1 GRUPO DE TRABALHO 1 GÊNERO, CORPO, SEXUALIDADE E SAÚDE. CENTRO DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL: EVOLUÇÃO OU REPRODUÇÃO? Nei Ricardo de Souza 2 CENTRO DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL: EVOLUÇÃO OU REPRODUÇÃO? Nei Ricardo de Souza1 Resumo O Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) é concebido como um serviço substitutivo do internamento psiquiátrico e tem sido implantado em todo o território nacional desde a década de 90. O objetivo deste artigo é refletir sobre aspectos de funcionamento do CAPS, visando ressaltar alguns pontos relevantes para a sua organização e contribuir para uma compreensão de sua inserção na sociedade. Os dados nos quais se baseia provêm de documentos: legislação sobre saúde mental e manual de funcionamento do CAPS, e da atuação do autor na saúde pública. Sendo assim, a metodologia aplicada é a pesquisa teórica destes documentos, complementada pelas informações decorrentes da atividade profissional. As principais fundamentações são as propostas de Foucault, Goffman, Castel e Bourdieu, que desenvolvem temas como: a interrelação entre a loucura, o contexto social no qual está inserida e os dispositivos que se ocupam de seu tratamento; o papel da medicina da mente no controle social; a instituição totalitária e a violência simbólica. Estas referências teóricas surgiram antes da existência do CAPS e aparecem aqui articuladas neste contexto. A discussão que se propõe vem examinar em que medida o CAPS representa propriamente uma evolução no cuidado aos portadores de transtornos mentais. A conclusão aponta para um funcionamento que não consegue se libertar de amarras institucionais e que tem como consequência relegar o ser humano a segundo plano. Introdução Se existe uma área que mobiliza as representações mais fantasmáticas é a Saúde Mental. Todo o imaginário construído ao redor do louco e da loucura é um material rico para pesquisas, pois revela a reação da sociedade diante daqueles que já foram considerados desde “eleitos” até seu oposto, “endemoninhados”. Fato é que ninguém fica indiferente ao louco. Aqui o louco extrapola o sentido clínico, ele é o representante dos desviantes em geral, destas figuras de alteridade que saltam aos olhos e causam espanto, pois desafiam uma lógica tão certa e organizada preconizada pelos ditos normais. Modernamente adquirem uma pluralidade de formas, algumas delas portadoras de diagnósticos sancionados pela Ciência. Estes desviantes são passíveis de tratamentos de saúde em alguns casos, e em outros, de tratamento legal, embora esta distinção nem sempre seja clara, por exemplo, quando um criminoso alega insanidade ou, ao contrário, um insano prefere o rótulo de criminoso. De uma forma ou de outra, a sociedade elege instâncias para cuidar deles. No caso do louco, o manicômio surge como uma instituição emblemática que confunde tratamento e punição. Formas alternativas de cuidado são constantemente buscadas, no intuito de suavizar as práticas percebidas como cruéis ou desumanas. Neste texto pretende-se tecer algumas considerações sobre uma destas alternativas, o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), que tem 1 Psicólogo, especialista em Saúde da Família e mestre em Sociologia. Professor da Universidade Positivo. 3 conhecido grande expansão no Brasil. O exame de suas práticas pode auxiliar a compreender algumas de suas características. Fundamentação A existência da “instituição total” é apontada por GOFFMAN (1987) ao estudar o funcionamento de um hospital psiquiátrico, designando com isso um regime de vida no qual as pessoas que dele fazem parte vivem de maneira reclusa e sujeitas a imposições e regulações que controlam suas atitudes. As obrigações destes indivíduos são de participar nas atividades da organização, pelo que são avaliados em termos de seu compromisso e aceitação para com ela. Denota-se a existência de um poder coercitivo, obrigando a uma conformação ao funcionamento institucional. A estratégia para obter este fim consiste na aplicação do binômio prêmio/castigo, onde o prêmio visa atrair o indivíduo continuamente para os objetivos da instituição e o castigo, operando pelo medo, impede que o indivíduo realize atos considerados inadequados. Supor uma relação desta natureza é supor uma determinada visão de ser humano, que condiciona as práticas sociais que o envolvem e constrói este ser humano suposto. Esta visão o concebe como alguém que responde a estímulos de forma mecânica e que pode ser moldado por eles. Este processo de adaptação do indivíduo à organização, GOFFMAN (1987) denominou “adaptação primária”, que consiste em incorporar o papel que se espera dele e passar por alguém ajustado. Contudo, isso é concomitante a “adaptação secundária”, que é a forma do indivíduo burlar o que deveria fazer ou mesmo ser. Em outra obra, GOFFMAN (1980) analisa o estigma, definindo que o indivíduo possui dois tipos de identidade sociais: a virtual, atribuída pelo outro, e a real, referente a propriedades efetivamente possuídas. Algumas características marcam indivíduos que passam a ser estigmatizados aos olhos dos que se consideram normais. Conseqüências possíveis deste processo são ou o indivíduo visto de forma precária se aproveitar de suas características, ou procurar escondê-las, ou ainda corrigi-las. Do ponto de vista do outro, o que sobressai é a crença que o estigmatizado precisa ser curado, algo que é plenamente aplicado ao portador de transtorno mental. Um panorama histórico da loucura é apresentado por FOUCAULT (2002), que a caracteriza em diversas épocas. Emergindo de um sentido trágico e cósmico na Renascença, é compreendida no início da Idade Moderna como condição passível de exclusão, a ser aproximada de mendigos, criminosos e outros desviantes, merecendo o lugar do internamento que visa proteger a sociedade. Além disso, obedece à lógica da condenação da ociosidade, pois os internos realizam trabalhos obrigatórios que se prestam a um exercício de punição moral. Ainda não se fala na cura de uma 4 doença, discurso que só aparecerá mais tarde. Porém, se no caso de mendigos e demais ociosos sua posição onerosa dentro da sociedade os impulsiona para fora do internamento – afinal só representam despesas – o mesmo não se dá no caso do louco, que irá gozar do privilégio de permanecer confinado, agora com todo o aparato institucional dedicado exclusivamente a ele. A visão histórica de Foucault não segue uma linha de continuidade e evolução, ao contrário, ele procura pontos de apoio nos acontecimentos sociais que levam a rupturas com o discurso vigente e dão origem a outro saber. Assim, as modificações na concepção de loucura não são propriamente evoluções e aprimoramentos de tratamentos, mas descontinuidades correlacionadas a contextos específicos. Não é o louco o objeto de estudo da psicologia e da psiquiatria, pelo contrário, é ele que permite o surgimento destes saberes, dado que sua posição marginal na sociedade representa uma categoria de pessoas de quem se deve dar conta. O saber mesmo acerca da doença mental só se torna efetivamente possível após o surgimento de uma classificação mais ampla das doenças em geral. Outro aspecto de destaque do pensamento foucaultiano é o papel da vigilância presente na sociedade como mecanismo de controle, que segmenta grupos e funcionaliza o espaço para atribuir a cada indivíduo o seu lugar. Se na Idade Média a punição era pública e constante, a promessa do Século das Luzes de celebrar a razão e a liberdade demanda mecanismos mais sutis de garantir a normatização social (FOUCAULT, 2003). CASTEL (1978) dialoga com Foucault e Goffman. Analisa as concepções do alienismo e da psiquiatria do século XIX, que vincula a loucura ao saber racional e científico afastando conotações morais. Estabelece a função da psiquiatria de administrar a loucura, transformando-a numa questão técnica a ser resolvida pela medicina mental emergente. Neste contexto, a figura do perito se evidencia; ele adquire o papel de árbitro, falando de um lugar sancionado pela lei. Desta forma, valores como a segurança e a liberdade, que repercutem diretamente sobre a vida de uma pessoa, passam pelo poder de decisão dele. O controle exercido sobre o louco muda assim de característica, adotando ares de cientificidade e racionalização, contudo não diminui, apenas é disfarçado. É o que se dá no que Castel descreve como aggiornamento, ou seja, (literalmente) “atualização” na composição dos elementos do dispositivo psiquiátrico. Algumas alterações são estabelecidas como substituir asilos por colônias agrícolas, no entanto a posição de saber/poder não é abandonada. Goffman, Foucault e Castel são precisos em suas discussões, contudo no contexto desenvolvido aqui é BOURDIEU (2003) quem vai dar o tom de afinação. Sua concepção da sociedade enquanto espaço social dividido em campos fornece a lógica do controle. Cada campo é relativamente autônomo e tem a capacidade de impor sua própria razão de funcionamento a todos os que nele penetram. Assim as escolhas, as criações e mesmo os esquemas de pensamento são 5 diretamente relacionados à posição social de seus autores. Os agentes sociais concordam, implícita ou explicitamente, em aceitar concepções arbitrárias vigentes no campo como legítimas, segundo o processo conhecido por violência simbólica que explica o poder conformador da sociedade sobre seus membros. O campo também se caracteriza pelo conflito e pela concorrência, na qual os agentes disputam o monopólio dos capitais específicos valorizados em seu interior. São os agentes dominantes que ditam as regras de funcionamento do campo e o conjunto de capitais sancionados. Assim se define o que é legítimo e passível de ser imposto aos demais agentes. A exposição repetida a estes elementos imprime nos indivíduos uma série de disposições que tem como resultado sua interiorização e a formação do habitus, entendido como o conjunto de conhecimentos práticos adquiridos ao longo do tempo e que funcionam como uma segunda natureza inconsciente. Para ocupar a posição dominante, os agentes do campo se valem de estratégias. Quem já domina procura conservar seus capitais e sua posição. Quem almeja o domínio se utiliza de estratégias de subversão. Dentro do espaço social, os campos interagem e dependendo das estratégias utilizadas podem estabelecer coalizões mutuamente benéficas. As relações entre o campo da psiquiatria e o campo da política podem ser compreendidas desta forma. Esta coalizão engendra a legitimação das regras as quais os agentes dominados estão sujeitos. Realiza-se por meio do invisível poder simbólico, exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem (BOURDIEU, 2000) Metodologia E Discussão Neste texto foi empregada primeiramente a análise de documentos, pois as ações no âmbito da saúde pública são legalmente regulamentadas. O Ministério da Saúde (MS) fornece Leis, Portarias e Diretrizes que orientam a organização e o funcionamento dos CAPS, como de todas as demais instituições sob o seu domínio. Destacam-se os seguintes documentos: Manual de Saúde Mental no SUS: Os Centros de Atenção Psicossocial (MS, 2004), Portaria 336 de 19/02/2002 (MS, 2002a), Portaria 189 de 29/03/2002 (MS, 2002b). Além destes, a Lei 11.189 de 9/11/95 (PARANÁ, 1995) determina uma mudança na organização dos serviços psiquiátricos no Paraná. A análise deste material se impõe em função de seu efeito estruturante: é a referência adotada nos 1394 CAPS instalados no Brasil, incluídos aí os 87 paranaenses (MS, 2009). Seu conteúdo permite vislumbrar quais pressupostos atuam nas concepções atuais de saúde mental. Em segundo lugar são coligidas informações provenientes de minha experiência profissional. Atuei por 7 anos na saúde pública em Curitiba ocupando o cargo de psicólogo e realizando um trabalho itinerante em algumas unidades de saúde. Nos últimos 3 anos fui lotado 6 exclusivamente em um CAPSad (voltado para dependentes de álcool e outras drogas) dedicado ao atendimento de adolescentes. Esta minha posição merece alguns comentários. Desde MALINOWSKI (1986) o método etnográfico de coleta de informação em campo tem sido empregado para a obtenção de dados que subsidiem estudos nas ciências sociais. A interação que permite com as diversas “tribos” estudadas viabiliza um nível de detalhamento e compreensão dos fenômenos sociais difícil de obter com outro procedimento. Este autor salienta que os nativos de uma tribo seguem suas tradições e obedecem aos imperativos de seus códigos, mas não os compreendem, assim como em nossa sociedade, um membro de qualquer instituição social lhe pertence e dela participa, mas sem ter uma visão do processo ao qual está sujeito. Muito menos ainda teria capacidade de fazer conjecturas e abstrair o funcionamento social, tal qual o nativo. Eis o papel do cientista social: buscar evidências e propor explicações. Desta forma, é conversando com seus informantes, ou melhor ainda, observando fatos reais, que se obtém material que permite uma compreensão da dinâmica social. A etnografia demanda uma impregnação do pesquisador que se encontra sujeito a duas situações-limite, como já apontado por LAPLANTINE (2007): impregna-se a tal ponto que perde sua posição de cientista, ou fixa-se com tamanha rigidez na posição de cientista que compromete a impregnação da cultura que estuda. Não se faz etnografia somente colhendo informação, mas sim imergindo na totalidade da dimensão social. A ciência social se diferencia dos outros ramos científicos, por exemplo, da botânica, onde o cientista pode observar e classificar suas espécies. Ela demanda a comunicação entre os participantes, que é a única forma de conferir sentido a experiência humana. Em termos práticos, como viabilizar esta posição? O etnógrafo transita entre as situações-limite sem se deixar aprisionar por nenhuma delas: interage o mais completamente possível, procurando, entretanto não perder a crítica e a abstração do que observa. Em outras palavras, ele oscila entre elas e o período desta oscilação costuma não ser muito longo. Em uma expedição etnográfica haverá diversas destas oscilações; ao seu término restará apenas o cientista, talvez com algumas “seqüelas” culturais, mas efetivamente um cientista, a menos que resolva habitar entre os seus pesquisados definitivamente. Porém BOURDIEU, apesar de ser etnólogo (2002) e de defender a observação participante em detrimento das técnicas estatísticas (1999), levanta um ponto importante: a observação participante é a análise de uma “falsa” participação num grupo estranho (2000). Ocorre que o etnógrafo, ele próprio, é influenciado por suas condições sociais de origem. Possui um habitus de classe específico e também um habitus científico, que condicionam suas escolhas, percepções e esquemas de pensamento, sendo diferente dos nativos que estuda. Logo, sua presença no campo introduz variáveis no processo a ser estudado. Além disso, sua visão subjetiva do conhecimento construído nem sempre alcança as estruturas objetivas que regulam as interações entre os nativos e 7 entre estes e ele. A situação etnográfica de modo geral não escapa da violência simbólica de modo análogo ao descrito para a técnica de pesquisa através de entrevistas. Contudo, o controle desta violência pode ser dar por meio de duas condições: a proximidade social e a familiaridade entre pesquisador e pesquisado (1997). A situação menos violenta de pesquisa, portanto, seria ter um nativo etnógrafo. Pois bem, é assim que me enquadro. Se Malinowski disse que observando fatos reais compreende-se a sociedade, acrescento que participando efetivamente da realidade dos fatos como nativo a compreensão pode ser ainda mais profunda. Se Laplantine ressalta a posição do etnógrafo entre sua imersão e sua postura científica, acrescento que nada impede que a oscilação entre estas situaçõeslimite tenha um período mais longo: por exemplo, nativo por 3 anos e cientista por 3 ou mais. Se Bourdieu vê o etnógrafo como recém-chegado, acrescento que só se escapa disso se o nativo se tornar etnógrafo. Com efeito, iniciei minha formação na área da psicologia e como qualquer profissional me inseri neste campo formando um habitus correspondente. Posteriormente minha trajetória sócio-profissional me levou a uma mudança de posição, situação na qual me inseri gradualmente no campo das ciências sociais. O que fiz durante meu trabalho no CAPS foi desempenhar minhas funções conforme as exigências do cargo – fui um nativo, portanto – mas não deixei de fazer leituras críticas das práticas desempenhadas. Não posso chamar isso de observação participante, contudo acredito que não incorro em nenhuma inadequação se batizá-la de “participação observante”. O CAPS se insere em um modelo mais amplo de organização de serviços de saúde conhecido por SISS – Sistema Integrado de Serviços de Saúde, que se caracteriza pela existência de uma rede formada por diversos pontos de atenção interconectados entre si. Em um território, diversos estabelecimentos, tais como Unidade de Saúde, Centro de Especialidades, CAPS e Hospital, prestam o atendimento à saúde e encaminham o paciente conforme suas necessidades. A cidade é dividida em vários territórios que se organizam para atender a população. Todo este conjunto está subordinado à Secretaria da Saúde, que funciona como gestor do processo e se ramifica, instituindo representantes em cada território (CURITIBA, 2002). Desta forma, o CAPS é um dos pontos desta rede, que se encarrega dos casos que são de sua competência, recebendo-os a partir dos encaminhamentos dos demais pontos de atenção. Seu propósito é atender pessoas com transtornos mentais severos e persistentes, oferecendo cuidados clínicos e reabilitação psicossocial em substituição ao modelo hospitalocêntrico. A ênfase dada a esta substituição é constante em todos os documentos norteadores examinados citados acima, considerando com isso que se presta um atendimento mais humanizado, pois o hospital – instituição total – deixando de existir, não controla mais a conduta daqueles que cuida. O CAPS, enquanto serviço substitutivo, teria a missão de trabalhar com o paciente na comunidade e cuidar de sua 8 reinserção social. As atribuições do CAPS envolvem prestar serviços em regime de diárias, isto é, cada dia de comparecimento do paciente ao tratamento é confirmado por sua assinatura numa ficha e a remuneração do CAPS se baseia no montante geral destas assinaturas; instituir e realizar projetos terapêuticos; promover inserção social; fazer visitas domiciliares; dar suporte para as ações de saúde mental em toda a rede de atenção à saúde e monitorar os pacientes que utilizam medicamentos psiquiátricos (MS 2004). O discurso de reorientação do modelo de assistência torna-se assim o discurso dominante. Contudo, ao produzir determinados significados oculta outros, sendo o objetivo do presente texto explicitar alguns deles. O modelo histórico de Foucault preconiza que as mudanças de discursos são na verdade rupturas ligadas a determinadas condições sociais vigentes, então a questão que se levanta é: quais as condições sociais que estão permitindo o discurso do CAPS predominar? As reflexões desenvolvidas aqui pretendem contribuir para encontrar algumas respostas. O que se verifica é a luta dentro do campo da saúde, ao menos no que tange à saúde pública, onde os agentes defensores da desospitalização alcançam a posição dominante e como tal definem quais regras do jogo são consideradas legítimas. A construção desta legitimidade passa por um suporte de caráter técnico, social e econômico, constituindo-se numa verdadeira ideologia que se impõe sobre todos os agentes do campo, que a incorporam e a disseminam, conforme já apontado por Bourdieu. Na prática, cogitar uma internação passa a ser visto como heresia, contudo, uma comparação com outros segmentos da saúde suscita ponderações. Se uma doença, seja respiratória, vascular ou outra ainda, atinge níveis de gravidade difíceis de serem manejados em tratamento ambulatorial não se hesita em optar pelo internamento, por que seria diferente com a saúde mental? Além do que o discurso sobre a doença mental foi evoluindo no sentido de conferir-lhe de fato o status de doença e não de falha ou fraqueza moral, porém com as práticas atuais ela acaba sendo discriminada, pois não consegue ser tratada com equidade, aliás, um dos princípios norteadores do SUS (MS, 2004). Evitar a internação é só um exemplo, escolhido por ser o estandarte da nova concepção de tratamento, mas este processo engloba outros aspectos, por exemplo, o investimento em psicoterapia individual, considerada de menor alcance e sendo preterida por abordagens de grupo. A posição herética dos profissionais que defendem tais práticas também passa a ser vista no novo sistema como um elemento de estigma, pois estes agentes ainda não são capazes de vislumbrar a suposta evolução da mudança de modelo. Se antes o estigma recaía sobre o portador de transtorno mental, agora o discurso vigente é desestigmatizá-lo, mas o que não se percebe é que o estigma recai sobre os próprios profissionais que “deveriam agir” de determinada forma, mas não se alinham totalmente com as propostas inovadoras. Também é preciso considerar que se não se alinham é por conta de seu habitus original, formado quando o discurso vigente preconizava 9 práticas de tratamento diferentes. Com esta reorientação um novo habitus será constituído, mais facilmente pelos novos agentes que estão chegando no campo, ou seja, os estudantes das áreas correlatas, pois passa a ser o conhecimento legítimo, e “à força”, no caso daqueles que já têm uma herança profissional de outros modelos. Além disso, não é possível deixar de ver que em abordagens individuais de tratamento há uma relação de um profissional para um paciente, em abordagens grupais vários pacientes são atendidos por um profissional, o que tem um efeito multiplicador de diárias. Do ponto de vista social, a ênfase é sobre os direitos de cidadão do portador de transtorno mental, como se eles estivessem mais garantidos no novo modelo, mesmo que isso implique numa desassistência em situação de crise. Acredita-se que reduzindo o número de ferros sobre o paciente aumenta-se sua liberdade. Pois o que ocorre parece ser justamente o contrário, agora a chamada monitoração vai para dentro de sua casa, controlando-o, ou tentando controlá-lo, até em seu âmbito privado. E isso é permanente, ao contrário do que ocorria no hospital, em um tempo determinado. É difícil estabelecer uma diferença entre a monitoração dos pacientes e a vigilância no sentido foucaultiano. Se antes o paciente era coagido a um determinado comportamento intramuros, na instituição total, agora esta coação foi para o espaço aberto, algo que, diga-se de passagem, é muito mais difícil de viabilizar, consequentemente, estratégias se fazem necessárias. É nesta lógica que entram as visitas domiciliares pelos profissionais do CAPS e pelos agentes de saúde e a obrigação de freqüência ao tratamento, que por sua vez também são monitoradas e vinculadas a índices de remuneração dos trabalhadores. Em outras palavras, não só os pacientes passam a ser vigiados, precariamente, pois em um território amplo isso acaba sendo mais difícil, mas agora também os trabalhadores, com o agravante de que sobre estes a vigilância é acirrada e não permite escapatória, pois a lógica intramuros da instituição total parece estar sendo aplicada sobre eles. Inclusive no que tange a premiação apontada por Goffman, como elemento de incorporação das regras institucionais. Os gestores vigiam os trabalhadores e os trabalhadores vigiam os pacientes, mas não para por aí, pois com a criação das instâncias de controle social sobre a saúde, os chamados conselhos, os pacientes também acabam vigiando os trabalhadores e os gestores, configurando uma cadeia de relações de vigilância que não é possível deixar de perguntar: a quem serve? Para que serve? O manual do CAPS (MS, 2004) também preconiza a realização de atividades comunitárias e de envolvimento dos familiares, sendo costume organizar festas para participação de pacientes e convidados. Estes eventos acabam se tornando mais uma obrigação que faz parte do tratamento, inclusive registrando a diária dos pacientes. A estratégia de definir obrigações e comportamentos esperados já apontada por Goffman continua existindo, o que implica também no processo de adaptação primária e no conseqüente status que o paciente possui dentro da instituição: os mais comportados e colaborativos são bem vistos pela equipe de profissionais, os que se ajustam menos 10 ao formato do tratamento são vistos como rebeldes. Os mecanismos de adaptação secundária por parte dos pacientes persistem, caracterizando-se por faltas, recusa ao tratamento e transgressão das normas. Há uma expectativa deveras ingênua de que eles sejam bem comportados, esquecendo-se que não raro apresentam atitudes desviantes e que pode ser justamente este um dos motivos de seu encaminhamento para tal serviço. O registro de diárias, seja no atendimento cotidiano, seja em festas e em atividades extras acaba sendo uma necessidade do serviço que passa a demandar a presença de pacientes para satisfazer critérios de seu próprio funcionamento institucional e mostrar quão adequado é este funcionamento para as instâncias encarregadas de sua vigilância – os gestores. Neste contexto, onde o paciente é cobrado dentro de uma lógica de desempenho do CAPS, é pertinente perguntar: qual o alcance de uma proposta de cuidado voltada para um outro na qual este outro é parte da engrenagem que faz a máquina funcionar? Qual efetivamente é o papel deste outro, público alvo ou parte do processo? Para incrementar a implementação dos CAPS, o Ministério da Saúde instituiu um incentivo financeiro conforme definido na portaria nº 1455 de 31/07/2003 (MS, 2003), no valor de R$ 20.000,00, R$ 30.000,00 ou R$ 50.000,00, dependendo do tipo de CAPS. A remuneração pela diária segue a portaria nº 189 de 20/03 2002 (MS, 2002) e seu valor, na grande maioria dos casos, está compreendido entre R$ 14,85 e R$ 18,10, com exceção de um grupo de pacientes (crianças e adolescentes em regime intensivo de tratamento – comparecem no CAPS todos os dias) cujo valor sobe para R$ 25,40. A portaria 469, de 06/04/2001 (MS, 2001) permite uma comparação com a diária hospitalar, cujo menor valor pago é R$ 25,41, variando até R$ 30,30. Esta breve análise permite constatar que o CAPS representa uma economia aos cofres públicos. Mesmo o prêmio conferido uma vez representa apenas o montante referente a poucos pacientes. No caso dos R$ 30.000,00, por exemplo, cobre a diária de 30 pacientes internados por 33 dias, que não serão mais internados justamente porque a intenção da abertura de CAPS é ser concomitante a desativação de leitos psiquiátricos. É fato conhecido por qualquer pessoa envolvida em saúde mental que os transtornos mentais, incluídos aí as dependências de substância são considerados condições crônicas de saúde, ou seja, não têm uma cura propriamente dita, apenas estabilização dos sintomas, implicando em um tratamento contínuo ao longo de toda a vida do paciente. Enquanto predomina um tratamento baseado na internação, a tendência é que ele se repita indefinidamente. Quando o quadro de um paciente perde sua estabilidade a internação é indicada, estabiliza os sintomas e tem alta, e assim sucessivamente. Esta dinâmica é mais pronunciada ainda nos casos de dependências químicas. As ações que visam reduzir gastos com o tratamento, consequentemente, trazem um grande impacto aos cofres públicos. A epidemiologia das doenças mentais mostra que o número de casos é 11 crescente (CURITIBA, 2002), logo a demanda pelos serviços vai ser maior a cada dia, demandando uma alternativa mais econômica de tratamento, como é justamente a situação do CAPS. Conclusões As mudanças em formato que vem sofrendo o modelo de atenção à saúde mental mostramse disfarçadas de progressistas e humanistas, mas não são menos violentas do que outras práticas. O mecanismo de aggiornamento descrito por Castel revela sua validade a cada dia. Além disso há uma horrorização sobre as práticas cuja violência é mais explícita como o tratamento através de ECT (eltroconvulsoterapia) e espaços de confinamento e um aceite da violência simbólica, que disfarçada de saber técnico-científico se impõe sobre o indivíduo e a sociedade. Os mesmos mecanismos de controle, vigilância, premiação e castigo continuam a ser aplicados, apenas de forma mais sutil. A relação entre o louco e os serviços que lhe prestam cuidados continuam assimétricas. O modelo desospitalizado, vinculado ao Sistema Integrado de Serviços de Saúde, conseguiu criar novos vigiados, os próprios profissionais de saúde, cujo desempenho passa a ser monitorado e serve como moeda de troca para garantir o cumprimento das metas institucionais. O efeito disso é que os profissionais têm que aumentar o controle sobre os usuários do serviço, para assegurar que as metas que lhe são cobradas sejam atingidas. O presente texto é um exame preliminar sobre estas questões, pois vários aspectos além dos abordados aqui podem ser contemplados no funcionamento do “novo” sistema de cuidado à Saúde Mental. Uma abordagem para continuar este estudo seria fazer uma análise comparativa detalhada entre as obras de Foucault, Goffman e Castel e a realidade prática do CAPS. Duas questões teóricas emergem da leitura dos autores citados neste texto, demandando maior aprofundamento: primeiro, se as rupturas de discurso apontadas por Foucault estão correlacionadas à mudança dos agentes dominantes de um dado campo, conforme o pensamento de Bourdieu. Segundo, em que medida o poder simbólico e a microfísica do poder se complementam. 12 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BOURDIEU, P. A miséria do mundo. Petrópolis: Vozes, 1997. _____________ A profissão de sociólogo. Preliminares epistemológicas. Petrópolis: Vozes, 1999. _____________ O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000. _____________ Esboço de uma teoria da prática. Precedido de três estudos de etnologia cabila. Oeiras: Celta Editora, 2002. _____________ Razões Práticas. São Paulo: Papirus Editora, 2003 CASTEL, R. A ordem psiquiátrica: a idade de ouro do alienismo. Rio de Janeiro: Graal, 1978. CURITIBA. Saúde mental em Curitiba: protocolo integrado. Curitiba: Secretaria Municipal da Saúde, 2002. 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