POLÍTICA E SERVIÇO SOCIAL: RELAÇÕES CONTEMPORÂNEAS EM DEBATE. Fabrício Augusto Araújo Ribeiro 1 RESUMO No presente trabalho - escrito preferencialmente para o 4º Simpósio Mineiro de Assistentes Sociais, realizado por iniciativa do Conselho Regional de Serviço Social de Minas Gerais (CRESS-MG) -, prossigo no debate e nos estudos da política que venho desenvolvendo, inscrito na perspectiva crítica, buscando a formulação de novas bases e fundamentos que permitam o avanço das leituras mais críticas e concretas da conjuntura política internacional com a qual nos deparamos atualmente, sobretudo no Brasil, apresentando alguns resultados temporários de minhas pesquisas bibliográficas e das vivencias empíricas experienciadas através da participação em movimentos sociais e na organização das entidades representativas da categoria do Serviço Social no país, especialmente no Movimento Estudantil de Serviço Social (MESS). Por meio dos estudos que venho desenvolvendo busco respostas à questões que envolvem o objeto de pesquisa: “a relação entre a política e o Serviço Social”, destaco aqui aquela que estará substanciando o presente debate: como se deve compreender a relação do Serviço Social com a política e com a classe trabalhadora, atualmente no Brasil? Os trabalhos e projetos de pesquisa desenvolvidos através de estudos bibliográficos e documentais, revisitam e recuperam o processo de concepção da categoria do Serviço Social, as relações estabelecidas entre esta e a política no tempo histórico, assim como a relação entre Serviço Social e a classe trabalhadora. Tal percurso tem como ponto de partida um profundo estudo em Teoria Política Clássica, antiga e moderna. Perpassa a análise crítica dos processos políticos e históricos de concepção e de autocrítica do Serviço Social no Brasil, buscando compreender o estabelecimento das bases para a formação e atuação profissional, no contexto da dinâmica do movimento histórico que sofrem a direção e os sentidos dos compromissos e posicionamentos societários e ético-políticos da categoria. Palavras-chave: Teoria Política Crítica – Política e Serviço Social – Serviço Social Crítico. 1 Bacharel em Serviço Social pela Universidade Federal do Triângulo Mineiro - UFTM 2 INTRODUÇÃO O ano que marca os 80 anos do Serviço Social no Brasil é um ano de extrema complexidade política nas sociedades brasileira e internacional. A atual crise econômica mundial (deflagrada pela crise imobiliária estadunidense de 2007) apresenta, entre seus reflexos práticos, a exposição de profundas contradições do sistema político internacional, do imperialismo e dos limites da democracia burguesa frente às demandas mais básicas das populações ao redor do mundo, o que faz com que a democracia não mais represente algo livre de questionamentos. Entre os elementos políticos globais em importante exposição se destacam “o sistema internacional da dívida pública” e as políticas de austeridade, que consubstanciam as estratégias gerais das democracias mais avançadas do globo, como medidas para vencer a crise que elas mesmas produziram. Ambos, são políticas também adotadas pelo atual governo brasileiro, ainda que estejam sofrendo importantes denúncias e repúdio popular em relação à eles em diversos países, anunciadas como “males necessários” ao enfrentamento da crise interna. No contexto mundial, por exemplo, em países como a Grécia, os programas anticapitalistas têm conquistado o apoio de importantes frações populares, também em países como Espanha, Portugal e Japão, entre outros, crescentemente. Este fenômeno se dá em razão das políticas capitalistas, que em tempos de crise estrutural têm buscado ampliar a exploração das riquezas nacionais socialmente produzidas, como meio de abrandar os efeitos da crise e até mesmo de extrapolar o acúmulo privado de capital, oportunamente. O sistema político global em crise, intervém nos Estados dependentes a fim de manter o seu poderio e/ou aproveitar-se dos efeitos da sua própria crise para ampliar o seu contingente de lucro e poder privados. 3 O Estado brasileiro, governado à catorze anos por um “bloco de poder popularburguês” (RIBEIRO, 2014) 2 tem desenvolvido a cartilha imperialista, reduzindo a presença do poder público na gestão social. Oportunizando ao capital um espaço privilegiado de exploração socioambiental, reprodução material e acumulação privada de riquezas, ao mesmo tempo em que desenvolve políticas que permitem a reprodução social do capital com a consequente extrapolação dos índices de lucros das corporações globais do capitalismo financeiro. No entanto, isto ainda não é tudo! Se assim o fosse, poderíamos concluir que se trata de uma reprodução histórica do modelo de desenvolvimentismo que marcou a segunda metade do século XX no Brasil, atribuindo ao debate da conjuntura política nacional atual, uma conotação simplista e manualesca. O atual modelo de governança dominante no Brasil, se constitui em parceria com setores tradicionais das elites nacionais urbanas e rurais, (por isso a denominação: bloco popular-burguês) e apresenta como propriedade característica o compromisso político de desenvolver com maior eficiência a cartilha capitalista, garantindo o melhor ambiente político para tal. Realidade que se constitui num dado à ser rigorosamente debatido pela sociedade brasileira, sobretudo pela classe trabalhadora consciente de si e organizada (classe subalterna). Assim como também exige ao conjunto de assistentes sociais, que se mantêm fiel ao movimento de “intenção de ruptura”, assimilar a atual configuração da luta de classes no Brasil, inclusive no interior da categoria profissional, em decorrência das ingerências e das influências políticas e ideológicas do referido bloco hegemônico (atuação esta que se dá em todo o campo, político ideológico reformista, que exerce influência sobre órgãos e movimentos que mantêm com o governo uma relação de mútua sustentação orgânica). O Serviço Social brasileiro precisa refletir criticamente sobre quais são os impactos da política (neo)conservadora dos governos do Partido dos Trabalhadores, sobretudo no que tange à conformação a) dos espaços em que o trabalho do Serviço Social se desenvolve, b) das políticas oficiais que são postas à operacionalização destes profissionais e c) da lógica de formação profissional característica deste modelo de governança. 2 Termo designado para qualificar o bloco de poder que, convergindo setores populares e das burguesias urbanas e rurais, tem governado o Brasil desde 2002. 4 Assim, verifica-se a importância de se retornar às bases do pensamento social crítico no debate ético-político no interior da categoria, de forma radical e organicamente alinhado ao método materialista histórico dialético, buscando debater com uma possível cumplicidade ressonante em setores da categoria profissional, ligados historicamente ao PT. O que sugere um alinhamento de setores do Serviço Social brasileiro com a lógica governista de desmobilização da resistência popular frente à adoção de medidas de austeridade fiscal, medidas estas que inscrevem o Brasil no sistema global de endividamento público, desmonte e precarização dos serviços públicos, dos direitos sociais e das relações de trabalho. POLÍTICA E SERVIÇO SOCIAL A atual crise mundial expressa o colapso de um conjunto de elementos históricos e fundantes do sistema capitalista, enquanto política de organização geral da produção material e reprodução social global. A fundação do sistema capitalista e seu processo de hegemonização mundial se caracterizam pela criação de mecanismos sociais de difusão ideológica e material de suas bases concretas e abstratas. A leitura crítica do processo de concepção do Serviço Social no Brasil permite compreendê-lo como resultado da ação direta do Estado burguês; o que faz do Serviço Social uma das profissões oriundas do sistema capitalista, criada no bojo da divisão burguesa sócio-técnica do trabalho, caracterizando-se como um instrumento oficial estratégico de difusão das bases concretas e abstratas da hegemonia burguesa junto às populações dominadas, atuando especialmente nas expressões sociais causadas pelo modo de produção capitalista. O Serviço Social, como um elemento político de consolidação e conservação da dominação burguesa sobre o proletariado, de amenização dos impactos da exploração capitalista sobre a reprodução da força de trabalho, atua para possibilitar a reprodução social da força de trabalho necessária à expansão e reprodução do Capital. Atualmente, ainda que a profissão viva o processo de amadurecimento da intenção de ruptura (NETTO, 2009) em seu interior, é inegável que permaneça como uma profissão fortemente imbricada ao Estado burguês, e sendo assim, sofra intensamente os rebatimentos das ações deste. Diga-se, sobretudo, das condições 5 concretas de trabalho e de formação profissional conformadas pelo modelo geral de produção vigente. A crise mundial ainda revela indícios mais concretos deste processo difuso que conduz privativamente e determina a vida social global, que é a política. Tal contexto representa um campo mais aberto para que se possa avançar nos estudos críticos sobre a política e sua relação com o Serviço Social, o que se justifica pela ação daquela em âmbito global e que apresenta, constantemente, rebatimentos concretos e históricos a este, que de forma dialética vive tais determinações, preparando as bases para uma (re)ação contra-ofensiva, no bojo do movimento brasileiro de intenção de ruptura com o sistema burguês. Os resultados momentâneos dos estudos desenvolvidos apresentam algumas aproximações conclusivas, em que se compreende: a) a política como o exercício privado do poder; b) o Estado como o instrumento central da ação política; c) identifica a criação da profissão do Serviço Social, na fase burguesa do Estado, como elemento de dominação política; d) compreende a organização da classe trabalhadora, no bojo da subalternidade, da resistência, da contra-ofensiva, na construção da “contra-cultura” e do “contra-poder”, como a “contrapolítica”; e) e analisa o deslocamento histórico da posição classista do Serviço Social na sua relação com o Estado burguês, no âmbito do movimento de intenção de ruptura no Brasil, apresentando a partir de então a possibilidade do restabelecimento da profissão como um conjunto que se desloca, no movimento dialético da história, majoritariamente à favor do projeto contra-hegemônico anticapitalista. Deste trabalho cientifico que venho desenvolvendo apresento aqui o conceito de política apreendido, a partir dos estudos referentes ao Trabalho de Conclusão de Curso (2014), denominado: “Política e Serviço Social: um ensaio teórico”, em que se pode verificar nos seguintes fragmentos que discorrem: Uma vez compreendido o processo de desenvolvimento primitivo da humanidade e observado os surgimento dos domínios territoriais primitivos, deflagra-se a identificação dos elementos fundantes da política: a posse e o poder que dela provém. (RIBEIRO, 2014). A posse enquanto elemento fundamental à condição humana, do homem inscrito na realidade social em que só se é reconhecido enquanto o ser que tem. (ARENDT, 2007, p. 78). [...] O poder que deriva da posse privada de bens ou de meios infindos de produção se constitui portanto na riqueza. "[...] riqueza, acesso farto aos bens necessários à vida humana e a bens supérfluos, 6 (que) dá ao homem condições materiais para a dedicação de tempo para a vida pública (à política). Disto, é essencial se destacar que "aquele que não possui riqueza, precisa dedicar seu tempo a consecução dela e não tem tempo para se dedicar á política, à vida humano genérica. (ARENDT, 2007, p. 79). (Idem). Assim, no referido ensaio teórico, os fundamentos da política são identificados como frutos do processo de concepção da propriedade privada, que se consolida historicamente na relação dialética entre a existência das propriedades privadas (feudos e burgos) e a organização privada entre os sujeitos que as possuem. Tal identificação se expressa no que segue: O processo da condução privada do poder e do seu exercício, este processo de encontro privativo das classes dominantes, em que se pensa como deve ser a vida, o trabalho, a sociedade e o mundo, e dessas aspirações tem-se todo o desencadeamento de uma gama de processos legais, jurídicos, ideológicos, culturais, sociais e ambientais para a sua realização. (Idem). O referente trabalho científico apreende a política como o poder, conquistado particularmente pelas classes dominantes, de conduzir os sentidos da vida social genérica por meio do estabelecimento projetado das condições de produção e reprodução social, sobretudo o poder de organizar as condições gerais de trabalho e produção, inclusive como formas necessárias à instituição e à manutenção da dominação sobre as classes trabalhadoras ao longo da história. Este destaque se dá pela percepção sobre a importância cientifica e ético-política de se apontar, no desenvolvimento de um estudo crítico e concreto de Teoria Política a centralidade do trabalho e das relações de trabalho, inclusive no estabelecimento da política e das suas relações. Neste sentido, pode-se afirmar: [...] que o ato de dominar o homem, representa o ato de dominar o trabalho humano, e assim, ter sob domínio o poder universal que cria todas as outras formas de força e de poder. Funda-se pelo domínio do trabalho dos homens o próprio domínio sobre a humanidade, sobre a totalidade social, posto que o que funda a totalidade social é o processo de generalização humana pelo trabalho, [...]. (Idem). As aproximações conclusivas a que pude chegar, se referenciam pela leitura crítica das obras de pensadores que como Machiavel, “colocam a política como um exercício restrito aos governantes, é o exercício da dominação”. (RIBEIRO, 2014). Ressalta-se que as teorias políticas clássicas da antiguidade pouco ou nada se referem à movimentos da resistência e projetos de contrapoder. As teorias políticas antigas 7 compreendem a realidade política como um fato naturalizado, como um dado imutável. As características próprias da política, são assim bem definidas e atribuídas às classes dominantes. Assim, o que tenho compreendido é que as modernas organizações revolucionárias da classe trabalhadora não podem e não devem ser designadas sobre o signo da política. A política é algo muito bem definida, historicamente construída, por autores determinados. Sobretudo, a política é exatamente uma obra das elites historicamente dominantes, se constitui de fundamentos, princípios, meios e objetivos próprios. Sendo, então, incorreto atribuir à uma obra radicalmente distinta, como são as organizações subalternas e revolucionárias, a denominação singular de “organização política”, sendo que as mesmas se constituem de fundamentos, princípios, meios e fins distintos, contrários e conflitantes aos da política. Ao apresentar a idéia da contrapolítica, tenho como objetivo deixar o mais claro possível dois princípios fundamentais. O primeiro afirma que a contrapolítica é a organização da “classe dos que não possuem”, daqueles que vivem da venda de sua única propriedade – sua força de trabalho, e que esta organização se dá no sentido revolucionário. Projeta, a toda sociedade, o fim das relações de dominação e o estabelecimento de uma ordem justa e igualitária. Logo, então, se tem o segundo princípio, que visa demonstrar que se uma organização se contrapõem à ordem hegemônica, por tanto se contrapõe à política e se constitui por outros sujeitos, outra intencionalidade, que apresenta um projeto societário diferente, que se constitui de outros princípios, se utiliza de meios próprios e que busca alcançar outros fins, logo não pode se denominar da mesma forma, não se pode nomear por política. Deve-se portanto denominar contrapolítica. Outro fato é que a política dá a sustentação ao Estado, órgão este que centraliza a repressão, a opressão e o ajuste dos sujeitos à lógica da política e que portanto precisa ser superado, e para superá-lo é preciso se fazer definhar a política (LÊNIN, 2009). Portanto a organização da classe trabalhadora é um exercício de contraposição ao sistema estabelecido e seus elementos, portanto não são políticos, mas sim anti-políticos, ou contra-políticos. A organização contra-hegemônica pela superação do domínio político sobre a classe subalterna. (p. 71). A compreensão da política enquanto expressão total do poder conquistado e exercido privativamente pelas classes dominantes ao longo de toda história; o Estado como comitê criado como centro de elaboração estratégica e execução dos interesses 8 privados das classes dominantes; as políticas sociais e econômicas, entre outras, como efetivação concreta dos interesses e das estratégias de dominação das classes dirigentes, apontando neste conjunto o Serviço Social também. Estes são alguns dos apontamentos realizados em “Política e Serviço Social: um ensaio teórico” (RIBEIRO, 2014), cujas aproximações conclusivas são frutos da deflagração de uma pesquisa cientifica que se encontra em importante movimento. Compreendendo o Serviço Social, não como uma espécie de evolução e/ou profissionalização da Ação Social católica, mas sim como um instrumento criado pela política, através do Estado, a partir da revolução burguesa, no conjunto da divisão sócio-técnica do trabalho. Caracterizando a profissão como uma política que tem como objetivo fundante o desenvolvimento de formas de consolidação e manutenção do domínio burguês capitalista sobre a classe trabalhadora, agindo, especificamente, sobre as conseqüências sociais que se desdobram do processo de produção, reprodução e acumulação capitalista. Assim, no presente trabalho, me referencio em dois debates, muito importantes, desenvolvidos contemporaneamente, são eles: a) o debate sobre a lógica de governança da educação superior no Brasil, inerente ao modo de governo do bloco de poder popular-burguês; e b) debate com as concepções da assistente social Mariana Pfeifer (2010), que em sua análise, profundamente crítica sobre a lógica geral do neodesenvolvimentismo no Brasil. O presente referencial possibilita o diálogo sobre os impactos às condições de trabalho e formação profissional no referido contexto histórico, o que certamente consiste em uma tarefa necessária e urgente ao Serviço Social crítico. NEOCONSERVADORISMO NO BRASIL Neodesenvolvimentismo é como se denomina a lógica geral de governança estabelecida no Brasil pelos governos Lula, do PT. É objeto de estudos e debate da pesquisadora Mariana Pfeifer (2010), assistente social que analisa a lógica das políticas sociais dos governos do PT, alcançando inclusive as mediações com as relações políticas estabelecidas para a sustentação de tal governança no pais. 9 Em seu trabalho a referida cientista compreende que as atuais políticas redistributivas meramente fomentam e impulsionam o consumo, realizando assim a “inclusão social via consumo de massa”, onde o Estado apreende as políticas sociais como fator de crescimento econômico, e não de emancipação política. Para Pfeifer (2010) “essa plataforma da política social neodesenvolvimentista funda um novo Estado, intitulado aqui de Estado mediador consumidor dos bens e serviços sociais mercantilizados”. (P. 747) (grifo nosso). Neste contexto, é possível compreender que o Estado neodesenvolvimentista apreende a desigualdade social no campo das desigualdades “na posse dos meios de pagamento necessários à compra de bens e serviços” (p. 752), onde se evidenciam os fundamentos conceituais e políticos que sustentam a lógica da governança e da difusão de uma cultura política mercantilizada, “redistribuição com base no crescimento da renda” (p. 752) individual. A política neodesenvolvimentista estabelece grave obstáculo à uma mínima possibilidade emancipatória dos sujeitos, ao se assentar na lógica da promoção social mercadológica, promovendo os sujeitos excluídos do mercado em sujeitos incluídos (temporariamente e precariamente) ao mercado. Trata-se de um direcionamento que objetiva promover os sujeitos à seres consumidores, e não à sujeitos detentores de direitos sociais, com liberdade e capacidade de participação “política”; apenas sujeitos com maiores possibilidades de compra. Tal sentido dado conduz os sujeitos à participação no baixo circuito econômico, e não ao âmbito do protagonismo e da participação e organização política e social. Atualmente o que se pode observar empiricamente é o consequente avanço do conservadorismo na sociedade brasileira em decorrência da promoção de uma “sociedade de consumidores”, inerente à lógica do mercado, para onde as políticas sociais do neodesenvolvimentismo do Estado contemporâneo conduz os sujeitos. Aqui é necessário resgatar que o caráter de ‘sujeito cidadão’ e ‘ser consumidor’ somente podem ser considerados como a mesma pessoa, um ser único, na perspectiva liberal ortodoxa e em sua real compreensão de cidadania. A compreensão de que os sujeitos somente atingem à condição de cidadãos a partir do momento em que se tornam efetivamente capazes de participar das relações de consumo e se tornam seres consumidores. Esta é a compreensão de pensadores liberais variados, como Edmund Burke, Stuart Mill e Alexis de Tocqueville (Weffort, 1991). 10 Assim, Mariana Pfeifer (2010) observa “uma tendência geral no neodesenvolvimentismo: o Estado é o grande consumidor dos bens e serviços mercantilizados.” (p. 757). Neste tipo de Estado “o cidadão não é portador de direitos, mas é consumidor e proprietário. (p. 758). Tais aproximações apresentadas pelos estudos da pesquisadora brasileira dialogam com as conclusões do francês Jacques Rancière (2014). Este cientista, ao estudar o “problema democrático”, identifica o consumismo egoísta e indiferente dos cidadãos democráticos, como uma característica inerente à democracia realmente existente, onde “o que conta é a identificação solidamente estabelecida entre o homem democrático e o indivíduo consumidor” (p. 35 - 36). A síntese do diálogo acima estabelecido, aponta para uma relação de determinações complexas, dialéticas e mutuas entre política desenvolvida e os sujeitos alvos e operadores da mesma. Em que o tipo de política engendrada em toda sociedade converge com a formação de uma cultura política hegemônica, entre os seus sujeitos alvos e operadores, que vai ao encontro dos sentidos expressos pelo elemento político, que portanto é fundamental. A política de mercantilização dos direitos sociais tende fortemente à desenvolver sentidos individualistas nos sujeitos alvos e operadores das políticas sociais, pois definem as condições materiais de produção e reprodução social. E é neste campo em que reside um dos pontos mais importantes do debate em torno dos resultados gerais das políticas criadas e desenvolvidas no Brasil, contemporaneamente. Ainda que a discussão entorno da lógica de governança desenvolvida no país nos últimos 14 anos deva sim ser atribuída ao Partido dos Trabalhadores (por ser o sujeito central do bloco de poder hegemônico no país), no entanto não se pode recusar a compreensão de que se trata de um governo de coalização, devendo-se observar a composição deste bloco de poder que lhe dá sustentação. Para Mariana Pfeifer (2010) o neodesenvolvimentista e a lógica de gestão social que ela imprime, como o conjunto de ações políticas desenvolvidas para a manutenção do poder, evidenciam também as condições em que se sustenta este governo, no “jogo político de coalizões e troca de benefícios” (p. 763). A autora conclui sua arguição afirmando que o pacto neodesenvolvimentista se caracteriza politicamente por abrigar um amplo arco de alianças entre setores historicamente antagônicos, como uma política 11 de conciliação de classes, onde apresenta-se “de forma extremamente contraditória [...]. Numa mescla de esquerda, centro-esquerda, social-democracia e direita liberal” (p. 764). O bloco de poder popular-burguês, imprime um determinado sentido às políticas sociais que “acaba despolitizando os processos sócio-historicos de sua conquista ao lavá-los para dentro do projeto neodesenvolvimentista”. (PFEIFER, 2010). Tal processo promove um tipo de cidadania invertida e mercantilizada, distorcendo o significado, subalternamente construído, da cidadania alicerçada no dever da provisão publica, estatal e de qualidade para todos. No mesmo movimento em que conquista o consentimento popular, pela inação conformista inerente aos grupos que historicamente participaram da constituição e defesa do Partido dos Trabalhadores, o que para a autora “pode estar contribuindo para o enfraquecimento dos movimentos populares e sindicais mais combativos.” (p. 764), pois tal lógica de governança: promove a cultura empreendedora que responsabiliza indivíduos e famílias pelo acesso mercantil de seu bem-estar social, trazendo novamente a questão social para o foro privado, e tentando desvinculá-la de sua raiz estrutural comum, isto é, do processo de produção e reprodução do capital e suas formas de exploração e concentração. (p. 764-765). O que se permite concluir é que a promoção da cidadania por meio da oferta de condições temporais e precárias de acesso ao baixo mercado (com o agravante do endividamento popular maciço), inerente ao projeto neodesenvolvimentista, serve integralmente aos interesses do Capital, fornecendo-lhe os elementos necessários à sua reprodução e acumulação privada, pela exploração máxima da força social de trabalho disponível e das riquezas naturais nacionais existentes, em um ambiente político extremamente favorável. A governança e o tipo novo de Estado desenvolvido pelo neodesenvolvimentismo podem ser compreendidos como expressões da política, próprias deste contexto histórico, com a qual o referido governo se articula e se mantêm alinhado organicamente com os fins de conquistar e manter o poder no país. Vimos que pensadores políticos clássicos nos oferecem fundamentos para que a leitura da realidade concreta atual possa se desenvolver profundamente em firmes bases. Não obstante, Leonardo Boff (2010) se referência em Machiavel para apresentar sua análise sobre a atuação política do Partido dos Trabalhadores no governo. Afirma o 12 brasileiro: “passei um fim de semana lendo pela enésima vez O Príncipe de Maquiavel no esforço de entender a atual política da Direção Nacional do PT”. E segue: “ai encontrei as fontes que possivelmente estão inspirando o assim chamado “Novo PT”, aquele que trocou a vontade de transformar a realidade pela vontade de poder para compor-se com a realidade, notoriamente envenenado com o propósito de perpetuar-se no poder.” A analise realizada em 2010 por Leonardo Boff apresenta substancias que dialogam com as que compõem o debate aqui proposto. Primeiro porque o autor em questão busca em um clássico da Teoria Política, Machiavel, os fundamentos para sua reflexão. Articula a sua compreensão sobre a obra do pensador florentino às expressões da ação política do seu objeto de análise, a política da Direção Nacional do Partido dos Trabalhadores. Destaca elementos políticos fundamentais como “vontade”, que podemos compreender como sendo a vontade particular de um grupo privado que busca manter o poder conquistado, portanto uma vontade política. Mais adiante em sua análise Boff ainda identifica um outro elemento importante da política, que o pensamento de Machiavel tanto tem para fundamentar, a estratégia. O que fica expresso em: “comporse com a realidade, notoriamente envenenada com o propósito de perpetuar-se no poder” (grifos nossos), como também onde afirma: “sabemos como é o jeito da política vigente, montada sobre alianças espúrias, sobre a mercantilização das relações políticas e sobre a rapinagem do dinheiro público.” A percepção de Leonardo Boff é de que o Partido dos Trabalhadores sofreu em sua história uma inflexão ético-política. O “PT atual” é compreendido como um sujeito componente da política hegemônica, alinhado aos interesses dominantes. Em termos da compreensão política que venho estudando, pode-se compreender a possibilidade concreta de que o PT tenha sofrido uma mudança fundamental nos sentidos de sua ação, saindo do campo da contrapolítica (RIBEIRO, 2014) e se inserindo no âmbito da política. Cabe destacar que tal analise é referendada por importantes pensadores e agentes políticos brasileiros contemporâneos, como Mauro Iasi, Heloisa Helena, Plinio de Arruda Sampaio, entre outros. Tal condição é também identificada pelas análises que cientistas e agentes sociais apresentam sobre a política de educação desenvolvida nestes anos de governança petista, sobretudo no que se refere à gestão do ensino superior no 13 país, cuja lógica congrega a expansão dos serviços com a crescente privatização dos mesmos, tendo a precarização como instrumento de legitimação. Em maio de 2009 a Associação dos professores da PUC São Paulo publicou o 35º volume da revista PUC VIVA, onde segundo Bia Abramides, se “debate sobre duas questões centrais de um modelo de ensino privatista, aligeirado e massificado, [...] voltado aos interesses do Capital: a mercantilização do ensino e o Ensino à Distância.” (p. 3). Em síntese, a edição identifica, analisa e critica a) o alinhamento da governança publica brasileira aos projetos imperialistas do capital; b) o poder particular do governo do Partido dos Trabalhadores em imprimir a agenda neoliberal no país em um ambiente político favorável às reformas inerentes a este projeto, a focalização das políticas precárias de ensino superior nos seguimentos mais populares da sociedade e os reflexos da referida lógica de educação na formulação científica e ético-política dos sujeitos (trabalhadores e usuários e movimentos universitários e entidades de classe) envolvidos neste contexto. Para Rafael Limongelli, colaborador da referida edição: “a consequência de se direcionar o ensino [...] totalmente para o mercado de trabalho é a perda no grandes três sustentáculos do ensino superior: pesquisa, ensino e extensão” (p. 65-66). A lógica privatista dos governos brasileiros dos últimos 25 anos se inscreve no âmbito da política global de educação que promove “a crise da razão crítica [...] e ascensão da razão instrumental ou razão mercadológica” (p. 65). APROXIMAÇÕES CONCLUSIVAS O projeto da política para a educação superior se expressa na lógica geral da governança em vigor no país; compreendida por seu caráter massificador, aligeirador e precarizante, trata-se de uma expansão maciça na oferta dos serviços de educação superior meramente quantitativista, tendo como estratégias o crescimento exponencial da oferta, nos formatos presenciais público e privado e à distância, criando assim um vasto mercado a ser explorado pelo Capital, que se expande através das terceirizações dos serviços básicos de manutenção e de gestão, inclusive dos hospitais universitários federais. Entre outras estratégias de mercantilização e precarização quantificadas da educação superior no país. 14 Esta “crise da razão crítica”, à que Rafael Limongelli se refere, no âmbito da mercantilização da gestão social central do pais é um elemento à ser profundamente analisado pela categoria do Serviço Social brasileiro, uma vez que a profissão vive internamente um continuo conflito histórico entre perspectivas ético-políticas conservadoras e revolucionárias desde o Congresso da Virada, cujo conflito é atravessado fortemente pelas determinações conjunturais das políticas econômicas e sociais desenvolvidas no país e que conformam as condições objetivas, concretas e históricas para a atuação e a formação profissional em Serviço Social. Com o agravante das relações político-partidárias, que substanciam as contradições políticas no Brasil contemporâneo, inclusive no interior do conjunto dos assistentes sociais brasileiros, que se caracteriza como expressão de uma governança que enfraquece e desarticula os movimentos populares no Brasil. O que nos demanda primeiramente questionar: a crise da razão critica potencializada pela mercantilização e precarização do ensino superior e das demais políticas sociais no Brasil, configura-se como importante obstáculo para o avanço da perspectiva de intenção de ruptura no interior do Serviço Social brasileiro? A inquietação deste momento se refere a conformação atual da expressão da luta de classes e do conflito de perspectivas ético-politicas no interior da categoria do Serviço Social brasileiro. É irrecusável concordar que a cultura política inerente à hegemonia deste bloco de poder popular-burguês possa engendrar no interior da profissão a constituição de uma ala neoconservadora, alinhada às teorias e projetos reformistas do Estado neodesenvolvimentista, formuladas pela governança vigente em acordo com a planificação das agencias imperialistas do Capital internacional, que ressoa complacentemente entre setores populares e científicos importantes do país, por suas relações históricas com o Partido dos Trabalhadores, inclusive do Serviço Social. 15 REFERENCIAS APROPUC. Mercantilização do ensino e ensino à distância. Revista PUC VIVA, n.35, São Paulo, PROPUC-SP, 2009. BOFF, L. Solidariedade para com as vítimas do “novo PT”. Blog do Noblat. 2010 IASI, M. Ensaios sobre consciência e emancipação. São Paulo, Expressão Popular. 2007. MACHIAVEL, N. O Príncipe. Tradução Lívio Xavier. São Paulo: Escala, s/d. MARTINELLI, M. L. Reflexões sobre o Serviço Social e o projeto ético-político profissional. Transcrição Jussara Ayres Bourguignon. Ponta Grossa: Universidade Estadual de Ponta Grossa, 2006. MÉSZÁROS, I. Estrutura social e formas de consciência: a determinação social do método; tradução Luciana Pudenzi, Franscisco Raul Cornejo, Paulo Cézar Castanheira – São Paulo: Boitempo, 2009. PAULO NETTO, J. A construção do projeto ético-político do Serviço Social frente à crise contemporânea. In: Capacitação em Serviço Social e política social: módulo 1. Brasília: CEAD, 1999. PFEIFER, M; O Social no Interior do Projeto Neodesenvolvimentista. In: Revista Serviço Social e Sociedade: formação, trabalho e lutas sociais. Cortez, São Paulo, n.120, out/dez 2014. RANCIÈRI, J. O ódio à Democracia. São Paulo, Boitempo, 2014. RIBEIRO, F. A. A; Política e Serviço Social: um ensaio teórico. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Serviço Social). -- Universidade Federal do Triângulo Mineiro, Uberaba, MG, 2014. Orientadora: Profª Drª Celeste Aparecida Barbosa Pereira. WEFFORT, F. C. (Org). Os Clássicos da Política: Burke, Kant, Hegel, Tocqueville, Stuart Mill, Marx. (Vol. 2). 3ª ed. São Paulo. Ática. 1991.