MEGAEVENTOS E O SONHO DO DESENVOLVIMENTO Selene

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Revista VITAS – Visões Transdisciplinares sobre Ambiente e Sociedade – www.uff.br/revistavitas
ISSN 2238-1627, Ano II, Nº 5, dezembro de 2012
MEGAEVENTOS E O SONHO DO DESENVOLVIMENTO
Selene Herculano
[email protected]
Vera Rezende
[email protected]
Thereza Carvalho
[email protected]
Resenha crítica do livro DEVELOPMENT AND DREAMS – THE URBAN
LEGACY OF THE 2010 FOOTBALL WORLD CUP. Udesh Pillay, Richard
Tomlinson and Orli Bass (eds.). HSRC – Human Sciences Research Council,
2009, 316 pp.
Tivemos a nossa curiosidade aguçada por este livro por considerarmos
oportuna sua leitura entre nós em razão de dois fatores: o Brasil recentemente
se percebeu beneficiado por também ter sido escolhido como sede de dois
megaeventos desportivos próximos – a Copa do Mundo de 2014 e as
Olímpíadas de 2016. Muitos dos argumentos do povo e de autoridades
brasileiras pró e contra sediar tais eventos são similares aos que lemos no
presente livro em relação à África do Sul, descritos a seguir. Também vale
ressaltar o mesmo sentimento de se ver distinguido pela comunidade
internacional, que finalmente começaria a ver com outros olhos dois continentes
até aqui semidesconhecidos ou vistos com boa dose de preconceitos, a América
do Sul e a África. Apesar de a África do Sul não ser debutante na tarefa de
sediar eventos desportivos globais, pois já sediou a Copa do Mundo de Rugby
em 1995, uma Copa do Mundo de Futebol tem um apelo mundial especial.
O livro chama nossa atenção para o fenômeno relativamente recente do
surgimento de uma mega aliança entre os esportes, os negócios e a mídia,
possibilitada pelas novas tecnologias de comunicação de massa e de informação
e centrada nos direitos de teletransmissão e em megapatrocinadores. (A Copa
Mundial de Futebol em 2006 na Alemanha, segundo dados citados neste livro,
teve uma audiência acumulada da ordem de 26,29 bilhões de espectadores e fez
a FIFA arrecadar US$ 2,77 bilhões em direitos de televisão e em marketing). Tal
aliança de interesses produziu um calendário mundial bem calculado, de forma
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a haver um megaevento desportivo a cada dois anos. E, consequentemente,
escolher um ponto do planeta – localidades em um mundo dividido em nações
– como sede. O livro trata das implicações e expectativas desta escolha.
Este livro se baseou em pesquisa iniciada em 2005 pelo HSCR – Conselho de
Pesquisas em Ciências Humanas – em colaboração com o Centro de Estudos
sobre Ambiente Construído, o Instituto Wits de Pesquisas Sociais e Econômicas
da Universidade de Witwatersrand, o Banco de Desenvolvimento Sul Africano,
a Rede de Cidades Sul-africanas e o Instituto Goethe em Joanesburgo. Seu
objetivo foi avaliar os impactos da Copa de 2010 no desenvolvimento urbano
sul-africano. O livro está dividido em 3 partes: 1 - a construção do evento; 2 - a
avaliação dos impactos (na redução da pobreza, no turismo, no interior rural,
bem como as implicações das intervenções no meio urbano); 3 – o debate sobre
o legado (sonhos e expectativas).
Pouco há sobre a construção do evento: um histórico sobre a chegada do futebol
inglês à África do Sul como forma de socialização dos colonizadores com os
locais e que se tornou um campo da resistência negra; a menção à competição
interna entre cidades para sediar jogos e hospedar delegações; um pouco sobre
a FIFA e seus procedimentos.
Esperávamos encontrar no livro dados mais detalhados e objetivos sobre
aspectos preparatórios cruciais, como, por exemplo, sobre orçamento geral da
FIFA
e
contrapartida
nacional
e
suas
cifras,
sobre
procedimentos
organizacionais via democracia participativa, sobre o planejamento de
manutenção e de usos pós-evento dos equipamentos urbanos construídos etc...,
e na verdade pouco há desse tipo de dados. Há a menção introdutória (por
Tomlinson, Bass e Pillay) referente a 30 bilhões de Rands (moeda nacional sulafricana) previstos em março de 2008, com os quais o governo sul-africano daria
conta de sua parcela de gastos na realização da Copa de Futebol de 2010. Davis,
no capítulo 3, apresentou organogramas da estrutura administrativa da Cidade
do Cabo relativa à preparação para o evento e uma tabela com os gastos
aprovados em 2006 para os estádios (8 bilhões e 400 milhões de
Rands).
Todavia, a menção a investimentos e gastos em diferentes moedas - dólar
estadunidense, Rands etc. - sem definir sua equivalência criou dificuldades para
a compreensão do leitor.
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Udesh Pillay, em seu “Afterword”, fez um balanço final: a receptividade
positiva dos cidadãos sul-africanos ao evento da Copa do Mundo de Futebol de
2010 como um momento propício para reiterar o processo de construção
nacional, o sentimento de patriotismo, a formação de uma identidade, o
fortalecimento dos processos de democratização, de aperfeiçoamento dos
direitos humanos, da liberalização política e da sociedade civil mediante a
construção do “capital social”. E, objetivamente, a curto e médio prazos, a
expectativa positiva da criação de empregos, da revitalização de áreas urbanas
degradadas, de investimentos em transporte público e em tecnologia de
comunicação que perdurarão após a Copa. Segundo ele, a preparação para a
Copa do Mundo de 2010 propiciou uma plataforma deliberativa e um espaço
seguro de discussão e neles uma avaliação crítica sobre a eficácia do plano de
guerra à pobreza, já em curso, o que fez despontar a menção ao déficit
habitacional nacional de 2,5 milhões de unidades.
Essa questão da participação popular nas decisões apareceu ao longo de
diferentes artigos do livro, apontando tanto o quanto ela seria positiva para o
evento bem como porque ela não existiu a contento. O duplo propósito, de
alcançar visibilidade internacional e reduzir desigualdades sociais, gerou uma
tensão interna e Swart e Bob, ao fazerem um estudo de caso sobre a Cidade do
Cabo (capítulo sete) propuseram uma solução para a tensão, que seria o
caminho da consulta popular como meio de, ao mesmo tempo, ampliar a
participação no processo decisório, divulgar o esporte como caminho de
desenvolvimento social e cooptar a população para a sua prática.
Um dos artigos mais questionadores do livro colocou em foco as implicações
sociais e espaciais que resultam da implantação de um grande projeto esportivo
dentro da cidade de Joanesburgo, que inclui o Estádio de Joanesburgo, a Arena
“Standard Bank” e intervenções de renovação urbana nas áreas vizinhas. (BénitGbaffou, Capítulo 11). Os bairros próximos ao projeto abrigavam uma
população de baixa renda, migrantes ocupantes de construções superlotadas e
em mau estado de conservação que, segundo a autora, seriam expulsos. O fato
da renovação urbana (no caso do “Greater Ellis Project”) se apoiar na iniciativa
dos parceiros privados transformou o setor público em facilitador do processo e
forneceu poucos elementos para garantir tanto a participação quanto soluções
como moradias adequadas para os atingidos pelo projeto.
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Outra forma de intervenção urbana dizia respeito as PVAs (Public Viewing
Areas), também chamados de ‘parques dos fans’, áreas destinadas à localização
das telas de tamanhos variados onde os torcedores poderiam assistir aos jogos
fora dos estádios, com outro nível de envolvimento com as partidas, ao mesmo
tempo em que estabeleceriam relações com outros grupos de turistas e com a
cidade à sua volta. A Copa de 2006 na Alemanha foi a primeira a oferecer
enormes PVAs distribuídas em diferentes cidades, promovendo o fluxo de
turistas por outras regiões ao mesmo tempo em que serviu à estratégia de
reforçar a unificação do país. Em Berlim a mesma iniciativa foi utilizada para a
recuperação urbana de espaços públicos selecionados. (Haferburg, Golka e
Selter, capítulo 10). As PVAs criaram na população local sul-africana a
expectativa de realizar ganhos através de pequenos pontos de venda, o que, por
sua vez, resultou em preocupação das autoridades com o comércio ambulante
informal e suas implicações negativas. As periferias das cidades se disseram
prejudicadas, uma vez que nelas não estava prevista a instalação desses
espaços.
A parte do livro denominada “Dreams” (Sonhos) trata das expectativas de
retorno material e simbólico em relação à realização da Copa de 2010. Nesse
conjunto de artigos foram discutidas questões subjacentes à realização do
evento, como a oportunidade da população para obter renda ou trabalho ou a
construção de uma nova imagem de eficiência e hospitalidade para a África do
Sul. Ou, ainda, o legado intangível para o continente africano de afastar-se de
uma imagem de colonialismo, racismo e subdesenvolvimento e passar a ser
percebido como um país moderno, cordial e pronto para o turismo. Eram
sonhos individuais e coletivos, construídos e inflados nos anos que precederam
a realização do evento e que dificilmente terão se realizado na totalidade. A
importância dos artigos dessa seção reside no fato de que as questões
levantadas podem ser em grande parte trazidas para o debate em relação a
outros megaeventos em geral e, no caso brasileiro, em relação à Copa do
Mundo de 2014 e às Olimpíadas de 2016, onde problemas de inclusão social e a
busca por reconfigurar
uma imagem de país se encontram também entre
pontos fundamentais.
Quais seriam as oportunidades esperadas pelos sul-africanos com a realização
do megaevento? Czeglédy respondeu no capítulo 12, sublinhando que as
principais motivações do próprio evento pouco tinham a ver com esportes:
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referiam-se aos ganhos bilionários das empresas associadas à FIFA, que
exercem como uma corporação direitos sobre a realização, divulgação e
transmissão dos jogos; Czeglédy mencionou o seu efeito catalisador de
mudanças com resultados para a imagem do país, para o turismo e como
impulso para investimentos em infraestrutura urbana, em obras previstas e
adiadas. Czeglédy mostrou também como a expectativa de aumento dos preços
dos imóveis em áreas sujeitas a intervenções urbanas são antecipadamente
apropriadas pelo mercado imobiliário e contrastou essa situação com a
precariedade dos trabalhadores informais diante do turismo gerado pelo
evento.
A preocupação com a oportunidade de usar o megaevento como ferramenta
para melhorar a imagem local também se repetiu dentro do país, entre as suas
cidades. A cidade de Durban almejou melhorar sua identidade urbana e passar
a ser reconhecida como uma cidade africana inclusiva e bem equacionada, tanto
para moradores quanto para turistas, como mostrou Orli Bass, no capítulo 13. A
autora explorou as tensões e diferentes nuances entre a intenção da
administração local em construir uma identidade urbana e sua diferença com as
imagens em construção no nível da administração provincial, mais ancoradas
na vida africana, no meio rural com a valorização da identidade Zulu. Essas
diferenças, segundo ela, se materializaram na paisagem com o grandioso
Estádio Moses Mabhida, símbolo de uma África urbana.
Em outra perspectiva, Margot Rubin (capítulo 14) trouxe para o debate a
questão do gênero e da crescente presença feminina, como espectadora e como
participante, num esporte tradicionalmente masculino. A autora focalizou a
maneira como os eventos da FIFA são concebidos como espaços masculinos Ela
aventou a possibilidade de a World Cup de 2010 poder ser um desafio aos
hegemônicos papéis masculinos, em face da história de resistência e luta da
África do Sul.
Contudo, no balanço final, o conjunto dos estudos presentes nesta coletânea
concluiu que as contribuições da Copa do Mundo para o desenvolvimento
econômico da África do Sul, para a criação de empregos e para a mitigação da
pobreza estavam superestimados. Tomlinson (capítulo 6) externou seu receio de
que o evento pudesse até ser prejudicial à economia nacional, por promover
desigualdades regionais, ao deslocar investimentos para a construção de
estádios, deixando de atender a políticas mais abrangentes. Cornelissen
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(capítulo 8) também viu com cautela o futuro do turismo, uma vez que os
megaeventos
acabariam
arredando
outras
formas
de
turismo
mais
permanentes, em especial o turismo de negócios.
Trata-se de um livro que provoca perguntas e reflexões, o que é sempre
positivo. Mas que tem lacunas, especialmente para o leitor de outros
continentes. Um ponto fraco foi não dar uma visão do contexto do continente
africano em geral e da África do Sul. Também faltaram dados sobre a economia
atual, uma vez que o livro tratava de discutir expectativa de desenvolvimento.
Por exemplo: oito bilhões e 400 milhões de Rands, aprovados para a construção
e modernização de 10 estádios, representavam quanto em relação a outros
gastos com políticas públicas e quanto do PIB nacional daquele país? O próprio
conceito de desenvolvimento também não foi explicitado nem seu quadro de
referência, isto é os indicadores a serem utilizados para avaliar se os esforços
com a realização do evento seriam eficazes e se iriam colaborar para o
desenvolvimento do povo sul-africano.
Se a Copa do Mundo de 2010 era percebida como fator propiciador de um
conhecimento melhor do continente africano, o desconhecimento geográfico
pareceu estar presente também entre os autores desta coletânea, em que o
México aparecia computado como sendo América do Sul (Merwe, ps 21 e 22) e
o país “Estados Unidos” era simplesmente denominado de “América” (p. 19),
como se todos os demais 26 países que compõem as três Américas – do norte,
central e do sul – não fossem América!
Um livro que buscou retratar a
expectativa de um continente ser visto pelo mundo na sua riqueza cultural e na
sua diversidade não deveria repetir a retórica estadunidense que rouba de 26
países a identidade americana.
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