ESTADOS UNIDOS E ÁFRICA DO SUL: COERÇÃO, CAPITAL E

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA
CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS
DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS ECONÔMICAS
CURSO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
ESTADOS UNIDOS E ÁFRICA DO SUL:
COERÇÃO, CAPITAL E LEGITIMIDADE NA
CONSTRUÇÃO DO ESTADO
TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO
Matheus Dalbosco Pereira
Santa Maria, RS, Brasil.
2015
ESTADOS UNIDOS E ÁFRICA DO SUL:
COERÇÃO, CAPITAL E LEGITIMIDADE NA
CONSTRUÇÃO DO ESTADO
Matheus Dalbosco Pereira
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Relações
Internacionais da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM, RS) como
requisito parcial para a obtenção do grau de Bacharel em Relações
Internacionais.
Orientador: Prof. Dr. Igor Castellano da Silva
Santa Maria
2015
2
AGRADECIMENTOS
Ao concluir mais uma etapa de minha vida, gostaria de agradecer a todos que, de
alguma forma, foram fundamentais nesse processo. Assim, começo agradecendo a
minha mãe, Andréa, por todo o carinho e tempo que ela já dedicou e ainda dedica a mim
– são elementos essenciais do meu emocional. Agradeço ao meu pai, Afranio, pelo
incentivo que ele me deu à busca do saber, ao questionamento e ao exercício lógico –
requisitos tão necessários para o meu aprendizado. Quando os agradeço por isso, não é
apenas por isso, mas por considerar que foram as suas principais contribuições – e uma
soma muito benéfica a mim.
Desejo também demonstrar minha gratidão a todos os meus familiares, avôs e
avós, tios e tias, primos e primas, entre outros. Apesar de, eventualmente, passarmos
muito tempo longes, cada um contribui, do seu modo, para a minha vida. Expresso
minha gratidão também a todos os meus amigos, de Minas Gerais ou do Rio Grande do
Sul, ou pessoas que, de alguma forma, se importam comigo e desejam o melhor para
mim. Agradeço, em especial, à minha namorada, Camila Hirt Munareto, que não apenas
é minha melhor amiga e uma grande companheira, mas também me deu uma
contribuição fundamental para a finalização deste trabalho. Além disso, também quero
agradecer ao meu orientador, Igor Castellano da Silva, pela sua dedicação, competência
em sua função e por tudo que já me ensinou nos últimos anos.
Por fim, quero fazer um agradecimento especial aos meus avós, Otolip e Marly,
por terem me recebido como um filho em Santa Maria, contribuindo significativamente
para a conclusão dessa etapa da minha vida.
A todos vocês, meu muito obrigado!
Dedico esse trabalho, postumamente, ao meu avô Otolip Dalbosco.
3
Igitur qui desiderat pacem, praeparet bellum
(Publius Flavius Vegetius Renatus, De Re Militari – Livro 3, prefácio)
4
RESUMO
Trabalho de Conclusão de Curso
Curso de Relações Internacionais
Universidade Federal de Santa Maria
ESTADOS UNIDOS E ÁFRICA DO SUL:
COERÇÃO, CAPITAL E LEGITIMIDADE NA
CONSTRUÇÃO DO ESTADO
AUTOR: Matheus Dalbosco Pereira
ORIENTADOR: Igor Castellano da Silva
Data e Local da Defesa: Santa Maria, 02 de Dezembro de 2015.
Estados Unidos e África do Sul experimentaram trajetórias históricas
semelhantes no que se refere à formação social e Estatal. Localizados em regiões
estratégicas e ricas em recursos naturais, ambos os países foram colonizados por
europeus protestantes que tiveram uma relação agressiva com os nativos e que
posteriormente se revoltaram contra a metrópole. Todavia, apesar das semelhanças, os
Estados Unidos vieram a se tornar uma superpotência global enquanto a África do Sul
tornou-se uma potência regional com grandes constrangimentos domésticos. O estudo
objetiva compreender quais elementos da trajetória histórica de formação do Estado
podem explicar por que esses países possuem enormes diferenças de capacidade estatal
no início do século XXI. Para tal, utiliza-se o modelo analítico de Charles Tilly (1996)
baseado nos conceitos de coerção e capital e na sua interação mediante a dinâmica da
guerra (competição sistêmica). Adicionalmente, busca-se avaliar a evolução do
elemento da legitimidade (obediência, efetividade institucional e identidade),
fundamental para o conceito weberiano de Estado. A teoria de Gilpin (1981) sobre
mudanças sistêmicas será utilizada também para a análise de interação dos Estados no
sistema internacional. Supõe-se que a ausência do equilíbrio virtuoso entre coerção e
capital, mas principalmente da legitimidade, foram fatores fundamentais para as
dificuldades enfrentadas pelo Estado sul-africano; situação distinta da experimentada
pelos estados do norte dos Estados Unidos, vitoriosos na guerra de independência e na
guerra civil e responsáveis pelo atual modelo estatal norte-americano. Trata-se de um
estudo hipotético-dedutivo de procedimento histórico-comparativo que adota a técnica
de pesquisa bibliográfica.
Palavras-Chave: África do Sul, Estados Unidos, coerção, capital, legitimidade, Estado,
guerra.
5
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO ..................................................................................... 7
2. A CONSTRUÇÃO DOS ESTADOS EUROPEUS .......................... 12
2.1. A lógica da construção do Estado ............................................... 13
2.2. Expansão do Estado europeu para o resto do mundo............... 19
2.3. Legitimidade.................................................................................. 22
2.4. Sistema Internacional ................................................................... 24
3. Guerra e Formação do Estado nos EUA .......................................... 27
3.1. Conquista da independência ........................................................ 27
3.1.1.
Coerção............................................................................................................... 28
3.1.2.
Capital ................................................................................................................ 30
3.1.3.
Legitimidade ...................................................................................................... 31
3.2. Guerra Civil: consolidação interna e projeção externa ............ 33
3.2.1.
Coerção............................................................................................................... 34
3.2.2.
Capital ................................................................................................................ 37
3.2.3.
Legitimidade ...................................................................................................... 41
3.3. Segunda Guerra Mundial e ascensão da superpotência ............. 45
3.3.1. Coerção..................................................................................................................... 45
3.3.2. Capital ...................................................................................................................... 47
3.3.3. Legitimidade ............................................................................................................ 49
4. Guerra e Formação do Estado na África do Sul .............................. 51
4.1. Guerra Anglo-Bôer ....................................................................... 52
4.1.1.
Coerção............................................................................................................... 52
4.1.2.
Capital ................................................................................................................ 56
4.1.3.
Legitimidade ...................................................................................................... 58
4.2. Guerras de Fronteira sul-africana e fim do Apartheid ............... 62
4.2.1. Coerção..................................................................................................................... 62
4.2.2. Capital ...................................................................................................................... 64
2.3. Legitimidade ............................................................................................................... 66
5. CONCLUSÃO ..................................................................................... 71
6. REFERÊNCIAS .................................................................................... 76
6
1. INTRODUÇÃO
Após séculos de poder fragmentado durante o feudalismo europeu, iniciou-se um
processo de centralização política e militar por parte dos reis a partir do século XV, fato
que marcou o nascimento do Estado moderno. Entretanto, é importante salientar que
nem todos foram bem sucedidos: a grande maioria das tentativas de criar um Estado
falhou e das centenas de entidades autônomas existentes na Europa do século XV,
apenas algumas dezenas sobreviveram até o início do século XXI.
O triunfo nas guerras foi o elemento decisivo dos Estados que sobreviveram, já
que a maioria das unidades que desapareceram no decorrer desse tempo foi absorvida
pelos Estados que conseguiram construir forças militares eficientes. E esse é justamente
o papel fundamental da guerra na construção dos Estados: a formação de uma força
armada demanda um pesado fardo para a população (através de impostos, de
recrutamento, entre outras formas), mas se torna a forma como o governo impõe seu
desejo contra rígidas resistências. Além disso, uma força armada tende a promover
consolidação territorial, centralização e o monopólio dos meios de coerção, atributos
fundamentais para a construção de um Estado. Assim, a relação entre Estado e a guerra
deixa evidente a afirmação de Tilly (1975, p. 42, tradução nossa) de que “A guerra fez o
Estado e o Estado fez a guerra”. O caráter coercitivo também fica claro na clássica
definição weberiana de Estado como “uma comunidade humana que pretende, com
êxito, o monopólio legítimo da força física dentro de um determinado território”
(WEBER, 1982, p. 98).
Nesse contexto, entenderemos coerção como todos os meios que causem danos
existenciais, sejam de modo real ou através de ameaças, com o objetivo de consolidar os
interesses de uns apesar da resistência de outros. Assim, coerção é o meio fundamental
do Estado de garantir a sua sobrevivência (através das guerras) ou arrecadar tributos da
sua população. Da mesma forma, devemos entender capital como a totalidade de bens
que atribuem riqueza ao seu proprietário, como, por exemplo, posse de imóveis,
dinheiro ou ações financeiras.
A teoria de Tilly (1996), assim, relaciona os aplicadores de coerção com os
manipuladores de capital. As cidades, local onde se concentrou muito capital, recorriam
aos detentores de coerção para garantir a proteção de seus negócios, enquanto os
militares e estadistas recorriam ao capital gerado pelas cidades para manutenção e
7
ampliação da força armada. Dessa relação surgiram diferentes tipos de Estado, de
acordo com a economia local. Em países com grande circulação de capital, o Estado
podia extrair através de taxas sobre o comércio, mas sofria forte oposição ao seu
controle direto sobre família e indivíduos, de forma que o Estado criou aparelhos
centrais menores e mais fragmentados; por outro lado, em países pouco
comercializados, a arrecadação através de taxas de comércio não gerava grandes
retornos e o Estado extraía seus recursos de forma direta, como através do recrutamento,
de forma que o Estado acabou criando pesadas máquinas fiscais e deu grandes poderes
aos controladores de recursos imediatos, como os grandes proprietários de terras.
Quando a guerra teve seus custos ampliados substancialmente1, a partir dos
séculos XIV e XV, os governantes puderam contar com o capital proveniente das
cidades e centralizar o poder, declarando criminoso o porte de armas para a maioria de
seus cidadãos e banindo os exércitos particulares, tão comuns durante a maior parte da
história europeia. A conquista do monopólio da força deu sentido à definição weberiana
de Estado e evidencia o ciclo de coerção, capital e formação do Estado. Enquanto os
impostos, a principal fonte de arrecadação dos Estados, financiavam os gastos militares,
as forças armadas garantiam a defesa ou expansão das fronteiras e o controle interno.
Durante essa época de centralização, as forças armadas também eram a maior fonte de
despesa do Estado, incentivando um aumento dos impostos e uma reforma tributária
(TILLY, 1975, p. 23-24); uma vez que como salienta Herbst (1990, p. 120-121), é
durante as épocas de guerra que o Estado consegue aumentar os impostos com menor
resistência da sua população – já que o conflito oferece grandes ameaças à segurança2 e esses impostos acabam por não retornar aos níveis ante bellum quando terminam as
hostilidades (MANN, 1986, p. 433).
A relação entre Estado e sociedade, porém, sofreu uma enorme alteração a partir
da Revolução Francesa. Com o fim do intermédio da nobreza entre Estado e sociedade,
o Estado ampliou suas capacidades e instituiu o governo direto através de um extenso
serviço burocrático. Essa mudança representou também uma grande intervenção do
Estado na vida das pessoas, e logo as legislaturas nacionais passaram a ser alvo de
1
Dentre as causas, cita-se o advento da pólvora e a valorização da infantaria, bem como o interesse de
formar um exército permanente (WALLERSTEIN, 1988 p. 28).
2
Segundo Herbst, com exceção da guerra não há nenhum outro tipo de crise que exija um aumento de
impostos com tanto vigor e que seja feito sem grande oposição. Além disso, como sugere o trabalho de
Ames e Rapp, o sistema tributário costuma ser regido por uma grande inércia (AMES; RAPP, 1977, p.
177; HERBST, 1990, p. 129).
8
reivindicações por parte de grupos bem organizados que exigiam mais proteção,
aplicação de justiça, produção e distribuição; ampliando para muito além da guerra as
funções do Estado (TILLY, 1996, p. 172-181). E assim, haja vista a importância do
suporte dos cidadãos para o bom funcionamento do Estado, entenderemos legitimidade
como a aceitação da autoridade imposta.
Durante os últimos quinhentos anos e através dos mecanismos de coerção e
capital, os Estados nacionais europeus se consolidaram com base em fronteiras bem
definidas e reconhecimento mútuo. E, por meio da colonização e da conquista, a Europa
difundiu o sistema europeu de Estados por quase todo o globo, de forma que a grande
maioria dos países em desenvolvimento do presente, que possui um passado colonial,
herdou o aparelho colonial europeu, incluindo as fronteiras, e se tornou
majoritariamente coercitivo, já que as potências deixaram pouco capital aos seus
sucessores. Dessa forma, a lógica de coerção e capital, que fez o Estado prosperar na
Europa, já deixa de funcionar plenamente quando os novos Estados recebem ajuda
militar das grandes potências e, ao conseguirem empréstimos internacionais, deixam de
precisar contar com a tributação e recrutamento. Além disso, os Estados gerados pelo
colonialismo encontram grande resistência das sociedades e não conseguem extrair
recursos da sua população de forma eficaz.
Por meio de sua expansão para o resto do mundo, o Estado se consolidou como a
principal unidade do sistema internacional. Diante desse cenário, Gilpin (1981) analisa
como as unidades do sistema, os Estados, interagem entre si e como as guerras são
fundamentais para determinar as relações de poder dentro do Sistema Internacional;
sendo responsáveis tanto pela consolidação interna e fortalecimento estatal, quanto
pelas modificações na polaridade mundial e determinação de quais serão os Estados a
decretar as regras do sistema.
Assim sendo, ao percebermos África do Sul e Estados Unidos como dois países
com grandes semelhanças, por conterem um histórico de colonização onde a população
de colonos era de origem protestante, com disputas raciais e escravidão, além de terem
se tornado países atrativos para a imigração, o presente estudo busca entender como o
papel da guerra contribuiu para que os Estados Unidos se tornassem a grande potência
hegemônica da atualidade e a África do Sul permanecesse como uma potência regional
com grandes constrangimentos internos.
9
A partir das análises de formação do Estado, deveremos analisar sua atuação
dentro do sistema internacional e de que modo as guerras ampliaram ou reduziram seus
mecanismos formativos. Supõe-se que a ausência de legitimidade interna atue como um
empecilho ao ciclo de coerção e capital, reduzindo assim o desempenho das forças
militares nas guerras e, consequentemente, promovendo um enfraquecimento das
capacidades estatais.
Os Estados Unidos, pela sua enorme capacidade militar, econômica, tecnológica
e por terem se tornado uma superpotência do sistema internacional desde a Segunda
Guerra Mundial, é um país cujas ações causam enormes impactos em todo o mundo. O
estudo de um país dessa relevância não é inovador, mas compará-lo a outros casos de
grandes semelhanças, como a África do Sul, contribui para um melhor entendimento
das dinâmicas do sistema internacional e da relação entre Estado e sociedade. Além de
se testar as teorias na prática, o estudo também dá ênfase para uma das mais importantes
atividades da história humana: as guerras. Como forma de solucionar a sede por poder
dos seres humanos, as guerras determinaram a história como o mecanismo decisivo para
determinar dominadores e dominados.
Trata-se de um estudo hipotético-dedutivo de procedimento históricocomparativo que adota a técnica de pesquisa bibliográfica. As teorias se fundamentam
nos debates da sociologia histórica sobre a Construção do Estado e também nas teorias
de mudanças sistêmicas para a análise de interação dos Estados no sistema
internacional. De forma geral, serão utilizados dados qualitativos, mas dados
quantitativos serão usados como forma de tentar medir capacidades estatais, como por
exemplo, a população dos Estados, a porcentagem urbana da população, índices de
produção econômica e Forças Armadas.
Dessa forma, no primeiro capítulo buscaremos um aprofundamento na teoria
sobre a formação do Estado, como ele extrai recursos da sua população, como ele se
mantém e como ele interage dentro do sistema internacional. A análise teórica, que
começa com a formação dos Estados europeus, é de fundamental importância para a
compreensão dos conceitos de coerção e capital. Além disso, também buscaremos na
teoria entender por que esses mecanismos não estão fortalecendo os Estados da África,
Ásia e América Latina.
10
Assim, no segundo capítulo, avaliaremos o Estado norte-americano com base
nas três variáveis: capital, coerção e legitimidade. Considerando as guerras como fatores
decisivos, a história foi dividida em três períodos com base em momentos
fundamentais: (1) a guerra de independência, onde os norte-americanos conquistaram
sua independência política e fortalecimento relativo na região (potência regional); (2) a
Guerra Civil, onde os Estados Unidos se consolidaram internamente, eliminaram as
ameaças de secessão e projetaram-se inter-regionalmente (grande potência); (3) a
Segunda Guerra Mundial, onde os Estados Unidos assumiram a hegemonia do sistema
internacional e passaram a decretar suas ordens através do sistema ONU, do seu poderio
militar e do domínio da economia global (superpotência). Em função do objetivo do
trabalho, não avaliaremos as variáveis norte-americanas depois de se tornar uma
superpotência.
No terceiro capítulo, estudaremos o Estado sul-africano a partir das mesmas
variáveis que o capítulo anterior e o dividimos em dois marcos históricos: (1) a guerra
anglo-bôer, que determinou a unificação do território, o sistema político e fundou o
fortalecimento relativo na região (potência regional); e (2) as guerras sul-africanas de
fronteira, tentativa sul-africana de garantir a hegemonia da África austral, a
sobrevivência do regime branco e projetar-se inter-regionalmente (grande potência). Em
decorrência da incapacidade da África do Sul de alcançar a vitória sobre as tropas
cubanas e angolanas, o regime iniciou o processo de transição política que terminaria
com a eleição de Nelson Mandela à presidência do país em 1994.
Assim, poderemos perceber que a África do Sul teve um desequilíbrio muito
consistente entre coerção, capital e legitimidade; algo que prejudicou consideravelmente
o desempenho do país na sua tentativa de garantir a hegemonia regional. Somado a isso
as divisões étnicas da população sul-africana, muito mais do que nos Estados Unidos,
contribuíram para que a guerra não se tornasse um elemento de fortalecimento do
Estado e sim de enfraquecimento. Além disso, é importante notarmos que os Estados
Unidos iniciaram sua industrialização muito mais cedo do que a África do Sul e no
momento que houve as Guerras Mundiais, os Estados Unidos puderam se beneficiar
muito mais economicamente do que os sul-africanos. Com isso, os Estados Unidos
conseguiram ampliar suas capacidades no decorrer do tempo e, quando o momento
favoreceu, tornou-se a superpotência e passou a decretar as leis do sistema
internacional.
11
2. A CONSTRUÇÃO DOS ESTADOS EUROPEUS
O modelo de Estado europeu disseminou-se ao longo da história e serviu como
base das organizações formais que deram origem a grande parte dos Estados
contemporâneos. Além de sua capacidade de articular coerção e capital, o fato de que a
maior parte do planeta esteve sob domínio europeu até o século XX e de que, ao
conquistarem a independência, os novos Estados do terceiro mundo herdaram o
aparelho colonial a qual estavam submetidos (TILLY, 1996, p. 274), o que contribuiu
para a propagação do modelo de Estado nacional sobre o globo.
A partir da queda do Império Romano surgiram três tipos de Estado que
divergiram consideravelmente em suas características: 1) os impérios, com grandes
aparelhos militares e extrativos que se baseavam na cobrança de tributos, mas
entregavam a administração aos detentores de poder regionais, os quais obtinham
grande autonomia; 2) os sistemas de soberania fragmentada, como cidades-Estado e
federações urbanas, que possuíam grande quantidade de capital, mas pouco território e
população; e (3) o Estado nacional, que conseguiu unir, numa estrutura centralizada, a
administração militar, extrativa e até distributiva e produtiva. O Estado nacional
constitui-se assim como um conjunto de um vasto território, mas não tanto a ponto que
não possa ser controlado; uma grande população rural, necessária para grandes
exércitos, e uma economia capaz de sustentar as progressivas despesas que uma guerra
exigia (TILLY, 1996, p. 112). Estas características contribuíram para o Estado nacional
prevalecer perante os outros tipos de Estado, e não por ser o ponto final de uma
trajetória evolutiva3.
A longa sobrevivência e coexistência dos três tipos de Estado nega qualquer
ideia de que a formação do Estado europeu constitui um processo isolado e
unilinear, ou de que o Estado nacional – que na verdade acabou prevalecendo
– é uma forma de governo inerentemente superior (TILLY, 1996, p. 69).
Durante os últimos quinhentos anos, esses Estados nacionais europeus se
consolidaram com base em fronteiras bem definidas e reconhecimento mútuo. Além
disso, por meio da colonização e da conquista, a Europa difundiu o sistema europeu de
Estados por quase todo o globo, incluindo África do Sul e Estados Unidos. Como
aponta Tilly (1996, p. 260), “a criação primeiramente da Liga das Nações e, depois, das
3
Por volta de 1420, por exemplo, as cidades-Estado do norte da Itália conquistaram um extraordinário
acúmulo de capital, com receitas das comparáveis aos dos mais bem sucedidos Estados da Europa
ocidental (ARRIGHI, 2000, p. 39).
12
Nações Unidas apenas ratificou e racionalizou a organização de todos os povos da terra
num único sistema de Estado”.
Diante de tal cenário, uma profunda exploração dos processos de construção do
Estado na Europa torna-se de grande ajuda para compreender os Estados que se
originaram desse modelo. O presente capítulo, portanto, se divide em quatro partes: a
primeira apresenta o referencial teórico sobre o processo de formação do Estado na
Europa. A segunda parte ressalta que a incorporação do modelo de Estado europeu por
parte dos Estados do terceiro mundo apresentou peculiaridades que os diferenciam da
trajetória europeia e que a compreensão destas é essencial para evitar comparações
equivocadas. A terceira parte busca observar a importância da legitimidade, tanto
doméstica quanto internacional, para o fortalecimento do Estado. E por fim, a quarta
seção apresenta a teoria sobre o Sistema Internacional, já que, uma vez estabelecida a
sua unidade (os Estados), é de fundamental importância compreender de que maneira
essas unidades se relacionam, e como elas se articulam a fim de promover alterações no
mesmo.
2.1. A lógica da construção do Estado
Uma análise simples da história europeia mostra que a grande maioria dos
Estados acabou desaparecendo no decorrer do tempo. As centenas de Estados que
existiam no século XVI transformaram-se em apenas algumas dezenas durante o século
XXI; sendo que a grande maioria destes que deixaram de existir foram absorvidos por
outros Estados mais poderosos através das guerras. Dito isto, se a continuidade do
Estado era determinada pelo seu sucesso nas guerras, percebe-se que a sua própria
existência era completamente dependente da sua força militar. O papel da guerra, assim,
é tão importante para o processo de construção do Estado que Tilly (1975, p. 42,
tradução nossa) afirma que “a guerra fez o Estado e o Estado fez a guerra” 4.
Se a sobrevivência do Estado depende de uma eficiente máquina de guerra,
capaz de garantir ao mesmo a sua sobrevivência e, eventualmente, expansão; a
construção dessa força armada depende de dois recursos elementares: a coerção e o
capital.
4
“War made the state, and the state made war”.
13
A história diz respeito ao capital e à coerção. Narra os recursos que os
aplicadores de coerção, que desempenharam um papel importante na criação
dos Estados nacionais, extraíram, para os seus propósitos, dos manipuladores
de capital, cujas atividades geraram as cidades (TILLY, 1996, p. 63).
Na Europa surgiram dois grandes grupos especialistas em coerção 5: os soldados
e os grandes proprietários de terras (os nobres da era feudal). Esses grupos
estabeleceram a dominação do continente através de meios violentos – seja por forças
armadas, sejam por prisões, expropriações, humilhações e ameaças. Assim, segundo
Tilly (1996, p. 67-69), a guerra induz à formação e transformação do Estado; uma vez
que os aplicadores de coerção, ao conquistar determinado território, se envolvem na
administração das terras, pessoas e dos bens da região conquistada, o que
ocasionalmente cria interesses que são contrários à guerra. Além disso, em casos de
conquistas de grandes dimensões, muitas vezes a infraestrutura e administração dos
novos territórios exigem manutenções muito maiores do que a capacidade dos
governantes, gerando novos grupos de poder com interesses próprios.
A partir do declínio e consequente queda do Império Romano ocidental, a
Europa passou por um período conturbado de grandes conquistas territoriais. Como
consequência da ausência de infraestrutura, a administração dos territórios foi
consideravelmente fragmentada na Alta Idade Média e os donos de terras concentraram
o poder durante o auge do feudalismo6. Durante esse período, a população europeia era
majoritariamente agrária7 e a nobreza, isenta de controle, de impostos e livre para
controlar e cobrar taxas dos camponeses, muitas vezes fazia uso da máquina estatal em
benefício próprio, principalmente quando reis e imperadores não desempenhavam bem
a sua função. Entretanto, a partir de 1150 d.C., o aumento da produção agrícola, que até
então ia pouco além da subsistência, permitiu um renascimento da urbanização e
também o surgimento da classe mercantil europeia – que em contrapartida aos senhores
de terras detentores de coerção, tornaram-se os detentores de capital.
5
Os meios coercitivos são uma combinação de recursos humanos e armas. Os Estados acabaram tendo
certa vantagem para concentrar a coerção e impedir que outros grupos o façam, pois (1) a produção de
armas exige conhecimento, materiais raros e capital abundante; (2) poucos grupos dispõem da capacidade
de mobilizar grandes quantidades de soldados e; (3) poucas pessoas conhecem como combinar homens e
armas no campo tático e estratégico (TILLY, 1996, p. 108).
6
Podemos entender como feudalismo o sistema de organização política onde todas as funções executivas
da sociedade – econômica, judicial, administrativa e militar – eram exercidas pelos mesmos indivíduos.
Comparado com o Estado moderno, o Estado feudal era fragmentado em diversas mãos que se
relacionavam por obrigações feudais feitas pessoalmente (TILLY, 1975, p. 87).
7
A estrutura urbana sofreu um declínio gradual desde antes do início das invasões bárbaras (BRAUDEL,
1985, p. 510)
14
Em harmonia com os feudos, as cidades cresceram reproduzindo a hierarquia
política e social vigente durante o feudalismo (BRAUDEL, 1985, p. 510;
WALLERSTEIN, 1988, p. 18). Contudo, as vantagens oferecidas pelas cidades8
favoreceram o surgimento de mercadores, guildas, comércio de longas distâncias,
indústrias e bancos. Ao gerarem acúmulo e concentração de capital, as principais
cidades se tornaram determinantes para suas respectivas vizinhanças9 e quebraram os
vínculos com a estrutura social rural, tornando-se forças organizacionais autônomas
(BRAUDEL, 1985, p. 511; TILLY, 1996, p. 65).
O aumento da urbanização alterou significativamente a relação entre
governantes e governados, pois as técnicas de controle, estratégias fiscais, demandas de
serviços e a política foram modificadas (TILLY, 1996, p. 101-115). O mercado que as
grandes cidades ofereceram aos seus arredores rurais estimulou a agricultura comercial,
fato que favoreceu os comerciantes e produtores, mas enfraqueceu significativamente os
grandes senhores de terras10. Quanto maior esse impacto demográfico sobre o interior,
bem como a extensão do acúmulo de capital, a sua influência e a sua população, maior
era a autonomia das classes dirigentes da cidade e maior era a resistência à penetração
dos Estados nacionais.
Apesar disso, a relação entre cidades e os Estados europeus se tornou
indispensável: os capitalistas das cidades recorreram aos detentores da coerção para
garantir proteção às suas atividades comerciais, ainda que temessem desvios de recursos
para financiar conflitos; por outro lado, o Estado e os militares dependiam do capital das
cidades para sustentar a força armada, ainda que se preocupassem com a resistência que
as cidades ofereceram ao domínio do Estado. Estabeleceu-se assim, até o século XIX,
uma confusa relação de proteção em troca de capital (TILLY, 1996, p. 113).
Os senhores feudais, que até então eram os detentores do poder, evidentemente,
jamais apoiariam um fortalecimento do poder central se não se deparassem com alguns
8
Cidades reduziram custos de transações e permitiram especialização das atividades econômicas,
facilitando o comércio, o armazenamento e os negócios bancários (TILLY, 1996, p. 65;
WALLERSTEIN, 2011, p. XVI).
9
Nas vizinhanças de cidades ativas, o cultivo se tornou mais intenso, incentivando os produtores a
destinarem uma maior parcela de suas safras para o mercado. Além disso, o crescimento urbano
estimulou a melhoria dos meios de transporte, servindo assim de causa e efeito da urbanização. Por fim,
houve diversos movimentos que pressionaram as pessoas a largarem os campos e migrarem para as
cidades, transformando as regiões circunvizinhas em novos aglomerados urbanos. (TILLY, 1996, p. 66).
10
Há uma exceção quando a classe dirigente da cidade também possuía grandes posses de terras no
interior, nesse caso os senhores ganharam força significativa, algo comum nas cidades-estado italianas.
(TILLY, 1996, p. 101).
15
problemas econômicos11 que ocorreram no século XIV e XV e, principalmente, com o
surgimento de inovações que alteraram o modo de fazer a guerra. O advento da pólvora
e a valorização da infantaria12 aumentaram substancialmente os custos da guerra, bem
como o interesse de formar um exército permanente.
À medida que o sistema medieval entrava em crise, o novo sistema capitalista
nascia nas cidades-Estado da Itália setentrional, como Florença e Veneza, promovendo
uma extraordinária concentração de capital nas mãos dos capitalistas italianos. Arrighi
(2000, p. 38) aponta como o equilíbrio de poder foi fundamental para a sobrevivência
do enclave capitalista e se tornou, posteriormente, uma das bases do sistema de Estados
na Europa. Além disso, fez surgir as representações diplomáticas permanentes, como
forma de manipular o equilíbrio de poder e reduzir os custos de proteção.
Os séculos XVI e XVII marcaram o triunfo do Estado nacional sobre as cidadesEstado e impérios na Europa. Enquanto Portugal e Espanha buscaram novas rotas para o
lucrativo comércio entre Europa e Extremo Oriente13, o Império Otomano conquistava o
Mediterrâneo oriental, de forma que ambos os acontecimentos acabaram com o
monopólio das cidades italianas desse comércio. Além disso, disputas dinásticas entre
França e Espanha tornaram a Itália palco das Guerras Italianas e reduziram as então
prestigiosas cidades a meros prêmios muito cobiçados, incapazes de fazer frente à
ameaça externa. Por fim, a tentativa imperialista da casa dos Habsburgos e do papado
foi derrotada na Guerra dos Trinta Anos, emergindo o novo sistema mundial de governo
com Estados soberanos, reconhecidos e com territórios mutuamente excludentes,
sistema que vigora até a atualidade (ARRIGHI, 2000, p. 36-43; MCNEILL, 1982, p. 6391). Assim, as fronteiras geográficas fixas do Estado moderno se sobressaíram perante
as estruturas territoriais dos Impérios e das cidades-Estado, marcadas pela ambição
universalista e trocas de mercado, respectivamente. Como aponta Spruyt (2007, p. 212),
11
Houve um declínio acentuado da população e uma alta nos preços na Europa do século XIV que foi
causado pelas guerras (como a Guerra dos cem anos), fome e epidemias (como o grande surto da peste
negra de 1348) (WALLERSTEIN, 1988).
12
A guerra medieval era muito baseada nos cavaleiros, mas depois uma infantaria disciplinada se tornou
o cerne dos exércitos (WALLERSTEIN, 1988 p. 28).
13
Esse também foi o início da expansão europeia pelo mundo. Além disso, As reformas militares criadas
por Maurício de Nassau durante a guerra dos Oitenta Anos, inspiradas nas antigas legiões romanas,
provaram ser imensamente superiores às demais práticas militares europeias. Como não permaneceram
em sigilo, as técnicas de treinamento militar de Nassau rapidamente se espalharam pela Europa, fazendo
com que as forças militares europeias, mesmo em menor número, demonstrassem uma grande
superioridade quando confrontavam com outros povos. Como resultado disso; as grandes companhias
comerciais europeias na Índia e na Indonésia passaram a controlar e governar os territórios (MCNEILL,
1982, p.126-135)
16
essa característica de fronteiras bem definidas precedeu outras características do Estado
moderno, como administração racional, capacidade fiscal e lealdade nacional.
Wallerstein (1988, p. 29-32) destaca ainda que foram dentro dessas fronteiras que
futuramente seriam construídos os sentimentos nacionalistas.
A partir do século XVII, os Estados europeus passaram a monopolizar e
controlar a coerção14. Governantes contaram com o capital gerado pelas cidades
enquanto centralizaram o poder, declarando criminoso o porte de armas para a maioria
de seus cidadãos e banindo os exércitos particulares, tão comuns durante a maior parte
da história europeia. Tilly (1996, p. 125 e 126) salienta que os Estados conquistaram o
monopólio da coerção de formas diferentes, sendo através da cooptação ou da guerra
civil em regiões dominadas pelos grandes proprietários de terras ou através de
negociações com autoridades municipais e policiamento dentro das regiões urbanas, por
exemplo.
A conquista do monopólio da força15 deu sentido à clássica definição weberiana
de Estado como “a comunidade humana que pretende, com êxito, o monopólio do uso
legítimo da força física dentro de um determinado território” (WEBER, 1982, p. 98); e
tornou relevante e distinta a política “interna” e “externa”, que até então se
confundiam16. Além disso, como aponta Wallerstein (1988, p. 136), os reis, na época os
gestores da máquina estatal, se utilizaram do capital proveniente das cidades para
aumentar a centralização do poder e controle interno através de outros três elementos:
burocratização, criação de legitimidade e homogeneização da população.
Quando a acumulação e a concentração dos meios coercivos se desenvolvem
juntos, produzem Estados; produzem organizações distintas que controlam os
principais meios concentrados de coerção dentro de territórios bem definidos,
14
Spruyt (2007, p. 212) alega que a monopolização da violência só pode acontecer se os governos são ao
menos parcialmente legítimos; além disso, está relacionada com a habilidade do governo central em
estabelecer uma administração eficiente com capacidade de arrecadar impostos (SPRUYT, 2007, p. 212).
Wallerstein (1988, p. 29-32) salienta o papel dos impostos no fortalecimento do Estado por ser uma fonte
de renda sem efeitos negativos a longo termo, além de reduzir a receita dos nobres e criar a necessidade
de fronteiras bem definidas.
15
Na maior parte da história europeia era normal que homens comuns possuíssem armas letais; além
disso, também era habitual que detentores de poder local ou regional controlassem meios concentrados de
força que muitas vezes poderiam igualar ou até mesmo sobrepujar as forças do Rei. (TILLY, 1996, p.
125).
16
Durante a Idade Média era impossível distinguir atores exercendo política internacional e doméstica.
Uma complexa rede de bispados, nobres, reis, imperadores e cidades exerciam simultaneamente a
reivindicação da jurisdição de um mesmo território, de forma que ocupantes de um espaço em particular
eram subordinados a diversas autoridades. Como todos esses atores assinavam tratados e engajavam em
conflitos independentemente, nenhum possuía o monopólio da força. É válido ressaltar que durante esse
sistema, a Teoria Neorealista de anarquia internacional fica prejudicada pela ausência de unidades
distintas com esferas mutuamente exclusivas de jurisdição (SPRUYT, 1994, p. 12,13).
17
e em alguns aspectos exercem prioridade sobre todas as outras organizações
que operam dentro desses territórios (TILLY, 1996, p. 68).
O desenvolvimento de um Estado centralizado motiva o cultivo do sentimento
nacionalista. Para Wallerstein (1988, p. 146), inicialmente seria possível dizer que os
Estados eram contrários ao nacionalismo, já que suas fronteiras incluíam povos de
diferentes nacionalidades, e, que, apenas nos séculos XVIII e XIX, o nacionalismo
encontrou seus verdadeiros defensores dentro da burguesia17. A partir de então, como
aponta Arednt (2013, p. 191), o nacionalismo se tornou um precioso aglutinante que
uniu o Estado centralizado com uma sociedade atomizada ao transformar o Estado em
instrumento da nação e o cidadão se identificando como seu membro.
As vantagens obtidas pelo rei no final da idade média com a sua centralização,
burocratização e disponibilidade de capital permitiram que o Estado pudesse aumentar
os impostos18 e contrair empréstimos. Em regiões com grande acúmulo e concentração
de capital, os Estados usaram essas receitas cada vez maiores para aumentar seu poder
coercitivo. Segundo Wallerstein (1988, p. 138), isso possibilitou a existência de dívidas
nacionais, ou seja, déficit nos orçamentos do Estado – algo inexistente até então, já que
para isso o Estado deve possuir a capacidade de realizar atrasos no pagamento –
forçando os indivíduos a esperar - ou mesmo se recusar a pagar, enquanto obriga grupos
a emprestar os excessos de circulantes.
Esse processo de monopolização da força e fortalecimento do Estado evidencia o
ciclo de coerção, capital e formação do Estado. Enquanto os impostos, a principal fonte
de arrecadação dos Estados, financiavam os gastos militares, as forças armadas
garantiam a defesa ou expansão das fronteiras e o controle interno. Durante essa época
de centralização, as forças armadas também eram a maior fonte de despesa do Estado,
incentivando um aumento dos impostos e uma reforma tributária (TILLY, 1975, p. 2324). Além disso, como salienta Herbst (1990, p. 120-121), durante as épocas de guerra é
quando o Estado consegue aumentar os impostos com menor resistência da sua
população – já que o conflito oferece grandes ameaças à segurança19 - e esses impostos
17
Apesar disso, o sólido interesse da burguesia holandesa em conquistar a sua independência dos
Habsburgos espanhóis, criou um sentimento que Arrighi (2000, p. 45) chama de protonacionalismo.
18
“Impostos se compõe de cinco categorias amplas: tributos, rendas, impostos sobre a circulação, taxas
sobre os estoques e impostos sobre a renda”. (TILLY, 1996, p. 147)
19
Segundo Herbst, com exceção da guerra, não há nenhum outro tipo de crise que exija um aumento de
impostos com tanto vigor e que seja feito sem grande oposição. Além disso, como sugere o trabalho de
Ames e Rapp, o sistema tributário costuma ser regido por uma grande inércia (AMES; RAPP, 1977, p.
177; HERBST, 1990, p. 129).
18
acabam por não retornar aos níveis ante bellum quando terminam as hostilidades
(MANN, 1986, p. 433), possibilitando assim uma ampliação da arrecadação estatal.
Assim, a partir da interação entre coerção e capital é possível analisar os
diferentes tipos de Estados que se formaram. Em regiões com intensa aplicação de
coerção e pouca circulação de capital, os governantes extraíam recursos para a guerra
através da requisição direta e do recrutamento, uma vez que os impostos sobre o
comércio geravam poucos retornos, situação que deu origem a pesadas máquinas fiscais
e uma maior concentração de poder a quem controlava os recursos essenciais,
geralmente os grandes proprietários de terras. Por outro lado, em economias com grande
circulação de capital, a presença dos capitalistas e de organizações municipais, ao
mesmo tempo em que reduziu drasticamente o controle do Estado sobre os indivíduos,
possibilitou uma maior arrecadação através de impostos aplicados sobre as atividades
comerciais (TILLY, 1996, p. 161).
Diante disso percebe-se que a guerra representou um papel fundamental no
processo de construção do Estado. Ao promover a guerra para neutralizar seus rivais
externos, tornou-se necessário a obtenção de capital financeiro e humano, o que fez com
que o Estado fizesse uso do seu poder de coerção para extrair tais recursos de sua
população. É necessário ressaltar, contudo, que essa extração não se deu sem a
resistência popular, o que forçou o Estado a promover concessões, como a garantia de
direitos e a criação de instituições (TILLY, 1985, p. 181-183). Assim, as guerras, na
construção do Estado, atuaram como um vínculo entre a sociedade e o mesmo,
contribuindo tanto para o fortalecimento da capacidade estatal, quanto para a sua
consolidação como unidade central do Sistema Internacional.
2.2. Expansão do Estado europeu para o resto do mundo
O processo de formação dos Estados nos países em desenvolvimento apresenta
suas peculiaridades quando comparado à trajetória europeia. A grande maioria dos
países em desenvolvimento herdou o aparelho colonial europeu, incluindo as fronteiras,
sendo este, contudo, majoritariamente coercitivo, uma vez que as potências coloniais
deixaram pouco capital aos seus sucessores e o desenvolvimento do mesmo se deu em
função de promover o controle da colônia. Sendo assim, nos países em
desenvolvimento, segundo Tilly (1996, p. 283), as mesmas forças armadas que antes
19
eram utilizadas para manter a administração local, acabaram se especializando muito
mais no controle das populações civis e nos combates aos insurgentes do que às guerras
entre Estados20.
Os principais detentores do poder se opuseram à transformação da
organização governamental existente ou distorceram-na, os funcionários
públicos usaram o poder do Estado para satisfazer os seus próprios objetivos,
os partidos políticos se tornaram veículos dos blocos étnicos ou dos vínculos
patrão-cliente, as empresas dirigidas pelo Estado entraram em colapso, os
líderes carismáticos eliminaram a política eleitoral de estilo ocidental, e
muitas outras características dos Estados do Terceiro Mundo contestaram os
modelos ocidentais (TILLY, 1996, p. 275).
Desde o início das independências de países africanos, os líderes reconheceram
um alto potencial de grupos separatistas, que buscam a independência ou desejam se
juntar a outro país. Em detrimento disto, propuseram, na Organização da África Unida
em 1963, que qualquer alteração nas fronteiras coloniais seria ilegítima. Esse sistema,
juntamente com o sistema ONU, se tornou tão eficiente que evitou as guerras de
conquista, tão comuns na Europa do passado, de forma que poucos Estados em
desenvolvimento sintam qualquer ameaça externa (HERBST, 1990, p. 124).
Em contraste com a experiência europeia, a ausência de conflitos externos
dificulta consideravelmente a reforma no sistema tributário, já que, além da guerra, é
muito difícil ter outro motivo que faça o cidadão aceitar um aumento de impostos.
Herbst (1990, p. 130) salienta ainda que guerras civis não conseguem ampliar a
extração, já que o crescimento do Estado moderno não é explicado pelo ambiente
doméstico e sim em relações geopolíticas de violência.
A guerra na Europa desempenhou um papel importante na evolução do
mecanismo do Estado e na relação entre sociedade e Estado porque é de uma
dificuldade extraordinária, fora de tempos de crise, reformar partes
elementares do sistema governamental, como os meios de tributação ou uma
verdadeira mudança na identidade nacional (HERBST, 1990, p. 128,
21
tradução nossa) .
Além disso, a garantia jurídica da soberania estatal, propiciada pela ampliação
do Direito Internacional, pôs fim ao temor de ser conquistado e desaparecer do mapa,
algo vivenciado pela maioria dos Estados europeus. Tal fato, somado aos problemas
20
Uma característica das forças armadas coloniais era um padrão de recrutamento instituído pelas
potências, de forma que recorriam a um determinado grupo étnico, linguístico ou religioso para compor as
fileiras do exército colonial. Algo que se tornou o instrumento de grandes rivalidades étnicas (TILLY,
1996, p. 283).
21
“War in Europe played such an important role in the evolution of the state mechanism and society's
relationship with the state because it is extraordinarily difficult, outside times of crisis, to reform
elemental parts of the governmental system, such as the means of taxation, or to effect areal change in
national identity”.
20
internos relacionados à identidade e ausência de nacionalismo, fez com que as forças
armadas muitas vezes deixassem de se preocupar com a defesa para controlar a
infiltração, concentrando-se cada vez mais na repressão às populações civis e no
combate aos insurgentes. Em países da Ásia e África, que conquistaram a independência
após 1945, iniciaram-se diversas guerras civis em detrimento de reivindicações de
autonomia ou controle do Estado por grupos marginalizados. O cenário da Guerra Fria
incentivou as grandes potências a intervirem consideravelmente mais nos conflitos,
apoiando facções simpáticas em troca de cooperação (TILLY, 1996, p. 286).
Entretanto, o mecanismo de coerção e capital é questionado como solução para o
fortalecimento do Estado nos países em desenvolvimento. Uma análise sobre o papel da
guerra para arrecadação de capital, fortalecimento das forças armadas e construção do
Estado em uma comparação entre Vietnã e Afeganistão nas guerras contra as grandes
potências da guerra fria (Estados Unidos e URSS, respectivamente), demonstra que dois
fatores chave contribuíram para o fortalecimento do Estado no Vietnã e que são
ausentes no Afeganistão: um núcleo étnico (o mais importante) e a combinação de
guerra e revolução, fator que auxilia na unificação de uma ideologia nacional. Segundo
Taylor e Botea (2008), a guerra nos países em desenvolvimento sem esses elementos
leva os Estados ao enfraquecimento.
O mecanismo de coerção e capital que fez o Estado prosperar na Europa não se
torna mais tão eficiente quando aplicado aos novos Estados. Ao receberem ajuda militar
das grandes potências e deixarem de precisar da tributação e do recrutamento para o
estabelecimento de suas forças armadas; o vínculo entre sociedade e Estado se
enfraquece. Em seu estudo sobre a construção do Estado na América Latina, Centeno
(1997) mostra como a presença dos conflitos não criou Estados capacitados. As fontes
alternativas de capital, como empréstimos internacionais, substituíram os impostos e os
países da região deixaram de ampliar sua extração dos recursos domésticos. Além disso,
no momento em que ocorreram os conflitos (a maioria no pós-independência), os
Estados latino americanos ainda não estavam preparados estruturalmente, politicamente
e ideologicamente para colherem as oportunidades da guerra. Não obstante, Centeno
(1997, p. 1578) apresenta como as dívidas feitas pelas guerras na América Latina foram
financiadas através das exportações de royalties, sem que houvesse um aumento da
extração dos Estados latino-americanos por meio de impostos domésticos. A destruição
da economia e o início da dívida dos países tornou a ascensão de uma burguesia
21
nacional muito mais difícil e os Estados da América Latina nunca conseguiram impor
uma união interna, essencial para o processo de extração, mesmo com a ameaça externa
existente (CENTENO, 1997, p. 1583).
Os casos da América Latina sugerem que existem três pré-requisitos cruciais
para o desenvolvimento institucional auxiliado pela guerra. Em primeiro
lugar, os Estados relevantes devem ser forçados a se voltarem para dentro, de
forma a enfrentar os desafios financeiros da guerra. Em segundo lugar,
devem existir mecanismos administrativos adequados para gerenciar a
explosão tanto em receitas quanto despesas. Em terceiro lugar, o Estado
central já deve ter estabelecido a sua soberania sobre o território e deve ser
apoiado por atores locais de forma a tornar a extração doméstica rentável
22
(CENTENO, 1997, p. 1569, tradução nossa) .
Desse modo, Centeno (2002, p. 106) destaca a importância da resistência social
frente à penetração do Estado. Nesses casos, a combinação de coerção e capital,
representada pelo recrutamento militar e impostos, não funciona apenas porque existe
um aparelho burocrático; a capacidade do Estado de extrair recursos está diretamente
relacionada à vontade da população em aceitar essas imposições. Assim, a capacidade
estatal não é uma questão apenas de força, mas também o potencial das sociedades de
resistirem ou apoiarem a invasão do Estado.
2.3. Legitimidade
Dentro das ciências sociais e políticas o conceito de legitimidade é um dos mais
confusos e de difícil definição (HARDIN, 2007, p. 238). Todavia, a importância da
análise de legitimidade é atribuir uma ênfase nas relações entre Estado e sociedade e
entender como esta contribui para a formação da política do Estado. Assim, como
aponta Seabrook (2002, p. 3, tradução nossa), analisar a “legitimidade nos permite
visualizar as ações do Estado como sendo mais do que respostas funcionais às restrições
impostas pelo anárquico sistema internacional” 23.
Porém, antes de analisarmos essa relação entre governantes e governados, é
fundamental diferenciarmos o respeito, o consentimento e a legitimidade. O monopólio
22
The Latin American cases suggest that there are three critical prerequisites for institutional
development aided by war. First, the relevant states must be forced to turn inward in order to meet the
financial challenges of war. Second, adequate administrative mechanisms must be in place to manage the
explosion in both revenues and expenditures. Third, the central state must have already established
sovereignty over its territory and must be supported by enough local actors as to make domestic
extraction profitable.
23
“Legitimacy allows us to view state action as more than a functional response to constraints imposed by
an international anarchical system”.
22
da força, de fato, impõe respeito e consentimento através da coerção. Segundo Hardin
(2007, p. 236-237), em geral, a relação entre cidadãos e seus governos se baseiam
principalmente na aquiescência. Todavia, a legitimidade é algo praticamente pessoal e
emocional – “uma noção moral que não pode ser reduzida para um interesse próprio
racional” (BUCHANAN; KEOHANE, 2006, p. 409, tradução nossa). Em tempos de
guerra, porém, o objetivo das pessoas e dos governos costuma ser o mesmo, que é o de
vencer e sobreviver à guerra; nesse caso é plausível que um governo seja legítimo a
quase todos dentro do país. Por outro lado, em termos de revoltas populares, até a
aquiescência fica em questão, mas é extremamente difícil para uma população se
organizar contra seu próprio governo, principalmente se ele funciona razoavelmente
bem e ainda consegue manter a ordem – nesse sentido, como apontam Buchanan e
Keohane (2006, p. 410), é importante que a autoridade imposta, para manter-se estável,
seja fundamentada em elementos além do medo da coerção; a África do Sul e o
Apartheid, nesse sentido, falharam miseravelmente.
Assim, tendo em vista a dificuldade de trabalhar com algo tão abstrato como o
sentimento individual, ainda que fundamentais para a estrutura de domínio (WEBER,
1982, p. 99), adotaremos duas abordagens distintas da legitimidade: no âmbito
doméstico e dentro do sistema internacional. Internamente, consideraremos a
legitimidade como sendo a relação entre Estado e a sua população, algo diretamente
relacionado com autoridade e dominação (TILLY, 1985, p. 171) – trata-se de uma
interpretação neo-weberiana de legitimidade que se preocupa em como o governo
funciona e se mantém. Dessa forma, a força relativa do Estado perante a sociedade e a
sua capacidade de alterar a distribuição de recursos, atividades e conexões interpessoais
é definida como Capacidade Estatal. Esse conceito nos permite vincular poder nacional
com democracia, já que uma reduzida capacidade estatal representa uma fraqueza do
Estado, ao passo que uma capacidade muito alta representa uma excessiva autonomia do
Estado (CASTELLANO, 2012, p. 2-3; TILLY, 2007, p. 16).
Historicamente, o Estado nacional sofreu uma grande ampliação de suas
capacidades durante a Revolução Francesa. Se até então os Estados funcionavam de
forma indireta, com os reis negociando com os grandes proprietários de terras, os
revolucionários parisienses se viram diante da ausência desses intermediários. O mapa
da França foi, então, reformado em um sistema cheio de departamentos, distritos,
cantões e comunas, enquanto que emissários do governo revolucionário eram enviados
23
por todo o território; criaram assim o sistema de governo direto. O governo direto
estabeleceu uma gigantesca expansão do Estado e uma invasão sem igual na vida das
pessoas – através da formação de uma imensa rede de funcionários organizados para o
funcionamento do seu serviço burocrático e de imensos exércitos de cidadãos, como o
das Guerras Napoleônicas. Logo, as legislaturas nacionais passaram a ser alvo de
reivindicações por parte de grupos bem organizados que exigiam mais proteção,
aplicação de justiça, produção e distribuição, ampliando para muito além da guerra as
funções do Estado (TILLY, 1996, p. 172-181).
Dentro do sistema internacional, porém, o conceito de legitimidade se torna de
mais fácil compreensão. Nesse contexto, legitimidade implica que as estruturas da
ordem internacional são aceitas por todas as grandes potências (ou que pelo menos
nenhuma seja tão contrária). Assim, como aponta Kissinger (1957, p. 1-2 apud GILPIN,
1981, p. 12, tradução nossa), “uma ordem legítima não torna os conflitos impossíveis,
mas limitam seu escopo” 24. O Estado ou coalizão de Estados que criam as estruturas,
segundo Gilpin (1981, p. 34), serão aceitos como legítimos devido a três fatores: (1) o
“direito de governar” o sistema foi conquistado através de uma guerra e o Estado
dominante demonstrou capacidade o bastante para fazer cumprir sua vontade sobre
outros; (2) a regra da potência dominante oferece vantagens, como benefícios
econômicos e securitização internacional; e (3) a posição da potência hegemônica
costuma ser apoiada por valores comuns a vários outros Estados, como ideologias e
religião.
2.4. Sistema Internacional
A definição de sistema feita por Mundell e Swoboda (1969, p. 343 apud
GILPIN, 1981, p. 26) é de uma agregação de diversas entidades unidas por interações
regulares de acordo com a forma de controle. No sistema internacional25, as principais
entidades são os Estados (outros atores também podem influenciar), que interagem por
meio das relações políticas, econômicas, militares, entre outras.
24
“A legitimate order does not make conflicts impossible, but it limits their scope”.
Sistema Internacional é um termo bastante amplo. Como aponta Gilpin (1981, p. 26), até a era moderna
não existia um único sistema internacional, mas sim vários sistemas com pouco ou nenhum contato entre
eles. Para esse trabalho, portanto, usaremos sistema internacional como o sistema de dimensão global da
atualidade e sistemas regionais; como, por exemplo, a África austral.
25
24
Assim como em qualquer outro sistema social ou político, o sistema
internacional é estabelecido por atores que criam estruturas com a finalidade de
alcançarem seus objetivos; contudo, como os interesses entre diferentes atores muitas
vezes são conflitantes, os interesses mais favorecidos pela ordem refletem o poder26
relativo das partes envolvidas. Todavia, através do tempo e de acordo com o progresso
econômico, tecnológico, militar, entre outros, os interesses dos atores e a balança de
poder entre eles mudam; de forma que aqueles que seriam beneficiados por tal mudança
e quem têm o poder necessário vão buscar alterar o sistema de acordo com os seus
interesses. O resultado disso, como aponta Gilpin (1981, p. 9), é que o sistema
resultante irá refletir uma nova configuração de poder e os interesses de seus membros
dominantes.
Isso nos leva a outra característica fundamental do sistema internacional: o
controle. Muitos teóricos entendem que a essência das relações internacionais é a sua
ausência de controle, ou a anarquia entre os Estados; todavia, assim como aponta Gilpin
(1981, p. 27-34), apesar dessa anarquia, o sistema exerce um elemento de controle 27
relativo sobre o comportamento dos Estados28 que se baseia em três fatores: (1) na
distribuição de poder, a capacidade militar de um Estado de impor a sua vontade sobre
outro; (2) o prestígio, algo diretamente relacionado ao poder, mas distinto: o prestígio é
a probabilidade da vontade do Estado ser obedecida, sem a necessidade de um conflito
(algo que podemos chamar como reputação de força); e (3) poder econômico.
Assim, quando ocorrem transformações que alteram esses fatores e a
distribuição de poder, de modo que outras potências podem desafiar a hegemônica, criase uma incongruência no sistema. Nesse caso, o sistema ainda favorece a potência
hegemônica, mas a base da sua governança desmorona – criam-se, então, desafios para
as potências dominantes e oportunidades para as potências em ascensão. Como no
processo de formação dos Estados, o principal mecanismo de mudança no sistema é a
guerra. Nesse sentido, o que Gilpin (1981, p. 15) chama de “guerra hegemônica” são as
guerras que determinam os Estados dominantes e que irão governar o sistema, bem
como quais serão os interesses que serão favorecidos dentro do sistema.
26
Assim como Gilpin (1981, p. 13), entendemos poder como a capacidade militar, econômica e
tecnológica dos Estados.
27
Existem três tipos de estrutura que caracterizam o controle do sistema: hegemônico, bipolar e balança
de poder(GILPIN, 1981, p. 29)
28
Importante destacar que, em toda a história, nunca um Estado conseguiu controlar todo o sistema
internacional, embora tentem controlar (GILPIN, 1981, p. 28).
25
Sendo compreendidas como um fator de transformação das estruturas do sistema
internacional e de alteração da ordem estabelecida no mesmo, as guerras foram
fundamentais, tanto para o processo de formação dos Estados quanto para a
determinação da governança do sistema. Sendo assim, da mesma forma que as guerras
foram capazes de promover a alteração das unidades do sistema, concedendo este papel
ao Estado nacional e caracterizando o que Gilpin afirma ser uma mudança do sistema
(sistems change), elas são capazes de modificar a polaridade do sistema e reorganizar
sua hierarquia, o que é tido por Gilpin como uma mudança sistêmica (sistemic change).
A Segunda Guerra Mundial caracterizou-se, assim, como a última guerra hegemônica
até então, decretando a ascensão dos Estados Unidos como superpotência e
estabelecendo a ordem norte-americana para o sistema internacional atual.
Este capítulo buscou fundamentar as análises teóricas dos casos escolhidos a
partir de dois diferentes níveis de análise: da formação do Estado e da sua interação
dentro do sistema. Podemos perceber que o modelo de Estado europeu, fruto da
articulação entre coerção e capital, se propagou pelo globo e se estabeleceu como a
principal unidade do Sistema Internacional. Além disso, é importante destacar que todas
essas interações, capazes de consolidar o Estado e ampliar suas capacidades dentro do
sistema, foram concretizadas a partir das guerras. A partir disso, analisaremos os
Estados de África do Sul e dos Estados Unidos a fim de identificarmos elementos que
contribuíram ou enfraqueceram a capacidade estatal e a sua consequente atuação no
sistema.
26
3. Guerra e Formação do Estado nos EUA
Desde os primórdios dos Estados Unidos (EUA) existe a crença no
“excepcionalismo norte-americano”, um elemento que transformaria o país em algo
diferente dos demais. Ainda que esse tipo de crença seja comum a todos os povos, nos
Estados Unidos isso ocorreu na sua trajetória da formação do Estado quando comparado
aos países europeus: a imigração quebrou as rígidas estruturas hierárquicas do sistema
feudal e criou uma nação que desde cedo se apoiou em bases republicanas e de homens
livres. A participação política de todos os homens brancos foi tão sólida que inverteu o
processo de modernização política ocorrido na Europa ocidental (BENSEL, 2003, p. 45; HUNTINGTON, 1973, p. 93) e retardou consideravelmente o processo de
centralização da autoridade, de forma que até isso ocorrer, durante a Guerra Civil
(1861-1865), essa anomalia foi estudada por muitos contemporâneos europeus.
Tocqueville (2005, p.69) considerava o país uma união de pequenas nações soberanas;
Hegel (1991, p. 103) negava a existência do Estado, colocando-o como o país do futuro;
enquanto que Marx e Engels (2002, p. 74), na contramão, consideravam os Estados
Unidos como o mais perfeito exemplo de Estado moderno. Entretanto, a partir da
Guerra Civil e da modernização da sociedade decorrente da urbanização e da
industrialização, o Estado norte-americano tornou-se centralizado como os demais e
dispondo de grandes capacidades, demonstradas ao mundo a partir da guerra hispanoamericana. A Primeira e a Segunda Guerra Mundial ampliaram ainda mais as
capacidades norte-americanas, fazendo com que os Estados Unidos se tornassem a
superpotência do cenário internacional e decretassem a sua ordem através da
legitimidade da ONU, do poder das armas atômicas e economicamente pelos acordos de
Bretton Woods (ARRIGHI, 2000, p. 283). Desse modo, o presente capítulo é dividido
em três partes: a primeira, que analisa o Estado norte-americano a partir das guerras de
independência; a segunda, que busca analisar a ascensão dos Estados Unidos a grande
potência; e a terceira, que percebe o país como a superpotência mais capaz do mundo.
3.1. Conquista da independência
Durante todo o período colonial, os colonos puderam se desenvolver
economicamente, politicamente e até militarmente de forma independente; a Guerra dos
27
Sete Anos (1756-1763)29, porém, alterou esse cenário. Se por um lado os britânicos
venceram o conflito, eliminaram a influência francesa e espanhola com os nativos e
fixaram fronteiras coloniais30; por outro lado, para os americanos não existia mais uma
ameaça externa para a sua colônia e o envio de tropas britânicas para a América em
tempos de paz foi vista como uma opressão31. Além disso, a vitória britânica
proporcionou a possibilidade de desenvolver um império global e passou a cobrar das
colônias americanas uma parte justa de sua manutenção através de forças armadas
permanentes fixadas na América. Os impostos que os britânicos introduziram sobre os
americanos ainda eram muito baixos, de forma que o impacto era muito pequeno, mas
eles nunca conquistaram a posição onde o Estado pode institucionalizar a extração
(MANN, 1993, p. 143-144).
3.1.1. Coerção
Em um período de constante ameaça e pouca segurança, as colônias norteamericanas criaram o sistema de defesa armada baseada em milícias de valorosos
cidadãos-soldados, de modo que todo homem branco saudável deveria portar uma arma.
Esse sistema de defesa foi muito eficiente ao garantir a segurança colonial contra
pequenos grupos de nativo-americanos e revoltas de escravos, mas tinha pouca
experiência em combates de grande escala. E apesar de poucas vitórias das milícias na
Guerra dos Sete Anos, os colonos eram muito orgulhosos do seu sistema de defesa
(MARTIN; LENDER, 2015, p. 15-16). Esse sistema de milícias de cidadãos foi o que
os colonos usaram para conquistar sua independência, acreditando que a virtude
pública, patriotismo e o sonho pela liberdade contrabalanceariam o treinamento e a
experiência dos soldados profissionais ingleses. De forma a organizar e juntar as
29
As primeiras explorações francesas na América do norte e a fundação de Quebec (1608) foram vistas
como um sinal de alarme para os colonos anglo-americanos. No decorrer dos séculos XVII e XVIII,
várias escaramuças foram travadas entre assentamentos franceses e colônias britânicas, contando também
com a presença de aliados nativo-americanos em ambos os lados (BOYER, 2012, p. 13-14).
30
O rei inglês reservou, em 1763, todos os territórios a leste dos Montes Allegheny, da Florida, do rio
Mississipi e do Quebec para os nativo-americanos, fato que foi visto pelos americanos como um grande
desrespeito do seu direito fundamental de ocupar e colonizar essas terras.
31
A Inglaterra não enviou as tropas reais para a América a fim de coagir os colonos que resistissem às
políticas imperiais e sim como uma maneira mais barata de evitar futuros conflitos contra os índios ou um
ressurgimento francês. Dessa forma, os líderes britânicos não estavam planejando acabar com as já
existentes liberdades políticas da colônia, mas sim preocupados em alcançar eficiência na administração e
economia do vasto império conquistado após a Guerra dos Sete Anos (MARTIN; LENDER, 2015, p. 15)
28
milícias de todos os estados em uma única força foi criado o Exército Continental, sob a
liderança de George Washington. (MARTIN; LENDER, 2015, p. 31-39).
Contada pelos vencedores, a guerra pela independência dos Estados Unidos
destaca erros britânicos e a motivação dos cidadãos americanos pela liberdade.
Entretanto, como destaca Mann (1993, p. 149), o revisionismo recente percebe que o
governo britânico temia que a rebelião se espalhasse para a Irlanda, de onde a França
poderia ameaçar a própria Grã-Bretanha (e por causa disso, mais tropas foram
disponibilizadas para lidar com uma eventual ameaça irlandesa do que para os generais
na América). Além disso, a entrada de França e Espanha no conflito foi decisiva, de
forma que o conflito poderia ter se arrastado por muito mais tempo sem a participação
desses países. De fato, os últimos anos de guerra mostraram uma situação ameaçadora
para o império britânico: retrocessos na Índia; uma invasão espanhola na possessão
inglesa de Pensacola na Flórida Ocidental; forças franco-espanholas se preparavam para
atacar Gibraltar e ataques das marinhas francesa e espanhola tanto na América como no
Canal da Mancha colocavam os britânicos em uma posição complicada. Os custos da
guerra após sete anos de conflito e a ameaça da perda de muito mais do que treze
colônias acabaram levando os ingleses a aceitarem a independência americana em 1783
(MARTIN; LENDER, 2015, p. 187-188).
Pouco tempo após a independência norte-americana ser reconhecida pelos
britânicos, já na virada do século XIX as relações entre Reino Unido e Estados Unidos
eram razoavelmente amigáveis, de forma que os Estados Unidos eram dependentes das
importações de produtos manufaturados britânicos. Entretanto, o início das Guerras
Napoleônicas (1803-1815) veio a deteriorar drasticamente a relação entre norteamericanos e britânicos mais uma vez, de forma que ambos entrariam em guerra
novamente, no que ficou conhecido por muitos analistas como a Segunda Guerra de
Independência americana (BICKHAM, 2012, p. 18).
Apesar dos britânicos terem conquistado uma vitória militar indiscutível na
guerra de 1812, com avanços terrestres; destruição da marinha norte-americana;
controle de toda a costa atlântica e a destruição da capital norte-americana, Washington;
a guerra terminou com a assinatura do Tratado de Ghent, estabelecendo o status quo
ante bellum. Segundo Bickham (2012, p. 262-279), o Tratado de Ghent fez com que os
Estados Unidos fossem respeitados como uma nação soberana e os europeus não se
envolveram em posteriores conflitos na América do Norte (como as guerras entre norte29
americanos e mexicanos, contra os índios e durante a Guerra Civil), o que possibilitou a
expansão territorial dos Estados Unidos no decorrer do século XIX32.
3.1.2. Capital
Como resultado da independência política, os padrões de comércio entre colônia
e metrópole foram quebrados e os Estados Unidos puderam explorar novos mercados,
como a China; o Levante; o Báltico e as Índias Ocidentais (CHANDLER, 2008, p. 74).
Entretanto, é a guerra de 1812 e os anos antecedentes a ela de embargo entre norteamericanos e britânicos que levaram a um aumento significativo da produção de
produtos manufaturados na região norte dos Estados Unidos, substituindo a produção
doméstica pela de fábrica e formando a base para a maciça industrialização que
ocorreria na segunda metade do século XIX (ENGERMAN; SOKOLOFF, 2008, p. 372373).
Impulsionada pelo embargo precedente à guerra de 1812, a industrialização nos
Estados Unidos começou a partir do desenvolvimento da indústria têxtil. Em 1815,
Francis Cabot Lowell construiu a primeira fábrica têxtil dos Estados Unidos em
Massachusetts, utilizando-se de máquinas movidas pela força da água (CHANDLER,
2008, p. 80; ENGERMAN; SOKOLOFF, 2008, p. 373). Em pouco tempo, o baixo custo
de produção da fábrica fez com que as pequenas oficinas de tecelagem tivessem grandes
dificuldades para competir e, com a ajuda de uma queda nos preços do algodão e de um
efetivo sistema de financiamento para indústrias, diversas novas fábricas têxteis
começaram a surgir em torno dos rios da Nova Inglaterra.
Entretanto, é apenas a partir da década de 1840 que o processo de
industrialização se intensifica. Novas tecnologias, como o uso do carvão para gerar
energia e a melhora nos meios de transporte através das ferrovias, permitiram uma
dependência muito menor da água, o que possibilitou a construção de fábricas em
regiões urbanas. Além disso, houve uma enorme expansão do mercado interno norteamericano devido às grandes ondas de imigração proveniente da Europa, aumentando a
32
Bickham explica o motivo de o Império Britânico ter sido generoso nos acordos com os norteamericanos como sendo (1) humilhar os norte-americanos e mostrar que o Império Britânico poderia
ignorar a soberania deles e; (2) os planos britânicos de acabar permanentemente com a ameaça norteamericana custariam muito caro e não era do interesse britânico levar a guerra adiante por isso
(BICKHAM, 2012, p. 276-277).
30
população de 17 milhões em 1840 para 63 milhões em 1890 (CHANDLER, 2008, p. 8586). As ferrovias assumiram um papel central na industrialização e, como nos mostra
Chandler (2008, p. 90, tradução nossa), “as grandes somas de dinheiro que foram
necessários para a construção de ferrovias na década de 1850 causou a ascensão dos
bancos de investimento especializado nos Estados Unidos e na centralização e
institucionalização dos mercados monetários do país em Wall Street”.
3.1.3. Legitimidade
Uma vez conquistada a independência, era necessário criar uma Constituição
para a nova nação. Mann (1993, p. 155-159) afirma que houve grande consenso entre as
lideranças políticas sobre algumas questões, como o Estado ser um do tipo
representativo (para os homens brancos), sua laicidade e que deveria exercer pouco
poder militar sobre os cidadãos brancos (mas suficiente para coagir os não-brancos).
Entretanto, o debate foi mais intenso no que diz respeito a qual modelo econômico o
Estado deveria apoiar e no quão centralizado e nacional esse Estado deveria ser. O
resultado disso foi um Estado que garantia a liberdade do cidadão e a sua propriedade,
mas permanecia extremamente descentralizado, de forma que muitas estruturas e
funções governamentais (como educação, saúde, polícia etc.) seriam atribuídas aos
estados. Visto pelos europeus, os primórdios do Estado dos Estados Unidos era franzino
ou até mesmo inexistente; Tocqueville (2005, p. 128), por exemplo, diz que o Estado se
dissolveu logo após a independência e os pequenos estados se desenvolveram como
repúblicas independentes. Hegel (1991, p. 103), já considera que “um verdadeiro Estado
e governo só existiriam nos Estados Unidos quando riqueza e pobreza se tornarem
extremas e que as pessoas não mais puderem satisfazer suas necessidades da forma
como estão habituadas”. Marx e Engels (2002, p. 74), por outro lado, entenderam o
Estado norte-americano como o mais perfeito exemplo de Estado moderno, mas
justamente por entender que tal Estado só existia devido à presença da propriedade
privada. Entretanto, apesar dessas análises europeias, o Estado americano, segundo
Stephen Skowronek (2003, p. 19), “pode ser descrito tanto como se poderia descrever
qualquer outro Estado”.
[De acordo com Stephen Skowronek] os norte-americanos desenvolveram e
mantiveram um estado, abarcando a organização do poder coercitivo e um
senso de rotinas estáveis entre as instituições. Ele era baseado na aceitação de
31
um conjunto de regras e de instituições que, como os partidos e as cortes,
tinham existência nacional. Era esse Estado de “partidos e cortes” que fazia
guerras contra os índios, arbitrava as disputas entre os estados, mantinha uma
ordem legal integrada numa escala constitucional, ajudava o
desenvolvimento econômico e negociava tratados com outras nações. Essa
estrutura limitada foi essencial para a manutenção da ordem e para o
desenvolvimento social durante a primeira metade do século 19. O Estado
nacional era importante sobretudo no que diz respeito a um aspecto relevante
da política norte-americana no início do século, a expansão territorial
(IZECKSOHN, 2003, p. 50).
Salienta-se, todavia, que esse Estado descentralizado e com grande autonomia
para os estados-membros acabou por acentuar as diferenças entre as regiões norte e sul
e, como aponta Izecksohn (2003, p. 47-53), tornou a ameaça do separatismo um
elemento central na formação dos Estados Unidos. Destaca-se, porém, que apesar da
nova Constituição garantir espaço para a escravidão e exigir grandes propriedades de
terra para eleitores, ela já era mais democrática do que qualquer outro sistema europeu.
Mesmo após a vitória norte-americana e a consequente independência
reconhecida em 1783, os britânicos continuaram tratando os Estados Unidos como uma
colônia e muitas vezes desconsideravam sua soberania33; mais do que isso, o resto da
Europa ainda enxergava os Estados Unidos como parte da esfera de influência britânica.
A guerra de 1812 veio, então, como solução para esses problemas ainda não resolvidos.
Como aponta Maass (2015, p. 71), a guerra de 1812 foi muito mais um “blefe
diplomático” buscando concessões políticas dos britânicos do que uma guerra de
expansão territorial que buscava anexar o Canadá.
A independência norte-americana não representou alterações significativas no
sistema internacional durante esse momento; o Reino Unido, após a vitória sobre a
França Napoleônica, se tornou a potência hegemônica e a Pax Britannica permaneceria
até a Primeira Guerra Mundial. Entretanto, a guerra de independência e a guerra de
1812 deram aos Estados Unidos, mais do que independência política, o que Gilpin
(1981, p. 30-34) chama de prestígio. Ao combater os britânicos, principalmente na
guerra de 1812, os norte-americanos conseguiram se tornar respeitados como uma nação
33
A vitória da Marinha Real britânica na batalha de Trafalgar em 1805 e a vitória de Napoleão sobre
russos e austríacos em Austerlitz, ambas em 1805, levaram a um cenário onde britânicos dominavam os
mares enquanto os franceses dominavam o continente Europeu, de forma que uma vitória de um dos lados
não aconteceria tão cedo. Dessa forma, os britânicos buscaram isolar o continente proibindo o comércio
entre a França e os países que estavam fora do conflito – o que prejudicou diretamente o comércio
americano, que era neutro na guerra. Além de deixar as relações comerciais norte-americanas submissas
aos desejos da Coroa britânica, navios de guerra britânicos passaram a abordar navios mercantes norteamericanos para um recrutamento forçado de marinheiros para a Marinha Real; e por fim, existia uma
aliança britânica com os índios americanos nas fronteiras dos Estados Unidos. (MAASS, 2015, p. 73-75).
32
soberana e mantiveram os europeus afastados de posteriores conflitos na América do
Norte – um elemento fundamental para a formulação da Doutrina Monroe (1823) e
expansão territorial norte-americana, tido por Gilpin (1981, p. 23) como o primeiro
objetivo dos Estados para a ampliação de sua segurança e riqueza. Além disso, a ruptura
com o comércio britânico, então líder da produção manufatureira mundial, durante as
guerras motivou uma expansão da produção norte-americana em um período em que as
empresas puderam se estabelecer rapidamente e acompanhar o progresso tecnológico da
revolução industrial.
3.2. Guerra Civil: consolidação interna e projeção externa
Na primeira metade do século XIX, os Estados Unidos se tornam uma potência
continental: o Destino Manifesto34 combinou o fervor, o idealismo e até o misticismo do
Romantismo Americano com o realismo, desenvolvimento econômico e a ocupação
americana por todo o continente (JOHANNSEN, 1997, p. 13). Como resultado,
milhares de quilômetros quadrados foram incorporados aos Estados Unidos.
Além disso, a intensa imigração de europeus para os Estados Unidos, somada à
expansão territorial e constante crescimento industrial e de infraestrutura, tornaram a
nação um gigante econômico ainda na primeira metade do século XIX. Paul Kennedy
(1988, p. 178-179) levanta que observadores da época como Tocqueville (2005, p. 476477), já viam os Estados Unidos e o Império russo como as grandes potências do futuro,
e compara o potencial bélico-militar entre as duas grandes nações, mostrando o alto
grau de industrialização norte-americana, já em níveis próximos ao das grandes
potências europeias da época apesar de ter uma força militar muito pequena no período
anterior à Guerra Civil. Entretanto, como salienta Paul Kennedy (1988, p. 178), o
isolamento americano nos assuntos europeus e o cordon sanitaire que a Marinha Real
inglesa impôs para separar o Novo Mundo do Velho Mundo (muito mais do que a
Doutrina Monroe), significam que a única ameaça ao desenvolvimento americano era o
Reino Unido – mas ainda que tenham estado em guerra em 1776 e 1812, novas guerras
34
Em um artigo chamado “Annexation” no jornal Democratic Review de 1845, o jornalista John Louis
O'Sullivan mencionou pela primeira vez o “Destino Manifesto”, evocando a anexação do Texas
(JOHANNSEN, 1997, p. 7-8).
33
entre os dois países se tornaram cada vez mais improváveis, visto o grande fluxo de
capital e matérias primas desenvolvido entre os dois.
Todavia, dentro da política doméstica norte-americana, dois lados (norte e sul)
disputavam o controle pelo funcionamento securitário, econômico e ideológico do
Estado. Essas divergências fizeram com que, em fevereiro de 1861, onze estados
sulistas se separassem dos Estados Unidos e formassem os Estados Confederados da
América, dando início à Guerra Civil norte-americana (1861-1865).
3.2.1. Coerção
Se desde a independência os Estados Unidos mantiveram um pequeno número
de soldados em suas forças armadas, a guerra civil transformou os dois lados de
amadores a Exércitos de recrutamento em massa, com o uso de modernas armas de fogo
e artilharias, telégrafos, ferrovias e navios encouraçados, entre outros avanços
tecnológicos que a tornaram a primeira guerra total industrializada. Como aponta
Kennedy (1988, p. 178-182), era clara a vantagem do lado norte, que detinha uma
população de cerca de 20 milhões de homens brancos enquanto a Confederação tinha
apenas seis milhões. Além disso, a União recebeu mais de 800 mil imigrantes durante
os anos de conflito e tomou a decisão de alistar soldados negros em 1862, algo que os
confederados evitaram até os últimos meses de guerra – no auge de cada lado, o norte
chegou a ter um milhão de soldados, enquanto os confederados atingiram 464.500
soldados.
Apesar da ampliação do Estado norte-americano em função da guerra, ela não
conseguiu determinar o surgimento de um Estado fiscal-militar permanente e seguiu-se
uma intensa desmilitarização logo após o fim da guerra (ZAKARIA, 2000, p. 142). O
grande crescimento econômico e populacional, ocorrido na segunda metade do século
XIX, colocou os Estados Unidos na vanguarda da economia mundial. Conforme
Kennedy (1988, p. 243, tradução nossa), mesmo que os Estados Unidos “parecessem ter
todas as vantagens econômicas que algumas das outras potências possuíam em partes,
mas nenhuma das suas desvantagens35”, todo esse potencial não se refletia na sua
política externa. Isso fica evidente quando, como aponta Zakaria (2000, p. 74, tradução
35
“The United States seemed to have all the economic advantages which some of the others powers
possessed in part, but none of their disadvantages”.
34
nossa), “suas aquisições territoriais e protetorados, suas forças de defesa, suas ligações
com o estrangeiro e suas alianças eram insignificantes em comparação com outras
nações de recursos similares36”. O seu Exército, por exemplo, não chegava a ter 25.000
homens em 1890, um número menor que da Bulgária, e a marinha cerca de oito vezes
menor que a marinha italiana, considerada a mais fraca dentre as potências europeias
(KISSINGER, 2007, p. 28; ZAKARIA, 2000, p. 74).
A guerra hispano-americana37, em 1898, foi o marco de concretização dos
esforços de fortalecimento do Estado após a guerra de secessão e concedeu o título de
grande potência aos Estados Unidos. Em um rápido conflito, os norte-americanos
derrotaram por completo as forças de uma Espanha em plena decadência. O Tratado de
Paris, assinado em 10 de dezembro de 1898, eliminou os últimos vestígios do Império
Espanhol nas Américas e concedeu aos norte-americanos as ilhas de Cuba, Porto Rico e
Guam, além das Filipinas que, como aponta Kennedy (1988, p. 246), transformaram os
Estados Unidos em uma espécie de potência colonial na Ásia, simbolizando a sua
ascensão para a atuação inter-regional.
O sucesso militar gerou ainda uma grande onda expansionista nos Estados
Unidos, de forma que a anexação do Hawaii, após grandes debates ocorridos em
décadas anteriores, finalmente conseguiu ser aprovada. Entretanto, é sob a gestão de
Theodore Roosevelt (1901-1908) que ocorre a grande fase de expansão da força norteamericana no início do século XX. Em 1904, através do que ficou conhecido como
Corolário Roosevelt, confirmou-se as intenções originais da Doutrina Monroe e deixou
explícito o direito de intervenção dos Estados Unidos no hemisfério ocidental,
esclarecendo qualquer possível ambiguidade sobre quem controlaria a região
(HERRING, 2008, p. 371).
Essa maior atuação norte-americana na diplomacia também veio acompanhada
pela expansão do poder militar, principalmente pela marinha38: entre 1885 e 1889 já
havia começado a construção de 30 modernos navios de guerra, que segundo Zakaria
(2000, p. 113), marcaram uma mudança estratégica em direção a uma postura mais
ofensiva no mar; mas foi durante a guerra hispano-americana que o aumento da marinha
36
“Sus adquisiciones territoriales y protectorados, sus fuerzas de defensa, sus legaciones en el extranjero y
sus alianzas – eran insignificantes en comparación con los de otras naciones de recursos similares”.
37
A guerra entre Estados Unidos e Espanha começou devido à situação problemática em Cuba, que na
época desejava a sua independência (HERRING, 2008, p. 309-314).
38
A marinha é mais importante aos Estados Unidos pela sua posição geográfica e um importante
instrumento de diplomacia e comércio na América Latina e no Pacífico (KENNEDY, 1988, p. 247).
35
foi consolidado e empregado. Kennedy (1988, p. 247) coloca que a aquisição de novas
bases navais no Pacífico e no Caribe, o uso de navios de guerra como força policial na
América Latina e o envio da Great White Fleet39, demonstram a importância do poder
naval. Em 1914 a marinha norte-americana só era menor que a britânica e alemã; um
aumento impressionante para os 25 anos que antecederam à Primeira Guerra Mundial.
Entretanto, segundo Kennedy (1988, p. 248), apesar de os Estados Unidos ter se
tornado uma grande potência, ainda não era parte do sistema de grandes potências. O
domínio do hemisfério ocidental, a posição confortável de isolamento, distante das
outras grandes potências por milhares de quilômetros de oceano, e a ausência de uma
política internacional mais agressiva com o fim dos mandatos de Theodore Roosevelt,
mantiveram os Estados Unidos como um ator menos relevante no sistema de grandes
potências.
Quando as hostilidades da Primeira Guerra Mundial começaram, os Estados
Unidos estavam geograficamente longe das batalhas. Além disso, a longa tradição de
não se envolver nos conflitos europeus e a vantagem de poder comercializar com os
dois lados da guerra levavam os Estados Unidos para a neutralidade. No decorrer da
guerra, porém, as grandes relações comerciais entre norte-americanos e britânicos
(muito maiores do que com os alemães) somadas à campanha naval do Império Alemão,
baseada em submarinos, levaram a uma grande aproximação com os aliados e a uma
crise na posição de neutralidade. Durante esse período de neutralidade, um intenso
debate sobre a defesa nacional ocorreu entre apoiadores de uma intensa militarização e
os pacifistas, de forma que apenas em junho de 1916 foi aprovado o National Defense
Act e o Naval Expansion Act, ambas as medidas expandiram significativamente o
poderio militar norte-americano (HERRING, 2008, p. 399-410).
A chegada de 850.000 soldados norte-americanos no front europeu e uma
malsucedida ofensiva final deu aos comandantes alemães o presságio da derrota.
(HERRING, 2008, p. 411). Entretanto, como aponta Kennedy (1988, p. 271), não foi
esse o real significado da entrada dos Estados Unidos na guerra, já que as tropas norteamericanas eram menos preparadas para o moderno conflito do que qualquer força
europeia em 1914, mas sim através da sua força produtiva: a capacidade de lançar
39
A Great White Fleet foi uma frota naval enviada por Theodore Roosevelt em 1907 destinada a dar a
volta ao mundo como demonstração de força para anunciar a chegada de uma nova grande potência no
cenário internacional (HERRING, 2008, p. XV)
36
navios mercantes às centenas, de construir um destróier a cada três meses e possuir
metade de produção mundial de alimentos.
Com o final da Primeira Guerra, os Estados Unidos já haviam se tornado uma
das grandes potências mundiais, mas, apesar das frustradas tentativas do então
Presidente Wilson40, o que ocorreu foi um súbito isolamento diplomático do país no
cenário internacional, que voltou a ficar focado nos cambaleantes ingleses e franceses.
Como aponta Kennedy (1988, p. 277), com a rejeição do Senado norte-americano pelo
Tratado de Versalhes, as histórias diplomáticas do período são todas centradas na
França e sua procura pela segurança contra uma Alemanha ressurgente. Como ocorreu
em outros momentos, o isolamento norte-americano não foi exclusivo na área
diplomática, mas também nas forças de defesa: no período entre guerras, as forças
armadas norte-americanas ficaram significativamente reduzidas, em torno de 140.000
soldados, apesar de terem permitido a criação de uma moderna Força Aérea e o
desenvolvimento de porta-aviões e de cruzadores pesados (KENNEDY, 1988, p. 328).
3.2.2. Capital
O desenvolvimento econômico das regiões Norte e Sul dos Estados Unidos foi
muito diferente: o Norte caminhou na direção de um capitalismo comercial enquanto o
Sul manteve-se fortemente rural e agrícola, mas como aponta Izecksohn (2003, p. 58),
isso não foi suficiente para colocar o Sul numa posição subalterna ao Norte.
Inicialmente visto como uma prática sem futuro e fora de grandes debates, a escravidão
encontrou seu espaço na grande demanda de algodão das indústrias de tecido como
também nas terras conquistadas no oeste, gerando grandes conflitos e debates sobre a
extensão da escravidão para os novos territórios.
Durante a Guerra Civil, os confederados apresentavam uma grande inferioridade
econômica, com uma reduzida produção industrial em relação ao norte. Além disso, não
conseguiram pagar os custos do conflito, uma vez que a maior fonte de renda vinha
através das exportações de algodão, impedidos de serem negociadas durante a guerra
por causa do bloqueio nortista; o norte, entretanto, conseguia arrecadar dinheiro através
dos impostos e de empréstimos, além de ter estimulado o crescimento econômico e
40
Os 14 pontos de Wilson, expostos em 8 de janeiro de 1918, declaravam os objetivos de guerra da
América na Primeira Guerra Mundial (KISSINGER, 2007, p. 193-194).
37
industrial com a emissão de dinheiro. Salienta-se, todavia, o impacto da Guerra Civil
sobre a industrialização norte-americana: em vista das necessidades da guerra, muitos
consideram o conflito como o ponto de partida para o desenvolvimento das indústrias
nos Estados Unidos, mas como reforçam Engerman e Stanley (2008, p. 379), o período
anterior à guerra já demonstrava grande aumento da produção agrícola e industrial, e
mesmo que o conflito tenha influenciado alguns setores da indústria, como armamentos
e alimentos, ele não pode ser visto como a causa do crescimento econômico.
Ao final da Guerra Civil, porém, nenhum país possuía condições territoriais e
econômicas suficientes para desafiar a hegemonia britânica (GILPIN, 1981, p. 135). A
Pax Britannica, implantada pelo que Gallagher e Robinson (1953) chamam de
“imperialismo de livre comércio”, deu condições para os britânicos exercerem funções
de governo mundial. Porém, a partir de 1870, com a ascensão do Império Alemão, mas
principalmente dos Estados Unidos, o Reino Unido passou a perder esse controle.
Durante todo esse regime britânico, o sistema foi baseado em empresas de pequeno e
médio porte, altamente especializadas e unidas por uma complexa trama de transações
comerciais centrada no Reino Unido, mas abrangendo o mundo inteiro. Entretanto, a
pressão de uma forte competitividade acabou reduzindo consideravelmente os lucros,
pressionando comerciantes a buscarem novas alternativas de estruturas empresariais
(ARRIGHI, 2000, p. 291-295).
Como a variante alemã, a variante norte-americana de capitalismo de
corporações desenvolveu-se em resposta à intensificação, no mundo, das
pressões competitivas da plena expansão dessa economia mundial de
mercado centrada no Reino Unido. Não foi por um acidente histórico que as
duas variantes emergiram simultaneamente no decorrer da Grande Depressão
de 1873-96. Tal como na Alemanha, também nos Estados Unidos a
intensificação das pressões competitivas convenceu negociantes, políticos e
intelectuais de que um regime de concorrência irrestrita entre unidades
atomizadas não gerava estabilidade social, nem, a rigor, eficiência de
mercado (ARRIGHI, 2000, p. 295).
A formação de conglomerados para limitar a concorrência foi encontrada tanto
pelos norte-americanos como pelos alemães, mas entre as décadas de 1880 e 1890, eles
começaram a divergir radicalmente. Enquanto os alemães passaram a concentrar capital
através de integrações horizontais, os norte-americanos dirigiram-se às integrações
verticais41. Segundo Arrighi (2000, p. 296), a variante de corporações que emergiu nos
Estados Unidos constituiu-se muito mais eficaz e radical do que a variante alemã, em
41
Integrações verticais são as integrações de uma firma com as de seus fornecedores e clientes, enquanto
as integrações horizontais acontecem entre firmas concorrentes (ARRIGHI, 2000, p. 296).
38
relação ao sistema britânico. Isso só foi possível graças às grandes dimensões da
economia norte-americana, já que as oportunidades de integração vertical na Alemanha
se esgotaram rapidamente, guiando-os para a integração horizontal.
E de fato, como salienta Kennedy (1988, p. 242-249), de todas as mudanças
ocorridas na balança de poder mundial entre fins do século XIX e início do XX, as
maiores e mais decisivas foram nos Estados Unidos. Segundo Zakaria (2000, p. 73),
apesar das crises econômicas que ocorreram nas décadas de 1870 e 1890, a prosperidade
e o progresso norte-americano alimentaram a reputação de um país com oportunidades
ilimitadas, o que atraiu milhões de imigrantes europeus e dobrou a população do país
entre 1865 e 1900.
A Primeira Guerra Mundial acelerou o processo de consolidação dos Estados
Unidos como a maior economia do mundo. Quando o conflito começou, em 1914, o
Ministro do Tesouro britânico acreditava que os investimentos externos britânicos
(feitos em grande parte nos Estados Unidos) seriam suficientes para custear cinco anos
de guerra. Porém, já em 1915, a demanda de armamentos, máquinas e matérias-primas
superaram drasticamente o que tinha sido imaginado, e os Estados Unidos eram os
únicos possíveis fornecedores. Essa situação fez com que os Estados Unidos
recomprassem os antigos investimentos ingleses na infraestrutura norte-americana e
ainda acumulassem imensos créditos; e não apenas isso, mas também se aproveitaram
da posição ainda neutra na guerra e substituíram com rapidez o Reino Unido42 como o
principal investidor estrangeiro e intermediário na América Latina e partes da Ásia.
Esse processo já era inevitável, pois como alega Kennedy (1988, p. 244), a
economia norte-americana superaria toda a economia europeia em 1925 caso não
houvesse a Primeira Guerra. Com o conflito, o processo foi adiantado em seis anos
devido à destruição da infraestrutura europeia, algo que prejudicou significativamente a
produção industrial dos países afetados; de forma que a produção manufatureira de 1920
ainda era 7% menor que em 1913, a produção agrícola cerca de um terço abaixo do
normal e o volume de exportações era apenas a metade do período pré-guerra
(KENNEDY, 1988, p. 279). Por outro lado, países que se mantiveram distantes da
destruição em massa, como os Estados Unidos, viram suas economias impulsionadas
pela guerra de atrito europeia. Como nos mostra Hobsbawm (1995, p. 71), em 1929, os
42
Arrighi (2000, p. 279) conta que a Grã-Bretanha fez muitos empréstimos a aliados mais pobres,
principalmente a Rússia, que faliu e passou pela revolução, tornando a dívida incobrável.
39
Estados Unidos eram responsáveis por 42% da produção mundial, sendo que Reino
Unido, França e Alemanha, os grandes da Europa, eram responsáveis por 28%. Além
disso, também como resultado da guerra, muitos países estavam com grandes dívidas
em relação aos Estados Unidos; e o aumento muito mais acentuado da produção norteamericana em relação aos países devedores apenas acentuou as dificuldades destes em
pagar suas dívidas.
Contudo, como destaca Arrighi (2000, p. 279-281), os Estados Unidos
equiparam-se aos britânicos na produção e regulação do dinheiro mundial após a guerra,
mas não os substituíram; e ainda mais importante, “a capacidade norte-americana de
administrar o sistema monetário mundial continuava nitidamente inferior à capacidade
residual da própria Grã-Bretanha”.
Sob esse ponto de vista, como sugeriu Geoffrey Ingham (1989, p.16-7; 1984
p.203), deve ser revista a tese de que o sistema monetário mundial foi
instabilizado pela incapacidade britânica e pela falta de disposição norteamericana de assumir a responsabilidade por sua estabilização (ARRIGHI,
2000, p. 280).
Londres, propriamente, manteve-se como o grande centro organizacional,
intelectual e financeiro do período, possuindo reservas de ouro em 1920 ainda maiores
do que no período anterior à guerra; e Nova York, maior centro financeiro norteamericano, continuou inteiramente subordinada à Londres, de modo que “Wall Street e
o Federal Reserve de Nova York se aliaram à City londrina e ao Banco da Inglaterra
para manter e impor o padrão ouro internacional, cujo principal beneficiário era e
continuou a ser a Grã-Bretanha” (ARRIGHI, 2000, p. 281).
Como ressalta Kennedy (1988, p. 282), apesar dos Estados Unidos terem se
tornado a grande nação credora do mundo, a estrutura econômica norte-americana era
muito menos dependente e integrada ao resto da economia mundial, com inclinações
protecionistas e carecendo da eficiência de um Banco da Inglaterra43. Entretanto,
enquanto governos europeus utilizaram o dinheiro dos empréstimos para projetos de
longo termo, principalmente agricultura ou buscando restabelecer o padrão ouro de suas
moedas, os empréstimos não podiam mais ser pagos pelas exportações, sendo pagos por
novos empréstimos, colocando essa estrutura prestes a desmoronar. E em fins de “1928,
a alta de Wall Street começou a desviar recursos dos empréstimos externos para a
43
Segundo Arrighi (2000, p. 280), as instituições financeiras norte-americanas simplesmente não estavam
à altura da tarefa de administrar o sistema monetário mundial. “Na década de 1920, o Sistema da Reserva
Federal, criado em 1913, ainda era um órgão mal articulado e inexperiente, incapaz de exercer com um
mínimo de eficiência até mesmo suas funções domésticas”.
40
especulação interna” (ARRIGHI, 2000, p. 282). Com a quebra de Wall Street em 1929 e
a depressão da economia norte-americana, iniciou-se uma corrente em cadeia
incontrolável: “um país após o outro viu-se obrigado a proteger sua moeda, fosse
através da desvalorização, fosse pelo controle do câmbio” (ARRIGHI, 2000, p. 283).
Quando até mesmo os britânicos abandonaram o Free Trade em 1931, parecia
claro que os Estados estavam se retirando o máximo que podiam em direção
a um protecionismo tão defensivo que chegou perto de uma política de
autarquia, aliviado por acordos bilaterais. Em tempo, enquanto o
congelamento econômico varria as economias globais, o capitalismo mundial
retraiu-se nos iglus de suas economias de Estados nacionais e dos impérios
que lhe estavam associados (HOBSBAWM, 2000, p. 132, tradução nossa).
O New Deal, segundo A. Marx (1998, p. 103) representou o ressurgimento do
poder centralizado, não visto desde o período da Reconstrução (pós Guerra Civil). De
fato, as maiores ambições do New Deal representam uma grande mudança de postura
para o governo norte-americano, que abandonou sua posição de interferência mínima no
mercado doméstico em favor de tentativas abrangentes de intervenção (SKOCPOL;
FINEGOLD, 1982, p. 255-256). Como salienta Arrighi (2000, p.287), o presidente F.
Roosevelt buscou libertar a economia norte-americana do controle da haute finance – as
grandes lideranças dos mercados financeiros de Londres e Nova York.
3.2.3. Legitimidade
A vitória da União na Guerra Civil em 1865 fortaleceu o Estado americano em
todas as dimensões, “conferindo-lhe os atributos fundamentais da soberania territorial e
governamental” (BENSEL, 2003, p. 2). A partir de então, deu-se início ao período de
Reconstrução do sul seguindo os interesses do Partido Republicano, de forma que,
como coloca A. Marx (1998, p. 92-93, tradução nossa), “O Estado nacional seria
reconstruído sob os termos do Norte” 44. Assim, a região sul foi colocada sob-regime
militar e para reingressar na União os ex-estados confederados deveriam ratificar a
Décima Quarta Emenda45. Durante esse período, negros sulistas serviram em funções
legislativas e verbas foram destinadas à educação pública e hospitais, além de leis
44
“The nation-state would be rebuilt on the North’s terms”
A Décima Terceira Emenda, adotada em 1865, aboliu a escravidão nos Estados Unidos. Mas isso não
seria nem de perto a igualdade plena entre negros e brancos: com a política conciliatória do sucessor de
Lincoln, Andrew Johnson, os legisladores sulistas promulgaram “Black Codes” que restringiam direitos
dos negros e, na prática, criava um regime muito próximo da escravidão. Assim, a Décima Quarta
Emenda (1868) servia para anular os “Black Codes” e garantir a cidadania e direitos iguais a todos
nascidos ou naturalizados nos Estados Unidos, com exceção dos índios (BOYER, 2012, p.58).
45
41
aprovadas que protegiam os direitos dos negros libertados e que trouxeram resultados
significantes: o alfabetismo dos negros subiu de 10 para 50% entre 1865 e 1890,
aumentou a quantidade de negros donos de terras e a renda dos negros subiu 46%
(MARX, 1998, p. 94).
Entretanto, escândalos de corrupção e crise econômica levaram sulistas e
nortistas a procurarem por alternativas diferentes dos republicanos e sua reconstrução: o
resultado foi um grande apoio ao partido Democrata (no sul ele era controlado pelos
antigos proprietários de escravos) e um grande turning point ocorreu na história
americana ao desassociar o partido Republicano e o Estado norte-americano. Como
aponta Bensel (2003, p. 4, tradução nossa), “do ponto de vista estadista, essa transição
também pode ser vista como a bonança que acompanhou a falha da reconstrução”, já
que esse processo de transição de um partido revolucionário para um pluralismo
centrado no Estado é uma das marcas da modernização política. Segundo Bensel (2003,
p. 4-5), a modernização política envolve três elementos: (1) a racionalização da
autoridade em toda a nação, destruindo instituições descentralizadoras que resistam à
autoridade; (2) o surgimento de novas funções políticas e de instituições especializadas
para cumprirem tais funções e; (3) ampliação da participação política, principalmente
através do surgimento de partidos políticos de massa. Na maioria dos países europeus, a
modernização ocorreu seguindo essa ordem, porém nos Estados Unidos a ordem foi
reversa. Para os negros, todavia, significou mais do que um novo abandono: como
afirma A. Marx (1998, p. 97-98), eles foram transformados em bodes expiatórios para a
unificação dos brancos e já em 1890, novas imposições segregacionistas retornaram
através de diferentes táticas e muitos dos ganhos anteriores foram revertidos através das
leis segregacionistas de Jim Crow.
A falha da Reconstrução e o fim da supremacia do partido Republicano com o
retorno do partido Democrata levaram ao que Skowronek (2003, p. 39-41) chama de
triunfo do Estado de partidos e cortes. Como desde 1820 o serviço civil era controlado
pelos partidos políticos, a criação de instituições centralizadas e estáveis era impedida
pelo sistema – um reflexo da tradição norte-americana, que se preocupa com a restrição
da autoridade e divisão dos poderes (HUNTINGTON, 1973, p. 7). Como coloca Zakaria
(2000, p. 160, tradução nossa), “O Congresso exercia uma enorme influência sobre o
Poder Executivo principalmente através do clientelismo partidário”, afetando desde os
assuntos cotidianos e também em toda a política do Estado.
42
Em um período de intensa urbanização e industrialização, que transformou e
acrescentou novos dilemas à sociedade (como o poder das empresas, os direitos dos
consumidores, a pobreza, saúde e higiene entre outros), o pleno fortalecimento do
“Estado de partidos”, incapaz de atender às novas demandas, gerou um impasse nas
relações entre Estado e sociedade. “Instituições e procedimentos criados para servirem
ao
desenvolvimento
socioeconômico
aparecem
agora
como
perversões
de
autoperpetuação desse propósito” (SKOWRONEK, 2003, p. 40, tradução nossa). O
vácuo gerado por esse impasse era preenchido pelas cortes jurídicas, que expandiram o
seu poder ao limite em fins do século XIX. As incapacidades internas refletiam também
nos aspectos externos: o aparelho diplomático norte-americano era ainda mais fraco que
suas forças armadas, os Estados Unidos eram representados por poucos embaixadores
honorários e em poucos países; o próprio Departamento de Estado era minúsculo, a
ponto de que o jornal New York Herald sugeriu a sua abolição, em 1892, já que tinha
tão pouco o que fazer (KENNEDY, 1988, p. 246). E como aponta Zakaria (2000, p. 75),
tudo isso fez com que os Estados Unidos fossem considerados uma potência de segunda
ordem, juntamente com outros países com capacidades muito menores, e nenhuma
potência europeia considerava os norte-americanos suficientemente importantes para o
envio de embaixadores.
Esse processo da construção do Estado norte-americano foi longo e custoso, mas
como destaca Zakaria (2000, p. 176, tradução nossa), “Todos os caminhos conduziram
para a mesma direção: até Washington e, dentro de Washington, até a Casa Branca”.
Em um aspecto internacional, quando William McKinley assumiu a presidência em
1897, em certa medida, o Poder Executivo já tinha alcançado a supremacia e o
presidente já governava um Estado forte e burocrático livre da influência do Congresso.
Mas, enquanto o Estado norte-americano ampliava suas capacidades, consolidavam-se
também as leis segregacionistas de Jim Crow e iniciava-se o que A. Marx chama de
“Era de Ouro do racismo” (1998, p. 103). De fato, por volta da década de 1920, os
Estados Unidos consolidaram sua identidade “Anglo-Protestante” através de uma série
de medidas legislativas como o Volstead Act (1920), que proibiu o consumo de álcool,
e o Johnson-Reed Act (1924) que instituiu cotas de imigração para manter o predomínio
dos anglo-saxões protestantes (KAUFMANN, 2004, p. 2).
A grande depressão de 1929, porém, incentivou uma nova e intensa expansão da
máquina pública através do New Deal de Franklin Roosevelt. Skowronek (2003, p 28843
289) considera que ao expandir os serviços burocráticos e tirar as cortes e os partidos do
centro das operações governamentais, o New Deal representou o fim definitivo do
“Estado de partidos e cortes”.
A guerra civil garantiu a consolidação da autoridade interna e possibilitou a
ampliação do Estado norte-americano sob os interesses da parte norte. Entretanto, os
Estados Unidos só foram reconhecidos como uma grande potência do sistema
internacional a partir da sua expansão naval e vitória na guerra hispano-americana de
1898. Além da ampliação da capacidade coercitiva dos Estados Unidos, a crescente
economia norte-americana (juntamente com a de outros países, como o Império
Alemão) fez com que o Reino Unido sofresse um relativo declínio de sua hegemonia e,
como aponta Zakaria (2000, p. 230-231), as dificuldades que os britânicos enfrentaram
na guerra Anglo-Bôer (1899-1902) deixaram evidentes os limites da capacidade
britânica de se impor através da força. Como consequência disso, ainda no final do
século XIX, o Reino Unido já passa a adotar uma política amistosa com os norteamericanos e toma “a difícil decisão de confiar na boa vontade dos Estados Unidos para
proteger os interesses britânicos no hemisfério ocidental46” (ZAKARIA, 2000, p. 230).
Então, a partir do governo de Theodore Roosevelt, os Estados Unidos conseguiram
alcançar o que Gilpin (1981, p. 24) estabelece como o segundo objetivo dos Estados,
que é o de ampliar sua esfera de influência – nesse caso, o Corolário Roosevelt deixou
explícito que todas as Américas estavam sob a égide dos Estados Unidos.
A incapacidade britânica de sustentar a sua Pax Britannica no início do século
XX gerou um desequilíbrio no sistema internacional e, consequentemente, levou a uma
guerra hegemônica (GILPIN, 1981, p. 209-210). A Primeira Guerra Mundial, portanto,
representou o colapso da ordem social e econômica da Europa, mas não determinou a
ascensão imediata de uma nova hegemonia: um interregno chamado por Carr (1981) de
“Vinte Anos de Crise” ocorreu até que os Estados Unidos se tornassem a potência
hegemônica.
46
“ La penosa decisión de confiar en la buena voluntad de Norteamérica para proteger los interesses
británicos en el hemisferio occidental”.
44
3.3. Segunda Guerra Mundial e ascensão da superpotência
3.3.1. Coerção
Ainda antes do início da Segunda Guerra Mundial, em meados de 1937 e 1938,
o então presidente Franklin Roosevelt passou a se utilizar de grandes manobras políticas
para convencer o povo norte-americano das ameaças fascistas, pois enfrentava grande
oposição de isolacionistas. Kennedy (1988, p. 331) mostra como durante esse período
os Estados Unidos passaram a se preparar para um futuro conflito: a produção de
aeronaves de guerra dobrou; foi aceita no Congresso uma massiva expansão da
Marinha; testes eram realizados em um protótipo do bombardeiro B-17, os Marines
refinavam sua doutrina de guerra anfíbia e o Exército se preocupava com guerra
blindada. Quando a guerra começou, em 1939, nada disso ainda estava pronto, mas
estavam muito mais adiantados que em 1914. Salienta-se, todavia, as enormes
capacidades norte-americanas quando comparadas aos demais países em conflito:
Kennedy (1988, p. 331-333) aponta como os maciços projetos de militarização dos
Estados Unidos, ainda afetados pela crise de 1929, criaram um impacto muito menor na
economia do que outros países como França, Inglaterra e Itália, que sofriam com graves
problemas estruturais.
O que a queda da França não fez, o ataque japonês a Pearl Harbor fez. O ataque
ao Hawaii minou a idealização norte-americana de que os Estados Unidos estavam
seguros das ameaças externas. E a consequente guerra elevou a política externa para a
mais alta prioridade nacional desde a independência do país. O ingresso dos Estados
Unidos na guerra e o início de uma mobilização total criou um verdadeiro colosso
militar, expandindo suas forças armadas de 174.000 em 1939 para 1.5 milhões em 1941.
Em 1945, eram 12.1 milhões (HERRING, 2008, p. 538-541). Como disse Kennedy
(1988, p. 352-354), apesar de uma superioridade alemã na doutrina operacional, os
recursos norte-americanos eram tão superiores que eles produziam mais embarcações do
que os submarinos alemães poderiam afundar.
Para atender a rápida expansão das demandas diplomáticas e militares do país
que finalmente assumiu sua liderança no mundo, o presidente F. Roosevelt criou uma
grande estrutura para a política externa: dentre os vários órgãos criados, o Office of War
Information (OWI) e o Office of Strategic Services (OSS), precursor da Central
45
Intelligence Agency (CIA)47, juntamente com a construção do Pentágono. Além disso, a
Segunda Guerra também colocou os militares em uma posição central na formulação da
política externa norte-americana – o que trouxe alterações marcantes nas relações entre
civis e militares e na formulação da política de segurança nacional (HERRING, 2008, p.
544).
Entretanto, é no final da Segunda Guerra que acontece um dos atos mais
controversos da história dos Estados Unidos: o uso de bombas atômicas em Hiroshima e
Nagasaki. Enquanto Truman (o sucessor de F. Roosevelt) e seus assessores justificam o
ato para poupar vidas norte-americanas, muitos revisionistas acreditam que o uso das
bombas atômicas não era necessário e que foram utilizadas como uma ameaça à União
Soviética para que aceitassem os objetivos norte-americanos no pós-guerra (HERRING,
2008, p. 591). De qualquer forma, como disse Kennedy (1988, p. 356-357), as armas
atômicas não apenas simbolizaram o fim de uma guerra, mas também o início de uma
nova ordem no cenário internacional.
As previsões feitas por Tocqueville e outros pensadores do século XIX tinham
se concretizado, as antigas grandes potências de França e Itália já tinham sido
eclipsadas; Alemanha e Japão estavam destruídos; e o Reino Unido em franca
decadência. Estados Unidos e União Soviética agora sustentavam um mundo bipolar,
mas entre eles, o poder dos Estados Unidos era muito maior, não só economicamente,
mas também militarmente e pelo monopólio das armas atômicas (KENNEDY, 1988, p.
357-358).
Nos primeiros anos após o fim da Segunda Guerra, a rivalidade entre Estados
Unidos e União Soviética ficou centrada na demarcação das novas fronteiras da Europa;
e de forma muito semelhante ao pós Primeira Guerra, os Estados Unidos reduziram
drasticamente sua força militar para 600.000 soldados e desativaram muito de sua força
aérea e naval (MAY, 2010, p. 235). Essa situação foi alterada a partir de 1949, onde
alguns eventos fundamentais para o início da cultura de uma Guerra Fria “próxima de
um medo histérico, desconfiança paranoica e conformidade sufocante” ocorreram: em
setembro, a União Soviética explodiu a sua primeira arma nuclear, mais cedo do que
esperavam os americanos; e, além disso, o comunismo triunfou na China, ampliando a
47
O OWI era responsável por censurar a mídia e fazer propaganda de guerra, com o propósito de exaltar a
participação norte-americana e também afetar a moral dos inimigos (HERRING, 2008, p. 542).
46
disputa centrada na Europa também para a Ásia e dando a impressão de que o equilíbrio
do poder mundial se voltava contra os Estados Unidos (HERRING, 2008, p. 635-637).
O produto mais importante dessa atmosfera sombria foi o National Security
Council Memorandum 68 (NSC-68), de 1950. O documento proclamava, com alarme,
que a União Soviética possuía muito mais forças do que o necessário e que se
preparavam para uma agressão a nível mundial contra todas as instituições livres, e que
para responder a essa ameaça sem precedentes só existiam três opções: (1) isolamento;
(2) guerra preventiva; e (3) uma rápida expansão do poder militar norte-americano.
Considerando a primeira opção como sendo equivalente a uma capitulação e a segunda
como repugnante, o NSC-68 propunha um massivo incremento no orçamento de defesa,
com ênfase no rápido desenvolvimento de uma bomba de hidrogênio, ampliação de
ajuda militar para países amigos e esforços para melhorar os serviços de inteligência
(BACEVICH, 2009, p. 55-56; HERRING, 2008, p. 635-638). Entretanto, mais do que
um documento com uma visão de mundo sombria e que levou a um intenso
rearmamento norte-americano em tempos de paz, o NSC-68 forçou os Estados Unidos a
largarem permanentemente o antigo isolacionismo e a criar um Estado de segurança
nacional. Como aponta Hogan (2000, p. 3), os Estados Unidos “uniram as Forças
Armadas, expandiram os gastos com defesa, utilizaram a ciência com propósitos
militares e criaram novas instituições como o National Security Council e a Central
Intelligence Agency, atualmente dentre os mais conhecidos e poderosos órgãos do
governo”. A transformação do Estado norte-americano também incluiu novos grupos de
gestores da segurança nacional, como especialistas das universidades do país e diretores
de empresas, de instituições financeiras e dos escritórios de advocacia de Wall Street,
além de fazer o Congresso reorganizar seu sistema de comissões para se adequar às
crescentes demandas da segurança nacional no orçamento do governo.
3.3.2. Capital
Se a Primeira Guerra Mundial rendeu grande riqueza aos Estados Unidos, a
Segunda Guerra Mundial centralizou completamente o poder financeiro mundial e
marcou a ascensão da hegemonia norte-americana no que Arrighi (2000) chama de
quarto ciclo sistêmico de acumulação.
47
Como em todos os casos anteriores de enriquecimento e conquista de poder
prodigiosos, em meio a um crescente caos sistêmico, o grande salto à frente
da riqueza e poder norte-americanos entre 1914 e 1915 foi, primordialmente,
uma expressão da renda da proteção de que o país desfrutava, numa posição
singularmente privilegiada na configuração espacial da economia mundial
capitalista. Quanto mais turbulento e caótico se tornava o sistema mundial,
maiores os benefícios auferidos pelos Estados Unidos, em virtude de suas
dimensões continentais, sua posição insular e seu acesso direto aos dois
grandes oceanos da economia mundial (ARRIGHI, 2000, p. 284-285).
Essa hegemonia pós-1945 foi tão extraordinária que, em 1947, as reservas norteamericanas de ouro representavam 70% do total mundial e, mais do que isso, a enorme
demanda de dólares por parte de governos e empresas estrangeiras mostrava que o
controle do sistema ia muito além dessa enorme concentração de ouro.
Entretanto, como salienta Arrighi (2000, p.283-287), em Bretton Woods, mais
do que estabelecer a paridade do dólar americano e o ouro, estabeleceu-se um novo
modo de “produzir” o dinheiro mundial. Historicamente, foram sempre os grandes
banqueiros e financistas que controlaram o sistema financeiro, e o sistema de Bretton
Woods conseguiu, através de grandes organizações (como o FMI e o Banco Mundial)
“transferir o controle da liquidez mundial das mãos de particulares para as de governos,
e de Londres e Wall Street para Washington”.
O Plano Marshall estabeleceu, então, a reconstrução da Europa Ocidental à
imagem e semelhança norte-americana e deu uma significativa contribuição para a
expansão do comercial e da produção durante as décadas de 1950 e 1960. Entretanto,
essa expansão e a integração europeia exigiam uma reciclagem da liquidez mundial
muito maior do que estava previsto no Plano Marshall e outros programas, de forma que
a solução para isso foi dada pelo NSC-68, chamado por Arrighi (2000, p. 306-307)
como o “mais maciço esforço de rearmamento que o mundo já vira em tempos de paz”.
48
[Acheson e Paul Nitze] não consideraram nem a integração europeia nem
os realinhamentos monetários como suficientes para manter um superávit de
exportações significativo, ou para dar continuidade aos laços econômicos
entre Estados Unidos e a Europa após o fim do Plano Marshall. A nova
orientação política que propuseram – o maciço rearmamento norte-americano
e europeu – forneceu uma solução brilhante para os grandes problemas da
política econômica norte-americana. O rearmamento nacional proporcionaria
um novo meio de sustentar a demanda, de modo que a economia não mais
ficasse dependente da manutenção de um superávit de exportações. A
assistência militar à Europa proporcionaria um meio de continuar a prestarlhe assistência após o fim do Plano Marshall. E a estreita integração das
forças militares europeias e norte-americanas proporcionaria um meio de
48
Acheson era o Secretário de Estado e Nitze o chefe da Policy Planning Staff em 1949 (BLOCK, 1977,
p. 103)
48
impedir que a Europa, como região econômica, se fechasse para os Estados
Unidos (BLOCK, 1977, p.103-104).
Esse rearmamento proposto resolveu todos os problemas de liquidez da
economia mundial durante a Guerra da Coreia. Além disso, os gastos militares norteamericanos e a ajuda militar a governos estrangeiros forneceram toda a liquidez para
que a economia mundial pudesse se expandir. Como aponta Arrighi (2000, p. 307),
“com o governo norte-americano agindo como um banco central mundial extremamente
permissivo, o comércio e a produção mundiais se expandiram, de fato, numa velocidade
sem precedentes”, tornando o período para muitos autores como a “idade de ouro do
capitalismo”.
3.3.3. Legitimidade
Promovida pelo New Deal, “A ampliação do poder federal não trouxe reformas
raciais imediatas, mas criaram o potencial para tal reforma posteriormente49” (MARX,
1998, p. 104, tradução nossa). A Segunda Guerra Mundial então consolidou a
centralização do poder do New Deal e enfraqueceu a desigualdade racial: “O embaraço
norte-americano e a contradição entre a retórica antirracista da guerra e o
segregacionismo em casa tornou-se ainda mais acentuado depois da guerra pela posição
internacional emergente e a preocupação com sua reputação50” (MARX, 1998, p. 104105, tradução nossa). O debate sobre a questão racial, entretanto, se arrastou por quase
vinte anos, devido à forte oposição de políticos sulistas, e apenas na década de 60 o
Congresso aprovou o Civil Rights Acts, o Voting Rights Act e outras legislações que
consolidaram a garantia aos direitos civis dentro dos Estados Unidos.
A Segunda Guerra também representou a guerra hegemônica que determinou os
Estados Unidos como a nova potência dominante do sistema internacional. Ao assumir
esse papel com base na dimensão de sua força bélica e de seu prestígio, os norteamericanos atingiram o que Gilpin (1981, p. 24) considera o terceiro objetivo dos
Estados, que é o controle ou grande influência sobre a economia mundial. Assim, no
49
“Increased federal power was not applied immediately to race reform, but did create the potential for
such reform at a later date”.
50
“American embarrassment at the contradiction between the anti-racist rhetoric of the war and
segregation at home was made all the more acute after the war by the country’s emerging international
position and concern about its reputation”.
49
fim da guerra, já estavam estabelecidos as principais características da nova hegemonia:
as bases do novo sistema monetário foram estabelecidas em Bretton Woods; em
Hiroshima e Nagasaki foram demonstradas as novas armas que sustentariam o novo
sistema; e, em San Francisco, as normas e regras para a legitimação da gestão do Estado
e da Guerra, através da Carta das Nações Unidas.
Ao concluirmos as análises do capítulo, podemos perceber que os Estados
Unidos conquistaram a independência política e, pouco depois (na guerra de 1812), já
conquistam o prestígio internacional, o que foi fundamental para a posterior expansão
territorial do país (Doutrina Monroe, 1823) e para se tornar uma potência regional.
Apesar disso, grandes problemas domésticos e a existência de uma ameaça de secessão
fragmentavam o Estado norte-americano. Contudo, com uma ampliação do Estado,
consequência da vitória da União na Guerra Civil, tal situação foi resolvida. A partir de
então, com suas vitorias na guerra hispano-americana e Primeira Guerra Mundial, os
Estados Unidos se projetaram internacionalmente e, em decorrência de mais uma vitória
na Segunda Guerra, o país se tornou a superpotência mais capaz do sistema
internacional, decretando as ordens do sistema.
50
4. Guerra e Formação do Estado na África do Sul
Devido a sua localização estratégica na geografia mundial, a África do Sul foi
alvo da colonização europeia desde o século XVII e a vinda de escravos e trabalhadores
de vários cantos do mundo, juntamente com os povos nativos, deu origem a um
caldeirão de culturas e etnias. As divisões sociais advindas desse processo resultaram
em um amplo histórico de disputas territoriais e rivalidades na região. Ainda que a
descoberta de ouro e diamantes tenha incentivado aos brancos a conquista da hegemonia
territorial, persistia entre eles uma grande disputa pela governança do sistema. Tal
cenário foi modificado em 1902 na guerra anglo-bôer: a vitória britânica moldou o
recém-criado Estado sul-africano conforme os moldes britânicos, mas a majoritariedade
dos africâneres concedeu-lhes o domínio do poder político.
A vitória dos Aliados na Segunda Guerra Mundial instituiu uma ordem no
sistema internacional contrária ao racismo e a favor da independência política das
colônias europeias na África e Ásia. Porém, essa nova ordem prejudicou o controle do
Estado sul-africano pelas minorias brancas, que reagiram e ampliaram as capacidades
coercitivas do Estado para garantir o seu status quo dominante através do regime do
Apartheid; algo que deixou a África do Sul isolada do sistema e criou grandes
constrangimentos internos. Quando o bastião branco da áfrica austral começou a cair, a
situação se tornou insustentável e os brancos dominantes começaram um processo
pacífico de transição política. Assim, com a vitória de Nelson Mandela para a
presidência da África do Sul em 1994, o país conquistou legitimidade interna e
internacional, mas enfrenta um passado de discriminação que deixou graves problemas
econômicos e sociais.
Assim sendo, o presente capítulo é dividido em duas partes: a primeira, que
analisa a guerra anglo-bôer e a consequente ascensão da África do Sul a potência
regional na África austral; e a segunda, que analisa o Estado sul-africano em meio a sua
tentativa de se garantir como potência regional e a consequente derrota nas guerras de
fronteira sul-africanas.
51
4.1. Guerra Anglo-Bôer
Até 1870 o território da atual África do Sul era bastante fragmentado: além da
colônia do Cabo e da colônia de Natal, ainda existiam as repúblicas africânderes e
nações africanas independentes, como o Leshoto e o Estado zulu. Entretanto, como
aponta Thompson (2001, p. 112-113), a população desse território era ainda mais
dividida: os africânderes, que no total compunham a maioria dos brancos de todo o
território; os colonos britânicos; o grupo chamado como “Coloured” que são os
descendentes dos escravos trazidos da Indonésia, Madagascar, África tropical e,
principalmente, dos khoikhoi; os africanos de línguas bantas e os indianos levados para
a colonial de Natal, onde superariam em quantidade os brancos.
O império britânico, a maior potência do mundo no período, até então tinha
pouco interesse na pobre economia que existia na África austral, de modo que o grande
objetivo da administração colonial era sempre a redução de custos. Entretanto, após
1870, diversos fatores contribuíram para uma drástica alteração na postura dos
britânicos. Segundo Worden (2012, p. 24), os historiadores divergem quanto às causas
que levaram o império britânico a adotar uma política mais agressiva: alguns alegam
que a unificação da região levaria ao progresso e desenvolvimento da economia local,
enquanto outros apontam que isso fez parte da competição imperialista entre as
potências europeias pelo interior da África. Além disso, a descoberta de ouro e
diamantes no interior da África do Sul seria, por si só, motivo de maior atenção para os
britânicos, ainda mais quando a economia britânica enfrentou uma grande depressão a
partir de 1873.
4.1.1. Coerção
A partir da década de 1870, então, os britânicos buscaram construir uma
federação na África do Sul e anexaram a Griqualândia ocidental (1871) – local onde
foram descobertas as reservas de diamantes; a República do Transvaal (1877); e
derrotaram o reino Zulu (1879) – o produto mais forte do Mfcane. A anexação do
Transvaal, porém, resultou em maiores problemas: decorridos quatro anos, os
africânderes se revoltaram e expulsaram os britânicos após a batalha de Majuba Hill
52
(1881) – ainda que tenha sido muito pequena (menos de 100 mortos), ela se tornou a
Eerste Vryheidsoorlog – a Primeira Guerra pela Liberdade (ou Primeira Guerra AngloBôer), símbolo do nacionalismo africânder e palco do surgimento de Paul Kruger, o
presidente africânder que liderou uma forte oposição aos britânicos (LE MAY, 1971, p.
28-29).
Paralelamente na colônia do Cabo, o primeiro-ministro era um dos grandes
apoiadores do imperialismo britânico: Cecil Rhodes. Magnata das minas de diamante,
Rhodes buscou impossibilitar a expansão territorial dos africânderes proclamando o
protetorado de Bechuanaland (atual Botsuana) em 1885; ocupando o norte do rio
Limpopo, através da British South Africa Company, formando a Rhodesia (atual
Zimbábue) em 1891 e anexando as últimas porções de terra com acesso ao mar antes da
colônia portuguesa de Moçambique; de forma que os africânderes ficaram
completamente cercados pelos britânicos.
Em 1895, alguns dos Uitlanders51 começaram a conspirar contra o governo de
Paul Kruger e receberam suporte de Cecil Rhodes e da British South Africa Company,
de modo que tentaram invadir o Transvaal para reanexá-lo. Entretanto, os conspiradores
não souberam manter o sigilo e o evento, conhecido como The Jameson Raid, foi um
fracasso, mas serviu para aumentar as rivalidades entre africânderes e britânicos (LE
MAY, 1971, p. 32; THOMPSON, 2001, p. 139). Além disso, as minas de ouro
concederam grandes vantagens econômicas às repúblicas africânderes, algo que as
possibilitou fazer alianças estratégicas com outras nações, como a Alemanha imperial
(presente na atual Namíbia). Por fim, o desgosto das elites africânderes,
tradicionalmente rurais, pelo capitalismo industrial levaram muitos donos de minas a
desejarem uma nova administração (STAPLETON, 2010, p. 86).
Essa combinação de fatores levou à guerra sul-africana (ou Segunda Guerra
Anglo-Bôer) em outubro de 1899. Fortalecidas pelo dinheiro da mineração e armadas
com armamentos alemães, as repúblicas africânderes lançaram um ataque preventivo
antes que os britânicos pudessem levar seus exércitos para a região. Dentre a população,
muitos acreditavam que a guerra era necessária para preservar a sua independência,
enquanto outros acreditavam que o ouro era uma dádiva divina e a guerra levaria à
formação de uma grande República Bôer em toda a África do Sul.
51
Forma como os africânderes chamavam os imigrantes oriundos de várias partes do mundo em busca do
ouro.
53
Alguns pontos sobre o conflito devem ser elencados: apesar da opinião pública
europeia e norte-americana favorecer as repúblicas bôeres, nenhum governo estrangeiro
ofereceu suporte. Nesse caso, a superioridade numérica dos britânicos era enorme: em
toda a guerra 450.000 homens lutaram pelo lado britânico, enquanto os bôeres contaram
com no máximo 88.000, contando tropas de voluntários estrangeiros. Além disso, como
Portugal concordou em proibir a passagem de armamentos pelo Moçambique, as
repúblicas bôeres (que então eram cercadas pelos britânicos e com uma pequena
fronteira com Moçambique) ficaram isoladas e impossibilitadas de receberam mais
armamentos (THOMPSON, 2001, p. 89).
Apesar da imensa superioridade numérica, os britânicos tiveram grandes
problemas na sua maior guerra desde as guerras napoleônicas (THOMPSON, 2001, p.
115). Ainda que ambas as repúblicas tenham sido conquistadas e anexadas ainda em
1900, uma guerra de guerrilha se prolongaria até 1902. É durante esse período que os
britânicos vão remover a população civil africânder e colocar em campos de
concentração, e cerca de 28 mil africânderes, a maioria crianças, e 20 mil presidiários
africanos morreram por causa de doenças dentro desses campos (STAPLETON, 2010,
p. 86-107). Com ambos os lados desgastados pela guerra, mas os africânderes possuindo
no máximo 15 mil homens e enfrentando 250 mil britânicos, os comandantes bôeres não
viram alternativa além da rendição a fim de preservar a nação africâner, já que não
puderam garantir a independência política (MARX, 1998, p. 67-68).
Após a unificação do território e de se tornar um Domínio do Império Britânico,
a África do Sul se manteve sem uma marinha própria (apenas fornecia apoio para a
permanência da marinha britânica na região); mas era responsável pela sua defesa
terrestre e adotou, até onde era possível em vista do orçamento, um modelo suíço de
sistema militar, onde todos os homens adultos faziam parte de uma reserva em tempo
parcial, podendo ser rapidamente mobilizados quando necessário.
Quando a Primeira Guerra Mundial começou, a África do Sul, bem como outros
domínios britânicos, apoiaram os britânicos contra os alemães. Entretanto, alguns
africânderes demonstravam simpatia pelos alemães e eram contrários ao apoio para os
britânicos, de forma que começaram a planejar uma rebelião. Quando as forças sulafricanas marcharam para a conquista do Sudoeste Africano Alemão (atual Namíbia), a
revolta africânder também começou e eles se juntaram às forças alemãs. Isso não foi,
porém, suficiente para uma grande oposição às forças sul-africanas que, em 1915,
54
conquistaram o território alemão e acabaram com a revolta. Ao término dos conflitos, a
administração Botha, preocupada com o interesse nacional, perdoou os membros da
revolta, enquanto que o território do Sudoeste Africano se tornaria um mandato da Liga
das Nações, sob administração sul-africana (STAPLETON, 2010, p. 116-122).
A eclosão da Segunda Guerra Mundial causou divisões profundas entre os
africânderes. O sentimento predominante era de grande consternação pela aliança da
África do Sul com os britânicos em mais uma guerra europeia, mas os africânderes
reagiram de formas muito diferenciadas. Enquanto muitos se voluntariaram para lutar na
guerra, outros se aproveitaram para difundir ideais nazistas (THOMPSON, 2001, p.
183-184). Apesar dessa divisão e com o aval do Parlamento (80 a favor e 67 contra), as
forças sul-africanas combateram do lado aliado nas campanhas da África oriental (na
expulsão dos italianos da Etiópia), do norte da África, do Madagascar (sob o regime
colaboracionista de Vichy) e da invasão da Itália. Além disso, a África do Sul deu uma
importante contribuição à causa aliada pela sua posição estratégica como rota de
suprimento para as forças aliadas no norte da África e Ásia, já que o Mediterrâneo
estava fechado pelo Eixo (THOMPSON, 2001, p. 177). E como aponta Stapleton (2010,
p. 136-151), a partir de 1945 a África do Sul já possuía sua própria marinha e força
aérea, e a participação nos conflitos tornou o país uma potência continental emergente
distinta do Reino Unido – entretanto, diversos fatores internos limitaram
consideravelmente a capacidade sul-africana de projeção militar, como a dificuldade
dos negros de servirem nas forças.
O resultado da guerra e a propaganda antirracista dos Aliados, evidente na Carta
do Atlântico, contrariavam a opinião pública africânder de que o Estado deveria garantir
a supremacia branca. Essa incongruência levou a uma intensificação do nacionalismo
africânder, que culminou com a ascensão do Partido Nacionalista Africânder e início do
Apartheid. Assim, como forma de garantir o controle branco do Estado, o aparelho
coercitivo do Estado sul-africano foi drasticamente ampliado através de várias leis que
permitiam à polícia prender as pessoas sem julgamento e mantê-las indefinidamente em
confinamento solitário, sem visitas e sem revelar a sua identidade. O governo também
podia banir e extinguir quaisquer tipos de organizações e possuía ferramentas poderosas
para a aplicação do Apartheid: poucos negros recebiam autorização para portar armas de
fogo, enquanto a maioria dos brancos possuíam armas de fogo e experiência com elas; a
polícia era bem treinada e equipada, mas como era pequena em proporção à população,
55
o governo nacionalista iniciou um programa maciço de militarização 52, de forma que as
Forças Armadas sul-africanas eram, de longe, as melhores ao sul do Saara
(THOMPSON, 2001, p. 199-200).
4.1.2. Capital
Até as descobertas de ouro e diamantes, os dois Estados africânderes53 estavam
na periferia da economia capitalista global. As comunicações eram realizadas através de
mensageiros e as estradas eram trilhas desgastadas pela passagem de pessoas, animais e
carroças. E, como para os africanos, a riqueza dos africânderes era em rebanhos, ainda
que diferentemente dos primeiros, eles possuíam terras individualmente (THOMPSON,
2001, p. 101). Além disso, ambas as repúblicas eram dependentes do comércio com a
colônia do Cabo para a obtenção de armas e munições (WORDEN, 2012, p. 21). A
colônia do Cabo, por sua vez, também era de pouca significância econômica para a
economia britânica. De forma geral, o total das exportações representava uma pequena
parte do comércio externo do império britânico, de forma que poucos britânicos
imigraram para a colônia, poucos investimentos britânicos eram feitos nela e poucos
recursos eram atribuídos para sua administração (THOMPSON, 2001, p. 53). A colônia
de Natal, ao se tornar distinta da colônia do Cabo em 1856, desenvolveu uma indústria
açucareira. Entretanto, devido às medíocres condições de trabalho e aos baixos salários,
os trabalhadores africanos não forneceram essa mão de obra, tão necessária para o ramo
açucareiro, e o governador da colônia importou trabalhadores indianos. A partir de
então, a indústria açucareira se desenvolveu e se tornou o produto de exportação mais
importante da colônia (BHEBE, 2010, p. 183).
52
Em meados de 1970, as Forças de Defesa da África do Sul (SADF) eram majoritariamente ocupadas
por africânderes, sendo eles 85% do Exército, 75% da Aeronáutica e 50% da marinha. Não-brancos eram
raramente empregados, mas poderiam ser alistados, sempre em funções desarmadas, como cozinheiros e
motoristas. Entretanto, teorias de contra-insurgência, elaboradas por norte-americanos e franceses no
Vietnam e Argélia, apontavam que insurgentes bem motivados poderiam derrotar poderosas forças
militares convencionais; de modo que as insurgências só poderiam ser vencidas através de meios nãomilitares (a conquista de “corações e mentes” da população). Nesse contexto, soldados nativos com
conhecimento da cultura local eram valiosos; além disso, no caso da África do Sul, manter uma força de
defesa apenas de brancos (sendo eles minoria da população) e a perspectiva de uma guerra convencional
contra Estados vizinhos tornou o alistamento de soldados negros algo desejável; de forma que a partir de
então regimentos de africanos, coloured e indianos começaram a ser montados – na segunda metade de
1980, os brancos já eram apenas 60% da força (STAPLETON, 2010, p. 153-156).
53
Divergências entre os africânderes durante a Grande Trekk levaram ao surgimento de dois Estados: O
Estado Livre de Oranje e a República do Transvaal.
56
A descoberta de ouro e diamantes teve um impacto gigantesco para a África
austral, já que a migração de trabalhadores para as minas gerou um forte surto de
urbanização. Foi assim que surgiram cidades que até então não existiam, como
Kimberley (cidade dos diamantes), e outras viram sua população aumentar
drasticamente, como Johannesburgo (cidade do ouro) que era então um pequeno vilarejo
e tornou-se uma cidade de 166 mil habitantes em 1900. Além disso, a malha ferroviária
passou de 110 km em 1869 para 4190 km em 1905; e a agricultura e o setor
manufatureiro passaram por uma grande expansão em decorrência do crescimento
demográfico e da urbanização. Como aponta Kaniki (2010, p. 477-482), o país passou
por uma verdadeira revolução econômica após as descobertas de ouro; e com o
desenvolvimento das indústrias, a economia sul-africana atingiu um alto grau de
diversificação. A indústria do ouro, ainda a espinha da economia sul-africana, gerou
uma grande contribuição ao orçamento nacional e fornecia câmbio suficiente para a
importação de maquinários e combustível.
Todavia, a descoberta do ouro no Transvaal foi uma dádiva e um castigo para os
africânderes: enquanto a indústria da mineração levou a uma rápida expansão da
economia e colocou as repúblicas bôeres como a força econômica da região; o caráter
cosmopolita das minas, com imigrantes oriundos de várias partes do mundo (chamados
pelos africânderes como Uitlanders), era visto como uma ameaça à independência
africâner e o desenvolvimento de um capitalismo industrial era mal visto pelas elites
africânderes, de raiz agrícola (THOMPSON, 2001, p. 136). As novas oportunidades e
condições de vida, entretanto, preservaram e reforçaram as históricas divisões raciais. A
divisão da força de trabalho, com brancos ocupando cargos especializados ou de
supervisão e recebendo altos salários, enquanto os negros eram mal pagos e submetidos
às péssimas condições de trabalho, foi fundamental para a construção de uma sociedade
industrial nos mesmos moldes da colonial (THOMPSON, 2001, p. 112).
Economicamente, a África do Sul foi beneficiada pela Primeira e Segunda
Guerra Mundial, gerando um grande estímulo para as indústrias de alimentos e
manufaturados. Desde a formação da União em 1910 até o término da Segunda Guerra
Mundial, a renda nacional do país aumentou em mais de três vezes em termos reais
(THOMPSON, 2001, p. 154), algo que foi fundamental para a formação de uma ordem
regional centrada na indústria e infraestrutura sul-africana, o que demonstra a liderança
do país na África austral. Como resultados desse grande crescimento econômico, os
57
brancos pobres desapareceram e os africânderes conquistaram posições importantes na
economia. Os negros, porém, não puderam colher os frutos desse crescimento:
completamente subordinados aos brancos pelas leis segregacionistas, os negros
costumavam receber salários mais de 10 vezes menor que dos brancos (THOMPSON,
2001, p. 156-157).
4.1.3. Legitimidade
Em 1910, seguindo o antigo interesse de formar uma unidade, as colônias do
Cabo e de Natal, além das antigas repúblicas africânderes, se uniram na União da África
do Sul, um domínio autônomo do Império Britânico. Segundo Thompson (2001, p. 150151), a Constituição dessa União continha quatro princípios de destaque e que seriam de
grande importância no decorrer da história: (1) seguiu o modelo britânico de Estado
unitário com soberania parlamentar; (2) cada antiga colônia manteve regras diferentes
de direito ao voto, sendo que nas antigas repúblicas africânderes apenas os homens
brancos tinham esse direito; (3) em intervalos regulares de tempo, comissões judiciais
deveriam dividir o território do país em zonas eleitorais para as votações da Câmera
Baixa do Parlamento mantendo aproximadamente o mesmo número de votantes entre
elas54; e (4) inglês e holandês (posteriormente trocada para africânder) seriam os
idiomas oficiais do país. Assim, em 31 de maio de 1910, oito anos após depor armas
como líder das forças militares das repúblicas africânderes, Louis Botha 55 se tornou o
primeiro-ministro da recém-formada União da África do Sul.
A partir de então, apesar de grandes divisões entre os próprios africânderes e
entre africânderes e britânicos, as sucessivas administrações sul-africanas se
preocupariam com a consolidação do poder dos brancos no novo país. Diversas leis
foram criadas com o propósito de reforçar o poder dos brancos e tornar os negros uma
mão de obra barata, entre elas o Mines and Work Act (1911, emendado em 1926),
Natives’ Land Act (1913), Apprenticeship Act (1922), Natives Urban Act (1923), Native
54
Segundo Thompson, isso foi fundamental para a formação do governo de Malan e início do Apartheid
em 1948 (2001, p. 151)
55
Como aponta Anthony Marx (1998, p. 74), o fato de os africânderes terem tomado o controle político
após a derrota na guerra anglo-bôer é irônico: até a guerra, os africânderes eram bastante divididos, e
agora o Estado era governado por um dos líderes dos derrotados. Na comparação de A. Marx, seria como
se um sulista fosse eleito presidente dos Estados Unidos após a Guerra Civil e impusesse as leis
segregacionistas de Jim Crow nacionalmente.
58
Administration Act (1927) e o Native Service Contract Act (1932). Dentre essas, a
Natives’ Land Act é a de maior destaque, já que reservava 88% das terras para uso
exclusivo dos brancos e os 12% restantes seriam destinados para algo como “reservas
indígenas” para os africanos (KANIKI, 2010, p. 477).
Apesar das principais batalhas da Segunda Guerra Mundial terem ocorrido longe
da África do Sul, o conflito gerou grandes transformações dentro do país. Devido à
expansão da indústria de manufaturados e da mineração de carvão, houve uma intensa
urbanização; e como muitos trabalhadores brancos foram para a guerra lutar contra a
Alemanha, eles foram substituídos pela mão de obra negra, o que gerou um aumento de
47% da população negra que morava nas cidades56. Como aponta Thompson (2001, p.
178), em 1946, 76% da população branca era urbanizada, assim como 70% dos
indianos, 62% Coloured e 24% dos africanos – porém, em quantidade absoluta, eram
mais africanos habitando em cidades do que brancos. Em resposta a essas novas
pressões internas e externas no período da guerra57, o governo fez algumas concessões e
a “Color Bar”58 foi aliviada, além de melhoras na educação e aumento dos salários dos
africanos (THOMPSON, 2001, p. 181). Os africânderes, porém, viram essas reformas
com receio de que os falantes de inglês estavam quebrando o pacto de união entre
brancos, criado na guerra Anglo-Bôer, e passaram a temer também pela cada vez mais
numerosa presença dos africanos (MARX, 1998, p. 77). Esses fatores levaram o
nacionalismo africânder a ressurgir com grande força e a uma consequente e inesperada
vitória do National Party59 nas eleições de 1948.
A partir de então, o National Party usou o controle do governo para perseguir os
objetivos da supremacia racial branca e, principalmente, do nacionalismo africânder.
Segundo Thompson (2001, p. 190), quatro ideias serviram de base para o governo do
partido, sendo elas (1) a concepção de que a população sul-africana era dividida entre
quatro grandes grupos raciais (brancos, coloured, indianos e africanos); (2) os brancos,
56
Como nem governo, nem as autoridades urbanas e nem as indústrias providenciaram moradia para a
migração urbana dos negros, os africanos construíram suas moradias com sacos, madeira, ferro ondulado
e papelão nos arredores das cidades. O mais famoso desses assentamentos foi construídos no sudoeste de
Johannesburg, Soweto (THOMPSON, 2001, p. 178).
57
Como coloca Thompson (2001, p. 181), a propaganda dos Aliados, incluindo a Carta do Atlântico, era
antirracista.
58
Color Bar eram os limites que funcionários negros poderiam alcançar na profissão, de modo que os
brancos sempre teriam melhores cargos do que os negros.
59
Partido nacionalista africânder fundado por Hertzog logo após a formação da União. A partir da década
de 1930, se fortaleceu com o suporte de várias organizações culturais e econômicas africânderes, em
especial o Broederbond (THOMPSON, 2001, p. 162)
59
como a raça civilizada, deveriam ter controle absoluto do Estado; (3) os interesses dos
brancos deveriam prevalecer ante os interesses dos africanos, de forma que o Estado não
era obrigado a providenciar condições iguais para as diferentes raças e; por fim, (4) o
grupo racial branco (falantes do inglês e africânderes) formava uma única nação,
enquanto que os africanos permaneciam a várias nações distintas. Dessa forma, a
Population Registration Act de 1950 fundamentou o Apartheid estabelecendo distinção
racial a partir da aparência e da reputação, enquanto outras leis proibiram relações interraciais e reforçaram a segregação residencial; além delas, outras leis surgiram para
garantir a segregação racial em locais públicos e para a educação. E devido à
inconsistência de dominação racial, até mesmo uma potencial aliança com os
“coloured”, algo que até então recebia o apoio dos nacionalistas africânderes, foi
abandonada e essa categoria perdeu o direito ao voto60. Além disso, o governo também
providenciou meios de tornar as suas instituições mais africânderes, nomeando
africânderes para cargos importantes no serviço civil, nas Forças Armadas, na polícia e
nas corporações do Estado.
Revoltas populares foram comuns na década de 1940 na África do Sul,
principalmente em função do aumento da urbanização dos negros. Mas, como aponta
Worden (2012, p. 108-109), a ascensão do National Party ao governo impulsionou de
forma sem precedentes os protestos durante a década de 1950. Dentre esses protestos, o
massacre de Sharpeville, em 1960, chamou a atenção dos demais países para o
Apartheid e vários pedidos de sanções econômicas contra a África do Sul foram feitos
na ONU (todos vetados pelo Reino Unido e Estados Unidos, já que ambos possuíam
grandes investimentos na África do Sul). Além disso, o evento colaborou para a saída
da África do Sul da Commonwealth e, como aponta Worden (2012, p. 116-117), levou a
África do Sul para um progressivo isolacionismo das tendências políticas do continente
africano e do mundo em geral pelas décadas posteriores.
Entretanto, Apartheid, uma palavra que era um slogan político até então, se
tornou um engenhoso sistema de engenharia social sob o governo de Verwoerd (19581966). Isso se deu através do “Separate Development”, cuja política fundamental foi a
criação de pequenas “nações independentes” chamadas de Homelands ou Bantustans,
de forma que os africanos eram formalmente excluídos da cidadania sul-africana
60
Após várias tentativas e manobras políticas, os direitos de voto dos Coloured foram eliminados em
1956 (THOMPSON, 2001, p. 190-191)
60
(MARX, 1998, p. 79). O governo, então, impôs um rígido controle sobre todos os
negros sul-africanos e tentou realocar quase todos eles nesses Homelands, exceto
aqueles que os patrões brancos precisavam do trabalho – estima-se que cerca de 3,5
milhões de negros sul-africanos foram realocados entre 1960 e 1983 (THOMPSON,
2001, p. 194).
A descoberta de ouro no Transvaal e o consequente desenvolvimento da
economia local foram fatores incentivadores para a unificação do território, mas o
Estado sul-africano somente foi consolidado após a guerra Anglo-Bôer. Ao opor as duas
maiores forças dentro da África do Sul na virada do século XX, o conflito pode ser
interpretado tanto como uma fracassada guerra de independência dos africânderes
quanto uma guerra civil pela hegemonia das leis e das instituições do país (MARX,
1998, p. 69). Entretanto, apesar de uma custosa vitória britânica, o resultado do conflito
foi uma união entre africânderes e britânicos com a finalidade de manter a supremacia
branca em um território onde a maioria da população era negra. Tal aliança entre os
antigos rivais fica evidente quando Louis Botha, comandante militar dos africânderes na
guerra, foi eleito o primeiro Primeiro-ministro do Estado. Com isso, percebe-se que o
sistema nacional sul-africano seguiu uma lógica semelhante à proposta por Gilpin para
explicar as mudanças do sistema internacional. Para o autor, a estabilidade do sistema é
garantida se nenhum Estado acredita ser vantajoso mudá-lo (2009, p. 10), da mesma
forma foi com o Estado sul-africano, onde nenhum dos lados acreditava que seria
vantajoso alterá-lo novamente; isso explica porque africânderes e britânicos, apesar de
grandes rivalidades, permaneceram unidos (com exceção de poucas revoltas muito
pequenas).
A Segunda Guerra Mundial, decisiva para uma mudança na governança do
sistema internacional, instituiu novas regras e costumes que eram contrários ao
pensamento africânder. Enquanto o pensamento norte-americano, a nova hegemonia,
pregava contra o racismo e em defesa da independência dos países africanos; os
africânderes responderam às novas ameaças à supremacia branca na África do Sul com
ampliação da coerção – começaria assim o Apartheid.
61
4.2. Guerras de Fronteira sul-africana e fim do Apartheid
4.2.1. Coerção
A resistência ao governo era feita, inicialmente, através de boicotes, greves e
desobediência civil, seguindo táticas preconizadas pelo Programme of Action de 194961,
um documento produzido pelo African National Congress (ANC)62. Dentre esses
protestos, o massacre de Sharpeville, em 1960, se tornou um dramático turning point na
história da África do Sul: internamente, uma série de greves se espalhou pelo país, de
forma que o governo declarou Estado de Emergência, deteve os líderes do ANC e
PAC63 e baniu ambas as organizações; além disso, o massacre mostrou as falhas da
resistência pacífica e fez com que novos métodos de oposição ao Apartheid, mais
violentos, começassem a ser utilizados. O isolamento internacional da África do Sul,
causado principalmente após o massacre de Sharpeville, levou o país a estabelecer o
Armaments Development and Production Corporation (Armscor) em 1968 para facilitar
a manufatura local de armas, equipamentos militares e munições. Nas décadas de 70 e
80, a África do Sul já se tornaria a líder mundial em designer e produção de veículos
protegidos de minas (STAPLETON, 2010, p. 158).
A partir do processo de descolonização da África, os novos regimes africanos
independentes fundaram a Organização da Unidade Africana e instituíram o Comitê de
Libertação, com sede em Dar Es Salaam (Tanzânia) – esse comitê estabeleceu campos
de refugiados sul-africanos, oferecendo também educação e treinamento militar aos
refugiados. Entretanto, como aponta Thompson (2001, p. 213-215), apesar dos novos
países africanos desejarem a erradicação do Apartheid, faltavam meios de fazer isso –
os regimes ainda eram muito fracos, preocupados com a própria sobrevivência e muitas
vezes dependentes da economia sul-africana; e mesmo com forças combinadas não
poderiam se equiparar à força militar da África do Sul. Assim, até 1978, a oposição
internacional ao Apartheid, forte na retórica, ainda era fraca em substância.
61
Essa foi o ponto decisivo do fim das tentativas de conciliação tentada nas décadas anteriores. O
Programme of Action conclamava pela libertação nacional e independência política da dominação branca
através dos boicotes, das greves e da desobediência civil (WORDEN, 2012, p. 95).
62
Criada em 1912 como forma de oferecer oposição à hegemonia branca, a organização de âmbito
nacional conseguiu sobreviver a obstrução oficial e se tornou um formidável instrumento de resistência na
segunda metade do século XX. Com a democratização, a organização se tornou um partido político.
63
Dissidentes africanistas do CNA, sob a liderança de Sobukwe, fundaram o Pan-Africanist Congress em
1959 (THOMPSON, 2001, p. 210).
62
Apesar de toda a militarização africânder e de alguns sucessos na sua luta contra
movimentos sociais dos negros durante a década de 1960, inclusive com o
aprisionamento das principais lideranças negras (como Nelson Mandela), a consciência
negra conseguiu se difundir pela sociedade e o ano de 1973 marcou o início de uma
nova onda de greves e protestos. Em 16 de junho de 1976, milhares de crianças negras
protestaram contra o ensino do idioma africânder (visto por eles como o idioma do
opressor) em Soweto. O governo reagiu brutalmente em novo massacre, onde se estima
que 575 pessoas morreram (THOMPSON, 2001, p. 212-213). Como resultado, milhares
de jovens negros sul-africanos fugiram do país e receberam treinamento militar em
Tanzânia e Angola.
Pressões internas e externas começaram a pressionar duramente o regime do
Apartheid, de modo que algumas reformas foram feitas com a intenção de se adaptar às
novas situações. Mas além das reformas, a política do governo Botha (1978-1989)
pregava a ideia de que a África do Sul se tornou alvo de um “ataque total” por
revolucionários de dentro e fora do país, e que eles deveriam ser combatidos com a
“total strategy” – uma combinação eficiente dos meios de segurança com políticas
reformistas (WORDEN, 2012, p. 133). Além dos aspectos internos, cada vez mais
problemáticos com aumento da resistência, Botha procurou neutralizar a oposição de
países potencialmente hostis na África austral através da criação de uma “constelação de
Estados” ligados à África do Sul pelo comércio, algo que foi frustrado pela formação
dos Estados da Linha de Frente64. O Estado sul-africano começou então a realizar
invasões militares acompanhadas de suporte indireto a movimentos dissidentes armados
(Renamo em Moçambique e Unita em Angola) e incursões em Lesoto, Suazilândia,
Zimbábue e Botsuana com a finalidade de desestabilizar a região. Além disso, seguindo
um primeiro teste nuclear no Atlântico Sul em 1977, a África do Sul chegou a produzir
seis ou sete pequenas bombas nucleares (STAPLETON, 2010, p. 158).
Entretanto, as reformas promovidas por Botha não convenceram e ainda
facilitaram a resistência. Por toda a década de 1980, então, houve uma escalada na
violência, com aumento da resistência (sabotagem, explosões) e de protestos; e a partir
de 1985, esses movimentos estavam quase conseguindo o seu objetivo de tornar o país
ingovernável (BEINART, 2001, p. 259). Na tentativa de reestabelecer o controle sobre a
república, o governo Botha estabeleceu o estado de emergência e ampliou
64
Estados vizinhos à África do Sul e governados por negros (STAPLETON, 2010, p. 187)
63
consideravelmente a repressão e os gastos com defesa – nas palavras de Thompson
(2001, p. 235, tradução nossa), “o governo tinha recorrido à tirania legalizada” 65.
Sem resultados positivos na repressão interna e na Guerra de Fronteira 66, o
governo do sucessor de Botha, F. W. de Klerk, alterou a política repressiva para uma
conciliatória. Assim, com o início da transição, as Forças Armadas sul-africanas
(SADF) perderam uma considerável influência política. E após o fim do Apartheid,
como aponta Stapleton (2010, p. 192-193), o papel das forças militares sul-africanas
tornou-se um tanto contraditório: com tantos problemas internos e a falta de ameaças
externas, os gastos com defesa não são uma prioridade do país; mas como uma potência
regional com histórico de luta contra a opressão, torna-se um dever da África do Sul
ajudar a promover a democracia e os Direitos Humanos em outros países da África, algo
que se torna uma obrigação devido aos danos causados pelo Apartheid aos países
vizinhos. E de fato, a África do Sul, ao sair do isolacionismo, tem contribuído em várias
missões internacionais tornando-se um membro importante da SADC e UA67,
organizações que são intensamente envolvidas em problemas de segurança
internacional, resoluções de conflitos e manutenção da paz.
4.2.2. Capital
A partir do final da década de 1970, vários fatores internos e externos
começaram a ameaçar o regime de Apartheid68. Internamente, a própria indústria exigia
trabalhadores permanentes e semi qualificados, de forma que o Apartheid não
colaborava mais com as necessidades do capitalismo sul-africano (WORDEN, 2012, p.
132). O alto custo de manutenção do regime; o mau uso dos recursos humanos; uma
indústria que não era competitiva internacionalmente e a perda de investimentos
externos (devido às sanções) prejudicaram fortemente a economia sul-africana, que
entrou em um período de forte recessão. Além disso, como aponta Thompson (2001, p.
65
“The government had resorted to legalized tyranny”.
A tentativa sul-africana de se garantir como uma potência regional na África austral teve um custo
financeiro e humano muito alto. Em 1988 as forças sul-africanas sofreram muitas perdas em combate
contra as forças combinadas de Angola (MPLA) e Cuba. O acordo de paz marcou o fim do controle sulafricano da Namíbia e a retirada das tropas sul-africanas de Angola (THOMPSON, 2001, p. 239-240).
67
Southern African Development Community e União Africana.
68
Concebidas como elemento dissuasor, a África do Sul conduziu um teste nuclear no Atlântico sul em
1977 e chegou a produzir sete pequenas bombas atômicas durante a década de 1980 (STAPLETON,
2010, p. 158)
66
64
221-222), a população negra estava crescendo em uma taxa muito maior que a branca,
de modo que a proporção de brancos estava em rápido declínio. Em uma tentativa do
regime de se adequar às pressões, foram feitas algumas reformas, mas elas surtiram
efeitos contrários. A economia não conseguiu recuperar o crescimento; inflação e
desemprego aumentaram e o padrão de vida de todos os sul-africanos (incluindo os
negros) reduziu. Assim, a recessão econômica e os altos gastos do governo levaram o
Estado à bancarrota em 1989, momento em que se deu início às negociações para a
transição de poder.
Desde então a economia sul-africana tem tido grandes problemas para se
recuperar. O histórico de uma força de trabalho mal treinada, com baixa produtividade e
somada a leis trabalhistas que garantem altos salários, deixou a manufatura local sem
competitividade no mercado internacional (WORDEN, 2012, p. 157-158); e a ausência
de mão de obra qualificada cria grandes transtornos para indústrias de ponta, algo que a
educação do país não consegue reverter porque sofre com condições precárias
(THOMPSON, 2001, p. 284-285). Além disso, altos índices de desemprego estimulam a
enorme violência na sociedade sul-africana (com altos índices de assassinatos, roubos e
estupros), algo que é considerado por Worden como uma das causas que afastam os
investimentos externos no país (2012, p. 162). Outros graves problemas que assolam
sucessivos governos sul-africanos são a saúde e a corrupção: além de uma séria
deterioração na qualidade dos hospitais públicos, a África do Sul tem um dos mais altos
índices de contaminação por HIV no mundo – em 2009, mais de cinco milhões de
pessoas portavam o vírus, o que corresponde a cerca de 17% da população total 69
(WORDEN, 2012, p. 161). A corrupção, apesar de não ser uma novidade na África do
Sul, aumentou consideravelmente com a ascensão da nova elite política negra – alguns
estudiosos apontam que isso acontece porque a nova elite tem experiências recentes de
extrema pobreza e vê no Estado uma fonte para o enriquecimento próprio
(THOMPSON, 2001, p. 287).
69
O presidente Thabo Mbeki, sucessor de Mandela, alegou publicamente que a AIDS era uma doença
ocidental, que os relatórios alarmistas refletiam estereótipos racistas sobre a sexualidade africana e que os
remédios de combate ao vírus eram possivelmente tóxicos. Apesar de não ser um cientista, Mbeki entrou
na controvérsia sobre a causa da AIDS, onde uma pequena minoria de cientistas apontava outras causas,
como má nutrição (THOMPSON, 2001, p. 294; WORDEN, 2012, p. 161)
65
2.3. Legitimidade
Na segunda metade do século XX, a África passou pelo “Wind of Change” 70- o
processo de descolonização e independência política dos países africanos. A partir da
década de 60, o Reino Unido passou o poder para nacionalistas africanos na Tanzânia,
Uganda, Quênia, Malaui, Rodésia do Norte (atual Zâmbia), Lesoto, Botsuana e
Suazilândia. As exceções, dentro da África austral, foram a Rodésia (atual Zimbábue),
onde os colonos brancos declararam uma independência não reconhecida temendo que o
poder fosse para os negros, e as colônias portuguesas de Moçambique e Angola – nestes
países a transição de poder foi problemática e à base de conflito. Já na década de 1970,
a ONU, contando com mais membros africanos e asiáticos, passou a dar mais atenção
para o racismo na África do Sul; de forma que e a Corte Internacional de Justiça julgou
o controle sul-africano da Namíbia como ilegal, a Assembleia Geral da ONU declarou o
Apartheid como um crime contra a humanidade e o Conselho de Segurança votou
unanimemente um embargo de armas contra a África do Sul.
O governo sul-africano, por sua vez, conseguiu responder às alterações na ordem
internacional ao comparar os Homelands com a independência política dos países
africanos e, principalmente, colocando a África do Sul como uma nação estável e
indispensável na luta contra o comunismo. Ao se aproveitarem dos temores europeus e
norte-americanos da Guerra Fria e apontarem os movimentos negros (como o CNA)
como comunistas, o governo nacionalista africânder conseguia desviar a atenção dos
seus problemas internos. Além disso, outro motivo que oferecia suporte à manutenção
do Apartheid era a atratividade da economia sul-africana aos investimentos norteamericanos e europeus, de forma que as potências ocidentais relutavam em perturbar o
status quo na África do Sul.
Entretanto, a tentativa de caracterizar os Homelands como nações africanas
independentes falhou miseravelmente, já que nenhum outro país reconheceu a
independência dessas “nações”; a África do Sul e a Rodésia se tornaram anomalias após
a descolonização (e na Rodésia a minoria branca já estava perdendo o controle na guerra
civil contra as guerrilhas africanas); a discriminação racial foi eliminada das leis norte-
70
Discurso do Primeiro Ministro britânico Harold Macmillan que deixou claro que o Reino Unido não
apoiaria a África do Sul caso ela tentasse resistir ao nacionalismo africano (THOMPSON, 2001, p. 213)
66
americanas e muitos ativistas negros dos Estados Unidos abraçaram a causa dos negros
sul-africanos.
O resultado dessas pressões internas e externas foi uma reformulação do
Apartheid, de forma que as duras medidas segregacionistas do período de Verwoerd
foram suavizadas e uma reforma na Constituição criou um parlamento de três câmeras
separadas, sendo uma para brancas, outra para coloureds e outra para indianos. Mas
como salienta Thompson (2001, p 224), essas alterações foram complexas tentativas de
se adaptar às novas circunstâncias sem sacrificar a supremacia africânder.
Como as reformas do Apartheid intensificaram ainda mais os movimentos de
resistência, a partir de 1989 o governo sul-africano mudou completamente sua trajetória.
Vários fatores foram responsáveis pela mudança de uma política repressiva em estado
de emergência para uma conciliatória: (1) a demografia apontava que a proporção de
brancos estava em declínio, do pico de 21% em 1936 já estava reduzida a 15% em 1985
– e a estimativa é que em 2005 seriam apenas 10% (o que de fato aconteceu em 1999);
(2) a economia em profunda recessão; (3) apesar das políticas segregacionistas, brancos
e negros sul-africanos eram extremamente interdependentes; e (4) eventos
internacionais, como a queda do muro de Berlim e a colaboração entre comunistas e
capitalistas na libertação da Namíbia encerraram o suporte dos temores da guerra fria
(THOMPSON, 2001, p. 241-243).
Assim, no início de 1990, em um ato inesperado, Frederik de Klerk (sucessor de
Botha) retirou o banimento do CNA, PAC e do Partido Comunista sul-africano e
libertou diversos prisioneiros políticos, incluindo Nelson Mandela71. Em 1991, várias
leis fundamentais do Apartheid foram revogadas e o governo entrou em negociações
formais com uma série de partes, incluindo o CNA72 (WORDEN, 2012, p. 147).
As negociações não foram um processo fácil. Durante a construção de uma nova
constituição, o governo de Klerk buscou proteger os interesses da população branca
tentando colocar obstáculos constitucionais para evitar a transição de uma dominação
branca para uma dominação negra, mas Mandela e o CNA não aceitaram. Enquanto
71
Mandela fez parte de uma nova geração de líderes do CNA, grupo este que assumiu a organização logo
após a ascensão do National Party. Entretanto, durante a década de 60, Mandela foi preso e condenado a
prisão perpétua em Robben Island – o presídio de segurança máxima da África do Sul destinado a
prisioneiros políticos.
72
Em julho de 1991, o CNA fez a sua primeira conferência na África do Sul depois de trinta anos. O
encontro de 2.244 delegados teve por objetivo transformar o movimento ilegal e secreto em um partido de
massa com uma gestão mais ampla e democrática (THOMPSON, 2001, p. 251).
67
isso, a violência não cessou e em certas regiões, como KwaZulu, ela se intensificou.
Além disso, de Klerk e Mandela criaram grande antipatia entre si e as negociações
foram interrompidas por algum tempo após alguns combates, de forma que só
retornaram porque a África do Sul estava beirando à anarquia, com derramamentos de
sangue ocorrendo continuamente e a economia despencando. Dessa forma, A. Marx
(1998, p. 143) compara a necessidade de consenso entre negros e brancos para a
preservação do Estado e sua economia com a aliança anglo-bôer feita no início do
século XX. Na volta das negociações, porém, a autoridade do governo já estava corroída
e Mandela tomou a liderança no processo de transição (THOMPSON, 2001).
No final de 1993, o parlamento sul-africano aprovou a legislação necessária para
ratificar a Constituição interina feita pelo Fórum Multipartidário, de forma a dar uma
continuidade legal entre o velho e o novo regime. Além disso, o parlamento também
criou um Conselho Executivo de Transição, que se tornou o governo de facto da África
do Sul até as próximas eleições, marcadas para 1994. E somente após muito apelo das
lideranças sul-africanas, especialmente de Mandela e de Klerk, as eleições puderam
acontecer pacificamente (ainda que repleta de erros) e Mandela foi eleito o primeiro
presidente negro de uma nova África do Sul.
A ascensão de Mandela à presidência e o fim do Apartheid representam uma
enorme transformação para a África do Sul: o novo presidente contou com o apoio
imediato de toda a sociedade internacional, o país ingressou na Organização da Unidade
Africana e foi readmitido na Commonwealth. Internamente, a ênfase girava em torno da
construção de uma nova nação caracterizada por grandes diferenças; a nova bandeira
juntou as antigas cores com as do nacionalismo africano e o antigo hino foi incorporado
ao hino de libertação Nkosi Sikelela iAfrika (WORDEN, 2012, p. 156).
Entretanto, após o fim do entusiasmo que marcou as primeiras eleições livres,
ficou evidente que os desafios da África do Sul eram muito maiores do que a criação de
uma constituição democrática. Apesar de todos os incentivos promovidos por Mandela
em busca de uma união nacional, o legado de um passado dividido não poderia ser
facilmente resolvido, séculos de colonialismo e Apartheid criaram uma série de efeitos
acumulativos que deixaram o país com graves crises de saúde, educação e segurança.
Diferenças econômicas entre brancos e negros continuam destacadas, de forma que a
pobreza extrema afeta principalmente os negros, mas gradualmente a divisão da
sociedade sul-africana está deixando de se basear em raças para ser dividida por classes.
68
Além disso, ataques xenofóbicos contra imigrantes de outros países africanos têm
ocorrido com certa regularidade. Mas, como aponta Thompson (2001, p. 295), apesar da
piora de vários aspectos cruciais da sociedade sul-africana depois da transição de poder,
o novo regime restaurou a dignidade dos negros sul-africanos; pacificou um país à beira
de uma guerra civil; consolidou uma ordem constitucional e manteve a regra da lei;
aceitou a existência de uma oposição política (embora muito fraca) e providenciou a
milhares de pessoas o acesso à água encanada, eletricidade, telefones e moradias
adequadas – o que já são grandes conquistas.
Apesar da África do Sul ter se posicionado ao lado vitorioso na Segunda Guerra
Mundial, a incompatibilidade entre os ideais do nacionalismo africânder e as novas
regras do sistema internacional, governado pelos Estados Unidos, fizeram com que ela,
de certa forma, também tivesse perdido na guerra. Assim, enquanto o mundo
acompanhava a criação da ONU e o processo de descolonização da África, com o
surgimento de dezenas de Estados africanos independentes e governados por negros; a
África do Sul sustentava o regime do Apartheid com base na sua força militar e nos
temores ocidentais da Guerra Fria – algo que se provou insuficiente, pois o país
começou a ficar cada vez mais isolado do sistema internacional, sendo acusado pela
ONU por crime contra a humanidade e se tornando alvo de sanções. Dentro do cenário
doméstico, o Apartheid exigia altos custos para sua manutenção, excluía a maioria da
sua população de direitos básicos; a indústria começou a ser prejudicada pela falta de
mão de obra qualificada e a economia entrou em recessão; além disso, com o
fortalecimento dos movimentos negros, revoltas populares se tornavam cada vez mais
frequentes. Sendo pressionada interna e externamente, a África do Sul buscou, com a
esperança de recuperar o seu equilíbrio, garantir a sua dominância do sistema regional
na África austral através da coerção. Entretanto, com uma economia em recessão, os
altos custos demandados na guerra e as pesadas perdas na luta contra forças cubanas e
angolanas; tornou-se insustentável para a África do Sul alcançar uma vitória nesse
conflito. Assim, enquanto o regime do Apartheid perdia seu suporte coercitivo, tanto
através da independência da Namíbia quanto das revoltas populares que tornavam o país
quase ingovernável; o último suporte do regime, a estrutura bipolar do sistema
internacional, começava a ruir junto com a queda do Muro de Berlim.
A partir de então, as lideranças políticas da África do Sul conseguiram evitar
uma guerra civil e iniciaram o processo de transição pacífica que terminou com a
69
eleição de Nelson Mandela para a presidência do país. Nesse momento, a África do Sul
conquistou a legitimidade interna e internacional, mas sofreu uma significativa redução
das capacidades do Estado e enfrenta, desde então, graves problemas sociais e
econômicos decorrentes de um passado opressor, décadas de recessão econômica e
guerras perdidas.
Ao concluirmos as análises da África do Sul, podemos perceber que o país
expandiu expressivamente suas capacidades econômicas e coercitivas após a unificação
do território e formação do Estado, tornando-se imediatamente uma potência regional na
África austral e, como aponta Castellano (2015, p. 98-99), sem nenhuma ameaça a sua
posição em toda a primeira metade do século XX. A mudança sistêmica, ocorrida em
função da Segunda Guerra Mundial e a ascensão dos Estados Unidos à liderança do
sistema internacional, levou a grandes modificações no continente africano, como a
independência política de dezenas de países e a crítica ao racismo. A partir desse
momento, as elites africânderes institucionalizam o Apartheid como forma de garantir
uma posição dominante no âmbito doméstico, mas passam a ter sua posição de potência
regional ameaçada pelos vizinhos. Esta situação terminou com uma tentativa do Estado
sul-africano de garantir seu domínio regional enquanto enfrentava sérios conflitos
internos. Em meio a derrotas, o Estado sul-africano perdeu suas capacidades coercitivas
e de capital, mas conquistou a legitimidade doméstica e internacional com o fim do
Apartheid.
70
5. CONCLUSÃO
África do Sul e Estados Unidos são dois países que foram colonizados por
europeus a partir do século XVII e que passaram por grandes semelhanças desde então,
como expansão territorial, escravidão, fortes movimentos nacionalistas, crença em um
futuro predestinado, guerra contra a metrópole, industrialização e diversificação da
economia, entre outros. Entretanto, atualmente, os países se encontram em situações
muito distintas: enquanto os Estados Unidos se tornaram uma superpotência, a África
do Sul se tornou uma potência regional com grandes desafios internos. Em frente a isso,
o presente trabalho buscou compreender como se formaram os Estados sul-africano e
norte-americano e como essas unidades interagiram no sistema internacional.
Ao considerarmos as variáveis propostas por Tilly de coerção e capital como as
bases da análise da formação do Estado, o primeiro capítulo buscou um aprofundamento
da teoria, bem como um entendimento de como o Estado moderno se formou na
Europa. Isso foi fundamental para compreender o papel da guerra na formação dos
Estados e como se formaram essas estruturas tão capazes a ponto de se espalharem por
todo o mundo – nesses casos, porém, os Estados formados pelo colonialismo europeu na
América Latina, Ásia e África criaram grandes incongruências com o histórico dos
Estados da Europa: o mecanismo de recrutamento e arrecadação de impostos não gerou
grandes capacidades estatais. Assim, entendemos também a análise entre Estado e
sociedade (legitimidade) como fundamental para um aumento ou redução das
capacidades do Estado.
Por fim, terminadas as análises de como um Estado se forma e se mantém,
buscamos na teoria a forma como os Estados se relacionam e se organizam no sistema
internacional. Apesar da anarquia característica, as relações internacionais também
possuem regras e são relativamente controladas por uma ou mais potências. Nesse caso,
as guerras também possuem um papel fundamental, por ser o principal mecanismo de
mudanças no sistema: quando, a partir de mudanças na distribuição do poder, cria-se um
desequilíbrio no sistema, uma guerra costuma ser o meio de tornar o sistema equilibrado
novamente e assim o lado vencedor passa a ditar as suas novas regras.
Após a devida compreensão de como um Estado se forma e como ele interage no
sistema internacional, passamos às análises dos casos escolhidos. No segundo capítulo,
71
dividimos a história dos Estados Unidos, desde a sua formação até o momento em que
ele se torna uma superpotência, a partir de três conflitos decisivos: a Guerra de
Independência, a Guerra Civil e a Segunda Guerra Mundial. Dessa forma, percebemos
como a Guerra de Independência e a Guerra de 1812 não apenas concederam a
independência política aos Estados Unidos, mas também motivaram a sua
industrialização e, principalmente, concederam prestígio ao país – algo que foi
fundamental para a sua posterior expansão territorial e alcançar dimensões continentais.
Estavam fundadas as bases da potência regional.
Entretanto, enquanto os Estados Unidos ampliavam seu acúmulo e concentração
de capital e mantinham uma capacidade coercitiva forte o bastante para resolver seus
problemas com os nativo-americanos; divisões ideológicas se fortaleceram com a
ausência de uma autoridade central forte. A Guerra Civil, nesse caso, foi responsável
por uma enorme expansão das capacidades do Estado norte-americano e determinou o
grupo que seria responsável pelo seu controle. Apesar disso e das suas enormes
capacidades, os Estados Unidos se mantiveram isolados e marginalizados no sistema
internacional, situação que só foi alterada após a guerra hispano-americana e a Primeira
Guerra Mundial, quando o país funda a sua atuação inter-regional, própria de uma
grande potência. Nesse momento, os Estados Unidos já haviam ultrapassado o Reino
Unido em vários aspectos, mas ainda não controlavam o sistema internacional; com a
entrada do país na Segunda Guerra, finalmente os norte-americanos se tornaram uma
superpotência e decretaram suas regras para o sistema internacional através da ONU, do
seu poderio militar e do controle da economia mundial, consolidando-se como a
superpotência mais capaz.
No terceiro capítulo, então, analisamos o mesmo processo de formação do
Estado e sua atuação no sistema internacional da África do Sul. Dividimos assim a
história da África do Sul, desde a formação do domínio britânico até a atualidade,
através de dois conflitos fundamentais: a guerra anglo-bôer e as guerras de fronteira sulafricanas. Assim, podemos perceber que a guerra anglo-bôer foi uma tentativa frustrada
de garantir a independência africânder e terminou com uma aliança entre britânicos e
africânderes para manter o Estado nas mãos dos brancos. Este pacto político pós-guerra
gerou as bases para o surgimento da principal potência regional da África austral. A
Segunda Guerra Mundial, apesar de ter sido longe da África do Sul e ter tido uma
pequena participação das forças do país, causou grandes transformações internas, já que
72
a vitória dos Aliados instituiu uma nova ordem mundial contra o racismo e a favor da
independência política da África e Ásia; isso representou um golpe duro para a
ideologia africânder, que respondeu com a institucionalização do Apartheid.
Em desacordo com as novas regras do sistema internacional, a África do Sul se
tornou bastante isolada, sendo alvo de sanções da ONU e acusada de crimes contra a
humanidade. Quando a resistência interna, apoiada pelos recém-formados países
africanos, aumentou e a economia sul-africana começou a ser afetada pelas sanções e
falta de mão de obra qualificada, a África do Sul tentou garantir o controle da ordem
regional da África austral, desejando incluir a força os países da região em sua esfera de
influência e terminar com suas ameaças ao regime. Entretanto, sem conquistar sucesso
na sua empreitada e com o país se tornando ingovernável (guerra civil), iniciou-se a
transição política para dar legitimidade interna e externa ao Estado sul-africano, ao
custo de uma grande diminuição das suas capacidades. A África do Sul experimentara,
portanto, incentivos semelhantes ao dos Estados Unidos da segunda metade do século
XIX: guerra interna e regional, com presença de forças opositoras extrarregionais.
Entretanto, dada a baixa legitimidade doméstica e internacional do regime, os
solucionou de forma diversa: no conflito interno e regional, o Estado foi derrotado.
Ademais, entre os fatores mais importantes que diferenciam os casos avaliados,
é importante salientarmos que a África do Sul foi, até a descoberta do ouro e diamantes,
um país periférico na economia global, cuja importância era a rota marítima que passa
pelo Cabo da Boa Esperança. Isso fez com que, por cerca de duzentos anos, o território
da África do Sul quase não recebesse investimentos nem se tornasse um destino
procurado para imigração. Os Estados Unidos, ao contrário, receberam intensa
imigração desde o estabelecimento das primeiras colônias britânicas e conseguiram
prosperar e diversificar sua economia. Quando a África do Sul foi formada pela união
entre britânicos e africânderes após a guerra anglo-bôer (1899-1902), os Estados Unidos
já tinham vencido suas guerras de independência (1776 e 1812) e suas guerras que
garantiram legitimidade interna (1861-1865) e colocaram o país entre as grandes
potências (1898). É importante salientar isso para percebermos que os Estados Unidos
tiveram mais de um século de vantagem em relação à África do Sul para resolver seus
principais problemas domésticos e, eventualmente, corrigir falhas estruturais.
Além disso, outra diferença significativa entre Estados Unidos e África do Sul
está na composição das suas populações. Os Estados Unidos foram colonizados pelos
73
britânicos e manteve-se o perfil branco protestante da população até a ampliação das
capacidades estatais do país. A África do Sul, pelo contrário, se tornou um caldeirão de
povos distintos e que travaram várias guerras entre si, ampliando as rivalidades
existentes; nesse caso, com tantos interesses e identidades conflitantes, torna-se muito
mais difícil para um Estado ampliar suas capacidades. Esses casos confirmam a teoria
de Taylor e Botea (2008, p. 34) de que Estados etnicamente homogêneos são mais
capazes de levantar dinheiro, construir exércitos e a serem bem sucedidos em guerras do
que outros mais heterogêneos. Em suma, conseguem de forma mais rápida romper com
o gap de capacidades em relação às potências centrais.
Os elementos aqui elencados foram determinantes nos momentos de conflito.
Quando ocorreu a Primeira Guerra Mundial, por exemplo, África do Sul e Estados
Unidos estavam geograficamente longe dos combates e tiveram suas economias
beneficiadas pela guerra de atrito na Europa; entretanto, os Estados Unidos, em estágio
avançado de industrialização, era o único país apto a produzir todos os recursos
necessários para a guerra europeia, incluindo navios de guerra, e se beneficiou muito
mais do conflito do que a África do Sul. Além disso, na tentativa sul-africana de
garantir sua hegemonia na África austral, o país também passava por um conflito
interno, devido às suas divisões étnicas e sociais, e não conseguiu alcançar a vitória
militar mesmo perante vizinhos teoricamente mais fracos e apoiados por potências
extra-regionais.
Assim sendo, podemos perceber que os Estados Unidos foram vitoriosos em
todas as suas guerras fundamentais para o fortalecimento do Estado, conquistando a
independência política (1775-1783); o prestígio internacional (1812-1814); a coesão
interna (1861-1865); a criação de uma esfera de influência no hemisfério ocidental
(1898) e sua ascensão à hegemonia dominante do sistema internacional (1939-1945). A
África do Sul, por outro lado, perdeu todas as guerras: a tentativa de independência foi
fracassada na guerra anglo-bôer (1899-1902), embora alcançada em termos políticos; a
ideologia dominante do sistema internacional tornou-se incompatível com o interesse
das elites dominantes (1939-1945), e a tentativa de garantir sua esfera de influência
regional fracassou com a independência da Namíbia e retirada das tropas sul-africanas
de Angola (1988).
Em frente a isso, o presente trabalho buscou contribuir para a compreensão da
guerra como um agente de transformação no Sistema Internacional, revelando sua
74
dualidade, uma vez que, ao mesmo tempo em que é agente de destruição, promove a
construção de suas unidades e o estabelecimento da ordem. Além desse aspecto, sendo a
guerra um elemento recorrente nas relações internacionais, o seu estudo e a real
compreensão dos seus impactos torna-se de fundamental importância para compreender
as relações humanas, as disputas por poder e a hierarquia do sistema internacional.
Vale salientar, contudo, que o campo de estudo do presente trabalho não se
limita às questões aqui retratadas e que o debate na área ainda requer de outras
contribuições. Uma alternativa para tanto seria a análise das características
populacionais/demográficas dos Estados, fator este fundamental para a relação entre
Estado e sociedade e para questões de capacidade estatal. Tal análise possibilitaria
assim, a compreensão, tanto de questões referentes ao comportamento das elites, quanto
de questões de relações sociais. A partir disso compreender-se-ia, por exemplo, se o
perfil capitalista das elites norte-americanas contribuiu com o acúmulo e concentração
de capital nos Estados Unidos ou se, da mesma forma, o perfil agrícola das elites
africânderes prejudicou a industrialização da África do Sul. Além disso, o fator mais
relevante da análise populacional seria, provavelmente, a relação estabelecida entre os
negros sul-africanos e o Estado do Apartheid e a forma como esta limitou as
capacidades estatais da África do Sul. Portanto, amplos caminhos de pesquisa surgem
na tentativa de resgatar o conceito de legitimidade para a avaliação de processos
virtuosos e perniciosos de formação histórica de Estados.
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