POLÍTICAS SOCIAIS E RECONHECIMENTO DO SUJEITO FEMININO Laura Susana Duque-Arrazola.1/NUPEN/UFRPE Introdução: A presente exposição tem por objetivo problematizar a visibilidade e participação do sujeito feminino nas políticas sociais públicas2 e, ao mesmo tempo, iniciar um debate sobre uma nova abordagem das políticas sociais que começa a fazer-se presente no Brasil, a chamada política de reconhecimento3, vista por seus/suas teóricos/as como estratégia de superação das injustiças sociais desde o “giro cultural” que nas últimas décadas do século passado, tem tomado conta das ciências sociais e dos chamados novos movimentos sociais. Desde final dos anos setenta do século passado, no contesto contemporâneo da crise global da maturidade do capitalismo e de hegemonia do pensamento neoliberal, tem crescido o interesse por um novo enfoque das políticas sociais públicas: se políticas de redistribuição ou se políticas de reconhecimento, enquanto mecanismos ou remédios de enfrentamento das desigualdades sociais contemporâneas em que as identidades grupais estariam substituindo os interesses de classe para a mobilização política, e a dominação cultural estaria suplantando a exploração de classe como a injustiça fundamental, tanto nos paises capitalistas desenvolvidos como nos periféricos4. Para fins desta apresentação, mas sem pretender adentrar-me nesse debate, vejamos rapidamente a quê ele se refere. 1 Membro da Coordenação da REDOR, integrante do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Mulher e Relações de Gênero do Departamento de Ciências Domésticas/UFRPE, membro do Grupo de Estudos e Pesquisas do Trabalho do Departamento e Pós-Graduação de Serviço Social/UFPE. 2 O ponto de partida deste estudo é minha tese de doutorado, O lugar das mulheres nas políticas de assistência (2004) e a pesquisa PIBIC/CNPq/UFRPE, 2005,em andamento e por min coordenada: Gênero e políticas públicas: reconhecimento ou transformação ? 3 A importância do reconhecimento social na sociabilidade humana deve-se a Hegel. Para ele o que está por trás dos conflitos sociais é uma luta por reconhecimento. Um dos teóricos contemporâneos do reconhecimento e que tem recuperado a teoria do reconhecimento de Hegel e seus trabalhos de juventude de Jena, é Axel Honneth. 4 Dentre os/as autores/as de referência desta temática estão Nancy Fraser, (2002 a,b); Charles Taylor e Alex Honneth, apud Patrícia Mattos, 2006. Frente à crise do capital e transformações das sociedades na maturidade do capitalismo – capitalismo tardio - fim do bloco socialista soviético - por isso sociedades pós-socialistas (Nancy Fraser, 2002a) - mundialização e financeirização do capital, dentre outras, muitos/as estudiosos/as tem analisado essa complexa e contraditória realidade dando destaque a uma perda da centralidade do trabalho e das classes sociais5, o que teria redefinido as mobilizações e lutas políticas, bem como os movimentos sociais. Estes estariam contestando as injustiças culturais ou simbólicas, reivindicando e demandando mudanças culturais e valorativas, políticas identitarias ou de reconhecimento às que, no entanto, se misturam demandas por mudanças socioeconômicas ou redistributivas dadas as injustiças político-econômicas. Porém, nessa interligação predominariam as reivindicações por reconhecimento cultural como um dos componentes mais significativos da sociabilidade contemporânea em detrimento ou perda das identidades de classe. Desse modo estariam politizando a cultura (idem). Para vários/as estudiosos/as da questão, a luta pelo reconhecimento tornou-se o conflito político por excelência no fim do século XX, contemplando essas lutas demandas pelo reconhecimento das diferenças, como seria o caso dos movimentos étnico-raciais, de nacionalidade, de gênero e sexualidade, substituindo os movimentos de classe. O que tem rebatido nas demandas feministas por políticas públicas, na expansão das lutas de gênero e no conceito de justiça de gênero. Políticas de reconhecimento que no entanto, algumas de suas teóricas/os, a exemplo de Nancy Fraser (2002 a. b) as concebem como não restritivas, compreendendo questões distributivas e igualitárias da redistribuição, bem como questões de representação, identidade e diferença. Entretanto, outras abordagens acrescentam a essas demandas por reconhecimento cultural e identitário, os movimentos que reivindicam e demandam igualdade na distribuição material da riqueza social (renda, propriedade, acesso ao trabalho, equidade salarial, educação, cuidados com a saúde, moradia, alimentação; entre outros. Todos esses movimentos estariam demandando justiça a que, para Nancy Fraser (2002 a, b) hoje requer tanto de remédios de reconhecimento como de remedios redistributivos. Isso porque para esta autora as desigualdades e injustiças econômicas estão relacionadas ao desrespeito e injustiça cultural. Frente ao dilema redistribuicão-reconhecimento Nancy Fraser propõe uma alternativa analítica conceitual para sua abordagem e remédios: “afirmação” e “transformação” 5 Ver entre outros/as Claus Offe (1989); Nancy Fraser (op.cit) respectivamente. Os remédios afirmativos, sejam eles de reconhecimento ou de redistribuição afirmativa corrigiriam as injustiças sem alterar as estruturas que as produzem, ressaltando a positividade cultural e valorativa que lhes dizem respeito, enquanto que os remédios redistributivos transformativos reestruturariam ou transformariam as estruturas genéricas que produzem as injustiças político-economicas-sociais. A questão desta exposição é saber se as políticas sociais que contemplam as mulheres dá a essas políticas um caráter de reconhecimento em proveito da superação das desigualdades e injustiças de gênero das mulheres das camadas mais empobrecidas das classes subalternas. Políticas Socais, Restauração do capital e o Estado. Desde uma perspectiva de totalidade fundamentada na tradição do pensamento marxista e de uma perspectiva feminista de gênero, concebo a política social pública como um mecanismo estratégico de intervenção do Estado no processo de reprodução do capital, compreendendo nele a reprodução da força de trabalho6 de homens e de mulheres, e como integrante do sistema de proteção social brasileiro. Originada no processo de consolidação da sociedade capitalista, a exemplo da Inglaterra, sua generalização enquanto política pública data do segundo pós- guerra com a constituição do Estado de Bem-Estar em paises da Europa ocidental, cujos padrões de proteção social generalizaram-se para os paises centrais e, mais tarde, para os paises periféricos ou em desenvolvimento. Dita expansão está relacionada ao reconhecimeto do empresariado e do Estado da existência da questão social como resultado da politização das necessidades da classe trabalhadora ou subalternas, constituída sexual e políticamente por homens e por mulheres de diferentes raças, etnias, gerações, opções sexuais, entre outras, e, mais tarde, dos setores sociais subalternizados pelo gênero, a raça, a etnia. Politização levada a cabo pelos movimentos e lutas organizadas das classes e setores sociais subalternos. As políticas sociais são, pois, expressão da organização e insurreição das consciências de ditas classes e setores sociais subalternos, referendadas a direitos sociais conquistados mediante sua luta e organização e garantidos por lei, sob a responsabilidade se sua implementação pelo Estado. Portanto, possuem uma dimensão 6 Para os(as) seguidores(as) da escola Regulacionista, a política social é um componente da relação salarial , pactuada com os(as) trabalhadores/as, visando regular o processo de reprodução da força de trabalho. O que se dá nos paises capitalistas avançados e nos chamados periféricos ou em processo de industrialização. (BEHRING, 1998) econômica7, política, social e cultural e exprimem as tensões, conflitos e contradições de classes imbricadas pelo gênero e a raça. Se por um lado as políticas sociais públicas estão referendadas pela legislação e direitos sociais conquistados pelas classes e setores subalternos, como na Constituição de 1988 que consagra a política de proteção social ou de seguridade social como um direito social, “enquanto mecanismos de intervenção estatal elas dependem tanto das lutas dos/das subalternizados/as quanto dos modos de absorção de suas reivindicações pelo capital e pelo Estado”. Daí seu caráter contraditório (DUQUE-ARRAZOLA, Laura 2004::97-98) . Desse modo processasse desde o Estado a alocação e distribuição de valores obtidos da tributação, efetuando assim ações redistributivas amenizadoras das crescentes desigualdades e injustiças socioeconômicas. Por isso considero que para compreender as políticas sociais, davam ser situadas no contexto contemporâneo da crise estrutural do capital e as reações a esta dadas pela burguesia internacional: a restauração do capital e a reforma neoliberal do Estado. Processos estes que, dada a natureza contraditória, desigual e combinada do desenvolvimento capitalista, desde os anos de 1970 tem ampliado as desigualdades socais e, no bojo disso tudo, o processo de acumulação capitalista e a incorporação cada vez maior dos avanços das ciências ao processo geral de produção8, tem produzido um aumento da produtividade do trabalho e, como conseqüência desse processo todo, o surgimento de uma população supérflua, de uma superpopulação relativa (MARX, Carlos 1968), também chamado de exercito industrial de reserva, o que se manifesta no chamado desemprego estrutural globalizado. Na contemporaneidade, dito processo produz uma superpopulação relativamente supérflua e subsidiaria às necessidades médias de seu aproveitamento pelo capital (IAMAMOTO, Marilda, 2001; MARANHÃO, Cezar, 2004), de tal modo que dita superpopulação,constituída por homens e por mulheres, toma a forma histórica dos/das supérfluos para o capital trazendo como conseqüência a precarização do trabalho, o desemprego de homens e de mulheres aptos para trabalhar e empregar-se, o pauperismo, a miséria de grandes contingentes das classes subalternas. Neles destacam-se as mulheres e a população negra, sobretudo as mulheres negras, as mais pobres entre os pobres. Nessa dinâmica 7 Desde a grande crise em 1929, a política social integra a estratégia global anticrise com o objetivo de conter a queda da taxa de lucros, obtendo com isso um controle sobre os ciclos do capital (MANDEL, 1982 e 1990). 8 Para Karl Marx (1970;1974) produção compreende um processo geral –produção, distribuição, troca e consumo – e o processo específico de produção. contraditória do processo de acumulação capitalista e da reprodução ampliada do capital, aparece complexificada a questão social inerente ao próprio processo histórico de acumulação com suas imbricações de classe, gênero e raciais (exploração, desigualdades, injustiças, discriminação, desvaloriazação). Ora, a processualidade da restauração do capital e da reforma do Estado na ordem patriarcal de gênero na sociedade burguesa, se dá de modo sexuado ou generificado, posto que esse processo, além de afetar diferente e desigualmente a mulheres e homens, segundo sua classe social, raça, etnia e geração, em cada sociedade concreta, reproduz e reorienta a divisão sexual do trabalho. Como a sociedade burguesa, o Estado de classe é também patriarcal e não raro racista, constituído pelas relações de gênero que estruturam, organizam e reproduzem a dinâmica da ordem patriarcal de gênero na sua ordem burguesa, imprimindo-lhe configurações sexistas, androcêntricas e de poder sexuado, a exemplo da cidadania, da participação e sistema de representação política, da democracia, só para salientar alguns. O Estado classista, em cumprimento de sua função burguesa de garantir, entre outras: as condições gerais de produção e de reprodução do capital, assume a aparência de instancia neutra por “defender” e promover os interesses gerais ou comuns da nação (concepção liberal) e igualmente assume uma outra aparência de neutralidade e universalidade, “negadora” de seu caráter patriarcal, androcêntrico e sexista representado em sua estruturação, nas leis, na justiça, no direito, formulados androcentricamente no genérico masculino, subsumindo nele à mulher e o feminino (DUQUEARRAZOLA Laura, 2004). O Estado, órgão de comando político do capital ou estrutura “totalizadora de comando político da ordem produtiva e reprodutiva” capitalista (MÉSZAROS, Istvan 2002: 125)9, como aparelho regulador da sociedade moderna e contemporânea, mantém as formas sociais de dominação e opressão anteriores ao capitalismo (ordem patriarcal de gênero, o racismo) e os incorpora a sua lógica de acumulação e exploração do trabalho. Daí que o Estado participe da política sexual do domínio masculino e se configure contraditoriamente como um poder 9 Para Istvan Mészáros (2002:124-125) o Estado, “em razão de seu papel constitutivo e permanentemente sustentador – deve ser entendido como parte integrante da própria base material do capital. Ele contribui de modo significativo não apenas para a formação e a consolidação de todas as grandes estruturas reprodutivas da sociedade, mas também para seu financiamento ininterrupto.” masculino que se exprime nos aparelhos jurídicos e nas leis, forma particular da expressão do Estado e do poder estatal (MacKINNON, Catherine, 1995). No Estado moderno “a norma da lei – neutra, abstrata, elevada, onipresenteinstitucionaliza o poder dos homens sobre as mulheres e institucionaliza o poder em sua forma masculina” (idem:p 428). Desse modo, o poder dos homens sobre as mulheres organiza-se como poder do Estado, o que rebate nas próprias políticas sociais e seus programas, a exemplo das políticas de assistência à saúde como o Programa Saúde da família-PSF, os programas de geração de trabalho e renda, de renda mínima, os programas de crédito para a agricultura familiar como o PRONAF- Mulher, dentre outros (DUQUE-ARRAZOLA Laura, op.cit) Na América Latina – nela, o Brasil – a reestruturação produtiva como forma de enfrentamento da crise do capital vem sendo conduzida de modo combinado com as políticas neoliberais de ajuste estrutural – hegemônicas na região desde 1985 sob a orientação do Banco Mundial e Fundo Monetário Internacional (FMI) - e com a reforma do Estado de cunho neoliberal. Tais políticas caracterizam-se por provocarem a desregulamentação dos mercados abrindo-os ao capital transnacional; a privatização das empresas estatais e os serviços públicos, com a conseqüente mercadorização destes, a exemplo da crescente privatização da saúde, educação e a previdência social; a redução dos gastos e intervenção social do Estado afetando e redefinindo sua ação mediante as políticas sociais públicas, tudo isso justificado em nome de uma crise fiscal do Estado. Esse processo todo tem produzido a distribuição regressiva e desigual dos benefícios do progresso técnico e dos custos sociais da reestruturação e das políticas de ajuste (SOARES, 2001). A propósito, custos pagos principalmente pelos paises periféricos. Como já visto, dentre as conseqüências desse processo global e suas particularidades nas formações sociais latino-americanas, estão: o aumento da superpopulação relativa, do desemprego, a chamada pobreza estrutural global, a precarização do trabalho e a flexibilização deste, o que atinge sobretudo a uma superpopulação relativa de mulheres como a nova figura salarial feminina da crise, configurando-se essa flexibilização como uma flexibilização sexuada (HIRATA, Helena. Apud, DUQUE-ARRAZOLA 2004); atinge também a uma superpopulação relativa em que predominam negros e negras, indígenas (paises andinos), concretizando desse modo a ampliação das desigualdades sociais e suas manifestações de injustiça social com suas marcas de classe, de gênero, raciais e étnicas. Desde a perspectiva aqui assumida, essa totalidade histórica capitalista e a questão social que lhe diz respeito, revela-se cada vez mais constituída pela imbricação dialética das relações de produção capitalista, as relações de gênero e étnicoraciais, mediações da dialética contraditória da sociedade de classes, patriarcal e racista.. Frente ao crescimento das desigualdades sociais, reconhecido por organismos internacionais como o Banco Mundial, o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), estes têm proposto “medidas corretivas” para “supera-las”, como os “programas para os pobres”. Entre estes destacam-se os de renda mínima para combater a pobreza, a exemplo do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil-PETI, cuja bolsa (R$ 25,oo na época em que se realizou a pesquisa) é recebida e controlada pelas mulheres-mães dos meninos e meninas do PETI.10, na aparência de um reconhecimento do Estado patriarcal ao sujeito feminino e sua competência na administração dos parcos recursos da renda familiar e da bolsa . . Agora, face à ampliação das desigualdades e o recrudescimento da questão social, o movimento organizado da classe trabalhadora ou subalterna e dos setores sociais subalternos, dentre eles o movimento de mulheres, em particular o movimento feminista, têm reivindicado e lutado por políticas públicas que contemplem suas necessidades e interesses, objetivando forçar o Estado a uma distribuição da riqueza e bens socialmente produzidos, bem como estratégias afirmativas de valorização e reconhecimento contra todas as formas de discriminação e racismo. Ora, as políticas sociais, assim como legitimam o Estado e os governos de turno, criam crise de legitimidade, na medida em que a intervenção estatal no atendimento às necessidades dos(das) subalternizados(das) sejam de pouca efetividade para superar as desigualdades sociais já existentes, aprofundadas ou recriadas pela crise. Daí a importância da política de assistência social e seus programas compensatórios a exemplo do PETI, do Bolsa Família e de ações afirmativas a exemplo das cotas universitárias para negros/negras. Na contemporaneidade da reforma neoliberal do Estado este, em nome de uma crise fiscal, faz cortes e reduz os gastos com políticas de proteção social e serviços sociais públicos, redirecionando sua ação na implementação e na prestação dos mesmos, bem como na gestão 10 Pelas exigências do texto, o PETI não será analisado aqui como programa de assistência social (Cf. DUQUEARRAZOLA, Laura 2004). da força de trabalho: afasta-se sobremaneira do estabelecimento das políticas sociais e transfere grande parte de suas ações e responsabilidade para o âmbito da família e a esfera privada (empresarial, ONGs, o voluntariado, todas focando a família em sua ação). Assim, a política social, em particular a assistência social pública, transforma-se em políticas compensatórias, focalistas, temporárias, meritocráticas e emergenciais, ao modo da ajuda e benevolência, como explica Carmelita Yazbek (2003). O que, desde já, posso dizer, problematiza essas políticas como políticas redistributivas de transformação das desigualdades e injustiças de classe, de gênero e raciais. E as problematiza, também, como políticas de reconhecimento. Esse modo de concretizar-se as políticas sociais no neoliberalismo representa uma perda de direitos sociais conquistados e consagrados na lei, pela pressão e ação organizada dos/das subalternizados/as. Perda de direitos que exprime um frontal antagonismo e oposição a essas classes e setores sociais, afetando nesse não reconhecimento de direitos, possíveis mediações afirmativas para processos de justiça e redistribuição da riqueza socialmente produzida e os benefícios desta e de reconhecimento com rebatimentos afirmativos de justiça . Para o caso específico da política de assistência social, tal política coloca em questão tanto ações afirmativas de justiça redistributiva como tansformativas. pois não chegam a constituir direitos de todas as pessoas necessitadas. Voltam-se apenas a um setor destas: as mais pobres entre as pobres, criando assim mais obstáculos a sua organização e efetivação de direitos, na medida em que essas pessoas são jogadas a uma violenta luta pela sobrevivência. Como diz Laura T. Soares (2001, p. 34), o redirecionamento das políticas sociais inflexiona o frágil direito de cidadania que vinha sendo construído em muitos paises latino-americanos, sendo substituído por “atestados de pobreza que permitem acessos a precários e mal financiados serviços públicos”. Tem-se então, que nos países latino-americanos como o Brasil, esse processo de reforma do Estado tem provocado o desmonte dos incipientes aparatos públicos de proteção social (SOARES, 2001) e tem conduzido a uma política social residual e focalista, de atendimento às pessoas mais vulneráveis, quer dizer, aos(às) mais pobres entre os(as) pobres. Fato que tem efeitos marcantes no cotidiano das mulheres (adultas e meninas), em particular a das camadas mais pobres das classes subalternas, as que constituem mais do 70% do 1,3 bilhão de pobres do mundo.. A reforma do Estado imprime novas configurações a sua forma de intervenção e reorienta as políticas sociais, as que se deslocam da esfera das políticas universais de proteção social para as ações focais dirigidas apenas para a extrema pobreza. Desse modo, o direito à assistência social se reduz, às camadas extremamente pobres, guiando as escolhas por este segmento social, para programas de combate è pobreza, o princípio neoliberal da seletividade e da menor elegibilidade, sob um aparente discurso de justiça social. Um exemplo disso são as políticas de assistência social e seus programas compensatórios de transferência monetária ou renda mínima, como é o caso do PETI e programas de saúde como o PSF. Entre os argumentos afirmativos de redistribuição econômica e reconhecimento cultural ou simbólico de tais programas orientados a preparar a futura força de trabalho, está a relação que estabelecem entre a pobreza de hoje e a pobreza de amanhã e o vínculo entre precariedade do emprego e dos salários, com o ingresso precoce de crianças e adolescentes – desde avôs/avós a netos/netas – ao mercado de trabalho, em detrimento de seu processo de escolarização. Sujeito feminino participante dos programas de assistência social Com a reconfiguração da intervenção do Estado a partir de sua reforma neoliberal, materializa-se um movimento de “volta” ou de “privatização doméstica” de muitas das atividades da reprodução realizadas nas esferas públicas estatais, na forma de serviços e mediante as políticas socais. Por extensão, com o desenvolvimento urbano-industrial e a divisão social e sexual do trabalho que o sustentam, essas atividades passaram a ser realizadas como serviços, tanto na esfera pública estatal como no setor privado da economia, com predomínio da força de trabalho feminina (“profissões femininas”). Tal processo tem sido analisado por Ernest Mandel (1982) como processo de industrialização da esfera da reprodução no capitalismo tardio ou fenômeno da supercapitalização. Em ambos momentos desse processo regulado pelo Estado (desenvolvimentista, de bemestar, neoliberal), as mulheres foram atingidas diretamente: no primeiro momento, porque parte do trabalho da reprodução saiu do espaço doméstico-familiar para o espaço público, responsabilizando-se o Estado por elas (ex: saúde, educação) e em este segundo momento, o contemporâneo, com a reforma neoliberal do Estado, várias das atividades da proteção, da assistência social, da socialização e da reprodução passaram a ser cada vez mais delegadas e assumidas pelas mulheres na esfera doméstico-privada ou nos espaços ampliados desta - o bairro, a vizinhança - mediante o trabalho voluntário e filantrópico ou em condições de sub-emprego, e até sob formas baratas de remuneração, a exemplo das agentes comunitárias de saúde. “Volta” essa que não se configura para as mulheres, nem para os membros da família, em remédio de superação das injustiças socioeconômicas destes membros da classe trabalhadora, mesmo quando nos programas de transferência de renda se de uma redistribuição afirmativa: a bolsa do PETI, a bolsa família, entre outras. Pelo contrário, com essa “volta” e redução das ações e gastos sociais do Estado, o trabalho da reprodução das mulheres intensifica-se: voltam para elas, o trabalho do cuidado com crianças, doentes, idosos/as (DUQUE-ARRAZOLA, 2004). Com a referida re-configuração, desde inicio dos anos de 1990, a família ganha centralidade nas políticas sociais, passando a ser o foco da intervenção social pública ao ser concebida no discurso estatal como o lugar de proteção por excelência. O que para algumas interpretações pode ser visto como um reconhecimento simbólico ou cultural da família ou da mulher, posto que esta é identificada e associada pelo Estado com família, de acordo à representação da ideologia patriarcal. Desse modo, a família/mulher passa a ser considerada pelos programas de combate à pobreza, como participe chave, co-responsável e “sujeito” dos mesmos e responsável pelo insucesso dos programas. Quer dizer, passa a ser exigida por um tempo de trabalho gratuitamente dado, sem que signifique um reconhecimento afirmativo e monetário para ela. Igualmente, passam a ser visibilizadas e reconhecidas as mulheres com certa liderança nos cuidados (saúde, orientação, violência, proteção) com a vizinhança e espaços ampliados da moradia, tornando-se chaves na penetração e legitimação local dos programas de saúde pública, a exemplo das parteiras populares, das agentes comunitárias de saúde (voluntárias)11 e o PSF. Da análise dessas medidas estratégicas do Estado (políticas e seus programas sociais) de fazer da família/mulher-mãe um sujeito co-participe da política de assistência e seus programas de combate à pobreza, mostra que de fato se dá uma dês-responsabilização do Estado com as referidas políticas, não configurando-se como política afirmativa redistributiva nem de reconhecimento. Em contrapartida, aumentam as funções, tarefas e responsabilidade das 11 Atualmente as agentes comunitárias de saúde estão sendo remuneradas e incorporadas ao PSF, embora não façam parte do quadro institucional do funcionalismo municipal. mulheres/mães, quer dizer, intensifica-se a sobrecarga de trabalho, conflituando-as e tencionadoas com os tempos feminino da reprodução, geradores e mantedores da vida e do bem estar dos outros/outras da família e o tempo da produção ou do trabalho profissional (bicos, faxinas, emprego doméstico e o tempo da eterna procura de trabalho), além de aumentar suas tensões e confrontos com o tempo masculino ou androêntrico da produção ou do trabalho. Temos então que o Estado, mediante a participação das mulheres-mães nos programas sociais de assistência, usufrui: dos tempos sociais do trabalho da reprodução das mulheres/mães, em troca de medidas afirmativas “redistributivas” como a bolsa escola, bolsa família, cestas básicas ou de reconhecimento e valorização identitária (auto-estima, ação afirmativa mediante pagamento salarial às agentes comunitárias de saúde. Igualmente usufrui gratuitamente das capacidades e competências de gênero, adquiridas pelas mulheres desde sua infância, ao longo do processo sexuado de socialização com o trabalho doméstico, a reprodução e os cuidados. Desse modo as mulheres viabilizam e garantem em grande parte ditos programas, para os quais elas não participam de modo afirmativo posto que não tomam parte nas decisões, nos reencaminhamento dos programas, além de não serem vistas pelo Estado como trabalhadoras e potenciais profissionais a serem remuneradas e/ou inseridas a programas de geração de emprego e renda que possam diminuir e combater a pobreza.. Dadas as condições de pobreza e extrema pobreza das famílias dessas mulheres, uma remuneração monetária pelo tempo de trabalho dedicado ao Programa ou a inserção das mães em programas geradores de renda, por exemplo, não só dariam a esses programas de assistência um caráter de redistribuição afirmativa, como poderiam contribuir com os processos de enfrentamento da pobreza e processos de independência econômica que poderiam encaminhar um processo de empoderamento destas mulheres.. Entretanto, tais programas geradores de renda estão sendo realizados tão só como ações pilotos em alguns poucos municípios, caso de Pernambuco. Desse modo, o PETI e outros programas de assistência, permanecem como a única fonte ou a principal fonte de renda, junto com a aposentadoria, para grande número de famílias das cidades e das localidades do interior. Em muitos programas sociais as mulheres aparecem visibilizadas e como co-participes destes, a exemplo do PETI, no qual recebem e controlam o uso da bolsa outorgada pelo Programa, aparecendo este fato como um reconhecimento afirmativo pelo Estado do bom uso e manejo do orçamento familiar por parte dessas mulheres em condições de extrema pobreza. O mesmo poderia dizer-se do Programa das Agentes Comunitarias de Saúde-ACS, as que são incorporadas ao Programa Saúde da Família-PSF na forma de um reconhecimento do Estado a sua experiência e conhecimento da população do bairro onde moram, facilitando de fato a entrada e aceitação do programa nos bairros. Recentemente o PRONAF-Mulher também começa a visibilizar a mulher fazendo-a participe de micro créditos para a agricultura familiar, sempre e quando os maridos, através de outros créditos contraídos e por elas desconhecidos, não tenham comprometido a possibilidade de requerimento da esposa/companheira desse micro crédito. Este só beneficia às mulheres se os maridos estão al dia com o Banco/INCRA. . Porém, esta visibilização e participação, não configuram um reconhecimento afirmativo do sujeito feminino, da mulher trabalhadora no sentido de uma política de reconhecimento respeito à valorização do feminino; muito menos uma política de redistribuição afirmativa corretora de desigualdades e injustiças sócio-economicas, como poderiam pretender algumas/os estudiosas. mas além de uma simples presença ou contemplação. O que desde já coloca em questão os alcances transformadores de tais políticas sociais e seus programas compensatórios, focalistas para superar as desigualdades sociais relativas à exploração, à subordinação e a opressão de gênero das mulheres. . A guisa de conclusão: desafios para o feminismo A introdução da abordagem reconhecimento/redistribuição, teve o propósito de trazer este debate e enfoque que por sua sistemática descritiva pode elucidar limitações e alcances das políticas sociais como mediações de superação das crises e superação das desigualdades sociais na sociedade brasileira contemporânea.. . Desde uma perspectiva feminista de gênero, a problemática exposta levanta questões sobre os alcances afirmativos e de transformação das políticas sociais, bem como sobre o lugar e visibilização das mulheres, das trabalhadoras e, nesse sentido, sobre o caráter de sua participação nas políticas sociais enquanto mecanismos e estratégias de transformação da sociedade capitalista contemporânea, bem como de suas implicações com o empoderamento e luta política das mulheres e das trabalhadoras com vistas à transformação das relações de gênero e de classe que as subordinam e exploram. Como se pode observar, na exposição apresentada os tempos sociais sexuados são mediação das relações de gênero e de classe, das relações de poder e dominação, despercebidos como tais na aparência de uma participação afirmativa de reconhecimento das mulheres nos programas das políticas sociais públicas, comprometendo as possibilidades transformadoras das mesmas. A pesquisa que serviu de base para a presente exposição, revela também que a participação das mulheres em programas de políticas sociais de assistência e que poderia ser considerada como expressão afirmativa de redistribuição e reconhecimento das mulheres, exprimem relações cotidianas de subalternidade, dominação e opressão mediadas pelas relações de serviço que configuram real e simbolicamente a prática cotidiana da maternagem e da reprodução social da família como tarefa e responsabilidade “inquestionável” das mulheres.. Muitas das medidas de reconhecimento das mulheres são realizadas sob esforços esgotantes de seus corpos, não incidindo em mudanças estruturais da exploração, opressão e discriminação de gênero e de classe, por exemplo. . Face o exposto a inserção das mulheres nesses programas das políticas compensatórias e focalistas não se dá desde o ponto de vista da participação de um sujeito político constituído, mas de indivíduos que dificilmente se empoderam frente ao Estado desenvolvendo uma ação organizada que inflexione o Estado patriarcal e de classes. O que, no entanto, contribui a desenvolver certos processos individuais de auto-afirmação e questionamentos que iniciam um processo empoderamento das mulheres no interior do grupo doméstico ou familiar e os espaços ampliados do mesmo, a exemplo do bairro, da vila, como tem ocorrido com agentes comunitárias de saúde e com algumas mulheres/mães do PETI. Expressões disto são o controle da bolsa escola dos/das filhos/filhas, não permitindo aos pais e padrastos o uso indevido da mesma. Igualmente no que diz respeito ao enfrentamento da violência paterna contra filhas e filhos e no que diz respeito a novos conhecimentos adquiridos nos contatos institucionais públicos, neste caso a escola e o programa PETI. Noutras palavras, essa inserção cria condições para o começo de um questionamento das relações de poder no seio da família. Mesmo assim, tais processos como a autonomia das mulheres, a conquista de direitos cidadãos e a inflexão do Estado patriarcal e de classe que implicam mudanças estruturales requerem de processos coletivos organizados que insurrecionem as consciências, transformem as relações de opressão-exploração e a discriminação de gênero, de classe e racial, objeto da luta feminista e da transformação e superação das relações sociais capitalista por uma outra sociedade. 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