12 BAURU, domingo, 12 de março de 2017 GERAL Um apetite sem freios: ‘Só penso em comida!’ Grupo Comedores Compulsivos Anônimos volta a atuar em Bauru; confira depoimentos de quem se vê diante do ‘dilema do exagero’ TISA MORAES M aria, nome fictício, tem 40 anos e muita vivência em se tratando de obsessão incontrolável por comida. Ela integra o Comedores Compulsivos Anônimos, grupo que foi reativado em Bauru para ajudar quem enfrenta esse problema, mais comum do que parece. “Já soube de gente que pegou até comida do lixo”, conta. Ela poderia estar narrando a triste e tão recorrente história de um ser humano em situação de desespero por não ter o que comer. O relato, contudo, não se vincula à miséria financeira, mas sim psicológica. É a exposição da situação extrema vivida por comedores compulsivos. As reuniões do grupo, após hiato de dez anos, são gratuitas. Maria é um dos membros. “Os encontros foram retomados em janeiro deste ano e não têm vinculação religiosa. O principal objetivo é fazer reflexões que possam auxiliar na superação do problema”, pontua. AOS POUCOS Ela conta que o grupo segue o programa de doze passos do Alcoólicos Anônimos e busca ser um mecanismo auxiliar na reabilitação dos compulsivos. No caso de doenças crônicas e psiquiátricas, como é a compulsão alimentar, normalmente não se fala em cura, mas em tratamento, que pode ser feito por meio de psicoterapia e até com o uso de medicamentos (leia mais abaixo). Aliás, a cidade conta com vários outros grupos e associações de ajuda mútua, como o já citado Alcoólicos Anônimos, os Neuróticos Anônimos, na área do diabetes, câncer, doenças renais, CVV, entre outros. Segundo o psiquiatra Evandro Luís Pampani Borgo, a compulsão alimentar é caracterizada pelo descontrole do indivíduo diante da comida, mesmo sem fome ou quando já está com sensação de estufamento. Como consequência, vêm a culpa e o mal estar. “É como se fosse um vício. Ao menos duas a três vezes por semana, a pessoa come grande quantidade em um curto espaço de tempo, principalmente de alimentos hipercalóricos, na forma de gorduras e doces”, observa, salientando que a periodicidade e o volume de alimento ingeridos são os principais diferenciais em relação àquelas pessoas que, vez ou outra, exageram na comida em uma festa ou comemoração familiar. EXCESSOS Maria, por exemplo, conta que já comeu um bolo inteiro, de uma só vez, em um dos episódios compulsivos. Misturas inacreditáveis entre alimentos doces e salgados também fizeram parte do cardápio. “São excessos que, normalmente, vêm seguido de remorso. O compulsivo tem ideias obsessivas e passa muito tempo pensando em comida. Come escondido, às vezes, de madrugada. É um esforço diário para não ter recaídas”, relata. De acordo com Borgo, o problema costuma estar associado a outros transtornos psíquicos, como depressão, ansiedade e transtorno bipolar. Mas, ao contrário do que possa se imaginar, nem todo comedor compulsivo é obeso – pesquisas apontam que a proporção seja de 75% do total de pessoas com o distúrbio. “Mas é importante destacar que nem todo obeso é compulsivo. E, entre os obesos, é o compulsivo quem mais procura ajuda para perder peso, porque não se conforma com o volume de comida que ingere. E, por isso, ele responde melhor ao tratamento psicoterápico”, frisa, destacando que outros transtornos, como anorexia e bulimia, não são consideradas compulsões alimentares. Tratamento O psiquiatra Evandro Borgo explica que o tratamento é comportamental, por meio da mudança de estilo de vida e da reeducação alimentar. “A compulsão funciona com um fator de recompensa: o indivíduo sente prazer ao ingerir uma grande quantidade de alimento. Então, é preciso encontrar outras fontes de prazer para, assim, controlar a ansiedade ou a depressão”, cita. É recomendado que a transformação seja acompanhada de tratamento psicoterápico, que pode ou não ser associado de prescrição de medicamentos antidepressivos e indutores de saciedade. Para Maria, as experiências compartilhadas entre os membros do Comedores Compulsivos Anônimos também contribuem para a reabilitação. “No grupo de Bauru, que recebeu o nome de Unidade, também podem participar pessoas com anorexia e bulimia. Uma ajuda a outra com informações e apoio, o que contribui para que cada uma consiga se abster de comer compulsivamente”, frisa. SERVIÇO Atenção: as reuniões gratuitas do Comedores Compulsivos já ocorrem todas as quintas-feiras, às 19h30, em uma sala cedida pela igreja Santa Rita de Cássia, na quadra 3 da rua São Gonçalo, no Centro de Bauru. ‘O comer compulsivo se torna um ciclo vicioso’ É em um corpo de 106 quilos e 1,78 metro de altura, com o auxílio de florais, acupuntura e as reuniões dos Comedores Compulsivos Anônimos, que Ana (nome fictício), 49 anos, tenta superar a compulsão alimentar com a qual convive desde a adolescência. “É uma fase complicada para a autoestima. O comer compulsivo se torna um ciclo vicioso: você come para se sentir bem e continua engordando, o que faz você se sentir mal. Aí você volta a precisar daquela válvula de escape, a comida, para compensar esta frustração novamente”, descreve. Hipertensa, Ana também se diz uma mulher “extremamente an- siosa e perfeccionista”, que se rendeu à compulsão por conta de “questões emocionais mal resolvidas”. Ainda em tratamento, ela diz que também precisa controlar outros excessos, como o gosto por compras e limpeza. “Mas não acho que se tratam de outras compulsões, até porque administro bem”, pontua. O descontrole com a comida, contudo, pode surgir em variadas situações, tanto em momentos de confraternização e alegria, quanto solitariamente, na tristeza. “É preciso ter consciência o tempo todo do que pode te levar a recaídas, porque a comida se torna questão obsessiva. Não é algo superado”, conclui. Samantha Ciuffa O psiquiatra Evandro Borgo: mudar estilo de vida é necessário Delícias do mundo desafiam limites da vontade: ponderação Todos por um Uma das marcantes características de Bauru é a solidariedade organizada e não oficial, isto é, não vinculada ao poder público. Além das inúmeras entidades e ONGs promotoras de assistência social, que mitigam a miséria com ações permanentes, a cidade também possui grupos de ajuda e apoio em problemas de ordem psicológica e física, como o Comedores Compulsivos, objeto desta reportagem. Em outras ocasiões, o JC falou sobre os alcoólicos anônimos, os neuróticos anônimos, assim como abre espaço permanente a associações que ajudam quem tem diabetes, câncer, aids, problemas renais crônicos etc. Bauru se mostra avançada no que diz respeito à humanização das relações e laços de ajuda mútua e, por isso mesmo, ninguém deve se sentir constrangido em procurar soluções para males contemporâneos, como os já citados aqui, entre tantos outros que a humanidade enfrenta ao longo de sua existência. Neste sentido, nosso jornalismo, que não se descuida das grandes questões públicas, lança luz também em temas que afetam cada um de nós, individualmente, notadamente nas dores da alma e do corpo. De forma embasada e objetiva e em linguagem acessível, matérias como esta podem significar um alento e indicar caminhos a quem não sabe onde buscar auxílio ou simplesmente internaliza seu problema e o perpetua. Nós não estamos sozinhos, ainda que muitas vezes não possamos contar com o aparato público para nos dar guarida. Por isso existem os grupos e entidades de autoajuda, que compensam a ausência do Estado e estreitam laços de colaboração entre as pessoas. O JC apoia totalmente estas iniciativas e, sempre que pode, as torna públicas em suas páginas impressas e digitais, visando um mundo melhor, individual e coletivamente. Da Editoria