Manifestações articulares atípicas em crianças com febre reumática

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Jornal de Pediatria - Vol. 76, Nº1, 2000 49
0021-7557/00/76-01/49
Jornal de Pediatria
Copyright
© 2000 by Sociedade Brasileira de Pediatria
ARTIGO ORIGINAL
Manifestações articulares atípicas em crianças com febre reumática
Atypical arthritis in children with rheumatic fever
Gecilmara C.S. Pileggi1, Virgínia P.L. Ferriani2
Resumo
Abstract
O diagnóstico de febre reumática (FR) continua sendo um dos
mais difíceis em pediatria, devido ao polimorfismo do seu quadro e
à inexistência de um marcador laboratorial. A artrite, apesar de ser
o critério diagnóstico mais freqüente é o menos específico. Além
disso, a apresentação clássica de poliartrite aguda migratória envolvendo grandes articulações nem sempre é encontrada atualmente.
Objetivo: Descrever as características clínicas e a ocorrência de
artrite atípica em crianças atendidas no Hospital das Clínicas de
Ribeirão Preto, durante surto agudo de FR.
Métodos: Foram estudados, retrospectivamente, 120 surtos de
FR ocorridos em 109 crianças de 3 a 13 anos, no período de janeiro
de 1990 a dezembro de 1995. Todas as crianças preenchiam os
critérios de Jones.
Resultados: Artrite esteve presente em 77% dos surtos, cardite
em 62%, coréia em 32%, nódulos subcutâneos em 2,5% e eritema
marginatum em 1,7%. O número de articulações envolvidas foi 1 em
3 casos (2 em coxo-femural e 1 em joelho), de 2 a 5 articulações em
52, de 6 a 10 em 30 e mais de 10 em 5 casos. Um padrão atípico foi
observado em 43 (47%) dos 92 casos com artrite, considerando a
presença de pelo menos um dos seguintes tópicos: monoartrite (3
casos); duração maior que 3 semanas (26); resposta insatisfatória aos
salicilatos (18) e acometimento de pequenas articulações (mãos-12
e pés-13) e/ou coluna cervical (24) e/ou coxo-femural (15). A
associação entre essas características foi freqüente. Por exemplo,
nos 24 surtos com acometimento de coluna cervical, a duração foi
maior que 3 semanas em 13, em 10 a resposta aos salicilatos foi
insatisfatória e em 7 houve envolvimento de coxo-femural. O tempo
para se chegar ao diagnóstico de FR foi maior do que 4 semanas em
26 dos 44 casos com artrite atípica (59%), comparado a 35% dos
demais surtos (p=0,04). Outras hipóteses foram consideradas inicialmente em 40% dos 120 surtos e em 65% dos que cursaram com
artrite atípica (p=0,03).
Conclusão: A artrite atípica esteve presente em uma significativa porcentagem dos surtos de FR, contribuindo para dificultar o
diagnóstico desta doença.
The diagnosis of acute rheumatic fever (ARF) remains a difficult medical task mainly due to the polymorph clinical manifestation
and the lack of a specific laboratory marker. Although arthritis is the
most frequent major finding, it is the least specific manifestation. In
addition, the classical acute migratory polyarthritis involving large
joints is not always present.
Objective: The aim of this study was to describe the clinical
manifestations and to assess the occurrence of atypical arthritis in
ARF patients attending a Pediatric Rheumatology Clinic at the
University Hospital of Ribeirão Preto.
Methods: We have studied retrospectively the records of 120
attacks of ARF in 109 children, 3-13 years old, who attended our
clinic from January 1990 to December 1995. All children fulfilled
the Jones criteria.
Results: 77% of the attacks involved arthritis, 62% carditis,
32% chorea, 2.5% subcutaneous nodules and 1.3% erythema
marginatum. The number of involved joints was 1 in 3 episodes of
ARF, 2-5 in 52, 6-10 in 30 and more than 10 in 5. Arthritis was
considered atypical in 43 (47%) of the 92 ARF episodes with
arthritis, based on the following criteria: involvement of unusual
joints (cervical spine in 24 children, hip in 15, small joints of the
hand in 12 or feet in 13); monarthritis (3); duration longer than 3
weeks (26); incomplete response to salicylates (18). Association of
these atypical features were frequently present. For instance, considering the 24 episodes with cervical spine involvement, the duration
of arthritis was longer than 3 weeks in 13 cases, 10 had insufficient
response to salicylates and the hip joint was also involved in 7. Time
to reach diagnosis was longer than 4 weeks in 59% of the patients
presenting with atypical arthritis compared to 35% in the other
patients (p=0.04). Different diagnosis were considered at the beginning of the disease in 40% of the 120 episodes and in 65% of the ones
presenting with atypical arthritis (p=0.03).
Conclusion: We conclude that atypical arthritis was present in
a significant proportion of ARF episodes, adding an extra dilemma
to the diagnosis of this intriguing disease.
J. pediatr. (Rio J.). 2000; 76(1): 49-54: febre reumática, artrite,
J. pediatr. (Rio J.). 2000; 76(1): 49-54: rheumatic fever, arthritis,
criança.
children.
1. Mestre em Pediatria e Médica Assistente do Serviço de Imunologia,
Alergia e Reumatologia do Departamento de Puericultura e Pediatria.
FMRP-USP.
2. Professora Doutora e Chefe do Serviço de Imunologia, Alergia e Reumatologia do Departamento de Puericultura e Pediatria FMRP– USP.
Depto. de Puericultura e Pediatria da Faculdade de Medicina de Ribeirão
Preto da Universidade de São Paulo.
Fonte financiadora CAPES.
Introdução
A Febre Reumática (FR), doença conhecida há mais de
um século (descrita em 1889)1, continua sendo, ainda hoje,
um dos diagnósticos mais difíceis em pediatria. Ainda não
há sinal clínico patognomônico ou teste laboratorial específico que confirme seu diagnóstico, ficando este na depen49
50 Jornal de Pediatria - Vol. 76, Nº1, 2000
Manifestações articulares atípicas... - Pileggi GCS et alii
dência do preenchimento de critérios que foram estabelecidos por Jones em 19442. Esses critérios foram sucessivamente modificados por diversos autores, datando a sua
última revisão de 19923. Entre eles, a artrite, apesar de ser
o mais freqüente (ocorre em torno de 53 a 84% dos pacientes no Brasil)4 e ter dado nome à síndrome (febre “reumática”), é o menos específico, portanto está vinculado às
maiores dificuldades no diagnóstico, principalmente nas
situações em que ocorre de maneira isolada.
tempo para se fazer o diagnóstico; outras hipóteses diagnósticas iniciais; informações sobre a evidência de infecção
prévia pelo estreptococo (história, ASLO e cultura). Para
considerar o comprometimento articular de padrão atípico
foi necessária a presença de pelo menos uma das seguintes
características: duração maior que 3 semanas; acometimento de pequenas articulações e/ou de coluna cervical e/ou de
articulação coxo-femural; monoartrite e resposta insatisfatória aos salicilatos.
A descrição clássica do acometimento articular da FR
consiste em um quadro de poliartrite migratória, que atinge
principalmente as grandes articulações dos membros inferiores e surge em torno de 2 a 3 semanas após a infecção
estreptocócica de orofaringe. A dor, tipicamente intensa e
desproporcional aos sinais observados ao exame físico,
melhora rapidamente com o uso de antiinflamatórios não
hormonais (AINH), notadamente os salicilatos. Habitualmente, sem o tratamento, os sinais de inflamação duram de
2 a 5 dias em cada articulação, podendo na evolução haver
superposição de algumas e, geralmente, não ultrapassa 3
semanas de duração5-8. A artrite caracteristicamente evolui
para cura sem deixar seqüelas9.
Foi feita uma análise descritiva dos resultados, e a
comparação entre o tempo para o diagnóstico e a ocorrência
de outros diagnósticos iniciais nos surtos com artrite típica
e atípica foi realizada através do teste do qui-quadrado,
assumindo-se um nível de significância de p<0,05.
Cada vez mais têm sido relatadas situações em que essas
características não são observadas7-8. A ocorrência de
quadros articulares atípicos torna mais difícil o diagnóstico
da FR, impondo-se a necessidade de um acurado diagnóstico diferencial, principalmente naqueles casos em que
outros critérios maiores, de natureza mais específica (cardite e coréia) não estão presentes.
O objetivo deste estudo é descrever as características
clínicas e a ocorrência de artrite atípica em crianças atendidas no Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto, durante
surto agudo de FR.
Causística e Métodos
Foram analisados, retrospectivamente, 171 prontuários
médicos de pacientes atendidos nos ambulatórios ou internados nas enfermarias do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto – USP (HCFMRP-USP)
com o diagnóstico de FR (CID 390 a 392 para FR ativa e 393
a 398 para cardiopatia reumática crônica). O estudo abrangeu um período de 6 anos, de janeiro de 1990 a dezembro
de 1995.
Dentre os 171 prontuários avaliados, foram selecionados 109 que preenchiam os seguintes critérios de inclusão:
atendimento do surto agudo registrado no prontuário (primeiro ataque ou recorrência); diagnóstico de FR baseado
nos critérios de Jones modificados, de 19923; idade de até
13 anos. Assim, 120 protocolos foram preenchidos, correspondendo ao número de surtos apresentados pelos 109
pacientes durante o período de observação.
O protocolo estabelecido continha os seguintes itens:
dados pessoais; critérios maiores e menores de Jones;
Resultados
Foram revistos os prontuários de 109 pacientes, 61 do
sexo masculino e 48 do feminino (relação 1,3:1,0). A idade
dos pacientes no início de cada surto variou de 3 a 13 anos,
com uma idade média de 9,4 anos.
Durante o período de observação 99/109 (90,8%) pacientes apresentaram um único surto de FR aguda, 9 (8,2%)
apresentaram 2 surtos e 1 apresentou 3 surtos, num total de
120. Observamos uma incidência anual média de 20 surtos,
sendo a maioria (88/120) referente ao primeiro ataque de
FR. Os demais 32 surtos estavam assim distribuídos: 26
eram relativos a recorrências da doença e em 6 deles não foi
possível caracterizar se o atendimento correspondia a um
ataque inicial ou recorrência, a partir dos dados constantes
no prontuário médico.
A freqüência dos sinais maiores de Jones foi a seguinte:
artrite em 92 surtos (77%), cardite em 74 (62%), coréia em
38 (32%), nódulos subcutâneos em 3 (2,5%) e eritema
marginatum em 2 (1,7%). A artrite foi isolada em 10 dos 92
surtos que cursaram com artrite (10,8%) e esteve associada
à cardite em 60 (65%).
Em relação ao número de articulações envolvidas, encontramos 3/92 (3,3%) surtos com monoartrite (1 em coxofemural e 2 em joelho); 52 (56,5%) acometendo de 2 a 5
articulações; 30 (32,6%), de 6 a 10; e 5 (5,5%) envolvendo
mais de 10 articulações. Na Tabela 1 relacionamos as
articulações mais acometidas.
Quanto às características do acometimento articular,
um padrão atípico foi observado em uma considerável
percentagem dos 92 surtos com artrite (43=47%). A distribuição destes casos segundo os critérios para considerá-los
atípicos está na Tabela 2.
A forma de apresentação da FR nestes 43 casos, no que
se refere aos critérios de Jones, está listada na Tabela 3.
Observamos que em 5 destes surtos o diagnóstico de FR foi
baseado na presença da artrite como único critério maior, e
este era de padrão atípico.
Manifestações articulares atípicas... - Pileggi GCS et alii
Jornal de Pediatria - Vol. 76, Nº1, 2000 51
Tabela 1 - Distribuição dos surtos com artrite (n=92), segundo as articulações mais
acometidas
Articulações
N
(%)
Tornozelo
Joelho
Pequenas articulações dos pés
Pequenas articulações das mãos
Coluna Cervical
Punho
Cotovelo
Ombro
Coxo-femural
Coluna torácica
Calcâneo
73
69
29
24
24
23
17
17
15
10
08
(79)
(75)
(32)
(26)
(26)
(25)
(19)
(19)
(16)
(11)
(09)
Coluna lombar
01
(04)
O tempo decorrido entre o início dos sintomas e o
diagnóstico de FR aguda foi maior que 4 semanas em 26 dos
pacientes que apresentaram artrite atípica (60,4%), comparado a 35% dos demais casos (p=0,04). Outras hipóteses
diagnósticas iniciais foram consideradas em 40% dos 120
surtos e em 65% dos que cursaram com artrite atípica
(p=0,03). De um modo geral, em mais da metade dos casos
(52,8%), o diagnóstico só foi elucidado após 2 semanas do
início dos sintomas.
Discussão
No presente estudo, foram analisadas as características
clínicas e a ocorrência de artrite atípica em 120 surtos de FR
aguda atendidas no HCFMRP-USP, entre janeiro de 1990
e dezembro de 1995.
O número de surtos registrados por ano (20, em média)
nos dá uma idéia da importância da FR como causa de
atendimento no nosso hospital. A título de comparação, no
mesmo período de tempo (1990-1995), a média de crianças
atendidas no mesmo serviço com Artrite Reumatóide Juvenil (ARJ) foi de 8 casos por ano. Obviamente, nossos dados
não refletem a real situação da FR na cidade de Ribeirão
Preto, já que o HCFMRP-USP é um hospital de referência
e 60% dos casos analisados eram procedentes de outras
cidades. Provavelmente, muitos outros casos de FR aguda
devem ter sido atendidos em outros serviços ligados ao
atendimento primário ou secundário do município de Ribeirão Preto.
Em relação à freqüência dos critérios maiores, nossos
achados foram semelhantes aos anteriormente descritos em
outra regiões do Brasil10-12.
Tabela 2 - Classificação dos surtos de artrite atípica (n=43) quanto à apresentação
Atipia
N
(%)
Local*
Duração
Resposta inadequada ao AINH
Duração + resposta
Duração + resposta + local
Número (mono)
32
26
18
16
10
03
(74)
(61)
(42)
(37)
(23)
(07)
* coluna cervical =24, coxofemural =14, pequenas articulações dos pés =13 e das mãos =12
Manifestações articulares atípicas... - Pileggi GCS et alii
52 Jornal de Pediatria - Vol. 76, Nº1, 2000
Tabela 3 - Classificação das artrites atípicas quanto aos critérios maiores e menores de Jones
Critérios
N
(%)
A
05
(12)
A+CA
35
(81)
A+CO
03
(07)
A+CA+CO
03
(07)
A+CA+EM+NS
01
(02)
A+CA+EM
01
(02)
Febre
33
(77)
PAI
38
(88)
ASLO aumentado
38
(88)
A = artrite, CA = cardite, CO = coréia, EM = eritema marginatum, NS = nódulo
subcutâneo, PAI = prova de atividade inflamatória, ASLO = anti-estreptolisina O
Nossos resultados mostram que o diagnóstico da FR
ainda traz dificuldades, visto que, em mais da metade dos
casos (52,8%), foi feito após 2 semanas do início dos
sintomas. Além disso, em 40% dos surtos, foi aventada
outra hipótese diagnóstica inicial. Dentre estes, 66% dos
diagnósticos estavam relacionados à artrite, destacando-se
em importância a ARJ e as artrites reativas. Podemos
também sugerir que nossos resultados apontam uma maior
dificuldade no diagnóstico dos surtos que se apresentaram
com artrite atípica, visto que o tempo para se estabelecer o
diagnóstico nestes casos foi maior do que 4 semanas em um
número significativamente maior de surtos, quando comparado àqueles que se apresentaram com quadros articulares
considerados típicos, o mesmo acontecendo em relação à
ocorrência de outros diagnósticos iniciais.
O padrão atípico de comprometimento articular esteve
presente em praticamente metade dos casos estudados neste
trabalho (47% dos 92 com artrite), contribuindo para aumentar as dificuldades no diagnóstico inicial de FR, como
comentado anteriormente.
É importante ressaltar que em muitos destes casos havia
associações das características consideradas atípicas: por
exemplo, o acometimento de coluna cervical (presente em
24 surtos), estava, em 13 deles, associado à duração maior
que 3 semanas; em 10, à resposta insatisfatória aos antiinflamatórios não hormonais (salicilatos); e, em 7, ao envolvimento de coxo-femural (presente em 15 surtos). Vale
também comentar que o critério atípico mais freqüentemente encontrado (Tabela 2) foi o local do acometimento
articular, destacando-se o envolvimento da coluna cervical,
que também vem sendo relatado em outros estudos nacionais. A comparação do local de acometimento articular do
nosso estudo com outros nacionais e internacionais está na
Tabela 4 7, 13-14.
Manifestações articulares atípicas já haviam sido descritas em 1959, quando Crea e Mortimer15 descreveram a
artrite da escarlatina, com período de latência inferior a 10
dias, menor que o da FR. Entretanto, a evolução para
seqüelas cardíacas ocorreu em 56% dos casos, sugerindo
que se tratava de uma forma de FR.
Em 1975, Stollerman5 já mencionava que 32% das
crianças portadoras de FR da sua casuística não apresentavam o padrão clássico do acometimento articular, considerando-se o tempo maior de duração da artrite, a presença de
padrão monoarticular e/ou a resposta insatisfatória aos
salicilatos. Outras descrições de quadros articulares atípicos de FR foram publicadas, inclusive no nosso país7,16.
Mas, a confusão maior no diagnóstico diferencial da FR
tem ocorrido com a descrição da artrite reativa pós-estrep-
Tabela 4 - Comparação do acometimento articular com outros estudos (%)
Articulações
Feinstein, Spagnuolo
(1962)13
Almedra et al.
(1992)14
Hilário et al.
(1995)7
Nosso estudo
(1997)
Joelho
76
73,3
76
75
Tornozelo
50
41,5
62
79
Cotovelo
15
18,8
29
19
Punho
15
20,7
28
25
Quadril
15
22,6
15
16
Pequenas art. pés
15
17
13
32
Pequenas art. mãos
08
17
15
26
Ombro
08
—
12
19
Col. cervical
01
—
15
26
Col. lombar
—
—
07
4
Manifestações articulares atípicas... - Pileggi GCS et alii
tocócica (ARPE), mencionada pela primeira vez na literatura em 1982 por Goldsmith e Long17, que chamaram a
atenção para a duração prolongada da artrite que ocorria
logo após ou concomitante a uma infecção estreptocócica e
para o padrão simétrico da mesma. Os autores sugeriram, na
época, que isso poderia refletir uma resposta alterada a
alguma modificação antigênica do estreptococo beta-hemolítico do grupo A. Desde então, vários autores têm
apresentado relatos de casos desta enfermidade, que difere
da artrite da FR (também reativa e pós-estreptocócica) pelo
menor período de latência após a infecção estreptocócica,
maior duração das manifestações articulares e má resposta
aos salicilatos18-21.
É válido lembrar que a inclusão da poliartrite como
critério maior foi motivo de discussão no passado, tendo
sido sugerido por Davis22 que a poliartrite pós-estreptocócica, na ausência de cardite e/ou coréia, não deveria ser
considerada como evidência de FR. No entanto, muitos
estudos23-25 já demonstraram que uma significativa proporção de pacientes com poliartrite e evidência de infecção
estreptocócica anterior apresentava cardite em surtos subseqüentes ou ainda no mesmo surto, semanas após a manifestação articular, mostrando, assim, a importância da artrite entre os critérios maiores de Jones, principalmente no
que diz respeito a guiar esse diagnóstico.
Sabendo que a maioria dos casos descritos de ARPE
apresentam, associado ao quadro de artrite, pelo menos 2
sinais menores de Jones, além da evidência de infecção
estreptocócica recente, fica discutível a invalidação do
diagnóstico de FR, especialmente considerando que alguns
desses pacientes desenvolvem cardite posteriormente. Deveríamos questionar o diagnóstico de FR nestes casos em
que o padrão de acometimento articular foi considerado
atípico e mudar seu diagnóstico para ARPE? Essa questão
tem sido abordada com freqüência, nos últimos anos. Em
um editorial recente, Gibofsky et al.26 comentam esse
problema, levantando a seguinte questão: “Não estaríamos
incorrendo no erro de atribuir dois nomes para a mesma
doença? Por que descrever uma nova (ARPE) cujo diagnóstico se baseia em critérios semelhantes aos já propostos
para o diagnóstico de outra, a FR?.”
Concluindo, nosso estudo mostra que as manifestações
articulares atípicas estiveram presentes em uma significativa porcentagem dos casos de FR, o que pode representar
uma dificuldade adicional para o estabelecimento desse
diagnóstico. Sendo assim, gostaríamos de chamar a atenção
do pediatra geral, que atende crianças com queixas articulares, para que não deixe de pensar em FR, mesmo quando
a artrite inicial não exibir todas as características da artrite
clássica. Há que se considerar que esta pode ser a forma de
apresentação de uma doença que pode evoluir com seqüelas
cardíacas e ainda é muito importante no nosso meio. A falta
de valorização do seu diagnóstico pode implicar em deterioração da qualidade de vida de uma população jovem,
trazendo importante prejuízo social para o indivíduo e para
o estado.
Jornal de Pediatria - Vol. 76, Nº1, 2000 53
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Manifestações articulares atípicas... - Pileggi GCS et alii
Endereço para correspondência:
Dra. Gecilmara Cristina Salviato Pileggi
Serviço de Imunologia, Alergia e Reumatologia do Departamento de Puericultura e Pediatria da FMRP-USP
Av. Bandeirantes, 3900 - Ribeirão Preto –SP
CEP 14049-900 - Fax (16) 602.2700 / Fone (16) 633.0136
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