fé REVELADA e razão um diálogo NECESSÁRIO A.T.: “... dá-me INTELIGÊNCIA PARA QUE APRENDA os teus mandamentos”. (Salmo 119:73) N.T.: "Rogo-vos, pois, irmãos, que apresenteis os vossos corpos em sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, que é o vosso CULTO RACIONAL " (Romanos 12:1) Ambos os versículos bíblicos, tanto o do Antigo como o do Novo Testamento, acima transcritos, dentre centenas de outros tantos, harmonizam fé e razão, num conúbio salutar, daí a importância de enfrentar o tema, ainda que de forma singela, a evitar heresias. Deveras, perde-se, pois, nos escombros do tempo o rebatido debate acerca do binômio "fé e razão" (latim:fides et ratio), num conflito entre Teologia e Filosofia, a tal ponto que tornou-se vala comum, no início da era cristã, afirmar que eram termos inconciliáveis. Diziam os antigos padres da igreja romana, nos dois primeiros séculos da era cristã, que fé e razão eram realidades incompatíveis, inconciliáveis, excludentes entre si, de maneira que quem estivesse sob a diretriz da razão e da inteligência humana, estaria longe da "revelação" e quem estivesse "na revelação" estaria "fora" da razão, utilizando-se textos bíblicos descontextualizados. Grande equívoco, à luz das Sagradas Escrituras! Demonstrar-se-á, no entanto, nesta singela incursão investigativa, que esse antigo dogma não encontra respaldo bíblico em sua compreensão contextual e sistemática; é fruto de conclusão cultural precipitada ou de intuito manipulador, numa interpretação textual bíblica isolada do todo. Fé e razão não são conceitos excludentes. Ao revés. Eles se completam e se interagem necessariamente. Não basta que o homem receba as revelações das verdades; ele necessita ter um preparo de intelecto racional para que entenda o que lhe é revelado e que assim consiga estabelecer, com o seu livre arbítrio os julgamentos necessários, conforme oração do salmista em epígrafe. Sob esse viés, é importante que se diga que a questão não é tão simples e a complexidade se inicia com a vagueza com a qual se trata o vocábulo "razão", uma vez que ele carrega uma carga polissêmica, isto é, possui várias acepções e essa indeterminação conduz, não raro, a uma confusão. De igual sorte o vocábulo "fé" e "revelação" (literalmente: "remover o véu") seguem a mesma linha de abstração no uso indiscriminado. Quando se fala em "mistérios" (originariamente "muein" = "olhos fechados"), cai-se, também não raro, num misticismo mágico. Nessa esteira de raciocínio, aqui, será visto, en passant, o vocábulo "razão" no sentido de mecanismo da mente que apreende a realidade, de forma que não será decifrado como "razão técnica", mas "razão ontológica", ligada à essência do "ser", na relação de conhecimento do sujeito cognoscente diante do objeto cognoscendi. Significativo, destarte, investigar: "o quê" se conhece; "como" se conhece; "porquê" se conhece; "através de quê" se conhece; "onde" se conhece; "quando" se conhece; "para quê" se conhece, "quem" conhece etc. Entrementes, a razão humana é limitada à experiência e demonstrações, suscetíveis de serem captadas pelos sentidos. A fé - diante das verdades eternas - entra em cena para complementar aquela primeira, num quadro de harmonia. Assim, o ser humano utiliza a "razão" que Deus lhe forneceu (e se Deus a forneceu é porque é boa) para nEle crer, em sintonia com os atributos divinos. Assim é que, Deus teve "razão" em criar um ser, à Sua semelhança, dotado igualmente de "razão", para se utilizar desse presente divino ("a razão"), a fim de estabelecer, pela "fé" e pela "razão", um contato cognitivo com o divino. Não são conceitos paradoxais entre si. Não se pode confundir o tema com "racionalismo iluminista", que descarta a "fé revelada" e estabelece a razão com uma relevância única e excludente, ignorando a questão teologal da aproximação da relação Criador/criatura com mecanismos transcendentais; não meramente "intuitivos". Traduz-se em conveniência religiosa afirmar que são conceitos inconciliáveis, porquanto facilita a ignorância, o obscurantismo e a cômoda "formatação eclesiástica". Decerto, a questão já passou pelas linhas de Descartes, Hume, Kant, Leibniz, Maritain, Hegel, Tillich etc. Na sequência temática, fé possui uma natureza complexa e multifacetária, pois que constitui, num primeiro plano, fundamento; é, também, instrumento de conhecimento e é meio (único meio de Graça, conforme Efésios 2:8), dentre outros. Não se pode negar essas naturezas que a fé proporciona, sob pena de se ter uma visão monocular de uma grandeza complexa. Seria simplista afirmar que fé é apenas fundamento daquilo que não se vê. É mais do que isso. A afirmação é biblicamente verdadeira, mas aponta apenas para uma faceta da fé. Fé não é mera crença popular irracional, diga-se de pronto. Aqui está o grande mistério que não se alcança pela logicidade cartesiana, mas não está - em absoluto - fora da razão, nem longe dela, porque revelação e fé não exclui razão, por isso Paulo vai dizer do “culto racional”, vale dizer, do culto que é concebido pela - e na - razão, e isso fica bem nítido em Romanos. 12:1. Essa diretriz também é encontrada em textos veterotestamentários, conforme se lê em alguns textos abaixo. “Portar-me-ei com inteligência no caminho reto...” (Salmo 101:2) “... dá-me inteligência para que aprenda os teus mandamentos” (Salmo119:73) “...dá-me inteligência, e viverei” (Salmo.119:144). “O Senhor com sabedoria fundou a terra: preparou os céus com inteligência” (Provérbios. 3:19) "Adquire a sabedoria, adquire a inteligência, e não te esqueças, nem te apartes das palavras da minha boca" (Provérbios 4:5) "Eu tornei a voltar-me, e determinei em meu coração saber, e inquirir, e buscar a sabedoria e a razão, e conhecer a loucura da impiedade e a doidice dos desvarios" (Eclesiastes 7:25) “e vos darei pastores segundo o meu apascentará com ciência e com inteligência” coração, que vos (Jeremias. 3:15). "O meu povo foi destruído, porque lhe faltou o conhecimento. Porque tu rejeitaste o conhecimento, também eu te rejeitarei, para que não sejas sacerdote diante de mim ...". (Oséias 4:6) "... não é razoável que nós deixemos a palavra de Deus e sirvamos às mesas" (Atos 6:2) “para que os seus corações sejam consolados, e estejam unidos em caridade, e enriquecidos da plenitude da inteligência, para conhecimento do mistério de Deus – Cristo”. (Colossenses. 2:2). "Coincidentemente" ("coincidência"?) no Antigo Testamento, o personagem de maior destaque na revelação da Lei de Deus, foi Moisés, que escreveu o Pentateuco e instruiu o povo. Moisés foi um homem altamente culto, treinado para ser Faraó, detendo o conhecimento da época, em relação à política, economia, religião, economia etc. Também Salomão, personagem de grande destaque, foi um dos homens mais sábios da história humana. Em o Novo Testamento, o personagem de destaque foi Paulo, homem preparado, com título de teólogo na linha de Gamaliel, uma das maiores e mais respeitadas academias de Teologia daquela época. Ambos se utilizaram da "razão" e da inteligência, para alcançarem um conhecimento divino mais apurado. As pessoas entendem que Pedro, por ser pescador, era inculto. A Bíblia não afirma esse perfil. Esse pensamento é extraído da cultura contemporânea ocidental, extraída de sua profissão e de sua condição financeira. Contudo, trata-se de um olhar conclusivo precipitado e sem respaldo, pois os seus escritos não demonstram que ele era "semi-analfabeto". Quando Paulo afirmou que o seu conhecimento anterior era "esterco" (ou adubo), ele dizia de um nutriente de preparo para o plantio, embora não tenha sido compreendido. Decerto, a idéia de fé fora da razão traz, subjacente, uma mensagem manipuladora e sectarista, que afasta os questionamentos saudáveis, objetivando, com essa "catequização sectarista", a alienação, de forma que deixar de pensar ou de questionar as imposições eclesiásticas, rotuladas de "revelações divinas", não faz sentido, nem possui respaldo escriturístico. Destarte, quando alguém usa aquilo que Deus lhe deu, a "razão" e questiona as "revelações" eclesiásticas e "dogmas" impostos, tal como os crentes bereianos (cf. Atos 17:11 e 12), são rotulado de crentes "sem revelação" porque estão "na razão"; não na "revelação". Isso não possui respaldo bíblico, nem lógico e é bastante conveniente para um processo de manipulação. A propósito do que se disse acima, quando Paulo, em sua segunda viagem missionária, juntamente com Silas, ambos chegaram a Beréia (cidade da Macedônia, 80 km distante de Tessalônica), encontraram um grupo reunido numa sinagoga e esse grupo foi reconhecido por Lucas (escritor do Livro de Atos), como sendo "mais nobres", notadamente porque "examinando cada dia nas Escrituras se estas coisas eram assim..." (Atos 17:11). Portanto, aqueles crentes, estudiosos das Sagradas Escrituras, não "engoliram", de logo, o que Paulo dizia, mas questionaram e conferiram se aquele discurso estava de acordo com o modelo bíblico ou se era um "pacote de heresias". Esse comportamento de questionamentos, lhes foi imputado (aos bereianos), pela Palavra de Deus, como sendo "nobre". Daí porque Cristo exortou: "examinai as Escrituras..." (João 5:39). Examinar é pesquisar; é investigar minuciosamente; é inspecionar; é estudar; é ponderar; é verificar, por meio da razão; não sem ela. Se, de um lado, o sábio não deve se gloriar em sua sabedoria ("não se glorie o sábio em sua sabedoria...", conforme Jeremias 9:23); de outro lado, dela não deve se afastar. Utilizar a sabedoria, a inteligência e a razão que Deus concedeu ao ser humano, é recomendação bíblica; contudo gloriar-se na sabedoria (o contexto deixa claro que o texto diz respeito à soberba), cai-se num comportamento reprovado por Deus. Esse texto veterotestamentário não exclui a conexidade entre a fé e a razão. À sombra desse raciocínio, há uma interessante circularidade de recíproca potenciação no que se prega neste pequeno artigo, de sorte que "creio" para "entender" (intelligere) e "entendo" para "crer", harmonizando a "fé" e a "razão". Na compreensão das verdades reveladas (campo da Teologia) deve-se pensar, refletir e entender com a razão (campo da Filosofia); não sem ela, daí porque Paulo, no texto bíblico em epígrafe, falou do "culto racional", isto é do culto dentro da razão e não, absurdamente, fora dela, pois que ela é uma das maiores características do ser humano, notadamente que o distingue dos demais seres vivos. Alcançar (leia-se: receber) a "fé", não implica em se afastar da "razão", conforme equívoco que ocorre amiúde e se prega como "dogma". Em Agostinho (354 a 430 a.C. - precursor, formalmente, da linha platônica, da "Filosofia Cristã"), tem-se: "compreender para crer, crê para compreender" ("intellige ut credas, crede ut intelligas"). Decerto, não são realidades antagônicas, mas convergentes, mantendo mútua relação no campo da cognição. Com efeito, a "fé" não elimina a "razão", nem a "razão" deveria eliminar a "fé" e ambas foram criadas por Deus e ambas procedem dEle. Não há cisão entre fé e razão, como pensaram os antigos padres católicos, nos dois primeiros séculos. Não conseguiram entender que, em Cristo, havia uma aglutinação de duas naturezas: a divina (estrutura teocêntrica) e a humana (estrutura antropocêntrica), num diálogo necessário entre a fé (teocêntrica) e a razão (antropocêntrica) reunindo Criador e criatura, em comunhão. Essa foi, afinal, a proposta messiânica. Quanto ao ser humano, a razão o faz crer e o faz descrer, dependendo de sua escolha, em livre arbítrio. Há fortes argumentos para crer e para descrer, depende do que se abraça pela fé, mas uma fé espiritual e racional. A fé irracional é mística, fanática e suscetível de manipulação opressora. O Deus Revelador não possui aversão à razão (razão como movimento do intelecto), pois Ele a criou. Deveras, Deus presenteou o ser humano com a inteligência. Para se crer, não se pode desvestir-se da razão, como se a fé fosse irracional. Nessa quadra, o "Logos da Fé" e o "Logos da Razão" procedem da mesma fonte de Verdade Eterna: Deus. A vontade e o livre arbítrio são instrumentalizados pela razão, daí porque o Criador deseja que o ser humano O siga, com o seu raciocínio e com a sua razão, pois o Altíssimo não pretende que o ser humano seja um robô, guiado pela imposição divina. Não! Ele deseja que os Seus servos O sirvam com a espontaneidade e o seu livre arbítrio, nutrido pela gratidão e pelo desejo, pela fé, de seguir o Caminho Verdadeiro que leva à Vida. Com relação ao ser humano, Deus não o priva da razão para brindá-lo com a revelação. Ele utiliza ambas, em uníssono, para estabelecer a comunhão Criador/criatura. Aquela frase: "quem não vem por amor, vem pela dor", é um ditado popular oriundo de quem nunca conheceu o Deus Misericordioso, pois Deus não obriga a ninguém "vir por amor". Afinal, essa frase não está na Bíblia. E o livre arbítrio? À sombra dessa idéia, para a apreensão da verdade revelada, necessário se faz o uso da intelecção, da razão apurada. É nesse sentido que se diz que o ser humano precisa da razão para entender, de forma sincera e espontânea, a revelação (no segmento judaico/cristão) em sua plenitude, motivo pelo qual a razão, inata ao ser humano, o liberta do obscurantismo, de superstição religiosa, da ignorância, das imposições eclesiásticas, proporcionando dignidade. Com efeito, Deus comunica a fé dentro do racional; não fora dele. É significativo afirmar que não se pode abraçar o "fideísmo" (uso fanático e patológico da fé), nem o "racionalismo" (uso ortodoxo e extremado da razão), mas o recomendável é manter um equilíbrio entre eles. Em última análise, o que se vem a dizer é que a "fé" e a "razão" reclamam um diálogo recíproco e complementário; não excludente, como equívoco que ocorre amiúde. Como resultado dessa assertiva, este singelo rabisco traz essa reflexão salutar, instigando um ponto a ser repensado, afastando os "dogmas eclesiásticos" sem fundamento bíblico. Que tudo se estabeleça para a honra e glória do Grande Nome do Senhor dos Exércitos. escritor ézio luiz pereira (www.ezioluiz.com.br)