreita relação com a atividade subsidiária – aquisição de produto rural e processamento elementar idêntico, denotando o exercício do comércio – o critério mais razoável para determinar a forma de contribuição será o da atividade preponderante, no caso, a atividade de produtor rural. Assim, prevalece a contribuição incidente sobre receita bruta proveniente da comercialização da produção rural, nos moldes do art. 25 da Lei nº 8.870/94. Precedente da Turma. 3. A partir de 08 de outubro de 2001, com a alteração introduzida pela Lei nº 10.256/2001, a contribuição sobre a remuneração dos segurados individuais que prestam serviço ao produtor rural passou a ser exigível, sendo estes apenas os créditos subsistentes no lançamento fiscal impugnado. 4. Presentes os pressupostos de concessão, antecipam-se os efeitos da tutela para suspender o crédito tributário considerado indevido. ACÓRDÃO Vistos e relatados estes autos entre as partes acima indicadas, decide a Segunda Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por unanimidade, dar parcial provimento ao agravo retido e ao apelo da autora, prejudicado o apelo do INSS, nos termos do relatório, voto e notas taquigráficas que ficam fazendo parte integrante do presente julgado. Porto Alegre, 21 de outubro de 2003. Des. Federal Dirceu de Almeida Soares, Relator. RELATÓRIO O Exmo. Sr. Des. Federal Dirceu de Almeida Soares: Trata-se de ação ordinária, com pedido de antecipação de tutela, objetivando anular a notificação fiscal nº 35.425.668-8/2001, referente ao período 01/99 a 11/2001, baseada em diferenças decorrentes de contribuição previdenciária apurada sobre a folha de salários, em lugar de sobre a comercia422 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 lização da produção rural, recolhida pela demandante, inclusive sobre as remunerações pagas a contribuintes individuais que lhe prestaram serviço, no período de 05/2000 a 11/2001. A liminar foi indeferida (fls. 273/276). O agravo de instrumento interposto foi convertido em agravo retido (fls. 326/327). Sentenciando, o MM. Juízo a quo julgou improcedentes os pedidos, ao fundamento de que, não se dedicando a autora, exclusivamente, à produção rural, sujeita-se à contribuição sobre a folha de salários. Condenou a demandante, em conseqüência, ao pagamento das custas processuais e honorários advocatícios, fixados estes em R$ 500,00 (quinhentos reais). Irresignada, apelou a autora, alegando incorreta a Orientação Normativa INSS/DAF/AFAR nº 3/97, ao concluir pela impossibilidade de contribuição das empresas rurais sobre a produção rural. Sustentou que a Lei nº 8.870/94 não distinguiu produtor rural pessoa jurídica que exerce exclusivamente a atividade agrícola daquele que desempenha também outra atividade, no caso, aquisição da produção de pequenos produtores rurais. Aduziu que a Instrução Normativa INSS/DC nº 60/2001 confirmou o entendimento da demandante de enquadrar-se como produtor rural. Também alegou inaplicável o Decreto nº 4.032/2001, pois posterior aos fatos, bem como por ter alterado a Lei nº 8.870/94, restringindo-a, situação inadmissível em nosso sistema legal. Requereu a antecipação de tutela para fins de suspender a exigibilidade do crédito fiscal debatido, até decisão final, pela análise do agravo retido. O INSS, por seu turno, insurgiu-se contra o valor fixado para os honorários advocatícios, referindo serem insuficientes por representarem menos de 1% do valor dado à causa. Requereu a majoração da verba honorária para, no mínimo, 10% sobre o valor dado à causa. Com contra-razões, subiram os autos. É o relatório. VOTO O Exmo. Sr. Des. Federal Dirceu de Almeida Soares: Trata-se de apelação contra sentença que manteve o lançamento fiscal impugnado, o qual apurou diferenças decorrentes de contribuição previdenciária incidente sobre a folha de salários, em lugar de sobre a comercialização da produção rural, recolhida pela demandante. R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 423 Agravo retido Tendo em vista que o agravo retido objetiva, em antecipação dos efeitos da tutela, suspender a exigibilidade do crédito tributário, confundindo-se, portanto, com o mérito do apelo, deixo de apreciá-lo em preliminar, sendo mais oportuna a verificação dos pressupostos de concessão após uma análise mais aprofundada do feito. Produtor rural. Atividade agrícola (preponderante) conexa com atividade subsidiária (mercantil) No mérito, verifica-se que a apelante é pessoa jurídica, cujos objetivos sociais são (fls. 162/163): a) atividade agrícola em geral, especialmente nos sub-ramos da fruticultura; b) indústria e comércio de frutas e produtos agrícolas em geral; c) importação e exportação de frutas. Em face da produção de frutas, atividade preponderante, vinha contribuindo para a Previdência Social sobre a comercialização da produção rural, nos moldes do art. 25 da Lei 8.870/94. Além da produção própria, adquire, processa e comercializa pequena quantidade de frutas produzidas por outros produtores rurais. O processamento envolve lavagem, seleção e embalagem das frutas. Em dezembro de 2001, a demandante foi notificada do lançamento fiscal referente a contribuições para a Seguridade Social e Terceiros. O agente do INSS, tendo em vista o contido na Orientação Normativa INSS/ AFAR nº 3/97 e verificando que a empresa explorava, além da atividade de produção rural, atividade reputada comercial, consistente na aquisição de produção de terceiros, desenquadrou-a como produtor rural pessoa jurídica e qualificou-a como empresa comum. Em conseqüência, apurou diferenças de contribuição, pois, em função do desenquadramento, deveria contribuir sobre a folha de salários, e não sobre a comercialização da produção rural, como vinha procedendo a apelante. A apelante, por sua vez, insurge-se contra o lançamento efetuado, alegando que a aquisição de pequena produção de frutas de outros produtores rurais não desnatura sua condição de produtor rural pessoa jurídica, assistindo-lhe o direito de permanecer, assim, contribuindo sobre a produção rural. A questão a ser dirimida, então, é se o produtor rural pessoa jurídica que também comercializa pequena quantidade de produtos similares aos que produz, adquiridos de terceiros, perde a qualidade de produtor rural. 424 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 De longa data vêm os produtores rurais contribuindo sobre a comercialização de sua produção rural. Com a CF/88, contudo, apenas o produtor rural que exercesse suas atividades em regime de economia familiar, sem empregados permanentes, permaneceu contribuindo para a previdência sobre a produção rural. No entanto, a nova ordem constitucional equiparou os trabalhadores urbanos e rurais, ampliando, com isso, os benefícios destes últimos, criando um desequilíbrio entre a arrecadação no meio rural e o pagamento de benefícios aos rurícolas. Buscando a eqüidade no custeio, prevista constitucionalmente, com o advento da Lei nº 8.540/92, também o produtor rural pessoa física voltou ao antigo regime de contribuição. Por fim, com a Lei nº 8.870/94, o produtor rural pessoa jurídica também passou a contribuir sobre a receita bruta da produção rural. Esta última lei estendeu às agroindústrias, quanto aos empregados dedicados à produção agrícola, o mesmo regime contributivo do produtor rural. Contudo, elegeu como base de cálculo o “valor estimado da produção agrícola própria, considerado seu preço de mercado”. O STF, julgando a ADIn 1.103/DF, declarou a inconstitucionalidade dessa base de cálculo, por não prevista na Lei Maior. Tal decisão, no entanto, não repercute no deslinde da questão dos autos, pois a demandante, efetivamente, não exerce atividade industrial, não sendo suficiente para assim caracterizar sua denominação social – “... Comércio de Frutas Ltda.” – tampouco seu objetivo social, mais amplo, que, além da produção rural, também a autoriza a exercer atividades industriais. Tanto a LC 11/71, como a Lei nº 8.212/91, esta no art. 25, entendem que integra a produção rural – e não atividade industrial propriamente dita – processos rudimentares de modificação dos produtos rurais, tais como limpeza, descascamento, pasteurização, embalagem e moagem, entre outros. Portanto, o processamento aplicado pela demandante aos produtos produzidos e adquiridos de terceiros, envolvendo lavagem, seleção e embalagem, não configuram industrialização. Assim, em princípio, a demandante caracteriza-se como produtor rural pessoa jurídica. Contudo, o Coordenador-Geral de Arrecadação do INSS, em função da declaração de inconstitucionalidade acima referida, editou a Orientação Normativa INSS/DAF/AFAR Nº 3/97, que, no item 5, letra d, dispôs: “d) a empresa que explora além da atividade de produção rural outra atividade, quer 425 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 seja comercial, industrial ou de serviços, independentemente de qual seja a atividade preponderante, está sujeita à contribuição patronal incidente sobre a folha de salário (art. 22 da Lei nº 8.212/91) e não da contribuição incidente sobre a produção rural;” Assim, definiu o INSS que, em função da supra-referida decisão do STF, o exercício misto de atividades agropecuárias e outras atividades, independentemente de qual seja a preponderante, importaria na descaracterização da atividade de produtor rural, devendo haver contribuição sobre a folha de salários. Entendo que assim não seja. Não há óbice a que, sendo as atividades autônomas, sobre a atividade agrícola incida a contribuição sobre a receita bruta da comercialização da produção rural, enquanto sobre a outra atividade, não-agrícola, a incidência se dê sobre a folha de salários dos trabalhadores empregados nesta atividade. Assim também o reconheceu o próprio INSS, ao editar a Instrução Normativa nº 60/2001, cujo art. 6º, § 1º, apresenta a discriminação acima. No caso dos autos, todavia, as atividades são conexas. Tanto a produção própria, quanto a adquirida, sofrem um processamento elementar, não havendo, na prática, como separar a atividade dos trabalhadores empregados nesta fase. Mesmo que houvesse tal separação, a contribuição patronal em relação a estes trabalhadores teria de recair sobre um percentual da folha de salários deles, na proporção do processamento dos produtos adquiridos, o que, além de não possuir fundamento legal – pois seria necessário definir, por exemplo, se a proporção deveria levar em conta o volume de produto processado ou o valor da produção –, seria inviável de ser executado pelo contribuinte e fiscalizado pelo INSS. Também não se poderia fazer incidir a contribuição sobre a produção própria em substituição à contribuição referente aos trabalhadores empregados na área agrícola, e sobre a folha de salários para os trabalhadores que, posteriormente, processam os produtos produzidos e adquiridos, pois, primeiro, não haveria como determinar o valor da produção própria antes do processamento; segundo, o processamento envolvido não caracteriza industrialização, sendo considerado integrante das atividades de produção agrícola, não podendo, portanto, ser tomado como atividade autônoma. Assim, possuindo a atividade principal – plantio e processamento elementar, a caracterizar a situação de produtor rural – estreita relação com 426 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 a atividade subsidiária – aquisição e processamento elementar idêntico, denotando o exercício do comércio – o critério mais razoável para determinar a forma de contribuição será o da atividade preponderante, no caso, a atividade de produtor rural. Por outro lado, esse critério pode, ainda, evitar que a escolha da forma de contribuição fique ao alvedrio do contribuinte. Ocorre que, nos casos em que existe intensa mecanização da atividade agrícola, como no plantio extensivo de grãos, com baixa absorção de mão-de-obra e grande volume comercializado, bastaria ao produtor desempenhar, conjuntamente, qualquer outra atividade para desenquadrar-se e passar a contribuir sobre a folha de salários, com evidente prejuízo para a arrecadação. Assim sendo, incorreto o enquadramento aplicado pelo INSS no lançamento fiscal debatido, devendo permanecer a demandante a contribuir como produtor rural sobre a receita bruta da comercialização da produção rural, enquanto seja esta sua atividade preponderante. Nesse sentido, já se pronunciou esta Turma, ao decidir matéria semelhante, em voto da lavra do eminente Desembargador Federal Vilson Darós, do qual transcrevo os seguintes excertos que o fundamentaram: “É certo que as agroindústrias, a partir da inconstitucionalidade reconhecida pelo STF do par. 2° do art. 25 da Lei n° 8.870/94, continuam a contribuir para a Seguridade Social com base na folha de salários, todavia o lançamento (realizado a partir das notas fiscais e da contabilidade da empresa) procedido pela autarquia previdenciária foi motivado no fato de a empresa-autora, além de dedicar-se à produção rural, comercializar produtos de terceiros. Verifica-se, portanto, que não há elementos nos autos indicativos de qualquer atividade industrial realizada pela parte autora ao menos no período objeto da ação fiscal, sendo insuficiente sua denominação social para enquadrá-la em atividade que efetivamente não exerceu, consoante reconheceu a própria autarquia no item 10 do Relatório da Notificação Fiscal. (fls. 49/52) [. . .] Portanto, incorreta a exigência consubstanciada na NFLD n° 32.584.545-0, que impôs à autora o pagamento de contribuição previdenciária sobre a folha de salários, nos moldes do art. 22 da Lei n° 8.212/91, porquanto ignorou por completo os contornos fáticos que ensejam o enquadramento da empresa, no período objeto da ação fiscal, como produtora rural.”(AC nº 1999.71.07.002056-5, Rel. Des. Fed. Vilson Darós, unânime, DJU 17.04.2002) Contribuição incidente sobre a remuneração paga a contribuintes individuais Resta analisar a contribuição incidente sobre a remuneração paga aos 427 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 contribuintes individuais. Como visto, com a edição da Lei nº 8.870/94, passou o produtor rural pessoa jurídica a contribuir para a previdência social sobre a comercialização da produção rural, em substituição à contribuição prevista no art. 22 da Lei nº 8.212/91. Desta forma, toda a contribuição incidente sobre a remuneração paga aos empregados permanentes e àqueles temporários ou que lhe prestassem serviço estaria abrangida pela referida substituição de base de cálculo. Todavia, a Lei nº 10.256/2001, ao dar nova redação ao caput do art. 25 da Lei nº 8.870/94, restringiu o alcance da substituição operada originariamente, especificando que a contribuição sobre a produção rural passaria a substituir a contribuição dos incisos I (segurados empregados e trabalhadores avulsos que lhe prestem serviços) e II (SAT) do art. 22 da Lei nº 8.212/91. No que pertine ao debate dos autos, passou o produtor rural a contribuir para a seguridade com vinte por cento sobre o total das remunerações pagas ou creditadas a qualquer título, no decorrer do mês, aos segurados contribuintes individuais que lhe prestem serviços, conforme redação do inciso III, incluído pela Lei nº 9.875/99. Tratando-se de modificação de contribuição destinada à seguridade social, aplica-se a anterioridade nonagesimal, determinada pelo § 6.º do art. 195 da Constituição. Assim, publicada a Lei nº 10.256, em 10 de julho de 2001, a contribuição sobre a remuneração dos segurados individuais que prestam serviço ao produtor rural passou a ser exigível em 08 de outubro de 2001. No caso dos autos, o autor teve lançados créditos tributários desta natureza, relativos ao período de maio de 2000 a novembro de 2001. Portanto, subsiste no lançamento fiscal apenas a contribuição sobre a 428 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 ÍNDICE NUMÉRICO R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 101-428, 2004 429 430 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 429-432, 2004 DIREITO ADMINISTRATIVO E DIREITO CIVIL 2000.04.01.138330-6/PR (AC) 2000.71.10.002580-1/RS (AC) 2001.71.00.029955-5/RS (AC) 2002.04.01.039975-3/RS (AG) 2002.70.00.061453-0/PR (AMS) 2002.72.02.000898-6/SC (AC) 2003.04.01.038645-3/PR (AG) Rel. Desa. Marga Barth Tessler...............................................105 Rel. Des. Federal Luiz Carlos de Castro Lugon......................134 Rel. Juiz Federal José Paulo Baltazar Junior...........................170 Rel. Des. Federal Amaury Chaves de Athayde.......................183 Rel. Juiz Federal José Paulo Baltazar Junior...........................189 Rel. Des. Federal Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz........... 196 Rel. Des. Federal Luiz Carlos de Castro Lugon......................220 DIREITO PENAL E DIREITO PROCESSUAL PENAL 2000.04.01.027904-0/PR (MS) 2000.04.01.076601-7/PR (EINACR) 2002.04.01.034339-5/PR (ACR) 2002.70.02.005725-7/PR (RSE) 2002.71.13.001501-6/RS (ACR) 2003.04.01.030678-0/RS (HC) 2003.04.01.041096-0/PR (HC) 2003.04.01.042600-1/PR (HC) 2003.04.01.045047-7/RS (HC) 2003.70.00.026114-5/PR (REOHC) Rel. Des. Federal José Germano da Silva...............................227 Rel. Des. Federal José Germano da Silva.................................235. Rel. Des. Federal Paulo Afonso Brum Vaz.............................244 Rel. Des. Federal Luiz Fernando Wowk Penteado..................250 Rel. Des. Federal Luiz Fernando Wowk Penteado..................259 Rel. Desa. Maria de Fátima Freitas Labarrère........................269 Rel. Des. Federal Élcio Pinheiro de Castro.............................272 Rel. Des. Federal Élcio Pinheiro de Castro.............................284 Rel. Des. Federal Paulo Afonso Brum Vaz.............................292 Rel. Desa. Maria de Fátima Freitas Labarrère........................294 DIREITO PREVIDENCIÁRIO 2001.04.01.014778-4/RS (EIAC) Rel Des. Federal Victor dos Santos Laus................................301 DIREITO PROCESSUAL CIVIL 1999.04.01.027933-3/RS (EDAMS) 2002.04.01.006098-1/RS (AG) 2002.04.01.019240-0/SC (AG) Rel. Des. Federal Antônio Albino Ramos de Oliveira............315 Rel. Des. Federal Amaury Chaves de Athayde.......................320 Rel. Des. Federal Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz........... 322 DIREITO TRABALHISTA E TRIBUTÁRIO R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 429-432, 2004 431 96.04.06136-4 (RO) 2000.04.01.047537-0/PR (AC) 2000.72.03.001737-9/SC (AC) 2001.70.08.003349-6/PR. (AC) 2001.72.05.004902-0/SC. (AMS) 2002.04.01.031415-2/RS. (AC) 2002.04.01.054086-3/SC. (AG) 2002.70.00.014508-6/PR. (AC) 2002.71.05.000289-3/RS. (AMS) 2002.71.07.008672-3/RS. (AMS) 432 Rel. Des. Federal Surreaux Chagas.........................................349 Rel. Des. Federal Wellington Mendes de Almeida ..............363 Rel. Des. Federal Dirceu de Almeida Soares..........................367 Rel. Des. Federal Wellington Mendes de Almeida..................379 Rel. Des. Federal Vilson Darós...............................................383 Rel. Desa. Federal Maria Lúcia Luz Leiria.............................396 Rel. Des. Vilson Darós............................................................403 Rel. Desa. Federal Maria Lúcia Luz Leiria.............................407 Rel. Des. Federal Surreaux Chagas......................................... 411 Rel. Des. Federal Dirceu de Almeida Soares .........................420 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 429-432, 2004 ÍNDICE ANALÍTICO R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 429-432, 2004 433 434 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 433-451, 2004 A AÇÃO CIVIL PÚBLICA Dano moral. Violação. Honra. Dignidade. Comunidade indígena. Indenização. Inviolabilidade parlamentar. Inexistência. Juros de mora. Honorários. Advogado......................................................................196 Vide COMPETÊNCIA JURISDICIONAL Vide CONCESSÃO DE USO AÇÃO REGRESSIVA Ministério Público – Vide RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO AÇÃO REVISIONAL Vide RECLAMATÓRIA TRABALHISTA ADVOGADO Liberdade profissional – Vide INQUÉRITO POLICIAL Sociedade – Vide ISS (IMPOSTO SOBRE SERVIÇOS DE QUALQUER NATUREZA) AMPLA DEFESA Vide HABEAS CORPUS ANULABILIDADE Vide EXONERAÇÃO APOSENTADORIA POR IDADE Vide BENEFÍCIO PREVIDENCIÁRIO R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 433-451, 2004 435 ARBITRAMENTO Vide CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA ÁREA DE PROTEÇÃO AMBIENTAL Vide CONCESSÃO DE USO ASSISTÊNCIA OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) – Vide INQUÉRITO POLICIAL ASSISTÊNCIA EDUCACIONAL Entidade beneficente – Vide IMUNIDADE TRIBUTÁRIA ATIVIDADE AGRÍCOLA Empresa rural – Vide CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA ATIVIDADE COMERCIAL Empresa rural – Vide CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA ATO ADMINISTRATIVO Vide EXONERAÇÃO ATUALIZAÇÃO MONETÁRIA Vide SFH (SISTEMA FINANCEIRO DA HABITAÇÃO) B BASE DE CÁLCULO Arbitramento – Vide LANÇAMENTO TRIBUTÁRIO BENEFÍCIO PREVIDENCIÁRIO Aposentadoria por idade. Trabalhador rural. Prova documental. Atividade agrícola. Declaração escrita. Homologação. Ministério Público. Revisão de benefício. Posterioridade. Prazo legal. Concessão. Devido processo legal. Prescrição. Via administrativa. Inocorrência. Cancelamento de benefício. Natureza jurídica. Anulação. Erro de fato. Princípio da legalidade. Princípio da moralidade. Restabelecimento de benefício. Possibilidade.............................................................................................................301 436 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 433-451, 2004 C CO-AUTOR Falso testemunho – Vide HABEAS CORPUS CANCELAMENTO DE BENEFÍCIO Erro de fato – Vide BENEFÍCIO PREVIDENCIÁRIO CATEGORIA PROFISSIONAL Reenquadramento – Vide RECLAMATÓRIA TRABALHISTA CAUÇÃO TDP (Título da Dívida Pública) – Vide MULTA MORATÓRIA CEF (CAIXA ECONÔMICA FEDERAL) Vide RECLAMATÓRIA TRABALHISTA COFINS (CONTRIBUIÇÃO PARA FINANCIAMENTO DA SEGURIDADE SOCIAL) Vide RESTITUIÇÃO DE TRIBUTO COMERCIANTE Derivado de petróleo – Vide RESTITUIÇÃO DE TRIBUTO COMÉRCIO Produto agrícola – Vide CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA COMPENSAÇÃO Vide CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA Vide LANÇAMENTO TRIBUTÁRIO Vide RESTITUIÇÃO DE TRIBUTO COMPETÊNCIA DELEGADA Vide COMPETÊNCIA JURISDICIONAL COMPETÊNCIA JURISDICIONAL Ação civil pública. MPF (Ministério Público Federal). Companhia telefônica. R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 433-451, 2004 437 Local. Dano. Prevenção. Inocorrência. Causa de pedir. Objeto. Diversidade..........320 Mandado de segurança. Ato de autoridade. União Federal. Chefe. Posto de benefícios. INSS (Instituto Nacional do Seguro Social). Sentença. Anulação. Competência delegada. Justiça Estadual. Remessa dos autos. Justiça Federal...........................................................................................................315 Vide CRIME CONTRA O SISTEMA FINANCEIRO Vide HABEAS CORPUS Vide ISS (IMPOSTO SOBRE SERVIÇOS DE QUALQUER NATUREZA) Vide TRÁFICO INTERNACIONAL COMUNIDADE INDÍGENA Dano moral – Vide AÇÃO CIVIL PÚBLICA CONCESSÃO DE USO Área de proteção ambiental. Projeto. Obra. Serviço. Licitação. Legalidade. Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis). Responsabilidade. Fiscalização. Ação civil pública. Improcedência...........................................................................105 CONFISSÃO DE DÍVIDA Vide MULTA MORATÓRIA CONTRADITÓRIO Ampla defesa – Vide JUBILAÇÃO Vide HABEAS CORPUS CONTRATO DE TRABALHO Rescisão – Vide ESTELIONATO CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA Funrural (Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural). Produtor rural. Empregador. Pessoa física. Incidência. Comércio. Produto agrícola. Compensação. Pagamento indevido. Descabimento.........................................................................411 Natureza jurídica. Posterioridade. Constituição Federal. Contagem de prazo. Prescrição. Decadência. Responsabilidade solidária. Recolhimento de tributo. Tomador de serviço. Empreiteiro. 438 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 433-451, 2004 Extinção. Benefício de ordem. Posterioridade. Constituição Federal. Pagamento de tributo. Obrigação. Construtor. Prova documental. Inexistência. Arbitramento. INSS (Instituto Nacional do Seguro Social). CDA (Certidão da Dívida Ativa). Presunção de liquidez e certeza......................... 396 Omissão – Vide INTERROGATÓRIO Receita bruta. Empresa rural. Independência. Atividade comercial. Circunstância preponderante. Atividade agrícola. Contribuição previdenciária. Folha de salários. Inexigibilidade. Incidência. Remuneração. Segurado. Prestação de serviço. Produtor rural. Tutela antecipada. Suspensão do crédito tributário. Honorários. Advogado. Custas................................................................................ 420 Vide CRIME SOCIETÁRIO Vide LANÇAMENTO TRIBUTÁRIO CONTRIBUIÇÃO SOCIAL Entidade beneficente – Vide IMUNIDADE TRIBUTÁRIA CORREÇÃO MONETÁRIA Vide RECLAMATÓRIA TRABALHISTA CRIME CONTRA O SISTEMA FINANCEIRO Evasão de divisas. Formação de quadrilha. Prisão preventiva. Indício. Autoria do crime. Garantia da ordem pública. Habeas corpus. Denegação. Inquérito policial. Desnecessidade. Competência jurisdicional. Princípio do juiz natural. Prevenção. Inocorrência. Litispendência..................................................................272 Evasão de divisas. Gerência fraudulenta. Quadrilha. Habeas corpus. Denegação. Competência jurisdicional. Resolução. Vara especializada. Tribunal Regional Federal. Inaplicabilidade. Inépcia. Denúncia. Crime societário. Inocorrência. Preenchimento de requisito. Individualização da conduta. Desnecessidade..........................................................284 CRIME SOCIETÁRIO Omissão. Recolhimento de tributo. Contribuição previdenciária. Contrato social. Sócio. Responsabilidade. Ato ilícito. Acusação. Prova. Gestão. Empresa. Defesa. R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 433-451, 2004 439 Insuficiência de provas. Condenação........................................................................235 D DANO Local – Vide COMPETÊNCIA JURISDICIONAL DANO MORAL Comunidade indígena – Vide AÇÃO CIVIL PÚBLICA DÉBITO TRIBUTÁRIO Confissão de dívida – Vide MULTA MORATÓRIA DECADÊNCIA Vide EXONERAÇÃO DENÚNCIA ESPONTÂNEA Vide MULTA MORATÓRIA DEPOSITÁRIO INFIEL Vide HABEAS CORPUS DESCLASSIFICAÇÃO DO CRIME Vide TRÁFICO INTERNACIONAL DESVIO DE FUNÇÃO Vide RECLAMATÓRIA TRABALHISTA DEVIDO PROCESSO LEGAL Vide BENEFÍCIO PREVIDENCIÁRIO Vide HABEAS CORPUS DIFERENÇA SALARIAL Vide RECLAMATÓRIA TRABALHISTA DOSIMETRIA DA PENA Vide ESTELIONATO E EMBARGOS À EXECUÇÃO Admissibilidade. Garantia. Execução. Penhora. 440 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 433-451, 2004 Bens. Valor inferior. Débito. Reforço de penhora.....................................................403 EMPREGADOR Produtor rural – Vide CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA EMPREITEIRO Responsabilidade solidária – Vide CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA Tomador de serviço – Vide CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA EMPRESA RURAL Vide CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA ENTIDADE BENEFICENTE Assistência educacional – Vide IMUNIDADE TRIBUTÁRIA ENTORPECENTE Vide TRÁFICO INTERNACIONAL ERRO DE FATO Cancelamento de benefício – Vide BENEFÍCIO PREVIDENCIÁRIO ESTELIONATO Seguro-desemprego. Princípio da insignificância. Inaplicabilidade. Rescisão. Contrato de trabalho. Simulação. Prova. Autoria. Materialidade. Dosimetria da pena. Pena privativa de liberdade. Substituição da pena. Pena restritiva de direitos. Pena de multa.................................................................259 EVASÃO DE DIVISAS Vide CRIME CONTRA O SISTEMA FINANCEIRO Vide INQUÉRITO POLICIAL EXONERAÇÃO Servidor público federal. Decadência. Direito. União Federal. Investidura. Cargo público. Decisão judicial. Ato administrativo. Diferença. Nulidade. Anulabilidade. Irrelevância. Decurso de prazo. Convalidação. Pagamento. Vencimentos. Data. Afastamento do cargo. Juros de mora. Termo inicial. Citação...............................................................................................170 EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE Falso testemunho – Vide HABEAS CORPUS R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 433-451, 2004 441 Vide INTERROGATÓRIO EXTINÇÃO DO PROCESSO Vide IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA F FALSO TESTEMUNHO Retratação do agente – Vide HABEAS CORPUS FOLHA DE SALÁRIOS Vide CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA FORMAÇÃO DE QUADRILHA Vide CRIME CONTRA O SISTEMA FINANCEIRO FUNRURAL (FUNDO DE ASSISTÊNCIA AO TRABALHADOR RURAL) Vide CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA G GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA Vide CRIME CONTRA O SISTEMA FINANCEIRO GERÊNCIA FRAUDULENTA Vide CRIME CONTRA O SISTEMA FINANCEIRO GESTÃO Empresa – Vide CRIME SOCIETÁRIO H HABEAS CORPUS Concessão. Depositário infiel. Pagamento. Parcelamento de dívida........................292 Constrangimento ilegal. Imposição. Sanção. Infração administrativa. Militar. Aeronáutica. Inocorrência. Crime militar. Violação. Garantia fundamental. Devido processo legal. Ampla defesa. Contraditório. Competência jurisdicional. Justiça Federal...............................................................294 Falso testemunho. Retratação do agente. Extinção da punibilidade. Extensão. Co-autor. Trancamento da ação penal.......................................................................269 442 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 433-451, 2004 Vide CRIME CONTRA O SISTEMA FINANCEIRO HONORÁRIOS Advogado – Vide AÇÃO CIVIL PÚBLICA Advogado – Vide CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA Advogado – Vide MULTA MORATÓRIA Advogado – Vide RESTITUIÇÃO DE TRIBUTO I IBAMA (INSTITUTO BRASILEIRO DO MEIO AMBIENTE E DOS RECURSOS NATURAIS RENOVÁVEIS) Vide CONCESSÃO DE USO ILEGITIMIDADE PASSIVA Vide IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA Exercício de função. Função pública. Inocorrência. Ilegitimidade passiva. Extinção do processo. Petição inicial. Inexistência. Requisito. Fato. Fundamento jurídico. Réu. Impossibilidade. Defesa............................................................................................322 IMUNIDADE TRIBUTÁRIA Contribuição social. Seguridade social. Entidade beneficente. Assistência educacional. Lei ordinária. Cumprimento de requisito legal. Concessão. Mandado de segurança. Lei em tese. Inocorrência...................................................383 INADIMPLENTE Cadastro – Vide SFH (SISTEMA FINANCEIRO DA HABITAÇÃO) INDENIZAÇÃO Comunidade indígena – Vide AÇÃO CIVIL PÚBLICA Vide RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO INFRAÇÃO ADMINISTRATIVA Vide HABEAS CORPUS INPC (ÍNDICE NACIONAL DE PREÇOS AO CONSUMIDOR) Vide SFH (SISTEMA FINANCEIRO DA HABITAÇÃO) R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 433-451, 2004 443 INQUÉRITO POLICIAL Advogado. Vista dos autos. Impossibilidade. Quebra de sigilo. Necessidade. Fundamentação. Violação. Liberdade profissional. Inocorrência. Evasão de divisas. Assistência. OAB (Ordem dos Advogados do Brasil). Mandado de segurança. Descabimento............................................................................................................227 INSS (INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL) Mandado de segurança – Vide COMPETÊNCIA JURISDICIONAL INTERESSE PÚBLICO Vide JUBILAÇÃO INTERROGATÓRIO Meio de prova. Simultaneidade. Defesa. Acusado. Justificação. Inexistência. Revelia. Nulidade. Processo judicial. Omissão. Recolhimento. Contribuição previdenciária. Prescrição. Extinção da punibilidade........................................................................244 INVESTIDURA Servidor público federal - Vide EXONERAÇÃO INVIOLABILIDADE PARLAMENTAR Vide AÇÃO CIVIL PÚBLICA ISS (IMPOSTO SOBRE SERVIÇOS DE QUALQUER NATUREZA) Incidência. Critério. Sociedade. Advogado. Prestação de serviço. Lei municipal. Inconstitucionalidade. Representação. OAB (Ordem dos Advogados do Brasil). Possibilidade. Competência jurisdicional. Justiça Federal...............................................................407 J JUBILAÇÃO Universidade. Violação. Contraditório. Ampla defesa. Proporcionalidade. Interesse público. Inexistência. Aluno. Fase final. Curso superior...........................189 JUROS DE MORA Vide EXONERAÇÃO 444 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 433-451, 2004 L LANÇAMENTO TRIBUTÁRIO Contribuição previdenciária. Trabalhador temporário. Inexistência. Compensação. Salário-família. Antecipação pecuniária. Arbitramento. Base de cálculo. Documento. Irregularidade. Violação. Princípio da razoabilidade. Necessidade. Processo administrativo..........................................363 LIBERDADE PROFISSIONAL Advogado – Vide INQUÉRITO POLICIAL LICITAÇÃO Vide CONCESSÃO DE USO LITISPENDÊNCIA Vide CRIME CONTRA O SISTEMA FINANCEIRO M MANDADO DE SEGURANÇA Vide COMPETÊNCIA JURISDICIONAL Vide INQUÉRITO POLICIAL MILITAR Vide HABEAS CORPUS MINISTÉRIO PÚBLICO Exercício de função - Vide RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO MULTA MORATÓRIA Cabimento. Débito tributário. Confissão de dívida. Parcelamento. Denúncia espontânea. Inocorrência. Taxa Selic (Sistema Especial de Liquidação e Custódia). Aplicação. Caução. TDP (Título da Dívida Pública). Impossibilidade. Liquidez. Inexistência. Honorários. Advogado..............................................................................................367 MÚTUO Vide SFH (SISTEMA FINANCEIRO DA HABITAÇÃO) R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 433-451, 2004 445 N NATUREZA JURÍDICA Vide CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA NULIDADE Vide EXONERAÇÃO O OAB (ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL) Assistência – Vide INQUÉRITO POLICIAL Representação – Vide ISS (IMPOSTO SOBRE SERVIÇOS DE QUALQUER NATUREZA) P PENA DE MULTA Vide ESTELIONATO PENHORA Vide EMBARGOS À EXECUÇÃO PERPETUATIO JURISDICTIONIS Vide TRÁFICO INTERNACIONAL PETIÇÃO INICIAL Requisito – Vide IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA PIS (PLANO DE INTEGRAÇÃO SOCIAL) Vide RESTITUIÇÃO DE TRIBUTO PRESCRIÇÃO Vide BENEFÍCIO PREVIDENCIÁRIO Vide CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA Vide INTERROGATÓRIO PRESCRIÇÃO BIENAL Vide RECLAMATÓRIA TRABALHISTA 446 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 433-451, 2004 PRESTAÇÃO DE SERVIÇO Produtor rural – Vide CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA PREVENÇÃO Vide COMPETÊNCIA JURISDICIONAL Vide CRIME CONTRA O SISTEMA FINANCEIRO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA Vide ESTELIONATO PRINCÍPIO DA MORALIDADE Vide BENEFÍCIO PREVIDENCIÁRIO PRINCÍPIO DA NÃO-CUMULATIVIDADE Vide RESTITUIÇÃO DE TRIBUTO PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE Arbitramento – Vide LANÇAMENTO TRIBUTÁRIO PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL Vide CRIME CONTRA O SISTEMA FINANCEIRO PRISÃO PREVENTIVA Vide CRIME CONTRA O SISTEMA FINANCEIRO PROCESSO ADMINISTRATIVO Vide LANÇAMENTO TRIBUTÁRIO PRODUTO AGRÍCOLA Comércio – Vide CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA PRODUTOR RURAL Empregador – Vide CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA PROPORCIONALIDADE Vide JUBILAÇÃO PROVA Vide CRIME SOCIETÁRIO PROVA DOCUMENTAL Vide BENEFÍCIO PREVIDENCIÁRIO R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 433-451, 2004 447 Q QUADRILHA Vide CRIME CONTRA O SISTEMA FINANCEIRO QUADRO DE CARREIRA Vide RECLAMATÓRIA TRABALHISTA QUEBRA DE SIGILO Vide INQUÉRITO POLICIAL R REAJUSTE Prestação mensal – Vide SFH (SISTEMA FINANCEIRO DA HABITAÇÃO) RECLAMATÓRIA TRABALHISTA Ação revisional. Reenquadramento. Categoria profissional. Desvio de função. Diferença salarial. Quadro de carreira. Vinculação. Empregador. CEF (Caixa Econômica Federal). Prescrição bienal. Fundo de direito. Correção monetária. TRD (Taxa Referencial Diária). TR (Taxa Referencial).........349 RECOLHIMENTO DE TRIBUTO Omissão – Vide CRIME SOCIETÁRIO RECURSO EM SENTIDO ESTRITO Vide TRÁFICO INTERNACIONAL REENQUADRAMENTO Categoria profissional – Vide RECLAMATÓRIA TRABALHISTA REFORÇO DE PENHORA Vide EMBARGOS À EXECUÇÃO REPETIÇÃO DO INDÉBITO Vide SFH (SISTEMA FINANCEIRO DA HABITAÇÃO) RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO Indenização. Dano. Terceiro. Decorrência. Exercício de função. Ministério Público. Prova. Dolo. Fraude. Ação regressiva.......................................................................220 RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA Vide CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA 448 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 433-451, 2004 RESTABELECIMENTO DE BENEFÍCIO Vide BENEFÍCIO PREVIDENCIÁRIO RESTITUIÇÃO DE TRIBUTO Compensação. Pagamento a maior. PIS (Programa de Integração Social). Cofins (Contribuição para Financiamento da Seguridade Social). Substituição tributária. Comerciante. Derivado de petróleo. Princípio da não-cumulatividade. Inaplicabilidade. Preço. Revenda. Combustível. Inferioridade. Fato gerador. Irrelevância. Honorários. Advogado. Redução..............................................................................379 RETRATAÇÃO DO AGENTE Falso testemunho – Vide HABEAS CORPUS REVELIA Vide INTERROGATÓRIO REVISÃO Contrato – Vide SFH (SISTEMA FINANCEIRO DA HABITAÇÃO) REVISÃO DE BENEFÍCIO Vide BENEFÍCIO PREVIDENCIÁRIO S SALÁRIO MÍNIMO Reajuste – Vide SFH (SISTEMA FINANCEIRO DA HABITAÇÃO) SALÁRIO-FAMÍLIA Vide LANÇAMENTO TRIBUTÁRIO SALDO DEVEDOR Atualização monetária – Vide SFH (SISTEMA FINANCEIRO DA HABITAÇÃO) SEGURO Vide SFH (SISTEMA FINANCEIRO DA HABITAÇÃO) SEGURO-DESEMPREGO Vide ESTELIONATO SERVIDOR PÚBLICO FEDERAL Vide EXONERAÇÃO R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 433-451, 2004 449 SFH (SISTEMA FINANCEIRO DA HABITAÇÃO) Revisão. Contrato. Mútuo. Incidência. CDC (Código de Defesa e Proteção ao Consumidor). Atualização monetária. Saldo devedor. INPC (Índice Nacional de Preços ao Consumidor). Reajuste. Prestação mensal. Variação. Salário mínimo. Teoria da imprevisão. Aplicabilidade. Seguro. Taxa. Variação. Observância. Contrato. Taxa de juros. Superioridade. Limite legal. Repetição do indébito. Contagem em dobro. Inaplicabilidade. Ação revisional. Inclusão. Nome. Mutuário. Cadastro. Inadimplente. Descabimento............................................................................................................134 SIMULAÇÃO Vide ESTELIONATO SOCIEDADE Advogado – Vide ISS (IMPOSTO SOBRE SERVIÇOS DE QUALQUER NATUREZA) SUBSTITUIÇÃO DA PENA Vide ESTELIONATO SUBSTITUIÇÃO TRIBUTÁRIA Vide RESTITUIÇÃO DE TRIBUTO SUSPENSÃO DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO Vide CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA T TAXA DE JUROS Vide SFH (SISTEMA FINANCEIRO DA HABITAÇÃO) TDP (TÍTULO DA DÍVIDA PÚBLICA) Caução – Vide MULTA MORATÓRIA TEORIA DA IMPREVISÃO Vide SFH (SISTEMA FINANCEIRO DA HABITAÇÃO) TOMADOR DE SERVIÇO Empreiteiro – Vide CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA Responsabilidade solidária – Vide CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA 450 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 433-451, 2004 TRABALHADOR RURAL Aposentadoria por idade – Vide BENEFÍCIO PREVIDENCIÁRIO TRABALHADOR TEMPORÁRIO Contribuição previdenciária – Vide LANÇAMENTO TRIBUTÁRIO TRÁFICO INTERNACIONAL Entorpecente. Recebimento da denúncia. Juiz. Desclassificação do crime. Anterioridade. Dilação probatória. Descabimento. Posterioridade. Perpetuatio jurisdictionis. Competência jurisdicional. Justiça Federal. Recurso em sentido estrito. Razões. Intempestividade. Irrelevância........................250 TUTELA ANTECIPADA Língua estrangeira – Vide VESTIBULAR Vide CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA U UNIVERSIDADE Vide JUBILAÇÃO V VENCIMENTOS Vide EXONERAÇÃO VESTIBULAR Curso de graduação. Medicina. Prova. Exclusividade. Língua estrangeira. R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 433-451, 2004 451 452 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 453-459, 2004 ÍNDICE LEGISLATIVO R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 453-459, 2004 453 454 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 453-459, 2004 Código de Processo Civil Artigo 20...................................................................................................... 367 Artigo 85...................................................................................................... 220 Artigo 267.................................................................................................... 322 Artigo 282.................................................................................................... 322 Código de Processo Penal Artigo 41...................................................................................................... 284 Artigo 70...................................................................................................... 284 Artigo 78...................................................................................................... 284 Artigo 81...................................................................................................... 250 Artigo 156.................................................................................................... 272 Artigo 312.................................................................................................... 272 Artigo 502.................................................................................................... 272 Artigo 564.................................................................................................... 244 Código Penal Artigo 33...................................................................................................... 259 Artigo 44...................................................................................................... 259 Artigo 107.................................................................................................... 269 Artigo 171.................................................................................................... 259 Artigo 342.................................................................................................... 269 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 453-459, 2004 455 Código Tributário Nacional Artigo 124.................................................................................................... 396 Artigo 148.................................................................................................... 363 Artigo 155-A................................................................................................ 367 Artigo 161.................................................................................................... 367 Artigo 173.................................................................................................... 396 Artigo 174.................................................................................................... 396 Consolidação das Leis da Previdência Social Artigo 207.................................................................................................... 301 Consolidação das Leis do Trabalho Artigo 460.................................................................................................... 349 Artigo 461.................................................................................................... 349 Constituição Federal/1988 Artigo 1º....................................................................................................... 196 Artigo 5º......................................................................................... 189/196/294 Artigo 29...................................................................................................... 196 Artigo 37............................................................................................... 220/301 Artigo 109............................................................................................. 250/315 Artigo 142.................................................................................................... 294 Artigo 150.................................................................................................... 379 Artigo 195............................................................................................. 383/411 Decreto nº 22.626/33 Artigo 4º....................................................................................................... 134 Decreto nº 76.322/75 Artigo 34...................................................................................................... 294 Decreto nº 84.017/79 .................................................................................. 105 Decreto-Lei nº 406/68 Artigo 9º....................................................................................................... 407 Decreto-Lei nº 2.322/87 Artigo 3º....................................................................................................... 170 456 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 453-459, 2004 Enunciado nº 127 do TST ......................................................................... 349 Lei nº 4.357/64 Artigo 7º....................................................................................................... 134 Lei nº 4.380/64 Artigo 6º....................................................................................................... 134 Lei nº 4.771/65 ........................................................................................... 105 Lei nº 5.250/67 Artigo 49...................................................................................................... 196 Lei nº 6.368/76 Artigo 12...................................................................................................... 250 Artigo 18...................................................................................................... 250 Lei nº 6.830/80 Artigo 15...................................................................................................... 403 Artigo 16...................................................................................................... 403 Lei nº 7.492/86 Artigo 4º....................................................................................................... 284 Artigo 5º....................................................................................................... 244 Artigo 22...................................................................................................... 284 Lei nº 7.787/89 ........................................................................................... 411 Lei nº 8.004/90 Artigo 23...................................................................................................... 134 Lei nº 8.078/90 Artigo 42...................................................................................................... 134 Artigo 51...................................................................................................... 134 Lei nº 8.177/91 Artigo 39............................................................................................... 170/349 Lei nº 8.212/91 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 453-459, 2004 457 Artigo 25............................................................................................... 411/420 Artigo 55...................................................................................................... 383 Artigo 95...................................................................................................... 235 Lei nº 8.213/91 ........................................................................................... 411 Lei nº 8.660/93 ........................................................................................... 349 Lei nº 8.666/93 ........................................................................................... 105 Lei nº 8.692/93 Artigo 25...................................................................................................... 134 Lei nº 8.870/94 Artigo 25...................................................................................................... 420 Lei nº 8.906/94 ........................................................................................... 227 Artigo 44 ..................................................................................................... 407 Artigo 45...................................................................................................... 407 Artigo 57...................................................................................................... 407 Lei nº 9.034/95 Artigo 7º....................................................................................................... 272 Lei nº 9.394/96 Artigo 26...................................................................................................... 183 Lei nº 9.613/98 Artigo 3º....................................................................................................... 272 Lei nº 9.718/98 Artigo 4º....................................................................................................... 379 Lei nº 9.784/99 Artigo 3º....................................................................................................... 189 Artigo 54............................................................................................... 170/301 Artigo 55...................................................................................................... 301 Lei nº 10.260/2001 458 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 51, p. 453-459, 2004 Artigo 19...................................................................................................... 383 Lei nº 10.256/2001 ..................................................................................... 420 Lei Complementar nº 11/71 ...................................................................... 411 Lei Complementar Municipal de Curitiba nº 40/2001 Artigo 10...................................................................................................... 407 Resolução nº 314 do CJF .......................................................................... 272 Resolução nº 20 do