O ASSISTENTE SOCIAL E O ATENDIMENTO À MULHER EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E SEXUAL - UMA REFLEXÃO SOBRE AS COMPETÊNCIAS E ATRIBUIÇÕES NUM CONTRABALANÇO AO RECONHECIMENTO PROFISSIONAL Mailiz Garibotti Lusa* 1. Apresentando o cenário da caminhada Abordar o tema da „violência contra a mulher‟ é tarefa árdua, mesmo em tempos em que esta já foi assumida como uma das expressões da Questão Social. Pesquisar, analisar e discutir as políticas de enfrentamento a este tipo de violência não é diferente. Reconhecendo estes desafios, assumiu-se a tarefa de trazer a baila dos debates do Serviço Social esta questão, com o objetivo central de perceber a inserção deste profissional nas equipes multidisciplinares, suas funções, competências e atribuições. O contexto de partida remete ao cenário capitalista, cuja hegemonia é do capital financeiro internacional, apesar da crise e ameaça de colapso enquanto modo de intensificar a acumulação de capital. Cenário este onde crescem as desigualdades sociais, aumentam os índices de pobreza e miserabilidade, juntamente com os diversos tipos de violências, dentre as quais está aquela institucional, cometida pelo próprio Estado e também a protagonizada pelos grupos do crime organizado. Aumenta o número de assassinatos e outros crimes de violência explícita contra os cidadãos. Aumenta, porém, numa proporção ainda mais assustadora o número de desempregados, diminuem o número de postos de trabalho, sejam formais ou informais, cresce o número daqueles que tentam se inserir no circuito do trabalho e que sobrevivem com suas famílias de trabalhos precários e inseguros, bem como aqueles que foram excluídos até mesmo deste último grupo e ora estão excluídos do „circuito da cidadania regulada‟. Todos formam a massa de mulheres e homens; crianças, adultos e idosos; negros, pardos, brancos e amarelos; indivíduos rurais e urbanos, sujeitos de um Estado submisso a ordem mundial neo-liberal, que se desresponsabiliza pela efetivação dos * Assistente Social, mestranda em Serviço Social pelo Programa de Estudos Pós-Graduados em Serviço Social - PUC-SP; (11)7017-4918; [email protected]. 1 direitos. É neste contexto que se coloca a discussão. São nestes tempos, em que apesar do contexto de retirada do Estado e regressão dos direitos, coloca-se em cena o debate sobre a violência contra a mulher. Neles, apesar de tudo, há a convocação expressa do Estado - mas também da sociedade civil - para atuar no enfrentamento e combate a esta violência, tornando-se explícita a mesma convocatória também para o Serviço Social . Diante do quadro, propôs-se a pesquisa sobre a atual política de enfrentamento à violência contra a mulher, partindo dos marcos legais que criminalizam esta violência e da Política Nacional de Assistência Social. A partir disto fica a questão para o Serviço Social: qual seu papel frente a esta demanda? Como é percebido pelas equipes multiprofissionais? Como se coloca neste espaço de atuação? 2. Sobre o caminho percorrido: da metodologia à própria investigação Neste trabalho apresenta-se a pesquisa desenvolvida no âmbito do enfrentamento da violência contra a mulher, entre os meses de outubro de 2008 a maio de 2009, que teve como objeto a atuação do Serviço Social neste contexto, no que tange a sua visualização pela equipe multiprofissional e ao seu posicionamento frente as demandas da instituição e das usuárias. Visou-se compreender o reconhecimento profissional, bem como as possibilidades de atuação. A investigação efetivou-se através de estudo exploratório, com abordagem qualitativa, fundamentado em levantamento bibliográfico e documental. Numa perspectiva crítica dialética, procurou-se fundamentar a investigação nas seguintes categorias analíticas: relações de Gênero; patriarcado; violência contra a mulher; direitos sociais e atuação profissional. Assim, partindo dos marcos teóricos buscou-se através da observação da atuação profissional junto a um serviço público municipal que presta tal atendimento na Zona Norte de São Paulo, refletir sobre quem é e o que faz o Assistente Social no atendimento às demandas surgidas da violência doméstica e sexual contra a mulher. 3. Os passos da caminhada - das bases teóricas e legais às novas indagações Apresenta-se brevemente neste item as principais discussões que permearam a 2 investigação, emprestando-lhes as bases teóricas e legais para desvendar o Serviço Social numa perspectiva crítica frente às suas possibilidades de atuação profissional. Nele aborda-se seqüencialmente: a violência de gênero e a violência doméstica e sexual contra a mulher; a Lei Maria da Penha, o Pacto Nacional de Enfrentamento da Violência contra a Mulher; a Política Nacional de Assistência Social - nela o atendimento à mulher em situação de violência - e a atuação do Serviço Social frente a esta demanda. 3.1 A violência de gênero na entrada do novo milênio A Violência contra a mulher não é recente e nem mesmo se contextualiza como exclusividade desta ou daquela sociedade. Há tempo se observam registros de violência contra a mulher na história da humanidade. Preconceitos, discriminações, explorações de trabalho, atribuições de valores pessoais desiguais em relação ao homem e outras tantas expressões que chegam inclusive a violência física, psicológica, moral, sexual e patrimonial praticadas como forma de dominação masculina contra a mulher. Na sociedade capitalista esta manifestação é tomada como algo intrínseco às relações sociais, ou seja, naturalizada. A mulher ocupa lugar de subordinação decorrente do modelo patriarcal de desenvolvimento. Portanto, este tipo de violência tem caráter histórico, sendo reconhecida atualmente como „violência de gênero‟. O conceito de gênero refere-se ao fato que papéis impostos às mulheres e homens, consolidados ao longo da história pela cultura patriarcal, determinam os lugares sociais de homens e mulheres e induzem relações violentas entre os sexos. Trata-se de um processo de socialização decorrente de falas, simbolismos, ações e idéias padronizadas nos contextos de cada sociedade. Já o conceito de violência de gênero deve ser entendido como uma relação de poder e dominação do homem em relação a submissão da mulher1. É concebida, ainda, como resultado das motivações que levam sujeitos a interagirem em contextos marcados pela violência, a qual acontece em todas as idades, classes sociais, etnias, religiões e orientações sexuais. Pode ocorrer em diversos âmbitos e espaços, como por exemplo, no trabalho (desigualdade salarial, assédio sexual); na família (agressão física, ameaça, calúnia, estupro); na sociedade em 1 Cabe ressaltar que apesar desta ser preponderante nas relações de gênero, a dominação/submissão pode ocorrer no sentido contrário, ou seja, da mulher para com o homem. Também neste caso a relação de dominação configura-se como violência de gênero. 3 geral (a exploração do corpo pela mídia), entre outros. De forma geral, quando se fala em violência de gênero também pode-se referir à violência sofrida pelos homens, a qual ocorre com índices de incidência bem menores, os quais geralmente se referem à violência cometida contra crianças e adolescentes, ou contra homossexuais masculinos. Já a violência contra a mulher é toda aquela praticada contra pessoa do sexo feminino, apenas e simplesmente pela sua condição de ser mulher. Essa expressão significa a intimidação da mulher pelo homem, que desempenha o papel de seu agressor, seu dominador e disciplinador. Já a violência doméstica é a que ocorre dentro de casa, nas relações entre as pessoas da família, entre homens e mulheres, pais/mães e filhos, entre jovens e pessoas idosas. Apesar da generalização do conceito, nota-se que independente da faixa etária, as mulheres constituem o principal alvo das mesmas. Destarte, desconstruindo as várias justificativas culturais baseadas nos códigos morais patriarcais, pode-se afirmar que todo tipo de violência contra a mulher não tem origem genética, não é fruto de doença do agressor, não é devida ao álcool e às drogas, nem ao estresse, à raiva descontrolada e, muito menos, pode ser considerada como conseqüência do comportamento da vítima. Logo, não se configura como problema individual, mas como questão social que deixa marcas negativas para a socialização da mulher e do homem, cujas auto-estima, autonomia e emancipação são prejudicadas. No decurso histórico as relações entre homem e mulher sempre foram reconhecidas como relações de caráter privado. Nos últimos séculos, porém, a garra, força, coragem e ousadia das mulheres começa a se manifestar e a denunciar não somente as violências sofridas, mas inclusive o modelo patriarcal de dominação política, econômica, social e cultural herdada de geração em geração. Com isto, lenta, mas significativamente o debate vai adentrando no cenário público, colocando-se na arena de discussões do Estado e da Sociedade Civil. Assim, eis que ainda no século XIX surgem os movimentos feministas, que tomaram consistência no século XX, ampliandose em termos de quantidade, visibilidade pública e conquistas, chegando ao século XXI com um significativo elenco de avanços inclusive nos marcos legais. 3.2 Os marcos legais para o atendimento a mulher vítima de violência 3.2.1 Os Ordenamentos Constitucionais e a Lei Maria da Penha 4 Na Constituição Federal de 1988 está explícito o direito à não-violência e à igualdade de gênero, definindo-se a responsabilidade estatal no combate a esta prática. A mobilização dos movimentos feministas e de gênero no Brasil conquistou além desta anuência na Carta Magna, a criação, ainda em 2004, da Lei nº 10.886/04, que acrescentou dois parágrafos ao Art. 129 do Código Penal (Decreto-Lei no 2.848/40), criando o tipo especial de crime, denominado “Violência Doméstica”. Na continuidade deste reconhecimento, em agosto de 2006, o Governo Federal sanciona a Lei 11.340/06, também denominada de Lei Maria da Penha, representando um avanço significativo no combate à impunidade da violência contra a mulher. Sua denominação provêm da homenagem a cearense com este mesmo nome, que foi vítima de violência doméstica e familiar e lutou anos para que seu agressor fosse punido legalmente (SÃO PAULO, Coordenadoria da Mulher, 2008). Segundo a Lei Maria da Penha, em seu Art. 2º Toda mulher, independente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas às oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservar a sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social. Portanto, na forma da Lei, o não cumprimento dos direitos humanos das mulheres no que tange a uma vida sem violência, passa a ser considerado como um crime, em que pode incorrer tanto o agressor - independente do seu sexo -, como o Estado, no que tange a omissão ou a negligência de atendimento. A mesma Lei prevê em seu Art. 3º, Inciso 1º, que “o poder público desenvolverá políticas que visem garantir os direitos humanos das mulheres no âmbito das relações domésticas e familiares no sentido de resguardá-las de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”. O que é complementado pelo Art. 9º que determina A assistência á mulher em situação de violência doméstica e familiar será prestada de forma articulada e conforme os princípios e as diretrizes previstos na Lei Orgânica da Assistência Social, no Sistema Único de Saúde, no Sistema Único de Segurança Pública, entre outras normas e políticas públicas de proteção, e emergencialmente quando for o caso. Ora, nestes Artigos fica expressa a responsabilidade do Estado em relação ao 5 atendimento a este tipo de violência, devendo-se prever espaços competentes para este atendimento, tanto na prevenção, quanto no atendimento emergencial e processual da vítima e do agressor. Neste sentido, a Lei Maria da Penha preconiza no Art. 35º A União, o Distrito federal, os Estados e os Municípios poderão criar e promover, no limite das respectivas competências: I - Centros de atendimento integral e multidisciplinar para mulheres e respectivos dependentes em situação de violência doméstica e familiar; II Casa-abrigos para mulheres e respectivos dependentes menores em situação de violência doméstica e familiar; III - Delegacias, núcleos de defensoria pública, serviços de saúde e centros de perícia médico-legal especializados no atendimento à mulher em situação de violência doméstica e familiar; IV Programas e campanhas de enfrentamento da violência doméstica e familiar; V - Centros de educação e de reabilitação para agressores. Portanto, torna-se explícita a responsabilidade estatal em relação à provisão de políticas, serviços, programas e campanhas que dêem efetividade ao atendimento e combate a violência contra a mulher. Reconhecendo esta responsabilidade, em 2007 o Governo Federal através da Secretaria Especial de Políticas para Mulheres (SPM) cria o Pacto Nacional de Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres, onde prevê um conjunto de ações a serem desenvolvidas entre os anos de 2008 a 2011, pelas diversas instâncias de governo através de iniciativas públicas. Prevê-se que O Pacto Nacional desenvolverá políticas públicas amplas e articuladas, direcionadas, prioritariamente, às mulheres rurais, negras e indígenas em situação de violência, em função da dupla ou tripla discriminação a que estão submetidas e em virtude de sua maior vulnerabilidade social. Serão implementadas ações nas diferentes esferas da vida social, por exemplo, na educação, no mundo do trabalho, saúde, segurança pública, assistência social, entre outras (BRASIL, Secretaria de Políticas para Mulheres, 2007, p.07). Nota-se assim a proposta de pactuação entre os entes federativos, para implementação de ações estruturantes que possam dar efetividade às previsões da Lei 11.340/06, no que se refere ao direito das mulheres a uma vida sem violências. O conjunto destas se volta para o atendimento em quatro áreas estruturantes, sendo elas: a consolidação da Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres, incluindo a implementação da Lei Maria da Penha; o combate à exploração sexual e ao tráfico de mulheres; a promoção dos direitos humanos das mulheres em situação de prisão; a promoção dos direitos sexuais e reprodutivos e enfrentamento à feminização da AIDS (BRASIL, SPM, 2007). Todas as ações têm caráter governamental e destinam- 6 se a oferecer condições para que as instâncias de governo dêem efetividade às ações destinadas a garantia dos direitos já previstos no ordenamento legal do Brasil. Dentro da previsão de pactuação previu-se alguns estados da federação que deveriam ser atendidos durante o primeiro ano tendo em vista as estatísticas deste tipo de violência. Neste grupo encontrava-se o estado de São Paulo, cujo governo assinou a pactuação somente em meados de maio de 2009, praticamente um ano após a previsão inicial, impossibilitando que os municípios paulistas subscrevessem o pacto antes disto. Embora tenha ocorrido a pactuação no estado de São Paulo, seu caráter recente impossibilitou maiores análises sobre sua implementação durante esta investigação. Entretanto, permitiu perceber que para além dos objetivos de atendimento das demandas de violência contra a mulher, estão em questão as disputas de poder no cenário político. Assim, no jogo permanente da concorrência e competitividade „eleitoral‟, dissolvem-se os direitos das cidadãs e cidadãos em detrimento dos interesses políticos, perpetuandose as desigualdades sociais, dentre as quais as desigualdades de gênero. Mesmo diante do fato, espera-se que as ações públicas de enfrentamento da violência contra a mulher sejam reforçadas, possibilitando trabalhar para seu decréscimo até sua eliminação. 3.2.2 A Política Nacional de Assistência Social e a inserção do serviço de atendimento às mulheres no Sistema Único de Assistência Social2 A Política Nacional de Assistência Social – PNAS/2004 é o instrumento legal que orienta sobre os princípios, diretrizes, objetivos, usuários e os tipos de proteção assegurados no campo da Assistência Social, a qual se configura como um dos três pilares do Sistema de Proteção Social Brasileiro no âmbito da Seguridade Social. Seu marco legal encontra-se na Constituição Federal de 1988, no Título sobre a “Ordem Social”, obedecendo aos Capítulos I e II, Artigos 193, 194 e 195, que versam sobre “as disposições gerais” desta ordem e da Seguridade Social, respectivamente. É delineada em seu marco jurídico na Seção IV – Da Assistência Social, através dos Artigos 203 e 204. Sua regulamentação deu-se através da Lei Orgânica da Assistência Social – LOAS, de dezembro de 1993 que a situa como política social pública articulada 2 Para desenvolvimento deste subitem, foram utilizados trechos „na íntegra‟ da Política Nacional da Assistência Social - PNAS/2004 e da Norma Operacional Básica que regulamente o Sistema Único de Assistência Social - NOB/SUAS (2005), os quais encontram-se destacados sob „aspas duplas‟. 7 à saúde e previdência social e inaugura seu trânsito no campo dos direitos, da universalização dos acessos e da responsabilidade estatal. Já o SUAS é o „Sistema Único de Assistência Social„ que, segundo a Norma Operacional Básica - NOB/SUAS, tem “caráter público, não-contributivo, descentralizado e participativo”, orientando a gestão da Assistência Social. Fundamenta-se nos compromissos da PNAS/2004 e “regula em todo território nacional a hierarquia, os vínculos e as responsabilidades do sistema de serviços, benefícios, programas, projetos e ações de Assistência Social, de caráter permanente e eventual, sob critério universal e lógica de ação em rede”. Dentro do SUAS, salientou-se - para a intenção desta investigação - a previsão de „Serviços‟ de atendimento à mulheres vítimas de violência, doméstica e sexual. De acordo com a LOAS/93 e a PNAS/2004, „serviços‟ são atividades continuadas que visam a melhoria da vida da população, cujas ações voltem-se para o atendimento das necessidades básicas da população, observando os objetivos, princípios e diretrizes estabelecidas na Lei e o seu ordenamento em rede, de acordo com os níveis de proteção social: básica e especial, sendo a última subdividida em média e alta complexidade . Assim, o campo de atuação do Serviço Social - em questão na pesquisa, situase como um „serviço de proteção especial de média complexidade, configurado na NOB/SUAS (2005) como um dos “serviços que oferecem atendimento às famílias e indivíduos com seus direitos violados, mas cujos vínculos familiar e comunitário não foram rompidos”. Prevê-se na mesma Norma, atendimentos que “requerem atenção especializada e individualizada e/ou com acompanhamento sistemático e monitorado”, que devem ser prestados de forma direta: nos Centros de Referência Especializados de Assistência Social – CREAS e em outras unidades públicas especiais de assistência social e de forma indireta: nas entidades e organizações de assistência social da área de abrangência dos CREAS, especializadas neste atendimento. É neste último espaço que se encontra o Núcleo de Defesa e Convivência da Mulher, onde procedeu-se a observação da atuação do Serviço Social, previsto como uma das etapas de investigação. 8 3.3 O Núcleo de Defesa e Convivência da Mulher e o Serviço Social Este item tem por finalidade fornecer as informações sobre o Serviço de Assistência Social, onde se configura o campo de atuação do Serviço Social, objeto principal deste estudo. Para garantir a imparcialidade das informações, as mesmas foram buscadas no próprio projeto elaborado pela entidade propositora do Serviço, aprovado pelo órgão da Prefeitura Municipal de São Paulo responsável pelo atendimento, quando do firmamento do convenio para prestação do serviço público3. Na identificação do „serviço‟ nota-se que sua vinculação é direta com a Prefeitura Municipal de São Paulo, através da Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (SMADS). Presta atendimento segundo a Política Nacional de Assistência Social - PNAS/2005, caracterizando-se como um „serviço‟ em nível de „proteção social especial de média complexidade‟. Tem como “estratégia de atendimento” a organização em seis espaços interdisciplinares, sendo “acolhimento, serviço social, serviço psicológico, serviço jurídico, grupos socioeducativos e oficinas de artesanato” (ASSOCIAÇÃO FALA MULHER, 2008, p.03 e 04). Para possibilitar a análise proposta, elenca-se as atividades previstas nas duas áreas específicas onde atuaria o Assistente Social, sejam „o acolhimento‟ e o próprio setor de „Serviço Social‟. Em relação ao primeiro, prevê-se que Pode ser feito por qualquer uma das técnicas e até mesmo pela Coordenadora do Serviço, sendo traduzido pelo momento em que a usuária chega ao Núcleo. É feita uma escuta cuidadosa inicial do caso, com vistas a oferecer a mulher um ambiente reservado e tranqüilo onde se senta segura para contar de si, suas experiências, angústias e afetos. É através desta escuta que poderá ser avaliado o grau de risco em que está submetida, quais as primeiras providências a serem tomadas e encaminhamentos a serem efetuados (ASSOCIAÇÃO FALA MULHER, 2008, p.04. Sem grifos no original). Já para o segundo, delimita-se que A (o) assistente social será responsável por estabelecer contato com serviços disponíveis na rede, identificados como necessários a partir da avaliação do perfil socioeconômico da usuária. Serão verificadas as condições de documentação da mulher, a necessidade de realizar Boletim de Ocorrência e exame de corpo-delito, contato com a rede familiar (quando houver) e, caso seja necessário, encaminhamento para abrigamento, sigiloso ou não, na rede 3 Fundamentação documental encontrada no projeto de autoria da Associação Fala Mulher, 2008. Ver referência completa no final do estudo. 9 de Serviços conveniados com a SMADS. Outros encaminhamentos internos ao Núcleo podem também ser realizados: apoio psicológico, atendimento jurídico, orientações do âmbito social realizadas individualmente ou em grupo, grupos sócio-educativos e oficinas de artesanato. A (o) Assistente Social será responsável também pela construção do Banco de Dados das usuárias, o qual será organizado em prontuários individuais [...] com documentos como Boletim de Ocorrência e ofícios referentes a encaminhamentos externos realizados. Vale ressaltar a importância de que a (o) Assistente Social esteja em contato com a rede de Serviços (conveniados ou não com a SMADS) e que mantenha cadastro completo e atualizado de todos os recursos sócio-assistenciais da rede, a fim de que possa levar ao alcance da usuária o conhecimento e o acesso a todos os Serviços de que venha a precisar, garantindo-lhe o direito de informação e formação para o exercício de sua cidadania (ASSOCIAÇÃO FALA MULHER, 2008, p.05). Ainda são previstas ações como fortalecimento da rede de atendimento, visita domiciliar, estudo dos casos e encaminhamentos para rede de políticas, serviços e programas sociais, atendimentos individual e de grupo voltados para a possível quebra do ciclo de violência, cursos e oficinas de qualificação de técnicos e funcionários do Serviço, fortalecimento da rede interna de atendimento, avaliação e planejamento das atividades com as usuárias, entre outras (ASSOCIAÇÃO FALA MULHER, 2008). A partir disto iniciou-se a discussão das competências e atribuições, segundo as habilidades ético-políticas, técnico-operativas e a formação teórico-metodológica. 3.4 O trabalho do Assistente Social frente à violência contra a mulher4 Desde os anos 1980, vem-se afirmando que o Serviço Social é uma especialização do trabalho, uma profissão particular inscrita na divisão social e técnica do trabalho coletivo da sociedade5. [Perspectiva esta que] supõe apreender a chamada “prática profissional” profundamente condicionada pelas relações entre o Estado e a Sociedade Civil. [...] O Assistente Social dispõe de um Código de Ética profissional e embora seja regulamentado como profissão liberal, não tem essa tradição na sociedade brasileira. É um trabalhador especializado, que vende a sua capacidade de trabalho para algumas entidades empregadoras, predominantemente de caráter patronal, empresarial, ou estatal [...]. Em síntese, [...] é considerado como uma especialização do trabalho e sua atuação uma manifestação disto, inscrito no âmbito da produção e reprodução da vida social ( IAMAMOTO, 2007, p. 22-27). Percebe-se nesta definição, desenvolvida no período em que o caldo de debates 4 Antes de iniciar, é importante salientar que o principal instrumento que fundamentará a reflexão, será a própria base legal que orienta o exercício profissional do Serviço Social no Brasil, a Lei 8.662/93, que „Regulamenta a Profissão de Assistente Social‟. Assim, para principiar a discussão, procurar-se-á apresentar a junção das reflexões de Iamamoto sobre a identificação do Serviço Social, desenvolvidas em seu livro O Serviço Social na Contemporaneidade: trabalho e formação profissional #, a fim de subsidiar a discussão, a partir da perspectiva adotada por grande parte dos profissionais, pesquisadores e estudantes. 5 Reportando-se à IAMAMOTO, M. V. e CARVALHO, R. Relações sociais e Serviço Social no Brasil. 10 acerca da profissão engrossava-se através da perspectiva crítica desenvolvida a partir da década de 80‟, que o Serviço Social como profissão social é contextualizado num terreno de contradições. Apesar de sua autonomia como profissão liberal, conforma-se num campo delimitado pelas relações institucionais e pelas lutas societárias da sociedade capitalista. Destarte, é um profissional inscrito num campo de tensões entre as demandas institucionais, o controle e as determinações de seu empregador e as demandas e necessidades dos sujeitos de seu atendimento, as quais são condicionadas pela conjuntura política, econômica, social e cultural micro e macro-societária. Para gerenciar esta tensão, o profissional dispõe de um arcabouço teóricometodológico, técnico-operativo e ético-político construído pela própria categoria ao longo do seu desenvolvimento e apropriado através da formação universitária. Destacase a Lei que regulamenta a profissão, determinando suas competências e atribuições e o disciplinamento de seu exercício ao Conselho Federal e aos Conselhos Regionais. Durante a investigação conferiu-se destaque para alguns itens dos Artigos que tratam das competências e atribuições do Assistente Social, os quais observou-se nexo direto com as funções previstas para este profissional no projeto da instituição de atendimento a mulher. No entanto, dado a brevidade deste artigo e sua destinação - para o conjunto da categoria profissional -, os mesmos não serão aqui elencados. Outrossim, partir-se-á para o contrabalanço entre as informações do documento institucional e aquelas dos marcos legais da profissão. Primeiro, nota-se que existe uma evidente confusão por parte dos formuladores do projeto institucional em relação às atividades que constituem funções de competência, daquelas que se configuram como atribuições exclusivas, inerentes apenas a atuação profissional do Assistente Social. Observa-se que no âmbito das „atribuições‟ descritas no projeto, encontram-se atividades como „recepção das usuárias, realização de grupos de reflexão, de encaminhamentos à rede social, de visita domiciliar e do próprio acompanhamento da trajetória das usuárias„, entre outras, que se configuram como competências não somente do profissional do Serviço Social, como também de outros profissionais. É notória a importância e imprescindibilidade do Assistente Social, porém quer-se demonstrar que, por um lado, não há no texto do documento o reconhecimento de que o atendimento especificado remete ao campo e matéria do Serviço Social, requerendo São Paulo, Cortez/Celats, 1982. 11 habilidades profissionais exclusivas. Por outro lado, entende-se que ao generalizar as funções - tais como a própria „recepção das usuárias‟, aqui compreendida como „o acolhimento‟ - destinam-se para o Assistente Social aquelas que, a grosso modo, não requerem uma formação profissional reconhecida social e cientificamente e que, portanto, poderiam ser desempenhadas por qualquer pessoa, independente de sua formação. Dito isto, é imprescindível registrar que se compreende a acolhida como um momento onde acontece a primeira „escuta social qualificada‟ a cerca do contexto e da trajetória da vida da usuária, momento importante - porém não único - para compreender a situação de violência que envolve a mulher e seus familiares. Daí decorre a necessidade que haja qualificação técnica para seu desenvolvimento. Outra polêmica diz respeito à vinculação do Assistente Social como profissional da burocracia. Veja-se que a tarefa de „criar o banco de dados das usuárias‟, bem como de mantê-lo atualizado é destinada especificamente a ele, não constando na descrição das funções dos demais profissionais da equipe. Sim, novamente se reconhece que há duas possibilidades para este desvendamento. Uma delas não oferece uma imagem social satisfatória da profissão, já que relaciona o Assistente Social - como já dito - com o profissional da burocracia estatal e institucional, logo com „a vagareza e com os vícios institucionais‟ remetidos ao senso comum. Sobre isto, Iamamoto diz que Esse ethos da burocracia impregna também a atuação dos profissionais de Serviço Social. A reiteração de procedimentos profissionais rotineiros e burocráticos na relação com os sujeitos pode resultar na invasão de um estranho no seu ambiente privado, muitas vezes aliada a uma atitude de tolerância com a violência que tem lugar nos aparatos burocráticos do Estado (2008, p.426. Grifos do autor). A outra possibilidade deste desvendamento é valorosa profissionalmente, pois indica o reconhecimento da seriedade no atendimento profissional, retratado no fato de que o mesmo mantêm os registros dos usuários, com a mesma consideração e respeito com os quais se registra a própria história da sociedade. Assim, pode-se supor que, a partir de sua competência as histórias e trajetórias de vida do usuário e da instituição seriam asseguradas, objetivando, de certa forma, o protagonismo esperado para ambos. Enfim, encerrando esta discussão que ainda guarda elementos para futuros debates, é importante destacar o fato de que se faz várias vezes menção a uma das habilidades desenvolvidas pela profissão que a identifica e diferencia atualmente dos 12 demais técnicos da área social: sua competência em transmitir aos sujeitos a informação sobre os direitos, na perspectiva da efetivação da cidadania e dos direitos sociais. Esta característica não lhe foi intrínseca a ontologia profissional, mas sim, foi desenvolvida efetivamente a partir da ruptura com a perspectiva conservadora que orientava a profissão até meados da década de 1970 e 1980. Para isto foi fundamental o reconhecimento da necessidade de trabalhar com os sujeitos atendidos na perspectiva da informação como caminho para o exercício da cidadania. Em verdade construiu-se uma parceria na socialização de informações que possibilitem ao sujeito compreender seus direitos, a disposição dos recursos e serviços e, assim, participar da rede de atendimento, pressionando o próprio Estado em suas responsabilidades. Reconhece-se nesta forma de atuação, os indicativos do trabalho profissional a partir da ótica do direito social, em cuja efetividade se dá, inclusive, através da articulação das redes sociais no que tange o atendimento e o controle social do Estado. Nas palavras de Iamamoto, Por meio da socialização de informações procura-se tornar transparente, ao sujeito dos serviços, as reais implicações de suas demandas - , para além das aparências e dos dados imediatos - , assim como os meios e condições de ter acesso aos direitos. Neste sentido, essa atividade extrapola uma abordagem com um foco exclusivamente individual à medida que considera a realidade dos sujeitos como parte da coletividade. Impulsiona também a integração de recursos sociais, fornecendo retaguarda aos encaminhamentos sociais e a articulação com as forças organizadas da sociedade civil [...] (2008, p.427). Portanto, nota-se que ainda é incipiente o debate sobre a identidade profissional do Assistente Social junto às instituições e demais profissões do campo social. Imaginase que a provocação deste debate, assim como seu enfrentamento, possibilitaria tanto a melhoria da efetividade de suas ações junto às instituições - sejam elas estatais, empresariais ou de organização civil - quanto o seu reconhecimento inter-profissional. 4. Apontando avanços e limites da atuação do Serviço Social no campo da violência doméstica e sexual contra a mulher - Um panorama final deste caminho A tarefa proposta neste item de conclusão tem por um lado certa facilidade e por outro uma difícil exigência ética-política. A primeira refere-se aos avanços relativos ao reconhecimento da „violência contra a mulher‟ como expressão histórica da Questão Social que precisa ser enfrentada e eliminada pelo Estado e sociedade. Neste sentido, é 13 necessário admitir que um dos limites para a efetividade do combate é o reconhecimento de que ela carrega em si as marcas da dominação masculina, perpetuada pela cultura capitalista patriarcal, que configura as relações de gênero. Enfrentar o cenário ainda patriarcal da sociedade contemporânea é tarefa de todos: Estado, governos e governantes; instituições, partidos políticos e entidades de classe; enfim, cidadãos homens e mulheres, na sua qualidade de sujeitos particulares ou de profissionais. Em segundo, mesmo reconhecendo os avanços que propiciaram inclusive a criação de serviços e aparatos sociais, educacionais e de segurança para tal enfrentamento, também é necessário denunciar a incipiência dos mesmos, no que tange a proporção entre demanda e oferta de serviços, bem como em relação à irrisória disponibilidade de recursos profissionais e financeiros dentro da rede de atendimento. Deve-se reconhecer e valorizar também a importância da atuação do Serviço Social nestes espaços e junto a esta demanda. Isto somente está acontecendo a partir da qualidade dos profissionais que trabalham na área, os quais demonstram no cotidiano profissional a imprescindibilidade de seu saber e fazer profissional. Também, enquanto profissão, é necessário reconhecer que ainda há necessidade de avanços em relação à qualificação profissional para trabalhar no enfrentamento da violência de gênero. Até o momento a acumulação teórica da profissão tem acontecido de forma tímida junto ás Escolas e Núcleos de Estudos e Pesquisas do Serviço Social e a abordagem do tema nos currículos dos cursos também segue a mesma tendência6. Portanto, é urgente aflorar este debate internamente à profissão, para que seja possível melhorar ainda mais o reconhecimento social e científico da profissão frente a este tipo de atendimento. Em relação à apreensão das competências e atribuições profissionais dos Assistentes Sociais pelas instituições empregadoras e por outros técnicos da área social, indica-se que ainda há muitos desafios, os quais constituem tarefa inclusive da categoria profissional, que precisa incitar o debate público sobre a profissão, afirmando-se em seus espaços de atuação cotidiana enquanto uma profissão que dispõe de uma autonomia advinda de um saber construído coletivamente e de uma responsabilidade 6 Este debate já foi tratado pela presente pesquisadora em trabalhos anteriores. Pode-se encontrar esta discussão em: LUSA, Mailiz Garibotti. GÊNERO E SEXUALIDADE: quando a ausência destas abordagens na formação profissional compromete a práxis do Serviço Social In: Anais do I Certame de Pesquisa e Incentivo à Escrita do Departamento de Serviço Social da UFSC - Coordenação de Pesquisa, 14 ética garantida em seu projeto ético-político e no estatuto profissional. Salienta-se também a necessidade de que esta empreitada seja assumida no campo das disputas políticas institucionais, a fim de que se conquistem as condições sociais necessárias para a realização do trabalho. Destarte destaca-se que Para além dos acordos previstos no contrato de trabalho, [...] o que determina o cotidiano das ações profissionais são as condições e relações sociais que circunscrevem esse trabalho. Elas interferem no seu direcionamento, nas atribuições delegadas, nos recursos autorizados, entre outras dimensões, cuja força decorre das relações de poder econômico e político que repercutem no próprio conteúdo e a qualidade do trabalho (IAMAMOTO, 2008, p.424). Ora, para além do que já se discutiu, é necessário considerar neste debate o próprio capitalismo e a política neoliberal, ditada aos Estados-Nacionais pelas Agências Internacionais, segundo o comando do capital. Portanto,é imprescindível admitir que o reconhecimento, a afirmação e a valorização da atuação profissional, seja no campo da violência contra a mulher ou nos demais campos, ocorrerá neste mesmo contexto de mundialização das finanças, de apropriação privada e desigual das riquezas produzidas e de socialização dos seus custos. É deste nível mais amplo de organização da sociedade que decorrem as condições que incidirão, inclusive, nas ações e relações sociais cuja profissão está envolta. Elas devem ser consideradas pelo Serviço Social como constituintes do contexto em que se deseja realizar o profícuo debate sobre a profissão. 5. Referências ASSOCIAÇÃO FALA MULHER. Projeto Núcleo de Defesa e Convivência da Mulher - Centro de Integração Social da Mulher. São Paulo, 2008. BRASIL. Conselho Federal de Serviço Social - CFESS . Código de ética profissional do assistente social. Resolução 273/93. In: CRESS. 11ª Região. Coletânea de legislações: Direitos de Cidadania. Curitiba: CRESS/PR, 2003. BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Política Nacional de Assistência Social – PNAS/2004 e Norma Operacional Básica do Sistema Único de Assistência Social - NOB/SUAS. Brasília: MDS, nov/2005. BRASIL. Presidência da República. Lei que Regulamenta a Profissão de Assistente 2008, Florianópolis (SC). 15 Social. Lei 8.662/93. In: CRESS. 11ª Região. Coletânea de legislações: Direitos de Cidadania. Curitiba: CRESS/PR, 2003. BRASIL. Presidência da República. Secretaria Especial de Políticas para Mulheres. Pacto Nacional de Enfrentamento à Violência contra a Mulher. Brasília: SPM, 2007. Disponível em: http://www.ess.ufrj.br/prevencaoviolenciasexual/download/026pacto.pdf Acesso em: 30/05/2009. IAMAMOTO, Marilda V. O Serviço Social na contemporaneidade: trabalho e formação profissional. 13.ed. São Paulo: Cortez, 2007. _______________. Serviço Social em tempo de capital fetiche: capital financeiro, trabalho e questão social. 2.ed. São Paulo: Cortez, 2008. SÃO PAULO, Coordenadoria da Mulher. Manual Lei Maria da Penha. [Lei 11.340/2006]. São Paulo: Prefeitura Municipal / Coordenadoria da Mulher, 2008. 16