Encontro Internacional Participação, Democracia e Política Públicas: aproximando agendas e agentes 23 a 25 de abril de 2013, UNESP Araraquara, SP Na dimensão das utopias: participação social e solidariedade entre as mulheres de Sobral-Ce: Ivaldinete de Araújo Delmiro Gémes (Universidade Estadual Vale do Acaraú UVA) Fernanda Maria Matias Sousa (UVA) Márton Támas Gémes (UVA) O presente artigo versa sobre a problemática da inserção de um grupo de mulheres da periferia de Sobral-Ce nos processos de participação social, solidariedade e cidadania. A intenção é compreender como se processam as práticas de prestações de serviço, sociabilidades entre as mulheres/mães pobres de Sobral-Ce e analisar até que ponto estas práticas são sustentadas pelo processo de afastamento do Estado. A pesquisa é resultado de um estudo de caso, da observação participante e de entrevistas com um grupo de mulheres denominado de mães sociais. É preciso observar que, na pesquisa social, as abordagens qualitativas ajudam no processo de interpretação das práticas cotidianas. O agente pesquisador incorpora valores, métodos e técnicas que agem em direção as questões e respostas geradas no campo de pesquisa. Nesse sentido, a pesquisadora foi ao encontro das mulheres nos territórios demarcados pelas experiências significantes de aproximação, respeito, confiança mútua e ética. O campo de pesquisa se desenhou na dialética da construção do conhecimento, pois, para visão de Demo (2009, p.58) a atividade de construir conhecimento, em si, precisa preocupar-se com a socialização por uma razão hermenêutica vital do conhecemos o conhecido e pesquisar tornou-se uma forma de promover a cidadania. Escrever sobre a realidade que nos cerca é mergulhar no campo do envolvimento com o outro, nesse mergulho me observei ocupando um tempo e um lugar reconhecível e decifrável através das narrativas produzidas pelas personagens que habitavam aquele cotidiano. O campo de pesquisa foi delineado pelas práticas de suas moradoras. As atividades sociais dessas personagens passam por constantes transformações. O fazer cotidiano é proporcionado pelas artes do cuidar do outro e foi regulado através das trocas de economias afetivas, culturais e políticas. Os comportamentos sociais das mulheres sobralenses na função de mães sociais estão imersos nas práticas de solidariedade das classes populares. Em Sobral, as políticas públicas de saúde se inscrevem no âmbito das ações das estratégias de saúde coletiva e comunitária. Essas estratégias atuam no sentido de valorização de novas práticas de políticas de saúde, com a finalidade de promover à assistência à saúde de forma adequada no que tange ao atendimento a população de baixa renda. O Programa mães sociais é resultado da experiência de implantação de políticas públicas de saúde para as mulheres no Município de Sobral-Ce. Esse Programa compreende uma rede de assistência à saúde e implica na viabilização do acesso das mulheres aos serviços de saúde existente no município. A principal tarefa desse programa é reduzir a Mortalidade Materna. O debate sobre a participação social envolve aqui uma ampla experiência de gênero no tocante à propagação de estratégias de saúde para as mulheres de camadas sociais desfavorecidas, como também envolve o processo de uso e apropriação dos serviços das redes públicas de saúde. Para indicar, a experiência de gênero, abordo ainda acerca das reproduções de práticas da vida social e ritmos de sociabilidades de mulheres/mães que partilham suas experiências públicas e privadas com alguns setores da sociedade civil. Nesta pesquisa busco analisar as questões de gênero relacionadas às condições de classe. A classe social, no segmento da população pesquisada está associada à quantidade de renda, grau de escolarização, emprego, quantidade de filhos e a qualidade de vida dos sujeitos sociais envolvidos. As mulheres/mães e mães sociais sobralenses que são sujeitos desta pesquisa fazem parte de uma estrutura social marcada pelas transformações trazidas pela urbanização, industrialização e tecnologização que, de certo modo, acarretaram mudanças na forma de pensar e viver. A via proposta na articulação entre gênero e classe social, é configurada na análise que discute, por um lado a relação ou alocação das mulheres com o mundo da produção e reprodução material da existência, por outro lado, esta análise reside na representação de caráter ideologizante do mercado de trabalho, do consumo, da organização da divisão técnica e sexual do trabalho, da estrutura familiar, do tempo de lazer feminino, na estruturação de políticas públicas e na reprodução humana. Gênero aparece aqui informando a legitimação da política social e cultural que se apóia nas relações de dominação, principalmente no processo de desenvolvimento das forças produtivas que acarretaram a aceleração da precarização instituída no campo da produção e reprodução da vida familiar, afetiva, social e política de sujeitos sociais (homens e mulheres). As relações de classes se articulam no processo dialético do campo de força político, cultural, técnico e educacional. A conexão entre a condição de classe e atuação em atividades políticas de associativismo (redes) também influenciam no resultado da disponibilização de recursos por partes de agências privadas e do Estado, através de programas de ajuda humanística, como os programas de combate a pobreza, de redução da mortalidade (materna, neonatal e infantil), combate a violência doméstica e o combate a desigualdade econômica. A interferência do Estado na órbita das políticas de saúde e dos direitos das mulheres é marcada por ambiguidades, principalmente quando se leva em consideração a representação que se reproduz da mulher como um sujeito reprodutivo, sem autonomia financeira, sem status político e que deve se esforçar para proteger os filhos/as e cuidar da família. Na análise crítica de duas estudiosas de gênero Matos e Borelli (2012, p. 142), se debate esta questão: As ações governamentais priorizam a proteção e defesa da instituição familiar, reforçando a importância da maternidade e os cuidados femininos do lar. Considerando o trabalho feminino fora do domicílio uma atividade provisória e/ou complementar ao trabalho exercido pelo chefe de família, tais ações privilegiam os homens em detrimento das mulheres no mercado de trabalho. Para Pinsk (2012, p.470) é importante conhecer as representações que prevalecem em cada época, pois elas têm a capacidade de influenciar os modos de ser, agir e sentir das pessoas, os espaços que elas ocupam na sociedade e as escolhas de vida que fazem. A exclusão econômica e política das chamadas minorias sociais, e especificamente das mulheres nordestinas engendra uma constante contestação, participação e organização em torno de lutas pelos direitos sociais, e consequetemente demandam ações das políticas públicas. As trajetórias de participação e de envolvimento desses sujeitos sociais envolvem uma rede de trocas sociais, econômicas, políticas e simbólicas entre mulheres/mães em diferentes espaços/tempos sociais. Essas trocas sociais apontam para uma discussão das relações de gênero. No processo de trocas, de divisão sexual do trabalho, de reconhecimento de papeis sociais, de funções e cargos de poder, percebe-se que há uma relação de hierarquia entre o mundo masculino e feminino. Como frequentemente ocorre quando se analisa as relações estabelecidas entre as esferas do público e do privado. Para Pinsk (2012, p. 470), “Os discursos sobre o que é “próprio da mulher” ou qual o “seu papel” afetam também as políticas públicas, o valor dos salários, a oferta de emprego, as prescrições religiosas”. É bom ressaltar que este processo apresenta-se como um ponto norteador para se questionar acerca da desresponsabilização do Estado diante da gestão das políticas públicas para as mulheres brasileiras. A presença e a ausência do Estado devem ser estudadas a partir de determinado contexto histórico social, pois implica em uma análise relacional com determinantes e condicionantes que operam na base de várias instâncias do político. É importante não separar a esfera pública da esfera privada, pois se deve considerar que os vínculos que orientam as dinâmicas entre ambas são constituídos através dos conflitos de interesses, representação, negociações, formas de coesão e de participação social. Nas democracias contemporâneas falar em participação social é antes de tudo falar do direito à proteção da liberdade individual. A história de como se ampliou os processos democráticos no Brasil, com a participação permanente dos várias instâncias políticas no cenário das lutas sociais e políticas, nos mostra que os conflitos de interesses entre o Estado e as demais instâncias políticas da sociedade civil, possuem um caráter de legitimação do exercício dos direitos, da liberdade, do respeito e da cidadania. Nesse jogo de interesses que brota da arena política, o interesse da maioria se torna a principal regra que serve para legitimar e consolidar a democracia. Desse modo, percebe-se que as regras que orientam o jogo da democracia representativa são elaboradas pelos os princípios jurídicos, filosófico e moral, estas regras reúnem um conteúdo de direitos civis com base na igualdade e nas liberdades fundamentais dos cidadãos. Durante o período de 1985 a 2000, assistiu-se um processo de crescimento das lutas sociais no campo e na cidade na sociedade brasileira. Os movimentos sociais se posicionavam abertamente no interior dos crescentes conflitos de terras, de luta pelo emprego, de luta pela moradia, de luta pela educação de qualidade, de luta pela reforma agrária, de luta pela participação e representação política partidária, de luta pelas políticas de saúde para as mulheres, de organização de sindicatos classistas. Neste período deve-se reconhecer que as necessidades de lutas assumidas pelos movimentos sociais apontavam para um progressivo processo de efervescência e da participação política em vários setores organizado da sociedade. A participação dos integrantes de movimentos sociais através de diversas lutas e de ações coletivas tornou-se fonte de pesquisas e estudos no âmbito das Ciências Sociais. Na visão de Sader (1988, p.52) o movimento social brasileiro apresenta uma visibilidade através de novos sujeitos sociais que entram em cena e traçam novas formas de resistências sociais. O cotidiano é transformado em um espaço de ação política, de resistência e práticas contra todos os tipos de dominação. Neste sentido, os analistas passam a estudar o movimento social a partir de suas singularidades. Na análise de Carvalho (1988, p.1) participação popular é uma forma de manifestação histórica dos movimentos sociais, pois: A participação popular sempre existiu desde que existem grupos sociais excluídos que se manifestam e demandam ações ou políticas governamentais. Nesta perspectiva, todas as mobilizações e movimentos sociais são formas de participação popular, que se diferenciam segundo as questões reivindicadas, segundo as formas possíveis, definidas tanto pelos usos e costumes de cada época, pela experiência histórica e política dos atores protagonistas, assim como pela maior ou menor abertura dos governantes ao diálogo e à negociação. No que diz respeito às modalidades de participação, a regra fundamental é o interesse dos grupos, as demandas sociais, ou seja, as lutas coletivas de cada segmento social. As práticas e os discursos políticos inscrevem-se no universo da militância dos adeptos dos movimentos sociais e das mobilizações realizadas a partir desses protagonistas que reivindicam os espaços de cidadania. Para Moisés (1979) os movimentos sociais na América Latina foram marcados pelo seu caráter popular, pois eles reivindicavam uma identidade de sujeitos coletivos e socialmente heterogêneo, desenvolviam ações coletivas no plano da política. Daí neste período o surgimento e presença de tantos novos sujeitos sociais no cenário político da sociedade Brasileira. No que se referem aos movimentos sociais e populares que assumiram este tipo de ações, as CEBs se revelaram como um sujeito coletivo com expressões religiosas que propagaram a participação social e a identidade política/religiosa de seus membros. A dinâmica das comunidades Eclesiais de Base foi construída a partir de suas bases econômicas, eclesiais, políticas e culturais. Assim descreve Delmiro (1996, p.61) “CEB é um grupo de pessoas que vivem em comum unidade. Esta unidade reside no plano cultural, político e socioeconômico. Existe uma rede de solidariedade que marca a vida de uma CEB”. Para Delmiro as Comunidades Eclesiais de Base foram, sem dúvida, um movimento eclesial e popular que marcou um novo jeito de fazer política das camadas populares oriundas do campo e da cidade, além de marcar “um novo jeito de ser Igreja”. Dessa forma, as CEBs foram analisadas pela sua importância social e pela participação social de seus membros. Em uma análise mais detalhada sobre as CEBs, percebeu-se que as Comunidades de Base eram um espaço de fé, de formação e cidadania. Como afirmou Delmiro (1996, p.100): Os membros das CEBs buscam superar suas dificuldades através do processo de educação e conscientização em que estão inseridos. Nesse sentido, a comunidade aparece como uma opção para a libertação, um canal para a vida, um leque de participação social e um compartilhar de alegrias e tristezas, de angústias e esperanças dos cristãos. Com outras palavras para os membros, as CEBs representam o viver solidário com os irmãos e o despertar para a luta. Nesta análise é importante ressaltar que para de alguns sujeitos sociais pertencentes às camadas menos favorecidas, a participação social é, sem sombra de dúvida, uma forma de adquirir status político, atingir metas coletivas e pessoais, de experimentar um processo de inclusão e pertença que muitos estudiosos apontam como sendo uma maneira de reconhecimento, de participação e cidadania. Neste sentido, a participação social é ressaltada como o suporte da democracia, ou seja, é a forma consensual do fazer política inspirada nos princípios de justiça, ética, direito, liberdade, igualdade e cidadania. Na análise de (Dworkin, 2001) a democracia é parceria, é um conjunto de indivíduos associados em busca dos mesmos fins, “é a forma de governo na qual os cidadãos agem como parceiros de um co-empreendimento governamental” (Dworkin, 2001, p.161). Para que a democracia seja exercida é necessário que os agentes ou protagonistas se comprometam na ação coletiva como cidadãos. No Brasil fica evidente que o processo de distribuição de riquezas não acarreta de imediato o processo de reconhecimento dos direitos políticos dos cidadãos. As formas de participação desses sujeitos sociais são redefinidas ou remendadas no novo contexto político. Quais as razões gerais para que uma democracia venha sobreviver com o impacto dessas desigualdades? Para Fraser (1997) o reconhecimento das minorias sociais é constituído no campo de luta pela redistribuição de riquezas econômicas e sociais. E o processo de luta pela igualdade social, ocorre quando se instaura políticas de reconhecimento dessas minorias. Esta autora debate sobre o processo de exclusão social, sobretudo, ela aponta para a exclusão de gênero que é reforçada a partir das desigualdades sociais e da separação entre as esferas públicas e privadas. Nas esferas públicas as mulheres são sujeitos excluídos. A miséria social e política aparecem de forma naturalizada na vida cotidiana de grande parte da população brasileira. São 35 milhões de pessoas vivendo a abaixo da linha de pobreza, sem a menor condição de viver dignamente. Além de existir milhões de pessoas sem emprego, sem escola sem moradia, há um grande contingente da população sem nenhum acesso aos chamados bens de serviço. Este estudo permitiu-me fazer a discussão sobre o “protagonismo de mulheres pobres” da Região Norte do Estado do Ceará, por meio da inclusão e reconhecimento, da participação social e da orientação ao mundo do agenciamento de ações coletivas e comunitárias. Fazer política social de interesse coletivo é uma coisa, propor políticas salvacionistas, que na maioria das vezes, não implica no interesse da população assistida, é bem outra. Parece haver razões (ideológicas entre outras) pelas quais o Estado tenta propagar a promoção da justiça e dos direitos sociais em casos emergenciais. A questão que se coloca neste artigo é como pensar em participação social e democracia frente a essa sociedade que reproduz pobreza e misérias dos seus membros? Até que ponto é favorável a desigualdade e a injustiça social? Que tipos de instituições políticas se favorecem com esta situação? A noção de participação social é também compreendida através da perspectiva das políticas púbicas, pois coincidem com os mecanismos (ideológicos) de apelo das instituições governamentais e não governamentais em torno das demandas sociais ou dos chamados compromissos políticos. Durante muitos anos a participação social foi marcada na sociedade brasileira a partir de um contexto político permeado por diversos processos que envolvem os direitos sociais das chamadas minorias sociais: as mulheres, velhos, negras homossexuais, moradores de rua; pela incapacidade das democracias representativas, pela força esmagadora do mercado e pelas demais demandas focais. Este cenário propiciou uma gama de estudos, debates, teses e críticas sobre a representação de política social, marginalização, solidariedade, justiça, igualdade, participação e cidadania. O processo de participação social, muitas vezes, se propagou através das lutas e conflitos gestados no seio das democracias representativas. Estes jogos de interesses transformaram os processos de negociação dos interesses coletivos de vários setores da população brasileira. Segundo Homero (2007) há uma desconfiança dos brasileiros em relação ao sistema democrático e suas instituições, principalmente quando se trata dos partidos políticos, esta desconfiança e descrença tornam-se bem visível. É evidente que a grande maioria da população defende a democracia representativa como a melhor forma de regime para o exercício da cidadania e para a organização da coisa pública. Porém, as instituições democráticas, especificamente os partidos políticos atravessam uma grave crise de credibilidade e legitimidade. Na visão de Baquero (2000, p.149) as instituições democráticas degeneram a democracia quando se utilizam das práticas e procedimentos antidemocráticos, que pervertem a representação política e geram dúvidas. Para este autor, a desconfiança e o desencanto com as instituições democráticas ocorrem no sentido de desvalorização dessas instituições. O regime democrático brasileiro apresenta indícios de grave desigualdade social. A população sofre com as consequências da falta de equidade de renda, da carência de políticas públicas de saúde para mulheres, da falta de direitos políticos como educação, moradia, segurança e alimentação. O modelo de democracia que se consolidou no Brasil propagou, de forma contraditória, com as formas de desigualdades sociais. As taxas de miserabilidade dos últimos 25 anos apontam números alarmantes, são mais de 38 milhões de pessoas (crianças, mulheres, negros, adultos e velhos) vivendo abaixo da linha de pobreza. Neste sentido a reprodução das desigualdades sociais além de causar erosão na economia do país devido às perdas econômicas, ainda favorece diretamente para o enfraquecimento democrático da participação política. Daí da necessidade de construção dos mecanismos e estratégias através dos espaços de participação social, que reforce os potenciais de luta pela redistribuição das riquezas econômicas e sociais, e que fortaleça o reconhecimento dos direitos sociais das chamadas minorias sociais e dos grupos excluídos. Para Regina Pinto (2002, p.83/84) a democracia contemporânea deve ser analisada a partir do surgimento de novos grupos e demandas com destaque nas mulheres e as minorias e étnicas e sexuais. O surgimento dessas novas identidades contribuiu de forma muito definitiva para por em cheque uma das noções mais arraigadas da modernidade, a saber, o universal, noção essencial para a construção do arcabouço teórico e mesmo político das ideias de democracia, direitos humanos, interesses gerais. O questionamento “da universalidade do universal” introduz a noção de diferença e de impossibilidade de sua redução a um princípio único. (PINTO, 2002, p.83/84). Nada expressa melhor da representação de que a democracia brasileira, apesar das tensões e conflitos que a constitui, ela pode se fortalecer como um meio de propagação da justiça social, da centralidade da luta pelo reconhecimento das minorias (gays, lésbicas, mulheres, transexuais, sem terra, sem teto, negras/os, portadores de deficiências), do direito de afirmação identitária, da luta pela igualdade distributiva. Daí o fortalecimento dos espaços de realização do Direito Positivo ou das políticas de discriminações positivas. No Brasil a experiência das ações afirmativas e das cotas no final da década de 1980 e no início da década de 1990 se solidificou como um aspecto relevante no processo de participação social e de ação política por parte de alguns segmentos sociais. Neste sentido as ações afirmativas apontavam para o grau de organização política dos movimentos sociais e para eficácia da participação e representação social de diversos setores: sindicatos, partidos políticos, movimentos de mulher entre outros. Na análise de Araújo (2002) foi no período de redemocratização e no processo constituinte que aumentou a participação política e social de mulheres. Esta autora ainda afirma que a participação das mulheres nas instâncias de poder era invisível e insuficiente. Foi neste período que houve uma expressa visibilidade dos mecanismos que dificultavam o acesso das mulheres aos canais de decisões políticas. As políticas de cotas e as ações afirmativas se desenvolveram devido à permanente luta travada contra todas as formas (simbólicas/práticas) discriminatórias impostas às mulheres, negras/os, portadores de deficiências e outros sujeitos socialmente excluídos. Araújo (2002, p.149/150) esclarece que “as ações afirmativas e as cotas emergem num contexto de enfraquecimento de projetos políticos alternativos, quando as atenções se voltam para o aprimoramento da democracia representativa”. O processo de participação política, social e econômica na sociedade contemporânea corresponde ao discurso de participação dos indivíduos através de dinâmicas coletivas combinadas (ou não) com as estratégias de ação estatal. Esse fato ocorre a partir de um processo de associação política, de conflito, de socialização, de pertença e de reconhecimento. Na visão de Sorj (2006, p.103): A participação do cidadão e a ação estatal só são possíveis graças às organizações e suas infraestruturas, a recursos materiais e simbólicos, sejam os aparelhos de Estado, os meios de comunicação, os sindicatos, os partidos políticos, os movimentos sociais, sejam as ONGs, para nomear os mais importantes. Em todo caso, a coesão social não é dissociável das mediações institucionais, a partir dos quais os indivíduos tecem (e são tecidos por) os múltiplos interesses que os ligam a uma dada cidadania nacional. A forma de participação social, que existe na cidade de Sobral-CE faz parte de um processo de institucionalização de políticas públicas de saúde para as mulheres no período reprodutivo. Neste artigo pesquisei o caso das mães sociais, ou melhor, busquei compreender a participação de um grupo de mulheres que fazem parte de uma estratégia de saúde construída a partir de ações sociais elaboradas e planejada pelo município (estado), instituições privadas e organizações não governamentais (ONGs), que se propõem ao atendimento às mulheres das camadas populares do município de Sobral-CE. A mãe social é a mulher/mãe que presta um serviço comunitário e dedica parte de seu tempo na prática de cuidar de outras mulheres e de suas crianças (filhas e filhos) até o primeiro ano de vida. Elas assumem o papel de articuladoras da transmissão das experiências populares das práticas cuidativas. Este tipo de experiência foi engendrado a partir da Estratégia Trevo de Quaro Folhas, que atua com o objetivo de balizar as estratégias e programas de saúde na orientação, nos cuidados e no atendimento necessário às mulheres e crianças até um ano de vida, neste sentido, esta estratégia visa garantir que mulheres/mães pobres durante o período de gestação, parto e o primeiro ano de vida de seu filho sejam assistidas de forma mais humanizada. As práticas cuidativas das mães sociais constituem parte de um tipo de trabalho em domicílio executado por mulheres mães que recebem um benefício social para atuarem em uma estratégia (programa) de saúde da cidade de Sobral-CE. Esta participação se manifesta, de um lado, pelo aumento das formas de assistência à saúde da mulher gestante e da criança até o primeiro ano de vida. Por outro lado o processo de participação social das mães sociais se desenvolve pelas diversas situações relacionadas a algumas demandas sociais, como: o direito à vida, ao reconhecimento, ao trabalho, a saúde. As mães sociais são pessoas que participam de um processo de trabalho em rede, são submetidas a uma qualificação e avaliação de suas experiências de vida por uma equipe multiprofissional de saúde. O trabalho que é elaborado pelas mães sociais é um tipo de atividade realizada em tempo parcial. As mulheres mãe sociais são responsáveis por esse tipo de atividade, na medida em que representam uma estratégia de proteção social ou um vínculo de solidariedade e de cidadania para outras mulheres mães que necessitam de cuidados especiais na gestação, no parto e no período do pósparto. O fato que chama atenção, é que o desempenho ou das práticas cuidativas das mães sociais intercede diretamente no processo da redução da mortalidade materna e infantil. Ora, minha pretensão foi investigar a participação de mulheres em situação de pobreza em um programa de práticas cuidativas e de cooperação social na cidade de Sobral-CE. Busquei compreender quais os motivos que influenciam a participação dessas mulheres no exercício específico de compartilhar suas experiências de mães, através das práticas cuidativas, com outras mulheres/mães. Esse fenômeno aponta para as práticas de gênero ligadas ao cuidar do outro. A dimensão das desigualdades sociais proporciona por um lado discriminação da mulher, mas por outro lado condiciona estratégias de sobrevivências, reciprocidades e escolhas. É interessante observar que o processo de socialização reproduzidos nos espaços das redes de assistência, cooperação e ajuda social estabelece uma conotação de gênero. Porque as relações sociais de gênero estão associadas a outras relações tais como classe social, geração e etnia. Na definição de Scaparo (1996, p. 35) as diferentes formas que compõe o processo de socialização são estabelecidas da dialética entre o sujeito e o contexto cultural e social. Os espaços físicos foram delineados e mapeados, durante a pesquisa, através das necessidades e das oportunidades de socialização, de trocas, de saberes e de experiências. Esta delimitação não teve como principal requisito a localização física, as circunstâncias sociais e as condições materiais, mas o que ficou marcado neste espaço foi a frequência das estruturações das práticas cuidativas e de outros eventos sociais significativo, principalmente o evento da reciprocidade que foi apreendido no cotidiano dos grupos e instituições que formam as redes sociais. No decorrer da observação de campo, um fenômeno que chamou a minha atenção foi o da reciprocidade identificado nas redes de apoio reproduzidas pelas as mães sociais, as mulheres mães usuárias, os agentes sociais, as madrinhas sociais, as instituições públicas, as entidades privadas. Esses sujeitos sociais são identificados como tais por suas contribuições e seus investimentos simbólicos na dinamização dos processos de socializar e reproduzir as experiências que privilegiam a dimensão da dádiva. Na pesquisa realizada através dos arquivos do Trevo de Quatro Folhas, a Madrinha Social é alguém que assume a criança como afilhada e fornece suporte financeiro para ajudar a manter o trabalho da Mãe Social e acompanha o desenvolvimento da criança sua afilhada. As madrinhas sociais são iniciativas da Estratégia Trevo de Quatro Folhas e outras entidades do município. Elas participam ativamente da decisão de adotar uma criança doando uma pensão ou ajuda financeira para ajudar no orçamento da família e melhorar a qualidade de vida das crianças. O papel atribuído as madrinhas sociais vai além da ajuda financeira, uma vez que quando há o acompanhamento de perto, se consolida uma relação afetiva entre madrinhas e afilhados. Durante o processo de pesquisa realizei um estudo de caso da Estratégia Trevo de Quatro Folhas, fiz observação e entrevistas semi estruturadas com as mães sociais e com profissionais imersos nas áreas de saúde (enfermeiras, pediatra, ginecologista, psicólogas entre outros) que atuam diretamente no processo de gerenciar, cuidar e garantir o atendimento adequado à saúde da mulher. Procurei realizar detalhadamente a descrição do processo de implementação do programa da mãe social na cidade de Sobral. Também fiz uma abordagem teórica dessa problemática, buscando dialogar com alguns autores, no sentido de possibilitar uma discussão mais específica sobre esse fenômeno. A abordagem teórica pretendida neste trabalho visa aprofundar as discussões sobre a política pública de saúde, participação social, desigualdade social, ideologia, democracia, reconhecimento, direitos sociais, reciprocidade entre mulheres pobres e o cuidar do outro, levando em consideração as novas perspectivas teóricas e as divergências dos conhecimentos que configuram na compreensão dessa problemática social. A emergência de questões de gênero mostra dimensões subjetivas, que vão além de uma racionalidade instrumental. Esta emergência tem contribuído para o surgimento de estudos acerca das estratégias alternativas resultantes de processos sociais e organizações de práticas articulatórias que condicionam o desenvolvimento de redes de participação, reciprocidades e de sobrevivência na configuração social das mulheres. O estudo de caso foi conduzido através dos processos de participação e aprendizagem sociais produzidos no campo da pesquisa. Esta perspectiva metodológica pode ser descrita como uma aproximação e envolvimento da pesquisadora na dinâmica que envolve os processos de interação social. Esta dinâmica foi construída através de uma relação intersubjetiva entre os atores sociais e a pesquisadora. Durante o trabalho de campo, foi realizada uma pesquisa documental em instituições públicas e privadas, relacionadas ao atendimento à saúde da mulher. Estabeleci contatos com os agentes sociais que estavam envolvidos nas experiências e tramas socialmente construídas. Estes contatos ocorreram através de visitas realizadas na Escola de Formação em Saúde da Família Visconde de Sabóia, nas unidades de saúde, na Secretaria de Saúde do Município de Sobral, na Estratégia Trevo de Quatro Folhas, na Maternidade da Santa Casa de Misericórdia de Sobral. O crescimento das cidades no Brasil foi acompanhado pela aceleração das desigualdades sociais e pelos processos de destituição que a elas estão associados. Essas desigualdades criaram desequilíbrios nos diversos setores da sociedade civil, como no setor da educação, da saúde, do lazer, do mercado de trabalho. A desigualdade aparece, na sociedade brasileira, de forma relacional e multidimensional como resultado de um processo da má distribuição dos recursos sociais gerados pelas políticas neoliberais que afetam diretamente todos os cidadãos. Os mecanismos geradores e reprodutores das desigualdades sociais reforçam o processo de exclusão e o aumento da população desfavorecida, especialmente de mulheres, negras e jovens. Nesse contingente da população excluída encontram-se: negros, os analfabetos, idosos, moradores de rua, jovens, crianças e as mulheres pobres, que são atingidas de diversas formas dentro do sistema perverso de precarização social. Além das desigualdades estruturais, as mulheres sofrem outros tipos de desigualdades respaldadas nas tensões geradas dentro do processo coletivo que alimentou, durante muito tempo, a cultura patriarcalista que classificou historicamente a mulher como inferior ao homem. As práticas de dominação e da violência imposta às mulheres foram construídas historicamente a partir de relações dissimétricas de poder entre os sexos, onde as representações de feminino e masculino, de desigualdades e igualdades, de diferença e igualdade entre homens e mulheres afirmaram/ou afirmam as diversas formas de dominação entre os dominadores e os sujeitos dominados. Na perspectiva de Bleichmar (1985) o gênero abarca aspectos culturais, sociais e psicológicos do tornar-se homem ou mulher. Pois, segundo esta autora o gênero é descrito (1985, p.38) como uma categoria “complexa e com múltiplas articulações, que se desdobram em papel de gênero, identidade de gênero e atribuição de gênero” No que diz respeito à dominação imposta às mulheres, na maioria das vezes, aparece através dos dispositivos sociais, políticos, econômicos, jurídicos e nos costumes corporificados através das práticas cotidianas que se expressam no recorte das diferenças racial/étnica, de sexo, de gênero, urbano/rural, de idade/geração e de classe. Um caso específico que pode servir para exemplificar os dispositivos da dominação criada na nossa sociedade é a forma como aparece o trabalho doméstico. Trata-se de uma atividade que é atribuída somente às mulheres, como afirma Pedro (2012, p.251): “Poucas mulheres têm a sorte de contar com a participação do companheiro nas tarefas do lar. Mesmo as que recebem tal colaboração (consideram uma ajuda), sentem-se as principais responsáveis pela organização e boa administração do lar.” A situação de desigualdade social no Brasil é agravada pela inexistência ou descaso com a proteção social e com os direitos sociais, como: moradia, lazer, educação, saúde, trabalho entre outros. As consequências desse fenômeno são visíveis através da situação preocupante, da maioria das mulheres nordestinas que vivem em uma situação cultural, política, educacional, de saúde e econômica de exclusão social. Na Região Nordeste e Norte do país o agravamento do quadro de injustiça social é promovido pela precariedade na qualidade de vida da população que é carente no uso de recursos sociais como: transporte, saúde, moradia, educação saneamento, trabalho. A apropriação desigual desses bens e recursos intensifica de forma perversa os abismos regionais e aponta para a real situação de desigualdade social. Esse quadro de exclusão levou as constantes pressões sociais dos grupos e movimentos sociais. Os movimentos de mulheres ingressaram na luta pela construção dos direitos humanos, sociais, políticos, econômicos. Estes movimentos sociais desempenharem um papel relevante no tocante a luta pela implantação e pela fiscalização das políticas públicas, especialmente no que se refere aos direito à saúde e a qualidade de vida das mulheres brasileiras. Embora as políticas públicas apareçam aqui entendidas, como medidas, programas e planos estruturados a partir de um sistema do reconhecimento de carências sociais que afetam vários setores da sociedade, nem sempre é comum encontrar viabilização dos programas que visam sanar todas as demandas. As instituições sociais que se encarregam de aplicação de políticas públicas lidam de modo consciente com as práticas institucionais de exclusão. É dever do estado e da sociedade civil garantir a igualdade de acesso à participação das mulheres pobres na vida econômica, política, cultural, educacional, especialmente nas esferas relacionadas à saúde e a plena valorização do fortalecimento da qualidade de vida. Pois segundo Heinen (2009, p.188), “As políticas sociais e familiares cobrem um espectro muito amplo de campos de ação do Estado, indo da demografia ao emprego, passando pela saúde, a educação e a moradia. Elas implicam uma intervenção dos poderes públicos na esfera do privado”. O Estado brasileiro estabeleceu a formulação e a implantação de políticas públicas em vários setores da sociedade, a partir dos diagnósticos oficiais e das emergências da demandas sociais. No Brasil durante a década de 1990 a temática da saúde da mulher se configurou com um grave problema político, foram criadas políticas públicas de combate ou redução da mortalidade materna e da mortalidade infantil. Essas medidas e ações governamentais foram adotadas com a finalidade de assumir responsabilidade no campo da reprodução humana (aborto, anticoncepção, monitoramento da gravidez, técnicas reprodutiva, acompanhamento no período de gestação, aleitamento etc.). No conjunto dessas políticas, percebeu-se a importância de compreender as especificidades de cada setor e as diferenças regionais, culturais, e étnicas, em funções das discriminações e relações desiguais de ordem: étnica, política e social. Outros estudos têm mostrado que a mulher das regiões Norte e Nordeste não goza de condições equânimes em relação à população das regiões sudeste e sul do país. Neste trabalho faço uma análise acerca da saúde da mulher nordestina pobre pertencente às camadas sociais mais desfavorecidas, onde destaco que as políticas públicas de atendimento à saúde de mulher têm um papel importante na redução da mortalidade materna e infantil, porém, esse papel é limitado no combate às diferenças e desigualdades sociais. Diante disso, a pesquisa se propõe analisar as questões de gênero marcadas pelo marco de classe. A classe social, no contexto da pesquisa em andamento é associada à quantidade de renda, grau de escolarização, emprego, quantidade de filhos e a qualidade de vida dos sujeitos sociais envolvidos. As mulheres/mães e mães sociais sobralenses que são sujeitos desta pesquisa fazem parte de uma estrutura social marcada pelas transformações trazidas pela urbanização, industrialização e tecnologização que, de certo modo, acarretaram mudanças na forma de pensar e viver. Desde o final dos anos 1990, no município de Sobral vêm-se discutindo formas de introduzir programas e políticas públicas que articulem a viabilidade econômica, educacional e cultural da população. Esse processo culminou na elaboração de uma proposta de política pública de saúde que visa articular os mecanismos de intervenção governamentais as redes de apoio e cuidado dos usuários/beneficiários. Em Sobral-CE foi desenvolvido programas de saúde com a finalidade de reduzir a mortalidade materna e infantil. A Estratégia Escola de Formação em Saúde da Família Visconde de Sabóia, juntamente com os Centros de saúde da família, a Secretaria de Saúde e a Estratégia Trevo de Quatro Folhas criaram mecanismos para organizar a atenção básica a saúde das mulheres das baixas camadas sociais. Uma das estratégias foi acompanhamento as mulheres sobralenses no período de gestação (pré-natal), na assistência ao parto e no processo de cuidado com as mães e com os recém nascidos (puericultura). O programa da mãe social é um caso específico das estratégias de saúde que serve para exemplificar as práticas do cuidado especial que as mulheres e as crianças recebem dos setores e redes sociais de saúde de Sobral. Este programa social se justifica através da obrigatoriedade ou do compromisso dos poderes públicos em promover políticas públicas que visa garantir a assistência à saúde da mulher no período fértil, gestacional, durante o parto e no período pós-parto, no sentido de implementar as ações básicas sobre o planejamento da qualidade de vida da mulher e da criança das camadas pobres da população. No ano de 2001, a Secretaria de Saúde do Município de Sobral criou uma estratégia com a intenção de promover a melhoria no atendimento e na assistência à saúde da mulher no período fértil, da gestante e das crianças de até um ano de vida, com o objetivo de reduzir a mortalidade materna, a mortalidade perinatal e infantil. Este órgão público reorganizou a atenção básica a saúde através da implantação do Programa de Saúde da Família e outros programas sociais relacionados à saúde. Em cada unidade de saúde do Município de Sobral-CE foi instalado este programa, neste sentido cada segmento social (crianças, jovens, mulheres, idosas, trabalhadores e etc.) foi beneficiado através das práticas do Programa de Saúde da Família, principalmente as famílias de baixa renda composta por desempregados, trabalhadores informalizados, domésticas, operárias, estudantes, idosos, alfabetizados, trabalhadores do comércio e dos setores público e privado. As mães sociais são de origem urbana e rural moradoras dos bairros e distritos de Sobral: Bairro das Pedrinhas, Bairro da Coelce, Terrenos Novos, D. Expedito, Bairro do CAIC, Estação, Alto da Brasília, Bairro do Junco, Distrito do Jordão e Distrito do Aprazível. Estão na faixa entre 26 e 50 anos de idade. A maioria faz parte de uma rede de relações que se apresentam na seguinte configuração social: condições de vida econômica precária, casadas, mães de filhos (tem de 4 a 10 filhos), possuem o curso primário completo, desempregadas, são mulheres que assumem as exigências do trabalho doméstico, são responsáveis diretas na criação e educação dos seus filhos, às vezes, a mãe social é mantenedora do grupo familiar. Para a pesquisa foram entrevistadas 10 mães sociais. No meu trabalho de campo agendei e realizei as visitas e entrevistas com essas mulheres. Neste percurso fui auxiliada pelos sujeitos envolvidos nos territórios onde se desencadeia as práticas de saúde: monitores, agentes comunitários de saúde, assistentes sociais, enfermeiras, pediatras e médicos, obstetras. Este fato explica primeiramente pela dimensão territorial de difusão e acolhimento das variadas práticas de saúde. E segundo pelas táticas de minimização dos sofrimentos causados pela situação de pobreza e descaso pela vida. As funções e as práticas de cuidar do outro são consideradas, até hoje, práticas e tarefas associadas às mulheres. No transcurso das práticas cuidativas que acompanha quase todas as etapas da vida das mulheres, a maternidade, o aleitamento, a educação das crianças, o cuidado com os doentes, dos velhos, o trabalho doméstico são funções que possuem grande relevância para a construção das esferas da dominação de gênero. Além de que na maioria das vezes essas práticas são alocadas historicamente com o propósito de ritualizar a mulher como uma sombra, um corpo, ou aquela pessoa que só tem visibilidade a partir da arte do cuidar do outro. Na visão de Oliveira (1992, p. 88): A imagem refletida é a de quem tenta fazer coexistirem em si desejos que se anulam e se superpõem sem integração possível – alguém que se desloca de um desejo a outro, de uma existência a outra, de uma personalidade a outra, em um esforço desesperado de ser tudo ao mesmo tempo. Ou seja, o que se percebe é que existe uma pressão no campo da demarcação nos limites dos territórios e das práticas cotidianas de homens e de mulheres, buscando afirmar positiva e negativamente as diferenças de gênero, estrategicamente instituindo ou descarregando sobre as mulheres os trabalhos da produção e reprodução na sociedade e particularmente no âmbito familiar, onde a mulher se consagra como esposa/mãe dedicada, que necessariamente exerce a função política, afetiva, biológica, cultural e doméstica de cuidar dos outros. A função de gerar e criar os filhos serviu, na maioria das vezes, como um imperativo na demarcação dos limites sociais, políticos e culturais das mulheres. As pressões enfrentadas pelas mulheres vão aparecer, principalmente, em plena fase de sua vida produtiva e reprodutiva. As mulheres foram educadas, durante muito tempo, como sendo as responsáveis pela perpetuação da espécie. Ou seja, a concepção da maternidade foi ensinada às mulheres com a realização da “essência feminina”. Na verdade esta representação de ser mãe foi uma forma imperativa de atribuição de responsabilidade às mulheres. A acumulação das funções sociais atribuída historicamente às mulheres remete-nos ao debate das escolhas possíveis e impossíveis dentro das esferas da vida cotidiana da mulher. Como escolher? O que escolher? E por que escolher novas práticas, novas condutas e novos valores? Os elementos que definem essas escolhas estão diretamente relacionados ao gênero, ao sexo, a maternidade, a divisão de trabalho, a geração, a etnia, a corporificação e as posturas éticas assimiladas ao longo do processo histórico. A não escolha produz o ser alienado, cria uma prática vazia de sentido e projeta o ser para a fuga do conhecimento da vida, reproduz o humano através da alienante função de imitar e cuidar do outro. Enfim, a ação social revelada nas práticas de cuidar do outro possui significações que marcam as escolhas e não escolhas das mulheres. O projeto de construção de vida individual é direcionado para as esferas do mundo do outro, traduzindo em negação da realização de desejos e sonhos projetados. Ao mesmo tempo, esse fenômeno se perpetua nos processos das funções sociais da mulher, como da função da maternidade que é considerado como impulso de realização das mulheres através da existência do outro. Muitas vezes, as mulheres incorporam práticas de dedicação e de cuidados aos filhos e aos demais membros da sociedade, reforçando as velhas posturas de abnegação que lhes foi atribuída coletivamente. Nesse sentido, se percebe que esta situação política e educacional em que as mulheres se inserem, acarreta sem sombra de dúvidas, a dominação de gênero e institucionaliza o domínio masculino dos espaços públicos de poder e decisão. REFERÊNCIAS ARAÚJO, Clara. Ações afirmativas como estratégias políticas feminista. In: Gênero, democracia e sociedade brasileira. Cristina Bruschini e Sandra G. Unbehaum (Organizadoras). São Paulo: Fundação Carlos Chagas: Ed 34, 2002. BLEICHMAR, Emilce. El feminismo espontâneo de la histeria. Madrid: Adotraf, 1985. BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. Tradução de Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Paz e Terra, 2000. BRUSCHINI, Cristina. O trabalho da mulher brasileira em décadas recentes. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, ECO/CIEC. 1994. ______. 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