A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO LUTA PELA PERMANÊNCIA NA TERRA: AS ESTRATÉGIAS DE REPRODUÇÃO CAMPONESA NA COMUNIDADE RIBEIRÃO EM CATALÃO (GO) MARCELO DO NASCIMENTO ROSA1 JOSÉ HENRIQUE RODRIGUES STACCIARINI2 Resumo: O presente artigo buscar-se-a apresentar alguns aspectos da reprodução e (re) existência camponesa na Comunidade Ribeirão, no município de Catalão (GO).E, é a partir da luta social e política pela existência que os camponeses conseguem visualizar a diversificação das fontes de rendimentos como condição para sua autonomia perante o modelo de produção dominante. Visualizam a potencialidade econômica, política e ideológica de seu modo de produzir e de viver e reúnem em seu núcleo familiar força de trabalho e a Comunidade para reforçar sua identidade social. Por fim, entende-se que esses elementos são parte constituinte de uma especificidade camponesa e é através de levantamento bibliográfico sobre o campesinato no modo capitalista de produção e uma vivência junto às famílias camponesas que buscou explicitar as estratégias de reprodução camponesa. Palavras-chave: Estratégia de Reprodução; Campesinato; Comunidade Ribeirão Abstract: This article fetch up to present some aspects of reproduction and ( re) peasant existence in the Community Stream, in the municipality of Catalão (GO ) .And , it is from the social and political struggle for existence which the peasants can view the diversification the income sources as a condition of their autonomy from the dominant model of production. Visualize the potential economic , political and ideological of their way to produce and live and gather in your household labor force and the Community to strengthen its social identity. Finally , it is understood that these elements are a constituent part of a peasant specificity and it is through literature on the peasantry in the capitalist mode of production and living next to peasant families who sought to explain the peasant livelihood strategies. Key-words: Playing Strategy; Peasantry ; Community Ribeirão 1 – Introdução O presente artigo buscar-se-a apresentar alguns aspectos da reprodução e (re) existência camponesa na Comunidade Ribeirão, no município de Catalão (GO), mais precisamente, as estratégias de trabalho e renda que vem sendo forjada pelas famílias camponesas ao longo dos últimos anos. Contudo, salientamos que as transformações ocorridas com a expansão das relações capitalistas no campo têm 1 - Acadêmico do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal de Goiás/Regional Catalão. E-mail de contato: [email protected] 2 Docente do Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de Goiás/Regional Catalão. E-mail de contato: [email protected] 1310 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO provocado diversas interpretações acerca da existência, reprodução e (re) existência do campesinato. Os camponeses têm buscado a sua recriação, seja com a luta pela Reforma Agrária, seja executando diferentes estratégias que possibilitam a sua existência e a sua permanência na terra de trabalho. A estratégia das famílias camponesas para permanecer na terra é negar o que as nega, ou seja, negar a produção e reprodução ampliada do capital, através da negação da racionalidade capitalista no campo. Mesmo que inseridos numa formação econômica e social dominada e hegemonizada pelo modo capitalista de produção, os camponeses constroem na sua prática de trabalho e resistência social uma reprodução social que lhes permite afirmar outra racionalidade que não àquela dominante: a racionalidade camponesa. E esta lhe proporciona condições efetivas de construir uma autonomia relativa perante o capital. A autonomia é relativa porque parte do que os camponeses consomem como insumos, implementos de origem industrial, entre outros são fruto de relações comerciais com as empresas capitalistas do agronegócio. A apropriação da renda da terra obtida a partir do trabalho da família é a garantia das condições para a permanência na terra e só é possível na medida em que não ocorra a transferência dessa renda a setores capitalistas. Nessa lógica, pode-se compreender porque as famílias camponesas da Comunidade Ribeirão, no município de Catalão vêm apostando em instrumentos de comercialização direta, como as feiras camponesas e mercados institucionais como o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), pois esses negam a exploração da renda da terra realizada pelo mercado capitalista. Buscando compreender as estratégias que os camponeses da Comunidade, desenvolvem para a sua reprodução social, ressaltando a diversificação das fontes de rendimentos e a disponibilidade de força de trabalho familiar nesse processo. E, é a partir da luta social e política pela existência que os camponeses conseguem visualizar a diversificação das fontes de rendimentos como condição para sua autonomia perante o modelo de produção dominante. Visualizam a potencialidade econômica, política e ideológica de seu modo de produzir e de viver e reúnem em seu núcleo familiar ? força de trabalho ? e a Comunidade para reforçar sua identidade social.Por fim, entende-se que esses elementos são parte 1311 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO constituinte de uma especificidade camponesa e é através de levantamento bibliográfico sobre o campesinato no modo capitalista de produção e uma vivência junto às famílias camponesas que buscou explicitar as estratégias de reprodução camponesa. 2 – A TERRA, O TRABALHO E A FAMILIA NA COMUNIDADE RIBEIRÃO. Quando a terra em um território é objeto de propriedade privada, a ela podem ser dadas diferentes funções dependendo dos sujeitos que a ocupam e dos objetivos das atividades produtivas nela desenvolvidas. Assim, a propriedade privada pode ser de dois tipos, conforme afirma Martins (1991): terra de negócio e terra de trabalho, ou camponesa. Contudo, há que se ressaltar que essas funções se hibridizam na complexa teia da realidade da sociedade capitalista globalizada, por isso muitas vezes a terra da qual se extrai a “mais-valia” com o assalariamento também é terra de especulação e aquela que, principalmente considerando-se o seu tamanho, seria terra de produção camponesa é área de lazer. Como propriedade privada para o capitalista, a terra de qualquer tamanho, é objeto de negócio, seja pelo fato de consistir em instrumento de exploração do trabalho alheio, isto é de extração de “mais-valia”, seja pelo fato de poder ser instrumento de especulação. Mas, para o camponês, a propriedade é terra de trabalho e está restrita à exploração pelo trabalho familiar. É instrumento de sobrevivência da família. Essas diferentes funções dadas à terra, terra de trabalho e terra de negócio/especulação,em uma mesma sociedade, só são explicadas pelo caráter contraditório do desenvolvimento do capitalismo, que comporta e torna funcional tanto uma quanto outra. Na “Comunidade Ribeirão” há proprietários capitalistas – os ali chamados “pecuaristas” –, especuladores (proprietários que compram a terra para revendê-la por um preço maior ou transformá-la em loteamentos urbanos, pois a comunidade está no limite com a área urbana), chacareiros (que utilizam a terra só para lazer) e 1312 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO camponeses. Isso porque a própria formação do território evidencia a combinação de diferentes variáveis, unidas em um complexo e contraditório arranjo espacial. Essas diferentes funções também são materializadas nas paisagens das propriedades. O plantio comercial de soja, o plantio camponês de milho e a pastagem para o gado de corte e leiteiro nessa paisagem representam diferentes relações e uso da terra: o plantio de soja trata-se de uma extração de “mais-valia”, pois a lavoura foi cultivada por trabalhadores assalariados, a lavoura de milho está ligada ao trabalho camponês e a pastagem apresenta duas funções distintas, o camponês à utiliza para cria do gado leiteiro e o pecuarista cria gado de corte com o uso do trabalho assalariado. Partindo do pressuposto de que toda reprodução social se faz a partir do espaço e o tem como resultado, pode-se afirmar que o “espaço é história” (MOREIRA, 2007, p. 62) e, portanto, é dinâmico, tendo em vista o imbricamento de diferentes variáveis (objetos e relações) em sua constituição. Por ser condicionante e ao mesmo tempo, condicionada pelo movimento da realidade, a combinação dessas variáveis se manifesta em um período de tempo determinado como um “arranjo espacial” que, nas palavras de Moreira (2007, p. 75), são as formas e conteúdos propriamente geográficos instituídos pelos sujeitos sociais. Assim, território não é o espaço; é o recorte de domínio, é a apropriação do espaço (MOREIRA, 2007, p. 90). Nessa perspectiva, o território é um espaço transformado pelo trabalho e seus resultados ali contidos; é delineado por estratégias de organização e controle. Portanto, essa apropriação não é uma ocorrência natural, mas um dado concreto da luta dos homens e mulheres pela sua sobrevivência. Essa compreensão permite afirmar que o território se inscreve em um campo de poder. Mas, tanto o território como o espaço reproduzem a lógica do modo de produção a que pertencem. Como o capitalismo não é homogêneo, podendo também conter relações não capitalistas, arranjos espaciais de um mesmo lugar podem apresentar frações territoriais não capitalistas. No campo, essas frações são os territórios camponeses. O que os define é uma combinação de singularidades, terra, trabalho e família, que se manifesta em um “arranjo espacial”: as propriedades 1313 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO camponesas (chamadas simplesmente de “terra” pelos camponeses entrevistados) e a comunidade à qual pertence. Como descrita anteriormente a Comunidade Ribeirão não é homogênea nem do ponto de vista físico e muito menos do econômico, uma vez que é possível identificar diferentes sujeitos com posse/propriedade da terra, entre eles: camponeses (a maioria proprietários de terra, e não proprietários, posseiros, meeiros, trabalhadores da terra assalariados), apenas moradores na zona rural, mas (trabalhadores na zona urbana) e empresários proprietários de áreas/terra destinadas ao lazer. A área apresenta diferentes solos que levam a diferentes utilizações econômicas. Os solos ou são “terra de cultura” ou “terra pedregosa”, que às vezes ocorrem em uma mesma propriedade. Nas propriedades em que predominam solos mais férteis (terra de cultura) verifica-se a presença de pastagens combinadas a lavouras, como de milho e de cana-de-açúcar, que não são comercializadas, são transformadas em alimento para o gado leiteiro, o que, consorciado com a pastagem, resulta em maior produção de leite, com considerável destaque no comércio da região. Geralmente essas propriedades contam com maior tecnificação, como a ordenha mecânica, que aumenta a produtividade camponesa. Nelas a produção de leite é quase uma especialização. E essa especialização incipiente não é suficiente para caracterizar essas propriedades como não camponesas. As propriedades que apresenta solos pedregosos (com baixa fertilidade) impõem maiores desafios às famílias camponesas para a geração de renda, razão pela qual desenvolvem uma combinação mais expressiva de atividades, como, por exemplo, a produção de queijos, requeijões e doces, o que demanda mais força de trabalho da família. Assim, por mais que as condições pedológicas não sejam determinantes, a limitação físico-química do solo afeta (ou ao menos dificulta) a renda camponesa. Nas propriedades menores, de até vinte hectares, que apresentam manchas de solos derivados do basalto (fertilidade maior), o milho, por ser a fonte de proteína da alimentação dos animais, é a lavoura principal, ainda que as culturas intercalares de feijão e tubérculos sejam expressivas para o consumo da família. 1314 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO A dificuldade em obter renda suficiente para a satisfação das necessidades parece ser a principal razão da diversificação da produção. De qualquer modo, nas propriedades camponesas da Comunidade Ribeirão predominam as pastagens e, consequentemente, a pecuária leiteira. Embora a venda de leite a granel já ocorresse mesmo antes da obrigatoriedade do uso de tanques de resfriamento e já fosse recolhido pelos laticínios da região, é comum se encontrar nas propriedades a “casinha do queijo”, onde o leite é transformado em queijos que são comercializados no comércio da cidade de Catalão. A relação de consumo e venda dos produtos camponeses se dá com a cidade de Catalão e a proximidade com o centro urbano é ponto determinante mencionado pelos camponeses ao serem questionados sobre os fatores que os fazem permanecer no campo. Considerando-se que a organização territorial mostra como são elaboradas as formas de existência dos camponeses, há que se verificar mais detalhadamente também as relações estabelecidas entre as famílias, ou seja, é preciso analisar a Comunidade. E, apesar da denominação de “Comunidade” ser oriunda da Igreja Católica considera-se aqui a Comunidade Camponesa Ribeirão como núcleo agrário camponês, onde são mantidas relações de vizinhança e parentesco como estratégia de reprodução social. A existência camponesa não se limita à propriedade nem as propriedades camponesas formam um todo contínuo, muitas são cercadas por propriedades tipicamente capitalistas. Assim, como retrata Oliveira (2009), o território está marcado por esta unidade contraditória: o uso capitalista propriamente dito e o uso camponês. A dinâmica desses dois ou mais usos também revela a correlação de força entre classes sociais. Quando o uso capitalista se expande, destrói ou diminui o uso camponês e muitas vezes isso chega a representar uma hegemonia, como é o caso da monocultura nas chapadas do Cerrado. Quando o uso camponês se expande e o capitalista se retrai, o domínio camponês se instala. O fato de as propriedades camponesas na Comunidade Ribeirão estarem rodeadas por mineradoras e pelo centro urbano não é suficiente para descaracterizá-las. Almeida (2006) é enfática ao dizer que a distribuição espacial não torna as unidades camponesas menos camponesas, até porque não se pode considerar homogêneo o território. É a essência e o estabelecimento de relações 1315 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO sociais, principalmente de trabalho, que fazem as propriedades serem ou não camponesas. Por exemplo, nem todas as propriedades que se encontram nos limites da Comunidade Ribeirão são camponesas. Portanto, não se considera a noção de continuidade ou dispersão geográfica na definição de propriedades ou de comunidades camponesas, mas, a teia de relações estabelecidas capaz de caracterizar uma fração do território. A comunidade camponesa é instituída por uma lógica singular que, ao mesmo tempo em que é individual, centrada na autonomia camponesa, é também comunitária, face às mais diferentes sociabilidades estabelecidas entre as famílias de uma comunidade. Assim, é na comunidade que culminam essas combinações do modo de ser e de viver cultivado nas práticas cotidianas e ela traduz uma unidade territorial singular. E isso imprime uma identidade que não é possível ser pensada apenas do ponto de vista da reprodução material das famílias. A solidariedade esteve sempre presente na vida camponesa, seja em atividades laborais, festivas, religiosas ou mesmo políticas. Martins (2002) também analisa essa singularidade camponesa da solidariedade, a qual eles chamam de “ajuda,” seja entre os membros de uma mesma família, seja entre diferentes famílias. Enquanto no operário manifesta-se o indivíduo, o fragmento a que ele foi reduzido pela contratualidade das relações sociais, no camponês manifesta-se a pessoa, o ser inteiro ainda que mediado pela coisificação da mercadoria [...]. A consciência do camponês expressa a consciência da pessoa, que é extensão da família e da comunidade e dos laços comunitários. É mais uma consciência afetiva de pertencimento a um sujeito coletivo real, um corpo natural de que se faz parte desde sempre, desde o nascimento. Por isso, nas comunidades camponesas o trabalho e a festa se mesclam nos mutirões, nas festas celebrativas [...]. (MARTINS, 2002, p.75). Por terem esse ponto de encontro as famílias moradoras da Comunidade estabelecem outras relações que vão além das religiosas nesse lugar. Estabelecem uma sociabilidade que muitas vezes facilita a permanência na terra de trabalho. Em todas as conversas, o Centro Comunitário aparece como parte da vida das famílias 1316 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO e, apesar da proximidade que a Comunidade tem com a cidade de Catalão, ele sempre é retratado como lugar onde os vizinhos se encontram. Um lugar que “une a Comunidade”. Com o fim da festa em homenagem a santa padroeira da Comunidade, a quadra de esportes, que foi construída pelo poder público municipal, é utilizada esporadicamente, para algumas festas internas da comunidade ou para jogos de futebol. As diferentes formas de ajuda mútua também são referência na lógica de reprodução do campesinato. E sempre se devem às relações de vizinhança e/ou de parentesco. Reconhecer essas relações permite, mesmo que não seja possível uma perfeita determinação temporal, localizar no tempo e no espaço o processo de territorialização dos camponeses na Comunidade Ribeirão. As relações de parentesco são predominantes entre os membros da comunidade, o que permite afirmar que ali ocorreu um processo de territorialização camponesa mais consolidada e mais antiga. O certo é que as relações de vizinhança se devem à proximidade geográfica, mas também criam a identidade que serve de base para a ajuda mútua. As práticas de ajuda mútua, antes muito mais usuais, dependem do decorrer dos ciclos agrícolas. Os “mutirões” e as “trocas de dia de serviço” eram as mais praticadas. Os mutirões e a trocas de dias de serviço possibilitam o equilíbrio da demanda da força de trabalho principalmente nos períodos em que se intensificam as atividades. Também há casos em que os camponeses resolvem essa necessidade com contratações temporárias recorrendo ao dispêndio monetário. Pagam, muitas vezes, outro camponês, para ajudar na lida, na colheita, por exemplo. Hoje é comum ouvir dos camponeses que a jornada de trabalho impõelhes um ritmo que na maioria das vezes lhes toma o dia todo, fazendo com que a convivência comunitária fique reduzida, em certas épocas. Nas propriedades camponesas em geral há uma divisão de trabalho conforme a idade e o gênero, embora essa divisão não apresente rigidez absoluta. Cuidar da horta, do quintal, das criações (galináceos, suínos) é tarefa das mulheres e das crianças. À mulher também cabe o zelo da casa, da roupa, o preparo das refeições e a produção de queijos. Além de trabalharem na roça quando necessário, principalmente em época de colheita. Os homens ficam com a responsabilidade de 1317 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO cuidar do gado, tirar o leite, cuidar dos pastos e da roça e estabelecer a relação com o comércio. Essa divisão também é notada no fato de quando vão fornecer as informações sobre a propriedade sempre um membro da família chama o outro, ou seja, como as atividades são divididas, precisam dos diferentes membros para saber do todo da propriedade. Em noventa por cento das propriedades visitadas, ao aceitarem responder o questionário, sempre se reunia o casal (marido e mulher) para responder às perguntas, pois juntos sabem do todo da propriedade. E nos casos onde um dos membros do casal não estava presente as informações ficaram incompletas. Entre os camponeses da “Comunidade Ribeirão”, o critério para avaliar riqueza e pobreza, bem como se a colheita foi boa, é a satisfação das necessidades de consumo da família. Em seus relatos, nunca dão ênfase à colheita que está por vir, mas sempre à colheita anterior. Isso porque a alimentação é sempre garantida pela colheita anterior. É outra compreensão do tempo. Um trabalhador da cidade utiliza sua renda mensal para pagar o que consumiu no mês ou para comprar o que vai consumir no próprio mês, ou seja, nesse caso, se trabalha para comer. Pode-se dizer que, ao contrário, o camponês come para trabalhar. Para produzir seu sustento há um ciclo a ser respeitado: preparar a terra, esperar a chuva para plantar, esperar a chuva e o sol para o desenvolvimento das plantas até granar, a maturação e a colheita. Esse ciclo pode durar até seis meses para as culturas temporárias e um ano para as permanentes, além da possibilidade de “perda da roça” em caso de alterações climáticas ou ocorrências de pragas e doenças. Mas, o alimento é produzido para o ano inteiro. Inverte-se, assim, a lógica capitalista. Esse relato explicita mais uma vez a lógica que orienta o funcionamento da propriedade camponesa: a satisfação das necessidades da família e isso faz com que a terra e o trabalho tenham o valor de uso, e, não, de troca. A referência de tempo é o ano/ciclo agrícola. A quantidade de roça plantada e o número de vacas leiteiras estão relacionados com a força de trabalho disponível e com as necessidades de consumo por pelo menos um ano. Contudo, algo novo aparece ao se analisar o campesinato na Comunidade Ribeirão. O trabalho e os esforços da família camponesa são para a sua reprodução 1318 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO e seu sustento, mas não necessariamente significa que toda sua produção é para o autoconsumo e que só o excedente vai para a comercialização ou que eles produzem todos os bens agropecuários de que necessitam. Na contemporaneidade os camponeses têm uma nova relação com o dinheiro, e na comunidade estudada, em especial, a proximidade com a área urbana ressalta ainda mais esta lógica. O resultado de tal relação se materializa quando a produção nas unidades camponesas visa atender o mercado local e a obtenção de dinheiro para a compra de produtos para o seu consumo interno. A organização do trabalho e dos recursos naturais como um todo para uma produção que vise o comércio local não retira a condição de ser e de viver dos camponeses, pois a lógica relatada pelo camponês acima citado preserva o critério M – D – M, em que a produção de mercadorias objetiva a obtenção de dinheiro para a aquisição de mercadorias que não são produzidas, mas que são necessárias à reprodução da família. Esses novos fatores são resultado da hegemonia do capital sobre o território. Mesmo na lógica da produção que objetiva a obtenção de dinheiro, não se desmantela a máxima camponesa de que se a força de trabalho da família não é suficiente, aciona-se a ajuda mútua da comunidade ou o contrato temporário. Como descrito acima, o uso agropastoril da terra é o que caracteriza o campesinato deste lugar. A terra é condição de autonomia e de liberdade, muito valorizadas pelas famílias camponesas. A posse da terra dá condição aos camponeses de eles serem sujeitos de sua própria criação, de disporem de seu tempo, do espaço e de seu saber. É a consolidação do espaço terra dos camponeses apesar de novos e diferentes usos lhe dados nos dias de hoje. REFERÊNCIAS ALMEIDA, R. A. de (Re)criação do campesinato, identidade e distinção – a luta pela terra e o habitus de classe. São Paulo: UNESP, 2006. CALABI, D. & INDOVINA, F. Sobre o uso capitalista do território. Revista Orientação, Departamento de Geografia da FFLCH, USP, São Paulo, (texto original de 1973). 1319 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO CARVALHO, H. M. de. O Campesinato Contemporâneo como Modo de Produção e como Classe Social. Curitiba, PR, 2012. Disponível no site: http:www.mcpbrasil.org.br. Acesso em 21 abr. 2012. CHAYANOV, A. V. La Organización de la Unidad Económica Campesina.Tradução Rosa María Russovich. Buenos Aires: Nueva Visión, 1974. CONCEIÇÃO, A. L. A Questão Camponesa: O Olhar sob o Signo Dialético. Dissertação de Mestrado. Núcleo de Pós-Graduação em Geografia – NPGEO/UFS, Aracaju, 1991. FABRINI, J, E. A Contradição Como Parâmetro de Compreensão da Existência Camponesa. Revista Geografia, vol. 13, n. 2, jul-dez, 2004. GRZYBOWSKI, C. Caminhos e Descaminhos dos Movimentos Sociais no Campo. 2. Ed. Petrópolis: Vozes, 1990. GUIMARÃES, R. R. As estratégias de resistência camponesa: o movimento camponês popular na Comunidade Ribeirão em Catalão (GO). 166 f. Dissertação (Mestrado em Geografia) Universidade Federal de Goiás/Regional Catalão, 2010. KAUTSKY, K. A Questão Agrária. 3. Ed. São Paulo: Proposta, 1980. LUXENBURGO, R. A Acumulação do Capital. Tradução de José Paulo Netto. São Paulo: Nova Cultura, 1985. MARTINS, J, S. Expropriação & Violência. A questão política no campo. São Paulo: Hucitec, 1991. _________. O Cativeiro da Terra. São Paulo: Ciências Humanas, 1979. _________. Os Camponeses e a Política no Brasil. 5º ed. Petrópolis (RJ): Vozes, 1995. _________. A sociedade vista do abismo. Petrópolis (RJ): Vozes, 2002. MARX, K. O Capital. Livro terceiro, volume VI. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1974. MENDONÇA, M, R. A Questão Regional e o Campesinato: a alhicultura em Catalão-GO. 1998. 233f. Dissertação (Mestrado em História das Sociedades Agrárias) – Instituto de Ciências Humanas e Letras, Universidade Federal de Goiás, Goiânia. MESQUITA, H, A. de A Modernização da Agricultura: um caso em Catalão-Goiás. 1993, 180f. Dissertação (Mestrado em História das Sociedades Agrárias), 1320 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO Universidade Federal de Goiás, Instituto de Ciências Humanas e Letras, Goiânia, 1993. MÉSZÁROS, I. Para Além do Capital. São Paulo: Boitempo editorial, 2002. MOREIRA, R. Pensar e Ser em Geografia. São Paulo: Contexto, 2007. NASCIMENTO, A. C. & MENDONÇA, M. R. Campesinato: uma existência contraditória no modo capitalista de produção. Anais Cemarx, Campinas, SP, 2012. OLIVEIRA, A. U. Modo de produção capitalista e agricultura. São Paulo: Ática, 1986. _________. Modo Capitalista de Produção, Agricultura e Reforma Agrária. São Paulo: FFLCH/Labur, edições, 2007. _________. Alimentos e Mercados: Uma Questão Geopolítica e de Classes. In Revista Formação, n. 14, vol. 1, p. 167-185, 2007. PAULINO, E. T. ALMEIDA, R, A. Terra e Território: A Questão Camponesa no Capitalismo. São Paulo: Expressão Popular, 2010. PRADO JÚNIOR, C. A Questão Agrária no Brasil. 5 ed. São Paulo: Brasiliense, 2000. PORTO GONÇALVES, C, W. A Globalização da Natureza e a Natureza da Globalização. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2006. SHANIM, T. Lições Camponesas. In: PAULINO, E, T. FABRINI, J, E. Campesinato e Territótio em Disputa. São Paulo: Expressão Popular, 2008. SMITH, N. Desenvolvimento Desigual. Tradução de Eduardo de Almeida Navarro. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1988. THOMAZ JÚNIOR, A. Se Camponês, Se Operário! Limites e Desafio para a Compreensão da Classe Trabalhadora no Brasil. In: Geografia e Trabalho no Século XXI, vol. 2. Presidente Prudente, 2004. _________. As Correntes Teóricas na Geografia Agrária Brasileira. Presidente Prudente, SP, 2009. VERGÉS, A. B. Os Novos Camponeses. São Paulo: Cultura Acadêmica; Cátedra Unesco de Educação do Campo e Desenvolvimento Rural, 2011. 1321