69 70 III O JUSNATURALISMO 71 O caráter do jusnaturalismo1 Embora a ideia do direito natural remonte à época clássica, e não tenha cessado de viver durante a Idade Média, a verdade é que quando se fala de “doutrina” ou de “escola” do direito natural, sem outra qualificação, ou, mais brevemente, com um termo mais recente e não ainda acolhido em todas as línguas europeias, de “jusnaturalismo”, a intenção é referir-se à revivescência, ao desenvolvimento e à difusão que a antiga e recorrente ideia do direito natural teve durante a idade moderna, no período que intercorre entre o início do século XVII e o fim do XVIII. Segundo uma tradição já consolidada na segunda metade do século XVII – mas que há algum tempo, com fundamento, tem sido posta em discussão –, a escola do direito natural teria tido uma precisa data de início com a obra de Hugo Grócio (1588-1625), De iure belli ac pacis, publicada em 1625 e anos antes do Discours de la méthode de Descartes. Mas não tem uma data de encerramento igualmente clara, ainda que não haja duvidas sobre os eventos que assinalaram o seu fim: a criação das grandes codificações, especialmente a napoleônica, que puseram as bases para o renascimento de uma atitude de maior reverência em face das leis estabelecidas e, por conseguinte, daquele modo de conceber o trabalho do jurista e a função da ciência jurídica que toma o nome de positivismo jurídico. Por outro lado, é bem conhecida também a corrente de pensamento que decretou sua morte: o historicismo, especialmente o historicismo jurídico, que se manifesta muito em particular na Alemanha (onde, de resto, a escola do direito natural encontrara sua pátria de adoção), com a Escola histórica do direito. Ademais, se quiséssemos indicar precisamente uma data emblemática desse ponto de BOBBIO, Norberto. O modelo jusnaturalista. São Paulo, Brasiliense, 1979. 1 72 chegada, poderíamos escolher o ano da publicação do ensaio juvenil de Hegel, Ueber die wissenschaftlichen Behandlungsarten des Naturrechts (Sobre os diversos modos de tratar cientificamente o direito natural), publicado em 1802. Nessa obra, o filósofo – cujo pensamento representa a dissolução definitiva do jusnaturalismo – submete a uma crítica radical as filosofias do direito que o precederam, de Grócio a Kant e Fichte. Sob a velha etiqueta de “escola do direito natural”, escondem-se autores e correntes muito diversos: grandes filósofos como Hobbes, Leibniz, Locke, Kant, que se ocuparam também, mas não precipuamente, de problemas jurídicos e políticos, pertencentes a orientações diversas e por vezes opostas de pensamento, como Locke e Leibniz, como Hobbes e Kant; juristas-filósofos, como Pufendorf, Thomasius e Wolff, também divididos quanto a pontos essenciais da doutrina (Wolff, para darmos apenas um exemplo, é considerado como o antiPufendorf); professores universitários, autores de tratados escolásticos que, depois de seus discípulos, talvez ninguém mais tenha lido; e finalmente, um dos maiores escritores políticos de todos os tempos, o autor de O Contrato Social. Por outro lado, enquanto para os juristas-filósofos a matéria do direito natural compreende tanto o direito privado quanto o direito público (e muito mais o primeiro que o segundo), para os outros, em especial para os três grandes, por cuja obra se mede hoje a importância do jusnaturalismo, e em função dos quais talvez valha ainda a pena falar de um “direito natural moderno” contraposto ao medieval e ao antigo – estou me referindo a Hobbes, Locke e Rousseau –, o tema de suas obras é quase que exclusivamente o direito público, o problema do fundamento e da natureza do Estado. Embora a divisão entre uma e outra historiografia particular seja uma convenção, que pode também ser deixada de lado e que, de qualquer modo, é preciso evitar considerar como uma muralha 73 intransponível, não há dúvida de que uns pertencem principalmente à história das doutrinas jurídicas, enquanto os outros pertencem àquela das doutrinas políticas. Contudo, apesar da disparidade dos autores compreendidos sob as insígnias da mesma escola, ou, o que é sinônimo, do mesmo “ismo”, e não obstante o que de artificial, e por sua vez de “escolástico”, existe em proceder por escolas ou por “ismos”, não se pode dizer que tenha sido um capricho falar de uma escola do direito natural. Dela se falou, é verdade, com duas perspectivas diversas: pelos próprios fundadores e seus seguidores, com a finalidade de construir uma árvore genealógica frondosa e, além do mais, com um ilustre antecessor, de quem eles pudessem tirar vantagem e argumento para se considerarem como inovadores que deixaram para trás um passado de erros e de barbárie; pelos adversários, para os quais, uma vez esgotado o impulso criador da escola, o fato de pôr todos os seus componentes, indistintamente, num único alinhamento tornava mais fácil acertar no alvo, com a finalidade de desembaraçar-se de uma vez para sempre de um erro funesto. Enquanto a primeira perspectiva permite-nos captar aquilo contra o que os criadores e os fiéis seguidores da escola se opuseram, a segunda nos permite compreender o que a eles foi contraposto por seus críticos: como se sabe, não há modo melhor para compreender as linhas essenciais de um movimento de pensamento que considerá-lo do ponto de vista das teses alheias que ele negou e do ponto de vista das próprias teses que foram negadas pelos outros. Pois bem: tanto uma quanto outra perspectiva convergem para trazer à luz um princípio de unificação daquilo que ambas as partes convieram chamar de uma “escola”. Esse princípio não reside nesse ou naquele conteúdo, mas consiste certamente num modo de se aproximar do estudo do direito e, em geral, da ética e da filosofia prática: numa palavra, no “método”. O método que une autores tão 74 diversos é o método racional, ou seja, aquele método que deve permitir a redução do direito e da moral (bem como da política), pela primeira vez na história da reflexão sobre a conduta humana, a uma ciência demonstrativa. No campo das ciências morais, dominara por longo tempo, incontrastadamente, a opinião de Aristóteles, segundo a qual – no conhecimento do justo e do injusto – não é possível atingir a mesma certeza a que chega o raciocínio matemático, e que é preciso nos contentarmos com um conhecimento provável: “Seria tão inconveniente – ele afirmara – exigir demonstrações de um orador quanto contentar-se com a probabilidade nos raciocínios de um matemático”.2 É conhecido o peso dessa opinião no estudo do direito. Só se compreende a novidade do direito natural se este for comparado com a situação do estudo do direito antes da virada, ou seja, se não for dado um mínimo de atenção, como dizíamos há pouco, a tudo isso de que ele é a negação. Propondo a redução da ciência do direito à ciência demonstrativa, os jusnaturalistas defendem, pela primeira vez com tal ímpeto na história da jurisprudência, a ideia de que a tarefa do jurista não é a de interpretar regras já dadas, que enquanto tais não podem deixar de se ressentir das condições históricas na qual foram emitidas, mas é aquela – bem mais nobre – de descobrir as regras universais da conduta, através do estudo da natureza do homem, não diversamente do que faz o cientista da natureza, que finalmente deixou de ler Aristóteles e se pôs a perscrutar o céu. Para o jusnaturalista, a fonte do direito não é o Corpus iuris, mas a “natureza das coisas”. Em suma: o que os jusnaturalistas eliminam do seu horizonte é a interpretatio: mesmo que os juristas continuem a comentar as leis, o jusnaturalista não é um intérprete, mas um descobridor. 2 Aristóteles, Ética a Nicômaco, 1094 b. 75 Thomas Hobbes Trechos do Leviatã* Da condição natural da humanidade relativamente à sua felicidade e miséria A natureza fez os homens tão iguais, quanto às faculdades do corpo e do espírito que, embora por vezes se encontre um homem manifestamente mais forte de corpo, ou de espírito mais vivo do que outro, mesmo assim, quando se considera tudo isto em conjunto, a diferença entre um e outro homem não é suficientemente considerável para que qualquer um possa com base nela reclamar qualquer benefício a que outro não possa também aspirar, tal como ele. Porque quanto à força corporal o mais fraco tem força suficiente para matar o mais forte, quer por secreta maquinação, quer aliando-se com outros que se encontrem ameaçados pelo mesmo perigo. Durante o tempo em que os homens vivem sem um poder comum capaz de os manter a todos em respeito, eles se encontram naquela condição a que se chama guerra; e uma guerra que é de todos os homens contra todos os homens. Pois a guerra não consiste apenas na batalha, ou no ato de lutar, mas naquele lapso de tempo durante o qual a vontade de travar batalha é suficientemente conhecida. Portanto a noção de tempo deve ser levada em conta quanto à natureza da guerra, do mesmo modo que quanto à natureza do clima. São Paulo: Nova Cultural, 1973. Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva * 76 Porque tal como a natureza do mau tempo não consiste em dois ou três chuviscos, mas numa tendência para chover que dura vários dias seguidos, assim também a natureza da guerra não consiste na luta real, mas na conhecida disposição para tal, durante todo o tempo em que não há garantia do contrário. Todo o tempo restante é de paz. Portanto tudo aquilo que é válido para um tempo de guerra, em que todo homem é inimigo de todo homem, o mesmo é válido também para o tempo durante o qual os homens vivem sem outra segurança senão a que lhes pode ser oferecida por sua própria força e sua própria invenção. Numa tal situação não há lugar para a indústria, pois seu fruto é incerto; consequentemente não há cultiva da terra, nem navegação, nem uso das mercadorias que podem ser importadas pelo mar; não há construções confortáveis, nem instrumentos para mover e remover as coisas que precisam de grande força; não há conhecimento da face da Terra, nem cômputo do tempo, nem artes, nem letras; não há sociedade; e o que é pior do que tudo, um constante temor e perigo de morte violenta. E a vida do homem é solitária, pobre, sórdida, embrutecida e curta. Poderá porventura pensar-se que nunca existiu um tal tempo, nem uma condição de guerra como esta, e acredito que jamais tenha sido geralmente assim, no mundo inteiro; mas há muitos lugares onde atualmente se vive assim. Porque os povos selvagens de muitos lugares da América, com exceção do governo de pequenas famílias, cuja concórdia depende da concupiscência natural, não possuem qualquer espécie de governo, e vivem em nossos dias daquela maneira embrutecida que acima referi. Seja como for, é fácil conceber qual seria o gênero de vida quando não havia poder comum a recear, através do gênero de vida em que os homens que anteriormente viveram sob um governo pacífico costumam deixar-se cair, numa guerra civil. 77 Mas mesmo que jamais tivesse havido um tempo em que os indivíduos se encontrassem numa condição de guerra de todos contra todos, de qualquer modo em todos os tempos os reis, e as pessoas dotadas de autoridade soberana, por causa de sua independência vivem em constante rivalidade, e na situação e atitude dos gladiadores, com as armas assestadas, cada um de olhos fixos no outro; isto é, seus fortes, guarnições e canhões guardando as fronteiras de seus reinos, e constantemente com espiões no território de seus vizinhos, o que constitui uma atitude de guerra. Mas como através disso protegem a indústria de seus súditos, daí não vem como consequência aquela miséria que acompanha a liberdade dos indivíduos isolados. Desta guerra de todos os homens contra todos os homens também isto é consequência: que nada pode ser injusto. As noções de bem e de mal, de justiça e injustiça, não podem aí ter lugar. Onde não há poder comum não há lei, e onde não há lei não há injustiça. Na guerra, a força e a fraude são as duas virtudes cardeais. A justiça e a injustiça não fazem parte das faculdades do corpo ou do espírito. Se assim fosse, poderiam existir num homem que estivesse sozinho no mundo, do mesmo modo que seus sentidos e paixões. São qualidades que pertencem aos homens em sociedade, não na solidão. Outra consequência da mesma condição é que não há propriedade, nem domínio, nem distinção entre o meu e o teu; só pertence a cada homem aquilo que ele é capaz de conseguir, e apenas enquanto for capaz de conservá-lo. É pois esta a miserável condição em que o homem realmente se encontra, por obra da simples natureza. Embora com uma possibilidade de escapar a ela, que em parte reside nas paixões, e em parte em sua razão. Da primeira e Segunda leis naturais 78 O direito de natureza, a que os autores geralmente chamam jus naturale, é a liberdade que cada homem possui de usar seu próprio poder, da maneira que quiser, para a preservação de sua própria natureza, ou seja, de sua vida; e consequentemente de fazer tudo aquilo que seu próprio julgamento e razão lhe indiquem como meios adequados a esse fim. Por liberdade entende-se, conforme a significação própria da palavra, a ausência de impedimentos externos, impedimentos que muitas vezes tiram parte do poder que cada um tem de fazer o que quer, mas não podem obstar a que use o poder que lhe resta, conforme o que seu julgamento e razão lhe ditarem. Uma lei de natureza (lex naturalis) é um preceito ou regra geral, estabelecido pela razão, mediante o qual se proíbe a um homem fazer tudo o que possa destruir sua vida ou privá-lo dos meios necessários para preservá-la, ou omitir aquilo que pense poder contribuir melhor para preservá-la. Porque embora os que têm tratado deste assunto costumem confundir jus e lex, o direito e a lei, é necessário distingui-los um do outro. Pois o direito consiste na liberdade de fazer ou de omitir, ao passo que a lei determina ou obriga a uma dessas duas coisas. De modo que a lei e o direito se distinguem tanto como a obrigação e a liberdade, as quais são incompatíveis quando se referem à mesma matéria. É dado que a condição do homem (conforme foi declarado no capítulo anterior) é uma condição de guerra de todos contra todos, sendo neste caso cada um governado por sua própria razão, e não havendo nada, de que possa lançar mão, que não possa servir-lhe de ajuda para a preservação de sua vida contra seus inimigos, segue-se daqui que numa tal condição todo homem tem direito a todas as coisas, incluindo os corpos dos outros. Portanto, enquanto perdurar este direito de cada homem a todas as coisas, não poderá haver para nenhum homem (por mais forte e sábio que seja) a segurança 79 de viver todo o tempo que geralmente a natureza permite aos homens viver. Consequentemente é um preceito ou regra geral da razão que todo homem deve esforçar-se pela paz, na medida em que tenha esperança de consegui-la, e caso não a consiga pode procurar e usar todas as ajudas e vantagens da guerra. A primeira parte desta regra encerra a lei primeira e fundamental de natureza, isto é, procurar a paz, e segui-la. A segunda encerra a suma do direito de natureza, isto é, por todos os meios que pudermos, defendermo-nos a nós mesmos. Desta lei fundamental de natureza, mediante a qual se ordena a todos os homens que procurem a paz, deriva esta segunda lei: Que um homem concorde, quando outros também o façam, e na medida em que tal considere necessário para a paz e para a defesa de si mesmo, em renunciar a seu direito a todas as coisas, contentando-se, em relação aos outros homens, com a mesma liberdade que aos outros homens permite em relação a si mesmo. Porque enquanto cada homem detiver seu direito de fazer tudo quanto queira todos os homens se encontrarão numa condição de guerra. Mas se os outros homens não renunciarem a seu direito, assim como ele próprio, nesse caso não há razão para que alguém se prive do seu, pois isso equivaleria a oferecer-se como presa (coisa a que ninguém é obrigado), e não a dispor-se para a paz. Renunciar ao direito a alguma coisa é o mesmo que privar-se da liberdade de negar ao outro o beneficio de seu próprio direito à mesma coisa. Pois quem abandona ou renuncia a seu direito não dá a qualquer outro homem um direito que este já não tivesse antes, porque não há nada a que um homem não tenha direito por natureza; mas apenas se afasta do caminho do outro, para que ele possa gozar de seu direito original, sem que haja obstáculos da sua parte, mas não sem que haja obstáculos da parte dos outros. De modo que a consequência que redunda para um homem da desistência de outro a seu direito é simplesmente uma diminuição 80 equivalente dos impedimentos ao uso de seu próprio direito original Leis e Direitos Naturais 1º. Direito natural (jus naturale): liberdade que cada homem possui de usar seu próprio poder, da maneira que quiser, para a preservação de sua própria natureza, ou seja, de sua vida; e consequentemente de fazer tudo aquilo que seu próprio julgamento e razão lhe indiquem como meios adequados a esse fim. 1ª. Lei da natureza Uma lei de natureza (lex naturalis) é um preceito ou regra geral, estabelecido pela razão, mediante o qual se proíbe a um homem fazer tudo o que possa destruir sua vida ou privá-lo dos meios necessários para preservá-la, ou omitir aquilo que pense poder contribuir melhor para preservá-la. 2º. Direito Natural Todo homem tem direito a todas as coisas, incluindo os corpos dos outros. Que todo homem deve esforçar-se pela paz, na medida em que tenha esperança de consegui-la, e caso não a consiga pode procurar e usar todas as ajudas e vantagens da guerra. A primeira parte desta regra encerra a lei primeira e fundamental de natureza, isto é, procurar a paz, e segui-la. A segunda encerra a suma do direito de natureza, isto é, por todos os meios que pudermos, defendermo-nos a nós mesmos. 2ª. Lei natural Que um homem concorde, quando outros também o façam, renunciar a seu direito a todas as coisas. Porque enquanto cada homem detiver seu direito de fazer tudo quanto 81 queira todos os homens se encontrarão numa condição de guerra. Há um direito que é impossível admitir que algum homem possa abandonar ou transferir: o de renunciar ao direito de resistir a quem o ataque pela força para tirar-lhe a vida 3ª. Lei natural Que os homens cumpram os pactos que celebrarem. Sem esta lei os pactos seriam vãos, e não passariam de palavras vazias; como o direito de todos os homens a todas as coisas continuaria em vigor, permaneceríamos na condição de guerra. Nesta lei de natureza reside a fonte e a origem da justiça. Porque sem um pacto anterior não há transferência de direito, e todo homem tem direito a todas as coisas, consequentemente nenhuma ação pode ser injusta. Mas, depois de celebrado um pacto, rompê-lo é injusto. E a definição da injustiça não é outra senão o não cumprimento de um pacto. E tudo o que não é injusto é justo. 4ª. Lei natural Tal como a justiça depende de um pacto antecedente, assim também a gratidão depende de uma graça antecedente, quer dizer, de uma dádiva antecedente. É esta a quarta lei de natureza, que pode ser assim formulada: Que quem recebeu benefício de outro homem, por simples graça, se esforce para que o doador não venha a ter motivo razoável para arrepender-se de sua boa vontade. 5ª. Lei natural A quinta lei de natureza é a complacência, quer dizer: Que cada um se esforce por acomodar-se com os outros. Para compreender esta lei é preciso levar em conta que na aptidão dos homens para a sociedade existe certa diversidade de 82 natureza, derivada da diversidade de suas afecções. Pois sendo de esperar que cada homem, não apenas por direito mas também pela necessidade de sua natureza, se esforce o mais que possa por conseguir o que é necessário a sua conservação, todo aquele que a tal se oponha, por causa de coisas supérfluas, é culpado da guerra que daí venha a resultar, e portanto age contrariamente à lei fundamental de natureza que ordena procurar a paz. 6ª. Lei natural A sexta lei de natureza é: Que como garantia do tempo futuro se perdoem as ofensas passadas, àqueles que se arrependam e o desejem. Porque o perdão não é mais do que uma garantia de paz, a qual, embora quando dada aos que perseveram em sua hostilidade não seja paz, mas medo, quando recusada aos que oferecem garantia do tempo futuro é sinal de aversão pela paz, o que é contrário à lei de natureza. 7ª. Lei natural A sétima lei é: Que na vingança (isto é, a retribuição do mal com o mal) os homens não olhem à importância do mal passado, mas só à importância do bem futuro. 8ª. Lei natural Desta lei depende uma outra: Que ao iniciarem-se as condições de paz ninguém pretenda reservar para si qualquer direito que não aceite seja também reservado para qualquer dos outros. 9ª. Lei natural Se a alguém for confiado servir de juiz entre dois homens, é um preceito da lei de natureza que trate a ambos equitativamente. Pois sem isso as controvérsias entre os homens só podem ser decididas pela guerra. 83 10ª. Lei natural Que as coisas que não podem ser divididas sejam gozadas em comum, se assim puder ser; e, se a quantidade da coisa o permitir, sem limite; caso contrário, proporcionalmente ao número daqueles que a ela têm direito. Caso contrário, a distribuição seria desigual, e contrária à equidade. 11ª: Lei natural Mas há algumas coisas que não podem ser divididas nem gozadas em comum. Para esses casos, a lei de natureza que prescreve a equidade exige Que o direito absoluto, ou então (se o uso for alternado) a primeira posse, sejam determinados por sorteio. Porque a distribuição equitativa faz parte da lei de natureza, e é impossível imaginar outras maneiras de fazer uma distribuição equitativa. 12ª. Lei natural É também uma lei de natureza Que a todos aqueles que servem de mediadores para a paz seja concedido salvo-conduto. Porque a lei que ordena a paz, enquanto fim, ordena a intercessão, como meio. E o meio para a intercessão é o salvo-conduto. As leis de natureza são imutáveis e eternas, pois a injustiça, a ingratidão, a arrogância, o orgulho, a iniquidade, a acepção de pessoas e os restantes jamais podem ser tornados legítimos. Pois jamais poderá ocorrer que a guerra preserve a vida, e a paz a destrua. Essas leis, na medida em que obrigam apenas a um desejo e a um esforço, isto é, um esforço não fingido e constante, são fáceis de obedecer. As leis de natureza (como a justiça, a equidade, a modéstia, a piedade, ou, em resumo, fazer aos outros o que queremos que nos façam) por si mesmas, na ausência do temor de algum poder capaz de levá-las a ser respeitadas, são 84 contrárias a nossas paixões naturais, as quais nos fazem tender para a parcialidade, o orgulho, a vingança e coisas semelhantes. E os pactos sem a espada não passam de palavras, sem força para dar qualquer segurança a ninguém. Portanto, apesar das leis de natureza (que cada um respeita quando tem vontade de respeitá-las e quando pode fazê-lo com segurança), se não for instituído um poder suficientemente grande para nossa segurança, cada um confiará, e poderá legitimamente confiar, apenas em sua própria força e capacidade, como proteção contra todos os outros. Thomas Hobbes de Malmsbury Hobbes é considerado o precursor do positivismo, do materialismo e do mecanicismo. É ao mesmo tempo naturalista e positivista, empirista e racionalista. - Filosofar significa calcular, ou seja, somar e subtrair. Tudo o que não pode ser composto ou decomposto não faz parte do domínio da razão, e sim da fé. - Para Hobbes, há uma ciência natural (física, matemática, lógica, ontologia) e uma ciência civil (moral e política). - Hobbes caminha da física para a fisiologia, desta para a psicologia, da psicologia para a filosofia moral e desta para a política. - Todo conhecimento se origina na experiência e limita-se ao que é corpóreo. - Tudo é matéria, até os pensamentos. Alma e espírito não existem. Não há conhecimento de fato de coisas como alma e espírito. - A filosofia política deve ser revista. É inútil elaborar utopias, como fez Platão. A filosofia política deve ser uma construção teórica de aplicação prática. O objetivo é evitar a 85 discórdia e a guerra e esclarecer os homens da necessidade do Estado. - Os princípios da sociedade civil estão no homem, e não no Estado. O que faz com que homens naturalmente livres, iguais e independentes se unam sob um Estado? Para responder, é preciso saber o que é o homem. Entender o homem sob os aspectos fisiológicos e psicológicos é entender como se forma o Estado, como ele se mantém e como pode garantir a paz. - O corpo humano é um mecanismo, tanto quanto o Estado. - O ser humano é em parte animal e em parte racional. Por sua parte animal, o homem é desejo. O primeiro objeto de desejo é o desejo de si, que aparece sob a forma de instinto de autopreservação. Por isso, o egoísmo é natural. O altruísmo, não. - A ciência política consiste em tornar os homens racionais pelo controle de um estado racional. - Entre as paixões primitivas dos homens estão o apetite e a aversão, o ódio e o amor, o prazer e a dor. - A convivência com outros homens, em um estado de guerra, gera insegurança. O medo de ser morto torna os homens violentos, mas esse mesmo medo faz com que se associem e escolham um governante para controlá-los, e que também será controlado pelo povo. - Os homens são, por natureza, iguais, o que significa que ninguém pode reivindicar privilégios ou benefícios. - Os homens são iguais em força e em espírito, são governados por suas paixões e têm o direito de conquistar o que lhes apetecer. - Como todos os homens são dotados de força igual, e como as aptidões intelectuais também se igualam, o recurso à violência se generaliza. - Sem Estado, há apenas a guerra de todos contra todos. 86 - No Estado de Guerra não há indústria, agricultura, navegação, comércio, conforto, conhecimento, contagem do tempo, arte, letras, sociedade, justiça e injustiça, lei, propriedade. Só há risco de morte violenta. - A vida do homem em Estado de Guerra é solitária, pobre, sórdida, embrutecida e curta. - A possibilidade de sair dessa situação se dá através das paixões e da razão. As paixões são o medo de morrer, o desejo de ter uma vida boa e a esperança de conseguir. O instinto de conservação leva ao desejo de paz. A razão dita normas de paz, ou leis de natureza. - Lei natural: preceito ou regra geral estabelecido pela razão, que proíbe um homem de fazer o que destrói sua vida, de privá-lo dos meios necessários para mantê-la e de omitir aquilo que pense poder contribuir para preservá-la. - O direito natural garante ao homem a liberdade de fazer o que estiver a seu alcance para preservar sua vida. - O direito natural diz respeito à liberdade de fazer ou omitir e a lei natural determina ou obriga a fazer ou omitir. - A paz é o que há de mais compatível com o instinto de autopreservação. - Os homens estabelecem um contrato tácito, que contêm os seus ânimos, como defesa interna, e que, reunidos, formarão um povo, de modo a que a multidão dos associados seja tão grande que possa garantir a defesa externa. - As leis não são derivadas de um instinto natural, nem de um consentimento universal, mas da razão que procura os meios de conservação do homem. Isto significa dizer que a obediência moral é meio para uma vida social pacífica e confortável. No entanto, as leis precisam de algo mais que garanta seu cumprimento: um governo que detenha a força, o que só pode ser feito por um governo despótico. - A democracia não é um regime aceitável, porque sempre haverá pessoas que, acreditando saber mais do que as outras, poderiam desencadear guerras civis a fim de 87 conquistar o poder só para elas. Apenas um Estado forte e repressor pode garantir que isso não aconteça. John Locke Segundo Tratado Sobre o Governo Civil* Do estado de natureza 4. Para compreender corretamente o poder político e traçar o curso de sua primeira instituição, é preciso que examinemos a condição natural dos homens, ou seja, um estado em que eles sejam absolutamente livres para decidir suas ações, dispor de seus bens e de suas pessoas como bem entenderem, dentro dos limites do direito natural, sem pedir a autorização de nenhum outro homem nem depender de sua vontade. Um estado, também, de igualdade, onde a reciprocidade determina todo o poder e toda a competência, ninguém tendo mais que os outros; evidentemente, seres criados da mesma espécie e da mesma condição, que, desde seu nascimento, desfrutam juntos de todas as vantagens comuns da natureza e do uso das mesmas faculdades, devem ainda ser iguais entre si, sem subordinação ou sujeição, a menos que seu senhor e amo de todos, por alguma declaração manifesta de sua vontade, tivesse destacado um acima dos outros e lhe houvesse conferido sem equívoco, por uma designação evidente e clara, os direitos de um amo e de um soberano. * São Paulo: Abril Cultural, 1973. Tradução de E. Jacy Monteiro. 88 7. Para que se possa impedir todos os homens de violar os direitos do outro e de se prejudicar entre si, e para fazer respeitar o direito natural que ordena a paz e a “conservação da humanidade”, cabe a cada um, neste estado, assegurar a “execução” da lei da natureza, o que implica que cada um esteja habilitado a punir aqueles que a transgridem com penas suficientes para punir as violações. Pois de nada valeria a lei da natureza, assim como todas as outras leis que dizem respeito aos homens neste mundo, se não houvesse ninguém que, no estado de natureza, tivesse poder para executar essa lei e assim preservar o inocente e refrear os transgressores. E se qualquer um no estado de natureza pode punir o outro por qualquer mal que ele tenha cometido, todos podem fazer o mesmo. Pois nesse estado de perfeita igualdade, onde naturalmente não há superioridade ou jurisdição de um sobre o outro, o que um pode fazer para garantir essa lei, todos devem ter o direito de fazê-lo. 8. Assim, no estado de natureza, um homem adquire um poder sobre o outro; mas não um poder absoluto ou arbitrário para tratar um criminoso segundo as exaltações apaixonadas ou a extravagância ilimitada de sua própria vontade quando está em seu poder; mas apenas para infligir-lhe, na medida em que a tranquilidade e a consciência o exigem, a pena proporcional a sua transgressão, que seja bastante para assegurar a reparação e a prevenção. Pois estas são as únicas duas razões por que um homem pode legalmente ferir outro, o que chamamos de punição. Ao transgredir a lei da natureza, o ofensor declara estar vivendo sob outra lei diferente daquela da razão e equidade comuns, que é a medida que Deus determinou para as ações dos homens, para sua segurança mútua; e assim, tornando-se perigoso para a humanidade, ele enfraqueceu e rompeu o elo que os protege do dano e da violência. Tratando-se de uma violação dos direitos de toda a espécie, de sua paz e de sua segurança, 89 garantidas pela lei da natureza, todo homem pode reivindicar seu direito de preservar a humanidade, punindo ou, se necessário, destruindo as coisas que lhe são nocivas; dessa maneira, pode reprimir qualquer um que tenha transgredido essa lei, fazendo com que se arrependa de tê-lo feito e o impedindo de continuar a fazê-lo, e através de seu exemplo, evitando que outros cometam o mesmo erro. E neste caso e por este motivo, todo homem tem o direito de punir o transgressor e ser executor da lei da natureza. 14. Muitas vezes se pergunta, como uma poderosa objeção: Há, ou algum dia houve, homens em tal estado de natureza? A isto pode bastar responder, no momento, que todos os príncipes e chefes de governos independentes, em todo o mundo, encontram-se no estado de natureza, e que assim, sobre a terra, jamais faltou ou jamais faltará uma multidão de homens nesse estado. Citei todos os governantes de comunidades independentes, estejam ou não vinculadas a outras. Pois não é toda convenção que põe fim ao estado de natureza entre os homens, mas apenas aquela pela qual todos se obrigam juntos e mutuamente a formar uma comunidade única e constituir um único corpo político; quanto às outras promessas e convenções, os homens podem fazê-las entre eles sem sair do estado de natureza. As promessas e os intercâmbios etc., realizados entre dois homens numa ilha ou entre um suíço e um índio, nas florestas da América, os obriga, embora eles estejam entre eles em um perfeito estado de natureza. Pois a verdade e o respeito à palavra dada pertencem aos homens enquanto homens, e não como membros da sociedade. Do estado de guerra 16. O estado de guerra é um estado de inimizade e de destruição; por isso, se alguém, explicitamente ou por seu modo de agir, declara fomentar contra a vida de outro homem 90 projetos, não apaixonados e prematuros, mas calmos e firmes, isto o coloca em um estado de guerra diante daquele a quem ele declarou tal intenção, e assim expõe sua vida ao poder do outro, que pode ele mesmo retirá-la, ou ao de qualquer outro que se una a ele em sua defesa e abrace sua causa; é razoável e justo que eu tenha o direito de destruir aquele que me ameaça com a destruição. Segundo a lei fundamental da natureza, que o ser humano deve ser preservado na medida do possível, se nem todos podem ser preservados, deve-se dar preferência à segurança do inocente; você pode destruir o homem que lhe faz guerra ou que se revelou inimigo de sua existência, pela mesma razão que se pode matar um lobo ou um leão: porque homens deste tipo escapam aos laços da lei comum da razão, não seguem outra lei senão aquela da força e da violência, e assim podem ser tratados como animais selvagens, criaturas perigosas e nocivas que certamente o destruirão sempre que o tiverem em seu poder. 17. Por isso, aquele que tenta colocar outro homem sob seu poder absoluto entra em um estado de guerra com ele; esta atitude pode ser compreendida como a declaração de uma intenção contra sua vida. Assim sendo, tenho razão em concluir que aquele que me colocasse sob seu poder sem meu consentimento me usaria como lhe aprouvesse quando me visse naquela situação e prosseguiria até me destruir; pois ninguém pode desejar ter-me em seu poder absoluto, a não ser para me obrigar à força a algo que vem contra meu direito de liberdade, ou seja, fazer de mim um escravo. Escapar de tal violência é a única garantia de minha preservação; e a razão me leva a encará-lo como um inimigo à minha preservação, que me privaria daquela liberdade que a protege; de forma que aquele que tenta me escravizar coloca-se por conseguinte em um estado de guerra comigo. Aquele que no estado de natureza retirasse a liberdade que pertence a qualquer um naquele estado, necessariamente se supõe que tem intenção de retirar tudo o mais, pois a liberdade é a base de todo o resto; 91 assim como aquele que no estado de sociedade retirasse a liberdade pertencente aos membros daquela sociedade ou da comunidade política, seria suspeito de tencionar retirar deles tudo o mais, e portanto seria tratado como em estado de guerra. 18. Isso autoriza todo homem a matar um ladrão que não lhe fez nenhum mal e não declarou outra intenção contra sua vida, exceto a de mantê-lo sob seu poder pela força para roubar-lhe seu dinheiro ou o que quiser dele; porque ao usar a força onde não tem este direito, para me ter sob seu poder, explicando sua atitude segundo sua vontade, não tenho razão alguma para pensar que este indivíduo, tendo-me sob seu poder e pronto a me privar de minha liberdade, renunciaria a me privar de todo o resto. E por isso me é lícito tratá-lo como alguém que se colocou em um estado de guerra para comigo, ou seja, matá-lo, se eu puder; pois qualquer pessoa que se introduz em um estado de guerra e se torna agressor, está justamente se expondo a este risco. 19. E temos aqui a clara diferença entre o estado de natureza e o estado de guerra, que, embora alguns homens confundam, são tão distintos um do outro quanto um estado de paz, boa-vontade, assistência mútua e preservação, de um estado de inimizade, maldade, violência e destruição mútua. Homens vivendo juntos segundo a razão, sem um superior comum na terra com autoridade para julgar entre eles, eis efetivamente o estado de natureza. Mas a força, ou uma intenção declarada de força, sobre a pessoa de outro, onde não há superior comum na terra para chamar por socorro, é estado de guerra; e é a inexistência de um recurso deste gênero que dá ao homem o direito de guerra ao agressor, mesmo que ele viva em sociedade e se trate de um concidadão. Assim, este ladrão, a quem não posso fazer nenhum mal, exceto apelar para a lei, se ele me roubar tudo o que possuo, seja meu cavalo ou meu casaco, eu posso matá-lo para me defender quando ele me ataca à mão armada; porque a lei, estabelecida para garantir 92 minha preservação contra os atos de violência, quando não pode agir de imediato para proteger minha vida, cuja perda é irreparável, me dá o direito de me defender e assim o direito de guerra, ou seja, a liberdade de matar o agressor; porque este não me deixa tempo para apelar para nosso juiz comum e torna impossível qualquer decisão que permita uma solução legal para remediar um caso em que o mal pode ser irreparável. A vontade de se ter um juiz comum com autoridade coloca todos os homens em um estado de natureza; o uso da força sem direito sobre a pessoa de um homem provoca um estado de guerra, haja ou não um juiz comum. 20. Quando a força deixa de existir, cessa o estado de guerra entre aqueles que vivem em sociedade, e ambos os lados são igualmente submetidos à justa determinação da lei; porque agora eles têm acesso a um recurso, tanto para reparar o mal sofrido quanto para prevenir todo o mal futuro. Mas onde não existe tal recurso, como no estado de natureza, devido à inexistência de leis positivas e de juízes competentes com autoridade para julgar, uma vez iniciado o estado de guerra, ele continua, e a parte inocente tem o direito de destruir a outra quando puder, até que o agressor proponha a paz e deseje a reconciliação em tais termos que possa reparar quaisquer erros que já tenha cometido e assegurar o futuro da vítima. E mesmo onde exista um recurso legal e juízes estabelecidos, se, por uma perversão manifesta da justiça ou clara distorção das leis, sua solução é negada com a finalidade de proteger ou de garantir a violência ou o dano de alguns homens ou de um partido, é difícil imaginar outra situação além de um estado de guerra. Pois onde entra em jogo a violência e danos são causados, ainda que por mãos daqueles que deveriam administrar a justiça, continua se tratando de violência e danos, apesar do nome, das aparências ou das formas de lei; pois a lei tem por finalidade proteger e reparar os inocentes, através de sua aplicação justa a tudo o que está sob sua tutela; quando isso não é realizado de boa-fé, é o 93 mesmo que entrar em guerra contra as vítimas, às quais, não tendo ninguém a quem recorrer na terra, só resta apelar ao céu. Da propriedade 26. Deus, que deu o mundo aos homens em comum, deu-lhes também a razão, para que se servissem dele para o maior benefício de sua vida e de suas conveniências. A terra e tudo o que ela contém foi dada aos homens para o sustento e o conforto de sua existência. Todas as frutas que ela naturalmente produz, assim como os animais selvagens que alimenta, pertencem à humanidade em comum, pois são produção espontânea da natureza; e ninguém possui originalmente o domínio privado de uma parte qualquer, excluindo o resto da humanidade, quando estes bens se apresentam em seu estado natural; entretanto, como foram dispostos para a utilização dos homens, é preciso necessariamente que haja um meio qualquer de se apropriar deles, antes que se tornem úteis ou de alguma forma proveitosos para algum homem em particular. Os frutos ou a caça que alimenta o índio selvagem, que não conhece as cercas e é ainda proprietário em comum, devem lhe pertencer, e lhe pertencer de tal forma, ou seja, fazer parte dele, que ninguém mais possa ter direito sobre eles, antes que ele possa usufruí-los para o sustento de sua vida. 27. Ainda que a terra e todas as criaturas inferiores pertençam em comum a todos os homens, cada um guarda a propriedade de sua própria pessoa; sobre esta ninguém tem qualquer direito, exceto ela. Podemos dizer que o trabalho de seu corpo e a obra produzida por suas mãos são propriedade sua. Sempre que ele tira um objeto do estado em que a natureza o colocou e deixou, mistura nisso o seu trabalho e a isso acrescenta algo que lhe pertence, por isso o tornando sua 94 propriedade. Ao remover este objeto do estado comum em que a natureza o colocou, através do seu trabalho adiciona-lhe algo que excluiu o direito comum dos outros homens. Sendo este trabalho uma propriedade inquestionável do trabalhador, nenhum homem, exceto ele, pode ter o direito ao que o trabalho lhe acrescentou, pelo menos quando o que resta é suficiente aos outros, em quantidade e em qualidade. 28. Aquele que se alimentou com bolotas que colheu sob um carvalho, ou das maçãs que retirou das árvores na floresta, certamente se apropriou deles para si. Ninguém pode negar que a alimentação é sua. Pergunto então: Quando começaram a lhe pertencer? Quando os digeriu? Quando os comeu? Quando os cozinhou? Quando os levou para casa? ou Quando os apanhou? E é evidente que se o primeiro ato de apanhar não os tornasse sua propriedade, nada mais poderia fazê-lo. Aquele trabalho estabeleceu uma distinção entre eles e o bem comum; ele lhes acrescentou algo além do que a natureza, a mãe de tudo, havia feito, e assim eles se tornaram seu direito privado. Será que alguém pode dizer que ele não tem direito àquelas bolotas do carvalho ou àquelas maçãs de que se apropriou porque não tinha o consentimento de toda a humanidade para agir dessa forma? Poderia ser chamado de roubo a apropriação de algo que pertencia a todos em comum? 30. Assim, esta lei da razão dá ao índio o veado que ele matou; admite-se que a coisa pertence àquele que lhe consagrou seu trabalho, mesmo que antes ela fosse direito comum de todos. E entre aqueles que contam como a parte civilizada da humanidade, que fizeram e multiplicaram leis positivas para a determinação da propriedade, a lei original da natureza, que autoriza o início da apropriação dos bens antes comuns, permanece sempre em vigor; graças a ela, os peixes que alguém pesca no oceano, esta grandeza comum a toda a humanidade, ou aquele âmbar cinzento que se recolheu, tornam-se propriedade daquele que lhes consagraram tantos 95 cuidados através do trabalho que os removeu daquele estado comum em que a natureza os deixou. E mesmo entre nós, a lebre que alguém está caçando pertence àquele que a persegue durante a caça. Pois tratando-se de um animal considerado sempre um bem comum, não pertencendo individualmente a ninguém, quem consagrou tanto trabalho para encontrá-lo ou persegui-lo e assim o removendo do estado de natureza em que ele era um bem comum, criou sobre ele um direito de propriedade. 44. Tudo isso evidencia que, embora as coisas da natureza sejam dadas em comum, o homem, sendo senhor de si mesmo e proprietário de sua própria pessoa e das ações de seu trabalho, tem ainda em si a justificação principal da propriedade; e aquilo que compôs a maior parte do que ele aplicou para o sustento ou o conforto de sua existência, à medida que as invenções e as artes aperfeiçoaram as condições de vida, era absolutamente sua propriedade, não pertencendo em comum aos outros. John Locke - Maior contribuição para a teoria política: a naturalização da propriedade e sua legitimação pelo trabalho. Estado de Natureza - O homem é naturalmente moral (racional e razoável). Logo, o estado de natureza é feliz, pacífico e caracterizado pela tolerância. - Os homens são naturalmente iguais e livres para garantir a vida, a saúde, a liberdade e a propriedade. Estes direitos são inalienáveis e de todos os homens, o que significa que não há direito divino de alguns de governar. - Ainda que sejam racionais, os homens podem transgredir as leis da natureza e agir em prejuízo de seus 96 semelhantes. Surge, então, o direito natural: como todos os homens são responsáveis pela execução da lei natural, todos têm o direito de responder na mesma medida à agressão sofrida e de exigir reparação pelo dano causado. - A desigualdade no estado natural é decorrência da transgressão de alguns: aquele que transgride a lei natural coloca-se sob outra lei e se torna passível de ser subjugado. - Um homem no estado natural pode legalmente ferir outro quando a manutenção da lei estiver sob ameaça e quando for o caso de vingar-se de um mal sofrido. Estado de guerra - Um homem, ao desrespeitar o direito de outro à vida, liberdade e propriedade, coloca-se em guerra contra ele. Um governo, ao atuar contra os indivíduos e seus direitos naturais, também se coloca em estado de guerra contra eles. - Estado de guerra e estado de natureza são duas coisas bastante distintas: o estado de guerra acontece em qualquer lugar e em qualquer tempo, sempre que um homem infringir o direito de outro e aquele que sofreu o dano agir individualmente para obter reparação do dano sofrido. O estado de natureza caracteriza os indivíduos sem um estado para governá-los, ou seja, sem uma lei positiva. Surgimento do Estado - O Estado surge para evitar o estado de guerra. Ou seja, para fazer cumprir a lei de natureza e evitar, em contrapartida, a guerra de todos contra todos. - Os homens são parciais quando julgam em causa própria, o que gera confusão e desordem (pois todos têm o direito de se defender, punir o agressor e exigir reparação). O Estado existe primeiramente para conter a parcialidade, ou seja, para evitar a inclinação dos homens em beneficiar a si mesmos e aos amigos. Existindo o Estado e a lei positiva, 97 ninguém pode fazer justiça com as próprias mãos, exceto para defender a própria vida. - O que justifica o surgimento do Estado é a ideia do melhor: os homens estabelecem o contrato para obter seus fins (garantia da vida, da liberdade e da propriedade) de modo mais eficiente. - Visando preservar seus direitos de vida, liberdade e propriedade, os homens abdicam de todos os outros, transferindo-os para o Estado de direito. Trabalho e propriedade - O corpo é a primeira propriedade, o que significa que a propriedade não é concedida pela sociedade civil, mas sim é natural. - O direito à propriedade se origina da relação do homem com a natureza, modificando-a pelo trabalho. - As coisas sem o trabalho têm pouco valor. O trabalho é o agente que modifica o mundo natural e lhe confere valor. Estado constituído - É permitida a rebelião sempre que o governo subverter seus fins. - O bem-estar público é a base do bom governo e o que justifica a imposição de obrigações. Limites do poder do Estado - O Estado não pode ser arbitrário com respeito à vida e ao destino das pessoas. É perigoso conceder poder absoluto a um indivíduo ou grupo. - Para evitar o poder absoluto do Estado, ele deve ser dividido internamente. - O governo tem o poder e o direito de cobrar impostos. Quem deseja a proteção do Estado, que pague por ela. Mas quanto e como deve ser decidido por consenso. 98 - A sociedade civil deve ser dividida em poder legislativo, que diz como se deve agir, e poder executivo, que assegura a execução da lei. No primeiro caso, o parlamento atua como representante da vontade popular. No segundo, o rei faz cumprir a lei através do parlamento. - O direito do governante a seu posto é determinado pelo pacto social e passível de ser revogado. Quadro comparativo Hobbes Natureza humana Teórico do absolutismo O homem é por natureza solitário Sociedade Não pode existir sem o poder do Estado Estado de Natureza Hipotético, mas verossímil Como seria o Estado de Natureza Não há sociedade; apenas medo constante e perigo de morte violenta. Conhecimento no estado de natureza Os homens não sabem o que é certo e o que é errado (são irracionais). Logo, não são capazes de resolver seus Locke Teórico do liberalismo O homem é por natureza um animal político dotado de razão Existe para garantir a manutenção dos direitos naturais Parte da condição humana (o que não confere um caráter histórico à hipótese) Em estado de natureza os homens mantém suas promessas e honram suas obrigações. Apesar de não garantir a segurança individual, é uma condição de paz e bem-estar (como ilustra o caso dos índios) Os homens sabem o que é certo e o que é errado (são racionais). Portanto, são capazes de resolver seus conflitos. 99 Propriedade no estado de natureza Propriedade Conflito Direitos Naturais Contrato Social Violação do Contrato Sociedade Civil conflitos. Não há. As pessoas não são capazes de distinguir entre o que lhes pertence e o que não lhes pertence. Então, se tudo é de todos, ninguém possui coisa alguma. Só existe por vontade do Estado Civil (ou seja, artificialmente) A guerra é a norma. Nós alienamos todos os nossos direitos para o Estado, exceto o direito à vida. Obedeça e terá o direito de não ser morto. Nenhum direito. Meramente a aplicação da força pelo Estado, que A propriedade é um direito natural; o corpo é a primeira propriedade. Por isso, os homens são capazes de distinguir o que lhes pertence do que não lhes pertence. Ainda assim, os homens nem sempre agem de acordo com este conhecimento. Existe naturalmente A paz é a norma. Desistimos de nosso direito à exata retribuição por alguma ofensa sofrida, mas retemos o direito à vida, à propriedade e à liberdade. Garante proteção à propriedade. Se um governante tentar manter um governo absoluto, se agir como juiz e parte em uma contenda, ele se coloca em estado de guerra com seus súditos. Neste caso, tem-se o direito e a obrigação de matá-lo. A sociedade civil cria a ordem e garante a legitimidade do Estado. 100 Papel do Estado Uso da força por parte do Estado representa o contrato. A sociedade civil é criação do Estado. Tem a finalidade e o dever de suprimir pela força os conflitos. O conceito de uso ilegítimo da força, por parte do Estado, não faz sentido. O único papel do Estado é garantir que a justiça seja feita. Só se justifica se e somente se for para garantir a justiça.