PREFEITO MARCIO LACERDA CÂMARA INTERSETORIAL DE POLÍTICAS SOCIAIS SECRETARIA MUNICIPAL DE POLÍTICAS SOCIAIS SECRETARIA MUNICIPAL ADJUNTA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL SECRETARIA MUNICIPAL ADJUNTA DE DIREITOS DE CIDADANIA SECRETARIA MUNICIPAL ADJUNTA DE ESPORTES SECRETARIA MUNICIPAL ADJUNTA DE SEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL SECRETARIA MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO SECRETARIA MUNICIPAL DE SAÚDE FUNDAÇÃO MUNICIPAL DE CULTURA SECRETARIAS MUNICIPAIS DE ADMINISTRAÇÃO REGIONAL Pensar BH/Política Social, nº 30 - novembro de 2011. Belo Horizonte. Prefeitura de Belo Horizonte/Câmara Intersetorial de Políticas Sociais. 1. Política Social 2. Administração Pública 3. Prefeitura de Belo Horizonte CDD 323 ISSN 1676-9503 Apresentação Não às drogas! O uso das drogas e todas as suas consequências nefastas é uma questão complexa, que afeta negativamente todas as áreas em que os governos atuam. Por isso, exige uma atuação urgente, ampliada e articulada do Poder Público somada a uma parceria efetiva com a sociedade no enfrentamento dos problemas relacionados ao consumo e abuso de álcool e outras drogas, sobretudo o crack. Nós, da Prefeitura de Belo Horizonte, estamos atentos a esse problema, que se agravou na capital mineira a partir do final dos anos 1990. A cidade tem hoje uma ação de vanguarda, com políticas sociais e de saúde, e o nosso objetivo é ampliar esse trabalho, em ações compartilhadas com o governo do Estado, Governo Federal, Legislativos e sociedade civil. Nossa prioridade é reforçar as medidas preventivas e de proteção para as nossas crianças e adolescentes. Atualmente, diversos órgãos da Prefeitura de debruçam sobre a questão, buscando enfrentá-la em todas as suas vertentes. Para isso, trabalha-se no desenvolvimento de uma Política Pública, voltada ao enfrentamento às drogas, que compreenda ações estruturantes, de tratamento e de Proteção Social. Entre essas medidas, destaca-se a reestruturação do Conselho Municipal de Políticas sobre Drogas, por meio do Projeto de Lei 557/2009, em apreciação pela Câmara Municipal, que prevê a equiparação da participação da sociedade civil e ampliação de suas funções de elaboração e avaliação de políticas sobre drogas no Município. Já a criação do Fundo Municipal de Políticas sobre Drogas tem por objetivo possibilitar a obtenção e a administração de recursos financeiros destinados ao desenvolvimento de ações preventivas, de fiscalização, de tratamento e de reinserção social para o público-alvo. Outras iniciativas visam à ampliação da rede de atendimento da saúde para usuários de álcool e drogas, como a implantação dos Consultórios de Rua, responsáveis pela abordagem dos usuários que estão em situação de uso de drogas nas ruas. Finalmente, existe toda uma rede de proteção social, nas quais estão incluídas as Residências Transitórias, as ações desenvolvidas nos CRAS e nos CREAS, que integram o Serviço Único da Assistência Social (SUAS), e as ações preventivas desenvolvidas no âmbito da comunidade escolar, com os programas Escola Aberta, Escola Integrada e Rede pela Paz. São passos decisivos no sentido do enfrentamento de um problema grave, presente em todas as sociedades e que, direta ou indiretamente, afeta a todos. Com essa 30ª edição da revista PENSAR BH/ POLÍTICA SOCIAL, que tem como tema esta questão tão importante, esperamos contribuir com um debate que terá ainda um longo caminho e vai exigir muito trabalho e comprometimento de todos nós. Boa leitura! Marcio Lacerda Prefeito de Belo Horizonte Pensar BH/Política Social Especial/Não às drogas 5 Crack e violência em Belo Horizonte Luis Flavio Sapori 9 Políticas Municipais sobre drogas: desafios e perspectivas da gestão local Márcia Cristina Alves 14 Consultório de Rua Mirian Vanessa Costa Pacheco, Rosimeire Aparecida Silva 15 Violência e drogas em meio escolar: avanços e desafios das escolas municipais Ismayr Sérgio Cláudio 20 Políticas públicas sobre álcool e outras drogas: reflexos na formação dos profissionais da saúde Alda Martins Gonçalves, Amanda Márcia dos Santos Reinaldo 24 e 25 Nós Manifesto do grupo “Família de Rua”. 26 Uso de drogas na adolescência: interfaces entre sistema de justiça e sistema de proteção Cíntia Maria Oliveira de Lucena, Selmara Mamede S. Ferreira 32 As mazelas no tratamento de crack Regina Medeiros Ao estreitar a relação com a comunidade, como acontece por meio do programa Escola Aberta, a Prefeitura busca proteger as crianças e adolescentes da ação do tráfico de drogas. 37 COMUNIDADE TERAPÊUTICA Tratamento comunitário para dependentes químicos Carolina Couto da Mata 42 Novas tecnologias no tratamento de dependência química na comunidade Reviver Lúcio Mauro dos Reis 47 Instruções para colaboradores EXPEDIENTE EDIÇÃO GERAL: Giselle B. Nogueira - RG 2285/MG Co-edição: Marcia Cristina Alves Colaboração: Marina Marçal (estagiária) SUPERVISÃO EDITORIAL: Jorge R. Nahas (SMPS), Carlos Alberto dos Santos (ASCOM/ PBH). CONSELHO CONSULTIVO: Bruno Lazzarotti Diniz Costa (Escola de Governo FJP), Carla Bronzo (Escola de Governo FJP), Carlos Aurélio P. de Faria (PUC-Minas), Cristina Almeida Cunha Filgueiras (PUC-Minas), Eleonora Schettini M. Cunha (DCP/UFMG), Telma Menicucci (DCP/UFMG), Joseph Straubhaar (Texas University); Marlise Matos (DCP/UFMG), Ricardo Cardoso (Universidade do Porto/Portugal). TRADUÇÃO: Português/Inglês Andréa Magdalena Figueira, Jayne Vaz de Melo Martín 4 PENSAR/BH POLÍTICA SOCIAL - NOVEMBRO DE 2011 REVISÃO: Geraldo Silvério Filho FOTO CAPA: Alessandro Carvalho SECRETARIA MUNICIPAL DE POLÍTICAS SOCIAIS DA PREFEITURA MUNICIPAL DE BELO HORIZONTE Rua Espírito Santo, 505/4 º andar - Centro (031) 3277-9786 Telfax: (031) 3277-9796 E-mail: [email protected] Endereço Eletrônico: www.pbh.gov.br/politicas-sociais IMPRESSÃO: MJR Editora Gráfica Ltda. Rua Dr. Carlos Pinheiro Chagas, 138 Balneário da Ressaca - Contagem - MG Tiragem: 2.500 exemplares Especial/Não às drogas Crack e violência em Belo Horizonte1 LUIS FLAVIO SAPORI* Os dados do Gráfico 1 apresentam a série histórica dos homicídios na cidade de Belo Horizonte em um período de 20 anos. Como se pode observar, a Cidade vivenciou patamares relativamente baixos de homicídios no início da série, com cerca de 300 homicídios por ano, alcança o nível mais elevando de ocorrências no ano de 2004, com mais de 1200 mortes e retorna, no ultimo ano da série, a valores significativamente inferiores ao período de "pico" vivenciado cinco anos antes. A observação mais atenta do grá- fico permite-nos subdividi-lo em três momentos bem distintos: Um primeiro momento que pode ser definido por "evolução estável", indo de 1990 a 1996; um segundo momento de crescimento consecutivo dos números absolutos de mortes em Belo Horizonte, entre os anos de 1997 e 2004, e que pode ser considerado como um período de "deterioração gradativa" e, por fim, o momento de reversão de tendência ou "evolução negativa", que se inicia no ano de 2005. Essa dinâmica verificada ao longo dos anos leva-nos a acreditar que Foto: Alessandro Carvalho O tráfico de drogas em Belo Horizonte caracterizou-se, até meados da década de 1990, pela prevalência da comercialização da maconha e da cocaína em pó. A partir de 1995, entretanto, na Pedreira Prado Lopes, tradicional favela da Cidade, uma nova droga é oferecida ao consumidor da Capital. O crack que chega a Belo Horizonte é oriundo de São Paulo, iniciando-se uma nova era na dinâmica da violência na capital mineira. Gráfico I tenha havido um fenômeno muito peculiar na Capital, sobretudo no período denominado como "deterioração gradativa". Deparamo-nos, então, com fortes evidências de uma relação entre o início desse período de deterioração e o processo de entrada e disseminação do comércio e uso do crack em Belo Horizonte. O tráfico do crack instala-se, inicialmente, em um aglomerado urbano, como foi o caso da Pedreira Prado Lopes, e, posteriormente, vai se propagando para outras localidades com as mesmas características socioeconômicas. Há uma clara correspondência espacial entre o tráfico de drogas e a incidência de homicídios em Belo *Doutor em Sociologia, professor do curso de Ciências Sociais e coordenador do Centro de Pesquisas em Segurança Pública (CEPeSP) da PUC Minas. 1 Esse artigo é baseado em pesquisa coordenada pelo autor, financiada pelo CNPq, e que resultou no livro Crack - um desafio social, publicado pela Editora PUC Minas. PENSAR BH/POLÍTICA SOCIAL NOVEMBRO DE 2011 5 Mapa 1 Distribuição dos homicídios em Belo Horizonte 2000/2005 Fonte: DHPP/PCMG - Geocodificação própria Tabela I Distribuição das motivações por período Motivação Principal Unidade Período de 1993 a 1996 Frequência % de 1997 a 2004 Frequência % de 2005 a 2006 Frequência % Total Frequência % Outras Drogas Ilícitas 165 15 180 91,7% 8,3% 100,0% 316 75 391 80,8% 19,2% 100,0% 68 34 102 66,7% 33,3% 100,0% 549 124 673 81,6% 18,4% 100,0% Fonte: DHPP/PCMG - Tabulação própria 6 Total PENSAR/BH POLÍTICA SOCIAL - NOVEMBRO DE 2011 Horizonte no período. Como se observa no Mapa 1, na primeira metade da década passada os aglomerados urbanos que concentravam a maior parte dos homicídios na Capital são os mesmos que abrigavam as atividades do tráfico de drogas. Quando se analisa, por sua vez, a motivação dos homicídios ao longo do tempo, obtêm-se evidências adicionais que sustentam ainda mais o argumento aqui desenvolvido de que o crescimento da violência na Capital deveu-se às transformações no mercado das drogas ilícitas. Conforme a Tabela 1, as motivações dos homicídios foram agrupadas em três momentos distintos: a) antes da entrada e início do crack em Belo Horizonte, entre os anos de 1993 a 1996; b) explosão do mercado ilegal do crack em Belo Horizonte, entre os anos de 1997 a 2004 e, c) período seguinte à explosão do crack em Belo Horizonte, 2005 em diante. No caso do período de 1997 a 2004, as chances de que ocorram homicídios devido a conflitos relacionados a drogas ilícitas é 2,31 vezes maior comparado ao período de 1993 a 1996. Isto é o mesmo que dizer que a sua odds ratio aumentou 131% neste período considerado o marco da entrada e disseminação do crack no mercado de drogas ilícitas em Belo Horizonte. Essa mesma análise pode ser feita comparando-se os coeficientes do período considerado como posterior à entrada do crack no mercado de drogas em Belo Horizonte, que vai de 2005 e 2006, com o primeiro período de 1993 a 1996. Não obstante, comparando-se os coeficientes relativos aos anos de 2005 e 2006 com o período de 1997 a 2004, verifica-se um incremento na ordem de 200% na odds ratio de que os homicídios nos últimos anos desta análise se devam a conflitos relativos ao mercado de drogas ilícitas a partir da inserção do crack na Cidade. O período da disseminação e da consolidação do comércio do crack em Belo Horizonte coincidiu com o crescimento da vitimização dos jovens na faixa etária de 15 a 24 anos de idade. Como se observa no Gráfico 2, a taxa de homicídios nessa fai- Gráfico II Fonte: SIM/DATASUS xa etária começou a se destacar, distanciando-se da taxa de homicídios da faixa etária acima de 25 anos, a partir da segunda metade da década de 1990, contrariando o que acontecia nos anos anteriores. A taxa de homicídios entre os jovens de 15 a 24 anos tornou-se 2,5 vezes maior do que entre adultos acima de 25 anos. Há evidências, ainda, da forte presença da arma de fogo nos homicídios ocorridos na Cidade. As chances de que esta fosse utilizada em um homicídio era 3,5 vezes maior que a possibilidade de utilização de outro instrumento. E essa predominância foi bastante acentuada entre 1997 e 2004, conforme vemos no Gráfico 3. Gráfico III Conclui-se, a partir das evidências até o momento apresentadas, que houve uma combinação de fatores no processo de crescimento da incidência dos homicídios em Belo Horizonte desde meados da década de 1990, quais sejam : introdução do crack no tráfico de drogas; intensificação do uso da arma de fogo; maior vitimização dos jovens. Conflitos e violência no tráfico do crack Na segunda parte desse artigo, a questão a ser respondida é a seguinte: o que haveria de especial no tráfico do crack que explique sua maior letalidade em comparação com o tráfico das demais drogas ilícitas? A configuração do mercado das drogas ilícitas varia de acordo com o tipo de droga que é comercializada de forma preponderante e as variações na configuração desse mercado tendem a impactar a incidência da violência em sua dinâmica, em especial, os homicídios. Nesse sentido, a associação crack/violência urbana não deve ser compreendida pelo aspecto psicofarmacológico da droga, supondo-se que, após sua ingestão, alguns indivíduos podem se tornar irracionais ao ponto de agirem de forma violenta ou mesmo resultado da irritabilidade associada a síndromes de substâncias que causam dependência química. É na dimensão da violência sistêmica que o fenômeno adquire contornos mais nítidos. Ela está relacionada à dinâmica do comércio das drogas ilícitas, incluindo disputas territoriais entre traficantes rivais, afirmação de códigos de condutas no interior dos grupos de traficantes, eliminação de informantes, punições por adulteração de drogas, punições por dívidas não pagas, entre outros conflitos que emergem no processo de comercialização do produto. Deve-se ter clareza de que a violência é própria das redes de comercialização de drogas ilícitas. O caráter de ilegalidade dessa atividade comercial, num contexto de elevada demanda pelo produto por ela oferecido, tende a fomentar situações de conflito resolvidas mediante o uso da força física. Em outros termos, há sempre algum grau de violência associada ao comércio das drogas ilícitas, que tende a variar de acordo com as características do contexto social. O senso comum prevalecente na sociedade brasileira concebe tal violência como atributo de uma atividade criminosa tipicamente organizada. O narcotráfico atuante nas favelas é tratado como uma organização estruturalmente fechada. No entanto, devemos conceber o fenômeno sob perspectiva distinta. Os conflitos não estão relacionados a uma estrutura rígida, mas, pelo contrário, à estrutura aberta de redes. Podem ser qualificadas como organizações PENSAR BH/POLÍTICA SOCIAL NOVEMBRO DE 2011 7 criminosas, sem dúvida alguma, mas que se estruturam como redes de relacionamentos. Uma rede é sustentada pelas suas conexões e o arranjo dessa integração não é planejado em toda a sua extensão, de modo que uma estrutura de rede é um processo emergente condicionado pelas relações estabelecidas entre os indivíduos que a compõem. Identificaram-se dois tipos de redes do tráfico de drogas ilícitas em Belo Horizonte, as quais foram qualificadas de rede de empreendedores e rede de bocas. A primeira espraiase por bairros de classe média e comercializa, principalmente, a cocaína em pó. A rede de bocas, por sua vez, está presente em favelas e bairros de periferia e tem no crack sua grande fonte de ganhos econômicos. A análise comparativa das respectivas redes de comercialização de drogas ilícitas permite-nos compreender como o grau de violência associada à dinâmica do comércio está associado ao tipo de droga disponibilizada aos usuários. A rede de empreendedores é uma estrutura descentralizada, que tem como referência central sujeitos empreendedores, hiperlinks que são referências conectoras de uma rede de comercialização de drogas. A dinâmica dessa rede configura-se por um conjunto de nós interligados a esse hiperlink (o empreendedor) com o objetivo inicial de obter o produto por ele comercializado. Esse acesso ocorre através de um sistema de referência mediado, principalmente, por relacionamentos, tais como grupos de amigos ou indicações. Os hiperlinks atuam de maneira relativamente autônoma em relação às estruturas mais ampliadas de produção e/ou distribuição de drogas, locais ou não, a que eventualmente possam estar ligados. A violência, que inegavelmente está presente nessa rede, se impõe de maneira acentuada sobre suas conexões mais diretamente, mas não se impõe sobre as populações locais de maneira indiscriminada. Outro elemento que explica a dimensão de violência da rede de empreendedores é a decisão mercadológica pelo fornecimento de um tipo de droga, no 8 caso a cocaína em pó. Os grupos de relacionamento em que predominam as redes de empreendedores têm nas situações de sociabilidade tanto um valor de uso, quanto um valor de perenidade de uso. Por exemplo, é necessário participar de redes sociais diversas, como no local de trabalho ou na vida noturna, para usar e sustentar o uso de cocaína, e a convivência pacífica é dimensão fundamental para a lucratividade do negócio. A rede de bocas, por sua vez, é marcadamente territorial. Sua estrutura e conexões são constituídas a partir de um território. Sua dinâmica implica em dominação. Essas redes se instalam em territórios, naturalizam atitudes e comportamentos violentos, impõem um padrão de convivência como um fato consumado. Apresentam-se como 'firmas', estruturando posições distintas no comércio da droga, envolvendo o patrão da boca, o gerente da boca e um grupo de jovens ocupando posições de vapores e aviões. A presença de jovens, especialmente na faixa etária de 15 a 24 anos, é aspecto marcante da rede de bocas. Buscam não apenas o ganho econômico, como também a solidariedade grupal típica das gangues juvenis. O uso intensivo e ostensivo da arma de fogo é marcante nessa realidade, afirmando relações de poder e elevação de autoestima. Não é incomum nesse contexto que conflitos banais entre os jovens de gangues distintas, muitas vezes suscitados em festas ou encontros casuais, acabem se degenerando em homicídios e tentativas de homicídios. A violência que se verifica nas redes de bocas é acentuada pela decisão mercadológica de comercializar o crack. O mercado do crack tende a disseminar a violência nas regiões onde predomina, incrementando a incidência de roubos e, principalmente, de homicídios. O aspecto farmacológico da droga interfere no fenômeno, à medida que cria contingente expressivo de consumidores compulsivos, em magnitude superior àquele observado no comércio das demais drogas ilícitas prevalecentes em nossa sociedade. Consumidores compulsivos e, porque não dizer? vítimas da PENSAR/BH POLÍTICA SOCIAL - NOVEMBRO DE 2011 dependência química, tendem a se tornar mais endividados com seus fornecedores. E tais dívidas não pagas após um certo tempo tendem a resultar em homicídios dos devedores. Outro aspecto dessa conflitualidade intensa gerada pelo comércio do crack é o 'derrame' da droga. Os consumidores compulsivos do crack tendem a se inserir na rede de comercialização do produto enquanto pequenos revendedores. Entretanto, é maior a probabilidade de consumirem aquilo que devem revender, comparativamente à cocaína em pó, por exemplo. Mais uma vez, o aspecto farmacológico da droga explica a diferença. E ao darem 'derrame' do crack que deveriam comercializar, tornam-se automaticamente devedores de seus fornecedores, em geral os gerentes das bocas. Não pagando em tempo hábil o que devem, pagam com a própria vida. É possível concluir, nesse sentido, que as principais vítimas da violência engendrada no mercado do crack tendem a ser os próprios consumidores, principalmente os consumidores compulsivos, e em boa medida, os de baixa renda, residentes nos aglomerados urbanos onde prevalecem as redes de comercialização estruturadas em bocas Abstract The Drug trafficking in Belo Horizonte was characterized until mid-90s by the predominance of marijuana and cocaine powder commercialization. Since 1995, however, in Prado Lopes Quarry Stone, traditional shantytown in the city, a new drug is offered to the consumer of the capital. The crack which arrives in the capital comes from Sao Paulo, initiating a new era in the violence dynamics in Belo Horizonte. Especial/Não às drogas Políticas Municipais sobre drogas: desafios e perspectivas da gestão local1 MÁRCIA CRISTINA ALVES* No contexto atual de grandes demandas sociais, a revalorização da dimensão local acompanha o processo de democratização e descentralização das políticas públicas. A necessidade de produzir respostas para demandas microssociais, constituídas pela diversidade e heterogeneidade dos problemas que se formam nas cidades, exige mudança nos modelos de gestão. O grande desafio para as Políticas Municipais é, ao mesmo tempo, conectar as respostas elaboradas no nível local às diretrizes políticas nacionais, associadas às mudanças na estrutura social. As Políticas Locais para Prevenção, Tratamento e Reinserção Social relativas ao uso e abuso de drogas fazem parte deste desafio. Neste artigo, abordaremos elementos que poderiam compor uma Política Municipal sobre drogas. I- CONCEITOS IMPORTANTES NA GESTÃO LOCAL O âmbito local está experimentando um importante processo de reestruturação: a ideia de desconcentração ou descentralização da prestação de serviços tem como meta o aumento da acessibilidade dos usuários a serviços A ampliação da rede de tratamento em BH prevê a criação de um novo Centro de Saúde Mental para Crianças e Adolescentes (CERSAMi) específicos, sem, necessariamente, ocorrer a descentralização da autoridade política central, que coordena o processo de implementação e monitora as ações das políticas e programas públicos. Entretanto, elementos novos e, consequentemente, novos valores são agregados à concepção da ação local, seja pela perspectiva da atuação referenciada no território, seja pela necessidade de atuar na emergência e resolver problemas reais, permeados pela relação do público com o serviço ofertado. Na questão específica das Políticas sobre drogas, tanto o déficit em relação a uma diretriz nacional para esta Política quanto a necessidade de atuar na emergência trazem cada vez mais para os municípios a responsabilidade de cuidar dos problemas relativos a esta questão. Incluir a temática do uso e abuso de drogas nas Políticas Municipais, como eixo prioritário de uma estratégia governamental, requer a definição de alguns princípios que orientam a produção de Políticas Públicas com foco na gestão local. O primeiro ponto se refere à valorização da dimensão local, como possibilidade de se constituírem laços sociais e intervenções mais participativas apontando para os desafios impostos pelo contexto social atual, posto que não seja suficiente apenas redesenhar os programas para modelos mais participativos, sem reformular os modelos de gestão. A demanda por uma "nova gestão pública do bem estar" (BRUGUÉ; GOMÁ, 1998) opera no mínimo em duas dimensões: a de uma administração mais estratégica, com menos rigidez e mais descentralizada; e a de uma administração "mais permeável" (DUNLEAVY; HOOD, 1995 apud GOMÁ, 2004). O primeiro conceito, relacionado à dimensão de uma administração mais estratégica, refere-se à ideia de governança, tratada aqui como a politização do nível local (BRUGUÉ; GOMÁ, 2004), que significa, a nosso ver, um compromisso das instituições em atender ao desafio de consolidar relações inter e intrainstitucionais, a fim de afrontar as novas temáticas como o uso e abuso de drogas, como elemento ativo do contexto social e, ao mesmo tempo, satisfazer as expectativas da população, produzindo legitimidade para a ação política dos programas e sustentando as escolhas das alternativas pelos técnicos. Ou seja, a ideia de *Mestre em Administração Pública. Especialista em Estudos da Criminalidade e Segurança Pública. Assessora Municipal de Políticas Sobre Drogas. 1 Artigo referenciado em publicação anterior do Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. PENSAR BH/POLÍTICA SOCIAL NOVEMBRO DE 2011 9 Governança permite construirmos alternativas institucionais para problemas públicos. Neste sentido, o conceito de intersetorialidade tem a dimensão do foco nas instituições e não na segmentação das áreas, tratando o problema como responsabilidade das instituições que compõem uma determinada política e não como resultado de arranjos técnicos, feitos na emergência, pelos diferentes atores que atuam na ponta dos serviços. O que queremos dizer é que, intersetorialidade é um pressuposto institucional que demanda definições políticas e técnicas por parte dos gestores, como um princípio da ação e não como consequência desta. A segunda ideia se refere à participação da sociedade civil incluindo os usuários dos serviços na definição das prioridades da agenda pública. Se pensarmos em resultados mais efetivos e nas possíveis alterações do contexto social local, a produção de respostas envolve a pactuação de resultados com a população que será beneficiada pelas mudanças que se pretende alcançar na implementação de novas políticas. A localização da demanda aponta para outro componente importante de análise: a trajetória do sujeito como elemento do desenho e da ação de Programas. Introduz-se por aí a possibilidade de construir-se alternativas que levem em consideração as características próprias do indivíduo e do território onde ele se encontra, ampliando a dimensão dos Programas, a fim de possibilitar a introdução de demandas subjetivas na ação, mas sem construir estigmas. Ou seja, ampliando a oferta e, ao mesmo tempo, levando em consideração as especificidades da demanda. Para Paugam (1994), a noção de trajetória passa pela ideia de que existe um processo que deve ser visto ao longo do tempo - longitudinalmente - e que permite apreender o percurso temporal dos indivíduos em relação ao ambiente mais ou menos permeável. Assim, a base territorial-espacial, que se caracteriza por enormes níveis de desigualdade, abriga, também, processos excludentes, incluindo a segregação. Os estados de privação descritos por Paugam associam-se ao conceito do que o autor denomina desqualificação social, que é estabelecida a partir de uma relação entre indivíduos e sociedade, entre público-alvo e ser- viços de assistência social. Outro conceito utilizado pelo autor, o de identidade, que pode ser positiva ou negativa, que se percebe por crise ou por construção, acompanha esta formulação, apontando para uma correlação trajetória-território-identidade. Ao percebermos o uso de drogas nas cidades como um fenômemo social, que extrapola a individualidade do sujeito e ocupa o espaço urbano, trazemos à tona o incômodo social provocado pela caracterização de sujeitos desqualificados socialmente, associados a espaços territorializados de uso e abuso de drogas, as chamadas "cracolândias", sujeitos excluídos dos serviços públicos pelo baixo nível de adesão a eles e com identidade construída na negatividade produzida por uma trajetória de idas e vindas na busca da cidadania social. Os chamados Serviços Pessoais2 são modelos de serviços que podem nos ajudar a pensar alternativas que, de fato, possibilitem condições de melhor adesão aos programas sociais, por parte de públicos extremamente excluídos do sistema de proteção social. Trata-se de um modelo que associa elementos, como a participação, a identidade local e o estabelecimento de vínculos entre usuários e serviços. Em seu trabalho, Mapa de los servicios personales locales (1998), os autores, apontam para a redefinição do papel dos governos locais, como resultado da transformação das demandas sociais, que não seriam contempladas pelas transferências de serviços universais preconizada pelos modelos de bem-estar social centralizados e burocráticos. Tais modelos não mais correspondem, às demandas sociais, que são cada vez mais diversas, heterogêneas e distintas em termos de territórios. A partir da fragmentação da estrutura social, promovida pelas desigualdades que se acumulam e se destacam localmente, surgem novas categorias de problemas e novas necessidades sociais, produzindo públicos com especificidades cada vez maiores, convertidos em "sujeitos vulneráveis a dinâmicas sociais" (Gomá, 1998), tornando as demandas mais complexas e exigindo novas perspectivas na oferta de serviços, que vão desde a agregação de conceitos tais como identidade e trajetória dos beneficiários na ação dos programas sociais, até a redefinição do papel do poder local nas políticas públicas. O desafio da gestão local está em optar pela fragmentação necessária para atender às demandas diferenciadas, e, ao mesmo tempo, integrar os usuários à política. O que pode gerar conflitos em relação à gestão, como o debate que surge das possíveis escolhas entre generalismo ou especialização, centralização versus descentralização, profissionalismo versus participação, e provisão versus habilitação, dilemas ainda sem orientação precisa. Ao mesmo tempo que se abre espaço para atender às necessidades diversificadas dos usuários, sabe-se que uma fragmentação excessiva pode impedir um modelo mais equilibrado, com maior equidade e integração na prestação de serviços. Por outro lado, vale ressaltar que mesmo que a prestação de serviços seja localizada, aumentando a acessibilidade dos usuários, a autoridade sobre este serviço continua centralizada em pessoas ou órgãos decisórios. Assim, a mudança na provisão de políticas de prevenção, tratamento, e reinserção social do usuário de drogas e seus familiares situa a exclusão social como eixo central de uma nova agenda de políticas locais de bem-estar. O conceito de exclusão relacionase a fenômenos estruturais multifatoriais e multidimensionais, apontando para uma crescente polarização de sujeitos "dentro-fora" da sociedade, ou para a "transição da sociedade de classes para a sociedade cruzada" (GOMÁ, 2003). Nessa perspectiva, para pensarmos uma política local sobre drogas, seria fundamental o redesenho das ofertas, buscando, ao mesmo tempo, a ampliação das mesmas a partir das escolhas do sujeito, e produzindo o aumento da cobertura através da possibilidade de diferentes entradas do sujeito no sistema de proteção social. Tais mudanças no campo da gestão se materializam apenas através da atualização dos sistemas de gestão capazes de criar novas metodologias, através do redesenho de processos e fluxos, do monitoramento e da avaliação de resultados, do compromisso técnico e político com os resultados que se pretende em uma inovação no campo das políticas públicas. II- UMA NOVA PERSPECTIVA DE AÇÃO: ITINERÁRIOS OU ROTAS DE INSERÇÃO Entendemos por itinerário de inserção e de incorporação social do público beneficiário de um serviço ou polí- 2 Serviços pessoais: "Conjunto de ações públicas articuladas em torno das pessoas, grupos e comunidades, sobre a base de relações integradoras e participativas" (Gomá e Brugué - 1998). 10 PENSAR/BH POLÍTICA SOCIAL - NOVEMBRO DE 2011 tica pública, a relação que se faz da ordem do indivíduo e de sua interação com o coletivo. Podemos analisar os componentes da infraestrutura social de determinados programas e estudar as suas estratégias, identificando fatores que poderiam contribuir para a inserção do público, em rotas alternativas à desqualificação social. Esta perspectiva de ação leva em conta principalmente os vínculos sociais estabelecidos entre usuários e serviços ofertados, como elemento importante na gestão local das políticas preventivas. Entende-se por vínculos sociais a configuração das relações sociais a serem estabelecidas em uma determinada comunidade, grupo ou serviço para a construção de "pontes que favorecem a disseminação de informações e o acesso a recursos e benefícios" (PAVEZ, 2006), ou seja, as relações positivas estabelecidas entre os serviços públicos e os beneficiários da política. O estabelecimento de vínculos sociais entre os usuários e os serviços locais possibilitariam a interlocução entre a demanda e a oferta. Assim, as intervenções teriam também a capacidade de colocar na agenda dos governos centrais as demandas locais, servindo como ponte entre os setores estratégicos do governo e as demandas da população. A necessidade de atuar na emergência e resolver problemas reais exige mudanças no campo das Políticas Públicas, considerando a possibilidade de uma atuação técnica com maior flexibilidade e discricionariedade em relação ao ambiente em que se opera, levando para a "ponta' a possibilidade de decidir a melhor estratégia para o caso no contexto em que se encontra. Desse modo, associa o poder de decisão à competência técnica, eliminando a dicotomia entre ação política e ação técnica. O que possibilita esta ação integral é a capacidade e a diversidade de ofertas que um programa pode produzir. A partir de ideias que se consolidam no campo da política, desenvolvem-se elementos no campo da gestão, que dão estrutura aos modelos locais de Proteção Social. Um elemento central para dar materialidade às ofertas é a implementação de redes horizontais e redes multiníveis 3, que partem da interdependência entre a multiplicidade de atores que atuam no local. Do mesmo modo, as demandas cada vez mais heterogêneas que se apresentam no local exigem uma transversalidade cada vez maior na ação, abrindo espaço para a intersetorialidade construída institucionalmente pela pactuação dos agentes públicos ou civis, em torno da construção de soluções para os problemas do público-alvo. A ideia que se constrói, a partir da identificação dos elementos apresentados até aqui neste artigo envolvem a importância da dimensão territorial e a valorização da trajetória do sujeito, o estabelecimento de vínculos sociais entre os atores e os destinatários da política. Tem como objetivo permitir a articulação do plano micro com o macro, o que é da ordem do sujeito e o que se refere a dimensões coletivas, permitindo-se construir um marco conceitual adequado para uma compreensão abrangente do problema do uso e abuso de drogas no Município e das possibilidades e alternativas possíveis de serem construídas. III - ESTRUTURAS LOCAIS DE GESTÃO Há uma tendência de aumento de órgãos locais voltados para a operacionalização de Políticas sobre drogas, sem a consolidação de uma dimensão estratégica de uma administração que possa assegurar a qualidade dos serviços, que sustente a ação local. No limite, tais órgãos ou equipamentos exclusivos para a Política sobre drogas transformam-se em redutos de repressão de uma demanda que exige uma atenção mais completa e não apenas a definição de um destino para ela. A preocupação em criar organismos locais responsáveis pela especificidade de Política sobre drogas institucionaliza o problema, com o município, muitas vezes, assumindo para si a questão, mas não acrescentando mecanismos de gestão do problema do ponto de vista das soluções possíveis, dos instrumentos e insumos disponíveis para resolvê-los. Tem-se aí um problema de governabilidade, em que a dimensão da autonomia municipal para resolver problemas está limitada e condicionada a pressupostos federativos, estreitando, muitas vezes a capacidade do município de criar serviços ou novos programas além dos já existentes. Resta, então, ao Poder Municipal trabalhar com as alternativas possíveis: potencializar os serviços existentes e criar novos arranjos no campo da gestão, a fim de possibilitar maior efetividade dos resultados. Alguns elementos são fundamentais para que os municípios possam pensar seus modelos locais de políticas dirigidas, a fim de constituírem programas que consigam produzir mais que a institucionalização do problema, mas, de fato, construindo soluções compartilhadas para seus órgãos e serviços. O sentimento social provocado pelas consequências da ocupação do espaço urbano para o uso de drogas, e potencializado pela mídia, toma corpo à medida que a opinião pública pede "providências" para o problema. No entanto, esse é um problema com origens profundas e de muito tempo; não começou agora e nem vai terminar com medidas imediatistas. Assim, não existe um lugar comum para se resolver o problema. O que, de fato, é possível, é construir-se alternativas comuns a diferentes setores da gestão local. Além disso, temos grandes problemas no campo das Políticas sobre drogas, provocados pelo impacto da falta de propostas articuladas entre os níveis federal, estadual e municipal, interferindo diretamente na consolidação de uma política capaz de, ao mesmo tempo, atender a uma demanda específica e ampliar a participação social neste campo. O debate colocado no âmbito municipal exige que se construam agendas comuns de discussão do tema das políticas sobre drogas, seja por parte das políticas municipais, seja por parte de canais de comunicação, e debate entre poder público e sociedade civil, como o Conselho Municipal. Construir uma possibilidade do tema, entrar na agenda pública exige tanto a reflexão sobre o assunto quanto a proposição de alternativas concretas que possibilitem uma ação transversal e integral por parte dos órgãos e setores municipais. IV - UMA PROPOSTA PARA O MUNICÍPIO DE BELO HORIZONTE Como já apontamos anteriormente, a dependência química apresentase na atualidade como um problema social com repercussões cada vez mais abrangentes ao sujeito e à rede social que o cerca, incluindo a família, a escola, o trabalho e a comunidade. Este é considerado um problema mundial que não compromete apenas a saúde, mas todas as estruturas públicas. A observação do contexto social aponta para o fato de que o consumo 3 Entende-se por Redes Multiníveis aquelas constituídas por diferentes níveis de governo e por Redes Horizontais aquelas constituídas pelos atores de um mesmo nível de governo. PENSAR BH/POLÍTICA SOCIAL NOVEMBRO DE 2011 11 de drogas não atinge de maneira uniforme toda a população, e o uso e abuso de drogas é distinto no Município, apresentando, inclusive, diferenças locais significativas, tanto nos aspectos sociais, quanto nas vias de utilização e na escolha do produto. A proposta que apresentamos junto à Prefeitura de Belo Horizonte para a prevenção, tratamento e reinserção social do usuário de álcool e outras drogas, e de seus famliares, tem como objetivo principal agregar uma série de projetos que incluam a participação social, o fortalecimento da rede de serviços e a implantação de ações integradas de Proteção Social ao usuário de drogas. Temos como referência todos os elementos apresentados até aqui, que poderiam compor esta proposta organizada em três frentes: ações estruturantes, ações de Tratamento e ações de proteção social. Ações estruturantes Conselho Municipal de Políticas sobre Drogas As Políticas sobre Drogas reconhecem e preconizam como de fundamental importância para a sua efetivação a participação da sociedade organizada, destacando a urgência em descentralizar as ações, envolvendo atores locais na estruturação e construção de uma nova forma de efetivá-las. Nesse sentido, está sendo proposta a reestruturação do Conselho Municipal de Políticas sobre Drogas, com equiparação da participação da sociedade civil, ampliando suas funções de elaboração e avaliação de políticas sobre drogas no Município. Além disso, foi estruturada uma Assessoria vinculada à Secretaria Municipal de Governo, para acompanhamento das ações neste campo, além da criação de uma secretaria executiva para o Conselho. Fundo Municipal de Políticas sobre Drogas A criação do Fundo Municipal de Políticas sobre Drogas tem por objetivo possibilitar a obtenção e a administração de recursos financeiros destinados ao desenvolvimento de ações preventivas, de fiscalização, de tratamento e de reinserção social para o público-alvo das políticas sobre drogas. Os recursos do Fundo serão destinados ao desenvolvimento de ações que envolvam: - programas de prevenção do uso de substâncias psicoativas; 4 - projetos de formação profissional para tratamento e recuperação de dependentes químicos; - produção de material educativo para divulgação de informações amplas sobre as questões relativas ao uso de substâncias psicoativas; - políticas públicas de investimento e custeio das ações de prevenção, tratamento e reinserção de usuários de drogas no município de Belo Horizonte; - apoio e incentivo à pesquisa e à produção científica sobre a temática das substâncias psicoativas e seus impactos na sociedade. Central de informação compartilhada Esta central buscará implantar um sistema integrado que possibilite analisar, produzir e disseminar informações específicas sobre o consumo e os riscos do uso de drogas, bem como a criação de uma metodologia de gerenciamento de casos, que permita conhecer e estudar os fluxos de atendimento ao público-alvo no Município, além de mapear as diversas políticas, serviços e atendimentos ofertados, assim como produzir informações que permitam, ao mesmo tempo, monitorá-los e agir de forma Preventiva. Grupo Técnico para Acompanhamento de projetos de proteção social da criança e do adolescente (GTA) Este grupo visa à integração das ações das políticas municipais que promovem a proteção social da criança e do adolescente usuários de drogas. É um Grupo Técnico que, em parceria com a Vara da Infância e da Adolescência e com a Promotoria de Justiça da Infância e da Juventude, buscará aprimorar a comunicação entre o Poder Público Municipal e o Poder Judiciário, construindo fluxos, efetivando processos de cumprimento de medidas protetivas e de medidas socioeducativas, para as crianças e adolescentes usuários de drogas, tendo como meta sua maior proteção social. Ações de Tratamento Ampliação da rede de atendimento da saúde a usuários de álcool e drogas A partir de 2003, o Ministério da Saúde formulou uma Política Nacional específica para Álcool e Drogas com o compromisso de prevenir, tratar e reabilitar os usuários, segundo a Lei 10.216/01, marco legal da Reforma Psiquiátrica Brasileira. Os serviços de atendimento foram criados e adaptados e surgiram os ambulatórios, centros de convivência, internações breves e longas, hospitais-dia, moradias as- sistidas, acompanhamento terapêutico, agentes multiplicadores, entre outros, para atender a nova política brasileira. O Ministério da Saúde (2007) recomendou que a assistência aos usuários de álcool e outras drogas deveria preferencialmente ser feita nos Centros de Atenção Psicossocial para Álcool e Drogas (CAPS-ad) - em Belo Horizonte, o equipamento equivalente é o CERSAM-ad -, articulado ao Programa de Saúde da Família, Programa de Agentes Comunitários de Saúde, Programas de Redução de Danos e Rede Básica de Saúde. Nesse sentido, e em consonância com a Política Nacional, a proposta de ampliação da rede de tratamento em Belo Horizonte prevê a criação, por meio da Secretaria Municipal de Saúde, de novos Centros de Saúde Mental especializados em álcool e drogas, além da criação de um novo Centro de Saúde Mental para Crianças e Adolescentes (CERSAMi) - ambos funcionando 24 horas ao dia, 7 dias na semana - e a criação de equipes do Programa de Atenção Básica Domiciliar álcool e drogas, para acompanhamento e inserção na rede social dos usuários do CERSAM-ad e do CERSAMi. Inclui, ainda, a criação progressiva de leitos para quadros de intoxicação e síndrome de abstinência moderada a grave e a ampliação das equipes dos Consultórios de Rua, responsáveis pela abordagem aos usuários que estão em situação de uso de drogas nas ruas. Ações de Proteção Social Residências Transitórias As Residências Transitórias são serviços de abrigamento temporário, de acolhimento e Proteção Social. Serão credenciadas pelo Município, instituições qualificadas no atendimento a usuários de drogas que atuam de forma articulada com as políticas municipais. Voltadas para o acompanhamento sociofamiliar e a realização de programas de reinserção social de adultos, crianças e jovens, farão parte da rede de proteção social ao usuário de drogas. Trata-se de um equipamento de convívio e sociabilidade, de adesão voluntária,inclusivo, com capacidade de oferecer proteção social nas situações de fragilidade e/ou ruptura dos laços sociais e afetivos e de ameaça à vida. É um sistema aberto, que envolve a comunidade e a família. Projeto de Lei 557, em tramitação na Câmara Municipal de Belo Horizonte, propondo a reestruturação do Conselho Municipal de Políticas sobre Drogas (CMPD). 12 PENSAR/BH POLÍTICA SOCIAL - NOVEMBRO DE 2011 Rede de Proteção Social A atuação em rede é estratégica e descentralizada. Promovendo o diálogo entre Poder Público e Sociedade, as redes representam o envolvimento de atores múltiplos, plurais e agregam à gestão dos Programas e Projetos Públicos estratégias de cooperação coordenada intergovernamentais e intersetoriais. Nesse sentido, é proposta a constituição de um Grupo de Trabalho Intersetorial, a fim de apontar ações dirigidas à proteção social ao usuário de drogas nas áreas de emprego, trabalho e renda, assim como definir um Plano de prevenção ao uso de drogas a ser implantafo no Município. A proposta inclui a criação de cursos de formação profissional e inserção no mercado de trabalho para usuários de drogas e seus familiares, em parceria com a Secretaria Municipal Adjunta de Trabalho e Emprego. Inclui também a participação da Secretaria Municipal de Esportes, com a oferta de atividades esportivas, para público específico, e a ampliação dos programas atuais, aumentando, especialmente, a cobertura do público jovem. Outra ação fundamental é a retaguarda de serviços de proteção social ofertados pela Secretaria Municipal Adjunta de Assistência Social aos usuários e seus familiares, por meio do Centros de Referência da Assistência Social (CRAS) e dos Centros de Referência Especializado da Assistência Social (CREAS), localizados nas administrações regionais do Município. São esses serviços os responsáveis pela oferta de ações continuadas de proteção social às famílias, grupos e indivíduos em situação de vulnerabilidade, e que organizam a atenção social em sua área de abrangência. Todo o trabalho visa a promover a emancipação social das famílias, desenvolvendo a cidadania para cada um de seus integrantes. O CREAS, integrante do Sistema Único da Assistência Social (SUAS), é uma unidade pública de prestação de serviços especializados e continuados a indivíduos e famílias com seus direitos violados, promovendo a integração de esforços, recursos e meios para enfrentar a sua dispersão e potencializar a ação para seus usuários. Envolve um conjunto de profissionais e processos de trabalho, ofertando apoio e acompanhamento especializado. Rede Pela Paz A SMED-BH vem trabalhando desde 1998 com programas, projetos e ações de prevenção à violência escolar que priorizem a construção de uma cultura de paz nas escolas e em suas comunidades. O Programa Rede Pela Paz, implantado em 1999, tem como foco principal a função de formar, elaborar e executar políticas públicas de aprimoramento do clima escolar, por meio de ações relacionadas à construção de uma cultura de paz sustentável, a mediação de conflitos, a prevenção e ao combate à violência. A perspectiva é potencializar esse programa, focalizando as ações de prevenção social no público-alvo das escolas, produzindo uma ação mais dirigida a crianças, jovens e comunidade. IV- CONCLUSÃO A proposta de trabalhar em níveis estruturante, de tratamento e de proteção social, parte de uma lógica de transversalidade da gestão, em que a solução do problema perpassa diferentes níveis e produz respostas também diferenciadas, aumentando a cobertura, ampliando a intensidade protetora dos programas sociais e estabelecendo novos vínculos dos usuários com os serviços ofertados. As condições políticas e institucionais também devem ser consideradas para a viabilização do modelo de intervenção sugerido. Este trabalho poderá ser ampliado a outras áreas a partir dos resultados obtidos, através de novos mapeamentos, diagnósticos e da opinião de lideranças locais, bem como da realização de fóruns gerais de coordenação e o estabelecimento de novas parcerias. Nesse sentido, a dificuldade está em criar não só um modelo, mas também uma linguagem comum dentro dos próprios setores do Estado, e das instituições entre si, no que diz respeito ao problema do uso e abuso de drogas. Trata-se, no plano ideal, de compatibilizar símbolos (valores e crenças) enquanto instrumentos de integração, de conhecimento e de comunicação, tornando possível o consenso acerca do sentido do mundo social5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Alves, Márcia C., Mobilização comunitária e Prevenção do Crime: A Experiência do programa Fica Vivo no Morro das Pedras. Mimeo. Specialization Thesis, CRISP - UFMG, 2004. ----, "Gestão Local e Políticas Públicas: os desafios do campo da segurança," Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, p. 64-67, 2008. ----, "Programas de Prevenção à Criminalidade: Dos Procesos Sociais à Inovação da Política Pública. A Experiência do Fica Vivo!," Unpublished Master's Thesis, Fundação João Pinheiro (Belo Horitzonte), 2008. BRUGUÉ, Q.; GOMÁ, Ricard (Coord.). Gobiernos local e y políticas públicas: bienestar social, promoción económica y territorio. Barcelona: Ariel, 1998. BRUGUÉ, Q.; GOMÁ, Ricard (Coord.). Modernizar la administración desde la izquierda: burocracia, nueva gestión pública y administración deliberativa. Barcelona, 2004, Mimeo. BRUGUÉ, Q. et al. Mapa de los servicios personales. Barcelona: UAB - Uiversidade Aberta de Barcelona, 1998. PAUGAM, Serge. O enfraquecimento e a ruptura dos vínculos sociais. In: SAWARA, Bader (Org.). As artimanhas da exclusão: análise psicossocial e ética da desigualdade social. Petrópolis: Vozes, 2002. PAUGAM, Serge. Desqualificação social: ensaios sobre a nova pobreza. São Paulo: Cortez, 2003. PAVEZ, Thaís R. Ação pública e transformação de vínculos sociais em uma comunidade segregada. Belo Horizonte: ABCP, 2006. Abstract In the current context of large social demands, the revaluation of the local dimension accompanies the democratization and decentralization of the public policies process. The need to produce responses to micro social demands, constituted by the diversity and heterogeneity of the problems which occur in the cities, requires change in the management models. The great challenge for the municipal policies is, at the same time, to connect the answers prepared at the local level to the national policy guidelines, associated with changes in the social structure. Local Policies for Prevention, Treatment and Social Rehabilitation related to drugs use and abuse are part of this challenge. In this article we will discuss elements that might constitute a Municipal Policy on drugs. Como afirma Foucault, "(...) numa sociedade como a nossa (...) múltiplas relações de poder perpassam, caracterizam, constituem o corpo social; elas não podem dissociar-se, nem se estabelecer, nem funcionar sem uma produção, uma acumulação, uma circulação, um funcionamento do discurso verdadeiro" (Foucault, 2002: 28). PENSAR BH/POLÍTICA SOCIAL NOVEMBRO DE 2011 13 Especial/Não às drogas CONSULTÓRIO DE RUA a construção de uma prática seguindo as trilhas da liberdade com responsabilidade Temos vivenciado um momento de alarde anunciado pela mídia acerca dos usuários de álcool e outras drogas, mais especificamente os usuários de crack, que vêm legitimando soluções precipitadas e arcaicas, visando a um movimento de retrocesso, higienista e segregatório por parte do Poder Público. Dessa forma, se faz necessário confirmar a orientação construída no trabalho da Rede de Saúde Mental do Município de Belo Horizonte, pautada nos ideais da Reforma Psiquiátrica, que tem como prioridade propor novas e possíveis amarrações para fazer caber as diferenças no laço social, dispensando grades e manicômios. Diante deste cenário, é primordial que se apresentem alternativas inusitadas como forma de garantir a cidadania e a dignidade dos usuários de álcool e outras drogas, através de um modelo substitutivo, inovador, que faz circular pela cidade os modos que cada um tem de fazer morada e tratar seu mal-estar no espaço da rua. É nesta perspectiva que surgem, para integrar a Política de Álcool e Outras Drogas, as equipes de Consultório de Rua, compostas por Educador Social/Assistente Social, Enfermeiro, Psicólogo e Redutor de Danos, dispositivo que tem como princípios norteadores o respeito às diferenças, a promoção dos direitos humanos e da inclusão social, o enfrentamento dos estigmas, as ações de redução de danos e a intersetorialidade. Sua característica mais importante é oferecer cuidados no próprio espaço da rua, preservando o respeito ao contexto sociocultural dos que nela se encontram, bem como o diálogo intersetorial com a Rede, servindo de ponte facilitadora ao acesso dos usuários a outros serviços. A primeira equipe do Consultório de Rua no Brasil foi constituída em Salvador, na Bahia, em 1999. No município de Belo Horizonte, essa experiência teve início em março de 2011, MIRIAN VANESSA COSTA PACHECO* ROSIMEIRE APARECIDA SILVA** concentrando-se em duas regiões: uma é a Pedreira Prado Lopes, na Região Noroeste, denominada pela mídia como "Cracolândia", devido ao alto índice de usuários de crack na cena pública, e a outra, as redondezas das Regiões Centro-Sul/Leste, onde se encontram os chamados "meninos de rua", crianças e adolescentes que circulam no entorno da Avenida dos Andradas, Região Hospitalar e Savassi, fazendo uso dos solventes e inalantes, como thinner e loló. A escolha de cada área respeitou as especificidades do público, o tipo de uso, e as problemáticas que envolvem a relação sujeitodroga no contexto da rua. Na Pedreira Prado Lopes, o trabalho se iniciou com a distribuição de insumos de saúde junto às orientações sobre DST/AIDS e Redução de Danos relacionados ao uso abusivo de álcool e outras drogas, o que se tornou uma via exitosa para a criação de vínculo com os usuários em situação de rua e a comunidade em geral. Buscar o laço é a orientação, o que garante a atuação do Consultório de Rua no território e faz surgirem os efeitos da presença da equipe, como demonstra a regra instituída pelos próprios usuários "não fumar pra conversar". Assim, a equipe é autorizada a se aproximar, ouvir, falar, reencontrar, ouvir mais e acompanhar. Orientações e encaminhamentos No dia a dia de trabalho, vêm sendo realizadas ações que propiciam ofertar outras alternativas ao uso abusivo de drogas, através de orientações sobre saúde: oficinas de Saúde Bucal "Cuidando da Boca", conversas sobre Sexualidade, bem como atividades lúdicas e culturais, por exemplo, bingo e Festa Junina, além de fazer os devidos encaminhamentos à rede intersetorial: Centro de Referência em Saúde Mental para usuários de Álcool e ou- tras Drogas (CERSAM-ad), Centros de Saúde, Plantão Social, Centro de Referência da População de Rua, dentre outros. A equipe das regiões Centro-Sul/ Leste percebe a rua enquanto um espaço de circulação de pessoas, que abriga crianças, adolescentes, adultos, famílias, de uma maneira diferenciada das formas comuns de convivência e que propicia, em alguns casos, a possibilidade de socialização, de criação de laços, de inclusão em grupos, um espaço de viver uma "liberdade" que não é vivida no contexto familiar em um espaço chamado "casa". A rua tornase para muitos a "casa" desejada, a "liberdade" vivida, a "família". É neste espaço que o trabalho se dá, diariamente, através de atividades desenvolvidas, tais como oficinas, atividades lúdicas como forma de estabelecimento de uma relação de confiança entre equipe de trabalho e usuários do serviço, a ligação dessa população entre os serviços de saúde, e outros que compõe a rede de atendimento à população, organização de passeios, como idas ao cinema, ao zoológico, como estratégia de fortalecimento de vínculo. A prática do Consultório de Rua é um desafio que se enfrenta todos os dias em campo, juntamente com outras questões que se colocam na relação entre equipe/serviços e equipe/público. Propicia romper com valores, préconceitos e também com a lógica segregadora com que se defrontam os usuários de álcool e outras drogas. Assim, é tempo de re-tomar posição e bancar o desejo antimanicomial, ofertando tratamentos dignos que enfatizem a liberdade e a responsabilidade de cada usuário, reduzindo os danos deste alarde proposto pela mídia, priorizando a cautela e a escuta de cada sujeito na direção de um lugar possível para cada um no laço com a Cidade. * Referência Técnica Secretaria Municipal de Saúde da Prefeitura de Belo Horizonte. ** Coordenadora de Saúde Mental da Secretaria Municipal de Saúde da Prefeitura de Belo Horizonte. 1 Texto elaborado com a colaboração das equipes dos consultórios de rua Centro Sul/Leste e Pedreira Prado Lopes. 14 PENSAR/BH POLÍTICA SOCIAL - NOVEMBRO DE 2011 Especial/Não às drogas Violência e drogas em meio escolar: avanços e desafios das escolas municipais ISMAYR SÉRGIO CLÁUDIO* O presente texto tem por objetivo apresentar o problema da violência escolar e suas relações com o clima escolar, espaços educativos, relações interpessoais e políticas públicas para seu enfrentamento. Além disso, a partir de dados, o trabalho enfatiza a temática das drogas e sua interrelação com a violência nas instituições de ensino. Ao se abrir para a comunidade na qual ela se insere, possibilitando diferentes ações aos finais de semana, a escola está garantindo qualidade no clima escolar e na relação com a comunidade em geral Presente em todas as sociedades e instituições sociais, a violência é um fenômeno multicausal, complexo e que desafia governos e sociedades. Em ambiente escolar, suas diferentes formas e manifestações adquirem proporções desafiadoras em razão das características próprias do seu espaço e de seus sujeitos. Dessa forma, tanto a escola quanto o sistema de educação precisam reconhecer que sozinhos correm o risco de se tornarem incapazes de perceber todas as causas da violência e de formularem respostas adequadas a todas elas. Por isso, constituir redes de proteção social que envolvam as instituições formais e informais presentes naquele território, afe- tadas de alguma forma pelas violências que permeiam aquela comunidade, faz-se instrumento importante de mudança do quadro da violência local e de prevenção. Essas parcerias devem incluir famílias, outros órgãos públicos e instituições comunitárias em um planejamento comum que possibilite respostas diversas a esse complexo fenômeno. Como se vê, as redes de proteção social não são constituídas apenas pelos atores da escola, mas a escola pode ser a aglutinadora da rede na comunidade na qual se insere. Para além de evidenciar as ações de pessoas e de instituições daquele território, fortalecendo as iniciativas de cada pessoa ou instituição, através de ações coletivas e coordenadas, "as redes também podem ocupar papel de destaque na mediação do acesso a políticas e serviços do Estado, com importantes efeitos sobre o bem-estar" (MARQUES, 2010: 47). Não há dúvidas quanto à afirmativa de que a violência extrapola a escola. Ela não está reduzida ao ambiente escolar, faz-se presença cotidiana em todos os espaços e relações sociais. É preciso pensar o que tem produzido esta violência. Por que as sociedades contemporâneas têm construído tanta competitividade e individualismo, combustíveis para confrontos, conflitos e violências? *Filósofo pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Mestre em Administração Pública - Gestão de Políticas Sociais pela Fundação João Pinheiro. Gerente de Educação Integral, Direitos Humanos e Cidadania da Secretaria Municipal de Educação (SMED) da Prefeitura de Belo Horizonte (PBH). PENSAR BH/POLÍTICA SOCIAL NOVEMBRO DE 2011 15 O fenômeno da globalização trouxe, entre outros aspectos, a revolução tecnológica dos meios de comunicação que, por sua vez, transformou o planeta Terra em uma "aldeia global1". Tal revolução tem produzido sociedades nas quais as crianças e jovens estão em permanente contato, em tempo real, com diferentes culturas, diferentes valores, retratados em uma série de informações que as famílias e escola não conseguem acompanhar. São crianças e jovens das chamadas gerações Y e Z, os nascidos a partir da década de 1980, a geração da internet, dos celulares e dos grandes saltos da evolução das tecnologias de comunicação e do círculo virtuoso da economia. Nessa sociedade da informação, completamente aberta, inúmeros e diferentes valores e contravalores permeiam a cotidianidade e ditam as regras da comunicação e das relações pessoais. Isso faz com que nem sempre as famílias e a escola possam ter a mesma velocidade para interferir no diálogo de crianças e jovens com as infinitas informações, conhecimentos, valores e contravalores que circulam na velocidade da luz, "causando nas pessoas a impressão de que muitas mudanças ocorreram de repente" (XIAOPING, 2011:13) Comportamentos individuais ou de grupos, tais como o vandalismo, as agressões físicas e verbais, o uso da linguagem rude, a extorsão, entre outros, são situações que hoje se colocam no bojo da violência também no ambiente escolar. Muitas dessas situações, até pouco tempo, não estavam incorporadas ao universo da violência. Eram tidas como comportamentos desviantes das relações interpessoais e/ ou do campo da indisciplina escolar. No entanto, no contexto atual, necessário se faz focar o olhar e direcionar a atenção àquelas situações que antes não eram consideradas violências, mas que, em momentos de conflitos, podem constituí-la. Estar atento às relações interpessoais entre estudantes e educadores, estudantes e estudantes, educadores e educadores são um imperativo para a ação de todos os profissionais, estudantes e famílias, pessoas essas que constituem o ambiente da escola através de diferentes possibilidades de relações. Deve-se prestar atenção, em especial, às situações nas quais as relações são distanciadas, interrompidas, comprometendo as amizades e ampliando as possibilidades dos conflitos, redimensionando a construção da alteridade, através da qual os diferentes atores se veem e se reconhecem no olhar do outro. Estar atento ao outro, relacionarse com ele, constituir relações baseadas na palavra - que possibilita o verdadeiro diálogo - é uma ferramenta importante para se desvendar o fenômeno da violência escolar, buscar seus indícios, que vão sendo mensurados, checados, analisados e, assim, revelados a pesquisadores, educadores, estudantes e famílias. Por isso, é preciso despertar múltiplos olhares, buscar indícios nas diversas situações que permeiam as relações interpessoais no contexto da convivência em ambiente escolar, ou seja, que olhares há de se ter para se perceber os diferentes matizes do que se denomina clima escolar? Quais são os componentes do clima escolar? Por que o conceito de clima escolar está relacionado à eficácia escolar? De que modo a eficácia da escola se converte em bom clima escolar e, consequentemente, possibilita a redução da violência escolar, constituindo-se em instrumento de prevenção? O CLIMA ESCOLAR E SUA CONSTRUÇÃO Por clima escolar entende-se a qualidade geral das relações internas na escola. A forma que a gestão da escola interfere na qualidade das relações é que se constituem diferenciais de qualidade do clima escolar. Ao se criar canais de participação abertos a todos os membros da comunidade escolar, como o Colegiado Escolar, Conselho de Pais, Grêmios Estudantis, dentre outros, a escola interfere positivamente nas relações internas; ao realizar seminários ou congressos para tratar das questões de interesse daquela coletividade, a escola está interferindo diretamente no clima escolar. Ao se abrir para a comunidade na qual ela se insere, possibilitando diferentes ações aos finais de semana, a escola está garantindo qualidade no clima escolar e na relação com a comunidade em geral. Portanto, direcionar os olhares para se entender o clima escolar exige clareza quanto aos elementos que o compõem, traduzidos por indicadores entre os quais: "as realizações pedagógicas e administrativas, as atitudes dos alunos e da equipe pedagógica em relação à escola, o conjunto de relações estabelecidas, assim como as percepções de todos os seus integrantes acerca do trabalho pedagógico realizado pela instituição de ensino e sobre a participação que possuem nestes processos" (CUNHA; COSTA, 2009: 04). A atenção a esse conjunto de indicadores do clima escolar, entre outras percepções, poderá revelar a existência ou não de diferentes formas de violências naquele cotidiano escolar. Por exemplo, ao observar as atitudes dos estudantes e da equipe pedagógica, seu modo de interagir e se relacionar, a maior ou menor polidez das relações, as percepções oriundas dos comportamentos podem descortinar a existência ou não de rupturas da escola, com a escola ou com os valores escolares. E, nesse caso, haverá oportunidade de se trazer à tona as microviolências que podem estar presentes nas relações entre instituição e sujeito ou nas relações interpessoais em meio escolar. Mensurar os níveis de qualidade das relações interpessoais, os laços sociais estabelecidos, a maior ou menor polidez no trato e na convivência em meio escolar dizem respeito ao monitoramento das manifestações de violências que, nesse contexto, é denominada por Debarbieux (1996)2 de incivilidades3. Por isso, especialmente em meio escolar, a capacidade maior ou menor do uso da palavra, como fundamental instrumento de comunicação entre os indivíduos, constitui-se em mecanismo importante das relações sociais e se faz institucionalizada em toda sociedade. Dessa forma, em ambiente escolar, para além das boas regras de convivência e comunicação estabelecidas pela sociedade, há que se ter normatização interna clara, através de um Regimento Escolar atualizado, em permanente construção. Afinal, como nos ensina Goffman (2010: 43): "o indivíduo semiconsciente de que um certo aspecto de sua atividade pode ser percebido por todos aqueles presentes, tende a modificar esta atividade, empregando-a com seu caráter público em 1 Conceito criado pelo canadense Marshall McLuhan ao analisar o poder da televisão integrada ao satélite como meio de comunicação global. Tal paradigma foi ampliado com a invenção dos computadores, internet e celulares, o que reproduziu em escala global o que antes estava restrito à vida da aldeia, ou seja, a capacidade dos seres humanos se comunicarem em tempo real. 2 Ver Abramovay (2002) 3 Debarbieux define por incivilidades as violências antissociais e antiescolares, aquelas que se revelam através de atitudes ou comportamentos que têm caráter público, na dimensão das relações interpessoais ou com os espaços públicos. 16 PENSAR/BH POLÍTICA SOCIAL - NOVEMBRO DE 2011 mente. Às vezes, na verdade, ele pode empregar esses sinais somente porque eles podem ser testemunhas. E mesmo que aqueles em sua presença não tenham exatamente consciência da comunicação que estão recebendo, eles de qualquer forma sentirão algo fortemente incorreto se algo incomum for transmitido" Entretanto, hoje, a escola convive também com outros fenômenos sociais violentos como as pequenas gangues, aquelas que estão fora da escola, mas que, de certa forma, interferem na escola ou em suas ações. São fenômenos que não eram da escola, e que a escola passa a tê-los no rol de suas ocupações. Para melhorar a qualidade do clima da escola há que se considerar também a escola naquilo que lhe é próprio: a formação das crianças e jovens. A afirmação de que a violência, juntamente com a indisciplina, dentro das escolas, comprometem a qualidade da aprendizagem é de conhecimento público. A disciplina, contudo, não pode ser considerada apenas um meio de se obter bons desempenhos. Afinal, a escola, para além de ensinar, deve educar para a cidadania. O ESPAÇO ESCOLAR Ao se discutir o clima escolar e a sua construção, há que se considerar como os diferentes sujeitos que convivem na escola vão dando forma e caracterizando o espaço escolar. O espaço físico é, para o ser humano, um espaço apropriado, organizado e habitado conforme seus desejos e interesses. Nesse sentido, o espaço é uma construção social, cultural, política, etc. E o espaço escolar é, também, um espaço construído, com fins específicos, por aqueles sujeitos que se encontram cotidianamente se organizando como comunidade do conhecimento. A importância da apropriação consciente do espaço escolar como lugar do encontro, da convivência, da descoberta, do jogo de interrelações, da construção do lugar do direito a ter direitos é fundamental para que cada um possa se ver como ator e beneficiário dessa construção. Quando isso se dá de forma coerente, o vínculo entre sujeito e instituição se coloca e o sentido de pertencimento àquela comunidade-escola traz para aqueles sujeitos um sentimento de colaboração e de solidariedade que elevam sua autoestima fazendo com que as relações se deem em patamares e níveis mais iguais. O DESAFIO DAS DROGAS EM MEIO ESCOLAR Conforme foi tratado no início deste artigo, a escola, a partir da década de 1980, passou a ter de se haver com as novas formas de violências, aquelas que sequer eram percebidas por ela. Quanto maior o grau de vulnerabilidade social da comunidade, maior a sensação de insegurança dos membros da comunidade escolar. Conforme afirmação de Abramovay, "toda escola situa-se em um espaço e território cujas características afetam a sua rotina, as relações internas e as interações dos membros da comunidade escolar com o ambiente social externo" (ABRAMOVAY, 2002: 95). Quanto mais ausente for o poder público em um determinado território, maior será a sensação de insegurança da população e, consequentemente, maior a sensação de vulnerabilidade, o que afeta o comportamento das pessoas e das instituições ali presentes. Entre as violências que se localizam para além dos muros da escola, e com as quais terá que se haver está a violência produzida pelo tráfico de drogas, que, por suas ações, produz violência no entorno da escola, dentro da escola e contra a escola. Na medida em que as ações do tráfico de drogas ganham espaços nas ruas e praças do bairro no qual a escola se insere, por si só, a escola começa a sentir as consequências dessa ação. A sensação de insegurança aumenta entre os membros da comunidade escolar, e, não raro, as ações do tráfico chegam ao interior da escola. Essas ações do tráfico são percebidas pela escola de diferentes modos, por exemplo, quando do aumento das violências no entorno da escola, quando o professor percebe o desânimo ou a agressividade do estudante em razão do envolvimento com o traficante, quando recebe a notícia de que aquele estudante fora assassinado, quando pessoas envolvidas com o tráfico de drogas ameaçam os membros da comunidade escolar ou invadem o espaço escolar. O que era inimaginável até há muito pouco tempo se tornou realidade: a violência chega ao interior das escolas, muitas vezes através dos membros de sua comunidade escolar, e, em geral, pelos estudantes, quando se en- contram sob influência do tráfico de drogas. Profissionais de escolas, estudantes e familiares relatam que traficantes circulam pelo entorno de escolas e, ainda que seja mais raro, chagam a entrar no interior de escolas. Diferentes pesquisas têm apontado essa realidade, entre as quais podemos destacar a pesquisa denominada 'Drogas na escola', coordenada por Miriam Abramovay e Mary Garcia Castro, que pesquisaram 14 capitais brasileiras e apontam os números da percepção do comércio e do consumo de drogas no entorno das escolas. "Considerando o universo amostrado de alunos, uma média de 33,5%, ou seja, um terço do total, afirma ter presenciado o consumo de drogas perto do ambiente escolar, o que corresponde a 1.551.609 estudantes". (ABRAMOVAY; CASTRO, 2005: 92) Outra pesquisa4, realizada entre estudantes de escolas públicas municipais em Belo Horizonte - MG e Presidente Prudente - SP, por pesquisadores vinculados à Universidade Estadual Paulista - UNESP, com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - FAPESP, entrevistou 1880 estudantes de escolas municipais, com idades entre 14 e 24 anos. A pesquisa foi desenvolvida nos anos de 2006 e 2007, em escolas localizadas em áreas de alto índice de vulnerabilidade social (IVS) e baixo índice de qualidade de vida urbana (IQVU). Os estudantes responderam a um questionário de múltipla escolha com 109 perguntas. O objetivo foi conhecer o perfil biossociodemográfico dos estudantes, sua relação com a escola, o trabalho, a exposição ao risco, a positividade pessoal, a sexualidade, as drogas, a saúde, a qualidade de vida, a proteção e a amizade, a fim de se perceber os fatores de risco e de proteção entre adolescentes e jovens de escolas públicas de Belo Horizonte e Presidente Prudente. Comparando os indicadores da pesquisa "Drogas na escola" com os indicadores sobre drogas da pesquisa "Comportamentos e fatores de risco e proteção na adolescência e juventude nos municípios de Presidente Prudente e Belo Horizonte", percebem-se resultados muito próximos quanto ao comportamento dos adolescentes e jovens em ambientes de atuação do tráfico de drogas, conforme se pode verificar a seguir: 4 CASTRO, Bernardo Monteiro, LIBÓRIO, Renata. Comportamentos e fatores de risco e proteção na adolescência e juventude nos municípios de Presidente Prudente e Belo Horizonte. UNESP, 2007. PENSAR BH/POLÍTICA SOCIAL NOVEMBRO DE 2011 17 Assim como a escola Carlos Drummond de Andrade, várias escolas municipais se convertem em verdadeiros clubes, nos finais de semana "(...) apesar de grande parte dos adolescentes conviverem com a realidade do tráfico de drogas em suas comunidades (60,2%), uma minoria mencionou ter experimentado drogas ilícitas, tais como maconha (9,5%) e cocaína (4,7%). Pensamos que é possível sugerir que a convivência com o tráfico não necessariamente leva os adolescentes e jovens dessa pesquisa ao uso dessas substâncias" (CASTRO; LIBÓRIO, 2010:109) Quanto à relação com as drogas lícitas e ilícitas por estudantes da Rede Municipal de Educação de Belo Horizonte, a pesquisa buscou perceber diferentes interações por parte dos estudantes, como se segue: Quanto ao uso de drogas lícitas e ilícitas, 79,6% dos estudantes responderam já terem experimentado vinho, cerveja ou outra bebida alcoólica; 28,9% afirmaram já terem experimentado cigarro; 9,5% declararam terem usado maconha; 4,5% afirmaram o uso de cocaína; 12,9% usaram loló. Ao analisar a periodicidade de uso das drogas lícitas e ilícitas pelos adolescentes e jovens respondentes da pesquisa, Castro e Libório verificam "que a frequência de uso diminui" para aqueles que já experimentaram "algum entorpecente em alguma época da vida". (CASTRO; LIBÓRIO: 2010: 110). Outro aspecto evidenciado pela referida pesquisa se refere ao uso de drogas lícitas e ilícitas por período prolongado, em média entre 20 ou mais dias ao mês. Bernardo Monteiro de Castro e Renata Maria Coimbra Libório demonstraram que "há um nível considerável de consumo de bebidas alcoólicas (12,1%) e cigarro (7,8%). Com relação às drogas ilícitas, verificamos que 1,9% dos participantes se referem ao uso com tal frequência", o que pode caracterizar dependência química por parte os respondentes, estudantes de escolas da rede municipal de Belo Horizonte. Considerando os indicadores acima, os pesquisadores procuraram verificar se os adolescentes e jovens respondentes tentaram interromper o uso dessas drogas. Entretanto, o que se verificou foi que "quase a metade deles nunca tentou parar (46,4%). Dentre os que tentaram parar, destaca-se a indicação do álcool, seguido pelo cigarro comum" (CASTRO; LIBÓRIO, 2010:112). Entre os que tentaram parar de usar drogas lícitas e ilícitas, 75% declararam que o fizeram sem buscar apoio de ninguém; 18,3% afirmaram que buscaram apoio em amigos; 10,7% recorreram ao apoio da família. "Podemos pensar que, em certas circunstâncias, as relações de amizade e vínculos familiares podem ter atuado como indicadores protetivos frente ao comportamento de risco representado pelo uso de drogas (embora em outras circunstâncias os amigos possam atuar como indicadores de risco)" (CASTRO; LIBÓRIO, 2010:112). Nesse contexto, os pesquisadores chamam a atenção para a não implicação das instituições que deveriam compor a rede de proteção social, enquanto fator protetivo dos estudantes que tentaram deixar o uso das drogas. O que demonstra a necessidade de se fortalecer e empoderar estas instituições através de ações em rede, possibilitando que elas se vejam, se reconheçam, partilhem conhecimentos, potencialidades e dificuldades, e executem ações consorciadas para atingirem melhores resultados. "As igrejas, instituições e hospitais ou postos de saúde compareceram como ajudando muito pouco os jovens nessas tentativas, levando-nos a pensar no quão frágil é o lugar ocupado por essas instituições como redes de apoio social (indicadores de proteção) para os jovens participantes 18 PENSAR/BH POLÍTICA SOCIAL - NOVEMBRO DE 2011 desta pesquisa" (CASTRO; LIBÓRIO, 2010:112). Quanto aos motivos pelos quais os respondentes foram motivados a usarem drogas, 39,6% afirmaram não saber; 25,8% justificaram ser por gostar ou ser divertido; 15,6% declararam estar relacionado a problemas ou entristecimento; 15% indicaram outros motivos; e apenas 4.4% afirmaram ser por influência de amigos. Os pesquisadores quiseram saber também sobre os motivos que levam os respondentes a nunca usarem drogas. E, obtiveram os seguintes indicadores: para 45,3% deles o motivo é o cuidado com a própria saúde; 31% afirmaram ter "medo de viciar"; para outros 27,7% é em razão da influência de suas famílias; 13,8% por causa da influência de amigos(as) ou namorados(as). "Interpretamos que os cuidados consigo mesmos são mais fortes na hora de decidir a não usar entorpecentes do que a influência de qualquer pessoa. Isso pode representar uma boa autoestima. Se for verdade, programas que investem na autoestima infantojuvenil devem ser desenvolvidos com o intuito de prevenir o uso de drogas" (CASTRO; LIBÓRIO, 2010:112). Estes indicadores servem de alerta às escolas para que invistam em conteúdos transversais que abordem temas relativos à saúde como forma de prevenção ao uso de drogas. Em relação ao envolvimento de usuários de drogas ilícitas com o tráfico de drogas, a pesquisa indicou que "quanto mais viciadora é a droga, menos ela é consumida por sujeitos envolvidos com o tráfico: dos que já experimentaram maconha, 37,5% se envolveram com o tráfico, número que decaiu para 31,3% no caso do uso da cocaína e para 9,7% no uso do crack. Estes indicadores devem apontar caminhos importantes para a construção de políticas públicas, programas, projetos e ações que possibilitem a construção de uma cultura de paz e direitos humanos para adolescentes e jovens em idade escolar. CONSIDERAÇÕES FINAIS Uma vez que as violências apuradas no ambiente escolar têm causas diversas, é importante orquestrar um conjunto de políticas públicas, programas, projetos e ações que garantam um clima escolar favorável ao desenvolvimento das atividades escolares e possibilitem o fortalecimento (resiliência) dos estudantes e profissionais da educação para lidarem com os conflitos, de modo positivo, onde quer que eles se apresentem. Levando-se em consideração a discussão anterior e experiências exitosas encontradas nas escolas da Rede Municipal de Educação de Belo Horizonte, pontuaremos, a seguir, algumas recomendações para a prevenção das violências e do uso de drogas em meio escolar: A escola deve investir na formação da comunidade escolar, conforme as diretrizes dos Parâmetros Curriculares Nacionais, que indicam que temas como violências e drogas devem se constituir em conteúdos transversais, ornando-se compromisso de professores, coordenações pedagógicas e direções. Se o medo é fator importante na instalação do clima de insegurança também em meio escolar, há que se investir em práticas que sejam integradoras, que formem coletivos comprometidos com a finalidade da instituição escolar. Esta é uma importante função da direção da escola que tem o papel de facilitar a discussão, motivar a busca de múltiplas estratégias e imprimir visibilidade às ações planejadas. Estratégias importantes para a redução de violências em meio escolar, incluindo a temática do uso e/ou tráfico de drogas, é dar visibilidade aos atos violentos que ocorreram, encaminhando-os às autoridades competentes quando se tratar de atos infracionais, e, tão importante quanto, se deve romper com a prática e o discurso de vitimização. A escola deve instituir, através de Regimento Escolar coletivamente construído, normas claras e coerentes que regulem o convívio escolar, garantam o direito a ter direitos, e instituam mecanismos de garantia ao contraditório para os momentos de conflitos. Comunidade escolar, especialmente direção e corpo docente, devem estar atentos às situações que lhes permitam identificar os fatores de risco nos quais os estudantes possam estar inseridos para criar e implementar ações de proteção. A escola deve instituir um discurso que forneça subsídios aos adolescentes e jovens para o desenvolvimento de habilidades que possibilitem compreender suas motivações subjetivas e sociais para práticas violentas ou para o uso das drogas, bem como para que desenvolvam uma postura positiva diante da vida. Instituir canais que possibilitem a participação das famílias nas atividades escolares de seus filhos: Fó- runs de pais, colegiado escolar, assembléias escolares; encontros periódicos com professores, coordenação pedagógica, direção escolar, dentre outros, são ações de sucesso apontadas por escolas inovadoras. Instituir instrumentos que possibilitem a prática da escuta dos adolescentes e jovens que têm na escola o lugar que lhes garante o uso da palavra e lhes ensinam a prática da escuta. Implementar programas que garantam a participação da comunidade no espaço escolar, especialmente em finais de semana, quando a rotina dos rituais formais da escola podem ser flexibilizados e a comunidade poderá, através do lazer, da cultura e da convivência, adentrar ao espaço da escola, seus saberes e conhecimentos locais; Utilizar-se da metodologia de construção de redes, a fim de se constituirem redes de proteção locais, que garantam a construção da cultura de paz e de ambientes saudáveis à garantia da dignidade humana. A instituição de programas, projetos e ações no campo da formação para a cidadania, de educação integral é garantia de espaços abertos à educação informal e aos direitos humanos, além de ampliar tempos e saberes através de diferentes percursos pedagógicos. Investir na formação dos diferentes profissionais da escola, possibilitando uma educação permanente, voltada para a formação de múltiplos olhares, é caminho seguro para a prevenção e segurança dos estudantes e de toda a comunidade escolar. O investimento em tecnologias de segurança, associadas às indicações anteriores, podem contribuir para se ter ambientes escolares mais seguros, onde seja possível educar para a cidadania, garantida através da conquista e reconquista dos direitos humanos. Em todos os momentos, a escola deverá agir dentro dos limites de sua função social, e contar com as demais instituições que também têm responsabilidades em tratar da prevenção às violências, algumas das quais com poder de responsabilização. Uma vez que a escola sozinha não tem condições de implantar e executar todas estas ações, elas devem ser monitoradas pelo sistema de educação, que investirá recursos e tecnologias que as garantam. Por fim, é a correlação entre cidadania e violência que determina em que medida os objetivos maiores do convívio social e a realização do potencial de cada um, o bem-estar dos integrantes da sociedade se faz garantir. Por isso, a ação mais eficiente para a prevenção da violência e das drogas na sociedade e em meio escolar é a ampliação da cidadania como direitos de todos REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABRAMOVAY, Mirian; RUA, Maria das Graças. Violências nas escolas. Brasília: UNESCO, Instituto Ayrton Senna, UNAIDS, Banco Mundial, USAID, Fundação Ford, CONSED, UNDIME. Brasília: Edições UNESCO, 2002. ABRAMOVAY ,Miriam; CASTRO, Mary Garcia. Drogas nas escolas: versão resumida. Brasília: UNESCO, Rede Pitágoras. Brasília: Edições UNESCO, 2005. CASTRO, Bernardo Monteiro de; LIBÓRIO, Renata Maria Coimbra. Risco e resiliência entre adolescentes e jovens de escolas públicas de Belo Horizonte. Curitiba: Editora CRV, 2010. CUNHA, Marcela Brandão; COSTA, Márcio da. O clima escolar de escolas de alto e baixo prestígio. In: CONGRESSO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM EDUCAÇÃO, 2009, Caxambu. Anais... Caxambu: Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd), 2009. Disponível em: <http:// www.anped.org.br/reunioes/32ra/arquivos/trabalhos/GT14-5645--Int.pdf>. Acesso em 10 set. 2011. GOFFMAN, Erving. Comportamento em lugares públicos: notas sobre a organização social dos ajuntamentos / Erving Goffam: tradução de Fábio Rodrigues Ribeiro da Silva. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010. MARQUES, Eduardo. Redes sociais, segregação e pobreza em São Paulo. São Paulo: Editora UNESP; Centro de Estudos da Metrópole. São Paulo: Editora UNESP, 2010. XIAOPING, Wang. A segunda declaração: o próximo passo da evolução e o futuro da humanidade. Tradução Lúcia Helena Seixas. São Paulo: Cultrix, 2011. Abstract The present text has the aim to present the school violence problem and its relation to the school environment, the educational spaces, the inter personal relationships and the public politics to its combat. PENSAR BH/POLÍTICA SOCIAL NOVEMBRO DE 2011 19 Especial/Não às drogas Políticas públicas sobre álcool e outras drogas: reflexos na formação dos profissionais da saúde ALDA MARTINS GONÇALVES e AMANDA MÁRCIA DOS SANTOS REINALDO* O uso abusivo de drogas é um fenômeno que afeta a todas as classes sociais atingindo a sociedade como um todo e exigindo políticas públicas e modalidades de intervenção rápidas e eficientes, humanas e acolhedoras para os usuários e suas famílias. Neste artigo, apresenta-se uma série histórica de políticas públicas sobre álcool e outras drogas, adotadas no Brasil, nos últimos anos, com o objetivo de discutir e analisar a sua importância para a formação de profissionais da saúde. Faz considerações sobre a importância de políticas públicas sobre álcool e outras drogas sintonizadas com a formação dos profissionais de saúde. O uso de drogas é um fato tão antigo quanto a própria humanidade e o seu consumo deve ser encarado como uma manifestação cultural e humana, afirma Gonçalves (2002). A história do uso de drogas em épocas, culturas e sociedades diferentes revela que o ser humano tem buscado nas drogas não só a obtenção do prazer, mas, também, a modificação intencional do estado de consciência (Seidl, Costa, 2000). As drogas fazem parte dos usos, hábitos e costumes de diversas culturas e transitam no imaginário social, fazendo parte de magias, rituais de prazer e até sanções que constituem os controles sociais informais (Bizzoto, 1998). No entanto, a vinculação a valores sociais nem sempre é consensual, pois O Consultório de rua é uma importante ação da Prefeitura no campo da saúde pública o próprio conceito de droga sofre alterações de acordo com momentos e contextos históricos diferentes, o que leva à necessidade de políticas públicas concernentes aos contextos sociais, políticos, econômicos e culturais complexos e dinâmicos. O uso indevido de drogas tem sido tratado, na atualidade, como questão de saúde pública e como um problema de ordem internacional que afeta povos e nações. Seus efeitos negativos afetam as pessoas no âmbito da vida pessoal e coletiva, nos espaços micro e macro regional atingindo a estabilidade das estruturas privadas e públicas, ameaçando valores políticos, econômicos, humanos e culturais dos Estados e sociedades (Gonçalves, 2002). *Professoras da Escola de Enfermagem da UFMG - doutoras na área de Saúde Mental. 20 PENSAR/BH POLÍTICA SOCIAL - NOVEMBRO DE 2011 O objetivo deste artigo é discutir políticas públicas sobre álcool e outras drogas e analisar a sua importância para a formação de profissionais da saúde. ASPECTOS HISTÓRICOS E EPIDEMIOLÓGICOS O consumo de álcool e de outras drogas cresce, em larga escala, em todos os países do mundo. A Organização Mundial de Saúde (WHO, 2002) aponta que cerca de 10% das populações dos centros urbanos de todo mundo consomem abusivamente substâncias psicoativas. Esse dado independe da idade, sexo, nível de instrução e poder aquisitivo, o que sinaliza um fenômeno de ordem mun- dial e que, portanto deve ser observado com atenção em relação ao seu crescimento e comportamento na sociedade. Esse fenômeno afeta a todas as chamadas classes sociais, atingindo a sociedade como um todo e exigindo políticas públicas e modalidades de intervenção rápidas e eficientes, mas também humanas e acolhedoras para as famílias afetadas pelo problema, sem, contudo, atribuir culpa ao usuário. De forma direta ou indireta, o consumo excessivo de drogas contribui para o crescimento dos gastos com tratamento médico e internação hospitalar, para o aumento de índices de acidentes de trabalho, de acidentes de trânsito, de violência urbana, de mortes prematuras e, ainda, para a queda de produtividade dos trabalhadores. Afeta homens e mulheres, de todos os grupos raciais e étnicos, pobres e ricos, jovens, adultos e idosos, pessoas com ou sem instrução, profissionais especializados ou sem qualificação. Contribui para o aparecimento de depressão e distúrbios de comportamento associados à dependência ou ao abuso de álcool e outras drogas, comportamento de risco no âmbito sexual e, consequentemente, aumento dos casos de AIDS e outras doenças, dependendo da via de administração da droga (Carlini et al. 2002). Em 2005, o Centro Brasileiro de Informação sobre Drogas Psicotrópicas realizou o II Levantamento Domiciliar sobre o uso de drogas psicotrópicas no Brasil, um estudo envolvendo as 108 maiores cidades do País, com o objetivo de estimar a prevalência do uso de drogas psicotrópicas, lícitas e ilícitas, além de esteróides anabolizantes. Em relação à prevalência do uso de qualquer droga psicotrópica, houve bastante variação, tanto em relação ao sexo como à faixa etária estudada. Verificou-se que 22,8% dos entrevistados haviam usado algum tipo de droga, pelo menos uma vez na vida, o que corresponde a uma população estimada de aproximadamente 11.603.000 pessoas. Embora o crack cause maior impacto sobre a vida do usuário que se torna dependente desta droga, o uso diário de álcool, maconha e cocaína foi considerado um risco grave à quase totalidade da amostra, independente do sexo, da faixa etária e da região geográfica. O uso de drogas não atinge de maneira uniforme a população e sua distribuição é distinta nas diferentes regiões do País. Quanto ao padrão de consumo, vias de utilização e escolha do produto há diferenças em uma mesma região, o que, por si só, se apresenta como um desafio para o setor saúde. POLÍTICAS PÚBLICAS Políticas públicas no campo da assistência a usuários de álcool e outras drogas vem ganhando importância cada vez maior, acompanhando a tendência de aumento do consumo e dos consequentes problemas que afetam a população. A reorientação da política de saúde mental e da atenção psiquiátrica em direção à atenção primária, juntamente com outras diretrizes na Reforma Psiquiátrica em curso, foi uma estratégia fundamental para se alcançar o propósito de estender os benefícios de ações em saúde mental a toda a população que deles necessite, incluindo os usuários de álcool e outras drogas. A partir da reformulação político-jurídica e assistencial promovida pela Reforma, fica patente a necessidade de estreitamento de laços entre os dispositivos de saúde, favorecendo estratégias de ação em rede que visem à prevenção e ao tratamento do uso abusivo e da dependência de substâncias psicoativas. (Brasil, 2001a). Trata-se de um momento histórico, onde se observa um esforço concentrado das agências públicas no sentido de elaboração de políticas capazes de dar respostas mais condizentes com as necessidades reais da população e com os princípios de uma atenção psicossocial integral, interdisciplinar e comunitária. As atuais mudanças favoreceram a criação de serviços e a proposição de ações mais eficientes e coerentes com o desenvolvimento de uma rede de atenção básica, porta de entrada prioritária para o Sistema Único de Saúde (SUS), sem, no entan- to, prescindir de outros dispositivos específicos e especializados de saúde mental de modo a potencializar os recursos existentes na rede de saúde e no território onde vivem as pessoas. Dispositivos estratégicos desta rede são os Centros de Atenção Psicossocial para Atendimentos de pacientes com dependência ou uso prejudicial de álcool e outras drogas (CAPS - Ad), implantados em grandes regiões (Brasil, 2003). A criação, ampliação ou resignificação de dispositivos para abordagem de problemas relacionados ao álcool e outras drogas que auxiliem na conformação e no estabelecimento dessa rede, que se quer complexa, múltipla, democrática e territorial, demonstra a preocupação das políticas de saúde com o fenômeno das drogas, em especial com o emergente problema da expansão do crack. Ações importantes passam a ter destaque na implementação de dispositivos comunitários nos estados e municípios, sendo incentivadas as iniciativas no âmbito da atenção primária, articulada com as redes de suporte social, de que é exemplo a implementação de assistência de urgência e emergência nos hospitais gerais que possibilitem o suporte e retaguarda aos usuários de álcool e outras drogas atendidos na rede (Brasil, 2005). Importante passo no sentido da remodelagem das ações de saúde para a área álcool e drogas foi a Portaria 2.197/GM de 14 de outubro de 2004, que redefiniu e ampliou a atenção integral para usuários de álcool e outras drogas, no âmbito do SUS. A Política do Ministério da Saúde para a atenção Integral a Usuários de Álcool e outras Drogas, por sua vez, reforça que ações de caráter terapêutico, preventivo, educativo e reabilitador, direcionadas a pessoas que fazem uso de substância psicoativa, devem ser realizadas na comunidade, por meio dos dispositivos de atenção primária (Brasil, 2004; Brasil, 2003). Exemplos de ações nessa direção foi a criação dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família - Modalidade 3, com prioridade para usuários PENSAR BH/POLÍTICA SOCIAL NOVEMBRO DE 2011 21 As equipes dos Consultórios de Rua, em Belo Horizonte, realizam serviços extra-hospitalares para a população afetada, articulada à rede de atenção psicossocial de crack, álcool e outras drogas; o Plano Emergencial do Acesso ao Tratamento e Prevenção em Álcool e outras Drogas no Sistema Único de Saúde (2009-2011); o Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e outras Drogas - todos em conformidade com a Política do Ministério da Saúde para a Atenção Integral a Usuários de Álcool e outras Drogas, em vigor desde 2004. (Brasil, 2010a; Brasil, 2009, Brasil, 2010b). PLANO EMERGENCIAL As ações do Plano Emergencial de ampliação do acesso ao tratamento e prevenção em Álcool e outras Drogas (PEAD), estabelecido pelo Ministério da Saúde em Maio de 2009, se orientam pelas seguintes diretrizes gerais: direito ao tratamento; redução da lacuna assistencial; respeito e promoção dos direitos humanos e da inclusão social; enfrentamento do estigma; garantia de acesso a um tratamento de eficácia comprovada; reconhecimento dos determinantes sociais de vulnerabilidade, risco e padrões de consumo; garantia do cuidado em rede, no território, e de atenção de base comunitária; priorização de ações para crianças, adolescentes e jovens em situações de vulnerabilidade; enfoque intersetorial; qualificação das redes de saúde; adoção da estratégia de redução de danos (Brasil, 2009). Pensando nessas ações é importante nos reportarmos, também, à Norma Operacional da Assistência à Saúde, 01/2001, editada pelo Ministério da Saúde, que determina que o cidadão deva ter acesso, em terri- tório o mais próximo possível de sua residência, "a um conjunto de ações e serviços vinculados às responsabilidades mínimas, entre os quais o tratamento dos distúrbios mentais e psicossociais mais freqüentes" (Brasil, 2001). O Programa Nacional de Atenção Comunitária Integrada aos Usuários de Álcool e outras Drogas propõe um novo olhar frente à diversidade sócio-demográfica da população e da variação da incidência de transtornos causados pelo uso abusivo ou pela dependência de álcool e outras drogas. O programa organiza ações de promoção, prevenção e proteção à saúde e educação das pessoas que fazem uso dessas substâncias. Estabelece, ainda, uma rede estratégica de serviços extra-hospitalares para a população afetada, articulada à rede de atenção psicossocial e fundada na abordagem de redução de danos (Brasil, 2002). A configuração dos dispositivos existentes e a cobertura do território ainda é mal conhecida. Também em termos de formação para a atuação na área, encontramos uma enorme fragmentação, quando não um verdadeiro vácuo, no conteúdo dos cursos de graduação em saúde, responsáveis por formar os profissionais para a rede. Algumas boas experiências, de que se tem conhecimento (Pillon, 2003; Barros, Pillon, 2007) poderiam ser mais divulgadas e suas práticas compartilhadas com setores acadêmicos e de serviço em processos menos desenvolvidos, tanto em conteúdos formais quanto em práticas acadêmicas extensionistas e comunitárias. 22 PENSAR/BH POLÍTICA SOCIAL - NOVEMBRO DE 2011 Outra iniciativa importante do Ministério da Saúde e da Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (SENAD) foi o lançamento de editais para o Programa Ensino e Trabalho (PETSaúde Mental), em 2010, e para projeto de implantação de centros regionais de referência para formação permanente dos profissionais que atuam nas redes de atenção integral à saúde e de assistência social com usuários de crack e outras drogas e seus familiares. O PET- Saúde Mental vem permitindo às escolas participantes, desenvolver ensino articulado aos serviços, com bases práticas, contribuindo para mudanças significativas na formação dos profissionais dos serviços e dos alunos, como as que vem ocorrendo em parceria com a Secretaria Municipal de Saúde de Belo Horizonte. FORMAÇÃO PROFISSIONAL Os centros regionais de referência para formação permanente dos profissionais, em implantação em todo o País, vêm possibilitando iniciar e consolidar parcerias entre serviços e universidades com vista à expansão das redes de atenção integral à saúde e de assistência social com usuários de crack e outras drogas e seus familiares. Profissionais preparados para oferecer práticas transformadoras efetivas, com competência técnica, compromisso social e capacidade para o cuidado ao usuário de álcool e outras drogas, ainda estão pouco disponíveis no mercado de trabalho (Gonçalves, 2002). A formação de profissionais na área da saúde ainda não está em acordo com as necessidades da população, pouco tem articulado a educação e saúde, promoção, prevenção e reabilitação. As instituições formadoras de profissionais da área da saúde necessitam uma reorganização dos conteúdos teóricos e das práticas, incorporando criativamente os avanços técnico-científicos às bases teóricas e empíricas de cada contexto, social, cultural, em particular, e epidemiológico. Para operacionalizar essas mudanças, Gonçalves (2002), aponta que a for- mação de profissionais deve pautarse em experiências baseadas na interdisciplinaridade, fundamental para as trocas de saberes e práticas que não aprisionam o processo de trabalho em estruturas rígidas. Ao contrário, valoriza o potencial criativo e as competências de cada integrante da equipe. A educação formal sobre o uso de drogas e suas consequências apresenta limitações (Pillon, 2003). Para oferecer serviços com qualidade e compatíveis com a realidade, o profissional de saúde deve estar preparado para atender às mudanças geradas nas necessidades de saúde. CONSIDERAÇÕES FINAIS As Políticas públicas sobre álcool e outras drogas vêm buscando se adaptar à nova realidade e, entre outros pontos, sinalizam para a necessidade de repensar as terapêuticas empregadas, a forma de abordagem e tratamento e o modo de ver o usuário de substâncias psicoativas. Isso passa pela reformulação da educação e da formação dos profissionais de saúde. Como se trata de políticas públicas em fase de implantação, considera-se importante a sua divulgação e discussão, buscando não os consensos, mas, sim, o debate que contribua para a produção de conhecimentos pertinentes e afinados com essas políticas São necessárias políticas públicas coesas, que garantam o acesso a serviços de atenção aos usuários de álcool e outras drogas, e que ofereçam educação, treinamento e capacitação para profissionais de saúde sobre abordagem interdisciplinar capaz de avanços no sentido de encontrar referências abrangentes e compreensivas. Tal abordagem deve possibilitar o entendimento da complexidade dos problemas relacionados ao consumo abusivo de drogas. Desta forma, abrangendo o contexto socioeconômico e cultural na realidade concreta do usuário, buscando a superação dos discursos teóricos e ideológicos dominantes. A abordagem sobre o abuso de drogas não deve ter o propósito simplista de procurar culpados. Ao contrário, devem ser buscados suportes mútuos e cooperação entre escola, família, polícia, usuários, comunidade e todas as áreas das ciências da saúde, no sentido de diminuir a oferta e a demanda Abstract Drug abuse is a phenomenon that affects all social classes reaching society as a whole and demanding public policies and faster, efficient, humane and friendly intervention arrangements to drug users and their families. In this paper, we present a series of historic public policies on alcohol and other drugs, adopted in Brazil in recent years, aiming to discuss and analyze their importance to the training of health professionals. It also presents considerations about the public policies importance on alcohol and other drugs in tune with the health professionals training. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BIZZOTO, A.G. Prevenção que inculca o mal estar. In: Saídas para a toxicomania: jornada de trabalho do centro mineiro de toxicomania, 11, 1998, Belo Horizonte. Anais... 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Reducing Risks, promoting healthy life. The World Health Report. Geneva, 2002. PENSAR BH/POLÍTICA SOCIAL NOVEMBRO DE 2011 23 O Co l seus etivo Fam ília d integ grup e r o f o antes se Rua, co rmad mo o acre d efine di s o d a s tam na e p o r a m m, “é um s i s m g ê o anife ncia urba da c s q u e st n ultur na p as. Para a ç õ e s ae ta ro a do S moção d nto, trab r t í s t i c a a s k a cu lha fo pres ate em s l erva eus tura Hip cado m n H força do a oldes op e de v presente persona originais s na ida d lidad , e rua, arte aque co e no e a l D e e tidianam es que estilo re e e ( m e s J u n i n nte.” Os spiram a Bum DJs tres R Valen B tim, d e c e r i e p , o s oger Thia prod go M m ô n i a s ) M C s u onge jorna tor cultur PDR al li e o gru sta Ludm Rafael L Ozléo, o a p i 2 0 0 7 o que s la Ribeir cerda e urgiu a o int c o e mo dese em m gram n f que, volvido p r u t o d o eados d e e a Gam o lado lo “Duel t r a b a l h o de o do " e of S Fa M proje kate" tos. , são mília de Cs", seus R princ ua ipais Especial/Não às drogas Uso de drogas na adolescência: interfaces entre sistema de justiça e sistema de proteção CÍNTIA MARIA OLIVEIRA DE LUCENA* SELMARA MAMEDE S. FERREIRA** Este artigo tem como objetivo debater as relações entre o sistema de justiça e as políticas de proteção (saúde, educação e assistência social), destinadas a adolescentes em conflito com a lei, usuários de drogas, no município de Belo Horizonte. O texto parte da premissa de que a questão deve ser orientada pelo princípio da proteção integral a crianças e adolescentes, adotado pela legislação brasileira. Ao final, apresenta algumas sugestões para a formulação de políticas públicas que assegurem à criança e ao adolescente a satisfação dos seus direitos. 1- Introdução: uso abusivo de álcool e outras drogas no contexto urbano No Brasil, o uso abusivo de substâncias psicoativas tem ocupado a pauta recente de debates públicos, incitando diversos atores sociais a debruçar-se sobre a questão e construir alternativas de intervenção. As políticas propostas apresentamse como "ações de enfrentamento", direcionadas a substâncias ilícitas específicas, como é o caso do crack. A apropriação midiática e as leituras que caracterizam o fenômeno como "epidemia" têm confrontado posicionamentos diversos sobre a abordagem e tratamento da questão: de um lado, aqueles pautados nos princípios da reforma psiquiátrica, de outro, aqueles que propõem respostas segregacionistas. Sua caracterização tem associado imagens estereotipadas e, em geral, negativas, aos usuários, o que reforça sua estigmatização e isolamento em territórios urbanos segregados. Esse cenário coloca o tema na agenda e nos convoca a evidenciar as concepções norteadoras de nossas práticas, para problematizá-las, à luz do que o fenômeno nos apresenta em sua complexidade. A literatura aponta a construção histórica e social do fenômeno do uso de drogas, tanto no que diz respeito aos significados atribuídos, às suas formas de uso e funções sociais, quanto à tolerância moral e institucional a determinadas substâncias (ROMANI, 2007; MEDEIROS, 2008; MEDEIROS E SAPORI, 2010). Nesta lógica, a licitude e ilicitude do uso de drogas são também construções sociais, que conformam respostas institucionais, expressas em arcabouços normativos e políticas públicas, cujas ações dirigem-se, especialmente, àqueles que fazem uso abusivo dessas substâncias. No esteio dessas construções, o discurso médico e o discurso jurídico modalizaram interpretações e intervenções pautadas na associação do uso abusivo ao ado- ecimento ou à transgressão legal, com ênfases distintas, ora no indivíduo, ora na substância. Considerar este fenômeno como uma construção social não significa negar-lhe realidade, nem tampouco desconsiderar sua gravidade, especialmente no contexto da sociedade contemporânea. Ao contrário, reconhecer sua complexidade nos fornece relevantes subsídios para superar disputas ideológicas, que se travam no campo discursivo. O engajamento político foi fundamental para superar modelos de intervenção pautados na segregação, e propiciar atenção cidadã a pacientes psiquiátricos e usuários de substâncias psicoativas. Diante da realidade que se impõe a cada ponto da rede de atenção, seja no âmbito da saúde, seja na assistência social ou no sistema de justiça, cabe-nos ao menos a oferta da escuta e a problematização, para que as questões sejam identificadas, a demanda seja dimensionada e acolhida e as intervenções necessárias construídas. Pesquisas realizadas sobre esta temática apresentam um quadro sobre o uso de substâncias psicoativas, tanto lícitas quanto ilícitas, em diversas cidades brasileiras, na última década (CEBRID, 2001; CEBRID, 2006). Estudo realizado pelo CEBRID em 2005 apontou que maconha e solventes figuram dentre as drogas ilícitas mais utilizadas (uso na vida). Contudo, o uso de substâncias lícitas, como álcool e tabaco, prevalece dentre aqueles que relataram já ter feito uso na vida e uso recente (nos últimos 30 dias). * Promotora de Justiça da Infância e da Juventude. Especialista em Direito Sanitário, pela UNB/Ministério da Saúde. Especialista em Saúde da Criança e do Adolescente, pela Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais. **Psicóloga - Analista do Ministério Público. Especialista em Políticas Públicas para Juventude, pela PUC-MINAS. 26 PENSAR/BH POLÍTICA SOCIAL - NOVEMBRO DE 2011 Essa prevalência é observada também em pesquisas realizadas com o público adolescente (12 a 17 anos), em relação ao uso na vida. Em 2001, ano do primeiro levantamento nacional sobre uso de drogas psicotrópicas realizado pelo CEBRID, 48,3% dos entrevistados nessa faixa etária relataram ter feito uso de álcool na vida, percentual que subiu para 54,3% dos entrevistados, no segundo levantamento, feito em 2005 (CEBRID, 2006, p. 310). Embora seja de extrema importância dimensionar a incidência do uso de drogas em determinada população, com o intuito de configurar a demanda de atendimento por políticas públicas, outras abordagens de natureza compreensiva e qualitativa se fazem necessárias, a fim de identificar outras dimensões relevantes associadas ao fenômeno. Sob uma perspectiva sociocultural, estudos recentes têm abordado o fenômeno uso de drogas a partir da tríade indivíduo-substância-contexto, modelo interpretativo que permite compreender os significados atribuídos pelo sujeito à substância, bem como a rede de interações sociais estabelecida em torno do acesso e do uso de drogas. (MEDEIROS, 2008; TRAD, 2010). De acordo com Romaní (2007): (…) quando falamos de drogadependência, não falamos somente, ou principalmente, dos efeitos farmacológicos de uma - ou várias - substâncias sobre um indivíduo, e sim de um conjunto articulado (constructo sociocultural) de processos de identificação, de construção do eu, de estratégias de interação e de negociação de papéis, etc. Enfim, de todo um emaranhado dinâmico que, junto com muitos outros elementos relacionais, psicológicos e culturais, contribui para a construção do sujeito e através das quais este orienta sua existência, ainda que nestes casos seja através de conflitos básicos de sua vida. (pág. 20. Tradução das autoras). Essas redes de relações traçam um circuito pela cidade, criando territórios de sentido, nos quais usuários se encontram, passam ou se fixam, para trocas, acesso facilitado às dro- gas, bem como para usos compartilhados, geralmente em locais degradados, aos quais são atribuídas imagens sociais negativas e estigmatizadas. Esta dinâmica é observada especialmente no que diz respeito às drogas ilícitas, como o crack. As chamadas "cracolândias" representam esses espaços de concentração de usuários em torno do uso da droga (MEDEIROS, 2010). Fernandes (2000) classifica esses espaços urbanos como "territórios psicotrópicos", definindo-os como territórios simbólicos: "lugar de onde emerge e se difunde o rumor cotidiano do 'mundo da droga' (...), espaço de atualização das imagens culturais negativas das drogas". (pág. 58). Neste sentido, compreender o universo relacional e simbólico dos usuários, bem como as redes que se tecem cotidianamente no circuito de acesso e uso da droga no contexto urbano fornece elementos fundamentais para traçar intervenções que possibilitem o encontro com o usuário, com seu universo de sentidos e práticas singulares, e, a partir das possibilidades abertas por esse encontro, a redução dos agravos associados a esta condição. Embora os estudos apontem a incidência maior do uso de álcool e tabaco, há que se reconhecer a importância de compreender as implicações do uso de drogas ilícitas, como o crack, que têm se configurado como problema social, especialmente nos grandes centros urbanos. De acordo com Medeiros (2008): "O uso do crack - substância ilícita na sociedade brasileira, mais do que o álcool - coloca o paciente numa situação de risco constante, no que concerne à vulnerabilidade, às ameaças, aos lugares marginais que frequenta para a compra e o uso da droga, ao código de regras e normas estabelecidas, o modelo criminalizador da droga, ao valor simbólico atribuído, à relação com os comerciantes da referida substância e o lucro embutido na mercadoria" (pág. 108). Em estudo sobre o uso de crack, recentemente realizado em Belo Horizonte, Sapori e Medeiros (2010) ressaltam que, apesar da heterogeneidade dos usuários de crack e de formas de uso da droga, há aspectos comumente vivenciados por aqueles que fazem uso abusivo, ou seja, aqueles para os quais a droga assumiu uma posição de centralidade tal que permanecem a maior parte do tempo nos territórios de acesso à droga, em uso continuado, abandonando outros laços de trabalho, escola, família. Os recursos financeiros são consumidos para acessar a droga. Não é raro o endividamento com traficantes, com o conseqüente risco à vida, decorrente da cobrança pelas dívidas contraídas. Alguns se envolvem na prática de delitos, meio de acessar recursos para custear o uso, especialmente quando outras fontes de financiá-lo já não se tornam possíveis. A interface com o sistema de justiça é uma constante, especialmente para esses usuários. 2 - O adolescente neste cenário Como o público adolescente se insere nesse cenário? Embora não possamos inicialmente estabelecer associações causais entre uso de substâncias psicoativas lícitas e ilícitas e o cometimento de atos infracionais, dados colhidos junto a adolescentes em conflito com a lei indicam um índice significativo de concomitância dos dois fenômenos: estudo realizado pelo IPEA (SILVA e GUERESI, 2002), apontou que 85,6% dos adolescentes privados de liberdade no Brasil eram usuários de drogas antes da internação, sendo as drogas mais citadas a maconha (67,1%), o álcool (32,4%), a cocaína/crack (31,3%) e os inalantes (22,6%). Ainda que não seja especificado o tipo de uso (esporádico, continuado, abusivo), esses dados são relevantes, uma vez considerada sua associação com a entrada do adolescente no sistema socioeducativo e sua trajetória infracional. Requerem a busca de informações outras, por meio de escuta qualificada, que nos possibilitem apontar alternativas diversificadas de intervenção e assegurar tratamento àqueles que dele necessitem. Em Belo Horizonte, a implantação do Centro Integrado de Atendi- PENSAR BH/POLÍTICA SOCIAL NOVEMBRO DE 2011 27 mento ao Adolescente Autor de Ato Infracional (CIA), em 2008, concretizou arranjos administrativos e gerenciais que conferiram celeridade à apuração de atos infracionais cometidos por adolescentes e a aplicação das medidas socioeducativas e protetivas pertinentes, conforme preconiza o Estatuto da Criança e do Adolescente. Ao integrar, em uma mesma estrutura institucional, Polícia Civil, Polícia Militar, Defensoria Pública, Ministério Público, Vara Infracional, Secretaria de Estado de Defesa Social e, mais recentemente, a Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, o CIA favoreceu o desenvolvimento de ações interinstitucionais que concorrem para ampliar o acesso de adolescentes aos direitos fundamentais previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente, além de possibilitar a sistematização de dados e informações sobre a prática de atos infracionais por adolescentes em Belo Horizonte e fatores associados a essa trajetória. Em Relatório Estatístico publicado em 2011, foi constatada, entre os adolescentes atendidos no Centro Integrado, a significativa ocorrência de uso de álcool e outras drogas. De acordo com o referido Relatório, em 2010, passaram pelo CIA, 6.760 adolescentes. De 3.100 entrevistados, somente 8,3% informaram que não usam drogas. No que diz respeito ao tipo de droga utilizada, a maior incidência é de uso de álcool (73,6% dos entrevistados) e tabaco (64,5%); 66,0% reportaram consumo de maconha; 33,5%, de cocaína; 31,2%, uso de solventes; 4,9%, uso de crack e 2,2%, uso de psicofármicos. (TJMG/CIA, 2011). Mais uma vez, tomamos os dados como indicativos, que nos apontam uma associação entre uso e cometimento de atos infracionais, sem, contudo, permitir inferir qualquer relação de causalidade entre ambos. Além disso, os dados não qualificam o padrão de uso. Embora esse levantamento não nos permita tirar certas conclusões sobre o fenômeno, por outro lado, impõe-nos investigações complementares que avaliem as circunstâncias, frequência e implicações do uso de substâncias psicoativas para os adolescentes e proponham intervenções adequadas, seja de cunho preventivo, seja terapêutico. O que não podemos fazer é ignorar essa realidade, sob o precipitado argumento de que os dados retratam uma demanda superdimensionada ou "inexistente". Ao contrário, deve, pelo exercício ético imposto pela doutrina da proteção integral, colocar-nos em trabalho, de escuta e acolhimento, prioritariamente para a identificação de casos em que se configure o uso abusivo de substâncias psicoativas. No intuito de qualificar a demanda e reunir subsídios para realização de suas atribuições, o Ministério Público, por meio da Promotoria de Justiça da Infância e da Juventude, iniciou, em 2011, o acompanhamento sistemático de adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas de liberdade assistida e prestação de serviços à comunidade1 em Belo Horizonte, que apresentam histórico de uso abusivo de álcool e outras drogas. A partir de uma abordagem qualitativa, foi possível conhecer a trajetória dos adolescentes e de seus familiares pela rede, bem como identificar dimensões sobre o fenômeno, relevantes para subsidiar sua compreensão e a construção de intervenções assertivas. Destacamos, inicialmente, que o primeiro foco da intervenção foi a identificação dos casos, para, a partir de então, construir seu endereçamento implicado à rede de serviços de saúde e assistência social do Município. A reconstrução da trajetória dos casos analisados demonstrou que o adolescente é identificado pela rede em momentos críticos, os quais envolvem riscos diversos. Nessas situações, o adolescente torna-se visível, seja pelo excesso inscrito no corpo (casos de urgência clínica por situações de violência, intoxicação agu- 1 da, ou agravos clínicos diversos), seja pela transgressão à lei. Foi observado, em muitos dos casos acompanhados, o progressivo agravamento dos atos infracionais cometidos, alguns deles com a consequente aplicação de medidas restritivas de liberdade. Os atos infracionais, não raro, associam-se ao circuito de acesso a recursos de forma ilícita, justificados para compra de drogas para consumo. Alguns casos apresentam longa trajetória inscrita na rede local de atendimento - Conselhos Tutelares, serviços de proteção social básica e especial (CRAS e CREAS/PAEFI2), rede de atenção básica da saúde (PSF, Centros de Saúde e Distritos Sanitários). Uma vez identificado o uso abusivo de álcool e outras drogas, o Centro de Referência em Saúde Mental Infantil (CERSAMi), localizado na Regional Noroeste, é apresentado pela Secretaria Municipal de Saúde para referenciamento dos casos que requerem modalidades de atenção intensiva e continuada. Atualmente, o serviço referencia quatro das nove Regionais de Belo Horizonte. Observamos que os casos de uso abusivo de drogas apresentam, guardadas as especificidades, a convergência de diversos fatores de risco e vulnerabilidade, como a fragilização de laços familiares, evasão escolar, trajetória de permanência periódica ou de vida nas ruas, envolvimento em situações de ameaça de morte e conflitos violentos com agentes do tráfico de drogas, dentre outros. A relação com os espaços urbanos e a constituição de territórios de circulação e permanência foram identificadas como elementos fundamentais para a construção de estratégias de abordagem aos adolescentes usuários de drogas pelos serviços de assistência social e saúde. Ainda que de forma preliminar, a análise dos casos acompanhados, baseada nos relatos de técnicos e familiares, nos O Estatuto da Criança e do Adolescente prevê, em seu artigo 112, a aplicação das seguintes medidas socioeducativas, uma vez verificada a prática de ato infracional por adolescente: I - advertência; II - obrigação de reparar o dano; III - prestação de serviços à comunidade; IV - liberdade assistida; V- inserção em regime de semiliberdade; V - internação em estabelecimento educacional. 2 Centro de Referência da Assistência Social (CRAS); Centro de Referência Especializada de Assistência Social (CREAS); Serviço de Proteção e Atendimento Especializado a Famílias e Indivíduos (PAEFI). 28 PENSAR/BH POLÍTICA SOCIAL - NOVEMBRO DE 2011 aponta padrões de movimento dos adolescentes na cidade, associado ao acesso e uso de drogas. A circulação por territórios vizinhos ao local de moradia, neste caso, a rede de sociabilidade construída pelo adolescente, ocupa um papel fundamental no uso compartilhado da droga e no cometimento de atos infracionais, em sua maioria, associados ao tráfico de drogas. Trata-se de adolescentes que se deslocam em torno de sua vizinhança para fazer uso da droga e retornam para casa, de forma rotineira. Outro movimento observado foi a alternância entre períodos mais prolongados de permanência em territórios de uso e acesso facilitado às drogas, como, por exemplo, a Pedreira Prado Lopes, e a moradia. São adolescentes que permanecem até uma semana no local de uso, segundo os familiares, em uso continuado de drogas, e retornam para casa, para se alimentar e descansar um pouco, em seguida repetindo esse movimento. Por fim, figuram, dentre os casos acompanhados, adolescentes que associam a trajetória de vida nas ruas ao uso abusivo de álcool e outras drogas. Em geral, são adolescentes que contam com vínculos familiares fragilizados, com longo histórico de permanência nas ruas, o que acarreta a circulação periódica pelos serviços de acolhimento institucional. Considerando-se sua baixa adesão tanto aos serviços de execução de medidas socioeducativas, quanto aos serviços locais de proteção e cuidado, a identificação de pontos de escuta e referenciamento desses adolescentes na rede torna-se fundamental. São meninos e meninas atendidos em diversos momentos de sua vida, como reportado acima, por vários equipamentos e serviços. Destacamos, especialmente, o Centro de Referência de Crianças e Adolescentes (antigo Miguilim), que constitui ponto fundamental da rede municipal para o estabelecimento de laços com os adolescentes, locus privilegiado para intervenções protetivas que promovam seu encaminhamento aos serviços de tratamento. A construção do caso pelo Centro de Referência permite, ainda, reunir informações relevantes sobre as redes de intera- ções construídas pelos adolescentes e uma aproximação maior ao universo de sentidos e significações que atribuem à rua e às substâncias de que fazem uso recorrente. Favorece, assim, a apropriação da dimensão contextual do envolvimento dos adolescentes com o uso de drogas, dimensão essencial para compreender o fenômeno, além das relações indivíduo-substância. 3- Respostas Institucionais 3.1 - Princípio da prioridade absoluta Quando na Assembleia Nacional Constituinte, mediante emenda popular com mais de dois milhões de assinaturas, inscreveu-se como máxima o princípio do "superior interesse da criança", contida nos documentos internacionais, o legislador constituinte determinou que o atendimento dos interesses da infância e juventude ocorressem com absoluta prioridade (art. 227, da Constituição Federal), traduzindo-se em regra para o Estado, família e sociedade, de maneira preferencial, na formulação e execução de políticas públicas capazes de garantir às crianças e adolescentes proteção integral (isto é, a possibilidade do exercício dos direitos fundamentais da pessoa humana e, também, daqueles especiais e inerentes à condição de pessoas em peculiar fase de desenvolvimento), bem como, identicamente de forma privilegiada, destinar os recursos necessários à consecução dos programas e ações estabelecidos em favor de tal população (art. 4.º, do ECA). E é claro que, diante de um contexto de desassistência e abandono, experimentado pela grande maioria das crianças e adolescentes brasileiros, pretendia-se (e pretende-se) que o comando da Constituição Federal não permanecesse mera declaração retórica, exortação moral, singelo conselho ao administrador, fazendo surgir para o Sistema de Justiça, através dos seus Promotores de Justiça, Juízes de Direitos, Defensores, Conselheiros Tutelares, o dever constitucional de promover e assegurar a execução dos direitos e garantias de crianças e adolescentes. No campo da Saúde Mental, cha- ma a atenção a desassistência do público infantojuvenil, no que diz respeito ao tratamento ofertado para aqueles que fazem uso abusivo de drogas. Diuturnamente, a Justiça Infracional de Belo Horizonte vem procurando alternativas de enfrentamento e transformação, balizadas na Ética, nos Direitos Humanos, nas normativas do SUS, a fim de se assegurar a cidadania e recuperação da dignidade de adolescentes em situação de uso de drogas, mas com sucessos pontuais, vez que o aparato disponibilizado pela rede de saúde não está estruturado e qualificado para respostas eficientes e rápidas, capazes de abarcar as especificidades do público infantojuvenil. Ressaltamos que o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase) ordenamento normativo que orienta as intervenções socioeducativas, propõe uma intervenção articulada, sob a diretriz da atenção integral a adolescentes em conflito com a lei. Esta articulação envolve diferentes sistemas - de justiça, de garantia de direitos, de saúde, educação e assistência social - por meio de intervenções ordenadas segundo dois eixos - a responsabilização e a proteção, em consonância com a garantia dos direitos preconizados pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. No que tange à atenção ao adolescente em conflito com a lei que apresenta envolvimento com uso abusivo de álcool e outras drogas, a integração entre o sistema de justiça e o sistema de saúde se faz necessária, sem prejuízo das articulações com outros sistemas, como a assistência social, em ações coordenadas em rede. O Ministério Público tem papel fundamental na garantia de direitos e na transformação de situações críticas como essas que acometem crianças e adolescentes em uso abusivo de álcool e drogas. Além de cuidar da legalidade e dignidade dos serviços destinados ao tratamento de crianças e adolescentes drogadictos, é papel do Ministério Público, em parceria com familiares e responsáveis, assegurar todas as modalidades de tratamentos necessários à sua recuperação, articulando-se com profissi- PENSAR BH/POLÍTICA SOCIAL NOVEMBRO DE 2011 29 A Política do Ministério da Saúde para Atenção Integral a Usuários de Álcool e outras Drogas propõe ações de abordagem e tratamento focadas na articulação entre a atenção primária, serviços substitutivos e leitos de desintoxicação em hospitais gerais onais de saúde, da assistência social e da sociedade civil organizada, exigindo a formulação de políticas públicas específicas e de serviços voltados à reabilitação social, fomentando a criação de serviços substitutivos, tais como os CAPS, sem perder de vista que, para determinados casos, faz-se imperiosa a internação involuntária para desintoxicação, mediante laudo médico circunstanciado, na forma e modo do preconizado pela Lei 10.216/01. 3.2 - A municipalização de políticas públicas O Sistema Único de Saúde (SUS) foi organizado a partir da Lei Orgânica de Saúde (LOS), isto é, a Lei Federal 8.080, de 19 de setembro de 1.990, que estabeleceu, em seu art. 2.º, ser a saúde "um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu exercício". Segundo o art. 30, inciso VII, da Constituição Federal, e art. 18 da Lei 8.080/ 90, é no Município que se devem organizar as ações e serviços de saúde, com colaboração técnica e financeira da União e do respectivo Estado, cabendo a este promover a descentralização dos serviços para o Município (Lei 8.080/90, art. 17, inciso I). Portanto, a Lei 8.080/90 estabelece as regras e condições para o funcionamento do Sistema Único de Saúde em todo o território nacional, disciplinando a forma de atuação de cada esfera de governo (nacional, regional ou local) bem como a articulação das ações destas esferas entre si e com a iniciativa privada, que atua de forma complementar ao sistema público de saúde. As competências e atribuições de cada esfera de governo são explicitadas pelos artigos 15 a 19 da LOS. Pode-se perceber a ênfase à descentralização que deve ser observada pela União, em relação aos Estados e Municípios, nos termos do inciso XV do art. 16, e desses em relação a estes, nos termos do inciso I do art. 17. Por último, reza o art. 18, inciso I, da mesma lei, que ao Município cabe planejar, organizar, controlar e avaliar as ações e serviços de saúde de todo o gênero levadas a efeito em seu território, gerindo e executando os serviços públicos de saúde neste mesmo local. Mais uma vez, coloca-se que a responsabilidade pela execução dos serviços públicos de saúde, ou seja, quem presta efetivamente os serviços de saúde ao cidadão é o Município. Aliás, o controle dos prestadores de serviços de saúde e da instalação desses serviços em seu território é do Município (arts. 15, XI, 18, I e 36 da LOS). A Norma Operacional Básica/96 constitui-se num importante passo na municipalização do atendimento pelo SUS, pois busca promover e consolidar o pleno exercício, por parte do 30 PENSAR/BH POLÍTICA SOCIAL - NOVEMBRO DE 2011 poder público municipal, da função de Gestor da atenção à saúde de seus munícipes. Como se vê, as diretrizes estabelecidas na Constituição Federal/88 e na legislação infraconstitucional (LOS e NOB) nos conduz à certeza de que o Município é o primeiro responsável pelo oferecimento dos serviços de saúde à população, especialmente, no que diz respeito às crianças e adolescentes, haja vista o comando cogente inscrito no inciso I, do art. 88 da Lei 8.069/90 (ECA), que estabelece como diretriz da política de atendimento a sua municipalização. A Política Nacional sobre Drogas (BRASIL, 2005) e a Política do Ministério da Saúde para Atenção Integral a Usuários de Álcool e outras Drogas (BRASIL, 2004), pautadas pelos princípios da Lei 10.216, de 2001, propõem ações de abordagem e tratamento focadas na articulação entre a atenção primária, serviços substitutivos (CAPS) e leitos de desintoxicação em hospitais gerais, compondo uma rede diversificada de atenção no âmbito da política de saúde, com foco no território. Essas orientações normativas reconhecem, contudo, o caráter transversal deste fenômeno, dispondo sobre a construção de intervenções intersetoriais, envolvendo outras políticas, como a educação e a assistência social. Dispõem sobre a especificidade do atendimento a crianças e adolescentes, prevendo equipamentos especializados na rede de serviços substitutivos - CAPS-i, que, além da oferta de abordagens terapêuticas, devem também funcionar como ordenadores de rede na atenção aos pacientes com sofrimento mental no âmbito municipal. Considerações Finais Deparamo-nos, no município de Belo Horizonte, com uma rede de atenção especializada para crianças e adolescentes que fazem uso abusivo de álcool e outras drogas ainda em construção. Conferir visibilidade aos adolescentes que apresentam a confluência de diversos fatores de risco e vulnerabilidade, dentre eles o uso abusivo de álcool e outras drogas, tem possibilitado avaliar as propostas apresentadas até o momento e seu alcance, frente à evidenciada complexidade dos casos. Ainda que em fase preliminar, esta abordagem nos permite destacar quatro pontos que consideramos fundamentais para a construção da política municipal sobre drogas, com atenção especializada a crianças e adolescentes usuárias de álcool e drogas: 1) Oferta diversificada de modalidades de tratamento, conforme preconizam as normativas do Ministério da Saúde/SENAD, que favoreçam o acesso de crianças e adolescentes usuárias de álcool e outras drogas à abordagem terapêutica e psicossocial adequada a cada caso. Essa oferta requer a implantação de novos serviços especializados para crianças e adolescentes, ainda inexistentes no município, bem como a ampliação da rede de serviço substitutivo existente (CERSAMi), a fim de favorecer o acesso da população residente em Regionais da Cidade hoje não referenciadas pelo CERSAMi Noroeste. 2) Fortalecimento de estratégias e serviços de abordagem ao adolescente em seu território de circulação e moradia, como o Consultório de Rua e os serviços de abordagem à população com trajetória de vida nas ruas, da Assistência Social, pautados pelo estabelecimento de vínculo e pela construção conjunta com o adolescente de alternativas de proteção e redução de danos. É preciso assegurar a articulação desses serviços aos equipamentos de tratamento (serviços substitutivos especializados) e serviços de acolhimento institucional, para garantir o referenciamento e a proteção para os casos que assim o requererem, com a celeridade que a infância e a adolescência expostas a riscos requerem. 3) Criação de metodologias e ou instâncias que promovam ordenamento da rede de serviços e equipamentos, em uma perspectiva intersetorial, para atenção coordenada às crianças e adolescentes que fazem uso abusivo de álcool e outras drogas, tanto no âmbito local quanto central. 4) Articulação continuada dos serviços municipais de atenção ao adolescente com o Sistema de Justiça, especialmente para aqueles que apresentarem trajetória infracional, a fim de promover a construção de intervenções ordenadas em rede. Os pontos 3 e 4 requerem a construção de um fluxo de informações que promova a aproximação entre os trâmites judiciais e administrativos, requeridos para aplicação e implementação de medidas socioeducativas e de proteção, ao "tempo e movimento" do adolescente na rede. Dada a complexidade imposta por estes casos, observamos ser a construção dos casos em rede a metodologia que possibilita superar a fragmentação e a descontinuidade das intervenções. Permite, ainda, fortalecer pontos de escuta e vínculo com o adolescente, o que é essencial para a adesão a abordagens terapêuticas e para a redução de fatores de risco associados ao uso abusivo de álcool e drogas por esta faixa etária. A certeza é de que, interagindo articuladamente com os segmentos organizados da sociedade civil e cumprindo prioritariamente a tarefa de promoção dos direitos das crianças e adolescentes, o Poder Judiciário, o Ministério Público e a Defensoria Pública estarão colaborando decisivamente para que a Nação brasileira venha a alcançar um dos seus objetivos fundamentais: o de instalar - a partir das crianças e adolescentes uma sociedade livre, justa e solidária Abstract The present article has as main objective the analysis of the relations between the justice system and the protection policies (health, education and social assistance) aimed at transgressor adolescents and drug users in Belo Horizonte, Brazil. The study is based on the premise that the theme must be guided by the principle of full protection of children and adolescents, a principle adopted by Brazilian law. Finally, one presents some suggestions for public policy-making in order to ensure children and adolescents' rights. 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Acessado em 14 de outubro de 2011. PENSAR BH/POLÍTICA SOCIAL NOVEMBRO DE 2011 31 Especial/Não às drogas As mazelas no tratamento de crack REGINA MEDEIROS* As substâncias psicoativas se configuram na atualidade um problema social, político, econômico, de segurança e de saúde, preocupante e mobilizador de recursos variados para seu combate. No campo da saúde, especificamente, o uso dessas substâncias pode se tornar um problema, sobretudo quando se apresenta intenso e repetitivo, levando o usuário à dependência física e psicológica. Como respostas, as instituições de saúde, especialmente aquelas especializadas no tratamento de toxicomania, propõem a abstinência e a tratar o sujeito dependente de drogas descolado de seu contexto social. Com efeito, os pacientes abandonam o tratamento, provocando sentimento de impotência nos profissionais, desgastes dos usuários e seus familiares. É necessário analisar cada caso especificamente, pois a motivação do paciente para tratar da dependência pode variar de acordo com suas expectativas e percepção do uso. No Brasil, as duas últimas décadas têm se caracterizado por uma sensível deterioração da capacidade do poder público em controlar a criminalidade e a violência. O diagnóstico da situação aponta para uma nova conformação da criminalidade na sociedade brasileira. Há um maior grau de violência associada aos crimes urbanos, bem como se identifica a solidificação de atividades criminosas, cada vez mais organizadas e pautadas por uma racionalidade tipicamente empresarial. São os casos do roubo de cargas, do contrabando de armas e de mercadorias e do tráfico de drogas, especialmente o crack, que se tornou alvo das atenções sociais. Esse último e os problemas sociais, políticos, econômicos, de saúde e de segurança a ele associados, adicionado ao sensacionalismo explorado pela mídia mobilizam parcela significativa da sociedade a formular políticas públicas que visam à amenização e à solução de tais problemas. No campo da saúde, observa-se a elaboração de políticas a serem aplicadas nos âmbitos nacional, estadual e municipal, com o propósito de gerar estratégias de prevenção, tratamento, ensino e pesquisa sobre drogas.1 O uso das substâncias psicoativas pode se tornar um problema, sobretudo, quando se apresenta intenso e repetitivo, levando o usuário à dependência física e psicológica e provocando consequências sociais, políticas e de saúde pública que demandam medidas ardilosas e terapêuticas especificas. De modo geral, em nossa sociedade, as instituições propõem tratar o sujeito dependente de drogas descolado de seu contexto social. Com raríssimas exceções, os centros ou organizações dedicadas ao atendimento ao usuário de drogas analisam a realidade sociocultural em que ele está inserido, seu sistema de significados, suas expectativas e seus projetos futuros, além das redes relacionais das quais é oriundo e aquelas que decorrem do uso e/ou do abuso de drogas. Essa é, sem dúvida, uma questão lacunar frente ao enfrentamento da problemática gerada pelo uso de drogas. Com efeito, os pacientes não criam laços com as instituições de saúde, abandonam o tratamento, e, em consequência, aumentam a sua rotatividade nas referidas instituições, formando um circuito perverso de (re)internações em hospitais psiquiátricos e demais unidades de tratamento, desgastando não só os usuários de drogas, mas seus familiares e a equipe terapêutica que lida com sentimento de impotência diante dessa situação. Por outra parte, via de regra, o que se observa é que as equipes que prestam assistência ao usuário de substâncias psicoativas propõem como fim do tratamento ou sucesso terapêutico, a abstinência - o rompimento definitivo com a droga desatada de uma análise e conside- *Professora do Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais da PUC Minas. 1 Vale ressaltar que, em seu conjunto, as medidas adotadas nos três níveis federativos, criadas para minimizar problemas relacionados ao uso de substâncias psicoativas, especialmente ao uso compulsivo - a criação dos Centros de Atenção Psicossocial para usuários de álcool e outras drogas (CAPSad) expressa parte do conteúdo dessas políticas e dos fins previstos por elas - esbarram, ainda, em dificuldades que ampliam exponencialmente os problemas concernentes aos usuários e à própria sociedade: o preconceito social reproduzido pelos mecanismos de comunicação de massa, que enfocam deliberadamente o uso das drogas relacionado à violência, à pobreza, a determinados grupos étnicos e aos estratos menos abastados da sociedade, procedentes das áreas urbanas periféricas, somam-se aos aspectos histórico-axiológicos que redundam na estigmatização e, consequentemente, na demarcação de "zonas" de perigo, sejam elas territórios, grupos de pessoas, famílias, usuários, etc. Cf. Velho; Alvito, 2000; Pereira et al, 2000; Baptista et al, 2003. 32 PENSAR/BH POLÍTICA SOCIAL - NOVEMBRO DE 2011 ração de seu contexto social. Baseada nessa premissa, esboçam-se programas terapêuticos homogêneos que acabam por atender à demanda do paciente, ou seja, minimizam-se os efeitos deletérios provocados pelo crack. O desafio no tratamento do crack A clínica das toxicomanias lida constantemente com a questão da alta dos pacientes que, em geral, não concluem seu projeto terapêutico idealizado pela equipe de profissionais. Alguns abandonam, outros fogem e outros forçam a família a se responsabilizar por sua saída. Esse quadro é ainda mais grave quando a substância escolhida para uso é o crack. Podese afirmar que, raramente, um paciente usuário de crack consegue concluir seu ciclo terapêutico. Essa situação é assunto de reuniões clínicas e tema de debates em eventos científicos, e é motivadora do sentimento de insucesso da equipe e dos gestores. Se a questão for tomada pela ótica da alta por cura (baseada no critério de abstinência), é possível assegurar que não há cura, ou é provável que a abstinência seja um engodo. Em geral, a busca por tratamento ocorre quando o uso de drogas é considerado um problema para o próprio paciente, para seus familiares ou para profissionais que acompanham sua trajetória, como, por exemplo, nos locais de trabalho, por cometimento de delito, ou por outros profissionais que atuam, sobretudo, em instituições de saúde. Esses casos são denominados dependência de drogas, que Romaní descreve como "la organización de la vida cotidiana de un individuo alrededor del consumo compulsivo de determinadas drogas” (1999, p. 43). A dependência pode ser entendida como a dedicação exclusiva do sujeito à substância utilizada, estabelecendo-se uma relação intensa e de fidelidade com a mesma. Seu cotidiano, suas relações e seus interesses perpassam pela substância e por tudo o que implica o uso da droga, como o dinheiro para comprá-la, o ritual de aquisição, as barreiras legais existentes, os companheiros, o local de uso, o efeito e o recomeço do processo, construindo, assim, um círculo vicioso a partir do ato compulsivo e descontrolado. No campo das toxicomanias, e no caso específico do crack, o motivador para a busca de tratamento está inscrito na perda dos laços sociais, na carência alimentar e de sono, nos problemas relacionados com a justiça e com traficantes e nos incômodos clínicos variados decorrentes da cocaína mesclada com solventes. Então, para o paciente, a cura, ou o sucesso terapêutico, está associada à extinção desses incômodos e sintomas que perpassam por sua relação fiel e prazerosa com a referida substância. Assim, é possível afirmar que o usuário quer se ver livre dos sintomas, e não da droga. A forma como o indivíduo significa o uso de drogas e seu efeito é decisiva na busca de ajuda e na percepção sobre as instituições de tratamento. Se o uso, compulsivo ou não, é prazeroso para o usuário, ele não quer abrir mão da sensação de deleite. Então, a procura por tratamento, que fixa a abstinência, não é espontânea. Ao contrário, a cura dessa "enfermidade", na perspectiva dos profissionais, está associada à capacidade de o paciente abdicar, ainda que provisoriamente, do uso da substância que lhe dá prazer (MOTA, 2009). A expectativa da abstinência é ancorada no protocolo terapêutico, a priori definido com base no modelo biomédico, que, embora seja comprovadamente controverso, ganha força nos planos jurídico, médico e religioso. Nessa perspectiva, vale indagar o que é curar da dependência? É notório que a demanda do paciente não está na ordem da abstinência, e sim na normalização do uso, o que quer dizer o uso controlado e contínuo da substância que lhe dá prazer, sem os desagradáveis efeitos que importunam sua vida. Por outra parte, guiados pela fixação na abstinência, os profissionais não acreditam nessa possibilidade. Nesse descompasso, quando o paciente depara com o alívio inicial do mal-estar e sente-se livre desses percalços, retorna ao seu cotidiano. Essa decisão é individual e dispensa a opinião especialmente daquele que acredita poder controlar seu prazer e o sentido particular que ele dá ao uso de crack. Nesse contexto, o paciente não interrompe o tratamento, como afirmam os profissionais e os gestores de saúde. O que ocorre, é uma interpretação deformada do especialista ou um desacerto entre as propostas dos dois personagens (usuário e profissional) envolvidos no processo terapêutico que acaba por incidir sobre a clínica e sobre a vida do paciente. Como saída, a tendência é demonizar a figura do usuário de crack, o "craqueiro", que desaparece das clínicas de tratamento como se fosse a fumaça do crack e que circula pelas ruas como um perigo ambulante e responsável por todas as mazelas sociais e clínicas. Ser “craqueiro” faz a diferença, ou a diferença faz o paciente dependente de crack É possível certificar, com muita segurança, que é um equívoco quase imperdoável determinar um perfil único e absoluto para o paciente de crack. Certamente, ocorre o mesmo com aqueles que utilizam outras drogas. Em geral, a opinião recorrente é que as pessoas que usam crack são procedentes de áreas periféricas das cidades, tem baixa renda, sem plano de saúde, sem vínculo empregatício e sem recursos econômicos. Esses indivíduos são os que buscam tratamento em clínicas ou hospitais públicos; assim, o registro desses casos é compulsório e público o que legitima esse perfil e contribui para imagens estereotipadas do “craqueiro” e que, para enfrentá-lo, são necessários métodos coercitivos e violentos. Os usuários de outras camadas sociais - classe média e alta - que comumente frequentam as periferias e relacionam com seus moradores para a aquisição e uso do crack e que, certamente, se necessário, recorrem às clínicas particulares, para tratamento, são amparados em nome da ética (sigilo e anonimato) e sua imagem social é protegida e embaçada. De toda forma, ainda que seja "padronizada" a maneira de visualizar o dependente de crack, é notório que a motivação e expectativa do paciente que demanda (espontaneamente ou não) assistência nas instituições de tratamento, podem variar entre: A- Usuário psicótico Trata-se do usuário que apresenta quadro psiquiátrico de psicose e faz PENSAR BH/POLÍTICA SOCIAL NOVEMBRO DE 2011 33 O usuário compulsivo faz uso descontrolado de crack uso de crack. Nesse caso, a substância pode alterar e/ou agravar seu quadro, levando a alucinações e paranoias. Em alguns momentos, e dependendo do delírio do paciente, a droga, principalmente o crack, com seu efeito de "noia", pode agravar um quadro preexistente e colocar o paciente ou as pessoas que compõem seu universo em risco. Esse é um caso que, em momentos de crise, necessita internação em hospital psiquiátrico e uso de medicação adequada para estabilizar seu quadro. Para essa situação e somente quando existe risco de auto ou heteroagressão -, está prevista a internação compulsória. Considerando-se que a internação em hospitais públicos tem prazo de, aproximadamente, 15 dias, após a alta, "na crise", o seguimento dos casos pode-se dar nos serviços substitutivos, como os CAPSad (Centro de Atenção Psicossocial álcool e drogas), os CAPS I, II, e em ambulatórios. Em qualquer situação, é fundamental manter a estabilidade do quadro psicótico para possibilitar a abordagem relacionada ao uso da substância. A atenção tem que ser redobrada, devido à vulnerabilidade do portador de sofrimento mental, que pode ser mais facilmente influenciado e/ou "usado" por traficantes e por outros tipos de usuários de drogas. Portanto, analisar seu universo e sua rede formal e informal de relações é essencial. B- "O marginal travestido de paciente" (expressão utilizada por profissional de saúde) Trata-se do indivíduo que faz uso do rótulo "craqueiro", simula um quadro de fissura e/ou abstinência para buscar/exigir a internação ou o tratamento nas instituições especializadas. Esse é um mecanismo manipulado para escapar de situações embaraçosas, como, por exemplo, fugir de traficantes ou da polícia, demandar auxílio doença, benefício previdenciário ou para se esquivar das pressões familiares. Esses usuários não aderem ao tratamento, roubam roupas ou objetos de uso pessoal de outros pacientes, agridem e ameaçam os funcionários que atuam nesses locais, além de roubar os objetos que encontram "descuidados" nas dependências das instituições. É possível que esses "usuários" facilitem a entrada de drogas nessas instituições ou se aproveitem de sua "estadia" aí para comercializar o produto entre os pacientes em tratamento. Esses casos, na maioria das vezes, contam com a conivência da família, que pode ser o transportador da mercadoria ou de outros elementos do círculo de negó- 34 PENSAR/BH POLÍTICA SOCIAL - NOVEMBRO DE 2011 cios, que fazem a intermediação entre o contexto interno e externo. Em geral, esse paciente se utiliza de diferentes dispositivos para manipular impressões (simpatia, participação, liderança) ou para marcar seu lugar de autoridade naquele espaço (ameaças, indisciplina, violência). Esse tipo de "paciente" não tem aderência ao tratamento, pois seu interesse é ter um "certificado" de doente para se afastar de situações críticas decorrentes do uso de drogas, particularmente o crack. Porém, representa risco para os funcionários, com suas constantes ameaças, e para as demais pessoas, que se encontram no local em tratamento. Nesses casos, o uso de medicação e o acompanhamento terapêutico não são recomendados e não produzem efeito eficaz. Portanto, não se trata de pessoa que deva ser encaminhada ou atendida em instituições de saúde, pois a equipe assistencial, seja de hospitais, centros de tratamento especializado, ambulatórios ou das comunidades terapêuticas, não dispõe de mecanismos adequados para tratar o "marginal travestido de paciente". Pode-se afirmar que, invariavelmente, esses são casos de transtorno de personalidade, perversão, psicopatia que não demandam nem querem tratamento, querem "usar" as estruturas de atenção para conseguir auferir ganhos diretos ou indiretos. C- Usuário compulsivo, neurótico Trata-se de usuário compulsivo, que pode fazer uso descontrolado de crack e apresenta quadro de fissura. Mostra lucidez e angústia, periódica ou não, tem capacidade para analisar o contexto em que está inserido, suas redes de relações e para reconhecer o afrouxamento ou as perdas dos laços sociais, familiares e afetivos. A dificuldade de controlar seu desejo, associada à perceptibilidade da situação, aumenta a ansiedade, a fissura e o uso desmedido, e ele busca a ajuda de familiares e amigos (que o conduzem aos centros de tratamento), o que é mais recorrente, ou apela espontaneamente para as instituições de saúde. Nesses casos, o importante é a abordagem precisa e consistente da equipe dos centros de saúde ou das comunidades terapêuticas. Evidências internacionais indicam que, para tais casos, a combinação da abordagem terapêutica, o acolhimento e o tratamento medicamentoso, especialmente para minimizar o quadro de ansiedade, trazem benefícios individuais e institucionais. Esse processo pode ser variado, construindo momentos de afastamento do convívio social como forma de tentar quebrar a certeza da impossibilidade de se controlar, seguimento do tratamento em dispositivos abertos, como os CAPS e os ambulatórios e/ou ingresso em programas de redução de danos para os momentos em que, apesar do uso continuado, o paciente possa modificar seu estilo de vida, sua relação com a droga, compreender os riscos e danos e resguardar a própria vida. Para essa particularidade de usuário, é de fundamental importância uma leitura rigorosa do contexto em que está inserido e dos dispositivos formais de que pode lançar mão para que seja desenhado um projeto possível e eficaz para o seu caso dentro e fora da instituição de tratamento. Assim, é vital uma equipe interdisciplinar para ampliar o campo de abordagem e as alternativas de intervenção. D) Usuário judiciário Trata-se dos usuários que cometeram delito relativamente grave relacionado com drogas, estão cumprindo pena em instituição judiciária e são encaminhados pelo juiz ao tratamento da toxicomania. Esse procedimento passou a ser mais frequente a partir de 2006, com a publicação da Lei n.º 11.343, especialmente a compreensão de seu artigo 26: "O usuário e o dependente de drogas que, em razão da prática de infração penal, estiverem cumprindo pena privativa de liberdade ou submetidos a medida de segurança, têm garantidos os serviços de atenção a sua saúde, definidos pelo respectivo sistema penitenciário"; do artigo 28: "Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas"; e do parágrafo 7.º: "O juiz determinará ao Poder Público que coloque à disposição do infrator, gratuitamente, estabelecimento de saúde, preferencialmente ambulatorial, para tratamento especializado." Baseado nessas prerrogativas, o membro do Poder Judiciário entende que tem legitimidade para encaminhar os indivíduos para tratamento, tanto em hospitais quanto em ambulatórios, a partir de sua compreensão do caso, e, inclusive, definir o tempo de tratamento necessário ao réu. Na maioria dos casos, o "diagnóstico" clínico feito pelo juiz não corresponde à concepção do caso pelos especialistas nos tratamentos das toxicomanias. Porém, trata-se de determinação judicial, e não de discussão do caso. Assim, os profissionais são coagidos a tratar e a considerar o "doente/paciente" encaminhado como problema de saúde pública e, como tal, prestar assistência durante o tempo deliberado pelo juiz, ainda que não seja necessário. Esse procedimento desautoriza a equipe de saúde que, além da privação da prerrogativa clínica, deve se submeter às normas jurídicas que transferem a responsabilidade de um caso judicial às instituições de saúde, caracterizando a jurisdição do tratamento das drogas. Os réus encaminhados podem corresponder ao perfil do usuário psicótico (o que é raro), ao do usuário neurótico compulsivo ou ao do marginal travestido de paciente (mais recorrente), e cada caso merece atenção particular. Os usuários encaminhados para internação, especialmente aqueles que cometeram delitos graves, têm o acompanhamento de um segurança que, em geral, permanece na porta das enfermarias, principalmente dos hospitais psiquiátricos, para prestar vigilância, provocando um clima de malestar nas pessoas que transitam pelo hospital e, de maneira especial, na equipe que atua diretamente nesses casos. Além disso, exatamente por serem mais comuns os casos de "marginais travestidos de paciente", o réu provoca inúmeros tipos de transtornos, não só para a instituição, como para os profissionais e outros pacientes ali internados. Os encaminhamentos feitos pelos juízes para tratamento das toxicomanias podem ser decorrentes da manipulação do réu, que sabe interpretar a lei e domina o saber sobre os sintomas - ansiedade, insônia, fissura - que o levam para fora da prisão, ainda que temporariamente. Conhecedor dessa possibilidade, que representa importantes ganhos secundários, como mais liberdade, aspecto menos grave ou mais suave para o seu delito e mais oportunidade de atuar (especialmente o traficante), dissimula e articula um discurso produzido com narrativas convincentes sobre sintomas de toxicomanias, argumento importante para seu encaminhamento às instituições de saúde. Afinal, estar sob a égide da saúde lhes garante mais privilégios do que a prisão. É indispensável a revisão da legislação vigente Não é arriscado afirmar que, independentemente do caso, as instituições de tratamento das toxicomanias podem funcionar como uma espécie de segurança pública, que recebe uma série de funções, explícitas ou ocultas, que reproduzem a política proibicionista absoleta e descompromissada, robustece os preconceitos em relação ao usuário de drogas e provoca medidas coativas, discriminatórias e violentas, preterindo os direitos de cidadania. O assunto drogas e, em especial, o crack, deve ser objeto de estudo e de debate público envolvendo não somente os estabelecimentos de saúde e seus profissionais, mas também outras instituições e a sociedade civil, que deve ter acesso a informações corretas e de qualidade para fazer escolhas conscientes e responsáveis, tomar medidas preventivas e de redução de danos à saúde, às relações sociais e afetivas e ao outrem e participar de movimentos em favor da vida e dos direitos do cidadão. No campo da saúde, de maneira particular, é mister inadiável debruçarse sobre o tema para desvendar e precisar os conceitos controvertidos e duvidosos, para favorecer aos especialistas avaliar com segurança as motivações para o uso e para a demanda PENSAR BH/POLÍTICA SOCIAL NOVEMBRO DE 2011 35 de tratamento, discernindo aquelas tendenciosas daquelas de terapêutica especializada e para e desobstruir os leitos hospitalares de casos de segurança pública não endereçadas às instituições de saúde e para propor medidas terapêuticas eficazes para os sujeitos que delas necessitam, minimizando, assim, a angústia profissional e o desgaste dos pacientes e familiares com a busca de soluções mágicas, inadequadas e malsucedidas. Ademais, é indispensável a revisão da legislação vigente e das propostas políticas no campo das toxicomanias, transcendendo os embates moralistas, marcados pelos fracassos evidentes e priorizando, com flexibilidade e pluriformidade, o sujeito usuário de drogas, o significado simbólico do uso de determinada substância e seu contexto social. Não em ordem hierárquica de importância, mas as políticas públicas devem cogitar e criar mecanismos de formação e apoio técnico aos profissionais e ampliar qualitativamente as equipes reduzidas para o atendimento da complexidade dessa clínica. Por fim, convém lembrar que, entre as drogas discutidas, o crack compõe o rol de substâncias que incitam variedade de interpretações complexas e elaboração de discursos articulados nos diferentes campos de conhecimento, nos relatos de experiências profissionais, vivências pessoais e na fala popular. Essas narrativas são construídas a partir da compreensão do problema, dos saberes construídos a partir dos dispositivos instrumentais, estratégias e explicações ideológicas armazenadas na trajetória de cada sujeito do discurso, portanto, eles devem ser compreendidos e interrogados considerando o lugar de quem fala. É certo que o crack, como outras substâncias psicoativas, pode levar ao consumo abusivo e, em consequência, está sujeito a intervenções simultaneamente jurídicas, políticas, normativas e morais, clínicas, religiosas, sociais e econômicas. Ainda que exista esse enredamento em torno da substância, é inegável que seu uso não pode ser compreendido fora da conjuntura sociocultural em que o sujeito que a utiliza está inserido, pois é nes- se contexto que ele organiza os elementos simbólicos e os processos de singularização que servem como mapa de orientação para sua vida, para construir e desconstruir identidades, edificar rede simbólica de proteção, de pertencimento, de solidariedade; para criar e reforçar laços culturais, experimentar e interpretar suas próprias vivências, estabelecer regras e normas e para cuidar de sua própria sobrevivência - autoatenção. Assim, é nessa trama que os sujeitos imprimem significados que subsidiam sua classificação e interpretação sobre o mundo, fazem escolhas e buscam formas de manutenção básicas para sua vida, como qualquer outro ser humano. É nesse contexto que as pessoas encontram os desafios e as saídas para os estorvos existenciais. A droga pode se transformar em marcador simbólico formidável para desenhar a passagem ambivalente do paraíso à utopia, da liberdade à armadilha da compulsão, da dependência à escravização da mercadoria e da solidão. Nessa emboscada reafirma o sistema proibicionista que se apóia em um discurso médico e jurídico para justificar a pretensa guerra contra as drogas, servindo por um lado para aumentar a violência, o lucro e a hegemonia mercantil, e por outro, para construir estereótipo do "drogado", do "craqueiro" como modelo de degeneração física e mental em situação de subalternidade, delineando, assim, uma atmosfera cultural propícia ao controle social e o domínio 36 PENSAR/BH POLÍTICA SOCIAL - NOVEMBRO DE 2011 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BAPTISTA, M.; CRUZ, M. S.; MATIAS, R. Drogas e pós-modernidade: faces de um tema proscrito. Rio de Janeiro: UERJ; Faperj, 2003. DUARTE, L. F. D.; LEAL, O. F. (Org.). Doença, sofrimento, perturbação: perspectivas etnográficas. 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Abstract The psychoactive substances are, nowadays, a health security economic political and social problem, preoccupying and that mobilizes the varied resources to its combat. In the health field, specifically speaking, the use of these substances can become a problem, mainly when it presents itself intense and repetitive, leading the user to psychological and physical dependence. As answers, the health institutions, specifically those specialized on drug addiction treatment, propose the abstinency and to treat the drug addicted away from his social context. As a result, the patients abandon the treatment, provoking the professionals impotency feeling, the users and their family exhaustion. It is necessary to analyse each case specifically, because the patient motivation to treat the dependence can vary according to their expectations and use perception. Especial/Não às drogas COMUNIDADE TERAPÊUTICA Tratamento comunitário para dependentes químicos CAROLINA COUTO DA MATA * Este artigo tem como objetivo apresentar a metodologia de tratamento das Comunidades Terapêuticas para dependentes químicos. Para tanto, a partir da proposta de De Leon (2003), discutimos brevemente algumas das características desses serviços: a concepção de doença e de recuperação que fundamenta esse modelo assistencial, os objetivos terapêuticos das atividades e a organização do programa de tratamento, no que se refere ao papel dos profissionais e dos próprios pacientes no processo de mudança. O abuso de álcool, tabaco e de outras drogas tornou-se uma das maiores preocupações da Saúde Pública no Brasil, atingindo uma parcela importante da população. Isso leva a uma preocupação crescente com o tratamento dos casos de dependên- cia química atendidos nas Comunidades Terapêuticas (CT). Segundo o Mapeamento das Instituições Governamentais e não Governamentais de Atenção às Questões Relacionadas ao Consumo de Álcool e Outras Drogas no Brasil, realizado em 2006 e 2007, pela Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad), dos 1.642 questionários validados, 1.256 se referem às atividades ligadas ao tratamento, recuperação e reinserção social. A maioria das instituições de tratamento brasileiras é definida por seus dirigentes como comunidades terapêuticas. Das 1.256 instituições de tratamento, 483, ou 38,5% da amostra, classificam-se nessa categoria. Em seguida, aparecem os Centros de Atenção Psicossocial de Álcool e Drogas (CAPSad), com 153 (12,2%); e os grupos de autoajuda, com 124 (9,9%). (SENAD, 2007). As Comunidades Terapêuticas para dependentes químicos têm sido normatizadas, desde 2001, por meio da determinação de exigências mínimas para a assistência prestada, de acordo com Resolução da Diretoria Colegiada - RDC n.º 101, em 30 de maio de 2001, da Agência de Vigilância Sanitária (Anvisa). Recentemente, a RDC 101 foi revogada e substituída pela RDC n°. 29, de 30 de junho de 20111. Na RDC 101, as CT são definidas como "Serviços de atenção a pessoas com transtornos decorrentes do uso ou abuso de substâncias psicoativas (SPA), em regime de residência ou outros vínculos de um ou dois turnos, segundo modelo Psicossocial. São unidades que têm por função a oferta de um ambiente protegido, técnica e eticamente orientado, que forneça suporte e tratamento aos usuários abusivos e/ou dependentes de substâncias psicoativas, durante período estabelecido de acordo com o programa terapêutico adaptado às necessidades de cada caso. É um lugar cujo principal instrumento tera- *Coordenadora Clínica da Comunidade Terapêutica da Terra da Sobriedade. Terapeuta Ocupacional. Especialista em Atendimento Sistêmico à Família pela PUCMG. Mestre em Psicologia pela UFMG. 1 Consideramos essencial aos interessados sobre o tema Comunidade Terapêutica a discussão comparativa entre as resoluções, para compreendermos a evolução histórica da organização da gestão pública dos serviços. Porém, julgamos que esse aspecto ultrapassa os objetivos deste artigo. PENSAR BH/POLÍTICA SOCIAL NOVEMBRO DE 2011 37 pêutico é a convivência entre os pares. Oferece uma rede de ajuda no processo de recuperação das pessoas, resgatando a cidadania, buscando encontrar novas possibilidades de reabilitação física e psicológica, e de reinserção social". Quanto à organização dos serviços prestados pelas instituições, a RDC 101 e a RDC 29 determinam o oferecimento de atendimento individual e em grupo aos pacientes; atendimento aos familiares no período de tratamento; uma rotina de funcionamento com atividade física, de conscientização sobre o adoecimento, de desenvolvimento interior, de organização e manutenção do espaço físico (realizadas pelos pacientes), de qualificação educacional, profissionalizantes, dentre outras atividades de reinserção social. Determinam, ainda, que seja definido o tempo máximo de permanência voluntária do paciente na instituição, mediante avaliação diagnóstica prévia; que se respeite o credo religioso, a etnia, a ideologia, a nacionalidade, a orientação sexual, os antecedentes criminais, a situação financeira e os direitos à cidadania dos pacientes, durante o processo de admissão e permanência nos serviços; que seja oferecido um ambiente livre de substâncias psicoativas, alimentação nutritiva, cuidados de higiene, espaço físico e equipe clínica, compatível com o horário de funcionamento, com os atendimentos e as atividades terapêuticas realizadas. Portanto, as resoluções estabeleceram um marco legal e um grande avanço rumo à organização política das Comunidades Terapêuticas, que já atendiam dependentes químicos no Brasil desde a década de 1970. O modelo de atenção das Comunidades Terapêuticas Historicamente, para De Leon (2003), um renomado pesquisador norte-americano que se dedica à fundamentação do modelo assistencial das Comunidades Terapêuticas, dois grandes campos do saber científico direcionaram a proposta clínica des- sas instituições: a psiquiatria social e a dependência química. No primeiro campo, as CT, denominadas democráticas, têm sua origem no pós-guerra, na reabilitação de soldados através de grupos terapêuticos. Essa proposta foi desenvolvida por Maxwell Jones, psiquiatra do exército inglês, no Hospital Belmont (mais tarde chamado Henderson), na segunda metade da década de 1940. De Leon (2003) define essas comunidades como "unidades e instalações inovadoras destinadas ao tratamento psicológico e à guarda de pacientes psiquiátricos socialmente desviantes dentro (e fora) de ambientes hospitalares de tratamento de transtorno mentais (p.13)". Como uma alternativa ao tratamento manicomial vigente na época, o trabalho de Jones fundamentava-se nos seguintes pressupostos: "(1) na comunicação de mão dupla em todos os níveis; (2) na tomada de decisão por todos os níveis, a partir do consenso; (3) na liderança compartilhada; e (4) na aprendizagem social através das interações no 'aqui e agora' (Jones2, 1968, 1982, apud VANDEVELDE, 2004, tradução nossa3)". Outro diferencial do trabalho de Jones: cabia ao profissional ajudar o paciente a descobrir o conhecimento que ele adquiriu na experiência grupal, atuando como um facilitador no processo de aprendizagem social - ao invés de transmitir um novo conhecimento de modo professoral. No segundo campo, De Leon afirma ser a CT um "programa de tratamento residencial, baseado na comunidade, de dependentes de álcool e drogas (p.13)". Notamos que o autor ressalta a diferença entre os dois tipos de Comunidades Terapêuticas a partir da compreensão de que, no primeiro, a inovação está nas instalações físicas onde o tratamento acontece e que, no segundo, a CT é definida como um programa de tratamento, um conceito que sugere algo mais do que um espaço físico diferenciado. O autor argumenta que, cronologicamente, as CT da Psiquiatria Social antecedem - em 15 anos - aque- 2 las voltadas para a dependência química na América do Norte, mas que não é possível determinar com clareza qual a influência de uma experiência sobre a outra. Entretanto, ele considera que, gradualmente, houve uma aproximação entre os modelos e métodos da CT psiquiátrica e da CT para dependentes químicos. De Leon cita as características da Comunidade Terapêutica psiquiátrica, a partir da proposta de Maxwell Jones: (1) considera-se a organização como um todo responsável pelo resultado terapêutico; (2) a organização social é útil para criar um ambiente que maximize os efeitos terapêuticos, em vez de constituir mero apoio administrativo ao tratamento; (3) um elemento nuclear é a democratização: o ambiente social proporciona oportunidades para que os pacientes participem ativamente dos assuntos da instituição; (4) todos os relacionamentos são potencialmente terapêuticos; (5) a atmosfera qualitativa do ambiente social é terapêutica no sentido de estar fundada numa combinação equilibrada de aceitação, controle e tolerância com respeito a comportamentos disruptivos; (6) atribui-se um alto valor à comunicação; (7) o grupo se orienta para o trabalho produtivo e para o rápido retorno à sociedade; (8) usam-se técnicas educativas e a pressão do grupo para propósitos construtivos; (9) a autoridade se difunde entre os funcionários e responsáveis e os pacientes (DE LEON, 2003, p.15). Elementos básicos das Comunidades Terapêuticas Na América do Norte, em 1960 e 1970, e, posteriormente, na Europa, surgiram programas e modelos de tratamento para dependentes químicos, nos quais encontramos os elementos básicos das Comunidades Terapêuticas contemporâneas, voltadas para o atendimento dessa clientela: o Grupo Oxford; os Alcoólicos Anônimos; os modelos Minnesota e de Synanon. JONES, M.(1968) Beyond the Therapeutic Community:Social Learning and Social Psychiatry. New Haven, CT: Yale University Press e, do mesmoautor, (1982) The Process of Change. Bonston, MA:Routlegde&Kegan Paul. 3 Texto original em inglês. 38 PENSAR/BH POLÍTICA SOCIAL - NOVEMBRO DE 2011 O Grupo Oxford, uma organização religiosa evangélica luterana, fundada na segunda década do século XX, propunha a ética do trabalho, o cuidado mútuo, a orientação partilhada, e valores como honestidade, pureza, altruísmo, amor, autoexame, o reconhecimento dos defeitos de caráter, a reparação por danos causados, ideias que fundamentam os princípios das CT contemporâneas. A proposta do Grupo Oxford também influenciou a criação dos Alcoólicos Anônimos (A. A.), por Bill Wilson e Robert Smith, em 1935. O A.A. teve seu momento fundador na experiência de conversar sobre as dificuldades e vitórias ao se tentar interromper o abuso de álcool. Os Doze passos e as Doze tradições do A.A. são princípios que guiam o indivíduo no processo de recuperação, ao enfatizarem a necessidade: de admissão da perda do controle do uso da substância; da entrega desse controle a um "poder superior"; do autoexame; da reparação dos males causados a outras pessoas e do oferecimento de ajuda para que outros necessitados se empenhem em um processo semelhante (De Leon, 2003). Dois modelos de tratamento, o de Minnesota e o de Synanon, segundo Ribeiro et al. (2004), também influenciaram as CT contemporâneas para dependentes químicos. O Modelo de Minnesota se baseia em uma versão institucional do A.A. e dura de 28 dias a vários meses, dependendo de cada programa. É realizado em ambiente isolado e fechado, onde acontecem terapias de grupo, palestras, leituras e reuniões de A.A. A equipe responsável é formada por dependentes químicos que completaram os 12 passos com sucesso. Findo o tratamento intensivo, estimula-se a frequência nas salas de A.A. O Modelo Synanon foi fundado em 1958, na Califórnia, por Charles Dederich, um alcoólatra em recuperação, que mesclou sua experiência no A.A. a outras influências da Filosofia e da Psicologia (existencialismo e psicanálise). Esse programa de recuperação se baseava nos grupos de mútua ajuda do A.A. e no confronto, pois se considerava que o ataque verbal, a humilhação, a atribuição de culpa e a intimidação trariam como resultado um contato real e positivo com o meio ambiente. Além disso, propunha-se o trabalho para a recuperação e para a reinserção social. Os novatos no programa eram responsáveis por "atividades braçais e subservientes, tais como a limpeza do lixo e dos banheiros, enquanto os que progrediam iam recebendo incumbências mais complexas e administrativas (RIBEIRO et al, 2004, p. 474)". Apesar de julgar o Modelo de Synanon uma evolução em relação aos seus precursores e uma inovação no tratamento da doença 4, De Leon (2003) afirma que essa própria instituição não se considerava como um serviço de tratamento para dependentes químicos, mas como uma comunidade alternativa de ensino e vida. Ainda na década de 1960, esse modelo foi investigado por profissionais de Nova York, que implantaram, com a ajuda de ex-membros de Synanon, uma CT para dependentes químicos, chamada Daytop Village. Para Kaplan et al (2003), o rompimento, que se deu posteriormente, com a ligação ideológica que mantinham com Synanon, modificou a proposta clínica de Daytop para o tratamento e a reabilitação psiquiátrica, além da integração e inclusão social dos dependentes recuperados. Nessa nova concepção, os recuperados poderiam atuar como modelos de uma vida sem drogas e influenciar a sociedade, ao demonstrarem que a recuperação era possível, mesmo em se tratando de uma doença crônica, cuja gravidade e complexidade implicariam em possíveis recaídas. A disseminação desses serviços para dependentes químicos, com o apoio do Governo americano, resultou na criação das Comunidades Terapêuticas da América (TCA) - uma organização de programas norte-americanos de CT, em 1975 (De Leon, 2003). Desde então, os serviços estão organizados em uma Federação Mundial, subdividida em regionais, que sediam os países membros. O Brasil é membro da Federação Latino-Americana de Comunidades Terapêuticas (Flact), através da Federação Brasileira de Comunidades Terapêuticas (Febract), fundada em 16 de outubro de 1990, com sede em Campinas/SP. Existem, também, outras Federações de CT no Brasil, como a Federação de Comunidades Terapêuticas Evangélicas do Brasil (Feteb), fundada em janeiro de 1994; a Cruz Azul no Brasil; a Federação Nacional das Comunidades Terapêuticas Católicas e Instituições Afins (FNCTC); e a Federação Norte e Nordeste de Comunidades Terapêuticas (Fennote). A vida em comunidade como metodo de tratamento De Leon (2003) define a Comunidade Terapêutica como uma abordagem de autoajuda para o tratamento de dependentes químicos: os pacientes são orientados a utilizarem a comunidade para aprenderem sobre si mesmos. O termo terapêutico se refere às metas sociais e psicológicas da CT: "alterar o estilo de vida e a identidade do indivíduo (p.36)", ou seja, mudar o modo de viver, de interagir com o outro e com o mundo, de se comportar e de perceber a si mesmo no cotidiano da vida. Já o termo comunidade se refere ao método para alcançar essas mudanças, curando emocionalmente os indivíduos e educando-os no comportamento, nas atitudes e nos valores para uma vida saudável. Na proposta de autoajuda, cada indivíduo assume primordialmente a responsabilidade pela sua própria recuperação, como o principal contribuinte para a sua mudança. O tratamento5 é, portanto, posto à sua disposição, o que significa que a eficácia de todos os elementos oferecidos também depende de cada paciente. Além 4 Para Kaplan et al.(2003) Synanon era uma expressão da 'antipsiquiatria' e não da psiquiatria manicomial de sua época. De Leon (2003) considera diferenças nos termos tratamento e recuperação. O primeiro refere-se a um breve período de dedicação a mudança pessoal, como quando se reside numa CT. Já o segundo, refere-se a um processo mais longo, que pode durar uma vida. Os tratamentos, assim como outros fatores - recursos sociais, estabilidade psicológica, a família, etc - podem contribuir para a recuperação. Nessa dissertação, entretanto, esses dois termos são usados como sinônimos. 5 PENSAR BH/POLÍTICA SOCIAL NOVEMBRO DE 2011 39 Os pacientes em tratamento são considerados os "protagonistas das ações terapêuticas", ao participarem ativamente de todas as atividades propostas disso, cada um se responsabiliza pela recuperação dos demais pacientes da Comunidade, sendo modelos de comportamento, ao oferecerem apoio e estimularem a participação nas atividades diárias. Por isso, a CT está baseada na auto e na mútua ajuda. Nessas "comunidades de aprendizagem" - por fundirem as ideias de terapia e ensino - as atividades cotidianas oferecem possibilidades de autoconhecimento, de relacionamento e ensinam sobre o bem-viver. A expressão "bem-viver" refere-se aos ensinamentos que possibilitam a convivência e o funcionamento saudável da Comunidade, para que a terapêutica seja possível, que são fundamentadas em valores e crenças, como honestidade e verdade, em atos e palavras, valorização e busca conjunta do crescimento pessoal e social, autoconfiança, atenção responsável e ética do trabalho (De Leon, 2003). O uso do trabalho como recurso terapêutico é considerado um diferencial fundamental desse modelo. Nesse sentido, o trabalho dos pacientes na Comunidade tem a função de: Facilitar o intercâmbio pessoal dotado de sentido nos comportamentos, atitudes e valores de cada indivíduo que trabalha. O resultado material (serviços ou produtos resultantes do trabalho) e mesmo as capacidades desenvolvidas no processo são secundários em relação aos ganhos pretendidos em termos de evolução pessoal (De Leon, 2003, p.146). Nessa concepção, o desempenho do paciente no trabalho pode ser revelador dos seus problemas pessoais. O caráter terapêutico da atividade laborativa está na expressão e na remediação desses problemas, 'no' trabalho e 'pelo' trabalho. Portanto, essa atividade media a sociabilização e a recuperação. Ainda sobre a função do trabalho na Comunidade Terapêutica, Viana (2004, p.52) considera que essa atividade está voltada "para a vida prática, para a produção de utilidades, para a rotina doméstica e para o autocuidado" e que, por isso, a força de trabalho não é capitalizada. Nessa concepção, o caráter terapêutico do trabalho está na possibilidade de os pacientes serem ativos no preenchimento de um espaço de negociação entre as pessoas, onde se busca conciliar os direitos e os deveres, enquanto membros da CT. Os pacientes em tratamento são considerados os "protagonistas das ações terapêuticas", ao participarem ativamente de todas as atividades do cronograma proposto, decidindo e compartilhando, inclusive, a responsabilidade pela manutenção da vida em comunidade e por todas as consequências que essa convivência proporciona: Cuida de si mesmo, reorganizando-se quanto aos procedimentos mais básicos e saudáveis para seu organismo (abstinência, autocuidado, sono, higiene, exercícios físicos, alimentação adequada, 40 PENSAR/BH POLÍTICA SOCIAL - NOVEMBRO DE 2011 espiritualidade); cuida do bem comum e descobre intenções e habilidades (organização, limpeza e manutenção dos ambientes coletivos: quarto, banheiro, cozinha, casa, quintal, jardim, horta, etc) e amplia sua atuação, participando dos programas educativos, produtivos, culturais, religiosos, esportivos e de lazer, disponíveis na sede e na sociedade em geral (atividades extra-muros). Entendemos que estas não são apenas etapas, mas ações concomitantes e dinâmicas (Regimento Interno da Comunidade Terapêutica da Terra da Sobriedade, 2005, apud MATA, 2007). Nesse contexto comunitário, cada paciente pode aprender com os diferentes papéis sociais que desempenha, ao conviver numa rede social que incentiva a comunicação e que busca o equilíbrio entre a necessidade individual e a coletiva. Os profissionais também são considerados membros da CT e, portanto, devem ser modelos de comportamento, no que se refere às concepções de recuperação e 'bem viver', assim como os pacientes são uns para os outros. Atuam clinicamente como facilitadores do processo de criação comunitária de um ambiente de interação, escuta e aprendizagem através da experimentação, do envolvimento e do crescimento individual e coletivo. Como o elemento terapêutico essencial do processo de mudança é a relação entre os pacientes, ou seja, é a COMUNIDADE, o profissional tem como objetivo promover e aperfeiçoar a aliança indivíduo-comunidade e mediar o processo de construção conjunta das regras de convivência, com a participação ativa dos pacientes. Além disso, a equipe clínica administra e controla a qualidade do programa de tratamento, como autoridade última no gerenciamento clínico e comunitário dos casos e das instalações. As primeiras CT foram fundadas por dependentes químicos, ao assumirem papéis de liderança e ao administrarem alguns serviços. Pela própria experiência no tratamento, alguns se qualificaram como autoridades e guias no processo de mudança, encontrando no papel social de ajudador um caminho viável para a própria reinserção social. As CT contemporâneas, sob a influência de outros modelos de atenção e diante do aperfeiçoamento das técnicas dos profissionais de saúde, da assistência social e de outras áreas do saber, passaram a oferecer atividades dirigidas por especialistas, sejam eles ex-pacientes das próprias Comunidades ou profissionais com outras experiências de vida. Independentemente da formação, o grande desafio para os profissionais tradicionais é o de conviver com os pacientes nos mais diversos contextos, para além da proteção que encontram no setting terapêutico dos consultórios, desenvolvendo atividades no refeitório, na cozinha, na sala de estar, na lavanderia, no jardim, na horta, no cinema, no clube, na escola, na empresa, na igreja e nas praças, e neles usar a Comunidade como método. Outro diferencial desse modelo de atenção está na organização social dos pacientes, de acordo com o tempo de tratamento e na evolução clínica dos casos. Geralmente dividese o processo em fases ou estágios que refletem: a maneira como cada paciente assimila, entende, aceita, participa e valoriza as atividades da CT, as orientações recebidas e a forma como se utiliza desse aprendizado para a manutenção do próprio programa de tratamento, considerando o nível de compromisso com a proposta e de confiança que exibe, o grau de liderança e de facilitação do processo de outros pacientes e a espontaneidade do relacionamento que estabelece com a equipe clínica. Evidentemente, a determinação do tempo necessário para que o indivíduo alcance os resultados esperados tem sido um grande desafio, diante da gravidade do comprometimento biopsicosocial apresentado pelos pacientes que têm buscado ajuda nas instituições, exigindo que o projeto terapêutico e o lugar dos serviços na rede assistencial sejam reavaliados continuamente. A Comunidade Terapêutica é indicada para casos de dependência química que apresentam comprometimento grave da sáude, da vida familiar, laborativa e social, que podem se beneficiar de uma proposta de reabilitação psicossocial, quando o gerenciamento da doença já não é mais possível e nem desejado pelo próprio paciente. Por isso, propõe a abstinência como pré-requisito para que o indivíduo cuide dos diversos aspectos de sua vida que foram afetados durante o tratamento. Afinal, nesses casos, o transtorno mental e comportamental apresentado pelos pacientes não se resume àqueles envolvidos na administração do uso de substâncias psicoativas e de seus danos diretos. Há, ainda, duas condutas que precisam ser cuidadas e respeitadas para que a convivência com fins terapêuticos seja possível: a manutenção de relacionamentos fraternos entre os pacientes, evitando o direcionamento afetivo-sexual das interações; e uma atitude pacificadora na resolução de conflitos, através do diálogo, com respeito à integridade física, psicológica e moral de todos os membros da Comunidade. Evidentemente, essas condutas não são compreendidas e praticadas assim que os pacientes são admitidos nos serviços. Os membros veteranos e os profissionais responsáveis pelo tratamento precisam cuidar, continuamente, desses aspectos para garantir que a Comunidade seja terapêutica, dialogando com os pacientes e intervindo nas situações que ameaçam a segurança psicológica e a credibilidade da proposta de tratamento. Independentemente da modalidade em que são realizadas, seja ela permanência-dia ou residencial, ou se acontecem no meio urbano ou rural, todas as atividades terapêuticas propostas nesse modelo assistencial buscam cuidar da maneira como cada dependente químico administra suas próprias emoções, como interagem e se comunicam, como percebem a vida, como vivenciam a si mesmos e ao mundo, ao oferecer-lhes novas oportunidades para (re)significarem sua própria existência e para encontrarem um novo sentido para sua vida, com liberdade e criatividade REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRASIL, Resolução da Diretoria Colegiada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária n° 101, de 30 de maio de 2001. Dispõe sobre o Regulamento Técnico que contém as exigências mínimas para o funcionamento das Comunidades Terapêuticas. BRASIL, Resolução da Diretoria Colegiada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária n° 29, de 30 junho 2011. 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To do so, based on De Leon proposal (2003), we briefly discuss some of the characteristics of these services: the illness and recovery conception which underlies this assisting model, the therapeutic goals of the organization and the treatment program activities, related to the role of the professionals and patients in the changing process. PENSAR BH/POLÍTICA SOCIAL NOVEMBRO DE 2011 41 Especial/Não às drogas Novas tecnologias no tratamento de dependência química na comunidade Reviver1 LÚCIO MAURO DOS REIS* O trabalho proposto visa apresentar a trajetória das comunidades terapêuticas, em especial, o trabalho da Comunidade Reviver em Jaboticatubas/MG, que após parceria com a PUC Minas/ São Gabriel, vem desenvolvendo novas tecnologias no tratamento da dependência química. Essa parceria tem proporcionado a evolução de novas pesquisas de professores e alunos, auxiliando, assim, no tratamento de residentes de comunidades terapêuticas. O foco desses tratamentos era somente baseado na tríade "Trabalho, Disciplina e Oração", tomando como base o modelo Minnesota. Contudo, a visão acadêmica tem propiciado o surgimento de novos caminhos para o êxito do tratamento. A origem das Comunidades Terapêuticas ainda é discutida e apresenta controvérsias. Existem autores, contudo, que alegam sua existência a mais de 2000 anos, sendo que suas finalidades eram diversificadas, relacionadas principalmente a questões ligadas aos problemas psíquicos ou problemas da alma, como eram designados na antiguidade. Na Inglaterra e nos Estados Unidos, surgiu um modelo com motivação ética e espiritual, conforme De Leon (2003). Este modelo é o que permeia, atualmente, o trabalho da maioria das comunidades terapêuticas no Brasil. O Programa Terapêutico da Comunidade Reviver é realizado em três etapas O modelo de Comunidade Terapêutica, graças à sua grande flexibilidade, tem sido adotado em vários países e culturas diferentes, assim como religiões diversas. Objetivando o cumprimento dos seus princípios básicos (disciplina-oração-trabalho), os resultados obtidos são bons, o que explica a multiplicação deste modelo de tratamento. Nesse trabalho, apresentaremos a trajetória das comunidades terapêuticas e sua evolução no tocante ao tratamento. A discussão principal remonta à trajetória da Comunidade Reviver, destacando sua parceria com a PUC Minas e a adoção de um novo modelo de intervenção no tratamento da dependência química. O fomento à profissionalização do trabalho era um dos principais motivos da parceria entre a Universidade e a Comunidade Reviver. Essa aproximação possibilitou um avanço na formação dos estudantes, por meio de pesquisas e intervenções no tratamento. As pesquisas, a sistematização e a produção de conhecimento, são avanços possibilitados por esta parceria. Assim, o debate e a aplicação de novas tecnologias revelaram novas perspectivas às pessoas que buscam e/ou demandam a internação como abordagem no tratamento da dependência química. As Comunidades Terapêuticas realizam, em sua maioria, um trabalho filantrópico quase sempre praticado por leigos, religiosos ou não. Têm como objetivo recuperar farmacodependentes e alcoolistas, assim como auxiliá-los no abandono do tabagismo, em alguns casos. Visam alcançar a sua sobriedade plena e possibilitar uma reintegração com a família e com a sociedade. Conforme a definição de Maxwell Jones apud De Leon (2008): "[...] grupo de pessoas que se unem com um objetivo comum e que possui uma forte motivação para pro- *Mestre em Educação Cultura e Organizações Sociais. Especialista em dependência Química (UNIFESP). Especialista em Criminologia. Especialista em Psicopedagogia. 1 Trabalho apresentado na conclusão do curso de Especialização em Dependência Química da Universidade Federal de São Paulo. 42 PENSAR/BH POLÍTICA SOCIAL - NOVEMBRO DE 2011 PENSAR BH/POLÍTICA SOCIAL JULHO DE 2011 42 vocar mudanças". A Resolução RDC 101 de 30 de maio de 2001, traz a conceituação das comunidades terapêuticas definindo-as como: Serviços de atenção a pessoas com transtornos decorrentes do uso ou abuso de substâncias psicoativas (SPA), em regime de residência ou outros vínculos de um ou dois turnos, segundo modelo psicossocial, são unidades que têm por função a oferta de um ambiente protegido, técnica e eticamente orientados, que forneça suporte e tratamento aos usuários abusivos e/ou dependentes de substâncias psicoativas, durante período estabelecido de acordo com programa terapêutico adaptado às necessidades de cada caso. É um lugar cujo principal instrumento terapêutico é a convivência entre os pares. Oferece uma rede de ajuda no processo de recuperação das pessoas, resgatando a cidadania, buscando encontrar novas possibilidades de reabilitação física e psicológica, e de reinserção social. (ANVISA, 2001) Segundo De Leon (2008), as Comunidades Terapêuticas foram criadas para tratar de dependentes químicos e tiveram seu início em 1958 em Santa Mônica, Califórnia EUA, quando um grupo de alcoolistas em recuperação decidiram viver juntos, em abstinência, em um novo estilo de vida. A filosofia era a de que cada um tinha que se interessar, cuidar e se preocupar com o outro, em um espírito de solidariedade, dividindo experiências e vivências comuns, se fortalecendo mutuamente. Boa parte das Comunidades Terapêuticas adota o modelo Minnesota2, que busca o desenvolvimento integral do homem através do tripé: ORAÇÃO + DISCIPLINA + TRABALHO", método também muito difundido no Brasil. A dimensão espiritual é aquela em que age e se desenvolve o espírito do homem, levando o ser humano à procura do significado da sua própria existência. Procura concretizar estes pressupostos através da perspectiva do Evangelho, ou seja, como terapia de substituição que transforma a vida do sujeito a partir de sua própria vontade de mudar de vida aceitando a religião praticada na Comu- nidade Terapêutica, dentro de um espírito cristão. Por meio da disciplina e do trabalho visa-se reorganizar a vida do sujeito, elevar sua autoestima e adaptá-lo a um novo estilo de vida, sóbrio e produtivo. Por terem uma proposta mais flexível, o crescimento destas comunidades no Brasil se deu de forma descontrolada, algumas se tornando verdadeiros depósitos de pessoas. Este aumento desenfreado mostrou a evidência da necessidade de maior qualificação de pessoal para atuar profissionalmente no tratamento dos dependentes químicos. Outras demandas foram surgindo, mostrando claramente a falta de uma organização e de uma política mais séria para enfrenter um problema de saúde muito mais complexo que se podia imaginar. O conceito principal do atendimento na Comunidade Terapêutica parte do princípio de que o residente seja responsável por sua "cura". As Comunidades Terapêuticas no Brasil surgiram no início da década de 1970 e se espalharam vertiginosamente, com o intuito de atender à demanda de dependentes químicos, a cada dia aumentando, em função da facilidade da oferta de drogas por parte do narcotráfico, do desemprego gerando crises familiares, das múltiplas carências, sejam afetivas, materiais ou outras tantas. Com uma proposta de manter o dependente longe das drogas e em abstinência - apesar de sabermos que muitas comunidades trabalham sem condições técnicas, sem um modelo razoável de atendimento -, temos que considerar a sua importância para a função social de acolhimento e abrigamento, tirando o sujeito do mundo das drogas, assistindo-o, protegendoo da violência gerada pelo uso e envolvimento com drogas. O tratamento é realizado em regime residencial, em um meio altamente estruturado (ou que deveria sêlo), por meio de um sistema de pressões artificialmente provocadas, para que o residente explicite sua patologia frente aos pares, os quais servirão de espelho da consequência social de seus atos. Esta situação é aceita voluntariamente pelo residente, que se vê envolvido pôr um clima de alta tensão efetiva. Nas Comunidades Terapêuticas no Brasil, geralmente não há procedimentos médicos e o atendimento visa ajudar o sujeito no resgate de sua dignidade em todas as áreas: física, mental, espiritual, social, familiar e profissional. O conceito principal do atendimento na Comunidade Terapêutica para dependentes químicos parte do princípio de que o residente seja responsável pôr sua "cura". O tratamento é em total abstinência e, inclusive, algumas não permitem o uso do tabaco. A expectativa é que o dependente químico se torne uma pessoa livre através da mudança de seu modo de viver, desenvolvendo-se nas diversas dimensões do ser humano: sendo integral, livre, autônomo, capaz de realizar um projeto de vida construtivo, estando bem consigo e com os outros, sem a "ajuda" das drogas. Para organizar o atendimento destas comunidades, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) baixou a Resolução 101 de 30 de maio de 2001, instituindo normas mínimas para iniciar a organização técnica e ética para um atendimento mais eficaz nestas comunidades. Anteriormente, a Federação Brasileira de Comunidades Terapêuticas (Febract) já se preocupava com essa questão e foi organizada por este motivo. A entidade defende a criação de Centros de Formação e Treinamento por todo o País, sendo responsáveis as universidades, Conselhos Estaduais de Entorpecentes (CONENS) e outras instituições envolvidas no problema. Contudo, a falta de recursos e as dificuldades em se ajustarem às exigências da Anvisa, fazem com que a regulamentação das comunidades terapêuticas ainda caminhe com dificuldades. O número de profissionais técnicos e monitores qualificados ainda é tímido, assim como, as adequa- 2 Este modelo de tratamento foi utilizado pela comunidade terapêutica norte-americana Day Top Village que depois foi latinizado na Itália, no Projeto Huomo, visando adaptá-lo ao modelo de vida do homem do sul da Itália. PENSAR BH/POLÍTICA SOCIAL NOVEMBRO DE 2011 43 ções físicas. Com isso, os gestores federais, estaduais e municipais, têmse esforçado no investimento em projetos de subvenção social para financiar esses investimentos. Conforme a Febract (2001), no Brasil temos mais de 80 C.T. filiadas. Entretanto, a preocupação maior é com as "clandestinas", para as quais a Anvisa, através da resolução no101, exige o funcionamento através de regulamentação, normas e fiscalização a partir de 2003, o que as submete aos conselhos de entorpecentes estaduais, municipais e do Distrito Federal e à Vigilância Sanitária. Reviver A comunidade Reviver está localizada no município de Jaboticatubas. A cidade está inserida na Serra do Espinhaço e abriga 65% da área total do Parque Nacional da Serra do Cipó, um santuário ecológico. O Município tem uma extensão territorial de 1.124km2 e uma população de 15.496 habitantes, conforme dados do IBGE, em 2007. Está situada na Região Metropolitana de Belo Horizonte e localiza-se na região Sudeste, no Estado de Minas Gerais, na Zona Metalúrgica. O público alvo é formado por adolescentes, jovens, adultos e idosos do sexo masculino, com problemas decorrentes do uso e/ou abuso de substâncias psicoativas participantes do Programa Terapêutico do Centro de Recuperação Reviver (Crer). O público alvo é oriundo da região metropolitana de Belo Horizonte (70%), cidades do interior de Minas Gerais e outros estados do País (30%). Eles permanecem nove meses em regime de internato e tem como principal objetivo abandonar o uso de drogas e fazer o tratamento da dependência química. A capacidade de atendimento é de 60 residentes e seus respectivos familiares. O número de beneficiados diretos é de 60 residentes em fase de reinserção e tratamento, ou seja, em todas as etapas do tratamento, com perspectivas de abrangência para 90 pessoas, conforme recursos disponíveis. O número indireto de beneficiados é de 270 pessoas, incluindo residentes e familiares. O Programa Terapêutico da Comunidade Reviver possui três etapas: triagem, tratamento e pós-tratamen- to. Nestas etapas todas as ações serão formatadas e sistematizadas visando a complementaridade de cada atividade do Programa. O residente participante contará com apoio da administração do Crer, bem como da assistência médica, psicológica e espiritual de caráter terapêutico, durante todo o processo. 1ª Etapa: Triagem O objetivo da triagem é identificar o nível de comprometimento de dependência do residente que irá participar do programa terapêutico, considerando os níveis: leve, moderado ou grave. Critério de Elegibilidade: pessoas que na avaliação orgânica e/ou psíquica apresentam dependência considerada grave, não são recomendadas (elegíveis) para as Comunidades Terapêuticas. Na última fase do tratamento, o residente é preparado para o seu retorno à família, ao trabalho, aos estudos e ao convívio social. 2ª Etapa: Tratamento Realizada a triagem, o residente iniciará o seu processo de tratamento durante o período de nove meses, por meio de várias ações simultâneas de desintoxicação, manutenção e reinserção, que propiciam que ele tenha uma evolução gradual do seu tratamento. Nessa etapa, há a descrição da rotina de tratamento que envolve hora de despertar, atividade física/desportiva variada diária, atividade lúdico/ terapêutica variada diária - como pintura, teatro, música e artesanato - oficinas profissionalizantes, atendimento psicológico em grupo e/ou individual, atividade didático/científica para aumento de conscientização, palestras, reuniões com familiares. As atividades na etapa de tratamento possuem a participação diária, efetiva e rotativa de cada residente nas rotinas de limpeza, organização, cozinha, horta, alojamentos, curral, artesanato, formação espiritual e lazer. O funcionamento destas atividades tem por premissa o seu engajamento permitindo a convivência no grupo durante o período de tratamento. 44 PENSAR/BH POLÍTICA SOCIAL - NOVEMBRO DE 2011 a) Desintoxicação O objetivo é retirar a droga do residente por meio de uma rotina de desintoxicação que irá auxiliar no período de abstinência permitindo a eliminação das substâncias tóxicas. b) Manutenção Nessa fase do tratamento será proposto para o residente a reorganização da sua vida sem o uso prejudicial da droga (em regime de abstinência). O objetivo é promover uma reflexão dos residentes a respeito de seu retorno "à sociedade", estimulandoos a pensar em suas questões pessoais, principalmente no que se refere ao projeto de vida. c) Reinserção Na última fase do tratamento, o residente é preparado para o seu retorno à família, ao trabalho, aos estudos e ao convívio social. Principais atividades realizadas: Acompanhar o dependente e sua família no processo de reconstrução de vínculos familiares; auxiliar o dependente na busca de um emprego para que possa prover o seu sustento; possibilitar a restauração dos vínculos familiares ou a construção de novos; Para atingirmos os objetivos propostos nessa fase, trabalhamos com a metodologia de oficinas em grupo. Esta pode ser definida como uma "prática de intervenção psicossocial, realizada em um contexto pedagógico, clínico, comunitário ou de uma política social" (Afonso, 2000). É um trabalho estruturado com grupos, sendo focalizado em torno de uma questão central que o grupo se propõe a elaborar. Esta elaboração não se restringe a uma reflexão racional, mas envolve os sujeitos de maneira integral. Ainda de acordo com Afonso (2000), as oficinas têm uma dimensão e potencialidade pedagógica, através do incentivo no processo de aprendizagem do grupo, a partir de suas experiências e demandas, e uma dimensão e potencialidade terapêutica, possibilitada pelo trabalho com os significados afetivos vivenciados pelo grupo. A matéria de trabalho das oficinas é a própria história de cada componente e a história de todos que poderão ser transformadas através da vivência do grupo. Um dos a construção de habilidades técnicas, do conhecimento mais específico se dá através da aprendizagem e confecção de artesanatos. grandes objetivos das oficinas está relacionado com a desconstrução de preconceitos e tabus e a reconstrução social de valores e crenças. Assim, as oficinas possibilitam, simultaneamente, aprendizagem e reflexão ao grupo trabalhado. Nessa proposta, o sujeito se torna ativo no seu processo, construindo, em conjunto com o grupo e o apoio de um profissional, o seu projeto de vida. Para isso, diversos aspectos devem ser abordados, desde questões subjetivas até aquelas relacionadas à sobrevivência. O trabalho em grupo é fundamental neste processo, como forma de apoio, proteção e também como possibilitador do conflito e da angústia, vitais para o processo de crescimento. Visando atingir os diversos aspectos da vida do sujeito, as oficinas serão divididas em três modalidades. Estas modalidades correspondem à possibilidade de aquisição de três tipos de competências e habilidades importantes para a sua inserção social de forma mais autônoma e criativa. Podemos dividi-las em habilidades pessoais e sociais, que dizem respeito a um conhecimento mais profundo e realista de si mesmo e de seu lugar no mundo; habilidades técnicas, relativas à aprendizagem mais formal e instrumental; e habilidades de gestão, que estão relacionadas ao aprender fazer, ou seja, administrar sua vida nos mais diversos aspectos.(Costa, 200); (Delours, 2000). Apresentamos a seguir cada uma das modalidades: Oficinas reflexivas: Enfocam as habilidades pessoais e sociais (ou psicossociais), através de técnicas que possibilitem ao sujeito refletir sobre sua identidade, seu percurso pessoal e social, sua autoestima, seus conflitos e medos, suas possibilidades. Repensar sua vida, através de momentos de reflexão e vivência de suas questões subjetivas e psicossociais, torna-se fundamental para a construção do projeto de vida. Geralmente, o dependente químico tem uma história de rupturas com seus vínculos sociais, que podem ser resgatados nestes momentos. De maneira processual, serão também construídas o que Duarte (2004) chama de novas redes de socialização e apoio no processo de reinserção. A condução das oficinas será feita por um psicólogo e um estagiário de psicologia, que terão o papel de facilitadores do processo. As oficinas são semanais, com a duração de duas horas. Oficinas de trabalho: Este é o momento da construção de habilidades técnicas, do conhecimento mais específico que neste caso se dará através da aprendizagem e confecção de artesanatos. A instrumentalização de uma técnica específica pode contribuir para a inserção do sujeito na sociedade. Mesmo que esta não seja a atividade ideal para a pessoa, ou aquela com a qual ela trabalhará posteriormente, seu efeito na implicação do sujeito com o tratamento é sentido no processo, já que a aprendizagem do artesanato, sua criação e construção exigem um compromisso e respeito a regras e normas que são necessárias no seu processo de recuperação. Um trabalho com início, meio e fim, com um produto no final, pode ter um efeito terapêutico importante para o sujeito em recuperação. O coordenador desta oficina é um monitor que já trabalha com artesanato na Comunidade, produzindo e ensinando diversos tipos de produtos. Uma estagiária de Psicologia acompanha as oficinas, que ocorrem três vezes por semana, durante duas horas. Oficinas de "gestão": Possibilitam ao sujeito aprender a organizar a sua vida, em relação aos aspectos pessoais, profissionais e econômi- cos. Questões como identificação de potencialidades, orientação profissional, economia doméstica, confecção de currículo, entre outras, são enfocadas nessas oficinas. Todas elas serão contempladas no projeto de vida a ser construído durante todo o processo. O sujeito terá a oportunidade de aprender a operacionalizar suas ideias, estabelecendo metas e objetivos de acordo com sua realidade. Vários profissionais estarão envolvidos nestas oficinas, como administrador, técnico em contabilidade e psicólogo, trabalhando em rodízio, com temas pertinentes a cada área de conhecimento. As oficinas são semanais, com duas horas de duração. É importante ressaltar que essa divisão em modalidades é necessária para a operacionalização didática da proposta. Entretanto, as três modalidades devem ser trabalhadas de maneira articulada. Assim, para a aquisição das habilidades de gestão torna-se fundamental um conhecimento de suas habilidades psicossociais, e assim sucessivamente, estando todas as modalidades intimamente integradas 3ª Etapa: Pós-tratamento As atividades são realizadas após a alta do residente do tratamento em regime de internato, prosseguindo a sua recuperação em ações desenvolvidas por grupos de autoajuda, clínicas de atendimento psicológico e reunião de ex-residentes do CRER. O atendimento à família continua depois do período de tratamento por meio de atividades de estudo sobre situações de convivência com pessoas que possuem problemas com o uso e/ou abuso de substâncias psicoativas e grupos de autoajuda. Em 2001 a PUC Minas iniciou a parceria com a Comunidade Reviver, através de estágios curriculares do curso de Psicologia da unidade São Gabriel e do Serviço Social da Unidade Coração Eucarístico, com atuação nas áreas de saúde mental, trabalho e intervenção psicossocial, envolvendo atualmente oito estagiários curriculares do curso de Psicologia, e dois do Serviço Social da unidade Coração Eucarístico. A partir desta parceria, foi desenvolvido um projeto de extensão universitária denominado PENSAR BH/POLÍTICA SOCIAL NOVEMBRO DE 2011 45 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS A parceria com a Universidade possibilitou um avanço na formação dos estudantes, que produzem conhecimento a partir da realidade e da demanda social “Promovendo a Reinserção”, com o objetivo de contribuir na elaboração do projeto terapêutico da comunidade. A partir de então, passaram a ser realizados atendimentos individuais e em grupo aos residentes, triagem inicial dos usuários e acompanhamento do grupo de apoio aos familiares. Nesse projeto de extensão estão envolvidos três professores do curso de Psicologia, além de dois estagiários de extensão e dois psicólogos. Além de contribuir na profissionalização do trabalho da comunidade, a parceria entre a Universidade e a Comunidade Reviver possibilitou um avanço na formação dos estudantes, que produzem conhecimento a partir da realidade e da demanda social. Certamente, serão profissionais com melhores condições e competência para atuar com a questão da dependência química, que se constitui hoje em um grande desafio para a sociedade e para o poder público. Além disso, a pesquisa, a sistematização e a produção de conhecimento são avanços possibilitados por essa articulação. Acreditamos que o trabalho com dependentes químicos na Comunidade Reviver, assim como em outras Comunidades parceiras, tem apresentado ótimos resultados. A adesão ao tratamento tem aumentado, e também a diminuição do número de exresidentes em recaída. O trabalho de prevenção à recaída e os grupos póstratamento tem propiciado um acom- panhamento mais preciso dos fatores que interferem na manutenção da abstinência. Com isso, rever periodicamente o programa terapêutico e viabilizar as mudanças necessárias tornou o processo de tratamento mais dinâmico e individualizado. Atualmente, o trabalho das comunidades terapêuticas com pacientes crônicos tem se mostrado bem eficiente na maioria dos casos. A adoção de um modelo mais acadêmico/ científico no tratamento, fugindo do tratamento somente espiritual, é um bom caminho na busca de novas tecnologias. As aplicações dessas tecnologias na lógica do tratamento podem criar novas perspectivas nas comunidades, assim como nas outras modalidades de tratamento a dependentes químicos Abstract The proposed work aims to present the trajectory of the therapeutic communities, especially the work of the Community Reviver in Jaboticatubas / MG, which after a partnership with PUC Minas / San Gabriel, has been developing new technologies for the treatment of people who present chemical dependency .This partnership has provided the evolution of professors and students' new researches, helping, this way, the therapeutic communities residents' treatment. The focus of these treatments was only based on the triad "Work, Discipline and Prayer", according to the Minnesota model. However, the academic view has fostered the emergence of new ways for the treatment success. 46 PENSAR/BH POLÍTICA SOCIAL - NOVEMBRO DE 2011 AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA- ANVISA. RESOLUÇÃO-RDC Nº 101, DE 30 DE MAIO DE 2001. AFONSO, Lucia (org). Oficinas em dinâmica de Grupo: um método de intervenção psicossocial. Belo Horizonte: Edições do Campo Social, 2000. ARATANGHY, Lídia Rosenberg. Doces Venenos: conversas e desconversas sobre drogas. São Paulo, Ed. Olho d´água.1991. BAUKELAND, M. Bonding in a Therapeutic Community (pp.76-82). Grece: Kethea, 1995 (Therapy Center for dependent individuals). CORDEIRO D, FIGLIE N, LARANJEIRA R. Boas Práticas no Tratamento do Uso e Dependência de Substâncias. São Paulo: Editora Roca Ltda, 2007. COSTA, Antônio Carlos G.; COSTA, Alfredo Carlos G.; PIMENTEL, Antônio P. G. Educação e vida: um guia para os adolescentes. 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Os trabalhos oferecidos para serem publicados, sempre que o editor geral julgar necessário, serão submetidos à apreciação de dois membros do Conselho Consultivo, constituído por representantes da comunidade acadêmica de belo-horizontina, nacional e internacional, notoriamente reconhecidos como especialistas nas supra citadas áreas. A estes será dado o direito de recusar algumas colaborações, explicitando os critérios utilizados na avaliação, ou fazer sugestões quanto à estruturação e redação dos mesmos para tornar mais prática a publicação e manter a uniformidade editorial. No caso de artigos reenviados, a decisão final subre sua publicação cabaerá ao editor geral. A publicação é constituída por: 1- Artigo: revisão crítica sobre tema pertinente à política social com o máximo de 10 páginas, em corpo 12, espaço 1/2, fonte Times New Roman, entregue em CD, disquete ou enviado por e:mail. 2- Opinião: opinião qualificada sobre tema específico da política social, a convite dos responsáveis pela publicação (máximo de cinco páginas, espaço 1/2, em corpo 12, fonte Times New Roman, entregue em disquete, CD ou enviado por e:mail). 3- Debate: artigo teórico que se faz acompanhar de respostas a questões apresentadas por representantes de distintos setores ou correntes de opinião relacionados ao assunto em pauta, convidados pelo editore e/ou sugeridos pelos integrantes do Conselho Consultivo. O texto principal deverá conter no máximo sete páginas, com espaço 1/2, corpo 12, fonte Times New Roman, a ser enviado por e-mail ou entregue em disquete ou CD. 4- Tese: resumo de tese ou dissertação de interesse da política social, defendida no último ano (máximo de 10 páginas, espaço 1/2, em corpo 12, fonte Times New Roman, entregue em CD, disquete ou enviado por e:mail). Obs: todas as colaborações devem utilizar em programas compatíveis com DOS ou Windows. Artigos, Opinião e Tese Nas colaborações na forma de Artigo, Opinião ou resumo de Tese devem constar os títulos, podendo o editor-ge- ral solicitar alterações sempre que houver duplicidade ou semelhança com os títulos de outros textos entregues anteriormente pelos respectivos autores. Todos os trabalhos devem ser assinados, com referência explícita à principal função, título ou cargo ocupado pelo autor. Ilustrações O espaço destinado às Tabelas e/ ou Figuras (gráficos, mapas, desenhos etc.) não será acrescido ao do texto, conforme as indicações anteriores. O editor-geral poderá, contudo, solicitar a redução do número de ilustrações em função do espaço total (texto + ilustrações) destinado ao artigo e que não deverá ultrapassar a sete páginas da revista. As tabelas, gráficos, mapas, desenhos etc. deverão ser entregues em separado, devendo constar no texto apenas a indicação do local onde devem ser inseridas. No caso das ilustrações serem entregues já digitalizadas, os arquivos deverão ser salvos em formato Tiff, EPS, JPEG ou versão compatível com o Corel Draw. Cada ilustração deve ter um título e a fonte de onde foi extraída. Cabeçalhos e legendas devem ser suficientemente claros e compreensíveis sem necessidade de consulta ao texto. As referências às ilustrações no texto deverão ser mencionadas entre parênteses, indicando a categoria e número da tabela na figura. Ex: (Tabela 1). Fotos As fotos poderão ser coloridas ou em preto-e-branco, ficando a critério do editor avaliar sua qualidade estética e de reprodução. Estas deverão vir acompanhadas de autorização do autor, abrindo mão dos direitos autorais. À exceção das fotos adquiridas para a composição de acervos e arquivos, a todas elas será dado crédito de autoria. Notas de Rodapé Na utilização das notas de rodapé e referências bibliográficas serão observadas as normas da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), abaixo sintetizadas. As notas de rodapé têm por objetivo fornecer ao leitor uma explicação ou esclarecimento que não deve ser incluído no corpo do texto para não interromper sua seqüência lógica. As chamadas das notas de rodapé devem ser feitas usando-se algarismos arábicos na entrelinha superior, sem parênteses. No caso das notas de rodapé do tipo bibliográfico, estas devem conter (pela ordem) o nome do autor (ou autores), título da obra e página consultada, de acordo com o exemplo abaixo. Ex: BORJA, Jordi. Descentralización y Gobierno Democrático: critérios para la acción, p.22. - Os termos essenciais devem obedecer a seguinte ordem de entrada: o nome do autor (ver especificações abaixo), o título da obra (que deverá vir em destaque, itálico), a edição (que só é colocada a partir da segunda e sempre será indicada por algarismos arábicos. Ex: 4.ed., o local da publicação e a editora, cujo nome não é acompanhado por termos que indiquem a natureza jurídica da empresa (Cia., S.A., Filho, Ltda.). A palavra editora só é usada no caso de editoras com nomes de cidades ou países. Ex: Editora Belo Horizonte, e o ano da publicação, sempre indicado em algarismos arábicos, sem ponto dividindo as unidades. - São considerados dados complementares a coordenação, a organização, o subtítulo, a tradução. O nome do coordenador ou organizador deve aparecer na ordem indireta com sua função indicada de forma abreviada entre parênteses. O subtítulo da obra não recebe nenhum tipo de destaque e é antecedido por dois pontos. No caso de tradução, o nome do tradutor figura logo após o título do trabalho. • Pontuação: o sobrenome e o prenome do autor são separados por vírgula. Para separar o título do subtítulo de uma obra deve-se usar dois pontos, que também são usados para separar o local da editora. • O nome do autor deve ser grafado o último sobrenome seguido pelos prenomes. Ex: MARQUES, Gabriel García. • Se o sobrenome for composto, deve ser referenciado a partir do penúltimo sobrenome. Ex: SILVA NETO, João Batista. • Em uma obra escrita por até três autores, todos devem ser citados, usando-se ponto-e-vírgula para separá-los entre si. Se forem mais de três autores, são mencionados os três primeiros seguidos da expressão et al. (e outros). • Entidades coletivas: os órgãos governamentais, empresas e entidades públicas devem ser referenciadas pelo título. Ex: BRASIL. Constituição Federal. Brasília: Senado Federal, 1988. • Local e editora: o local deve ser transcrito na forma que se encontra na publicação. Se houver homônimos, acrescenta-se o Estado ou País. • O nome da coleção deve vir após o ano da publicação, entre parênteses. • O nome do tradutor é citado após o nome da obra. • Quando houver mais de uma obra de um mesmo autor, deve-se colocálas em ordem alfabética do título ou por ordem cronológica. O nome do autor repetido é substituído por um traço. Referências Bibliográficas - As Referências devem ser formatadas em ordem alfabética. PENSAR BH/POLÍTICA SOCIAL NOVEMBRO DE 2011 47 PENSAR BH/POLÍTICA SOCIAL é uma publicação da Câmara Intersetorial de Políticas Sociais da Prefeitura de Belo Horizonte. Os artigos assinados são de inteira responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, a opinião dos responsáveis pela edição da revista. Não é permitida a reprodução de textos ou fotos sem autorização dos autores.