Objetivos • Apresentar a disciplina Antropologia e o Homem Festivo: conceitos introdutórios. • Estudar as idéias formadoras da Antropologia como ciência. • Compreender os significados gerais do uso da Antropologia como ferramenta de análise cultural. 1. Antropologia e o Homem Festivo A idéia de festa presente no cotidiano dos grupos humanos é tão antiga quanto a própria noção de sociedade. Pode-se afirmar, de forma simplificada, que qualquer evento festivo é uma ruptura do cotidiano do grupo, ou seja, serve como um momento de "parada e reflexão", ao mesmo tempo em que organiza e aproxima os grupos em torno de um objetivo comum. Parte de um painel de pintura rupestre localizado no sítio arqueológico do "Boqueirão da Pedra Furada", em São Raimundo Nonato - PB. Datada de aproximadamente 12 mil anos, mostra, na parte central à esquerda, uma espécie de dança ritual. Também do mesmo lado, um pouco mais abaixo (no formato de uma centopéia), uma dança de roda: o elemento festivo ajudando na manutenção da memória do grupo. A festa, que sempre é vista com o rótulo de um acontecimento lúdico, é uma que permeiam diferentes gerações do grupo social analisado. 2 Nesse sentido, a Antropologia ajuda a compreender a idéia embutida em cada acontecimento festivo. Qual o seu significado simbólico? A festa muda com o passar do tempo ou é um acontecimento fechado e imutável? As atuais festas são heranças das passadas? Qual a relação entre festa e identidade coletiva? Esses fatores são importantes para aquele que organiza um evento? Algumas perguntas mostram a importância da compreensão dos chamados "ritos coletivos", ou seja, da idéia formativa dos acontecimentos. O entendimento desses elementos simbólicos instrumentalizam o profissional que vai organizar uma festa. 3 É importante lembrar que os grupos sociais, ao se organizarem, criam relações de sociabilidade nem sempre compreensíveis em um primeiro contato para aqueles que estão fora desses grupos. possibilidade é o esquecimento e a perda dessas festas em detrimento do moderno massificador. Deve-se lembrar que uma festa funciona, também, como um elemento de manutenção de identidades. As diferentes realidades culturais, vistas de forma equivocada, podem criar barreiras e impossibilitar a construção do lúdico, que na atualidade movimenta, em grande parte, o trabalho do profissional de Eventos. Por vários motivos (que iremos estudar posteriormente), as pessoas podem não aproveitar os conhecimentos ofertados por essas manifestações. Outra O profissional que atua na realização de festas não pode deixar de considerar elementos como distribuição dos ornamentos pelo local, conhecimento do público-alvo, tipos de bebidas e comidas, cores das roupas, etc. Esses detalhes são componentes que estruturam o acontecimento, pois fazem parte da identidade coletiva dos grupos sociais envolvidos. A forma como os orientais, principalmente os japoneses, organizam seus alimentos pelas cores dos pratos não é apenas um arranjo decorativo. Há, nesse processo, toda uma carga simbólica que envolve a própria noção de cultura do grupo. Nesse aspecto, a disciplina Antropologia e o Homem Festivo procura mostrar como diferentes elementos interagem para a formação de um contexto único na construção de um acontecimento festivo. A disciplina objetiva instrumentalizar o profissional de Eventos para atuar de forma mais harmoniosa na organização e gestão dos aspectos simbólicos que estruturam uma festa. 2. Antropologia: antecedentes históricos "ANTROPOLOGIA: Considerada de maneira ampla como o estudo científico do homem, esta definição ortodoxa destaca inúmeros problemas que ajudam a ilustrar tanto a diversidade da antropologia hoje quanto seus aspectos unificadores." Robert A. Foley A diversidade cultural dos grupos humanos é um fenômeno que intriga muitos pensadores desde a mais remota Antiguidade. Entre eles, alguns admitiam que cada grupo social possuía sua própria forma de organização e perpetuação de idéias. As Grandes Navegações européias, ocorridas entre os séculos XV e XVII, trouxeram à tona essa diversidade cultural de forma mais acentuada. O contato entre as diferentes civilizações criou um novo jogo de poderes que se refletiu em um processo de dominação e exploração material. 4 Novo jogo de poderes Nesse momento, conhecer os grupos e suas diferenças sociais era apenas um elemento de exposição do exótico e do estranho. O poder colonial definia qual era o padrão cultural a ser aceito e estabelecia as diretrizes de controle e organização social dos grupos. Observe a ilustração. Do lado esquerdo, em cima, tem-se a representação do continente europeu: uma linda mulher bem vestida, acompanhada dos símbolos da sabedoria, uma coruja e alguns livros, que lembram a idéia de civilização. Ao lado dela, na parte superior direita, uma representação do continente asiático. Apesar de a mulher estar bem vestida, apresenta-se com menos roupas que a representante da Europa. No canto inferior direito, a representação do continente africano: a mulher está bem mais á vontade e os animais presentes mostram o real significado de sua representação: selvageria. Página do livro Icologia, do italiano Cesare Ripa. Escrito em 1673. Finalmente, no canto inferior direito, a representação do continente americano, na qual uma mulher, quase nua, mostra a realidade de outros povos em comparação ao da Europa: todos seriam bárbaros e necessitavam ser civilizados. O desenvolvimento da Antropologia como ciência pode ser considerado fruto do processo científico que transformou a sociedade a partir daquilo que se convencionou chamar de Revolução Industrial. Nota-se que, nesse primeiro momento a Antropologia também trazia como herança vestígios de seu passado colonialista, ou seja a idéia de civilização x barbárie. 5 Greystoke - A Lenda de Tarzan, O Rei da Selva. EUA, 132 min, 1984. Um bebê é criado por macacos em plena floresta, aprendendo a se comunicar com eles. Já adulto, é levado para viver com uma família nobre na Inglaterra, onde passa por problemas de adaptação e se apaixona por uma jovem mulher. Dirigido por Hugh Hudson (Carruagens de Fogo) e com Christopher Lambert, Ian Holm e Andie MacDowell no elenco. Recebeu três indicações ao Oscar. Fonte: http://adorocinema.cidadeinternet.com.br/filmes/greystoke/grey stoke.htm A máquina, que passa a fazer parte da sociedade desde o final do século XVIII, trouxe um novo elemento de interpretação das características socioculturais dos grupos humanos. A tecnologia passa a ser um elemento de diferenciação dos homens e de seus conhecimentos. Desenvolveu-se a idéia de que a técnica e seus processos nivelariam os grupos humanos, independentemente de sua cultura local. Atrelada a essa razão tecnológica, a Antropologia aparece como ciência de interpretação dos grupos. Parecia fácil perceber as diferenças culturais: os grupos que possuíssem tecnologia seriam avançados e aqueles que não possuíssem deveriam aprender e submeter-se às propostas de organização dos grupos mais "desenvolvidos". Parte da idéia atual de civilização recebe influência desse pensamento único. Nota-se que a Antropologia nasce atrelada às necessidades de uma elite dirigente que usa desse e de outros artifícios para se justificar e manter-se no poder. 3. A interpretação antropológica: duas teorias Paralelamente a essas idéias, estruturava-se a Teoria da Evolução das Espécies, desenvolvida pelo britânico Charles Darwin, que publicou sua obra clássica, A origem das espécies, em 1859. 6 O chamado Darwinismo Social, temática de interpretação cultural herdada das propostas do biólogo, admitia que todo grupo social era parte de uma processo evolutivo e que características em comum denunciariam os estágios nos quais cada comunidade ou grupo estaria inserida. A Evolução explicaria, de forma simples, as diferenças dos grupos e, assim, reduziria as explicações necessárias para uma maior compreensão das diferenças culturais. Darwinismo Social Forma de compreensão das sociedades pela lógica evolucionista proposta por Charles Darwin. Todos os grupos humanos passariam por etapas, evoluindo conforme as dificuldades apresentadas pelo meio, com a sobrevivência os indivíduos mais aptos a se adaptar às condições oferecidas. É importante lembrar que esse modelo de ciência é mecanicista e herda as características do momento histórico em desenvolvimento no período. A Revolução Industrial alteraria a forma de se perceber o mundo e seus elementos diários ao ajudar a criar uma espécie de padronização científica, tal qual a máquina ao produzir os artefatos de consumo diário. A propaganda ao lado mostra a fórmula britânica da conquista: os nativos (bárbaros) sendo civilizados pelo mercado de consumo. In: HOSBSBAWN, Eric. A era dos Impérios: 1875-1914. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988 (caderno de ilustrações). Propaganda do sabão inglês Pears, em 1887. 7 Nos últimos anos do século XIX, nomes como os de Herbert Spencer, E. B. Taylor e L.H. Morgan criaram escalas para avaliar um desenvolvimento cultural de forma padronizada. Palavras como hordas primitivas, barbarismo, civilização, entre outras, definiam os estágios culturais dos diversos grupos humanos. No aspecto econômico de interpretação das sociedades, termos como caçadores, coletores e lavradores fechavam o ciclo de conhecimento dos grupos, classificando-os conforme a linha antropológica do momento. Nascia a chamada Tese Evolucionista, ou Método Comparativo, que tinha como parâmetro a sociedade da qual fazia parte o observador/antropólogo. Tese Evolucionista Desdobramento da Antropologia que se utiliza das idéias evolucionistas para comparar as diferentes culturas pelo uso de um único padrão. Nessa etapa do pensamento antropológico, a explicação da sociedade pela sua linha evolutiva ganha adeptos e inibe o desenvolvimento de uma corrente contrária de pensamento. O Método Comparativo era considerado resultado de uma observação e de uma comparação direta, uma vertente da "ciência pura" e, portanto, de valor inquestionável. O primeiro pensador a criticar essa forma de raciocínio foi o antropólogo Franz Uri Boas, em 1896, com a publicação de um artigo chamado As limitações do método comparativo da antropologia (Castro 2004 : 25). As idéias de Boas questionavam o Método Comparativo, embora não o abandonassem por inteiro. Seu método de trabalho valorizava o grupo social, observado como um todo, respeitando a sua própria lógica interna. Segundo Boas, análises amparadas em modelos prontos eram, no mínimo, reducionistas. 8 Nascia, assim, a Antropologia Cultural, ou Teoria do Relativismo, na qual cada sociedade deveria ser vista de dentro para fora e não como se havia feito até então: um olhar amparado em modelos preconcebidos. Antropologia Cultural Ramo principal de estudo da Antropologia na atualidade. Baseia-se na compreensão do grupo como um todo. Nenhum aspecto cultural é condicionante para a compreensão dos grupos humanos, ou seja, toda informação é relativa. As idéias de Boas chegam ao Brasil pelas mãos do sociólogo Gilberto Freyre, que foi seu aluno na Universidade de Columbia (EUA), em 1920. O livro de Freyre Casa Grande e Senzala, publicado em 1933, tornou-se um clássico para a compreensão da realidade formativa do Brasil e está impregnado das idéias propostas por Boas. Conhecer a lógica interna dos grupos e seus próprios modelos de comportamento, aquilo que na atualidade é conhecido como "observação participante", atinge o auge com as teorias de B. Malinowski, presentes em sua principal obra publicada, em 1922, Os Argonautas do Pacífico Ocidental. As idéias de Boas e Malinowski deram origem à chamada Etnografia: "o pesquisador deve ele mesmo efetuar no campo sua própria pesquisa" (Laplantine 1991: 75). Com a presença em campo, participando do cotidiano do grupo social, o antropólogo observa as realidades internas: o comportamento coletivo do grupo, seus costumes, suas crenças, etc. Tal método é a base da Antropologia Social. 4. A Antropologia Social e seus valores contemporâneos A ciência antropológica usa de elementos cognitivos, ou seja, cada prática cultural do grupo estudado revela valores e novas temáticas que ajudam diretamente em sua compreensão como grupo social distinto. Nesse caso nenhum valor é imposto ou julgado, ao contrário, a identidade étnica é compreendida pelos valores próprios associados ao grupo. 9 No século XX, com o desenvolvimento de novas tecnologias e de novas formas de registro documental, criou-se uma nova vertente da ciência antropológica chamada de Antropologia Visual. Nesse espaço de interpretação da ciência, os grupos humanos passam a ser documentados também em imagens. Antropologia Visual Uma das vertentes teóricas da Antropologia Cultural, para a qual a imagem produzida também é parte da realidade cotidiana do grupo e assim deve ser compreendida. A produção de imagens também deve ser realizada de forma isenta e desvinculada da idéia de que a criação de um registro é algo automático e impessoal, ou seja, o simples ato de "apertar o botão da máquina fotográfica" produziria uma verdade científica, isenta e asséptica. O fotógrafo que realiza o registro também é um membro de uma determinada comunidade e, portanto, envolvido com as realidades cotidianas do grupo social do qual faz parte. Seu registro estará carregado, de forma inconsciente, ou não, de suas próprias realidades e esse aspecto deve ser levado em conta na interpretação da imagem produzida. Deve-se observar que uma simples fotografia pode dar margem a diversas interpretações e conduzir a uma falsa leitura do objeto/pessoa registrada. Olhe esta fotografia e pense: qual a realidade retratada? Amizade? Poder? Cada imagem é como um texto e possuí suas características particulares. Legenda: "O senhor e seus escravos", fotografia de Militão Augusto de Azevedo, aproximadamente 1870. A preocupação dos antropólogos modernos é evidente na diminuição da relação etnocentrista existente na captura de imagens de grupos sociais diferenciados. Como registrar por imagens um grupo social, sem reproduzir falsas idéias comparativas? 10 Relação etnocentrista ou Etnocentrismo Forma de observar diferentes culturas pela lógica única da realidade do observador. Despreza lógicas próprias de cada grupo social específico. O primeiro passo é conhecer a sociedade como um TODO e não somente pelas suas particularidades exóticas, ou seja, suas PARTES. Cada registro deve inserir-se no dia-a-dia do grupo. Observa-se, nesse modelo documental, a captura do cotidiano e do processo constitutivo das chamadas identidades coletivas. Identidades Coletivas Elementos que aproximam os diferentes membros do grupo social: padrões e modelos de comportamento coletivo, tais como tipos de vestuários, gostos alimentares, padrões de sexualidade, etc. Um segundo passo é conhecer o processo constitutivo desse mesmo cotidiano, observar a sociedade pelas suas fases diárias: rituais gastronômicos, festivos, de vida e de morte, etc. O registro documental é uma parte importante para se conhecer o grupo e cada imagem produzida é um texto, que deve ser interpretado e decodificado de acordo com a realidade de produção do momento. Carnaval do Rio de Janeiro 5. A Antropologia e outras ciências A atual Antropologia também se apropria de valores e conceitos que fundamentam outras ciências humanas. A antropóloga Lilian Moritz Schwarz chama esse processo de "Debates em região de Fronteira", ou seja, há uma grande interdisciplinaridade das ciências, que não deve ser menosprezada. A Psicologia, por exemplo, serve de base de interpretação para o chamado culturalismo, ramo teórico que orienta a Antropologia desenvolvida principalmente nos EUA. Nesse modelo, criado inicialmente por Franz U. Boas, há o estudo das chamadas trocas culturais: cada sociedade recebe e ao mesmo tempo propaga modelos culturais diversos. 11 Culturalismo Modelo de compreensão das sociedades pelas suas trocas culturais. Todos produzem, propagam e absorvem modelos culturais diversos. Na atualidade, não existe a chamada "cultura pura", ou seja, um grupo social que nunca entrou em contato com outro. Para o conhecimento do cotidiano dos grupos, a Antropologia se utiliza dos preceitos teóricos criados pela História. Na produção desse conhecimento analítico, respeita-se a idéia de que há uma herança significativa que permanece viva mesmo nas mudanças mais radicais das sociedades analisadas: o passado é um dos elementos mais atuantes no presente dos grupos. Por exemplo, na análise de fotografias antigas, usada na atualidade por muitos historiadores para interpretar o passado brasileiro, respeitam-se os valores dos grupos retratados no momento da produção das imagens. Da Geografia Humana a Antropologia, apropria-se da idéia de que os espaços de atuação dos grupos não são definidos somente por fronteiras naturais visíveis e concretas, como a presença de um rio, uma cadeia de montanhas, um vale, etc. A idéia do espaço geográfico é definida, principalmente, pela noção cultural dos grupos envolvidos em sua representação. Dessa forma, o território é pensado pelas possibilidades simbólicas que oferece, sem o chamado "determinismo ambiental". As inter-relações humanas determinam suas áreas de atuação específica e esse fator é um aspecto cultural estudado pela Antropologia. Percebe-se, dessa forma, que a Antropologia no seu ramo mais atual, a Antropologia Cultural, articula várias possibilidades teóricas com uma grande gama de disciplinas, e essa articulação é um dos principais alicerces de compreensão das realidades cotidianas da nossa sociedade. 12 CASTRO, Celso (org.). Franz Boas: Antropologia Cultural. Rio de Janeiro : Jorge Zahar Editor, 2004 BOTTOMORE, T; OUTHWAITE, W. (ed.). Dicionário do pensamento social do século XX. Rio de janeiro : Jorge Zahar Editor, 1996. p. 22-27. LAPLANTINE, François. Aprender Antropologia. 5. ed. São Paulo : Editora Brasiliense, 1991. LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 3. ed. Rio de Janeiro : Jorge Zahar Editor, 1986. 13 14