O Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) é concebido como um

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GRUPO DE TRABALHO 1
GÊNERO, CORPO, SEXUALIDADE E SAÚDE.
CENTRO DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL:
EVOLUÇÃO OU REPRODUÇÃO?
Nei Ricardo de Souza
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CENTRO DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL: EVOLUÇÃO OU REPRODUÇÃO?
Nei Ricardo de Souza1
Resumo
O Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) é concebido como um serviço substitutivo do
internamento psiquiátrico e tem sido implantado em todo o território nacional desde a década de 90.
O objetivo deste artigo é refletir sobre aspectos de funcionamento do CAPS, visando ressaltar
alguns pontos relevantes para a sua organização e contribuir para uma compreensão de sua inserção
na sociedade. Os dados nos quais se baseia provêm de documentos: legislação sobre saúde mental e
manual de funcionamento do CAPS, e da atuação do autor na saúde pública. Sendo assim, a
metodologia aplicada é a pesquisa teórica destes documentos, complementada pelas informações
decorrentes da atividade profissional. As principais fundamentações são as propostas de Foucault,
Goffman, Castel e Bourdieu, que desenvolvem temas como: a interrelação entre a loucura, o
contexto social no qual está inserida e os dispositivos que se ocupam de seu tratamento; o papel da
medicina da mente no controle social; a instituição totalitária e a violência simbólica. Estas
referências teóricas surgiram antes da existência do CAPS e aparecem aqui articuladas neste
contexto. A discussão que se propõe vem examinar em que medida o CAPS representa
propriamente uma evolução no cuidado aos portadores de transtornos mentais. A conclusão aponta
para um funcionamento que não consegue se libertar de amarras institucionais e que tem como
consequência relegar o ser humano a segundo plano.
Introdução
Se existe uma área que mobiliza as representações mais fantasmáticas é a Saúde Mental.
Todo o imaginário construído ao redor do louco e da loucura é um material rico para pesquisas, pois
revela a reação da sociedade diante daqueles que já foram considerados desde “eleitos” até seu
oposto, “endemoninhados”. Fato é que ninguém fica indiferente ao louco.
Aqui o louco extrapola o sentido clínico, ele é o representante dos desviantes em geral,
destas figuras de alteridade que saltam aos olhos e causam espanto, pois desafiam uma lógica tão
certa e organizada preconizada pelos ditos normais. Modernamente adquirem uma pluralidade de
formas, algumas delas portadoras de diagnósticos sancionados pela Ciência. Estes desviantes são
passíveis de tratamentos de saúde em alguns casos, e em outros, de tratamento legal, embora esta
distinção nem sempre seja clara, por exemplo, quando um criminoso alega insanidade ou, ao
contrário, um insano prefere o rótulo de criminoso. De uma forma ou de outra, a sociedade elege
instâncias para cuidar deles.
No caso do louco, o manicômio surge como uma instituição emblemática que confunde
tratamento e punição. Formas alternativas de cuidado são constantemente buscadas, no intuito de
suavizar as práticas percebidas como cruéis ou desumanas. Neste texto pretende-se tecer algumas
considerações sobre uma destas alternativas, o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), que tem
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Psicólogo, especialista em Saúde da Família e mestre em Sociologia. Professor da Universidade Positivo.
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conhecido grande expansão no Brasil. O exame de suas práticas pode auxiliar a compreender
algumas de suas características.
Fundamentação
A existência da “instituição total” é apontada por GOFFMAN (1987) ao estudar o
funcionamento de um hospital psiquiátrico, designando com isso um regime de vida no qual as
pessoas que dele fazem parte vivem de maneira reclusa e sujeitas a imposições e regulações que
controlam suas atitudes. As obrigações destes indivíduos são de participar nas atividades da
organização, pelo que são avaliados em termos de seu compromisso e aceitação para com ela.
Denota-se a existência de um poder coercitivo, obrigando a uma conformação ao funcionamento
institucional.
A estratégia para obter este fim consiste na aplicação do binômio prêmio/castigo, onde o
prêmio visa atrair o indivíduo continuamente para os objetivos da instituição e o castigo, operando
pelo medo, impede que o indivíduo realize atos considerados inadequados. Supor uma relação desta
natureza é supor uma determinada visão de ser humano, que condiciona as práticas sociais que o
envolvem e constrói este ser humano suposto. Esta visão o concebe como alguém que responde a
estímulos de forma mecânica e que pode ser moldado por eles.
Este processo de adaptação do indivíduo à organização, GOFFMAN (1987) denominou
“adaptação primária”, que consiste em incorporar o papel que se espera dele e passar por alguém
ajustado. Contudo, isso é concomitante a “adaptação secundária”, que é a forma do indivíduo burlar
o que deveria fazer ou mesmo ser.
Em outra obra, GOFFMAN (1980) analisa o estigma, definindo que o indivíduo possui dois
tipos de identidade sociais: a virtual, atribuída pelo outro, e a real, referente a propriedades
efetivamente possuídas. Algumas características marcam indivíduos que passam a ser
estigmatizados aos olhos dos que se consideram normais. Conseqüências possíveis deste processo
são ou o indivíduo visto de forma precária se aproveitar de suas características, ou procurar
escondê-las, ou ainda corrigi-las. Do ponto de vista do outro, o que sobressai é a crença que o
estigmatizado precisa ser curado, algo que é plenamente aplicado ao portador de transtorno mental.
Um panorama histórico da loucura é apresentado por FOUCAULT (2002), que a caracteriza
em diversas épocas. Emergindo de um sentido trágico e cósmico na Renascença, é compreendida no
início da Idade Moderna como condição passível de exclusão, a ser aproximada de mendigos,
criminosos e outros desviantes, merecendo o lugar do internamento que visa proteger a sociedade.
Além disso, obedece à lógica da condenação da ociosidade, pois os internos realizam trabalhos
obrigatórios que se prestam a um exercício de punição moral. Ainda não se fala na cura de uma
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doença, discurso que só aparecerá mais tarde. Porém, se no caso de mendigos e demais ociosos sua
posição onerosa dentro da sociedade os impulsiona para fora do internamento – afinal só
representam despesas – o mesmo não se dá no caso do louco, que irá gozar do privilégio de
permanecer confinado, agora com todo o aparato institucional dedicado exclusivamente a ele.
A visão histórica de Foucault não segue uma linha de continuidade e evolução, ao contrário,
ele procura pontos de apoio nos acontecimentos sociais que levam a rupturas com o discurso
vigente e dão origem a outro saber. Assim, as modificações na concepção de loucura não são
propriamente evoluções e aprimoramentos de tratamentos, mas descontinuidades correlacionadas a
contextos específicos. Não é o louco o objeto de estudo da psicologia e da psiquiatria, pelo
contrário, é ele que permite o surgimento destes saberes, dado que sua posição marginal na
sociedade representa uma categoria de pessoas de quem se deve dar conta. O saber mesmo acerca
da doença mental só se torna efetivamente possível após o surgimento de uma classificação mais
ampla das doenças em geral.
Outro aspecto de destaque do pensamento foucaultiano é o papel da vigilância presente na
sociedade como mecanismo de controle, que segmenta grupos e funcionaliza o espaço para atribuir
a cada indivíduo o seu lugar. Se na Idade Média a punição era pública e constante, a promessa do
Século das Luzes de celebrar a razão e a liberdade demanda mecanismos mais sutis de garantir a
normatização social (FOUCAULT, 2003).
CASTEL (1978) dialoga com Foucault e Goffman. Analisa as concepções do alienismo e da
psiquiatria do século XIX, que vincula a loucura ao saber racional e científico afastando conotações
morais. Estabelece a função da psiquiatria de administrar a loucura, transformando-a numa questão
técnica a ser resolvida pela medicina mental emergente. Neste contexto, a figura do perito se
evidencia; ele adquire o papel de árbitro, falando de um lugar sancionado pela lei. Desta forma,
valores como a segurança e a liberdade, que repercutem diretamente sobre a vida de uma pessoa,
passam pelo poder de decisão dele.
O controle exercido sobre o louco muda assim de característica, adotando ares de
cientificidade e racionalização, contudo não diminui, apenas é disfarçado. É o que se dá no que
Castel descreve como aggiornamento, ou seja, (literalmente) “atualização” na composição dos
elementos do dispositivo psiquiátrico. Algumas alterações são estabelecidas como substituir asilos
por colônias agrícolas, no entanto a posição de saber/poder não é abandonada.
Goffman, Foucault e Castel são precisos em suas discussões, contudo no contexto
desenvolvido aqui é BOURDIEU (2003) quem vai dar o tom de afinação. Sua concepção da
sociedade enquanto espaço social dividido em campos fornece a lógica do controle. Cada campo é
relativamente autônomo e tem a capacidade de impor sua própria razão de funcionamento a todos
os que nele penetram. Assim as escolhas, as criações e mesmo os esquemas de pensamento são
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diretamente relacionados à posição social de seus autores. Os agentes sociais concordam, implícita
ou explicitamente, em aceitar concepções arbitrárias vigentes no campo como legítimas, segundo o
processo conhecido por violência simbólica que explica o poder conformador da sociedade sobre
seus membros.
O campo também se caracteriza pelo conflito e pela concorrência, na qual os agentes
disputam o monopólio dos capitais específicos valorizados em seu interior. São os agentes
dominantes que ditam as regras de funcionamento do campo e o conjunto de capitais sancionados.
Assim se define o que é legítimo e passível de ser imposto aos demais agentes. A exposição
repetida a estes elementos imprime nos indivíduos uma série de disposições que tem como resultado
sua interiorização e a formação do habitus, entendido como o conjunto de conhecimentos práticos
adquiridos ao longo do tempo e que funcionam como uma segunda natureza inconsciente.
Para ocupar a posição dominante, os agentes do campo se valem de estratégias. Quem já
domina procura conservar seus capitais e sua posição. Quem almeja o domínio se utiliza de
estratégias de subversão. Dentro do espaço social, os campos interagem e dependendo das
estratégias utilizadas podem estabelecer coalizões mutuamente benéficas. As relações entre o
campo da psiquiatria e o campo da política podem ser compreendidas desta forma.
Esta coalizão engendra a legitimação das regras as quais os agentes dominados estão
sujeitos. Realiza-se por meio do invisível poder simbólico, exercido com a cumplicidade daqueles
que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem (BOURDIEU, 2000)
Metodologia E Discussão
Neste texto foi empregada primeiramente a análise de documentos, pois as ações no âmbito
da saúde pública são legalmente regulamentadas. O Ministério da Saúde (MS) fornece Leis,
Portarias e Diretrizes que orientam a organização e o funcionamento dos CAPS, como de todas as
demais instituições sob o seu domínio. Destacam-se os seguintes documentos: Manual de Saúde
Mental no SUS: Os Centros de Atenção Psicossocial (MS, 2004), Portaria 336 de 19/02/2002 (MS,
2002a), Portaria 189 de 29/03/2002 (MS, 2002b). Além destes, a Lei 11.189 de 9/11/95 (PARANÁ,
1995) determina uma mudança na organização dos serviços psiquiátricos no Paraná. A análise deste
material se impõe em função de seu efeito estruturante: é a referência adotada nos 1394 CAPS
instalados no Brasil, incluídos aí os 87 paranaenses (MS, 2009). Seu conteúdo permite vislumbrar
quais pressupostos atuam nas concepções atuais de saúde mental.
Em segundo lugar são coligidas informações provenientes de minha experiência
profissional. Atuei por 7 anos na saúde pública em Curitiba ocupando o cargo de psicólogo e
realizando um trabalho itinerante em algumas unidades de saúde. Nos últimos 3 anos fui lotado
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exclusivamente em um CAPSad (voltado para dependentes de álcool e outras drogas) dedicado ao
atendimento de adolescentes. Esta minha posição merece alguns comentários.
Desde MALINOWSKI (1986) o método etnográfico de coleta de informação em campo tem
sido empregado para a obtenção de dados que subsidiem estudos nas ciências sociais. A interação
que permite com as diversas “tribos” estudadas viabiliza um nível de detalhamento e compreensão
dos fenômenos sociais difícil de obter com outro procedimento. Este autor salienta que os nativos
de uma tribo seguem suas tradições e obedecem aos imperativos de seus códigos, mas não os
compreendem, assim como em nossa sociedade, um membro de qualquer instituição social lhe
pertence e dela participa, mas sem ter uma visão do processo ao qual está sujeito. Muito menos
ainda teria capacidade de fazer conjecturas e abstrair o funcionamento social, tal qual o nativo. Eis o
papel do cientista social: buscar evidências e propor explicações. Desta forma, é conversando com
seus informantes, ou melhor ainda, observando fatos reais, que se obtém material que permite uma
compreensão da dinâmica social.
A etnografia demanda uma impregnação do pesquisador que se encontra sujeito a duas
situações-limite, como já apontado por LAPLANTINE (2007): impregna-se a tal ponto que perde
sua posição de cientista, ou fixa-se com tamanha rigidez na posição de cientista que compromete a
impregnação da cultura que estuda. Não se faz etnografia somente colhendo informação, mas sim
imergindo na totalidade da dimensão social. A ciência social se diferencia dos outros ramos
científicos, por exemplo, da botânica, onde o cientista pode observar e classificar suas espécies. Ela
demanda a comunicação entre os participantes, que é a única forma de conferir sentido a
experiência humana. Em termos práticos, como viabilizar esta posição? O etnógrafo transita entre
as situações-limite sem se deixar aprisionar por nenhuma delas: interage o mais completamente
possível, procurando, entretanto não perder a crítica e a abstração do que observa. Em outras
palavras, ele oscila entre elas e o período desta oscilação costuma não ser muito longo. Em uma
expedição etnográfica haverá diversas destas oscilações; ao seu término restará apenas o cientista,
talvez com algumas “seqüelas” culturais, mas efetivamente um cientista, a menos que resolva
habitar entre os seus pesquisados definitivamente.
Porém BOURDIEU, apesar de ser etnólogo (2002) e de defender a observação participante
em detrimento das técnicas estatísticas (1999), levanta um ponto importante: a observação
participante é a análise de uma “falsa” participação num grupo estranho (2000). Ocorre que o
etnógrafo, ele próprio, é influenciado por suas condições sociais de origem. Possui um habitus de
classe específico e também um habitus científico, que condicionam suas escolhas, percepções e
esquemas de pensamento, sendo diferente dos nativos que estuda. Logo, sua presença no campo
introduz variáveis no processo a ser estudado. Além disso, sua visão subjetiva do conhecimento
construído nem sempre alcança as estruturas objetivas que regulam as interações entre os nativos e
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entre estes e ele. A situação etnográfica de modo geral não escapa da violência simbólica de modo
análogo ao descrito para a técnica de pesquisa através de entrevistas. Contudo, o controle desta
violência pode ser dar por meio de duas condições: a proximidade social e a familiaridade entre
pesquisador e pesquisado (1997).
A situação menos violenta de pesquisa, portanto, seria ter um nativo etnógrafo. Pois bem, é
assim que me enquadro. Se Malinowski disse que observando fatos reais compreende-se a
sociedade, acrescento que participando efetivamente da realidade dos fatos como nativo a
compreensão pode ser ainda mais profunda. Se Laplantine ressalta a posição do etnógrafo entre sua
imersão e sua postura científica, acrescento que nada impede que a oscilação entre estas situaçõeslimite tenha um período mais longo: por exemplo, nativo por 3 anos e cientista por 3 ou mais. Se
Bourdieu vê o etnógrafo como recém-chegado, acrescento que só se escapa disso se o nativo se
tornar etnógrafo. Com efeito, iniciei minha formação na área da psicologia e como qualquer
profissional me inseri neste campo formando um habitus correspondente. Posteriormente minha
trajetória sócio-profissional me levou a uma mudança de posição, situação na qual me inseri
gradualmente no campo das ciências sociais. O que fiz durante meu trabalho no CAPS foi
desempenhar minhas funções conforme as exigências do cargo – fui um nativo, portanto – mas não
deixei de fazer leituras críticas das práticas desempenhadas. Não posso chamar isso de observação
participante, contudo acredito que não incorro em nenhuma inadequação se batizá-la de
“participação observante”.
O CAPS se insere em um modelo mais amplo de organização de serviços de saúde
conhecido por SISS – Sistema Integrado de Serviços de Saúde, que se caracteriza pela existência de
uma rede formada por diversos pontos de atenção interconectados entre si. Em um território,
diversos estabelecimentos, tais como Unidade de Saúde, Centro de Especialidades, CAPS e
Hospital, prestam o atendimento à saúde e encaminham o paciente conforme suas necessidades. A
cidade é dividida em vários territórios que se organizam para atender a população. Todo este
conjunto está subordinado à Secretaria da Saúde, que funciona como gestor do processo e se
ramifica, instituindo representantes em cada território (CURITIBA, 2002).
Desta forma, o CAPS é um dos pontos desta rede, que se encarrega dos casos que são de sua
competência, recebendo-os a partir dos encaminhamentos dos demais pontos de atenção. Seu
propósito é atender pessoas com transtornos mentais severos e persistentes, oferecendo cuidados
clínicos e reabilitação psicossocial em substituição ao modelo hospitalocêntrico. A ênfase dada a
esta substituição é constante em todos os documentos norteadores examinados citados acima,
considerando com isso que se presta um atendimento mais humanizado, pois o hospital – instituição
total – deixando de existir, não controla mais a conduta daqueles que cuida. O CAPS, enquanto
serviço substitutivo, teria a missão de trabalhar com o paciente na comunidade e cuidar de sua
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reinserção social. As atribuições do CAPS envolvem prestar serviços em regime de diárias, isto é,
cada dia de comparecimento do paciente ao tratamento é confirmado por sua assinatura numa ficha
e a remuneração do CAPS se baseia no montante geral destas assinaturas; instituir e realizar
projetos terapêuticos; promover inserção social; fazer visitas domiciliares; dar suporte para as ações
de saúde mental em toda a rede de atenção à saúde e monitorar os pacientes que utilizam
medicamentos psiquiátricos (MS 2004).
O discurso de reorientação do modelo de assistência torna-se assim o discurso dominante.
Contudo, ao produzir determinados significados oculta outros, sendo o objetivo do presente texto
explicitar alguns deles. O modelo histórico de Foucault preconiza que as mudanças de discursos são
na verdade rupturas ligadas a determinadas condições sociais vigentes, então a questão que se
levanta é: quais as condições sociais que estão permitindo o discurso do CAPS predominar? As
reflexões desenvolvidas aqui pretendem contribuir para encontrar algumas respostas.
O que se verifica é a luta dentro do campo da saúde, ao menos no que tange à saúde pública,
onde os agentes defensores da desospitalização alcançam a posição dominante e como tal definem
quais regras do jogo são consideradas legítimas. A construção desta legitimidade passa por um
suporte de caráter técnico, social e econômico, constituindo-se numa verdadeira ideologia que se
impõe sobre todos os agentes do campo, que a incorporam e a disseminam, conforme já apontado
por Bourdieu. Na prática, cogitar uma internação passa a ser visto como heresia, contudo, uma
comparação com outros segmentos da saúde suscita ponderações. Se uma doença, seja respiratória,
vascular ou outra ainda, atinge níveis de gravidade difíceis de serem manejados em tratamento
ambulatorial não se hesita em optar pelo internamento, por que seria diferente com a saúde mental?
Além do que o discurso sobre a doença mental foi evoluindo no sentido de conferir-lhe de fato o
status de doença e não de falha ou fraqueza moral, porém com as práticas atuais ela acaba sendo
discriminada, pois não consegue ser tratada com equidade, aliás, um dos princípios norteadores do
SUS (MS, 2004).
Evitar a internação é só um exemplo, escolhido por ser o estandarte da nova concepção de
tratamento, mas este processo engloba outros aspectos, por exemplo, o investimento em
psicoterapia individual, considerada de menor alcance e sendo preterida por abordagens de grupo. A
posição herética dos profissionais que defendem tais práticas também passa a ser vista no novo
sistema como um elemento de estigma, pois estes agentes ainda não são capazes de vislumbrar a
suposta evolução da mudança de modelo. Se antes o estigma recaía sobre o portador de transtorno
mental, agora o discurso vigente é desestigmatizá-lo, mas o que não se percebe é que o estigma
recai sobre os próprios profissionais que “deveriam agir” de determinada forma, mas não se
alinham totalmente com as propostas inovadoras. Também é preciso considerar que se não se
alinham é por conta de seu habitus original, formado quando o discurso vigente preconizava
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práticas de tratamento diferentes. Com esta reorientação um novo habitus será constituído, mais
facilmente pelos novos agentes que estão chegando no campo, ou seja, os estudantes das áreas
correlatas, pois passa a ser o conhecimento legítimo, e “à força”, no caso daqueles que já têm uma
herança profissional de outros modelos. Além disso, não é possível deixar de ver que em
abordagens individuais de tratamento há uma relação de um profissional para um paciente, em
abordagens grupais vários pacientes são atendidos por um profissional, o que tem um efeito
multiplicador de diárias.
Do ponto de vista social, a ênfase é sobre os direitos de cidadão do portador de transtorno
mental, como se eles estivessem mais garantidos no novo modelo, mesmo que isso implique numa
desassistência em situação de crise. Acredita-se que reduzindo o número de ferros sobre o paciente
aumenta-se sua liberdade. Pois o que ocorre parece ser justamente o contrário, agora a chamada
monitoração vai para dentro de sua casa, controlando-o, ou tentando controlá-lo, até em seu âmbito
privado. E isso é permanente, ao contrário do que ocorria no hospital, em um tempo determinado. É
difícil estabelecer uma diferença entre a monitoração dos pacientes e a vigilância no sentido
foucaultiano. Se antes o paciente era coagido a um determinado comportamento intramuros, na
instituição total, agora esta coação foi para o espaço aberto, algo que, diga-se de passagem, é muito
mais difícil de viabilizar, consequentemente, estratégias se fazem necessárias. É nesta lógica que
entram as visitas domiciliares pelos profissionais do CAPS e pelos agentes de saúde e a obrigação
de freqüência ao tratamento, que por sua vez também são monitoradas e vinculadas a índices de
remuneração dos trabalhadores. Em outras palavras, não só os pacientes passam a ser vigiados,
precariamente, pois em um território amplo isso acaba sendo mais difícil, mas agora também os
trabalhadores, com o agravante de que sobre estes a vigilância é acirrada e não permite escapatória,
pois a lógica intramuros da instituição total parece estar sendo aplicada sobre eles. Inclusive no que
tange a premiação apontada por Goffman, como elemento de incorporação das regras institucionais.
Os gestores vigiam os trabalhadores e os trabalhadores vigiam os pacientes, mas não para por aí,
pois com a criação das instâncias de controle social sobre a saúde, os chamados conselhos, os
pacientes também acabam vigiando os trabalhadores e os gestores, configurando uma cadeia de
relações de vigilância que não é possível deixar de perguntar: a quem serve? Para que serve?
O manual do CAPS (MS, 2004) também preconiza a realização de atividades comunitárias e
de envolvimento dos familiares, sendo costume organizar festas para participação de pacientes e
convidados. Estes eventos acabam se tornando mais uma obrigação que faz parte do tratamento,
inclusive registrando a diária dos pacientes. A estratégia de definir obrigações e comportamentos
esperados já apontada por Goffman continua existindo, o que implica também no processo de
adaptação primária e no conseqüente status que o paciente possui dentro da instituição: os mais
comportados e colaborativos são bem vistos pela equipe de profissionais, os que se ajustam menos
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ao formato do tratamento são vistos como rebeldes. Os mecanismos de adaptação secundária por
parte dos pacientes persistem, caracterizando-se por faltas, recusa ao tratamento e transgressão das
normas. Há uma expectativa deveras ingênua de que eles sejam bem comportados, esquecendo-se
que não raro apresentam atitudes desviantes e que pode ser justamente este um dos motivos de seu
encaminhamento para tal serviço. O registro de diárias, seja no atendimento cotidiano, seja em
festas e em atividades extras acaba sendo uma necessidade do serviço que passa a demandar a
presença de pacientes para satisfazer critérios de seu próprio funcionamento institucional e mostrar
quão adequado é este funcionamento para as instâncias encarregadas de sua vigilância – os gestores.
Neste contexto, onde o paciente é cobrado dentro de uma lógica de desempenho do CAPS, é
pertinente perguntar: qual o alcance de uma proposta de cuidado voltada para um outro na qual este
outro é parte da engrenagem que faz a máquina funcionar? Qual efetivamente é o papel deste outro,
público alvo ou parte do processo?
Para incrementar a implementação dos CAPS, o Ministério da Saúde instituiu um incentivo
financeiro conforme definido na portaria nº 1455 de 31/07/2003 (MS, 2003), no valor de R$
20.000,00, R$ 30.000,00 ou R$ 50.000,00, dependendo do tipo de CAPS. A remuneração pela
diária segue a portaria nº 189 de 20/03 2002 (MS, 2002) e seu valor, na grande maioria dos casos,
está compreendido entre R$ 14,85 e R$ 18,10, com exceção de um grupo de pacientes (crianças e
adolescentes em regime intensivo de tratamento – comparecem no CAPS todos os dias) cujo valor
sobe para R$ 25,40. A portaria 469, de 06/04/2001 (MS, 2001) permite uma comparação com a
diária hospitalar, cujo menor valor pago é R$ 25,41, variando até R$ 30,30. Esta breve análise
permite constatar que o CAPS representa uma economia aos cofres públicos. Mesmo o prêmio
conferido uma vez representa apenas o montante referente a poucos pacientes. No caso dos R$
30.000,00, por exemplo, cobre a diária de 30 pacientes internados por 33 dias, que não serão mais
internados justamente porque a intenção da abertura de CAPS é ser concomitante a desativação de
leitos psiquiátricos.
É fato conhecido por qualquer pessoa envolvida em saúde mental que os transtornos
mentais, incluídos aí as dependências de substância são considerados condições crônicas de saúde,
ou seja, não têm uma cura propriamente dita, apenas estabilização dos sintomas, implicando em um
tratamento contínuo ao longo de toda a vida do paciente. Enquanto predomina um tratamento
baseado na internação, a tendência é que ele se repita indefinidamente. Quando o quadro de um
paciente perde sua estabilidade a internação é indicada, estabiliza os sintomas e tem alta, e assim
sucessivamente. Esta dinâmica é mais pronunciada ainda nos casos de dependências químicas. As
ações que visam reduzir gastos com o tratamento, consequentemente, trazem um grande impacto
aos cofres públicos. A epidemiologia das doenças mentais mostra que o número de casos é
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crescente (CURITIBA, 2002), logo a demanda pelos serviços vai ser maior a cada dia, demandando
uma alternativa mais econômica de tratamento, como é justamente a situação do CAPS.
Conclusões
As mudanças em formato que vem sofrendo o modelo de atenção à saúde mental mostramse disfarçadas de progressistas e humanistas, mas não são menos violentas do que outras práticas. O
mecanismo de aggiornamento descrito por Castel revela sua validade a cada dia. Além disso há
uma horrorização sobre as práticas cuja violência é mais explícita como o tratamento através de
ECT (eltroconvulsoterapia) e espaços de confinamento e um aceite da violência simbólica, que
disfarçada de saber técnico-científico se impõe sobre o indivíduo e a sociedade. Os mesmos
mecanismos de controle, vigilância, premiação e castigo continuam a ser aplicados, apenas de
forma mais sutil. A relação entre o louco e os serviços que lhe prestam cuidados continuam
assimétricas.
O modelo desospitalizado, vinculado ao Sistema Integrado de Serviços de Saúde, conseguiu
criar novos vigiados, os próprios profissionais de saúde, cujo desempenho passa a ser monitorado e
serve como moeda de troca para garantir o cumprimento das metas institucionais. O efeito disso é
que os profissionais têm que aumentar o controle sobre os usuários do serviço, para assegurar que
as metas que lhe são cobradas sejam atingidas.
O presente texto é um exame preliminar sobre estas questões, pois vários aspectos além dos
abordados aqui podem ser contemplados no funcionamento do “novo” sistema de cuidado à Saúde
Mental. Uma abordagem para continuar este estudo seria fazer uma análise comparativa detalhada
entre as obras de Foucault, Goffman e Castel e a realidade prática do CAPS.
Duas questões teóricas emergem da leitura dos autores citados neste texto, demandando
maior aprofundamento: primeiro, se as rupturas de discurso apontadas por Foucault estão
correlacionadas à mudança dos agentes dominantes de um dado campo, conforme o pensamento de
Bourdieu. Segundo, em que medida o poder simbólico e a microfísica do poder se complementam.
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