UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS ECONÔMICAS CURSO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS ESTADOS UNIDOS E ÁFRICA DO SUL: COERÇÃO, CAPITAL E LEGITIMIDADE NA CONSTRUÇÃO DO ESTADO TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO Matheus Dalbosco Pereira Santa Maria, RS, Brasil. 2015 ESTADOS UNIDOS E ÁFRICA DO SUL: COERÇÃO, CAPITAL E LEGITIMIDADE NA CONSTRUÇÃO DO ESTADO Matheus Dalbosco Pereira Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM, RS) como requisito parcial para a obtenção do grau de Bacharel em Relações Internacionais. Orientador: Prof. Dr. Igor Castellano da Silva Santa Maria 2015 2 AGRADECIMENTOS Ao concluir mais uma etapa de minha vida, gostaria de agradecer a todos que, de alguma forma, foram fundamentais nesse processo. Assim, começo agradecendo a minha mãe, Andréa, por todo o carinho e tempo que ela já dedicou e ainda dedica a mim – são elementos essenciais do meu emocional. Agradeço ao meu pai, Afranio, pelo incentivo que ele me deu à busca do saber, ao questionamento e ao exercício lógico – requisitos tão necessários para o meu aprendizado. Quando os agradeço por isso, não é apenas por isso, mas por considerar que foram as suas principais contribuições – e uma soma muito benéfica a mim. Desejo também demonstrar minha gratidão a todos os meus familiares, avôs e avós, tios e tias, primos e primas, entre outros. Apesar de, eventualmente, passarmos muito tempo longes, cada um contribui, do seu modo, para a minha vida. Expresso minha gratidão também a todos os meus amigos, de Minas Gerais ou do Rio Grande do Sul, ou pessoas que, de alguma forma, se importam comigo e desejam o melhor para mim. Agradeço, em especial, à minha namorada, Camila Hirt Munareto, que não apenas é minha melhor amiga e uma grande companheira, mas também me deu uma contribuição fundamental para a finalização deste trabalho. Além disso, também quero agradecer ao meu orientador, Igor Castellano da Silva, pela sua dedicação, competência em sua função e por tudo que já me ensinou nos últimos anos. Por fim, quero fazer um agradecimento especial aos meus avós, Otolip e Marly, por terem me recebido como um filho em Santa Maria, contribuindo significativamente para a conclusão dessa etapa da minha vida. A todos vocês, meu muito obrigado! Dedico esse trabalho, postumamente, ao meu avô Otolip Dalbosco. 3 Igitur qui desiderat pacem, praeparet bellum (Publius Flavius Vegetius Renatus, De Re Militari – Livro 3, prefácio) 4 RESUMO Trabalho de Conclusão de Curso Curso de Relações Internacionais Universidade Federal de Santa Maria ESTADOS UNIDOS E ÁFRICA DO SUL: COERÇÃO, CAPITAL E LEGITIMIDADE NA CONSTRUÇÃO DO ESTADO AUTOR: Matheus Dalbosco Pereira ORIENTADOR: Igor Castellano da Silva Data e Local da Defesa: Santa Maria, 02 de Dezembro de 2015. Estados Unidos e África do Sul experimentaram trajetórias históricas semelhantes no que se refere à formação social e Estatal. Localizados em regiões estratégicas e ricas em recursos naturais, ambos os países foram colonizados por europeus protestantes que tiveram uma relação agressiva com os nativos e que posteriormente se revoltaram contra a metrópole. Todavia, apesar das semelhanças, os Estados Unidos vieram a se tornar uma superpotência global enquanto a África do Sul tornou-se uma potência regional com grandes constrangimentos domésticos. O estudo objetiva compreender quais elementos da trajetória histórica de formação do Estado podem explicar por que esses países possuem enormes diferenças de capacidade estatal no início do século XXI. Para tal, utiliza-se o modelo analítico de Charles Tilly (1996) baseado nos conceitos de coerção e capital e na sua interação mediante a dinâmica da guerra (competição sistêmica). Adicionalmente, busca-se avaliar a evolução do elemento da legitimidade (obediência, efetividade institucional e identidade), fundamental para o conceito weberiano de Estado. A teoria de Gilpin (1981) sobre mudanças sistêmicas será utilizada também para a análise de interação dos Estados no sistema internacional. Supõe-se que a ausência do equilíbrio virtuoso entre coerção e capital, mas principalmente da legitimidade, foram fatores fundamentais para as dificuldades enfrentadas pelo Estado sul-africano; situação distinta da experimentada pelos estados do norte dos Estados Unidos, vitoriosos na guerra de independência e na guerra civil e responsáveis pelo atual modelo estatal norte-americano. Trata-se de um estudo hipotético-dedutivo de procedimento histórico-comparativo que adota a técnica de pesquisa bibliográfica. Palavras-Chave: África do Sul, Estados Unidos, coerção, capital, legitimidade, Estado, guerra. 5 SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO ..................................................................................... 7 2. A CONSTRUÇÃO DOS ESTADOS EUROPEUS .......................... 12 2.1. A lógica da construção do Estado ............................................... 13 2.2. Expansão do Estado europeu para o resto do mundo............... 19 2.3. Legitimidade.................................................................................. 22 2.4. Sistema Internacional ................................................................... 24 3. Guerra e Formação do Estado nos EUA .......................................... 27 3.1. Conquista da independência ........................................................ 27 3.1.1. Coerção............................................................................................................... 28 3.1.2. Capital ................................................................................................................ 30 3.1.3. Legitimidade ...................................................................................................... 31 3.2. Guerra Civil: consolidação interna e projeção externa ............ 33 3.2.1. Coerção............................................................................................................... 34 3.2.2. Capital ................................................................................................................ 37 3.2.3. Legitimidade ...................................................................................................... 41 3.3. Segunda Guerra Mundial e ascensão da superpotência ............. 45 3.3.1. Coerção..................................................................................................................... 45 3.3.2. Capital ...................................................................................................................... 47 3.3.3. Legitimidade ............................................................................................................ 49 4. Guerra e Formação do Estado na África do Sul .............................. 51 4.1. Guerra Anglo-Bôer ....................................................................... 52 4.1.1. Coerção............................................................................................................... 52 4.1.2. Capital ................................................................................................................ 56 4.1.3. Legitimidade ...................................................................................................... 58 4.2. Guerras de Fronteira sul-africana e fim do Apartheid ............... 62 4.2.1. Coerção..................................................................................................................... 62 4.2.2. Capital ...................................................................................................................... 64 2.3. Legitimidade ............................................................................................................... 66 5. CONCLUSÃO ..................................................................................... 71 6. REFERÊNCIAS .................................................................................... 76 6 1. INTRODUÇÃO Após séculos de poder fragmentado durante o feudalismo europeu, iniciou-se um processo de centralização política e militar por parte dos reis a partir do século XV, fato que marcou o nascimento do Estado moderno. Entretanto, é importante salientar que nem todos foram bem sucedidos: a grande maioria das tentativas de criar um Estado falhou e das centenas de entidades autônomas existentes na Europa do século XV, apenas algumas dezenas sobreviveram até o início do século XXI. O triunfo nas guerras foi o elemento decisivo dos Estados que sobreviveram, já que a maioria das unidades que desapareceram no decorrer desse tempo foi absorvida pelos Estados que conseguiram construir forças militares eficientes. E esse é justamente o papel fundamental da guerra na construção dos Estados: a formação de uma força armada demanda um pesado fardo para a população (através de impostos, de recrutamento, entre outras formas), mas se torna a forma como o governo impõe seu desejo contra rígidas resistências. Além disso, uma força armada tende a promover consolidação territorial, centralização e o monopólio dos meios de coerção, atributos fundamentais para a construção de um Estado. Assim, a relação entre Estado e a guerra deixa evidente a afirmação de Tilly (1975, p. 42, tradução nossa) de que “A guerra fez o Estado e o Estado fez a guerra”. O caráter coercitivo também fica claro na clássica definição weberiana de Estado como “uma comunidade humana que pretende, com êxito, o monopólio legítimo da força física dentro de um determinado território” (WEBER, 1982, p. 98). Nesse contexto, entenderemos coerção como todos os meios que causem danos existenciais, sejam de modo real ou através de ameaças, com o objetivo de consolidar os interesses de uns apesar da resistência de outros. Assim, coerção é o meio fundamental do Estado de garantir a sua sobrevivência (através das guerras) ou arrecadar tributos da sua população. Da mesma forma, devemos entender capital como a totalidade de bens que atribuem riqueza ao seu proprietário, como, por exemplo, posse de imóveis, dinheiro ou ações financeiras. A teoria de Tilly (1996), assim, relaciona os aplicadores de coerção com os manipuladores de capital. As cidades, local onde se concentrou muito capital, recorriam aos detentores de coerção para garantir a proteção de seus negócios, enquanto os militares e estadistas recorriam ao capital gerado pelas cidades para manutenção e 7 ampliação da força armada. Dessa relação surgiram diferentes tipos de Estado, de acordo com a economia local. Em países com grande circulação de capital, o Estado podia extrair através de taxas sobre o comércio, mas sofria forte oposição ao seu controle direto sobre família e indivíduos, de forma que o Estado criou aparelhos centrais menores e mais fragmentados; por outro lado, em países pouco comercializados, a arrecadação através de taxas de comércio não gerava grandes retornos e o Estado extraía seus recursos de forma direta, como através do recrutamento, de forma que o Estado acabou criando pesadas máquinas fiscais e deu grandes poderes aos controladores de recursos imediatos, como os grandes proprietários de terras. Quando a guerra teve seus custos ampliados substancialmente1, a partir dos séculos XIV e XV, os governantes puderam contar com o capital proveniente das cidades e centralizar o poder, declarando criminoso o porte de armas para a maioria de seus cidadãos e banindo os exércitos particulares, tão comuns durante a maior parte da história europeia. A conquista do monopólio da força deu sentido à definição weberiana de Estado e evidencia o ciclo de coerção, capital e formação do Estado. Enquanto os impostos, a principal fonte de arrecadação dos Estados, financiavam os gastos militares, as forças armadas garantiam a defesa ou expansão das fronteiras e o controle interno. Durante essa época de centralização, as forças armadas também eram a maior fonte de despesa do Estado, incentivando um aumento dos impostos e uma reforma tributária (TILLY, 1975, p. 23-24); uma vez que como salienta Herbst (1990, p. 120-121), é durante as épocas de guerra que o Estado consegue aumentar os impostos com menor resistência da sua população – já que o conflito oferece grandes ameaças à segurança2 e esses impostos acabam por não retornar aos níveis ante bellum quando terminam as hostilidades (MANN, 1986, p. 433). A relação entre Estado e sociedade, porém, sofreu uma enorme alteração a partir da Revolução Francesa. Com o fim do intermédio da nobreza entre Estado e sociedade, o Estado ampliou suas capacidades e instituiu o governo direto através de um extenso serviço burocrático. Essa mudança representou também uma grande intervenção do Estado na vida das pessoas, e logo as legislaturas nacionais passaram a ser alvo de 1 Dentre as causas, cita-se o advento da pólvora e a valorização da infantaria, bem como o interesse de formar um exército permanente (WALLERSTEIN, 1988 p. 28). 2 Segundo Herbst, com exceção da guerra não há nenhum outro tipo de crise que exija um aumento de impostos com tanto vigor e que seja feito sem grande oposição. Além disso, como sugere o trabalho de Ames e Rapp, o sistema tributário costuma ser regido por uma grande inércia (AMES; RAPP, 1977, p. 177; HERBST, 1990, p. 129). 8 reivindicações por parte de grupos bem organizados que exigiam mais proteção, aplicação de justiça, produção e distribuição; ampliando para muito além da guerra as funções do Estado (TILLY, 1996, p. 172-181). E assim, haja vista a importância do suporte dos cidadãos para o bom funcionamento do Estado, entenderemos legitimidade como a aceitação da autoridade imposta. Durante os últimos quinhentos anos e através dos mecanismos de coerção e capital, os Estados nacionais europeus se consolidaram com base em fronteiras bem definidas e reconhecimento mútuo. E, por meio da colonização e da conquista, a Europa difundiu o sistema europeu de Estados por quase todo o globo, de forma que a grande maioria dos países em desenvolvimento do presente, que possui um passado colonial, herdou o aparelho colonial europeu, incluindo as fronteiras, e se tornou majoritariamente coercitivo, já que as potências deixaram pouco capital aos seus sucessores. Dessa forma, a lógica de coerção e capital, que fez o Estado prosperar na Europa, já deixa de funcionar plenamente quando os novos Estados recebem ajuda militar das grandes potências e, ao conseguirem empréstimos internacionais, deixam de precisar contar com a tributação e recrutamento. Além disso, os Estados gerados pelo colonialismo encontram grande resistência das sociedades e não conseguem extrair recursos da sua população de forma eficaz. Por meio de sua expansão para o resto do mundo, o Estado se consolidou como a principal unidade do sistema internacional. Diante desse cenário, Gilpin (1981) analisa como as unidades do sistema, os Estados, interagem entre si e como as guerras são fundamentais para determinar as relações de poder dentro do Sistema Internacional; sendo responsáveis tanto pela consolidação interna e fortalecimento estatal, quanto pelas modificações na polaridade mundial e determinação de quais serão os Estados a decretar as regras do sistema. Assim sendo, ao percebermos África do Sul e Estados Unidos como dois países com grandes semelhanças, por conterem um histórico de colonização onde a população de colonos era de origem protestante, com disputas raciais e escravidão, além de terem se tornado países atrativos para a imigração, o presente estudo busca entender como o papel da guerra contribuiu para que os Estados Unidos se tornassem a grande potência hegemônica da atualidade e a África do Sul permanecesse como uma potência regional com grandes constrangimentos internos. 9 A partir das análises de formação do Estado, deveremos analisar sua atuação dentro do sistema internacional e de que modo as guerras ampliaram ou reduziram seus mecanismos formativos. Supõe-se que a ausência de legitimidade interna atue como um empecilho ao ciclo de coerção e capital, reduzindo assim o desempenho das forças militares nas guerras e, consequentemente, promovendo um enfraquecimento das capacidades estatais. Os Estados Unidos, pela sua enorme capacidade militar, econômica, tecnológica e por terem se tornado uma superpotência do sistema internacional desde a Segunda Guerra Mundial, é um país cujas ações causam enormes impactos em todo o mundo. O estudo de um país dessa relevância não é inovador, mas compará-lo a outros casos de grandes semelhanças, como a África do Sul, contribui para um melhor entendimento das dinâmicas do sistema internacional e da relação entre Estado e sociedade. Além de se testar as teorias na prática, o estudo também dá ênfase para uma das mais importantes atividades da história humana: as guerras. Como forma de solucionar a sede por poder dos seres humanos, as guerras determinaram a história como o mecanismo decisivo para determinar dominadores e dominados. Trata-se de um estudo hipotético-dedutivo de procedimento históricocomparativo que adota a técnica de pesquisa bibliográfica. As teorias se fundamentam nos debates da sociologia histórica sobre a Construção do Estado e também nas teorias de mudanças sistêmicas para a análise de interação dos Estados no sistema internacional. De forma geral, serão utilizados dados qualitativos, mas dados quantitativos serão usados como forma de tentar medir capacidades estatais, como por exemplo, a população dos Estados, a porcentagem urbana da população, índices de produção econômica e Forças Armadas. Dessa forma, no primeiro capítulo buscaremos um aprofundamento na teoria sobre a formação do Estado, como ele extrai recursos da sua população, como ele se mantém e como ele interage dentro do sistema internacional. A análise teórica, que começa com a formação dos Estados europeus, é de fundamental importância para a compreensão dos conceitos de coerção e capital. Além disso, também buscaremos na teoria entender por que esses mecanismos não estão fortalecendo os Estados da África, Ásia e América Latina. 10 Assim, no segundo capítulo, avaliaremos o Estado norte-americano com base nas três variáveis: capital, coerção e legitimidade. Considerando as guerras como fatores decisivos, a história foi dividida em três períodos com base em momentos fundamentais: (1) a guerra de independência, onde os norte-americanos conquistaram sua independência política e fortalecimento relativo na região (potência regional); (2) a Guerra Civil, onde os Estados Unidos se consolidaram internamente, eliminaram as ameaças de secessão e projetaram-se inter-regionalmente (grande potência); (3) a Segunda Guerra Mundial, onde os Estados Unidos assumiram a hegemonia do sistema internacional e passaram a decretar suas ordens através do sistema ONU, do seu poderio militar e do domínio da economia global (superpotência). Em função do objetivo do trabalho, não avaliaremos as variáveis norte-americanas depois de se tornar uma superpotência. No terceiro capítulo, estudaremos o Estado sul-africano a partir das mesmas variáveis que o capítulo anterior e o dividimos em dois marcos históricos: (1) a guerra anglo-bôer, que determinou a unificação do território, o sistema político e fundou o fortalecimento relativo na região (potência regional); e (2) as guerras sul-africanas de fronteira, tentativa sul-africana de garantir a hegemonia da África austral, a sobrevivência do regime branco e projetar-se inter-regionalmente (grande potência). Em decorrência da incapacidade da África do Sul de alcançar a vitória sobre as tropas cubanas e angolanas, o regime iniciou o processo de transição política que terminaria com a eleição de Nelson Mandela à presidência do país em 1994. Assim, poderemos perceber que a África do Sul teve um desequilíbrio muito consistente entre coerção, capital e legitimidade; algo que prejudicou consideravelmente o desempenho do país na sua tentativa de garantir a hegemonia regional. Somado a isso as divisões étnicas da população sul-africana, muito mais do que nos Estados Unidos, contribuíram para que a guerra não se tornasse um elemento de fortalecimento do Estado e sim de enfraquecimento. Além disso, é importante notarmos que os Estados Unidos iniciaram sua industrialização muito mais cedo do que a África do Sul e no momento que houve as Guerras Mundiais, os Estados Unidos puderam se beneficiar muito mais economicamente do que os sul-africanos. Com isso, os Estados Unidos conseguiram ampliar suas capacidades no decorrer do tempo e, quando o momento favoreceu, tornou-se a superpotência e passou a decretar as leis do sistema internacional. 11 2. A CONSTRUÇÃO DOS ESTADOS EUROPEUS O modelo de Estado europeu disseminou-se ao longo da história e serviu como base das organizações formais que deram origem a grande parte dos Estados contemporâneos. Além de sua capacidade de articular coerção e capital, o fato de que a maior parte do planeta esteve sob domínio europeu até o século XX e de que, ao conquistarem a independência, os novos Estados do terceiro mundo herdaram o aparelho colonial a qual estavam submetidos (TILLY, 1996, p. 274), o que contribuiu para a propagação do modelo de Estado nacional sobre o globo. A partir da queda do Império Romano surgiram três tipos de Estado que divergiram consideravelmente em suas características: 1) os impérios, com grandes aparelhos militares e extrativos que se baseavam na cobrança de tributos, mas entregavam a administração aos detentores de poder regionais, os quais obtinham grande autonomia; 2) os sistemas de soberania fragmentada, como cidades-Estado e federações urbanas, que possuíam grande quantidade de capital, mas pouco território e população; e (3) o Estado nacional, que conseguiu unir, numa estrutura centralizada, a administração militar, extrativa e até distributiva e produtiva. O Estado nacional constitui-se assim como um conjunto de um vasto território, mas não tanto a ponto que não possa ser controlado; uma grande população rural, necessária para grandes exércitos, e uma economia capaz de sustentar as progressivas despesas que uma guerra exigia (TILLY, 1996, p. 112). Estas características contribuíram para o Estado nacional prevalecer perante os outros tipos de Estado, e não por ser o ponto final de uma trajetória evolutiva3. A longa sobrevivência e coexistência dos três tipos de Estado nega qualquer ideia de que a formação do Estado europeu constitui um processo isolado e unilinear, ou de que o Estado nacional – que na verdade acabou prevalecendo – é uma forma de governo inerentemente superior (TILLY, 1996, p. 69). Durante os últimos quinhentos anos, esses Estados nacionais europeus se consolidaram com base em fronteiras bem definidas e reconhecimento mútuo. Além disso, por meio da colonização e da conquista, a Europa difundiu o sistema europeu de Estados por quase todo o globo, incluindo África do Sul e Estados Unidos. Como aponta Tilly (1996, p. 260), “a criação primeiramente da Liga das Nações e, depois, das 3 Por volta de 1420, por exemplo, as cidades-Estado do norte da Itália conquistaram um extraordinário acúmulo de capital, com receitas das comparáveis aos dos mais bem sucedidos Estados da Europa ocidental (ARRIGHI, 2000, p. 39). 12 Nações Unidas apenas ratificou e racionalizou a organização de todos os povos da terra num único sistema de Estado”. Diante de tal cenário, uma profunda exploração dos processos de construção do Estado na Europa torna-se de grande ajuda para compreender os Estados que se originaram desse modelo. O presente capítulo, portanto, se divide em quatro partes: a primeira apresenta o referencial teórico sobre o processo de formação do Estado na Europa. A segunda parte ressalta que a incorporação do modelo de Estado europeu por parte dos Estados do terceiro mundo apresentou peculiaridades que os diferenciam da trajetória europeia e que a compreensão destas é essencial para evitar comparações equivocadas. A terceira parte busca observar a importância da legitimidade, tanto doméstica quanto internacional, para o fortalecimento do Estado. E por fim, a quarta seção apresenta a teoria sobre o Sistema Internacional, já que, uma vez estabelecida a sua unidade (os Estados), é de fundamental importância compreender de que maneira essas unidades se relacionam, e como elas se articulam a fim de promover alterações no mesmo. 2.1. A lógica da construção do Estado Uma análise simples da história europeia mostra que a grande maioria dos Estados acabou desaparecendo no decorrer do tempo. As centenas de Estados que existiam no século XVI transformaram-se em apenas algumas dezenas durante o século XXI; sendo que a grande maioria destes que deixaram de existir foram absorvidos por outros Estados mais poderosos através das guerras. Dito isto, se a continuidade do Estado era determinada pelo seu sucesso nas guerras, percebe-se que a sua própria existência era completamente dependente da sua força militar. O papel da guerra, assim, é tão importante para o processo de construção do Estado que Tilly (1975, p. 42, tradução nossa) afirma que “a guerra fez o Estado e o Estado fez a guerra” 4. Se a sobrevivência do Estado depende de uma eficiente máquina de guerra, capaz de garantir ao mesmo a sua sobrevivência e, eventualmente, expansão; a construção dessa força armada depende de dois recursos elementares: a coerção e o capital. 4 “War made the state, and the state made war”. 13 A história diz respeito ao capital e à coerção. Narra os recursos que os aplicadores de coerção, que desempenharam um papel importante na criação dos Estados nacionais, extraíram, para os seus propósitos, dos manipuladores de capital, cujas atividades geraram as cidades (TILLY, 1996, p. 63). Na Europa surgiram dois grandes grupos especialistas em coerção 5: os soldados e os grandes proprietários de terras (os nobres da era feudal). Esses grupos estabeleceram a dominação do continente através de meios violentos – seja por forças armadas, sejam por prisões, expropriações, humilhações e ameaças. Assim, segundo Tilly (1996, p. 67-69), a guerra induz à formação e transformação do Estado; uma vez que os aplicadores de coerção, ao conquistar determinado território, se envolvem na administração das terras, pessoas e dos bens da região conquistada, o que ocasionalmente cria interesses que são contrários à guerra. Além disso, em casos de conquistas de grandes dimensões, muitas vezes a infraestrutura e administração dos novos territórios exigem manutenções muito maiores do que a capacidade dos governantes, gerando novos grupos de poder com interesses próprios. A partir do declínio e consequente queda do Império Romano ocidental, a Europa passou por um período conturbado de grandes conquistas territoriais. Como consequência da ausência de infraestrutura, a administração dos territórios foi consideravelmente fragmentada na Alta Idade Média e os donos de terras concentraram o poder durante o auge do feudalismo6. Durante esse período, a população europeia era majoritariamente agrária7 e a nobreza, isenta de controle, de impostos e livre para controlar e cobrar taxas dos camponeses, muitas vezes fazia uso da máquina estatal em benefício próprio, principalmente quando reis e imperadores não desempenhavam bem a sua função. Entretanto, a partir de 1150 d.C., o aumento da produção agrícola, que até então ia pouco além da subsistência, permitiu um renascimento da urbanização e também o surgimento da classe mercantil europeia – que em contrapartida aos senhores de terras detentores de coerção, tornaram-se os detentores de capital. 5 Os meios coercitivos são uma combinação de recursos humanos e armas. Os Estados acabaram tendo certa vantagem para concentrar a coerção e impedir que outros grupos o façam, pois (1) a produção de armas exige conhecimento, materiais raros e capital abundante; (2) poucos grupos dispõem da capacidade de mobilizar grandes quantidades de soldados e; (3) poucas pessoas conhecem como combinar homens e armas no campo tático e estratégico (TILLY, 1996, p. 108). 6 Podemos entender como feudalismo o sistema de organização política onde todas as funções executivas da sociedade – econômica, judicial, administrativa e militar – eram exercidas pelos mesmos indivíduos. Comparado com o Estado moderno, o Estado feudal era fragmentado em diversas mãos que se relacionavam por obrigações feudais feitas pessoalmente (TILLY, 1975, p. 87). 7 A estrutura urbana sofreu um declínio gradual desde antes do início das invasões bárbaras (BRAUDEL, 1985, p. 510) 14 Em harmonia com os feudos, as cidades cresceram reproduzindo a hierarquia política e social vigente durante o feudalismo (BRAUDEL, 1985, p. 510; WALLERSTEIN, 1988, p. 18). Contudo, as vantagens oferecidas pelas cidades8 favoreceram o surgimento de mercadores, guildas, comércio de longas distâncias, indústrias e bancos. Ao gerarem acúmulo e concentração de capital, as principais cidades se tornaram determinantes para suas respectivas vizinhanças9 e quebraram os vínculos com a estrutura social rural, tornando-se forças organizacionais autônomas (BRAUDEL, 1985, p. 511; TILLY, 1996, p. 65). O aumento da urbanização alterou significativamente a relação entre governantes e governados, pois as técnicas de controle, estratégias fiscais, demandas de serviços e a política foram modificadas (TILLY, 1996, p. 101-115). O mercado que as grandes cidades ofereceram aos seus arredores rurais estimulou a agricultura comercial, fato que favoreceu os comerciantes e produtores, mas enfraqueceu significativamente os grandes senhores de terras10. Quanto maior esse impacto demográfico sobre o interior, bem como a extensão do acúmulo de capital, a sua influência e a sua população, maior era a autonomia das classes dirigentes da cidade e maior era a resistência à penetração dos Estados nacionais. Apesar disso, a relação entre cidades e os Estados europeus se tornou indispensável: os capitalistas das cidades recorreram aos detentores da coerção para garantir proteção às suas atividades comerciais, ainda que temessem desvios de recursos para financiar conflitos; por outro lado, o Estado e os militares dependiam do capital das cidades para sustentar a força armada, ainda que se preocupassem com a resistência que as cidades ofereceram ao domínio do Estado. Estabeleceu-se assim, até o século XIX, uma confusa relação de proteção em troca de capital (TILLY, 1996, p. 113). Os senhores feudais, que até então eram os detentores do poder, evidentemente, jamais apoiariam um fortalecimento do poder central se não se deparassem com alguns 8 Cidades reduziram custos de transações e permitiram especialização das atividades econômicas, facilitando o comércio, o armazenamento e os negócios bancários (TILLY, 1996, p. 65; WALLERSTEIN, 2011, p. XVI). 9 Nas vizinhanças de cidades ativas, o cultivo se tornou mais intenso, incentivando os produtores a destinarem uma maior parcela de suas safras para o mercado. Além disso, o crescimento urbano estimulou a melhoria dos meios de transporte, servindo assim de causa e efeito da urbanização. Por fim, houve diversos movimentos que pressionaram as pessoas a largarem os campos e migrarem para as cidades, transformando as regiões circunvizinhas em novos aglomerados urbanos. (TILLY, 1996, p. 66). 10 Há uma exceção quando a classe dirigente da cidade também possuía grandes posses de terras no interior, nesse caso os senhores ganharam força significativa, algo comum nas cidades-estado italianas. (TILLY, 1996, p. 101). 15 problemas econômicos11 que ocorreram no século XIV e XV e, principalmente, com o surgimento de inovações que alteraram o modo de fazer a guerra. O advento da pólvora e a valorização da infantaria12 aumentaram substancialmente os custos da guerra, bem como o interesse de formar um exército permanente. À medida que o sistema medieval entrava em crise, o novo sistema capitalista nascia nas cidades-Estado da Itália setentrional, como Florença e Veneza, promovendo uma extraordinária concentração de capital nas mãos dos capitalistas italianos. Arrighi (2000, p. 38) aponta como o equilíbrio de poder foi fundamental para a sobrevivência do enclave capitalista e se tornou, posteriormente, uma das bases do sistema de Estados na Europa. Além disso, fez surgir as representações diplomáticas permanentes, como forma de manipular o equilíbrio de poder e reduzir os custos de proteção. Os séculos XVI e XVII marcaram o triunfo do Estado nacional sobre as cidadesEstado e impérios na Europa. Enquanto Portugal e Espanha buscaram novas rotas para o lucrativo comércio entre Europa e Extremo Oriente13, o Império Otomano conquistava o Mediterrâneo oriental, de forma que ambos os acontecimentos acabaram com o monopólio das cidades italianas desse comércio. Além disso, disputas dinásticas entre França e Espanha tornaram a Itália palco das Guerras Italianas e reduziram as então prestigiosas cidades a meros prêmios muito cobiçados, incapazes de fazer frente à ameaça externa. Por fim, a tentativa imperialista da casa dos Habsburgos e do papado foi derrotada na Guerra dos Trinta Anos, emergindo o novo sistema mundial de governo com Estados soberanos, reconhecidos e com territórios mutuamente excludentes, sistema que vigora até a atualidade (ARRIGHI, 2000, p. 36-43; MCNEILL, 1982, p. 6391). Assim, as fronteiras geográficas fixas do Estado moderno se sobressaíram perante as estruturas territoriais dos Impérios e das cidades-Estado, marcadas pela ambição universalista e trocas de mercado, respectivamente. Como aponta Spruyt (2007, p. 212), 11 Houve um declínio acentuado da população e uma alta nos preços na Europa do século XIV que foi causado pelas guerras (como a Guerra dos cem anos), fome e epidemias (como o grande surto da peste negra de 1348) (WALLERSTEIN, 1988). 12 A guerra medieval era muito baseada nos cavaleiros, mas depois uma infantaria disciplinada se tornou o cerne dos exércitos (WALLERSTEIN, 1988 p. 28). 13 Esse também foi o início da expansão europeia pelo mundo. Além disso, As reformas militares criadas por Maurício de Nassau durante a guerra dos Oitenta Anos, inspiradas nas antigas legiões romanas, provaram ser imensamente superiores às demais práticas militares europeias. Como não permaneceram em sigilo, as técnicas de treinamento militar de Nassau rapidamente se espalharam pela Europa, fazendo com que as forças militares europeias, mesmo em menor número, demonstrassem uma grande superioridade quando confrontavam com outros povos. Como resultado disso; as grandes companhias comerciais europeias na Índia e na Indonésia passaram a controlar e governar os territórios (MCNEILL, 1982, p.126-135) 16 essa característica de fronteiras bem definidas precedeu outras características do Estado moderno, como administração racional, capacidade fiscal e lealdade nacional. Wallerstein (1988, p. 29-32) destaca ainda que foram dentro dessas fronteiras que futuramente seriam construídos os sentimentos nacionalistas. A partir do século XVII, os Estados europeus passaram a monopolizar e controlar a coerção14. Governantes contaram com o capital gerado pelas cidades enquanto centralizaram o poder, declarando criminoso o porte de armas para a maioria de seus cidadãos e banindo os exércitos particulares, tão comuns durante a maior parte da história europeia. Tilly (1996, p. 125 e 126) salienta que os Estados conquistaram o monopólio da coerção de formas diferentes, sendo através da cooptação ou da guerra civil em regiões dominadas pelos grandes proprietários de terras ou através de negociações com autoridades municipais e policiamento dentro das regiões urbanas, por exemplo. A conquista do monopólio da força15 deu sentido à clássica definição weberiana de Estado como “a comunidade humana que pretende, com êxito, o monopólio do uso legítimo da força física dentro de um determinado território” (WEBER, 1982, p. 98); e tornou relevante e distinta a política “interna” e “externa”, que até então se confundiam16. Além disso, como aponta Wallerstein (1988, p. 136), os reis, na época os gestores da máquina estatal, se utilizaram do capital proveniente das cidades para aumentar a centralização do poder e controle interno através de outros três elementos: burocratização, criação de legitimidade e homogeneização da população. Quando a acumulação e a concentração dos meios coercivos se desenvolvem juntos, produzem Estados; produzem organizações distintas que controlam os principais meios concentrados de coerção dentro de territórios bem definidos, 14 Spruyt (2007, p. 212) alega que a monopolização da violência só pode acontecer se os governos são ao menos parcialmente legítimos; além disso, está relacionada com a habilidade do governo central em estabelecer uma administração eficiente com capacidade de arrecadar impostos (SPRUYT, 2007, p. 212). Wallerstein (1988, p. 29-32) salienta o papel dos impostos no fortalecimento do Estado por ser uma fonte de renda sem efeitos negativos a longo termo, além de reduzir a receita dos nobres e criar a necessidade de fronteiras bem definidas. 15 Na maior parte da história europeia era normal que homens comuns possuíssem armas letais; além disso, também era habitual que detentores de poder local ou regional controlassem meios concentrados de força que muitas vezes poderiam igualar ou até mesmo sobrepujar as forças do Rei. (TILLY, 1996, p. 125). 16 Durante a Idade Média era impossível distinguir atores exercendo política internacional e doméstica. Uma complexa rede de bispados, nobres, reis, imperadores e cidades exerciam simultaneamente a reivindicação da jurisdição de um mesmo território, de forma que ocupantes de um espaço em particular eram subordinados a diversas autoridades. Como todos esses atores assinavam tratados e engajavam em conflitos independentemente, nenhum possuía o monopólio da força. É válido ressaltar que durante esse sistema, a Teoria Neorealista de anarquia internacional fica prejudicada pela ausência de unidades distintas com esferas mutuamente exclusivas de jurisdição (SPRUYT, 1994, p. 12,13). 17 e em alguns aspectos exercem prioridade sobre todas as outras organizações que operam dentro desses territórios (TILLY, 1996, p. 68). O desenvolvimento de um Estado centralizado motiva o cultivo do sentimento nacionalista. Para Wallerstein (1988, p. 146), inicialmente seria possível dizer que os Estados eram contrários ao nacionalismo, já que suas fronteiras incluíam povos de diferentes nacionalidades, e, que, apenas nos séculos XVIII e XIX, o nacionalismo encontrou seus verdadeiros defensores dentro da burguesia17. A partir de então, como aponta Arednt (2013, p. 191), o nacionalismo se tornou um precioso aglutinante que uniu o Estado centralizado com uma sociedade atomizada ao transformar o Estado em instrumento da nação e o cidadão se identificando como seu membro. As vantagens obtidas pelo rei no final da idade média com a sua centralização, burocratização e disponibilidade de capital permitiram que o Estado pudesse aumentar os impostos18 e contrair empréstimos. Em regiões com grande acúmulo e concentração de capital, os Estados usaram essas receitas cada vez maiores para aumentar seu poder coercitivo. Segundo Wallerstein (1988, p. 138), isso possibilitou a existência de dívidas nacionais, ou seja, déficit nos orçamentos do Estado – algo inexistente até então, já que para isso o Estado deve possuir a capacidade de realizar atrasos no pagamento – forçando os indivíduos a esperar - ou mesmo se recusar a pagar, enquanto obriga grupos a emprestar os excessos de circulantes. Esse processo de monopolização da força e fortalecimento do Estado evidencia o ciclo de coerção, capital e formação do Estado. Enquanto os impostos, a principal fonte de arrecadação dos Estados, financiavam os gastos militares, as forças armadas garantiam a defesa ou expansão das fronteiras e o controle interno. Durante essa época de centralização, as forças armadas também eram a maior fonte de despesa do Estado, incentivando um aumento dos impostos e uma reforma tributária (TILLY, 1975, p. 2324). Além disso, como salienta Herbst (1990, p. 120-121), durante as épocas de guerra é quando o Estado consegue aumentar os impostos com menor resistência da sua população – já que o conflito oferece grandes ameaças à segurança19 - e esses impostos 17 Apesar disso, o sólido interesse da burguesia holandesa em conquistar a sua independência dos Habsburgos espanhóis, criou um sentimento que Arrighi (2000, p. 45) chama de protonacionalismo. 18 “Impostos se compõe de cinco categorias amplas: tributos, rendas, impostos sobre a circulação, taxas sobre os estoques e impostos sobre a renda”. (TILLY, 1996, p. 147) 19 Segundo Herbst, com exceção da guerra, não há nenhum outro tipo de crise que exija um aumento de impostos com tanto vigor e que seja feito sem grande oposição. Além disso, como sugere o trabalho de Ames e Rapp, o sistema tributário costuma ser regido por uma grande inércia (AMES; RAPP, 1977, p. 177; HERBST, 1990, p. 129). 18 acabam por não retornar aos níveis ante bellum quando terminam as hostilidades (MANN, 1986, p. 433), possibilitando assim uma ampliação da arrecadação estatal. Assim, a partir da interação entre coerção e capital é possível analisar os diferentes tipos de Estados que se formaram. Em regiões com intensa aplicação de coerção e pouca circulação de capital, os governantes extraíam recursos para a guerra através da requisição direta e do recrutamento, uma vez que os impostos sobre o comércio geravam poucos retornos, situação que deu origem a pesadas máquinas fiscais e uma maior concentração de poder a quem controlava os recursos essenciais, geralmente os grandes proprietários de terras. Por outro lado, em economias com grande circulação de capital, a presença dos capitalistas e de organizações municipais, ao mesmo tempo em que reduziu drasticamente o controle do Estado sobre os indivíduos, possibilitou uma maior arrecadação através de impostos aplicados sobre as atividades comerciais (TILLY, 1996, p. 161). Diante disso percebe-se que a guerra representou um papel fundamental no processo de construção do Estado. Ao promover a guerra para neutralizar seus rivais externos, tornou-se necessário a obtenção de capital financeiro e humano, o que fez com que o Estado fizesse uso do seu poder de coerção para extrair tais recursos de sua população. É necessário ressaltar, contudo, que essa extração não se deu sem a resistência popular, o que forçou o Estado a promover concessões, como a garantia de direitos e a criação de instituições (TILLY, 1985, p. 181-183). Assim, as guerras, na construção do Estado, atuaram como um vínculo entre a sociedade e o mesmo, contribuindo tanto para o fortalecimento da capacidade estatal, quanto para a sua consolidação como unidade central do Sistema Internacional. 2.2. Expansão do Estado europeu para o resto do mundo O processo de formação dos Estados nos países em desenvolvimento apresenta suas peculiaridades quando comparado à trajetória europeia. A grande maioria dos países em desenvolvimento herdou o aparelho colonial europeu, incluindo as fronteiras, sendo este, contudo, majoritariamente coercitivo, uma vez que as potências coloniais deixaram pouco capital aos seus sucessores e o desenvolvimento do mesmo se deu em função de promover o controle da colônia. Sendo assim, nos países em desenvolvimento, segundo Tilly (1996, p. 283), as mesmas forças armadas que antes 19 eram utilizadas para manter a administração local, acabaram se especializando muito mais no controle das populações civis e nos combates aos insurgentes do que às guerras entre Estados20. Os principais detentores do poder se opuseram à transformação da organização governamental existente ou distorceram-na, os funcionários públicos usaram o poder do Estado para satisfazer os seus próprios objetivos, os partidos políticos se tornaram veículos dos blocos étnicos ou dos vínculos patrão-cliente, as empresas dirigidas pelo Estado entraram em colapso, os líderes carismáticos eliminaram a política eleitoral de estilo ocidental, e muitas outras características dos Estados do Terceiro Mundo contestaram os modelos ocidentais (TILLY, 1996, p. 275). Desde o início das independências de países africanos, os líderes reconheceram um alto potencial de grupos separatistas, que buscam a independência ou desejam se juntar a outro país. Em detrimento disto, propuseram, na Organização da África Unida em 1963, que qualquer alteração nas fronteiras coloniais seria ilegítima. Esse sistema, juntamente com o sistema ONU, se tornou tão eficiente que evitou as guerras de conquista, tão comuns na Europa do passado, de forma que poucos Estados em desenvolvimento sintam qualquer ameaça externa (HERBST, 1990, p. 124). Em contraste com a experiência europeia, a ausência de conflitos externos dificulta consideravelmente a reforma no sistema tributário, já que, além da guerra, é muito difícil ter outro motivo que faça o cidadão aceitar um aumento de impostos. Herbst (1990, p. 130) salienta ainda que guerras civis não conseguem ampliar a extração, já que o crescimento do Estado moderno não é explicado pelo ambiente doméstico e sim em relações geopolíticas de violência. A guerra na Europa desempenhou um papel importante na evolução do mecanismo do Estado e na relação entre sociedade e Estado porque é de uma dificuldade extraordinária, fora de tempos de crise, reformar partes elementares do sistema governamental, como os meios de tributação ou uma verdadeira mudança na identidade nacional (HERBST, 1990, p. 128, 21 tradução nossa) . Além disso, a garantia jurídica da soberania estatal, propiciada pela ampliação do Direito Internacional, pôs fim ao temor de ser conquistado e desaparecer do mapa, algo vivenciado pela maioria dos Estados europeus. Tal fato, somado aos problemas 20 Uma característica das forças armadas coloniais era um padrão de recrutamento instituído pelas potências, de forma que recorriam a um determinado grupo étnico, linguístico ou religioso para compor as fileiras do exército colonial. Algo que se tornou o instrumento de grandes rivalidades étnicas (TILLY, 1996, p. 283). 21 “War in Europe played such an important role in the evolution of the state mechanism and society's relationship with the state because it is extraordinarily difficult, outside times of crisis, to reform elemental parts of the governmental system, such as the means of taxation, or to effect areal change in national identity”. 20 internos relacionados à identidade e ausência de nacionalismo, fez com que as forças armadas muitas vezes deixassem de se preocupar com a defesa para controlar a infiltração, concentrando-se cada vez mais na repressão às populações civis e no combate aos insurgentes. Em países da Ásia e África, que conquistaram a independência após 1945, iniciaram-se diversas guerras civis em detrimento de reivindicações de autonomia ou controle do Estado por grupos marginalizados. O cenário da Guerra Fria incentivou as grandes potências a intervirem consideravelmente mais nos conflitos, apoiando facções simpáticas em troca de cooperação (TILLY, 1996, p. 286). Entretanto, o mecanismo de coerção e capital é questionado como solução para o fortalecimento do Estado nos países em desenvolvimento. Uma análise sobre o papel da guerra para arrecadação de capital, fortalecimento das forças armadas e construção do Estado em uma comparação entre Vietnã e Afeganistão nas guerras contra as grandes potências da guerra fria (Estados Unidos e URSS, respectivamente), demonstra que dois fatores chave contribuíram para o fortalecimento do Estado no Vietnã e que são ausentes no Afeganistão: um núcleo étnico (o mais importante) e a combinação de guerra e revolução, fator que auxilia na unificação de uma ideologia nacional. Segundo Taylor e Botea (2008), a guerra nos países em desenvolvimento sem esses elementos leva os Estados ao enfraquecimento. O mecanismo de coerção e capital que fez o Estado prosperar na Europa não se torna mais tão eficiente quando aplicado aos novos Estados. Ao receberem ajuda militar das grandes potências e deixarem de precisar da tributação e do recrutamento para o estabelecimento de suas forças armadas; o vínculo entre sociedade e Estado se enfraquece. Em seu estudo sobre a construção do Estado na América Latina, Centeno (1997) mostra como a presença dos conflitos não criou Estados capacitados. As fontes alternativas de capital, como empréstimos internacionais, substituíram os impostos e os países da região deixaram de ampliar sua extração dos recursos domésticos. Além disso, no momento em que ocorreram os conflitos (a maioria no pós-independência), os Estados latino americanos ainda não estavam preparados estruturalmente, politicamente e ideologicamente para colherem as oportunidades da guerra. Não obstante, Centeno (1997, p. 1578) apresenta como as dívidas feitas pelas guerras na América Latina foram financiadas através das exportações de royalties, sem que houvesse um aumento da extração dos Estados latino-americanos por meio de impostos domésticos. A destruição da economia e o início da dívida dos países tornou a ascensão de uma burguesia 21 nacional muito mais difícil e os Estados da América Latina nunca conseguiram impor uma união interna, essencial para o processo de extração, mesmo com a ameaça externa existente (CENTENO, 1997, p. 1583). Os casos da América Latina sugerem que existem três pré-requisitos cruciais para o desenvolvimento institucional auxiliado pela guerra. Em primeiro lugar, os Estados relevantes devem ser forçados a se voltarem para dentro, de forma a enfrentar os desafios financeiros da guerra. Em segundo lugar, devem existir mecanismos administrativos adequados para gerenciar a explosão tanto em receitas quanto despesas. Em terceiro lugar, o Estado central já deve ter estabelecido a sua soberania sobre o território e deve ser apoiado por atores locais de forma a tornar a extração doméstica rentável 22 (CENTENO, 1997, p. 1569, tradução nossa) . Desse modo, Centeno (2002, p. 106) destaca a importância da resistência social frente à penetração do Estado. Nesses casos, a combinação de coerção e capital, representada pelo recrutamento militar e impostos, não funciona apenas porque existe um aparelho burocrático; a capacidade do Estado de extrair recursos está diretamente relacionada à vontade da população em aceitar essas imposições. Assim, a capacidade estatal não é uma questão apenas de força, mas também o potencial das sociedades de resistirem ou apoiarem a invasão do Estado. 2.3. Legitimidade Dentro das ciências sociais e políticas o conceito de legitimidade é um dos mais confusos e de difícil definição (HARDIN, 2007, p. 238). Todavia, a importância da análise de legitimidade é atribuir uma ênfase nas relações entre Estado e sociedade e entender como esta contribui para a formação da política do Estado. Assim, como aponta Seabrook (2002, p. 3, tradução nossa), analisar a “legitimidade nos permite visualizar as ações do Estado como sendo mais do que respostas funcionais às restrições impostas pelo anárquico sistema internacional” 23. Porém, antes de analisarmos essa relação entre governantes e governados, é fundamental diferenciarmos o respeito, o consentimento e a legitimidade. O monopólio 22 The Latin American cases suggest that there are three critical prerequisites for institutional development aided by war. First, the relevant states must be forced to turn inward in order to meet the financial challenges of war. Second, adequate administrative mechanisms must be in place to manage the explosion in both revenues and expenditures. Third, the central state must have already established sovereignty over its territory and must be supported by enough local actors as to make domestic extraction profitable. 23 “Legitimacy allows us to view state action as more than a functional response to constraints imposed by an international anarchical system”. 22 da força, de fato, impõe respeito e consentimento através da coerção. Segundo Hardin (2007, p. 236-237), em geral, a relação entre cidadãos e seus governos se baseiam principalmente na aquiescência. Todavia, a legitimidade é algo praticamente pessoal e emocional – “uma noção moral que não pode ser reduzida para um interesse próprio racional” (BUCHANAN; KEOHANE, 2006, p. 409, tradução nossa). Em tempos de guerra, porém, o objetivo das pessoas e dos governos costuma ser o mesmo, que é o de vencer e sobreviver à guerra; nesse caso é plausível que um governo seja legítimo a quase todos dentro do país. Por outro lado, em termos de revoltas populares, até a aquiescência fica em questão, mas é extremamente difícil para uma população se organizar contra seu próprio governo, principalmente se ele funciona razoavelmente bem e ainda consegue manter a ordem – nesse sentido, como apontam Buchanan e Keohane (2006, p. 410), é importante que a autoridade imposta, para manter-se estável, seja fundamentada em elementos além do medo da coerção; a África do Sul e o Apartheid, nesse sentido, falharam miseravelmente. Assim, tendo em vista a dificuldade de trabalhar com algo tão abstrato como o sentimento individual, ainda que fundamentais para a estrutura de domínio (WEBER, 1982, p. 99), adotaremos duas abordagens distintas da legitimidade: no âmbito doméstico e dentro do sistema internacional. Internamente, consideraremos a legitimidade como sendo a relação entre Estado e a sua população, algo diretamente relacionado com autoridade e dominação (TILLY, 1985, p. 171) – trata-se de uma interpretação neo-weberiana de legitimidade que se preocupa em como o governo funciona e se mantém. Dessa forma, a força relativa do Estado perante a sociedade e a sua capacidade de alterar a distribuição de recursos, atividades e conexões interpessoais é definida como Capacidade Estatal. Esse conceito nos permite vincular poder nacional com democracia, já que uma reduzida capacidade estatal representa uma fraqueza do Estado, ao passo que uma capacidade muito alta representa uma excessiva autonomia do Estado (CASTELLANO, 2012, p. 2-3; TILLY, 2007, p. 16). Historicamente, o Estado nacional sofreu uma grande ampliação de suas capacidades durante a Revolução Francesa. Se até então os Estados funcionavam de forma indireta, com os reis negociando com os grandes proprietários de terras, os revolucionários parisienses se viram diante da ausência desses intermediários. O mapa da França foi, então, reformado em um sistema cheio de departamentos, distritos, cantões e comunas, enquanto que emissários do governo revolucionário eram enviados 23 por todo o território; criaram assim o sistema de governo direto. O governo direto estabeleceu uma gigantesca expansão do Estado e uma invasão sem igual na vida das pessoas – através da formação de uma imensa rede de funcionários organizados para o funcionamento do seu serviço burocrático e de imensos exércitos de cidadãos, como o das Guerras Napoleônicas. Logo, as legislaturas nacionais passaram a ser alvo de reivindicações por parte de grupos bem organizados que exigiam mais proteção, aplicação de justiça, produção e distribuição, ampliando para muito além da guerra as funções do Estado (TILLY, 1996, p. 172-181). Dentro do sistema internacional, porém, o conceito de legitimidade se torna de mais fácil compreensão. Nesse contexto, legitimidade implica que as estruturas da ordem internacional são aceitas por todas as grandes potências (ou que pelo menos nenhuma seja tão contrária). Assim, como aponta Kissinger (1957, p. 1-2 apud GILPIN, 1981, p. 12, tradução nossa), “uma ordem legítima não torna os conflitos impossíveis, mas limitam seu escopo” 24. O Estado ou coalizão de Estados que criam as estruturas, segundo Gilpin (1981, p. 34), serão aceitos como legítimos devido a três fatores: (1) o “direito de governar” o sistema foi conquistado através de uma guerra e o Estado dominante demonstrou capacidade o bastante para fazer cumprir sua vontade sobre outros; (2) a regra da potência dominante oferece vantagens, como benefícios econômicos e securitização internacional; e (3) a posição da potência hegemônica costuma ser apoiada por valores comuns a vários outros Estados, como ideologias e religião. 2.4. Sistema Internacional A definição de sistema feita por Mundell e Swoboda (1969, p. 343 apud GILPIN, 1981, p. 26) é de uma agregação de diversas entidades unidas por interações regulares de acordo com a forma de controle. No sistema internacional25, as principais entidades são os Estados (outros atores também podem influenciar), que interagem por meio das relações políticas, econômicas, militares, entre outras. 24 “A legitimate order does not make conflicts impossible, but it limits their scope”. Sistema Internacional é um termo bastante amplo. Como aponta Gilpin (1981, p. 26), até a era moderna não existia um único sistema internacional, mas sim vários sistemas com pouco ou nenhum contato entre eles. Para esse trabalho, portanto, usaremos sistema internacional como o sistema de dimensão global da atualidade e sistemas regionais; como, por exemplo, a África austral. 25 24 Assim como em qualquer outro sistema social ou político, o sistema internacional é estabelecido por atores que criam estruturas com a finalidade de alcançarem seus objetivos; contudo, como os interesses entre diferentes atores muitas vezes são conflitantes, os interesses mais favorecidos pela ordem refletem o poder26 relativo das partes envolvidas. Todavia, através do tempo e de acordo com o progresso econômico, tecnológico, militar, entre outros, os interesses dos atores e a balança de poder entre eles mudam; de forma que aqueles que seriam beneficiados por tal mudança e quem têm o poder necessário vão buscar alterar o sistema de acordo com os seus interesses. O resultado disso, como aponta Gilpin (1981, p. 9), é que o sistema resultante irá refletir uma nova configuração de poder e os interesses de seus membros dominantes. Isso nos leva a outra característica fundamental do sistema internacional: o controle. Muitos teóricos entendem que a essência das relações internacionais é a sua ausência de controle, ou a anarquia entre os Estados; todavia, assim como aponta Gilpin (1981, p. 27-34), apesar dessa anarquia, o sistema exerce um elemento de controle 27 relativo sobre o comportamento dos Estados28 que se baseia em três fatores: (1) na distribuição de poder, a capacidade militar de um Estado de impor a sua vontade sobre outro; (2) o prestígio, algo diretamente relacionado ao poder, mas distinto: o prestígio é a probabilidade da vontade do Estado ser obedecida, sem a necessidade de um conflito (algo que podemos chamar como reputação de força); e (3) poder econômico. Assim, quando ocorrem transformações que alteram esses fatores e a distribuição de poder, de modo que outras potências podem desafiar a hegemônica, criase uma incongruência no sistema. Nesse caso, o sistema ainda favorece a potência hegemônica, mas a base da sua governança desmorona – criam-se, então, desafios para as potências dominantes e oportunidades para as potências em ascensão. Como no processo de formação dos Estados, o principal mecanismo de mudança no sistema é a guerra. Nesse sentido, o que Gilpin (1981, p. 15) chama de “guerra hegemônica” são as guerras que determinam os Estados dominantes e que irão governar o sistema, bem como quais serão os interesses que serão favorecidos dentro do sistema. 26 Assim como Gilpin (1981, p. 13), entendemos poder como a capacidade militar, econômica e tecnológica dos Estados. 27 Existem três tipos de estrutura que caracterizam o controle do sistema: hegemônico, bipolar e balança de poder(GILPIN, 1981, p. 29) 28 Importante destacar que, em toda a história, nunca um Estado conseguiu controlar todo o sistema internacional, embora tentem controlar (GILPIN, 1981, p. 28). 25 Sendo compreendidas como um fator de transformação das estruturas do sistema internacional e de alteração da ordem estabelecida no mesmo, as guerras foram fundamentais, tanto para o processo de formação dos Estados quanto para a determinação da governança do sistema. Sendo assim, da mesma forma que as guerras foram capazes de promover a alteração das unidades do sistema, concedendo este papel ao Estado nacional e caracterizando o que Gilpin afirma ser uma mudança do sistema (sistems change), elas são capazes de modificar a polaridade do sistema e reorganizar sua hierarquia, o que é tido por Gilpin como uma mudança sistêmica (sistemic change). A Segunda Guerra Mundial caracterizou-se, assim, como a última guerra hegemônica até então, decretando a ascensão dos Estados Unidos como superpotência e estabelecendo a ordem norte-americana para o sistema internacional atual. Este capítulo buscou fundamentar as análises teóricas dos casos escolhidos a partir de dois diferentes níveis de análise: da formação do Estado e da sua interação dentro do sistema. Podemos perceber que o modelo de Estado europeu, fruto da articulação entre coerção e capital, se propagou pelo globo e se estabeleceu como a principal unidade do Sistema Internacional. Além disso, é importante destacar que todas essas interações, capazes de consolidar o Estado e ampliar suas capacidades dentro do sistema, foram concretizadas a partir das guerras. A partir disso, analisaremos os Estados de África do Sul e dos Estados Unidos a fim de identificarmos elementos que contribuíram ou enfraqueceram a capacidade estatal e a sua consequente atuação no sistema. 26 3. Guerra e Formação do Estado nos EUA Desde os primórdios dos Estados Unidos (EUA) existe a crença no “excepcionalismo norte-americano”, um elemento que transformaria o país em algo diferente dos demais. Ainda que esse tipo de crença seja comum a todos os povos, nos Estados Unidos isso ocorreu na sua trajetória da formação do Estado quando comparado aos países europeus: a imigração quebrou as rígidas estruturas hierárquicas do sistema feudal e criou uma nação que desde cedo se apoiou em bases republicanas e de homens livres. A participação política de todos os homens brancos foi tão sólida que inverteu o processo de modernização política ocorrido na Europa ocidental (BENSEL, 2003, p. 45; HUNTINGTON, 1973, p. 93) e retardou consideravelmente o processo de centralização da autoridade, de forma que até isso ocorrer, durante a Guerra Civil (1861-1865), essa anomalia foi estudada por muitos contemporâneos europeus. Tocqueville (2005, p.69) considerava o país uma união de pequenas nações soberanas; Hegel (1991, p. 103) negava a existência do Estado, colocando-o como o país do futuro; enquanto que Marx e Engels (2002, p. 74), na contramão, consideravam os Estados Unidos como o mais perfeito exemplo de Estado moderno. Entretanto, a partir da Guerra Civil e da modernização da sociedade decorrente da urbanização e da industrialização, o Estado norte-americano tornou-se centralizado como os demais e dispondo de grandes capacidades, demonstradas ao mundo a partir da guerra hispanoamericana. A Primeira e a Segunda Guerra Mundial ampliaram ainda mais as capacidades norte-americanas, fazendo com que os Estados Unidos se tornassem a superpotência do cenário internacional e decretassem a sua ordem através da legitimidade da ONU, do poder das armas atômicas e economicamente pelos acordos de Bretton Woods (ARRIGHI, 2000, p. 283). Desse modo, o presente capítulo é dividido em três partes: a primeira, que analisa o Estado norte-americano a partir das guerras de independência; a segunda, que busca analisar a ascensão dos Estados Unidos a grande potência; e a terceira, que percebe o país como a superpotência mais capaz do mundo. 3.1. Conquista da independência Durante todo o período colonial, os colonos puderam se desenvolver economicamente, politicamente e até militarmente de forma independente; a Guerra dos 27 Sete Anos (1756-1763)29, porém, alterou esse cenário. Se por um lado os britânicos venceram o conflito, eliminaram a influência francesa e espanhola com os nativos e fixaram fronteiras coloniais30; por outro lado, para os americanos não existia mais uma ameaça externa para a sua colônia e o envio de tropas britânicas para a América em tempos de paz foi vista como uma opressão31. Além disso, a vitória britânica proporcionou a possibilidade de desenvolver um império global e passou a cobrar das colônias americanas uma parte justa de sua manutenção através de forças armadas permanentes fixadas na América. Os impostos que os britânicos introduziram sobre os americanos ainda eram muito baixos, de forma que o impacto era muito pequeno, mas eles nunca conquistaram a posição onde o Estado pode institucionalizar a extração (MANN, 1993, p. 143-144). 3.1.1. Coerção Em um período de constante ameaça e pouca segurança, as colônias norteamericanas criaram o sistema de defesa armada baseada em milícias de valorosos cidadãos-soldados, de modo que todo homem branco saudável deveria portar uma arma. Esse sistema de defesa foi muito eficiente ao garantir a segurança colonial contra pequenos grupos de nativo-americanos e revoltas de escravos, mas tinha pouca experiência em combates de grande escala. E apesar de poucas vitórias das milícias na Guerra dos Sete Anos, os colonos eram muito orgulhosos do seu sistema de defesa (MARTIN; LENDER, 2015, p. 15-16). Esse sistema de milícias de cidadãos foi o que os colonos usaram para conquistar sua independência, acreditando que a virtude pública, patriotismo e o sonho pela liberdade contrabalanceariam o treinamento e a experiência dos soldados profissionais ingleses. De forma a organizar e juntar as 29 As primeiras explorações francesas na América do norte e a fundação de Quebec (1608) foram vistas como um sinal de alarme para os colonos anglo-americanos. No decorrer dos séculos XVII e XVIII, várias escaramuças foram travadas entre assentamentos franceses e colônias britânicas, contando também com a presença de aliados nativo-americanos em ambos os lados (BOYER, 2012, p. 13-14). 30 O rei inglês reservou, em 1763, todos os territórios a leste dos Montes Allegheny, da Florida, do rio Mississipi e do Quebec para os nativo-americanos, fato que foi visto pelos americanos como um grande desrespeito do seu direito fundamental de ocupar e colonizar essas terras. 31 A Inglaterra não enviou as tropas reais para a América a fim de coagir os colonos que resistissem às políticas imperiais e sim como uma maneira mais barata de evitar futuros conflitos contra os índios ou um ressurgimento francês. Dessa forma, os líderes britânicos não estavam planejando acabar com as já existentes liberdades políticas da colônia, mas sim preocupados em alcançar eficiência na administração e economia do vasto império conquistado após a Guerra dos Sete Anos (MARTIN; LENDER, 2015, p. 15) 28 milícias de todos os estados em uma única força foi criado o Exército Continental, sob a liderança de George Washington. (MARTIN; LENDER, 2015, p. 31-39). Contada pelos vencedores, a guerra pela independência dos Estados Unidos destaca erros britânicos e a motivação dos cidadãos americanos pela liberdade. Entretanto, como destaca Mann (1993, p. 149), o revisionismo recente percebe que o governo britânico temia que a rebelião se espalhasse para a Irlanda, de onde a França poderia ameaçar a própria Grã-Bretanha (e por causa disso, mais tropas foram disponibilizadas para lidar com uma eventual ameaça irlandesa do que para os generais na América). Além disso, a entrada de França e Espanha no conflito foi decisiva, de forma que o conflito poderia ter se arrastado por muito mais tempo sem a participação desses países. De fato, os últimos anos de guerra mostraram uma situação ameaçadora para o império britânico: retrocessos na Índia; uma invasão espanhola na possessão inglesa de Pensacola na Flórida Ocidental; forças franco-espanholas se preparavam para atacar Gibraltar e ataques das marinhas francesa e espanhola tanto na América como no Canal da Mancha colocavam os britânicos em uma posição complicada. Os custos da guerra após sete anos de conflito e a ameaça da perda de muito mais do que treze colônias acabaram levando os ingleses a aceitarem a independência americana em 1783 (MARTIN; LENDER, 2015, p. 187-188). Pouco tempo após a independência norte-americana ser reconhecida pelos britânicos, já na virada do século XIX as relações entre Reino Unido e Estados Unidos eram razoavelmente amigáveis, de forma que os Estados Unidos eram dependentes das importações de produtos manufaturados britânicos. Entretanto, o início das Guerras Napoleônicas (1803-1815) veio a deteriorar drasticamente a relação entre norteamericanos e britânicos mais uma vez, de forma que ambos entrariam em guerra novamente, no que ficou conhecido por muitos analistas como a Segunda Guerra de Independência americana (BICKHAM, 2012, p. 18). Apesar dos britânicos terem conquistado uma vitória militar indiscutível na guerra de 1812, com avanços terrestres; destruição da marinha norte-americana; controle de toda a costa atlântica e a destruição da capital norte-americana, Washington; a guerra terminou com a assinatura do Tratado de Ghent, estabelecendo o status quo ante bellum. Segundo Bickham (2012, p. 262-279), o Tratado de Ghent fez com que os Estados Unidos fossem respeitados como uma nação soberana e os europeus não se envolveram em posteriores conflitos na América do Norte (como as guerras entre norte29 americanos e mexicanos, contra os índios e durante a Guerra Civil), o que possibilitou a expansão territorial dos Estados Unidos no decorrer do século XIX32. 3.1.2. Capital Como resultado da independência política, os padrões de comércio entre colônia e metrópole foram quebrados e os Estados Unidos puderam explorar novos mercados, como a China; o Levante; o Báltico e as Índias Ocidentais (CHANDLER, 2008, p. 74). Entretanto, é a guerra de 1812 e os anos antecedentes a ela de embargo entre norteamericanos e britânicos que levaram a um aumento significativo da produção de produtos manufaturados na região norte dos Estados Unidos, substituindo a produção doméstica pela de fábrica e formando a base para a maciça industrialização que ocorreria na segunda metade do século XIX (ENGERMAN; SOKOLOFF, 2008, p. 372373). Impulsionada pelo embargo precedente à guerra de 1812, a industrialização nos Estados Unidos começou a partir do desenvolvimento da indústria têxtil. Em 1815, Francis Cabot Lowell construiu a primeira fábrica têxtil dos Estados Unidos em Massachusetts, utilizando-se de máquinas movidas pela força da água (CHANDLER, 2008, p. 80; ENGERMAN; SOKOLOFF, 2008, p. 373). Em pouco tempo, o baixo custo de produção da fábrica fez com que as pequenas oficinas de tecelagem tivessem grandes dificuldades para competir e, com a ajuda de uma queda nos preços do algodão e de um efetivo sistema de financiamento para indústrias, diversas novas fábricas têxteis começaram a surgir em torno dos rios da Nova Inglaterra. Entretanto, é apenas a partir da década de 1840 que o processo de industrialização se intensifica. Novas tecnologias, como o uso do carvão para gerar energia e a melhora nos meios de transporte através das ferrovias, permitiram uma dependência muito menor da água, o que possibilitou a construção de fábricas em regiões urbanas. Além disso, houve uma enorme expansão do mercado interno norteamericano devido às grandes ondas de imigração proveniente da Europa, aumentando a 32 Bickham explica o motivo de o Império Britânico ter sido generoso nos acordos com os norteamericanos como sendo (1) humilhar os norte-americanos e mostrar que o Império Britânico poderia ignorar a soberania deles e; (2) os planos britânicos de acabar permanentemente com a ameaça norteamericana custariam muito caro e não era do interesse britânico levar a guerra adiante por isso (BICKHAM, 2012, p. 276-277). 30 população de 17 milhões em 1840 para 63 milhões em 1890 (CHANDLER, 2008, p. 8586). As ferrovias assumiram um papel central na industrialização e, como nos mostra Chandler (2008, p. 90, tradução nossa), “as grandes somas de dinheiro que foram necessários para a construção de ferrovias na década de 1850 causou a ascensão dos bancos de investimento especializado nos Estados Unidos e na centralização e institucionalização dos mercados monetários do país em Wall Street”. 3.1.3. Legitimidade Uma vez conquistada a independência, era necessário criar uma Constituição para a nova nação. Mann (1993, p. 155-159) afirma que houve grande consenso entre as lideranças políticas sobre algumas questões, como o Estado ser um do tipo representativo (para os homens brancos), sua laicidade e que deveria exercer pouco poder militar sobre os cidadãos brancos (mas suficiente para coagir os não-brancos). Entretanto, o debate foi mais intenso no que diz respeito a qual modelo econômico o Estado deveria apoiar e no quão centralizado e nacional esse Estado deveria ser. O resultado disso foi um Estado que garantia a liberdade do cidadão e a sua propriedade, mas permanecia extremamente descentralizado, de forma que muitas estruturas e funções governamentais (como educação, saúde, polícia etc.) seriam atribuídas aos estados. Visto pelos europeus, os primórdios do Estado dos Estados Unidos era franzino ou até mesmo inexistente; Tocqueville (2005, p. 128), por exemplo, diz que o Estado se dissolveu logo após a independência e os pequenos estados se desenvolveram como repúblicas independentes. Hegel (1991, p. 103), já considera que “um verdadeiro Estado e governo só existiriam nos Estados Unidos quando riqueza e pobreza se tornarem extremas e que as pessoas não mais puderem satisfazer suas necessidades da forma como estão habituadas”. Marx e Engels (2002, p. 74), por outro lado, entenderam o Estado norte-americano como o mais perfeito exemplo de Estado moderno, mas justamente por entender que tal Estado só existia devido à presença da propriedade privada. Entretanto, apesar dessas análises europeias, o Estado americano, segundo Stephen Skowronek (2003, p. 19), “pode ser descrito tanto como se poderia descrever qualquer outro Estado”. [De acordo com Stephen Skowronek] os norte-americanos desenvolveram e mantiveram um estado, abarcando a organização do poder coercitivo e um senso de rotinas estáveis entre as instituições. Ele era baseado na aceitação de 31 um conjunto de regras e de instituições que, como os partidos e as cortes, tinham existência nacional. Era esse Estado de “partidos e cortes” que fazia guerras contra os índios, arbitrava as disputas entre os estados, mantinha uma ordem legal integrada numa escala constitucional, ajudava o desenvolvimento econômico e negociava tratados com outras nações. Essa estrutura limitada foi essencial para a manutenção da ordem e para o desenvolvimento social durante a primeira metade do século 19. O Estado nacional era importante sobretudo no que diz respeito a um aspecto relevante da política norte-americana no início do século, a expansão territorial (IZECKSOHN, 2003, p. 50). Salienta-se, todavia, que esse Estado descentralizado e com grande autonomia para os estados-membros acabou por acentuar as diferenças entre as regiões norte e sul e, como aponta Izecksohn (2003, p. 47-53), tornou a ameaça do separatismo um elemento central na formação dos Estados Unidos. Destaca-se, porém, que apesar da nova Constituição garantir espaço para a escravidão e exigir grandes propriedades de terra para eleitores, ela já era mais democrática do que qualquer outro sistema europeu. Mesmo após a vitória norte-americana e a consequente independência reconhecida em 1783, os britânicos continuaram tratando os Estados Unidos como uma colônia e muitas vezes desconsideravam sua soberania33; mais do que isso, o resto da Europa ainda enxergava os Estados Unidos como parte da esfera de influência britânica. A guerra de 1812 veio, então, como solução para esses problemas ainda não resolvidos. Como aponta Maass (2015, p. 71), a guerra de 1812 foi muito mais um “blefe diplomático” buscando concessões políticas dos britânicos do que uma guerra de expansão territorial que buscava anexar o Canadá. A independência norte-americana não representou alterações significativas no sistema internacional durante esse momento; o Reino Unido, após a vitória sobre a França Napoleônica, se tornou a potência hegemônica e a Pax Britannica permaneceria até a Primeira Guerra Mundial. Entretanto, a guerra de independência e a guerra de 1812 deram aos Estados Unidos, mais do que independência política, o que Gilpin (1981, p. 30-34) chama de prestígio. Ao combater os britânicos, principalmente na guerra de 1812, os norte-americanos conseguiram se tornar respeitados como uma nação 33 A vitória da Marinha Real britânica na batalha de Trafalgar em 1805 e a vitória de Napoleão sobre russos e austríacos em Austerlitz, ambas em 1805, levaram a um cenário onde britânicos dominavam os mares enquanto os franceses dominavam o continente Europeu, de forma que uma vitória de um dos lados não aconteceria tão cedo. Dessa forma, os britânicos buscaram isolar o continente proibindo o comércio entre a França e os países que estavam fora do conflito – o que prejudicou diretamente o comércio americano, que era neutro na guerra. Além de deixar as relações comerciais norte-americanas submissas aos desejos da Coroa britânica, navios de guerra britânicos passaram a abordar navios mercantes norteamericanos para um recrutamento forçado de marinheiros para a Marinha Real; e por fim, existia uma aliança britânica com os índios americanos nas fronteiras dos Estados Unidos. (MAASS, 2015, p. 73-75). 32 soberana e mantiveram os europeus afastados de posteriores conflitos na América do Norte – um elemento fundamental para a formulação da Doutrina Monroe (1823) e expansão territorial norte-americana, tido por Gilpin (1981, p. 23) como o primeiro objetivo dos Estados para a ampliação de sua segurança e riqueza. Além disso, a ruptura com o comércio britânico, então líder da produção manufatureira mundial, durante as guerras motivou uma expansão da produção norte-americana em um período em que as empresas puderam se estabelecer rapidamente e acompanhar o progresso tecnológico da revolução industrial. 3.2. Guerra Civil: consolidação interna e projeção externa Na primeira metade do século XIX, os Estados Unidos se tornam uma potência continental: o Destino Manifesto34 combinou o fervor, o idealismo e até o misticismo do Romantismo Americano com o realismo, desenvolvimento econômico e a ocupação americana por todo o continente (JOHANNSEN, 1997, p. 13). Como resultado, milhares de quilômetros quadrados foram incorporados aos Estados Unidos. Além disso, a intensa imigração de europeus para os Estados Unidos, somada à expansão territorial e constante crescimento industrial e de infraestrutura, tornaram a nação um gigante econômico ainda na primeira metade do século XIX. Paul Kennedy (1988, p. 178-179) levanta que observadores da época como Tocqueville (2005, p. 476477), já viam os Estados Unidos e o Império russo como as grandes potências do futuro, e compara o potencial bélico-militar entre as duas grandes nações, mostrando o alto grau de industrialização norte-americana, já em níveis próximos ao das grandes potências europeias da época apesar de ter uma força militar muito pequena no período anterior à Guerra Civil. Entretanto, como salienta Paul Kennedy (1988, p. 178), o isolamento americano nos assuntos europeus e o cordon sanitaire que a Marinha Real inglesa impôs para separar o Novo Mundo do Velho Mundo (muito mais do que a Doutrina Monroe), significam que a única ameaça ao desenvolvimento americano era o Reino Unido – mas ainda que tenham estado em guerra em 1776 e 1812, novas guerras 34 Em um artigo chamado “Annexation” no jornal Democratic Review de 1845, o jornalista John Louis O'Sullivan mencionou pela primeira vez o “Destino Manifesto”, evocando a anexação do Texas (JOHANNSEN, 1997, p. 7-8). 33 entre os dois países se tornaram cada vez mais improváveis, visto o grande fluxo de capital e matérias primas desenvolvido entre os dois. Todavia, dentro da política doméstica norte-americana, dois lados (norte e sul) disputavam o controle pelo funcionamento securitário, econômico e ideológico do Estado. Essas divergências fizeram com que, em fevereiro de 1861, onze estados sulistas se separassem dos Estados Unidos e formassem os Estados Confederados da América, dando início à Guerra Civil norte-americana (1861-1865). 3.2.1. Coerção Se desde a independência os Estados Unidos mantiveram um pequeno número de soldados em suas forças armadas, a guerra civil transformou os dois lados de amadores a Exércitos de recrutamento em massa, com o uso de modernas armas de fogo e artilharias, telégrafos, ferrovias e navios encouraçados, entre outros avanços tecnológicos que a tornaram a primeira guerra total industrializada. Como aponta Kennedy (1988, p. 178-182), era clara a vantagem do lado norte, que detinha uma população de cerca de 20 milhões de homens brancos enquanto a Confederação tinha apenas seis milhões. Além disso, a União recebeu mais de 800 mil imigrantes durante os anos de conflito e tomou a decisão de alistar soldados negros em 1862, algo que os confederados evitaram até os últimos meses de guerra – no auge de cada lado, o norte chegou a ter um milhão de soldados, enquanto os confederados atingiram 464.500 soldados. Apesar da ampliação do Estado norte-americano em função da guerra, ela não conseguiu determinar o surgimento de um Estado fiscal-militar permanente e seguiu-se uma intensa desmilitarização logo após o fim da guerra (ZAKARIA, 2000, p. 142). O grande crescimento econômico e populacional, ocorrido na segunda metade do século XIX, colocou os Estados Unidos na vanguarda da economia mundial. Conforme Kennedy (1988, p. 243, tradução nossa), mesmo que os Estados Unidos “parecessem ter todas as vantagens econômicas que algumas das outras potências possuíam em partes, mas nenhuma das suas desvantagens35”, todo esse potencial não se refletia na sua política externa. Isso fica evidente quando, como aponta Zakaria (2000, p. 74, tradução 35 “The United States seemed to have all the economic advantages which some of the others powers possessed in part, but none of their disadvantages”. 34 nossa), “suas aquisições territoriais e protetorados, suas forças de defesa, suas ligações com o estrangeiro e suas alianças eram insignificantes em comparação com outras nações de recursos similares36”. O seu Exército, por exemplo, não chegava a ter 25.000 homens em 1890, um número menor que da Bulgária, e a marinha cerca de oito vezes menor que a marinha italiana, considerada a mais fraca dentre as potências europeias (KISSINGER, 2007, p. 28; ZAKARIA, 2000, p. 74). A guerra hispano-americana37, em 1898, foi o marco de concretização dos esforços de fortalecimento do Estado após a guerra de secessão e concedeu o título de grande potência aos Estados Unidos. Em um rápido conflito, os norte-americanos derrotaram por completo as forças de uma Espanha em plena decadência. O Tratado de Paris, assinado em 10 de dezembro de 1898, eliminou os últimos vestígios do Império Espanhol nas Américas e concedeu aos norte-americanos as ilhas de Cuba, Porto Rico e Guam, além das Filipinas que, como aponta Kennedy (1988, p. 246), transformaram os Estados Unidos em uma espécie de potência colonial na Ásia, simbolizando a sua ascensão para a atuação inter-regional. O sucesso militar gerou ainda uma grande onda expansionista nos Estados Unidos, de forma que a anexação do Hawaii, após grandes debates ocorridos em décadas anteriores, finalmente conseguiu ser aprovada. Entretanto, é sob a gestão de Theodore Roosevelt (1901-1908) que ocorre a grande fase de expansão da força norteamericana no início do século XX. Em 1904, através do que ficou conhecido como Corolário Roosevelt, confirmou-se as intenções originais da Doutrina Monroe e deixou explícito o direito de intervenção dos Estados Unidos no hemisfério ocidental, esclarecendo qualquer possível ambiguidade sobre quem controlaria a região (HERRING, 2008, p. 371). Essa maior atuação norte-americana na diplomacia também veio acompanhada pela expansão do poder militar, principalmente pela marinha38: entre 1885 e 1889 já havia começado a construção de 30 modernos navios de guerra, que segundo Zakaria (2000, p. 113), marcaram uma mudança estratégica em direção a uma postura mais ofensiva no mar; mas foi durante a guerra hispano-americana que o aumento da marinha 36 “Sus adquisiciones territoriales y protectorados, sus fuerzas de defensa, sus legaciones en el extranjero y sus alianzas – eran insignificantes en comparación con los de otras naciones de recursos similares”. 37 A guerra entre Estados Unidos e Espanha começou devido à situação problemática em Cuba, que na época desejava a sua independência (HERRING, 2008, p. 309-314). 38 A marinha é mais importante aos Estados Unidos pela sua posição geográfica e um importante instrumento de diplomacia e comércio na América Latina e no Pacífico (KENNEDY, 1988, p. 247). 35 foi consolidado e empregado. Kennedy (1988, p. 247) coloca que a aquisição de novas bases navais no Pacífico e no Caribe, o uso de navios de guerra como força policial na América Latina e o envio da Great White Fleet39, demonstram a importância do poder naval. Em 1914 a marinha norte-americana só era menor que a britânica e alemã; um aumento impressionante para os 25 anos que antecederam à Primeira Guerra Mundial. Entretanto, segundo Kennedy (1988, p. 248), apesar de os Estados Unidos ter se tornado uma grande potência, ainda não era parte do sistema de grandes potências. O domínio do hemisfério ocidental, a posição confortável de isolamento, distante das outras grandes potências por milhares de quilômetros de oceano, e a ausência de uma política internacional mais agressiva com o fim dos mandatos de Theodore Roosevelt, mantiveram os Estados Unidos como um ator menos relevante no sistema de grandes potências. Quando as hostilidades da Primeira Guerra Mundial começaram, os Estados Unidos estavam geograficamente longe das batalhas. Além disso, a longa tradição de não se envolver nos conflitos europeus e a vantagem de poder comercializar com os dois lados da guerra levavam os Estados Unidos para a neutralidade. No decorrer da guerra, porém, as grandes relações comerciais entre norte-americanos e britânicos (muito maiores do que com os alemães) somadas à campanha naval do Império Alemão, baseada em submarinos, levaram a uma grande aproximação com os aliados e a uma crise na posição de neutralidade. Durante esse período de neutralidade, um intenso debate sobre a defesa nacional ocorreu entre apoiadores de uma intensa militarização e os pacifistas, de forma que apenas em junho de 1916 foi aprovado o National Defense Act e o Naval Expansion Act, ambas as medidas expandiram significativamente o poderio militar norte-americano (HERRING, 2008, p. 399-410). A chegada de 850.000 soldados norte-americanos no front europeu e uma malsucedida ofensiva final deu aos comandantes alemães o presságio da derrota. (HERRING, 2008, p. 411). Entretanto, como aponta Kennedy (1988, p. 271), não foi esse o real significado da entrada dos Estados Unidos na guerra, já que as tropas norteamericanas eram menos preparadas para o moderno conflito do que qualquer força europeia em 1914, mas sim através da sua força produtiva: a capacidade de lançar 39 A Great White Fleet foi uma frota naval enviada por Theodore Roosevelt em 1907 destinada a dar a volta ao mundo como demonstração de força para anunciar a chegada de uma nova grande potência no cenário internacional (HERRING, 2008, p. XV) 36 navios mercantes às centenas, de construir um destróier a cada três meses e possuir metade de produção mundial de alimentos. Com o final da Primeira Guerra, os Estados Unidos já haviam se tornado uma das grandes potências mundiais, mas, apesar das frustradas tentativas do então Presidente Wilson40, o que ocorreu foi um súbito isolamento diplomático do país no cenário internacional, que voltou a ficar focado nos cambaleantes ingleses e franceses. Como aponta Kennedy (1988, p. 277), com a rejeição do Senado norte-americano pelo Tratado de Versalhes, as histórias diplomáticas do período são todas centradas na França e sua procura pela segurança contra uma Alemanha ressurgente. Como ocorreu em outros momentos, o isolamento norte-americano não foi exclusivo na área diplomática, mas também nas forças de defesa: no período entre guerras, as forças armadas norte-americanas ficaram significativamente reduzidas, em torno de 140.000 soldados, apesar de terem permitido a criação de uma moderna Força Aérea e o desenvolvimento de porta-aviões e de cruzadores pesados (KENNEDY, 1988, p. 328). 3.2.2. Capital O desenvolvimento econômico das regiões Norte e Sul dos Estados Unidos foi muito diferente: o Norte caminhou na direção de um capitalismo comercial enquanto o Sul manteve-se fortemente rural e agrícola, mas como aponta Izecksohn (2003, p. 58), isso não foi suficiente para colocar o Sul numa posição subalterna ao Norte. Inicialmente visto como uma prática sem futuro e fora de grandes debates, a escravidão encontrou seu espaço na grande demanda de algodão das indústrias de tecido como também nas terras conquistadas no oeste, gerando grandes conflitos e debates sobre a extensão da escravidão para os novos territórios. Durante a Guerra Civil, os confederados apresentavam uma grande inferioridade econômica, com uma reduzida produção industrial em relação ao norte. Além disso, não conseguiram pagar os custos do conflito, uma vez que a maior fonte de renda vinha através das exportações de algodão, impedidos de serem negociadas durante a guerra por causa do bloqueio nortista; o norte, entretanto, conseguia arrecadar dinheiro através dos impostos e de empréstimos, além de ter estimulado o crescimento econômico e 40 Os 14 pontos de Wilson, expostos em 8 de janeiro de 1918, declaravam os objetivos de guerra da América na Primeira Guerra Mundial (KISSINGER, 2007, p. 193-194). 37 industrial com a emissão de dinheiro. Salienta-se, todavia, o impacto da Guerra Civil sobre a industrialização norte-americana: em vista das necessidades da guerra, muitos consideram o conflito como o ponto de partida para o desenvolvimento das indústrias nos Estados Unidos, mas como reforçam Engerman e Stanley (2008, p. 379), o período anterior à guerra já demonstrava grande aumento da produção agrícola e industrial, e mesmo que o conflito tenha influenciado alguns setores da indústria, como armamentos e alimentos, ele não pode ser visto como a causa do crescimento econômico. Ao final da Guerra Civil, porém, nenhum país possuía condições territoriais e econômicas suficientes para desafiar a hegemonia britânica (GILPIN, 1981, p. 135). A Pax Britannica, implantada pelo que Gallagher e Robinson (1953) chamam de “imperialismo de livre comércio”, deu condições para os britânicos exercerem funções de governo mundial. Porém, a partir de 1870, com a ascensão do Império Alemão, mas principalmente dos Estados Unidos, o Reino Unido passou a perder esse controle. Durante todo esse regime britânico, o sistema foi baseado em empresas de pequeno e médio porte, altamente especializadas e unidas por uma complexa trama de transações comerciais centrada no Reino Unido, mas abrangendo o mundo inteiro. Entretanto, a pressão de uma forte competitividade acabou reduzindo consideravelmente os lucros, pressionando comerciantes a buscarem novas alternativas de estruturas empresariais (ARRIGHI, 2000, p. 291-295). Como a variante alemã, a variante norte-americana de capitalismo de corporações desenvolveu-se em resposta à intensificação, no mundo, das pressões competitivas da plena expansão dessa economia mundial de mercado centrada no Reino Unido. Não foi por um acidente histórico que as duas variantes emergiram simultaneamente no decorrer da Grande Depressão de 1873-96. Tal como na Alemanha, também nos Estados Unidos a intensificação das pressões competitivas convenceu negociantes, políticos e intelectuais de que um regime de concorrência irrestrita entre unidades atomizadas não gerava estabilidade social, nem, a rigor, eficiência de mercado (ARRIGHI, 2000, p. 295). A formação de conglomerados para limitar a concorrência foi encontrada tanto pelos norte-americanos como pelos alemães, mas entre as décadas de 1880 e 1890, eles começaram a divergir radicalmente. Enquanto os alemães passaram a concentrar capital através de integrações horizontais, os norte-americanos dirigiram-se às integrações verticais41. Segundo Arrighi (2000, p. 296), a variante de corporações que emergiu nos Estados Unidos constituiu-se muito mais eficaz e radical do que a variante alemã, em 41 Integrações verticais são as integrações de uma firma com as de seus fornecedores e clientes, enquanto as integrações horizontais acontecem entre firmas concorrentes (ARRIGHI, 2000, p. 296). 38 relação ao sistema britânico. Isso só foi possível graças às grandes dimensões da economia norte-americana, já que as oportunidades de integração vertical na Alemanha se esgotaram rapidamente, guiando-os para a integração horizontal. E de fato, como salienta Kennedy (1988, p. 242-249), de todas as mudanças ocorridas na balança de poder mundial entre fins do século XIX e início do XX, as maiores e mais decisivas foram nos Estados Unidos. Segundo Zakaria (2000, p. 73), apesar das crises econômicas que ocorreram nas décadas de 1870 e 1890, a prosperidade e o progresso norte-americano alimentaram a reputação de um país com oportunidades ilimitadas, o que atraiu milhões de imigrantes europeus e dobrou a população do país entre 1865 e 1900. A Primeira Guerra Mundial acelerou o processo de consolidação dos Estados Unidos como a maior economia do mundo. Quando o conflito começou, em 1914, o Ministro do Tesouro britânico acreditava que os investimentos externos britânicos (feitos em grande parte nos Estados Unidos) seriam suficientes para custear cinco anos de guerra. Porém, já em 1915, a demanda de armamentos, máquinas e matérias-primas superaram drasticamente o que tinha sido imaginado, e os Estados Unidos eram os únicos possíveis fornecedores. Essa situação fez com que os Estados Unidos recomprassem os antigos investimentos ingleses na infraestrutura norte-americana e ainda acumulassem imensos créditos; e não apenas isso, mas também se aproveitaram da posição ainda neutra na guerra e substituíram com rapidez o Reino Unido42 como o principal investidor estrangeiro e intermediário na América Latina e partes da Ásia. Esse processo já era inevitável, pois como alega Kennedy (1988, p. 244), a economia norte-americana superaria toda a economia europeia em 1925 caso não houvesse a Primeira Guerra. Com o conflito, o processo foi adiantado em seis anos devido à destruição da infraestrutura europeia, algo que prejudicou significativamente a produção industrial dos países afetados; de forma que a produção manufatureira de 1920 ainda era 7% menor que em 1913, a produção agrícola cerca de um terço abaixo do normal e o volume de exportações era apenas a metade do período pré-guerra (KENNEDY, 1988, p. 279). Por outro lado, países que se mantiveram distantes da destruição em massa, como os Estados Unidos, viram suas economias impulsionadas pela guerra de atrito europeia. Como nos mostra Hobsbawm (1995, p. 71), em 1929, os 42 Arrighi (2000, p. 279) conta que a Grã-Bretanha fez muitos empréstimos a aliados mais pobres, principalmente a Rússia, que faliu e passou pela revolução, tornando a dívida incobrável. 39 Estados Unidos eram responsáveis por 42% da produção mundial, sendo que Reino Unido, França e Alemanha, os grandes da Europa, eram responsáveis por 28%. Além disso, também como resultado da guerra, muitos países estavam com grandes dívidas em relação aos Estados Unidos; e o aumento muito mais acentuado da produção norteamericana em relação aos países devedores apenas acentuou as dificuldades destes em pagar suas dívidas. Contudo, como destaca Arrighi (2000, p. 279-281), os Estados Unidos equiparam-se aos britânicos na produção e regulação do dinheiro mundial após a guerra, mas não os substituíram; e ainda mais importante, “a capacidade norte-americana de administrar o sistema monetário mundial continuava nitidamente inferior à capacidade residual da própria Grã-Bretanha”. Sob esse ponto de vista, como sugeriu Geoffrey Ingham (1989, p.16-7; 1984 p.203), deve ser revista a tese de que o sistema monetário mundial foi instabilizado pela incapacidade britânica e pela falta de disposição norteamericana de assumir a responsabilidade por sua estabilização (ARRIGHI, 2000, p. 280). Londres, propriamente, manteve-se como o grande centro organizacional, intelectual e financeiro do período, possuindo reservas de ouro em 1920 ainda maiores do que no período anterior à guerra; e Nova York, maior centro financeiro norteamericano, continuou inteiramente subordinada à Londres, de modo que “Wall Street e o Federal Reserve de Nova York se aliaram à City londrina e ao Banco da Inglaterra para manter e impor o padrão ouro internacional, cujo principal beneficiário era e continuou a ser a Grã-Bretanha” (ARRIGHI, 2000, p. 281). Como ressalta Kennedy (1988, p. 282), apesar dos Estados Unidos terem se tornado a grande nação credora do mundo, a estrutura econômica norte-americana era muito menos dependente e integrada ao resto da economia mundial, com inclinações protecionistas e carecendo da eficiência de um Banco da Inglaterra43. Entretanto, enquanto governos europeus utilizaram o dinheiro dos empréstimos para projetos de longo termo, principalmente agricultura ou buscando restabelecer o padrão ouro de suas moedas, os empréstimos não podiam mais ser pagos pelas exportações, sendo pagos por novos empréstimos, colocando essa estrutura prestes a desmoronar. E em fins de “1928, a alta de Wall Street começou a desviar recursos dos empréstimos externos para a 43 Segundo Arrighi (2000, p. 280), as instituições financeiras norte-americanas simplesmente não estavam à altura da tarefa de administrar o sistema monetário mundial. “Na década de 1920, o Sistema da Reserva Federal, criado em 1913, ainda era um órgão mal articulado e inexperiente, incapaz de exercer com um mínimo de eficiência até mesmo suas funções domésticas”. 40 especulação interna” (ARRIGHI, 2000, p. 282). Com a quebra de Wall Street em 1929 e a depressão da economia norte-americana, iniciou-se uma corrente em cadeia incontrolável: “um país após o outro viu-se obrigado a proteger sua moeda, fosse através da desvalorização, fosse pelo controle do câmbio” (ARRIGHI, 2000, p. 283). Quando até mesmo os britânicos abandonaram o Free Trade em 1931, parecia claro que os Estados estavam se retirando o máximo que podiam em direção a um protecionismo tão defensivo que chegou perto de uma política de autarquia, aliviado por acordos bilaterais. Em tempo, enquanto o congelamento econômico varria as economias globais, o capitalismo mundial retraiu-se nos iglus de suas economias de Estados nacionais e dos impérios que lhe estavam associados (HOBSBAWM, 2000, p. 132, tradução nossa). O New Deal, segundo A. Marx (1998, p. 103) representou o ressurgimento do poder centralizado, não visto desde o período da Reconstrução (pós Guerra Civil). De fato, as maiores ambições do New Deal representam uma grande mudança de postura para o governo norte-americano, que abandonou sua posição de interferência mínima no mercado doméstico em favor de tentativas abrangentes de intervenção (SKOCPOL; FINEGOLD, 1982, p. 255-256). Como salienta Arrighi (2000, p.287), o presidente F. Roosevelt buscou libertar a economia norte-americana do controle da haute finance – as grandes lideranças dos mercados financeiros de Londres e Nova York. 3.2.3. Legitimidade A vitória da União na Guerra Civil em 1865 fortaleceu o Estado americano em todas as dimensões, “conferindo-lhe os atributos fundamentais da soberania territorial e governamental” (BENSEL, 2003, p. 2). A partir de então, deu-se início ao período de Reconstrução do sul seguindo os interesses do Partido Republicano, de forma que, como coloca A. Marx (1998, p. 92-93, tradução nossa), “O Estado nacional seria reconstruído sob os termos do Norte” 44. Assim, a região sul foi colocada sob-regime militar e para reingressar na União os ex-estados confederados deveriam ratificar a Décima Quarta Emenda45. Durante esse período, negros sulistas serviram em funções legislativas e verbas foram destinadas à educação pública e hospitais, além de leis 44 “The nation-state would be rebuilt on the North’s terms” A Décima Terceira Emenda, adotada em 1865, aboliu a escravidão nos Estados Unidos. Mas isso não seria nem de perto a igualdade plena entre negros e brancos: com a política conciliatória do sucessor de Lincoln, Andrew Johnson, os legisladores sulistas promulgaram “Black Codes” que restringiam direitos dos negros e, na prática, criava um regime muito próximo da escravidão. Assim, a Décima Quarta Emenda (1868) servia para anular os “Black Codes” e garantir a cidadania e direitos iguais a todos nascidos ou naturalizados nos Estados Unidos, com exceção dos índios (BOYER, 2012, p.58). 45 41 aprovadas que protegiam os direitos dos negros libertados e que trouxeram resultados significantes: o alfabetismo dos negros subiu de 10 para 50% entre 1865 e 1890, aumentou a quantidade de negros donos de terras e a renda dos negros subiu 46% (MARX, 1998, p. 94). Entretanto, escândalos de corrupção e crise econômica levaram sulistas e nortistas a procurarem por alternativas diferentes dos republicanos e sua reconstrução: o resultado foi um grande apoio ao partido Democrata (no sul ele era controlado pelos antigos proprietários de escravos) e um grande turning point ocorreu na história americana ao desassociar o partido Republicano e o Estado norte-americano. Como aponta Bensel (2003, p. 4, tradução nossa), “do ponto de vista estadista, essa transição também pode ser vista como a bonança que acompanhou a falha da reconstrução”, já que esse processo de transição de um partido revolucionário para um pluralismo centrado no Estado é uma das marcas da modernização política. Segundo Bensel (2003, p. 4-5), a modernização política envolve três elementos: (1) a racionalização da autoridade em toda a nação, destruindo instituições descentralizadoras que resistam à autoridade; (2) o surgimento de novas funções políticas e de instituições especializadas para cumprirem tais funções e; (3) ampliação da participação política, principalmente através do surgimento de partidos políticos de massa. Na maioria dos países europeus, a modernização ocorreu seguindo essa ordem, porém nos Estados Unidos a ordem foi reversa. Para os negros, todavia, significou mais do que um novo abandono: como afirma A. Marx (1998, p. 97-98), eles foram transformados em bodes expiatórios para a unificação dos brancos e já em 1890, novas imposições segregacionistas retornaram através de diferentes táticas e muitos dos ganhos anteriores foram revertidos através das leis segregacionistas de Jim Crow. A falha da Reconstrução e o fim da supremacia do partido Republicano com o retorno do partido Democrata levaram ao que Skowronek (2003, p. 39-41) chama de triunfo do Estado de partidos e cortes. Como desde 1820 o serviço civil era controlado pelos partidos políticos, a criação de instituições centralizadas e estáveis era impedida pelo sistema – um reflexo da tradição norte-americana, que se preocupa com a restrição da autoridade e divisão dos poderes (HUNTINGTON, 1973, p. 7). Como coloca Zakaria (2000, p. 160, tradução nossa), “O Congresso exercia uma enorme influência sobre o Poder Executivo principalmente através do clientelismo partidário”, afetando desde os assuntos cotidianos e também em toda a política do Estado. 42 Em um período de intensa urbanização e industrialização, que transformou e acrescentou novos dilemas à sociedade (como o poder das empresas, os direitos dos consumidores, a pobreza, saúde e higiene entre outros), o pleno fortalecimento do “Estado de partidos”, incapaz de atender às novas demandas, gerou um impasse nas relações entre Estado e sociedade. “Instituições e procedimentos criados para servirem ao desenvolvimento socioeconômico aparecem agora como perversões de autoperpetuação desse propósito” (SKOWRONEK, 2003, p. 40, tradução nossa). O vácuo gerado por esse impasse era preenchido pelas cortes jurídicas, que expandiram o seu poder ao limite em fins do século XIX. As incapacidades internas refletiam também nos aspectos externos: o aparelho diplomático norte-americano era ainda mais fraco que suas forças armadas, os Estados Unidos eram representados por poucos embaixadores honorários e em poucos países; o próprio Departamento de Estado era minúsculo, a ponto de que o jornal New York Herald sugeriu a sua abolição, em 1892, já que tinha tão pouco o que fazer (KENNEDY, 1988, p. 246). E como aponta Zakaria (2000, p. 75), tudo isso fez com que os Estados Unidos fossem considerados uma potência de segunda ordem, juntamente com outros países com capacidades muito menores, e nenhuma potência europeia considerava os norte-americanos suficientemente importantes para o envio de embaixadores. Esse processo da construção do Estado norte-americano foi longo e custoso, mas como destaca Zakaria (2000, p. 176, tradução nossa), “Todos os caminhos conduziram para a mesma direção: até Washington e, dentro de Washington, até a Casa Branca”. Em um aspecto internacional, quando William McKinley assumiu a presidência em 1897, em certa medida, o Poder Executivo já tinha alcançado a supremacia e o presidente já governava um Estado forte e burocrático livre da influência do Congresso. Mas, enquanto o Estado norte-americano ampliava suas capacidades, consolidavam-se também as leis segregacionistas de Jim Crow e iniciava-se o que A. Marx chama de “Era de Ouro do racismo” (1998, p. 103). De fato, por volta da década de 1920, os Estados Unidos consolidaram sua identidade “Anglo-Protestante” através de uma série de medidas legislativas como o Volstead Act (1920), que proibiu o consumo de álcool, e o Johnson-Reed Act (1924) que instituiu cotas de imigração para manter o predomínio dos anglo-saxões protestantes (KAUFMANN, 2004, p. 2). A grande depressão de 1929, porém, incentivou uma nova e intensa expansão da máquina pública através do New Deal de Franklin Roosevelt. Skowronek (2003, p 28843 289) considera que ao expandir os serviços burocráticos e tirar as cortes e os partidos do centro das operações governamentais, o New Deal representou o fim definitivo do “Estado de partidos e cortes”. A guerra civil garantiu a consolidação da autoridade interna e possibilitou a ampliação do Estado norte-americano sob os interesses da parte norte. Entretanto, os Estados Unidos só foram reconhecidos como uma grande potência do sistema internacional a partir da sua expansão naval e vitória na guerra hispano-americana de 1898. Além da ampliação da capacidade coercitiva dos Estados Unidos, a crescente economia norte-americana (juntamente com a de outros países, como o Império Alemão) fez com que o Reino Unido sofresse um relativo declínio de sua hegemonia e, como aponta Zakaria (2000, p. 230-231), as dificuldades que os britânicos enfrentaram na guerra Anglo-Bôer (1899-1902) deixaram evidentes os limites da capacidade britânica de se impor através da força. Como consequência disso, ainda no final do século XIX, o Reino Unido já passa a adotar uma política amistosa com os norteamericanos e toma “a difícil decisão de confiar na boa vontade dos Estados Unidos para proteger os interesses britânicos no hemisfério ocidental46” (ZAKARIA, 2000, p. 230). Então, a partir do governo de Theodore Roosevelt, os Estados Unidos conseguiram alcançar o que Gilpin (1981, p. 24) estabelece como o segundo objetivo dos Estados, que é o de ampliar sua esfera de influência – nesse caso, o Corolário Roosevelt deixou explícito que todas as Américas estavam sob a égide dos Estados Unidos. A incapacidade britânica de sustentar a sua Pax Britannica no início do século XX gerou um desequilíbrio no sistema internacional e, consequentemente, levou a uma guerra hegemônica (GILPIN, 1981, p. 209-210). A Primeira Guerra Mundial, portanto, representou o colapso da ordem social e econômica da Europa, mas não determinou a ascensão imediata de uma nova hegemonia: um interregno chamado por Carr (1981) de “Vinte Anos de Crise” ocorreu até que os Estados Unidos se tornassem a potência hegemônica. 46 “ La penosa decisión de confiar en la buena voluntad de Norteamérica para proteger los interesses británicos en el hemisferio occidental”. 44 3.3. Segunda Guerra Mundial e ascensão da superpotência 3.3.1. Coerção Ainda antes do início da Segunda Guerra Mundial, em meados de 1937 e 1938, o então presidente Franklin Roosevelt passou a se utilizar de grandes manobras políticas para convencer o povo norte-americano das ameaças fascistas, pois enfrentava grande oposição de isolacionistas. Kennedy (1988, p. 331) mostra como durante esse período os Estados Unidos passaram a se preparar para um futuro conflito: a produção de aeronaves de guerra dobrou; foi aceita no Congresso uma massiva expansão da Marinha; testes eram realizados em um protótipo do bombardeiro B-17, os Marines refinavam sua doutrina de guerra anfíbia e o Exército se preocupava com guerra blindada. Quando a guerra começou, em 1939, nada disso ainda estava pronto, mas estavam muito mais adiantados que em 1914. Salienta-se, todavia, as enormes capacidades norte-americanas quando comparadas aos demais países em conflito: Kennedy (1988, p. 331-333) aponta como os maciços projetos de militarização dos Estados Unidos, ainda afetados pela crise de 1929, criaram um impacto muito menor na economia do que outros países como França, Inglaterra e Itália, que sofriam com graves problemas estruturais. O que a queda da França não fez, o ataque japonês a Pearl Harbor fez. O ataque ao Hawaii minou a idealização norte-americana de que os Estados Unidos estavam seguros das ameaças externas. E a consequente guerra elevou a política externa para a mais alta prioridade nacional desde a independência do país. O ingresso dos Estados Unidos na guerra e o início de uma mobilização total criou um verdadeiro colosso militar, expandindo suas forças armadas de 174.000 em 1939 para 1.5 milhões em 1941. Em 1945, eram 12.1 milhões (HERRING, 2008, p. 538-541). Como disse Kennedy (1988, p. 352-354), apesar de uma superioridade alemã na doutrina operacional, os recursos norte-americanos eram tão superiores que eles produziam mais embarcações do que os submarinos alemães poderiam afundar. Para atender a rápida expansão das demandas diplomáticas e militares do país que finalmente assumiu sua liderança no mundo, o presidente F. Roosevelt criou uma grande estrutura para a política externa: dentre os vários órgãos criados, o Office of War Information (OWI) e o Office of Strategic Services (OSS), precursor da Central 45 Intelligence Agency (CIA)47, juntamente com a construção do Pentágono. Além disso, a Segunda Guerra também colocou os militares em uma posição central na formulação da política externa norte-americana – o que trouxe alterações marcantes nas relações entre civis e militares e na formulação da política de segurança nacional (HERRING, 2008, p. 544). Entretanto, é no final da Segunda Guerra que acontece um dos atos mais controversos da história dos Estados Unidos: o uso de bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki. Enquanto Truman (o sucessor de F. Roosevelt) e seus assessores justificam o ato para poupar vidas norte-americanas, muitos revisionistas acreditam que o uso das bombas atômicas não era necessário e que foram utilizadas como uma ameaça à União Soviética para que aceitassem os objetivos norte-americanos no pós-guerra (HERRING, 2008, p. 591). De qualquer forma, como disse Kennedy (1988, p. 356-357), as armas atômicas não apenas simbolizaram o fim de uma guerra, mas também o início de uma nova ordem no cenário internacional. As previsões feitas por Tocqueville e outros pensadores do século XIX tinham se concretizado, as antigas grandes potências de França e Itália já tinham sido eclipsadas; Alemanha e Japão estavam destruídos; e o Reino Unido em franca decadência. Estados Unidos e União Soviética agora sustentavam um mundo bipolar, mas entre eles, o poder dos Estados Unidos era muito maior, não só economicamente, mas também militarmente e pelo monopólio das armas atômicas (KENNEDY, 1988, p. 357-358). Nos primeiros anos após o fim da Segunda Guerra, a rivalidade entre Estados Unidos e União Soviética ficou centrada na demarcação das novas fronteiras da Europa; e de forma muito semelhante ao pós Primeira Guerra, os Estados Unidos reduziram drasticamente sua força militar para 600.000 soldados e desativaram muito de sua força aérea e naval (MAY, 2010, p. 235). Essa situação foi alterada a partir de 1949, onde alguns eventos fundamentais para o início da cultura de uma Guerra Fria “próxima de um medo histérico, desconfiança paranoica e conformidade sufocante” ocorreram: em setembro, a União Soviética explodiu a sua primeira arma nuclear, mais cedo do que esperavam os americanos; e, além disso, o comunismo triunfou na China, ampliando a 47 O OWI era responsável por censurar a mídia e fazer propaganda de guerra, com o propósito de exaltar a participação norte-americana e também afetar a moral dos inimigos (HERRING, 2008, p. 542). 46 disputa centrada na Europa também para a Ásia e dando a impressão de que o equilíbrio do poder mundial se voltava contra os Estados Unidos (HERRING, 2008, p. 635-637). O produto mais importante dessa atmosfera sombria foi o National Security Council Memorandum 68 (NSC-68), de 1950. O documento proclamava, com alarme, que a União Soviética possuía muito mais forças do que o necessário e que se preparavam para uma agressão a nível mundial contra todas as instituições livres, e que para responder a essa ameaça sem precedentes só existiam três opções: (1) isolamento; (2) guerra preventiva; e (3) uma rápida expansão do poder militar norte-americano. Considerando a primeira opção como sendo equivalente a uma capitulação e a segunda como repugnante, o NSC-68 propunha um massivo incremento no orçamento de defesa, com ênfase no rápido desenvolvimento de uma bomba de hidrogênio, ampliação de ajuda militar para países amigos e esforços para melhorar os serviços de inteligência (BACEVICH, 2009, p. 55-56; HERRING, 2008, p. 635-638). Entretanto, mais do que um documento com uma visão de mundo sombria e que levou a um intenso rearmamento norte-americano em tempos de paz, o NSC-68 forçou os Estados Unidos a largarem permanentemente o antigo isolacionismo e a criar um Estado de segurança nacional. Como aponta Hogan (2000, p. 3), os Estados Unidos “uniram as Forças Armadas, expandiram os gastos com defesa, utilizaram a ciência com propósitos militares e criaram novas instituições como o National Security Council e a Central Intelligence Agency, atualmente dentre os mais conhecidos e poderosos órgãos do governo”. A transformação do Estado norte-americano também incluiu novos grupos de gestores da segurança nacional, como especialistas das universidades do país e diretores de empresas, de instituições financeiras e dos escritórios de advocacia de Wall Street, além de fazer o Congresso reorganizar seu sistema de comissões para se adequar às crescentes demandas da segurança nacional no orçamento do governo. 3.3.2. Capital Se a Primeira Guerra Mundial rendeu grande riqueza aos Estados Unidos, a Segunda Guerra Mundial centralizou completamente o poder financeiro mundial e marcou a ascensão da hegemonia norte-americana no que Arrighi (2000) chama de quarto ciclo sistêmico de acumulação. 47 Como em todos os casos anteriores de enriquecimento e conquista de poder prodigiosos, em meio a um crescente caos sistêmico, o grande salto à frente da riqueza e poder norte-americanos entre 1914 e 1915 foi, primordialmente, uma expressão da renda da proteção de que o país desfrutava, numa posição singularmente privilegiada na configuração espacial da economia mundial capitalista. Quanto mais turbulento e caótico se tornava o sistema mundial, maiores os benefícios auferidos pelos Estados Unidos, em virtude de suas dimensões continentais, sua posição insular e seu acesso direto aos dois grandes oceanos da economia mundial (ARRIGHI, 2000, p. 284-285). Essa hegemonia pós-1945 foi tão extraordinária que, em 1947, as reservas norteamericanas de ouro representavam 70% do total mundial e, mais do que isso, a enorme demanda de dólares por parte de governos e empresas estrangeiras mostrava que o controle do sistema ia muito além dessa enorme concentração de ouro. Entretanto, como salienta Arrighi (2000, p.283-287), em Bretton Woods, mais do que estabelecer a paridade do dólar americano e o ouro, estabeleceu-se um novo modo de “produzir” o dinheiro mundial. Historicamente, foram sempre os grandes banqueiros e financistas que controlaram o sistema financeiro, e o sistema de Bretton Woods conseguiu, através de grandes organizações (como o FMI e o Banco Mundial) “transferir o controle da liquidez mundial das mãos de particulares para as de governos, e de Londres e Wall Street para Washington”. O Plano Marshall estabeleceu, então, a reconstrução da Europa Ocidental à imagem e semelhança norte-americana e deu uma significativa contribuição para a expansão do comercial e da produção durante as décadas de 1950 e 1960. Entretanto, essa expansão e a integração europeia exigiam uma reciclagem da liquidez mundial muito maior do que estava previsto no Plano Marshall e outros programas, de forma que a solução para isso foi dada pelo NSC-68, chamado por Arrighi (2000, p. 306-307) como o “mais maciço esforço de rearmamento que o mundo já vira em tempos de paz”. 48 [Acheson e Paul Nitze] não consideraram nem a integração europeia nem os realinhamentos monetários como suficientes para manter um superávit de exportações significativo, ou para dar continuidade aos laços econômicos entre Estados Unidos e a Europa após o fim do Plano Marshall. A nova orientação política que propuseram – o maciço rearmamento norte-americano e europeu – forneceu uma solução brilhante para os grandes problemas da política econômica norte-americana. O rearmamento nacional proporcionaria um novo meio de sustentar a demanda, de modo que a economia não mais ficasse dependente da manutenção de um superávit de exportações. A assistência militar à Europa proporcionaria um meio de continuar a prestarlhe assistência após o fim do Plano Marshall. E a estreita integração das forças militares europeias e norte-americanas proporcionaria um meio de 48 Acheson era o Secretário de Estado e Nitze o chefe da Policy Planning Staff em 1949 (BLOCK, 1977, p. 103) 48 impedir que a Europa, como região econômica, se fechasse para os Estados Unidos (BLOCK, 1977, p.103-104). Esse rearmamento proposto resolveu todos os problemas de liquidez da economia mundial durante a Guerra da Coreia. Além disso, os gastos militares norteamericanos e a ajuda militar a governos estrangeiros forneceram toda a liquidez para que a economia mundial pudesse se expandir. Como aponta Arrighi (2000, p. 307), “com o governo norte-americano agindo como um banco central mundial extremamente permissivo, o comércio e a produção mundiais se expandiram, de fato, numa velocidade sem precedentes”, tornando o período para muitos autores como a “idade de ouro do capitalismo”. 3.3.3. Legitimidade Promovida pelo New Deal, “A ampliação do poder federal não trouxe reformas raciais imediatas, mas criaram o potencial para tal reforma posteriormente49” (MARX, 1998, p. 104, tradução nossa). A Segunda Guerra Mundial então consolidou a centralização do poder do New Deal e enfraqueceu a desigualdade racial: “O embaraço norte-americano e a contradição entre a retórica antirracista da guerra e o segregacionismo em casa tornou-se ainda mais acentuado depois da guerra pela posição internacional emergente e a preocupação com sua reputação50” (MARX, 1998, p. 104105, tradução nossa). O debate sobre a questão racial, entretanto, se arrastou por quase vinte anos, devido à forte oposição de políticos sulistas, e apenas na década de 60 o Congresso aprovou o Civil Rights Acts, o Voting Rights Act e outras legislações que consolidaram a garantia aos direitos civis dentro dos Estados Unidos. A Segunda Guerra também representou a guerra hegemônica que determinou os Estados Unidos como a nova potência dominante do sistema internacional. Ao assumir esse papel com base na dimensão de sua força bélica e de seu prestígio, os norteamericanos atingiram o que Gilpin (1981, p. 24) considera o terceiro objetivo dos Estados, que é o controle ou grande influência sobre a economia mundial. Assim, no 49 “Increased federal power was not applied immediately to race reform, but did create the potential for such reform at a later date”. 50 “American embarrassment at the contradiction between the anti-racist rhetoric of the war and segregation at home was made all the more acute after the war by the country’s emerging international position and concern about its reputation”. 49 fim da guerra, já estavam estabelecidos as principais características da nova hegemonia: as bases do novo sistema monetário foram estabelecidas em Bretton Woods; em Hiroshima e Nagasaki foram demonstradas as novas armas que sustentariam o novo sistema; e, em San Francisco, as normas e regras para a legitimação da gestão do Estado e da Guerra, através da Carta das Nações Unidas. Ao concluirmos as análises do capítulo, podemos perceber que os Estados Unidos conquistaram a independência política e, pouco depois (na guerra de 1812), já conquistam o prestígio internacional, o que foi fundamental para a posterior expansão territorial do país (Doutrina Monroe, 1823) e para se tornar uma potência regional. Apesar disso, grandes problemas domésticos e a existência de uma ameaça de secessão fragmentavam o Estado norte-americano. Contudo, com uma ampliação do Estado, consequência da vitória da União na Guerra Civil, tal situação foi resolvida. A partir de então, com suas vitorias na guerra hispano-americana e Primeira Guerra Mundial, os Estados Unidos se projetaram internacionalmente e, em decorrência de mais uma vitória na Segunda Guerra, o país se tornou a superpotência mais capaz do sistema internacional, decretando as ordens do sistema. 50 4. Guerra e Formação do Estado na África do Sul Devido a sua localização estratégica na geografia mundial, a África do Sul foi alvo da colonização europeia desde o século XVII e a vinda de escravos e trabalhadores de vários cantos do mundo, juntamente com os povos nativos, deu origem a um caldeirão de culturas e etnias. As divisões sociais advindas desse processo resultaram em um amplo histórico de disputas territoriais e rivalidades na região. Ainda que a descoberta de ouro e diamantes tenha incentivado aos brancos a conquista da hegemonia territorial, persistia entre eles uma grande disputa pela governança do sistema. Tal cenário foi modificado em 1902 na guerra anglo-bôer: a vitória britânica moldou o recém-criado Estado sul-africano conforme os moldes britânicos, mas a majoritariedade dos africâneres concedeu-lhes o domínio do poder político. A vitória dos Aliados na Segunda Guerra Mundial instituiu uma ordem no sistema internacional contrária ao racismo e a favor da independência política das colônias europeias na África e Ásia. Porém, essa nova ordem prejudicou o controle do Estado sul-africano pelas minorias brancas, que reagiram e ampliaram as capacidades coercitivas do Estado para garantir o seu status quo dominante através do regime do Apartheid; algo que deixou a África do Sul isolada do sistema e criou grandes constrangimentos internos. Quando o bastião branco da áfrica austral começou a cair, a situação se tornou insustentável e os brancos dominantes começaram um processo pacífico de transição política. Assim, com a vitória de Nelson Mandela para a presidência da África do Sul em 1994, o país conquistou legitimidade interna e internacional, mas enfrenta um passado de discriminação que deixou graves problemas econômicos e sociais. Assim sendo, o presente capítulo é dividido em duas partes: a primeira, que analisa a guerra anglo-bôer e a consequente ascensão da África do Sul a potência regional na África austral; e a segunda, que analisa o Estado sul-africano em meio a sua tentativa de se garantir como potência regional e a consequente derrota nas guerras de fronteira sul-africanas. 51 4.1. Guerra Anglo-Bôer Até 1870 o território da atual África do Sul era bastante fragmentado: além da colônia do Cabo e da colônia de Natal, ainda existiam as repúblicas africânderes e nações africanas independentes, como o Leshoto e o Estado zulu. Entretanto, como aponta Thompson (2001, p. 112-113), a população desse território era ainda mais dividida: os africânderes, que no total compunham a maioria dos brancos de todo o território; os colonos britânicos; o grupo chamado como “Coloured” que são os descendentes dos escravos trazidos da Indonésia, Madagascar, África tropical e, principalmente, dos khoikhoi; os africanos de línguas bantas e os indianos levados para a colonial de Natal, onde superariam em quantidade os brancos. O império britânico, a maior potência do mundo no período, até então tinha pouco interesse na pobre economia que existia na África austral, de modo que o grande objetivo da administração colonial era sempre a redução de custos. Entretanto, após 1870, diversos fatores contribuíram para uma drástica alteração na postura dos britânicos. Segundo Worden (2012, p. 24), os historiadores divergem quanto às causas que levaram o império britânico a adotar uma política mais agressiva: alguns alegam que a unificação da região levaria ao progresso e desenvolvimento da economia local, enquanto outros apontam que isso fez parte da competição imperialista entre as potências europeias pelo interior da África. Além disso, a descoberta de ouro e diamantes no interior da África do Sul seria, por si só, motivo de maior atenção para os britânicos, ainda mais quando a economia britânica enfrentou uma grande depressão a partir de 1873. 4.1.1. Coerção A partir da década de 1870, então, os britânicos buscaram construir uma federação na África do Sul e anexaram a Griqualândia ocidental (1871) – local onde foram descobertas as reservas de diamantes; a República do Transvaal (1877); e derrotaram o reino Zulu (1879) – o produto mais forte do Mfcane. A anexação do Transvaal, porém, resultou em maiores problemas: decorridos quatro anos, os africânderes se revoltaram e expulsaram os britânicos após a batalha de Majuba Hill 52 (1881) – ainda que tenha sido muito pequena (menos de 100 mortos), ela se tornou a Eerste Vryheidsoorlog – a Primeira Guerra pela Liberdade (ou Primeira Guerra AngloBôer), símbolo do nacionalismo africânder e palco do surgimento de Paul Kruger, o presidente africânder que liderou uma forte oposição aos britânicos (LE MAY, 1971, p. 28-29). Paralelamente na colônia do Cabo, o primeiro-ministro era um dos grandes apoiadores do imperialismo britânico: Cecil Rhodes. Magnata das minas de diamante, Rhodes buscou impossibilitar a expansão territorial dos africânderes proclamando o protetorado de Bechuanaland (atual Botsuana) em 1885; ocupando o norte do rio Limpopo, através da British South Africa Company, formando a Rhodesia (atual Zimbábue) em 1891 e anexando as últimas porções de terra com acesso ao mar antes da colônia portuguesa de Moçambique; de forma que os africânderes ficaram completamente cercados pelos britânicos. Em 1895, alguns dos Uitlanders51 começaram a conspirar contra o governo de Paul Kruger e receberam suporte de Cecil Rhodes e da British South Africa Company, de modo que tentaram invadir o Transvaal para reanexá-lo. Entretanto, os conspiradores não souberam manter o sigilo e o evento, conhecido como The Jameson Raid, foi um fracasso, mas serviu para aumentar as rivalidades entre africânderes e britânicos (LE MAY, 1971, p. 32; THOMPSON, 2001, p. 139). Além disso, as minas de ouro concederam grandes vantagens econômicas às repúblicas africânderes, algo que as possibilitou fazer alianças estratégicas com outras nações, como a Alemanha imperial (presente na atual Namíbia). Por fim, o desgosto das elites africânderes, tradicionalmente rurais, pelo capitalismo industrial levaram muitos donos de minas a desejarem uma nova administração (STAPLETON, 2010, p. 86). Essa combinação de fatores levou à guerra sul-africana (ou Segunda Guerra Anglo-Bôer) em outubro de 1899. Fortalecidas pelo dinheiro da mineração e armadas com armamentos alemães, as repúblicas africânderes lançaram um ataque preventivo antes que os britânicos pudessem levar seus exércitos para a região. Dentre a população, muitos acreditavam que a guerra era necessária para preservar a sua independência, enquanto outros acreditavam que o ouro era uma dádiva divina e a guerra levaria à formação de uma grande República Bôer em toda a África do Sul. 51 Forma como os africânderes chamavam os imigrantes oriundos de várias partes do mundo em busca do ouro. 53 Alguns pontos sobre o conflito devem ser elencados: apesar da opinião pública europeia e norte-americana favorecer as repúblicas bôeres, nenhum governo estrangeiro ofereceu suporte. Nesse caso, a superioridade numérica dos britânicos era enorme: em toda a guerra 450.000 homens lutaram pelo lado britânico, enquanto os bôeres contaram com no máximo 88.000, contando tropas de voluntários estrangeiros. Além disso, como Portugal concordou em proibir a passagem de armamentos pelo Moçambique, as repúblicas bôeres (que então eram cercadas pelos britânicos e com uma pequena fronteira com Moçambique) ficaram isoladas e impossibilitadas de receberam mais armamentos (THOMPSON, 2001, p. 89). Apesar da imensa superioridade numérica, os britânicos tiveram grandes problemas na sua maior guerra desde as guerras napoleônicas (THOMPSON, 2001, p. 115). Ainda que ambas as repúblicas tenham sido conquistadas e anexadas ainda em 1900, uma guerra de guerrilha se prolongaria até 1902. É durante esse período que os britânicos vão remover a população civil africânder e colocar em campos de concentração, e cerca de 28 mil africânderes, a maioria crianças, e 20 mil presidiários africanos morreram por causa de doenças dentro desses campos (STAPLETON, 2010, p. 86-107). Com ambos os lados desgastados pela guerra, mas os africânderes possuindo no máximo 15 mil homens e enfrentando 250 mil britânicos, os comandantes bôeres não viram alternativa além da rendição a fim de preservar a nação africâner, já que não puderam garantir a independência política (MARX, 1998, p. 67-68). Após a unificação do território e de se tornar um Domínio do Império Britânico, a África do Sul se manteve sem uma marinha própria (apenas fornecia apoio para a permanência da marinha britânica na região); mas era responsável pela sua defesa terrestre e adotou, até onde era possível em vista do orçamento, um modelo suíço de sistema militar, onde todos os homens adultos faziam parte de uma reserva em tempo parcial, podendo ser rapidamente mobilizados quando necessário. Quando a Primeira Guerra Mundial começou, a África do Sul, bem como outros domínios britânicos, apoiaram os britânicos contra os alemães. Entretanto, alguns africânderes demonstravam simpatia pelos alemães e eram contrários ao apoio para os britânicos, de forma que começaram a planejar uma rebelião. Quando as forças sulafricanas marcharam para a conquista do Sudoeste Africano Alemão (atual Namíbia), a revolta africânder também começou e eles se juntaram às forças alemãs. Isso não foi, porém, suficiente para uma grande oposição às forças sul-africanas que, em 1915, 54 conquistaram o território alemão e acabaram com a revolta. Ao término dos conflitos, a administração Botha, preocupada com o interesse nacional, perdoou os membros da revolta, enquanto que o território do Sudoeste Africano se tornaria um mandato da Liga das Nações, sob administração sul-africana (STAPLETON, 2010, p. 116-122). A eclosão da Segunda Guerra Mundial causou divisões profundas entre os africânderes. O sentimento predominante era de grande consternação pela aliança da África do Sul com os britânicos em mais uma guerra europeia, mas os africânderes reagiram de formas muito diferenciadas. Enquanto muitos se voluntariaram para lutar na guerra, outros se aproveitaram para difundir ideais nazistas (THOMPSON, 2001, p. 183-184). Apesar dessa divisão e com o aval do Parlamento (80 a favor e 67 contra), as forças sul-africanas combateram do lado aliado nas campanhas da África oriental (na expulsão dos italianos da Etiópia), do norte da África, do Madagascar (sob o regime colaboracionista de Vichy) e da invasão da Itália. Além disso, a África do Sul deu uma importante contribuição à causa aliada pela sua posição estratégica como rota de suprimento para as forças aliadas no norte da África e Ásia, já que o Mediterrâneo estava fechado pelo Eixo (THOMPSON, 2001, p. 177). E como aponta Stapleton (2010, p. 136-151), a partir de 1945 a África do Sul já possuía sua própria marinha e força aérea, e a participação nos conflitos tornou o país uma potência continental emergente distinta do Reino Unido – entretanto, diversos fatores internos limitaram consideravelmente a capacidade sul-africana de projeção militar, como a dificuldade dos negros de servirem nas forças. O resultado da guerra e a propaganda antirracista dos Aliados, evidente na Carta do Atlântico, contrariavam a opinião pública africânder de que o Estado deveria garantir a supremacia branca. Essa incongruência levou a uma intensificação do nacionalismo africânder, que culminou com a ascensão do Partido Nacionalista Africânder e início do Apartheid. Assim, como forma de garantir o controle branco do Estado, o aparelho coercitivo do Estado sul-africano foi drasticamente ampliado através de várias leis que permitiam à polícia prender as pessoas sem julgamento e mantê-las indefinidamente em confinamento solitário, sem visitas e sem revelar a sua identidade. O governo também podia banir e extinguir quaisquer tipos de organizações e possuía ferramentas poderosas para a aplicação do Apartheid: poucos negros recebiam autorização para portar armas de fogo, enquanto a maioria dos brancos possuíam armas de fogo e experiência com elas; a polícia era bem treinada e equipada, mas como era pequena em proporção à população, 55 o governo nacionalista iniciou um programa maciço de militarização 52, de forma que as Forças Armadas sul-africanas eram, de longe, as melhores ao sul do Saara (THOMPSON, 2001, p. 199-200). 4.1.2. Capital Até as descobertas de ouro e diamantes, os dois Estados africânderes53 estavam na periferia da economia capitalista global. As comunicações eram realizadas através de mensageiros e as estradas eram trilhas desgastadas pela passagem de pessoas, animais e carroças. E, como para os africanos, a riqueza dos africânderes era em rebanhos, ainda que diferentemente dos primeiros, eles possuíam terras individualmente (THOMPSON, 2001, p. 101). Além disso, ambas as repúblicas eram dependentes do comércio com a colônia do Cabo para a obtenção de armas e munições (WORDEN, 2012, p. 21). A colônia do Cabo, por sua vez, também era de pouca significância econômica para a economia britânica. De forma geral, o total das exportações representava uma pequena parte do comércio externo do império britânico, de forma que poucos britânicos imigraram para a colônia, poucos investimentos britânicos eram feitos nela e poucos recursos eram atribuídos para sua administração (THOMPSON, 2001, p. 53). A colônia de Natal, ao se tornar distinta da colônia do Cabo em 1856, desenvolveu uma indústria açucareira. Entretanto, devido às medíocres condições de trabalho e aos baixos salários, os trabalhadores africanos não forneceram essa mão de obra, tão necessária para o ramo açucareiro, e o governador da colônia importou trabalhadores indianos. A partir de então, a indústria açucareira se desenvolveu e se tornou o produto de exportação mais importante da colônia (BHEBE, 2010, p. 183). 52 Em meados de 1970, as Forças de Defesa da África do Sul (SADF) eram majoritariamente ocupadas por africânderes, sendo eles 85% do Exército, 75% da Aeronáutica e 50% da marinha. Não-brancos eram raramente empregados, mas poderiam ser alistados, sempre em funções desarmadas, como cozinheiros e motoristas. Entretanto, teorias de contra-insurgência, elaboradas por norte-americanos e franceses no Vietnam e Argélia, apontavam que insurgentes bem motivados poderiam derrotar poderosas forças militares convencionais; de modo que as insurgências só poderiam ser vencidas através de meios nãomilitares (a conquista de “corações e mentes” da população). Nesse contexto, soldados nativos com conhecimento da cultura local eram valiosos; além disso, no caso da África do Sul, manter uma força de defesa apenas de brancos (sendo eles minoria da população) e a perspectiva de uma guerra convencional contra Estados vizinhos tornou o alistamento de soldados negros algo desejável; de forma que a partir de então regimentos de africanos, coloured e indianos começaram a ser montados – na segunda metade de 1980, os brancos já eram apenas 60% da força (STAPLETON, 2010, p. 153-156). 53 Divergências entre os africânderes durante a Grande Trekk levaram ao surgimento de dois Estados: O Estado Livre de Oranje e a República do Transvaal. 56 A descoberta de ouro e diamantes teve um impacto gigantesco para a África austral, já que a migração de trabalhadores para as minas gerou um forte surto de urbanização. Foi assim que surgiram cidades que até então não existiam, como Kimberley (cidade dos diamantes), e outras viram sua população aumentar drasticamente, como Johannesburgo (cidade do ouro) que era então um pequeno vilarejo e tornou-se uma cidade de 166 mil habitantes em 1900. Além disso, a malha ferroviária passou de 110 km em 1869 para 4190 km em 1905; e a agricultura e o setor manufatureiro passaram por uma grande expansão em decorrência do crescimento demográfico e da urbanização. Como aponta Kaniki (2010, p. 477-482), o país passou por uma verdadeira revolução econômica após as descobertas de ouro; e com o desenvolvimento das indústrias, a economia sul-africana atingiu um alto grau de diversificação. A indústria do ouro, ainda a espinha da economia sul-africana, gerou uma grande contribuição ao orçamento nacional e fornecia câmbio suficiente para a importação de maquinários e combustível. Todavia, a descoberta do ouro no Transvaal foi uma dádiva e um castigo para os africânderes: enquanto a indústria da mineração levou a uma rápida expansão da economia e colocou as repúblicas bôeres como a força econômica da região; o caráter cosmopolita das minas, com imigrantes oriundos de várias partes do mundo (chamados pelos africânderes como Uitlanders), era visto como uma ameaça à independência africâner e o desenvolvimento de um capitalismo industrial era mal visto pelas elites africânderes, de raiz agrícola (THOMPSON, 2001, p. 136). As novas oportunidades e condições de vida, entretanto, preservaram e reforçaram as históricas divisões raciais. A divisão da força de trabalho, com brancos ocupando cargos especializados ou de supervisão e recebendo altos salários, enquanto os negros eram mal pagos e submetidos às péssimas condições de trabalho, foi fundamental para a construção de uma sociedade industrial nos mesmos moldes da colonial (THOMPSON, 2001, p. 112). Economicamente, a África do Sul foi beneficiada pela Primeira e Segunda Guerra Mundial, gerando um grande estímulo para as indústrias de alimentos e manufaturados. Desde a formação da União em 1910 até o término da Segunda Guerra Mundial, a renda nacional do país aumentou em mais de três vezes em termos reais (THOMPSON, 2001, p. 154), algo que foi fundamental para a formação de uma ordem regional centrada na indústria e infraestrutura sul-africana, o que demonstra a liderança do país na África austral. Como resultados desse grande crescimento econômico, os 57 brancos pobres desapareceram e os africânderes conquistaram posições importantes na economia. Os negros, porém, não puderam colher os frutos desse crescimento: completamente subordinados aos brancos pelas leis segregacionistas, os negros costumavam receber salários mais de 10 vezes menor que dos brancos (THOMPSON, 2001, p. 156-157). 4.1.3. Legitimidade Em 1910, seguindo o antigo interesse de formar uma unidade, as colônias do Cabo e de Natal, além das antigas repúblicas africânderes, se uniram na União da África do Sul, um domínio autônomo do Império Britânico. Segundo Thompson (2001, p. 150151), a Constituição dessa União continha quatro princípios de destaque e que seriam de grande importância no decorrer da história: (1) seguiu o modelo britânico de Estado unitário com soberania parlamentar; (2) cada antiga colônia manteve regras diferentes de direito ao voto, sendo que nas antigas repúblicas africânderes apenas os homens brancos tinham esse direito; (3) em intervalos regulares de tempo, comissões judiciais deveriam dividir o território do país em zonas eleitorais para as votações da Câmera Baixa do Parlamento mantendo aproximadamente o mesmo número de votantes entre elas54; e (4) inglês e holandês (posteriormente trocada para africânder) seriam os idiomas oficiais do país. Assim, em 31 de maio de 1910, oito anos após depor armas como líder das forças militares das repúblicas africânderes, Louis Botha 55 se tornou o primeiro-ministro da recém-formada União da África do Sul. A partir de então, apesar de grandes divisões entre os próprios africânderes e entre africânderes e britânicos, as sucessivas administrações sul-africanas se preocupariam com a consolidação do poder dos brancos no novo país. Diversas leis foram criadas com o propósito de reforçar o poder dos brancos e tornar os negros uma mão de obra barata, entre elas o Mines and Work Act (1911, emendado em 1926), Natives’ Land Act (1913), Apprenticeship Act (1922), Natives Urban Act (1923), Native 54 Segundo Thompson, isso foi fundamental para a formação do governo de Malan e início do Apartheid em 1948 (2001, p. 151) 55 Como aponta Anthony Marx (1998, p. 74), o fato de os africânderes terem tomado o controle político após a derrota na guerra anglo-bôer é irônico: até a guerra, os africânderes eram bastante divididos, e agora o Estado era governado por um dos líderes dos derrotados. Na comparação de A. Marx, seria como se um sulista fosse eleito presidente dos Estados Unidos após a Guerra Civil e impusesse as leis segregacionistas de Jim Crow nacionalmente. 58 Administration Act (1927) e o Native Service Contract Act (1932). Dentre essas, a Natives’ Land Act é a de maior destaque, já que reservava 88% das terras para uso exclusivo dos brancos e os 12% restantes seriam destinados para algo como “reservas indígenas” para os africanos (KANIKI, 2010, p. 477). Apesar das principais batalhas da Segunda Guerra Mundial terem ocorrido longe da África do Sul, o conflito gerou grandes transformações dentro do país. Devido à expansão da indústria de manufaturados e da mineração de carvão, houve uma intensa urbanização; e como muitos trabalhadores brancos foram para a guerra lutar contra a Alemanha, eles foram substituídos pela mão de obra negra, o que gerou um aumento de 47% da população negra que morava nas cidades56. Como aponta Thompson (2001, p. 178), em 1946, 76% da população branca era urbanizada, assim como 70% dos indianos, 62% Coloured e 24% dos africanos – porém, em quantidade absoluta, eram mais africanos habitando em cidades do que brancos. Em resposta a essas novas pressões internas e externas no período da guerra57, o governo fez algumas concessões e a “Color Bar”58 foi aliviada, além de melhoras na educação e aumento dos salários dos africanos (THOMPSON, 2001, p. 181). Os africânderes, porém, viram essas reformas com receio de que os falantes de inglês estavam quebrando o pacto de união entre brancos, criado na guerra Anglo-Bôer, e passaram a temer também pela cada vez mais numerosa presença dos africanos (MARX, 1998, p. 77). Esses fatores levaram o nacionalismo africânder a ressurgir com grande força e a uma consequente e inesperada vitória do National Party59 nas eleições de 1948. A partir de então, o National Party usou o controle do governo para perseguir os objetivos da supremacia racial branca e, principalmente, do nacionalismo africânder. Segundo Thompson (2001, p. 190), quatro ideias serviram de base para o governo do partido, sendo elas (1) a concepção de que a população sul-africana era dividida entre quatro grandes grupos raciais (brancos, coloured, indianos e africanos); (2) os brancos, 56 Como nem governo, nem as autoridades urbanas e nem as indústrias providenciaram moradia para a migração urbana dos negros, os africanos construíram suas moradias com sacos, madeira, ferro ondulado e papelão nos arredores das cidades. O mais famoso desses assentamentos foi construídos no sudoeste de Johannesburg, Soweto (THOMPSON, 2001, p. 178). 57 Como coloca Thompson (2001, p. 181), a propaganda dos Aliados, incluindo a Carta do Atlântico, era antirracista. 58 Color Bar eram os limites que funcionários negros poderiam alcançar na profissão, de modo que os brancos sempre teriam melhores cargos do que os negros. 59 Partido nacionalista africânder fundado por Hertzog logo após a formação da União. A partir da década de 1930, se fortaleceu com o suporte de várias organizações culturais e econômicas africânderes, em especial o Broederbond (THOMPSON, 2001, p. 162) 59 como a raça civilizada, deveriam ter controle absoluto do Estado; (3) os interesses dos brancos deveriam prevalecer ante os interesses dos africanos, de forma que o Estado não era obrigado a providenciar condições iguais para as diferentes raças e; por fim, (4) o grupo racial branco (falantes do inglês e africânderes) formava uma única nação, enquanto que os africanos permaneciam a várias nações distintas. Dessa forma, a Population Registration Act de 1950 fundamentou o Apartheid estabelecendo distinção racial a partir da aparência e da reputação, enquanto outras leis proibiram relações interraciais e reforçaram a segregação residencial; além delas, outras leis surgiram para garantir a segregação racial em locais públicos e para a educação. E devido à inconsistência de dominação racial, até mesmo uma potencial aliança com os “coloured”, algo que até então recebia o apoio dos nacionalistas africânderes, foi abandonada e essa categoria perdeu o direito ao voto60. Além disso, o governo também providenciou meios de tornar as suas instituições mais africânderes, nomeando africânderes para cargos importantes no serviço civil, nas Forças Armadas, na polícia e nas corporações do Estado. Revoltas populares foram comuns na década de 1940 na África do Sul, principalmente em função do aumento da urbanização dos negros. Mas, como aponta Worden (2012, p. 108-109), a ascensão do National Party ao governo impulsionou de forma sem precedentes os protestos durante a década de 1950. Dentre esses protestos, o massacre de Sharpeville, em 1960, chamou a atenção dos demais países para o Apartheid e vários pedidos de sanções econômicas contra a África do Sul foram feitos na ONU (todos vetados pelo Reino Unido e Estados Unidos, já que ambos possuíam grandes investimentos na África do Sul). Além disso, o evento colaborou para a saída da África do Sul da Commonwealth e, como aponta Worden (2012, p. 116-117), levou a África do Sul para um progressivo isolacionismo das tendências políticas do continente africano e do mundo em geral pelas décadas posteriores. Entretanto, Apartheid, uma palavra que era um slogan político até então, se tornou um engenhoso sistema de engenharia social sob o governo de Verwoerd (19581966). Isso se deu através do “Separate Development”, cuja política fundamental foi a criação de pequenas “nações independentes” chamadas de Homelands ou Bantustans, de forma que os africanos eram formalmente excluídos da cidadania sul-africana 60 Após várias tentativas e manobras políticas, os direitos de voto dos Coloured foram eliminados em 1956 (THOMPSON, 2001, p. 190-191) 60 (MARX, 1998, p. 79). O governo, então, impôs um rígido controle sobre todos os negros sul-africanos e tentou realocar quase todos eles nesses Homelands, exceto aqueles que os patrões brancos precisavam do trabalho – estima-se que cerca de 3,5 milhões de negros sul-africanos foram realocados entre 1960 e 1983 (THOMPSON, 2001, p. 194). A descoberta de ouro no Transvaal e o consequente desenvolvimento da economia local foram fatores incentivadores para a unificação do território, mas o Estado sul-africano somente foi consolidado após a guerra Anglo-Bôer. Ao opor as duas maiores forças dentro da África do Sul na virada do século XX, o conflito pode ser interpretado tanto como uma fracassada guerra de independência dos africânderes quanto uma guerra civil pela hegemonia das leis e das instituições do país (MARX, 1998, p. 69). Entretanto, apesar de uma custosa vitória britânica, o resultado do conflito foi uma união entre africânderes e britânicos com a finalidade de manter a supremacia branca em um território onde a maioria da população era negra. Tal aliança entre os antigos rivais fica evidente quando Louis Botha, comandante militar dos africânderes na guerra, foi eleito o primeiro Primeiro-ministro do Estado. Com isso, percebe-se que o sistema nacional sul-africano seguiu uma lógica semelhante à proposta por Gilpin para explicar as mudanças do sistema internacional. Para o autor, a estabilidade do sistema é garantida se nenhum Estado acredita ser vantajoso mudá-lo (2009, p. 10), da mesma forma foi com o Estado sul-africano, onde nenhum dos lados acreditava que seria vantajoso alterá-lo novamente; isso explica porque africânderes e britânicos, apesar de grandes rivalidades, permaneceram unidos (com exceção de poucas revoltas muito pequenas). A Segunda Guerra Mundial, decisiva para uma mudança na governança do sistema internacional, instituiu novas regras e costumes que eram contrários ao pensamento africânder. Enquanto o pensamento norte-americano, a nova hegemonia, pregava contra o racismo e em defesa da independência dos países africanos; os africânderes responderam às novas ameaças à supremacia branca na África do Sul com ampliação da coerção – começaria assim o Apartheid. 61 4.2. Guerras de Fronteira sul-africana e fim do Apartheid 4.2.1. Coerção A resistência ao governo era feita, inicialmente, através de boicotes, greves e desobediência civil, seguindo táticas preconizadas pelo Programme of Action de 194961, um documento produzido pelo African National Congress (ANC)62. Dentre esses protestos, o massacre de Sharpeville, em 1960, se tornou um dramático turning point na história da África do Sul: internamente, uma série de greves se espalhou pelo país, de forma que o governo declarou Estado de Emergência, deteve os líderes do ANC e PAC63 e baniu ambas as organizações; além disso, o massacre mostrou as falhas da resistência pacífica e fez com que novos métodos de oposição ao Apartheid, mais violentos, começassem a ser utilizados. O isolamento internacional da África do Sul, causado principalmente após o massacre de Sharpeville, levou o país a estabelecer o Armaments Development and Production Corporation (Armscor) em 1968 para facilitar a manufatura local de armas, equipamentos militares e munições. Nas décadas de 70 e 80, a África do Sul já se tornaria a líder mundial em designer e produção de veículos protegidos de minas (STAPLETON, 2010, p. 158). A partir do processo de descolonização da África, os novos regimes africanos independentes fundaram a Organização da Unidade Africana e instituíram o Comitê de Libertação, com sede em Dar Es Salaam (Tanzânia) – esse comitê estabeleceu campos de refugiados sul-africanos, oferecendo também educação e treinamento militar aos refugiados. Entretanto, como aponta Thompson (2001, p. 213-215), apesar dos novos países africanos desejarem a erradicação do Apartheid, faltavam meios de fazer isso – os regimes ainda eram muito fracos, preocupados com a própria sobrevivência e muitas vezes dependentes da economia sul-africana; e mesmo com forças combinadas não poderiam se equiparar à força militar da África do Sul. Assim, até 1978, a oposição internacional ao Apartheid, forte na retórica, ainda era fraca em substância. 61 Essa foi o ponto decisivo do fim das tentativas de conciliação tentada nas décadas anteriores. O Programme of Action conclamava pela libertação nacional e independência política da dominação branca através dos boicotes, das greves e da desobediência civil (WORDEN, 2012, p. 95). 62 Criada em 1912 como forma de oferecer oposição à hegemonia branca, a organização de âmbito nacional conseguiu sobreviver a obstrução oficial e se tornou um formidável instrumento de resistência na segunda metade do século XX. Com a democratização, a organização se tornou um partido político. 63 Dissidentes africanistas do CNA, sob a liderança de Sobukwe, fundaram o Pan-Africanist Congress em 1959 (THOMPSON, 2001, p. 210). 62 Apesar de toda a militarização africânder e de alguns sucessos na sua luta contra movimentos sociais dos negros durante a década de 1960, inclusive com o aprisionamento das principais lideranças negras (como Nelson Mandela), a consciência negra conseguiu se difundir pela sociedade e o ano de 1973 marcou o início de uma nova onda de greves e protestos. Em 16 de junho de 1976, milhares de crianças negras protestaram contra o ensino do idioma africânder (visto por eles como o idioma do opressor) em Soweto. O governo reagiu brutalmente em novo massacre, onde se estima que 575 pessoas morreram (THOMPSON, 2001, p. 212-213). Como resultado, milhares de jovens negros sul-africanos fugiram do país e receberam treinamento militar em Tanzânia e Angola. Pressões internas e externas começaram a pressionar duramente o regime do Apartheid, de modo que algumas reformas foram feitas com a intenção de se adaptar às novas situações. Mas além das reformas, a política do governo Botha (1978-1989) pregava a ideia de que a África do Sul se tornou alvo de um “ataque total” por revolucionários de dentro e fora do país, e que eles deveriam ser combatidos com a “total strategy” – uma combinação eficiente dos meios de segurança com políticas reformistas (WORDEN, 2012, p. 133). Além dos aspectos internos, cada vez mais problemáticos com aumento da resistência, Botha procurou neutralizar a oposição de países potencialmente hostis na África austral através da criação de uma “constelação de Estados” ligados à África do Sul pelo comércio, algo que foi frustrado pela formação dos Estados da Linha de Frente64. O Estado sul-africano começou então a realizar invasões militares acompanhadas de suporte indireto a movimentos dissidentes armados (Renamo em Moçambique e Unita em Angola) e incursões em Lesoto, Suazilândia, Zimbábue e Botsuana com a finalidade de desestabilizar a região. Além disso, seguindo um primeiro teste nuclear no Atlântico Sul em 1977, a África do Sul chegou a produzir seis ou sete pequenas bombas nucleares (STAPLETON, 2010, p. 158). Entretanto, as reformas promovidas por Botha não convenceram e ainda facilitaram a resistência. Por toda a década de 1980, então, houve uma escalada na violência, com aumento da resistência (sabotagem, explosões) e de protestos; e a partir de 1985, esses movimentos estavam quase conseguindo o seu objetivo de tornar o país ingovernável (BEINART, 2001, p. 259). Na tentativa de reestabelecer o controle sobre a república, o governo Botha estabeleceu o estado de emergência e ampliou 64 Estados vizinhos à África do Sul e governados por negros (STAPLETON, 2010, p. 187) 63 consideravelmente a repressão e os gastos com defesa – nas palavras de Thompson (2001, p. 235, tradução nossa), “o governo tinha recorrido à tirania legalizada” 65. Sem resultados positivos na repressão interna e na Guerra de Fronteira 66, o governo do sucessor de Botha, F. W. de Klerk, alterou a política repressiva para uma conciliatória. Assim, com o início da transição, as Forças Armadas sul-africanas (SADF) perderam uma considerável influência política. E após o fim do Apartheid, como aponta Stapleton (2010, p. 192-193), o papel das forças militares sul-africanas tornou-se um tanto contraditório: com tantos problemas internos e a falta de ameaças externas, os gastos com defesa não são uma prioridade do país; mas como uma potência regional com histórico de luta contra a opressão, torna-se um dever da África do Sul ajudar a promover a democracia e os Direitos Humanos em outros países da África, algo que se torna uma obrigação devido aos danos causados pelo Apartheid aos países vizinhos. E de fato, a África do Sul, ao sair do isolacionismo, tem contribuído em várias missões internacionais tornando-se um membro importante da SADC e UA67, organizações que são intensamente envolvidas em problemas de segurança internacional, resoluções de conflitos e manutenção da paz. 4.2.2. Capital A partir do final da década de 1970, vários fatores internos e externos começaram a ameaçar o regime de Apartheid68. Internamente, a própria indústria exigia trabalhadores permanentes e semi qualificados, de forma que o Apartheid não colaborava mais com as necessidades do capitalismo sul-africano (WORDEN, 2012, p. 132). O alto custo de manutenção do regime; o mau uso dos recursos humanos; uma indústria que não era competitiva internacionalmente e a perda de investimentos externos (devido às sanções) prejudicaram fortemente a economia sul-africana, que entrou em um período de forte recessão. Além disso, como aponta Thompson (2001, p. 65 “The government had resorted to legalized tyranny”. A tentativa sul-africana de se garantir como uma potência regional na África austral teve um custo financeiro e humano muito alto. Em 1988 as forças sul-africanas sofreram muitas perdas em combate contra as forças combinadas de Angola (MPLA) e Cuba. O acordo de paz marcou o fim do controle sulafricano da Namíbia e a retirada das tropas sul-africanas de Angola (THOMPSON, 2001, p. 239-240). 67 Southern African Development Community e União Africana. 68 Concebidas como elemento dissuasor, a África do Sul conduziu um teste nuclear no Atlântico sul em 1977 e chegou a produzir sete pequenas bombas atômicas durante a década de 1980 (STAPLETON, 2010, p. 158) 66 64 221-222), a população negra estava crescendo em uma taxa muito maior que a branca, de modo que a proporção de brancos estava em rápido declínio. Em uma tentativa do regime de se adequar às pressões, foram feitas algumas reformas, mas elas surtiram efeitos contrários. A economia não conseguiu recuperar o crescimento; inflação e desemprego aumentaram e o padrão de vida de todos os sul-africanos (incluindo os negros) reduziu. Assim, a recessão econômica e os altos gastos do governo levaram o Estado à bancarrota em 1989, momento em que se deu início às negociações para a transição de poder. Desde então a economia sul-africana tem tido grandes problemas para se recuperar. O histórico de uma força de trabalho mal treinada, com baixa produtividade e somada a leis trabalhistas que garantem altos salários, deixou a manufatura local sem competitividade no mercado internacional (WORDEN, 2012, p. 157-158); e a ausência de mão de obra qualificada cria grandes transtornos para indústrias de ponta, algo que a educação do país não consegue reverter porque sofre com condições precárias (THOMPSON, 2001, p. 284-285). Além disso, altos índices de desemprego estimulam a enorme violência na sociedade sul-africana (com altos índices de assassinatos, roubos e estupros), algo que é considerado por Worden como uma das causas que afastam os investimentos externos no país (2012, p. 162). Outros graves problemas que assolam sucessivos governos sul-africanos são a saúde e a corrupção: além de uma séria deterioração na qualidade dos hospitais públicos, a África do Sul tem um dos mais altos índices de contaminação por HIV no mundo – em 2009, mais de cinco milhões de pessoas portavam o vírus, o que corresponde a cerca de 17% da população total 69 (WORDEN, 2012, p. 161). A corrupção, apesar de não ser uma novidade na África do Sul, aumentou consideravelmente com a ascensão da nova elite política negra – alguns estudiosos apontam que isso acontece porque a nova elite tem experiências recentes de extrema pobreza e vê no Estado uma fonte para o enriquecimento próprio (THOMPSON, 2001, p. 287). 69 O presidente Thabo Mbeki, sucessor de Mandela, alegou publicamente que a AIDS era uma doença ocidental, que os relatórios alarmistas refletiam estereótipos racistas sobre a sexualidade africana e que os remédios de combate ao vírus eram possivelmente tóxicos. Apesar de não ser um cientista, Mbeki entrou na controvérsia sobre a causa da AIDS, onde uma pequena minoria de cientistas apontava outras causas, como má nutrição (THOMPSON, 2001, p. 294; WORDEN, 2012, p. 161) 65 2.3. Legitimidade Na segunda metade do século XX, a África passou pelo “Wind of Change” 70- o processo de descolonização e independência política dos países africanos. A partir da década de 60, o Reino Unido passou o poder para nacionalistas africanos na Tanzânia, Uganda, Quênia, Malaui, Rodésia do Norte (atual Zâmbia), Lesoto, Botsuana e Suazilândia. As exceções, dentro da África austral, foram a Rodésia (atual Zimbábue), onde os colonos brancos declararam uma independência não reconhecida temendo que o poder fosse para os negros, e as colônias portuguesas de Moçambique e Angola – nestes países a transição de poder foi problemática e à base de conflito. Já na década de 1970, a ONU, contando com mais membros africanos e asiáticos, passou a dar mais atenção para o racismo na África do Sul; de forma que e a Corte Internacional de Justiça julgou o controle sul-africano da Namíbia como ilegal, a Assembleia Geral da ONU declarou o Apartheid como um crime contra a humanidade e o Conselho de Segurança votou unanimemente um embargo de armas contra a África do Sul. O governo sul-africano, por sua vez, conseguiu responder às alterações na ordem internacional ao comparar os Homelands com a independência política dos países africanos e, principalmente, colocando a África do Sul como uma nação estável e indispensável na luta contra o comunismo. Ao se aproveitarem dos temores europeus e norte-americanos da Guerra Fria e apontarem os movimentos negros (como o CNA) como comunistas, o governo nacionalista africânder conseguia desviar a atenção dos seus problemas internos. Além disso, outro motivo que oferecia suporte à manutenção do Apartheid era a atratividade da economia sul-africana aos investimentos norteamericanos e europeus, de forma que as potências ocidentais relutavam em perturbar o status quo na África do Sul. Entretanto, a tentativa de caracterizar os Homelands como nações africanas independentes falhou miseravelmente, já que nenhum outro país reconheceu a independência dessas “nações”; a África do Sul e a Rodésia se tornaram anomalias após a descolonização (e na Rodésia a minoria branca já estava perdendo o controle na guerra civil contra as guerrilhas africanas); a discriminação racial foi eliminada das leis norte- 70 Discurso do Primeiro Ministro britânico Harold Macmillan que deixou claro que o Reino Unido não apoiaria a África do Sul caso ela tentasse resistir ao nacionalismo africano (THOMPSON, 2001, p. 213) 66 americanas e muitos ativistas negros dos Estados Unidos abraçaram a causa dos negros sul-africanos. O resultado dessas pressões internas e externas foi uma reformulação do Apartheid, de forma que as duras medidas segregacionistas do período de Verwoerd foram suavizadas e uma reforma na Constituição criou um parlamento de três câmeras separadas, sendo uma para brancas, outra para coloureds e outra para indianos. Mas como salienta Thompson (2001, p 224), essas alterações foram complexas tentativas de se adaptar às novas circunstâncias sem sacrificar a supremacia africânder. Como as reformas do Apartheid intensificaram ainda mais os movimentos de resistência, a partir de 1989 o governo sul-africano mudou completamente sua trajetória. Vários fatores foram responsáveis pela mudança de uma política repressiva em estado de emergência para uma conciliatória: (1) a demografia apontava que a proporção de brancos estava em declínio, do pico de 21% em 1936 já estava reduzida a 15% em 1985 – e a estimativa é que em 2005 seriam apenas 10% (o que de fato aconteceu em 1999); (2) a economia em profunda recessão; (3) apesar das políticas segregacionistas, brancos e negros sul-africanos eram extremamente interdependentes; e (4) eventos internacionais, como a queda do muro de Berlim e a colaboração entre comunistas e capitalistas na libertação da Namíbia encerraram o suporte dos temores da guerra fria (THOMPSON, 2001, p. 241-243). Assim, no início de 1990, em um ato inesperado, Frederik de Klerk (sucessor de Botha) retirou o banimento do CNA, PAC e do Partido Comunista sul-africano e libertou diversos prisioneiros políticos, incluindo Nelson Mandela71. Em 1991, várias leis fundamentais do Apartheid foram revogadas e o governo entrou em negociações formais com uma série de partes, incluindo o CNA72 (WORDEN, 2012, p. 147). As negociações não foram um processo fácil. Durante a construção de uma nova constituição, o governo de Klerk buscou proteger os interesses da população branca tentando colocar obstáculos constitucionais para evitar a transição de uma dominação branca para uma dominação negra, mas Mandela e o CNA não aceitaram. Enquanto 71 Mandela fez parte de uma nova geração de líderes do CNA, grupo este que assumiu a organização logo após a ascensão do National Party. Entretanto, durante a década de 60, Mandela foi preso e condenado a prisão perpétua em Robben Island – o presídio de segurança máxima da África do Sul destinado a prisioneiros políticos. 72 Em julho de 1991, o CNA fez a sua primeira conferência na África do Sul depois de trinta anos. O encontro de 2.244 delegados teve por objetivo transformar o movimento ilegal e secreto em um partido de massa com uma gestão mais ampla e democrática (THOMPSON, 2001, p. 251). 67 isso, a violência não cessou e em certas regiões, como KwaZulu, ela se intensificou. Além disso, de Klerk e Mandela criaram grande antipatia entre si e as negociações foram interrompidas por algum tempo após alguns combates, de forma que só retornaram porque a África do Sul estava beirando à anarquia, com derramamentos de sangue ocorrendo continuamente e a economia despencando. Dessa forma, A. Marx (1998, p. 143) compara a necessidade de consenso entre negros e brancos para a preservação do Estado e sua economia com a aliança anglo-bôer feita no início do século XX. Na volta das negociações, porém, a autoridade do governo já estava corroída e Mandela tomou a liderança no processo de transição (THOMPSON, 2001). No final de 1993, o parlamento sul-africano aprovou a legislação necessária para ratificar a Constituição interina feita pelo Fórum Multipartidário, de forma a dar uma continuidade legal entre o velho e o novo regime. Além disso, o parlamento também criou um Conselho Executivo de Transição, que se tornou o governo de facto da África do Sul até as próximas eleições, marcadas para 1994. E somente após muito apelo das lideranças sul-africanas, especialmente de Mandela e de Klerk, as eleições puderam acontecer pacificamente (ainda que repleta de erros) e Mandela foi eleito o primeiro presidente negro de uma nova África do Sul. A ascensão de Mandela à presidência e o fim do Apartheid representam uma enorme transformação para a África do Sul: o novo presidente contou com o apoio imediato de toda a sociedade internacional, o país ingressou na Organização da Unidade Africana e foi readmitido na Commonwealth. Internamente, a ênfase girava em torno da construção de uma nova nação caracterizada por grandes diferenças; a nova bandeira juntou as antigas cores com as do nacionalismo africano e o antigo hino foi incorporado ao hino de libertação Nkosi Sikelela iAfrika (WORDEN, 2012, p. 156). Entretanto, após o fim do entusiasmo que marcou as primeiras eleições livres, ficou evidente que os desafios da África do Sul eram muito maiores do que a criação de uma constituição democrática. Apesar de todos os incentivos promovidos por Mandela em busca de uma união nacional, o legado de um passado dividido não poderia ser facilmente resolvido, séculos de colonialismo e Apartheid criaram uma série de efeitos acumulativos que deixaram o país com graves crises de saúde, educação e segurança. Diferenças econômicas entre brancos e negros continuam destacadas, de forma que a pobreza extrema afeta principalmente os negros, mas gradualmente a divisão da sociedade sul-africana está deixando de se basear em raças para ser dividida por classes. 68 Além disso, ataques xenofóbicos contra imigrantes de outros países africanos têm ocorrido com certa regularidade. Mas, como aponta Thompson (2001, p. 295), apesar da piora de vários aspectos cruciais da sociedade sul-africana depois da transição de poder, o novo regime restaurou a dignidade dos negros sul-africanos; pacificou um país à beira de uma guerra civil; consolidou uma ordem constitucional e manteve a regra da lei; aceitou a existência de uma oposição política (embora muito fraca) e providenciou a milhares de pessoas o acesso à água encanada, eletricidade, telefones e moradias adequadas – o que já são grandes conquistas. Apesar da África do Sul ter se posicionado ao lado vitorioso na Segunda Guerra Mundial, a incompatibilidade entre os ideais do nacionalismo africânder e as novas regras do sistema internacional, governado pelos Estados Unidos, fizeram com que ela, de certa forma, também tivesse perdido na guerra. Assim, enquanto o mundo acompanhava a criação da ONU e o processo de descolonização da África, com o surgimento de dezenas de Estados africanos independentes e governados por negros; a África do Sul sustentava o regime do Apartheid com base na sua força militar e nos temores ocidentais da Guerra Fria – algo que se provou insuficiente, pois o país começou a ficar cada vez mais isolado do sistema internacional, sendo acusado pela ONU por crime contra a humanidade e se tornando alvo de sanções. Dentro do cenário doméstico, o Apartheid exigia altos custos para sua manutenção, excluía a maioria da sua população de direitos básicos; a indústria começou a ser prejudicada pela falta de mão de obra qualificada e a economia entrou em recessão; além disso, com o fortalecimento dos movimentos negros, revoltas populares se tornavam cada vez mais frequentes. Sendo pressionada interna e externamente, a África do Sul buscou, com a esperança de recuperar o seu equilíbrio, garantir a sua dominância do sistema regional na África austral através da coerção. Entretanto, com uma economia em recessão, os altos custos demandados na guerra e as pesadas perdas na luta contra forças cubanas e angolanas; tornou-se insustentável para a África do Sul alcançar uma vitória nesse conflito. Assim, enquanto o regime do Apartheid perdia seu suporte coercitivo, tanto através da independência da Namíbia quanto das revoltas populares que tornavam o país quase ingovernável; o último suporte do regime, a estrutura bipolar do sistema internacional, começava a ruir junto com a queda do Muro de Berlim. A partir de então, as lideranças políticas da África do Sul conseguiram evitar uma guerra civil e iniciaram o processo de transição pacífica que terminou com a 69 eleição de Nelson Mandela para a presidência do país. Nesse momento, a África do Sul conquistou a legitimidade interna e internacional, mas sofreu uma significativa redução das capacidades do Estado e enfrenta, desde então, graves problemas sociais e econômicos decorrentes de um passado opressor, décadas de recessão econômica e guerras perdidas. Ao concluirmos as análises da África do Sul, podemos perceber que o país expandiu expressivamente suas capacidades econômicas e coercitivas após a unificação do território e formação do Estado, tornando-se imediatamente uma potência regional na África austral e, como aponta Castellano (2015, p. 98-99), sem nenhuma ameaça a sua posição em toda a primeira metade do século XX. A mudança sistêmica, ocorrida em função da Segunda Guerra Mundial e a ascensão dos Estados Unidos à liderança do sistema internacional, levou a grandes modificações no continente africano, como a independência política de dezenas de países e a crítica ao racismo. A partir desse momento, as elites africânderes institucionalizam o Apartheid como forma de garantir uma posição dominante no âmbito doméstico, mas passam a ter sua posição de potência regional ameaçada pelos vizinhos. Esta situação terminou com uma tentativa do Estado sul-africano de garantir seu domínio regional enquanto enfrentava sérios conflitos internos. Em meio a derrotas, o Estado sul-africano perdeu suas capacidades coercitivas e de capital, mas conquistou a legitimidade doméstica e internacional com o fim do Apartheid. 70 5. CONCLUSÃO África do Sul e Estados Unidos são dois países que foram colonizados por europeus a partir do século XVII e que passaram por grandes semelhanças desde então, como expansão territorial, escravidão, fortes movimentos nacionalistas, crença em um futuro predestinado, guerra contra a metrópole, industrialização e diversificação da economia, entre outros. Entretanto, atualmente, os países se encontram em situações muito distintas: enquanto os Estados Unidos se tornaram uma superpotência, a África do Sul se tornou uma potência regional com grandes desafios internos. Em frente a isso, o presente trabalho buscou compreender como se formaram os Estados sul-africano e norte-americano e como essas unidades interagiram no sistema internacional. Ao considerarmos as variáveis propostas por Tilly de coerção e capital como as bases da análise da formação do Estado, o primeiro capítulo buscou um aprofundamento da teoria, bem como um entendimento de como o Estado moderno se formou na Europa. Isso foi fundamental para compreender o papel da guerra na formação dos Estados e como se formaram essas estruturas tão capazes a ponto de se espalharem por todo o mundo – nesses casos, porém, os Estados formados pelo colonialismo europeu na América Latina, Ásia e África criaram grandes incongruências com o histórico dos Estados da Europa: o mecanismo de recrutamento e arrecadação de impostos não gerou grandes capacidades estatais. Assim, entendemos também a análise entre Estado e sociedade (legitimidade) como fundamental para um aumento ou redução das capacidades do Estado. Por fim, terminadas as análises de como um Estado se forma e se mantém, buscamos na teoria a forma como os Estados se relacionam e se organizam no sistema internacional. Apesar da anarquia característica, as relações internacionais também possuem regras e são relativamente controladas por uma ou mais potências. Nesse caso, as guerras também possuem um papel fundamental, por ser o principal mecanismo de mudanças no sistema: quando, a partir de mudanças na distribuição do poder, cria-se um desequilíbrio no sistema, uma guerra costuma ser o meio de tornar o sistema equilibrado novamente e assim o lado vencedor passa a ditar as suas novas regras. Após a devida compreensão de como um Estado se forma e como ele interage no sistema internacional, passamos às análises dos casos escolhidos. No segundo capítulo, 71 dividimos a história dos Estados Unidos, desde a sua formação até o momento em que ele se torna uma superpotência, a partir de três conflitos decisivos: a Guerra de Independência, a Guerra Civil e a Segunda Guerra Mundial. Dessa forma, percebemos como a Guerra de Independência e a Guerra de 1812 não apenas concederam a independência política aos Estados Unidos, mas também motivaram a sua industrialização e, principalmente, concederam prestígio ao país – algo que foi fundamental para a sua posterior expansão territorial e alcançar dimensões continentais. Estavam fundadas as bases da potência regional. Entretanto, enquanto os Estados Unidos ampliavam seu acúmulo e concentração de capital e mantinham uma capacidade coercitiva forte o bastante para resolver seus problemas com os nativo-americanos; divisões ideológicas se fortaleceram com a ausência de uma autoridade central forte. A Guerra Civil, nesse caso, foi responsável por uma enorme expansão das capacidades do Estado norte-americano e determinou o grupo que seria responsável pelo seu controle. Apesar disso e das suas enormes capacidades, os Estados Unidos se mantiveram isolados e marginalizados no sistema internacional, situação que só foi alterada após a guerra hispano-americana e a Primeira Guerra Mundial, quando o país funda a sua atuação inter-regional, própria de uma grande potência. Nesse momento, os Estados Unidos já haviam ultrapassado o Reino Unido em vários aspectos, mas ainda não controlavam o sistema internacional; com a entrada do país na Segunda Guerra, finalmente os norte-americanos se tornaram uma superpotência e decretaram suas regras para o sistema internacional através da ONU, do seu poderio militar e do controle da economia mundial, consolidando-se como a superpotência mais capaz. No terceiro capítulo, então, analisamos o mesmo processo de formação do Estado e sua atuação no sistema internacional da África do Sul. Dividimos assim a história da África do Sul, desde a formação do domínio britânico até a atualidade, através de dois conflitos fundamentais: a guerra anglo-bôer e as guerras de fronteira sulafricanas. Assim, podemos perceber que a guerra anglo-bôer foi uma tentativa frustrada de garantir a independência africânder e terminou com uma aliança entre britânicos e africânderes para manter o Estado nas mãos dos brancos. Este pacto político pós-guerra gerou as bases para o surgimento da principal potência regional da África austral. A Segunda Guerra Mundial, apesar de ter sido longe da África do Sul e ter tido uma pequena participação das forças do país, causou grandes transformações internas, já que 72 a vitória dos Aliados instituiu uma nova ordem mundial contra o racismo e a favor da independência política da África e Ásia; isso representou um golpe duro para a ideologia africânder, que respondeu com a institucionalização do Apartheid. Em desacordo com as novas regras do sistema internacional, a África do Sul se tornou bastante isolada, sendo alvo de sanções da ONU e acusada de crimes contra a humanidade. Quando a resistência interna, apoiada pelos recém-formados países africanos, aumentou e a economia sul-africana começou a ser afetada pelas sanções e falta de mão de obra qualificada, a África do Sul tentou garantir o controle da ordem regional da África austral, desejando incluir a força os países da região em sua esfera de influência e terminar com suas ameaças ao regime. Entretanto, sem conquistar sucesso na sua empreitada e com o país se tornando ingovernável (guerra civil), iniciou-se a transição política para dar legitimidade interna e externa ao Estado sul-africano, ao custo de uma grande diminuição das suas capacidades. A África do Sul experimentara, portanto, incentivos semelhantes ao dos Estados Unidos da segunda metade do século XIX: guerra interna e regional, com presença de forças opositoras extrarregionais. Entretanto, dada a baixa legitimidade doméstica e internacional do regime, os solucionou de forma diversa: no conflito interno e regional, o Estado foi derrotado. Ademais, entre os fatores mais importantes que diferenciam os casos avaliados, é importante salientarmos que a África do Sul foi, até a descoberta do ouro e diamantes, um país periférico na economia global, cuja importância era a rota marítima que passa pelo Cabo da Boa Esperança. Isso fez com que, por cerca de duzentos anos, o território da África do Sul quase não recebesse investimentos nem se tornasse um destino procurado para imigração. Os Estados Unidos, ao contrário, receberam intensa imigração desde o estabelecimento das primeiras colônias britânicas e conseguiram prosperar e diversificar sua economia. Quando a África do Sul foi formada pela união entre britânicos e africânderes após a guerra anglo-bôer (1899-1902), os Estados Unidos já tinham vencido suas guerras de independência (1776 e 1812) e suas guerras que garantiram legitimidade interna (1861-1865) e colocaram o país entre as grandes potências (1898). É importante salientar isso para percebermos que os Estados Unidos tiveram mais de um século de vantagem em relação à África do Sul para resolver seus principais problemas domésticos e, eventualmente, corrigir falhas estruturais. Além disso, outra diferença significativa entre Estados Unidos e África do Sul está na composição das suas populações. Os Estados Unidos foram colonizados pelos 73 britânicos e manteve-se o perfil branco protestante da população até a ampliação das capacidades estatais do país. A África do Sul, pelo contrário, se tornou um caldeirão de povos distintos e que travaram várias guerras entre si, ampliando as rivalidades existentes; nesse caso, com tantos interesses e identidades conflitantes, torna-se muito mais difícil para um Estado ampliar suas capacidades. Esses casos confirmam a teoria de Taylor e Botea (2008, p. 34) de que Estados etnicamente homogêneos são mais capazes de levantar dinheiro, construir exércitos e a serem bem sucedidos em guerras do que outros mais heterogêneos. Em suma, conseguem de forma mais rápida romper com o gap de capacidades em relação às potências centrais. Os elementos aqui elencados foram determinantes nos momentos de conflito. Quando ocorreu a Primeira Guerra Mundial, por exemplo, África do Sul e Estados Unidos estavam geograficamente longe dos combates e tiveram suas economias beneficiadas pela guerra de atrito na Europa; entretanto, os Estados Unidos, em estágio avançado de industrialização, era o único país apto a produzir todos os recursos necessários para a guerra europeia, incluindo navios de guerra, e se beneficiou muito mais do conflito do que a África do Sul. Além disso, na tentativa sul-africana de garantir sua hegemonia na África austral, o país também passava por um conflito interno, devido às suas divisões étnicas e sociais, e não conseguiu alcançar a vitória militar mesmo perante vizinhos teoricamente mais fracos e apoiados por potências extra-regionais. Assim sendo, podemos perceber que os Estados Unidos foram vitoriosos em todas as suas guerras fundamentais para o fortalecimento do Estado, conquistando a independência política (1775-1783); o prestígio internacional (1812-1814); a coesão interna (1861-1865); a criação de uma esfera de influência no hemisfério ocidental (1898) e sua ascensão à hegemonia dominante do sistema internacional (1939-1945). A África do Sul, por outro lado, perdeu todas as guerras: a tentativa de independência foi fracassada na guerra anglo-bôer (1899-1902), embora alcançada em termos políticos; a ideologia dominante do sistema internacional tornou-se incompatível com o interesse das elites dominantes (1939-1945), e a tentativa de garantir sua esfera de influência regional fracassou com a independência da Namíbia e retirada das tropas sul-africanas de Angola (1988). Em frente a isso, o presente trabalho buscou contribuir para a compreensão da guerra como um agente de transformação no Sistema Internacional, revelando sua 74 dualidade, uma vez que, ao mesmo tempo em que é agente de destruição, promove a construção de suas unidades e o estabelecimento da ordem. Além desse aspecto, sendo a guerra um elemento recorrente nas relações internacionais, o seu estudo e a real compreensão dos seus impactos torna-se de fundamental importância para compreender as relações humanas, as disputas por poder e a hierarquia do sistema internacional. Vale salientar, contudo, que o campo de estudo do presente trabalho não se limita às questões aqui retratadas e que o debate na área ainda requer de outras contribuições. Uma alternativa para tanto seria a análise das características populacionais/demográficas dos Estados, fator este fundamental para a relação entre Estado e sociedade e para questões de capacidade estatal. Tal análise possibilitaria assim, a compreensão, tanto de questões referentes ao comportamento das elites, quanto de questões de relações sociais. A partir disso compreender-se-ia, por exemplo, se o perfil capitalista das elites norte-americanas contribuiu com o acúmulo e concentração de capital nos Estados Unidos ou se, da mesma forma, o perfil agrícola das elites africânderes prejudicou a industrialização da África do Sul. Além disso, o fator mais relevante da análise populacional seria, provavelmente, a relação estabelecida entre os negros sul-africanos e o Estado do Apartheid e a forma como esta limitou as capacidades estatais da África do Sul. Portanto, amplos caminhos de pesquisa surgem na tentativa de resgatar o conceito de legitimidade para a avaliação de processos virtuosos e perniciosos de formação histórica de Estados. 75 6. REFERÊNCIAS AMES, Edward; RAPP, Richard T. The Birth and Death of Taxes: A Hypothesis. The Journal of Economic History, v. 37, n. 01, p. 161–178, 1977. 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