As particularidades da contra-reforma na política de saúde brasileira

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As particularidades da contra-reforma na política de saúde brasileira
Raquel Cavalcante Soares1
[email protected]
Modalidade de trabalho:
Eixo temático:
Palavras-chave:
Resultados de pesquisa (resultados de investigaciones)
Políticas sociais e desenvolvimento no contexto neoliberal e
os desafios para o Serviço Social (políticas sociales y
desarrollo en el contexto neoliberal y los desafíos para el
trabajo social)
política de saúde; contra-reforma do Estado, neoliberalismo,
modelos de gestão, mercado privado
Introdução
O presente trabalho constitui-se parte integrante da pesquisa A Contra-Reforma na
Política de Saúde e o SUS Hoje: impactos e demandas ao Serviço Social, realizada para
fins de doutoramento e que integra o Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Trabalho
(GET). Contudo, nosso objetivo neste artigo é especificamente discutir as particularidades
do processo de contra-reforma2 na saúde pública brasileira, a partir de alguns resultados
da análise documental da pesquisa.
O Sistema Único de Saúde (SUS) é uma das grandes conquistas da Constituição
de 1988, em que a saúde, parte integrante da seguridade social, tornou-se direito público
universal, fruto da luta do movimento de reforma sanitária brasileiro e das condições
objetivas e históricas da década de 1980, no Brasil.
No entanto, a organização e implementação do SUS tem expressado uma série de
tendências que são aparentemente conflitantes: velhos padrões e modelos de
atendimento focados nos atendimentos emergenciais / assistenciais; inovações técnicoorganizacionais e de gestão que são apresentadas como solução para os problemas do
sistema ou mesmo como modernização da reforma sanitária; um cotidiano de negação e,
dialeticamente, afirmação de direitos, de forma que, apesar dos ganhos expressivos -
1
Mestre em Serviço Social. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade Federal de
Pernambuco (UFPE), Docente do Departamento de Servi ço Social da UFPE, Brasil. Ponencia presentada en el XIX
Seminario Latinoamericano de Escuelas de Trabajo Social. El Trabajo Social en la coyuntura latinoamericana: desafíos
para su formación, articulación y acción profesional. Universidad Católica Santiago de Guayaquil. Guayaquil, Ecuador.
4-8 de octubre 2009.
2
Concordamos com Behring (2003) quando esta afirma que o processo denominado por Bresser Pereira (1998) de “reforma
administrativa do Estado”, de conteúdo regressivo em relação aos direitos sociais conquistados, constitui-se, na verdade,
numa contra-reforma do Estado.
1
como a diminuição das taxas de mortalidade infantil - o sistema ainda está longe de
atender de forma universal às necessidades sociais da população brasileira.
Esse processo ocorre em meio à hegemonia do ideário neoliberal, a partir dos
anos 1990, que inspira, sob a orientação das agências multilaterais, uma série de contrareformas dos Estados Nacionais considerados “em desenvolvimento”, dentre eles os
latino-americanos. É sobre as particularidades desse movimento na política de saúde
brasileira que este trabalho pretende se dedicar.
Desenvolvimento
Tendo como pressuposto que a relação entre política e economia configura-se
como uma unidade dialética, as necessidades fundantes da contra-reforma encontram-se
na mundialização do capital e na relevância dos serviços de saúde como espaço que
engendra altos níveis de lucratividade. Não é por acaso que o mercado privado nesta
área encontra-se em permanente expansão em todo o globo. De acordo com dados do
próprio Banco Mundial (2006), nas próximas duas décadas, a expectativa é de que os
gastos com saúde cresçam 47% só na América Latina.
Toda política social expressa interesses diversos de classes e grupos de classes,
que se confrontam permanentemente. Porém, para que a política social ganhe forma,
desde o seu planejamento até a sua gestão e execução, ela comporta uma racionalidade
que a fundamenta e organiza. Por sua vez, os projetos societários em confronto possuem
um determinado modo de conceber a realidade e, sendo assim, comportam também uma
racionalidade. Há, então, um embate de projetos que se expressa também sob a forma de
disputa de racionalidades que, no âmbito da política social, se configuram nas diversas
concepções de direito, de Estado, de classes sociais, entre outros.
Nesse sentido, segundo Bravo (2006), na política de saúde há fundamentalmente
dois grandes projetos em confronto: o projeto de reforma sanitária – hegemônico durante
a formulação da Constituição, que garantiu o marco legal do SUS – e o projeto de saúde
privatista – que ganhou preponderância na ditadura pós-64 e retomou sua hegemonia nos
anos 1990. Este último possui uma racionalidade que também se faz presente na
organização do SUS, vinculada aos interesses do mercado privado da saúde, com uma
concepção de direito bem distinta da racionalidade do projeto de reforma sanitária,
vinculada aos interesses dos trabalhadores: enquanto que no projeto de saúde privatista o
2
direito é um bem a ser consumido no mercado, restando aos mais pobres o acesso ao
direito público via serviços focalizados, precarizados e empobrecidos; no projeto de
reforma sanitária o direito é concebido originalmente como público e universal, ao qual
absolutamente todos devem ter acesso, constituindo-se dever do Estado a sua prestação.
Assim, enquanto o primeiro está fundado na lógica da cidadania do consumo, no segundo
a lógica é a da cidadania de direitos, conforme a análise de Mota (1995).
Assim, os
serviços
de
saúde
tornam-se
cada
vez
mais
espaços
de
supercapitalização e relevante fonte de maximização do capital, em resposta à crise
capitalista dos anos 1970. As diversas formas de capital, em tempos de dominância
financeira, conectam a cadeia de mercadorias e serviços desde o espaço da produção e
comercialização até as finanças: indústria de medicamentos e equipamentos médicohospitalares, sistema público de saúde, redes de hospitais, clínicas, farmácias, planos
privados de saúde, seguros saúde, bolsa de valores, linhas de crédito e financiamento
bancários, entre outros.
Estas necessidades sociais de supercapitalização e financeirização - intensificadas
pela mundialização do capital - determinam os processos de ajuste e contra-reforma do
Estado brasileiro, que é pressionado pelos interesses do grande capital internacional e
nacional, mediados pelas agências multilaterais. Dentre estas agências, o Banco Mundial
ganha destaque como importante formulador e divulgador da racionalidade da contrareforma.
É importante considerar que o ideário da contra-reforma encontra terreno fértil no
Estado brasileiro, tendo em vista as suas particularidades históricas. A política neoliberal
recrudesce a estrutura histórica da sociedade brasileira, tendo em vista que as tendências
atuais do capitalismo reforçam de três formas os privilégios: 1) destinando prioritariamente
os fundos públicos para investimentos de interesse do capital; 2) transferindo, via
privatização, aos próprios grupos oligopólicos os antigos mecanismos estatais de
proteção dos oligopólios, com ajuda substantiva dos fundos públicos; 3) transformando
direitos sociais em bens consumíveis via mercado privado e sob a lógica deste. (Chauí,
2000: p. 94) Tal processo, dessa forma, atende interesses nacionais e internacionais
dominantes, mas também sofre resistências da classe trabalhadora e é, por isso mesmo,
configurado de forma a burlar essas resistências.
3
Há duas importantes características da política de saúde que contribuem
decisivamente com o contorno e as particularidades da contra-reforma, bem como com as
formas de resistência a esse processo:
1) O direito público e universal à saúde foi resultado da luta e organização do
movimento da reforma sanitária, que contribuiu decisivamente para uma
concepção politizada desse direito. Mesmo que tal conquista não chegue a
questionar a ordem econômica e social, consiste num importante ganho para os
interesses da classe trabalhadora. Isto porque no marco da formação social
brasileira, com um Estado e uma sociedade profundamente autoritários e distantes
dos interesses dos trabalhadores, oscilando na sua trajetória histórica entre
regimes autocráticos e democracias restritas, as conquistas de 1988 e,
especificamente, a organização do SUS em seus princípios originais se
contrapunham a diversos interesses da burguesia nacional e internacional;
2) A política de saúde está diretamente relacionada a um direito humano
fundamental: o direito à vida. Após a última Constituição, com a configuração
pública estatal que este direito adquiriu, dificilmente algum agente sociopolítico se
contrapõe a ele de forma expressiva e aberta sem levantar grande resistência.
São essas características da política de saúde brasileira, mediadas também pelos
interesses políticos e econômicos dos projetos societários em confronto, que vão
contribuir substantivamente para a configuração das particularidades da contra-reforma
na saúde:
•
Esse processo não vem ocorrendo na forma de um movimento explícito e amplo,
muito pelo contrário, para burlar as possíveis resistências vem se constituindo de
modo fragmentado, experimental e se espraiando paulatina e continuadamente no
interior do sistema;
•
O sistema vem crescendo de forma precarizada e fragmentada, sem de fato atender a
magnitude das necessidades da população usuária, configurando-se como uma
ampliação restrita;
•
Os princípios e fundamentos legais do SUS são refuncionalizados, adquirem
conteúdos distintos da racionalidade hegemônica no projeto de reforma sanitária,
incorporando elementos da nova racionalidade hegemônica hoje no sistema;
4
•
Para isso foi necessário que ocorresse o transformismo de muitas lideranças do
movimento de reforma sanitária, com um engajamento ativo destes como defensores
e/ou formuladores da contra-reforma.
As orientações do Banco Mundial para a política de saúde fundamentalmente
giram em torno da racionalização dos gastos públicos, da focalização dos serviços
prestados e da parceria público-privado, via convênios e contratos de gestão, colocando
em questão o direito público, gratuito e universal à saúde. A justificativa de tais medidas,
de acordo com o Banco, encontra-se na necessidade de priorizar o atendimento à
população mais pobre e vulnerabilizada, ressignificando o princípio da equidade sob um
enfoque distinto do marco legal original3 do SUS, retirando dele as mediações com a
universalidade e a igualdade de acesso.
O processo de ajuste do Estado brasileiro inicia-se no governo Collor de Melo,
mas é durante a gestão de oito anos do governo Fernando Henrique Cardoso que a
contra-reforma torna-se central, configurando, inclusive, um projeto de “Reforma
Administrativa do Estado”. Foi neste projeto que Bresser Pereira inseriu a denominada
reforma gerencial na saúde, consubstanciada na Norma Operacional Básica de 1996
(NOB 96), que pode ser considerado o marco inicial da contra-reforma na saúde e que, no
entanto, foi apresentada como avanço da reforma sanitária e não como um amplo
processo de contra-reforma.
Segundo Rizzotto (2000), de fato, a NOB de 1996 corresponde, em parte, a
algumas diretrizes desse projeto e das orientações do próprio Banco Mundial, seja no que
se refere à plena responsabilização dos municípios e à implementação de pacotes
básicos de serviços de saúde, seja na organização de um modelo de atenção à saúde em
que os municípios superem o papel exclusivo de prestadores de serviços para tornarem–
se gestores da política de saúde, seja pela estruturação de subsistemas municipais de
saúde, correndo-se o risco de fragmentação do sistema, dentre outros.
Tal processo chega a um novo patamar no atual governo Lula da Silva. Num
recente relatório do Banco Mundial sobre o SUS, intitulado “Brasil: governança no
Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro - fortalecendo a qualidade dos investimentos
públicos e da gestão de recursos” (2007), fica expresso o deslocamento dos conflitos e
dificuldades do sistema exclusivamente para o âmbito da gestão – seja o momento do
planejamento, seja da organização e gestão do orçamento. Situam-se como problemas
3
Aqui denominamos marco legal original: Constituição de 1988 e as Leis 8080 e 8142.
5
específicos da organização e funcionamento do SUS: suas normas onerosas; as
exigências burocráticas de habilitação dos municípios; a pouca capacidade de gestão da
maioria dos municípios que é de pequeno porte; a inadequação da política de recursos
humanos e de sua gestão, devido à rigidez da legislação; a interferência freqüente da
política no planejamento e na eleição de prioridades, entre outros. Há, dessa forma, uma
orientação subliminar sobre a necessidade de mudanças na modalidade de gestão da
política.
Nesse mesmo ano de 2007, o governo Lula, através do Ministério da Saúde e do
Ministério do Planejamento, apresenta ao legislativo o Projeto de Lei 92/2007, propondo
as fundações estatais de direito privado, que instaura no âmbito da gestão pública uma
nova etapa do processo de contra-reforma iniciado nos anos 1990, fundado na
racionalidade hegemônica do projeto de saúde privatista.
Também em 2007, o Ministério da Saúde lança o “Mais Saúde: Direito de Todos
2008-2011”, o PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) da Saúde, que pode ser
considerado, junto com o Projeto de Lei 92/2007, como um segundo marco na contrareforma da política de saúde, conferindo-lhe um nova qualidade.
A análise desse programa revela importantes evidências da racionalidade
hegemônica na política de saúde: afirma-se de forma expressiva a defesa da saúde
pública e do Sistema Único de Saúde, no entanto, dialeticamente são introduzidos
conteúdos incompatíveis ao projeto de reforma sanitária; os limites efetivos da política de
saúde - como o parco financiamento – são colocados como dados da realidade,
naturalizados ou subestimados, transferindo-se a solução de todos os seus conflitos e
contradições para o âmbito da gestão em saúde; há uma defesa explícita de novas
modalidades de gestão, numa menção direta ou indireta às fundações estatais de direito
privado; a saúde é concebida como espaço estratégico não só no campo do direito, mas
também
no
econômico,
integradora
de
uma
estratégia
de
reatualização
desenvolvimentista; há uma tecnificação da gestão, com processos avaliativos
instrumentalistas e políticas que descolam os conflitos e contradições de suas raízes
concretas.
Contudo, é importante ressaltar que a racionalidade hegemônica hoje no SUS não
é simples reprodução das orientações do Banco Mundial, tendo em vista que constitui-se,
como afirmamos anteriormente, produto histórico do tensionamento dos projetos em
disputa, incorporando elementos particulares nesse movimento.
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Conclusões
As particularidades e características aqui analisadas conferem ainda mais
tensionamentos à materialização do SUS, denotando que a racionalidade que o
fundamenta hegemonicamente incorpora elementos do projeto de reforma sanitária
agregando a eles um conteúdo tecnicista, desistoricizante, segmentador da realidade,
retirando-lhes o conteúdo mais radical sob os limites do capital. Ressaltamos, porém, que,
mesmo conferindo maiores tensionamentos, dialeticamente, essa nova racionalidade do
SUS tem uma potencialidade maior de adesão e não resistência.
O conteúdo transformista dessa racionalidade, que refuncionaliza princípios do
SUS constitucional, colocava-se como tendência desde o governo FHC, mas é no
governo Lula que se consolida e chega a um novo patamar de qualidade, posto que os
gestores da saúde, predominantemente, constituem-se lideranças históricas do
movimento de reforma sanitária. Além disso, é sob sua gestão que a política do Ministério
da Saúde retoma a discussão da reforma sanitária, que volta a ser identificada nos
documentos, relatórios e na própria política ministerial. No entanto, esta retomada tem
uma série de limitações, sendo a maior delas a política econômica conservadora que
inviabiliza um sistema de seguridade social efetivamente público, universal e de qualidade
ao subordiná-los aos interesses do grande capital. Diante destes interesses, o projeto de
reforma sanitária torna-se “inviável”, por isso, é necessário flexibilizá-lo, ou reatualizá-lo
de acordo com as novas necessidades sociais. Este processo também expressa o grande
tensionamento no interior do governo, porém, pode-se afirmar que a hegemonia encontrase com o projeto privatista e com aqueles que flexibilizaram os princípios da reforma
sanitária.
A aparente dualidade entre a política pública precarizada e as eficientes propostas
de inovações na gestão do sistema, entre o SUS histórico e o SUS materializado,
integram um mesmo movimento, uma mesma racionalidade, que tem impactos
importantes sobre as práticas sociais dos trabalhadores da saúde – dentre estes o
assistente social – e sobre a população usuária do sistema.
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