O CAMPO DA ANTROPOLOGIA NO BRASIL: a construção da realidade Adjair Alves* Resumo Haverá espaço para atuação do Antropólogo na sociedade contemporânea? O que faz um Cientista Social e especificamente o Antropólogo? Qual o campo de estudo e atuação daqueles que se arvoram no estudo da Antropologia em nossa sociedade contemporânea? Estas são algumas questões que embora não sejam respondidas, diretamente, no presente ensaio teórico, possivelmente, o leitor encontrará caminhos para construir suas próprias conclusões a partir da leitura deste. Palavras - Chave: Antropologia; etnografia; nativo. Enquanto as maneiras de ser ou de agir de certos homens forem problema para outros homens, haverá lugar para uma reflexão sobre essas diferenças que, de forma sempre renovada, continuará a ser o domínio da antropologia. 1 A antropologia surgiu no mundo europeu, basicamente, como resultado do empreendimento expansionista ocidental e, em alguns casos, a serviço do fortalecimento do discurso colonizador que precisava justificar tal empreendimento. Como tal, seu objeto de estudo primordialmente foram os chamados povos “selvagens” e as especulações sobre sua humanidade. Como assinala GODELIER:2 “em todo lugar, para governar, comerciar ou evangelizar, militares, missionários e funcionários eram obrigados, mais cedo ou mais tarde, a dedicar-se ao estudo das línguas – em sua maioria não escrita – e à observação dos costumes desses povos, quando mais não fosse para erradica-los.” Evidentemente que não podemos dizer ser este o princípio norteador da atividade antropológica, visto que a antropologia se caracteriza por ser uma atividade de * Mestre em Antropologia e Doutorando no Programa de Pós-graduação em Antropologia pela UFPE. Professor de Teoria Antropológica na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Caruaru 1 Claude LÉVI-STRAUSS. “A crise moderna da antropologia”. Apud. Roberto Cardoso de OLIVEIRA. O trabalho do antropólogo. p. 55. 2 Maurice GODELIER. O ocidente, espelho partido: uma avaliação parcial da antropologia social, acompanhada de algumas perspectivas. RCBS. n 21 – ano 8 – fev. de 1993. p. 05 – 21. Interfaces, Caruaru, v. 6, n. 2, 2006 caráter científico, construída a partir de uma coleta criteriosa de dados no campo mesmo dos acontecimentos, basicamente conduzida por uma orientação metódica, a observação participante, isto é, a imersão prolongada de um observador, quase sempre estranho, num meio observado. Todavia, é preciso considerar que a prática etnográfica, sempre se realizou sobre um pano de fundo de relações de dominação e desigualdade de condições entre observador e observado. Este, considerado como inferiorizado, como “rústico”, “selvagem”, “excluído”, “estranho”, etc. esta prática ou contexto, pesou e ainda continua, explícita ou implicitamente a se fazer presente no empreendimento antropológico. Ou seja, a antropologia tem sido contaminada pela idéia de tratá-se de um conhecimento sobre grupos sociais que aos olhos dos pesquisadores parecem estar em uma condição inferiorizada, atrasada cultural, econômica e socialmente. Para citar GODELIER, uma espécie de “estigma”. Não raras vezes, somos apanhados em “armadilhas”, para usar a expressão de CARDOSO, 3 ao tratar de questões metodológicas relacionadas ao trabalho antropológico. “Quase sempre, diz ela, o que acaba por ser revelado nessas pesquisas, é a utilização de longas descrições onde se tem presente uma visão etnocêntrica onde o outro é colocado como inferior, onde o pesquisador, quase sempre se coloca como alguém que se propõe a um engajamento político, como quem quer restaurar um estado existencial.” Como se pode inferir das análises de CARDOSO, o campo na pesquisa social, e no nosso caso da antropologia, não pode ser concebido separado da reflexão sobre a natureza do conhecimento científico e o papel da subjetividade como instrumento do conhecimento. O campo não é uma realidade separada do sujeito, com formas objetivas, independentes. Mas os sujeitos precisam se colocar diante dos dados com certa objetividade, sem que esta se torne uma camisa de força. Volto a GODELIER, para quem a antropologia constitui-se em uma prática de conhecimento cujo objetivo é “descobrir os sentidos e as razões de ser dos modos de vida e de pensamento que se podem observar nas diversas sociedades 3 Ruth CARDOSO. “Aventuras de antropólogos em campos ou como escapar das armadilhas do método. In. Ruth CARDOSO (org) A aventura antropológica: teoria e pesquisa. p. 97, 8. Interfaces, Caruaru, v. 6, n. 2, 2006 que hoje coexistem na superfície do planeta, compondo, todos juntas, a essência atual, múltipla da humanidade. A ambição da antropologia é conhecer suficientemente cada uma dessas sociedades para poder compara-las todas.” Neste processo de investigação, o antropólogo necessita libertar-se do peso da tradição científica, conduzindo-se a um questionamento reconstrutivo de sua atuação. Pensar a prática e o campo antropológicos no Brasil implica pensá-los a partir de um contexto que outrora fora objeto de estudo, de outras tantas práticas, científicas colonizadoras, mas que hoje se coloca como objeto-sujeito de seu próprio conhecimento. Nesse repensar-se, a antropologia se constitui como um empreendimento a serviço da construção da identidade cultural da nação brasileira. E aqui cabe uma reflexão sobre o que tem constituído o campo dessa atividade e as implicações futuras da antropologia, marcada em suas origens pelos estudos das sociedades indígenas e africanas. Lévi-Strauss, 4 em ensaio sobre a “crise moderna da antropologia” afirma que esta “não se define por seu objeto concreto – no caso as sociedades aborígines –, mas pelo olhar que deita sobre a questão da diferença. Questão essa sempre presente onde quer que identidades étnicas se defrontem”. Como afirma Merleau-Ponty 5 “A etnologia não é uma especialidade definida por um objeto particular, as sociedades ditas ‘primitivas’; é uma maneira de pensar, aquela que se impõe quando o objeto é [o] ‘outro’, e exige que nós nos transformemos”. Evidentemente que a etnografia brasileira tem se revelado bastante produtiva no estudo das comunidades indígenas, sobretudo com o agravamento decorrente dos conflitos de terra no interior do país, da crise no campo e da luta pela demarcação dos territórios indígenas. Mas as pesquisas antropológicas não têm se concentradas nestas fronteiras, pelo contrário, têm se estendidas nas trajetórias urbanas, as periferias das metrópoles, as favelas, nos estudos dos movimentos sociais, nos estudos das diversas experiências de construção da cidadania, etc. estudos que tem se intensificado a partir da década de 1960. 4 Claude LÉVI-STRAUSS. Op. Cit. p. 54. Maurice MERLEAU-PONTY. “De Mauss à Claude Lévi-straus”. Apud. Roberto Cardoso de OLIVEIRA. Op. Cit. p. 55. 5 Interfaces, Caruaru, v. 6, n. 2, 2006 Segundo CARDOSO DE OLIVEIRA, 6 a antropologia brasileira desde os primórdios, estruturou-se tendo por objetos de estudos, índios ou brancos, a “etnologia indígena e a antropologia da sociedade nacional”, vistos como grupos étnicos minoritários ou segmentos desprivilegiados da sociedade nacional. O objeto de estudo, segundo este autor, é compreendido como uma construção, que prevalece sobre o objeto real, marcando o que podemos chamar de “tradições” do campo na antropologia brasileira. Considerando as observações de Oliveira, e comparando-as com o quadro das “dinâmicas e tendências” que se configuram nas instituições de pesquisa em antropologia no Brasil, MONTEIRO, 7 considera que a “clivagem” apresentado por CARDOSO DE OLIVEIRA, “parece ter perdido sua força teórica propulsora na construção de problemas para investigação, uma vez que a maior parte das linhas de pesquisa por meio das quais os programas representam a distribuição de seus interesses disciplinares não corresponde a grupos empíricos particulares.” Para MONTEIRO, seria impossível uma “clivagem” da antropologia brasileira, em termos dos campos apresentados, uma vez que aquelas áreas se diversificaram inteiramente de modo a alterarem os efeitos teóricos, impossibilitando que cada parte adquira um sentido generalizado. Além do mais há uma desproporção muito grande entre estas duas áreas, para que se possa falar em “clivagem da antropologia brasileira”. Para esta pesquisadora, a antropologia brasileira se desenvolveu em direção a “equacionamento dos problemas característicos das sociedades urbanas, tecnológicas e modernas”. Embora reconheça os limites de sua abordagem, é bem verdade que a análise que aquela autora apresenta, da configuração da pesquisa antropológica brasileira, se dá numa perspectiva de comparação da produção daquela antropologia, com o modelo clássico. Nesta perspectiva de análise, aquela autora destaca o sentido de “nativo” e o estilo de narrativa “monografia”, apresentados pela produção brasileira, como sendo “metáforas” daquilo que a perspectiva clássica 6 Roberto Cardoso de OLIVEIRA. Tempo e tradição: interpretando a antropologia. Anuário Antropológico. n 84. n 1. p. 191 – 203. 7 Paula MONTEIRO. “Antropologia no Brasil: tendências e debates. In. Wilson TRAJANO FILHO e Gustavo Lins RIBEIRO (orgs). O campo da antropologia no Brasil. p. 121 – 3. Interfaces, Caruaru, v. 6, n. 2, 2006 concebia. Considera ainda, que embora a formação do antropólogo no Brasil esteja fundamentada, basicamente, na linha dos clássicos, “Com efeito, o que parte expressiva da pesquisa antropológica realiza é uma adequação das teorias e conceitos que emergiram da análise etnográfica dessa diferença para pensar problemas contemporâneos nas sociedades modernas”. Não queremos suprimir o valor da análise apresentada por aquela autora, mas consideramos que uma atividade científica que se presa, não pode se limitar a repetir a tradição que a originou, mas atualizá-la, o que significa vivenciá-la de modo consciente, situando-a numa temporalidade. Como assinala DaMatta, 8 “viver regras sobre as quais não se tem nenhum controle, em virtude de sua rigidez, é como quem joga ou está aprisionado numa cela”. Assim entendemos que estamos reinventando a antropologia no Brasil, e nessa perspectiva, o “campo”, na realidade nacional, se apresenta como uma construção. Para citar DURHAM 9 se expressam sobre “temas políticos, estudo de grupos socialmente desprivilegiados econômica e politicamente oprimidos, movimentos sociais urbanos e rurais, grupos juvenis”, entre outros campos já consolidados na antropologia brasileira, tais como: gênero, família e religião, etc. A antropologia brasileira vai assim construindo o campo, quando volta seu olhar sobre os problemas sociais, urbanos e rurais, da realidade brasileira. Aqui nos valemos das palavras de MOTTA e BANDÃO, 10 que citando George W. Stocking Jr. afirmam que: “a antropologia, diferentemente de outras disciplinas, constituiu-se por meio da fusão de tradições e de inovações ‘disparatadas’ de pesquisas e idéias”.Visto a partir dessa perspectiva, afirmam: “o substrato do campo da antropologia é em geral bastante diversificado e, desse modo, também capaz de produzir suas próprias particularidades, como tem se configurado em diferentes contextos nacionais”.Tal situação tem marcado o campo na antropologia brasileira como uma realidade plural. 11 Mas tem imposto alguns desafios ao pesquisador que tem se tornado, nesse campo, muitas vezes 8 Roberto DaMATTA. Relativizando: uma antropologia social. p. 49. (recorte nosso). Eunice DURHAM. “Os problemas atuais da pesquisa antropológica no Brasil”. Apud. Monteiro. Op. Cit. p. 124. 10 Antônio MOTA e Maria do Carmo BRANDÃO. “O campo da antropologia e suas margens: a pesquisa e sua disseminação em diferentes instituições de ensino superior no Nordeste”. In. Wilson Trajano FILHO e Gustavo Lins Ribeiro. (orgs). O Campo da antropologia no Brasil. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria/ABA. 2004. p. 163. 11 Ver Mariza G. S. PEIRANO. Uma antropologia no plural – três experiências contemporâneas. Brasília, DF.: Editora da Universidade de Brasília. 1992. p. 25 – 104. 9 Interfaces, Caruaru, v. 6, n. 2, 2006 investigador e investigado. Gerando questões muitas vezes de ordem teóricometodológica. Nesta perspectiva, o antropólogo é visto como “nativo” de si mesmo. A antropologia passa a ser um “encontro de subjetividades”, que estaria afirmado na relação entre cultura e sociedade e, cultura e linguagem. Nessa confluência entre pesquisador e nativo, diferentemente do quadro que se apresentava à antropologia, definindo-os como bem distinto: “o pesquisador como alguém que treinado academicamente, saía do seu contexto de origem ao encontro do nativo, o ‘outro’, distante, iletrado, freqüentemente além mar”, como afirma PEIRANO, 12 no contexto da antropologia brasileira, podemos dizer que, a “pesquisa de campo” permanece como um modo privilegiado do conhecimento antropológico, a situação por excelência de encontro com o “outro”, embora esta relação possa ser vista como uma experiência histórica em que o nativo tenha perdido todo o caráter de ingenuidade e passividade. Além disso deve ter-se em conta ainda o contexto biográfico político e teórico do pesquisador no qual se insere a pesquisa de campo, o que, segundo PEIRANO, “implica diferença de abordagem, dependendo do movimento histórico”. Para PEIRANO, no caso brasileiro, onde o ‘outro’ pode ser um asilo de velhos, o índio como minoria étnica, grupos camponeses, negros, prostitutas, homossexuais, etc., temos um outro quadro em que “o antropólogo estuda um ‘outro’ que é não só próximo, mas parte do nós que é claramente, o país como estadonação; já o ‘outro’ , este é uma parcela não integrada social e/ou ideologicamente”. A esta alteridade, diz aquela pesquisadora acrescenta-se mais uma que diz respeito ao papel social do cientista social. Este em geral ligado às classes médias urbanas. O antropólogo brasileiro está situado nesta dupla realidade, de um lado, a comunidade de cientistas, que formam a elite dos países desenvolvidos, e de outro sua própria terra. Aí, nesta dupla alteridade, ele acaba por exercer dois papéis sociais: o do cidadão e o do cientista. Em reflexões sobre teorias e prática do trabalho de campo, Alba ZALUAR, 13 refere-se a uma confluência de paradigmas como a estabelecer um campo teórico na antropologia. Aquela pesquisadora chama a atenção para os “riscos” que corre o 12 Id. P. 51 – 6. Alba ZALUAR. “Teoria e prática do trabalho de campo: alguns problemas”. In. Ruth Cardoso (org.). A aventura antropológica: teoria e pesquisa. p. 107 – 23. 13 Interfaces, Caruaru, v. 6, n. 2, 2006 trabalho do antropólogo, por acabar confundindo o “nativo”, que passa a ser uma reprodução de “si mesmo”, isto é, do antropólogo. Segundo aquela autora ainda, impõe-se, neste caso, a necessidade de destacar no campo o que é o “objeto”, “recolher e atender o significado (ou os significados) que têm para os ‘nativos’ suas ações, idéias, rituais, conversas informais, instituições, etc”. Assim podemos concluir este pequeno ensaio afirmando que esta é a realidade do campo e da antropologia no Brasil. Estas realidades, campo e atividade de pesquisa se mostram, enquanto uma produção denominada de “periférica”, como uma realidade construída a partir de uma confluência dos saberes tradicionais que, em contado com o que a realidade apresenta como novo, entre nós, se estabelece como uma invenção. Referências Bibliográficas: CARDOSO, Ruth. “Aventuras de antropólogos em campos ou como escapar das armadilhas do método. In. Ruth CARDOSO. (org). A aventura antropológica: teoria e pesquisa.” Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1986. DaMATTA, Roberto. Relativizando: uma antropologia social. Rio de Janeiro: Rocco. 1987. DURHAM, Eunice. “Os problemas atuais da pesquisa antropológica no Brasil”. Apud. Monteiro. “Antropologia no Brasil: tendências e debates”. In. Wilson TRAJANO FILHO e Gustavo Lins RIBEIRO (orgs). O campo da antropologia no Brasil. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria / ABA. 2004. GODELIER, Maurice. O ocidente, espelho partido: uma avaliação parcial da antropologia social, acompanhada de algumas perspectivas. RCBS. n 21 – ano 8 – fev. de 1993. LÉVI-STRAUSS, Claude. “A crise moderna da antropologia”. Apud. Roberto Cardoso de OLIVEIRA. O trabalho do antropólogo. Brasília: Paralelo 15; São Paulo: Ed. UNESP. 2000. MERLEAU-PONTY, Maurice. “De Mauss a Claude Lévi-straus”. Apud. Roberto Cardoso de OLIVEIRA. O trabalho do antropólogo. 2. ed. Brasília: Paralelo 15; São Paulo: Editora UNESP. 2000. MONTEIRO, Paula. “Antropologia no Brasil: tendências e debates”. In. Wilson TRAJANO FILHO e Gustavo Lins RIBEIRO (orgs). O campo da antropologia no Brasil. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria / ABA. 2004. p. 121 – 3. MOTA, Antônio e BRANDÃO, Maria do Carmo. “O campo da antropologia e suas margens: a pesquisa e sua disseminação em diferentes instituições de ensino superior no Nordeste”. In. Wilson Trajano FILHO e Gustavo Lins Ribeiro. (orgs). O Interfaces, Caruaru, v. 6, n. 2, 2006 Campo da antropologia no Brasil. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria/ABA. 2004. OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. Tempo e tradição: interpretando a antropologia. Anuário Antropológico. n 84. n 1. PEIRANO, Mariza G. S. Uma antropologia no plural – três experiências contemporâneas. Brasília, DF: Editora da Universidade de Brasília. 1992. ZALUAR, Alba. “Teoria e prática do trabalho de campo: alguns problemas”. In. Ruth Cardoso (org.). A aventura antropológica: teoria e pesquisa. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1986. Interfaces, Caruaru, v. 6, n. 2, 2006