- Sociedade Brasileira de Sociologia

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SBS – XII Congresso Brasileiro de Sociologia
GT08 – GERAÇÕES E SOCIABILIDADES
“Velhice problema e Velhice bem-sucedida”: uma reflexão sobre práticas de
sociabilidades e corporalidades na modernidade
Silvana Antunes Neves de Araújo
Belo Horizonte
2005
1
“Velhice problema e Velhice bem-sucedida”: uma reflexão sobre práticas de
sociabilidades e corporalidades na modernidade.1
Silvana Antunes Neves de Araújo2
Resumo
Este trabalho é uma reflexão sobre minha dissertação de mestrado defendida em 2002 no
departamento de sociologia e antropologia da Universidade Federal de Minas Gerais e
enfoca as conexões entre as práticas de sociabilidades e corporalidades de pessoas em
idades mais avançadas da cidade de Belo Horizonte, observadas em três grupos socialmente
distintos: um asilo, uma associação de aposentados e um clube de convivência.
Introdução
O objetivo da dissertação era investigar os significados da velhice por meio das
representações sociais acionadas pelos especialistas que lidam com o tema e pelos sujeitos
tidos como velhos, em especial, enfocando duas categorias marcantes dessas
representações, a saber, a identidade e a sociabilidade.
Inicialmente procurou-se definir qual a natureza da velhice para o estudo que se
pretendia. Com isso, vimos que a velhice é uma construção social, isto é, que ela é um
artefato cuja produção varia conforme os contextos culturais, sociais e históricos. Tal
produção, apesar de ter como referência um fato biológico universal - o ciclo de vida -,
funda-se em parâmetros que dependem do conjunto de valores e interesses enfatizados
pelos diferentes segmentos sociais em cada contexto. Nesse sentido, podemos afirmar que a
velhice nas sociedades ocidentais contemporâneas tem se caracterizado pelas várias
tentativas, empreendidas especialmente por meio da ciência, da mídia e do Estado, em
transformá-la em uma experiência positiva, em oposição ao seu modelo antigo, constituído
pelas idéias de decadência, pobreza, isolamento, tristeza e doença. Segundo autores como
Debert (1999) e Featherstone (1994), a construção da velhice nessas sociedades tem
1
Este trabalho foi apresentado no GT Gerações e Sociabilidades do XII Congresso Brasileiro de Sociologia, de 31 de
maio a 03 de junho na Universidade Federal de Minas Gerais.
2
Professora titular do Centro Universitário Newton Paiva.
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adotado valores referentes à fase da juventude, tais como aqueles relacionados à aparência
física, a atividade, ao dinamismo e a alegria.
Em segundo lugar, examinamos como e em que situações a velhice tem sido
elaborada no contexto sociocultural da modernidade. Para tal, procuramos saber por meio
dos saberes, das identidades e das práticas sociais vigentes, em particular, no Brasil, quais
os significados acionados em torno da categoria velhice. Observamos que a velhice no
Brasil é caracterizada por sua feminização, sua concentração nas áreas urbanas e a
tendência a um investimento maior, diferentemente do passado, nas práticas de
sociabilidades vividas em espaços públicos e coletivos.
Também, realizamos um balanço das análises de especialistas sobre a velhice. Os
conjuntos de conhecimentos e os discursos dos especialistas da velhice, gerontólogos ou não,
têm servido de base na socialização na velhice e na construção e re-construção das
identidades e práticas sociais subjacentes às noções empreendidas em torno dessa categoria.
Nesse balanço foi possível perceber que não há entre os especialistas uma unanimidade em
torno do conceito de velhice, nem dos limites que a caracterizam. Assim, a utilização
recorrente das categorias idoso, idosa, velho, velha e terceira idade variam de acordo com
cada especialidade, não possuindo em si mesma o significado explícito do que seja a velhice.
Os estereótipos negativos mais problematizados são a doença, o isolamento social, a tristeza,
a improdutividade e a inatividade. Ao mesmo tempo, eles servem de base ou de contraface
para as tentativas de construção de um novo estatuto para a velhice nas sociedades ocidentais
contemporâneas: é a partir e contra eles que o quadro conceitual de uma nova velhice procura
se estruturar. O estado físico e mental, o estado de espírito e a inserção social são os atributos
atualmente fundamentais para a classificação de uma pessoa nas novas categorias de velhice.
Entre elas, destaca-se a categoria velhice bem-sucedida, que tem como correspondente as de
envelhecimento saudável e de velhice funcional. Tais categorias merecem uma atenção
especial e uma reflexão mais aprofundada, objetivando sua compreensão por meio da rede de
significados na qual se situam.
Nessa perspectiva, realizou-se a pesquisa etnográfica em três grupos socialmente
reconhecidos por pertencer a instituições específicas de pessoas idosas da cidade de Belo
Horizonte a fim de entender a “visão dos nativos” que, conforme Geertz (1997) só é
possível a partir do conhecimento de “como” eles constroem seus conceitos. O balanço
3
comparativo permitiu demonstrar que a categoria velhice bem-sucedida encontra
ressonância entre os integrantes dos três grupos pesquisados a partir dos atributos
relacionados
à
ela
e,
geralmente,
utilizados
pelos
“nativos”
nas
suas
descrições/interpretações de suas identidades e suas práticas de sociabilidade. Tal uso foi
percebido ao longo das observações do trabalho de campo e das entrevistas como uma
estratégia para se manterem distantes da imagem negativa da velhice, ou seja da velhice
problema.
Sinônimo de “envelhecimento ativo e independente”, cria-se na segunda metade do
século passado, especialmente para os “jovens aposentados”, o termo terceira idade,
designando uma nova etapa da vida, em que a ociosidade, inaugurada pela aposentadoria,
passa a simbolizar, “a prática de novas atividades sob o signo do dinamismo” (PEIXOTO,
1998, p.76). Para a mesma autora, a noção tradicional de velhice é re-elaborada por meio da
criação da expressão terceira idade, juntamente com o aparecimento de espaços e serviços
específicos para o público representado por ela. Nos seus termos (1998, p.76)
a velhice muda de natureza: „integração‟ e „autogestão‟
constituem as palavras-chave desta nova definição. Assim, a
criação de uma gama de equipamentos e de serviços declara a
sociabilidade como o objetivo principal de representação social
da velhice de hoje. Entretanto, a invenção da terceira idade [é]
produto da universalização dos sistemas de aposentadoria e do
conseqüente surgimento de instituições e agentes especializados
no tratamento da velhice, e que prescrevem a esse grupo etário
maior vigilância alimentar e exercícios físicos, mas também
necessidades [novas] culturais, sociais e psicológicas (PEIXOTO,
1998, p.76).
Analisando as alterações ocorridas na periodização do ciclo de vida a partir da
categoria velhice e de suas relações com o mundo do trabalho, como faz Peixoto (1998),
Debert (1999) acredita que os novos padrões de aposentadoria e a nova estrutura produtiva
produziram novas classes de idades intermediárias no interior da vida adulta como a “meiaidade”, a “terceira idade” e a “aposentadoria ativa” (Debert, 1999:18). A modernização, o
sistema produtivo capitalista e as novas formas de conceber os estágios da vida indicam, mais
uma vez, que a periodização do curso da vida é social e historicamente elaborado.
Nesse sentido vale ressaltar a síntese que Stucchi (1998, p.9) faz em relação a
complexidade e a plasticidade dos significados subjacentes às diversas categorias etárias
em diferentes contextos históricos e socioculturais.
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ser velho no mundo ocidental contemporâneo, assim como ser
criança, jovem e adulto, remete a configurações de valores
distintas de outros momentos históricos de nossa sociedade e de
outras culturas. As diferenças de gênero, de classe, de credos
religiosos, de etnia, de inserção profissional também estão
presentes nas construções das representações e das experiências
do envelhecer. Essas dimensões são fundamentais na análise da
identidade deste grupo etário que, por sua vez, não se apresenta
de forma homogênea, seja nas sociedades industriais
contemporâneas, seja nas sociedades tradicionais.
Debert (1999) acrescenta que a atual periodização social do ciclo de vida tem como
parâmetro o período da juventude. As novas imagens da gestão da velhice são ancoradas no
processo de valorização dessa etapa da vida associada a valores e a um estilo de vida
marcado por elementos simbólicos como, por exemplo, o trabalho, o dinamismo e a alegria.
Nesse sentido, reconhecer-se velho na modernidade tem como referência não apenas a
idade cronológica, mas também o estilo de vida adotado, ou seja, àquele contrário ao da
juventude.
Featherstone (1994) alerta porém para o fato de que é inadequado conceber o curso
da vida como uma tabula rasa, a qual se pode moldar, sem maiores resistências, de acordo
com a cultura. Na sua opinião, pode-se perceber que o conceito de ser humano remete
necessariamente
ao
desenvolvimento
de
certas
competências
e
controles
independentemente do tipo da sociedade: as habilidades cognitivas, o controle do corpo e o
controle emocional3. De acordo com o tipo de sociedade, cada competência pode ter mais
ênfase, porém, é justamente no estágio final da vida humana que a ameaça da perda delas se
torna mais presente. E é nesse momento que a valorização da pessoa envelhecida fica
ameaçada, principalmente, nas sociedades ocidentais contemporâneas em que a
representação da velhice tem sido reelaborada a partir da autonomia física e mental.
Enquanto algumas pessoas envelhecidas ainda possuem essas competências ou algum poder
de controle sobre seus corpos, outras, que já perderam uma ou mais dessas competências ou
que não conseguem preservá-las integralmente, seja por falta de tempo ou dinheiro, seja por
causa do estilo de vida adotado, são menos valorizadas e, até mesmo, estigmatizadas por
3
Habilidades Cognitivas: baseadas no uso da linguagem e nas capacidades de comunicação, vitais para uma pessoa0
tornar-se autônoma e aceita; Controles do Corpo: a necessidade de controlar os movimentos do corpo, os movimentos dos
nossos membros, rosto e cabeça, o grau de capacidades motoras que envolvem sentar, ficar em pé e andar tanto quanto a
capacidade de conter e reter os fluidos corporais; Controles Emocionais: a necessidade de controlar a expressão das
emoções - raiva, ira, inveja, ódio, choro, piedade, amor e desejo - de modo que explosões emocionais e a perda de
controle somente tomem lugar em ocasiões e de formas que possam ser socialmente sancionadas e aceitáveis.
Featherstone (1994:64).
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isso pelo resto da sociedade. Nessas sociedades, em que a manutenção das capacidades e
dos controles corporais torna-se um indicativo do “direito de ser uma pessoa valorizada e
um cidadão que participa de modo independente da sociedade” (FEAHTERSTONE, 1994,
p.66), a perda dessas “competências” (como Featherstone designa essas capacidades e
controles), pode implicar graves conseqüências para a nossa imagem social e,
conseqüentemente, para as nossas relações sociais.
Featherstone (1994) também faz uma análise próxima a de Debert (1999) ao afirmar
que nas sociedades ocidentais contemporâneas, existe uma forte tendência em fazer da
aparência física um dos elementos fundamentais que impulsiona a cultura de consumo e ao
assinalar as alterações sofridas nos marcos simbólicos da velhice. Segundo Featherstone
(1994, p.68)
na cultura de consumo, a velhice é apresentada com imagens que
a retratam como uma fase da vida na qual sua juventude,
vitalidade e atratividade podem ser mantidas. Isso está em
contraste com imagens mais tradicionais da velhice nas quais os
homens e mulheres são apresentados como pessoas resignadas,
calmas e dignas que aceitam as traições do corpo como a perda da
atratividade física, da mobilidade e da atividade com estoicismo.
É Nesse sentido, que o sucesso dos programas para a terceira idade revelam para
Debert (1999) como as pessoas de mais idade incorporam a idéia de que a sociabilidade e a
integração com o mundo são mecanismos importantes na produção de uma “velhice bemsucedida. Contudo, tais sucessos, juntamente com a exploração da velhice sob a óptica da
sua positividade, apesar de terem produzido bons resultados no contexto brasileiro, têm
obscurecido também, segundo Debert (1999), a percepção da precariedade dos mecanismos
de que ainda dispomos para lidar com a velhice problema e da forma como essa nova óptica
a tem caracterizado. Segundo Debert (1999, p. 15),
a nova imagem do idoso não oferece instrumentos capazes de
enfrentar a decadência de habilidades cognitivas e controles
físicos e emocionais que são fundamentais, na nossa sociedade,
para que um indivíduo seja reconhecido como um ser autônomo
capaz de um exercício pleno dos direitos de cidadania. A
dissolução desses problemas nas representações gratificantes da
terceira idade é um elemento ativo na reprivatização do
envelhecimento, na medida em que a visibilidade conquistada
pelas experiências inovadoras e bem-sucedidas fecha o espaço
para as situações de abandono e dependência. Estas situações
passam, então, a ser vistas como conseqüência da falta de
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envolvimento em atividades motivadoras ou da adoção de formas
de consumo e estilos de vida inadequados.
Nesse processo de ressignificação da velhice interessa a Debert (1999) compreender
os dilemas vividos por três atores empenhados em promover um envelhecimento bem
sucedido: os gerontólogos, as pessoas de mais idades e a mídia. Para tal, Debert (1999)
sugere um olhar mais atento sobre a geração que está na condução das produções científicas
e culturais: na mídia, nas universidades, na gerontologia, nas agências de fomento à
pesquisa e ação social, na coordenação de programas voltadas para a terceira idade. Nessa
perspectiva, Debert (1999) interessa-se pelo processo de ressignificação da velhice como um
problema social a partir de abordagens que incluem orientações de práticas visando uma
adaptação bem-sucedida das pessoas ao envelhecimento que passa pela autopreservação do
corpo, pela apropriação de espaços públicos e pela adoção de práticas coletivas de busca da
realização pessoal, do prazer e do lazer. Uma questão muito interessante, dentro de outras
colocadas por Debert (1999) e semelhante à colocada por Featherstone (1994) é: “como
conciliar a reinvenção da velhice bem-sucedida com a „facticidade‟ do declínio biológico e do
espectro terrificante do prelúdio da morte social?”. As biotecnologias, assim como as
aposentadorias, foram criadas para beneficiar a população e garantir uma vida com dignidade.
No entanto, elas são transformadas em fontes de produção de riscos considerados
inviabilizadores do sistema social. Para Debert (1999, p.253), “a plausibilidade dos cenários
que montamos para o futuro da velhice dependerá muito do modo como os indivíduos são
convencidos de qual pode ser o seu destino e das práticas por eles postas em ação, em função
destas previsões”.
Espaços e formas de sociabilidade no contexto urbano
Como já foi dito, a expressão velhice tem sido substituída por expressões como
terceira idade. Paralelamente, o refúgio no abrigo do lar ou do asilo, assim como o lazer
restrito à conversa ou à simples observação dos transeuntes no recosto do banco da praça
têm sido substituídos ou passaram a dividir espaço com novas formas de sociabilidade.
Especialmente no contexto urbano, várias são, hoje em dia, as opções para os idosos que
procuram, desde uma simples prosa ou a companhia para um jogo de cartas, até praticar um
esporte, viajar, adquirir novos conhecimentos ou encontrar um(a) novo(a) parceiro(a). O
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aumento na criação de novas instituições voltadas para o atendimento das pessoas de idades
mais avançadas - como os grupos de convivência, os clubes, as universidades e as
associações de caráter profissional - e na criação de programas e de serviços específicos nos
setores público e privado provêm, em grande parte, das políticas públicas fundadas nos
discursos que visam rever os estereótipos negativos da velhice e garantir espaços e formas
de participação social, possibilitando novas formas de lazer, de cidadania e de redefinição
de identidades e práticas sociais. Contudo, a apropriação dessas novas formas de
sociabilidade depende das diferenças entre as condições objetivas de vida dos idosos e
idosas de segmentos socioeconômicos e culturais distintos.
O caráter público e institucional da sociabilidade nos tempos atuais é um aspecto que
atinge todos os grupos etários. A divisão social do trabalho, conjugada com um modelo de
sociedade dinâmica e moderna, centrada em áreas urbanas, onde também se encontram várias
opções de lazer, de consumo e de cursos de formação, contribui para que a maioria das
pessoas, nos dias atuais, esteja sempre inserida em algum grupo extra-familiar. Nessa
perspectiva, pode-se considerar a existência de dois campos estruturantes e reprodutores da
vida social urbana brasileira, seguindo o modelo de análise proposto por DaMatta (1991):
um campo das relações pessoais - a casa - e o campo das relações impessoais vividas nos
contextos coletivos e públicos, muitas vezes, mediadas por instituições específicas - a rua.
Desse modo, cabe assinalar o caráter público também da experiência da velhice no mundo
moderno, já que se torna evidente a expansão crescente dos espaços e das formas de
sociabilidades para as pessoas de mais idade em ambientes extradomésticos, ao contrário
do que normalmente acontecia no modelo social tradicional.
Assim, pensar a velhice nos dias atuais requer não apenas uma observação cautelosa
que consiga diferenciar o que, de fato, é um elemento de continuidade, de mudança ou de
ruptura com a tradição ou com a organização social antecedente como também a
compreensão da lógica dos valores e dos significados envolvidos no contexto observado e
suas possíveis conexões com contextos mais amplos e distantes, porém não menos
contagiantes. Se podemos perceber que a velhice tem sido modificada, reformulada, resignificada pela mudança das experiências que lhe dizem respeito, temos que buscar, como
base para a nossa compreensão do fenômeno, não somente os aspectos intrínsecos, mais
próximos, ou mais visíveis, como também aqueles que dizem respeito a formas de
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pensamento que se pretendem universais, como, por exemplo, o pensamento científico.
Esses aspectos, por sua vez, remetem às representações sociais, que são operadas na
sociedade ou que pretendem ser, sobre as identidades sociais, a formas de sociabilidade, a
corporalidade, a saúde, a doença, a qualidade de vida etc.
A velhice em evidência: práticas de sociabilidades e corporalidades modernas
Na antropologia, a velhice é fundamentalmente concebida como uma construção
sociocultural e histórica. Depende da forma como as pessoas de determinados contextos
sociais a concebem. As identidades são produzidas e com elas as corporalidades, assim
como as redes de sociabilidades. Na atualidade o corpo aparece como um meio
fundamental para essas identidades e sociabilidades e como uma premissa para elas, de
modo que uma questão que se coloca é a do paradoxo criado por uma construção cultural
que tem como elemento fundamental um corpo biológico e, por isso, sujeito
inexoravelmente a forças que fogem ao controle da cultura.
Ao longo da maioria dos trabalhos examinados na pesquisa sobre a visão dos
especialistas sobre a velhice, duas noções apareceram com freqüência, como elementos
fundamentais para a percepção, a construção e a reconstrução do conceito de velhice: a
noção de continuidade e de ruptura da fase da velhice em relação às outras fases do ciclo de
vida. A noção de continuidade compreende que a velhice é uma construção social que tem
como base uma ligação ininterrupta com o ciclo de vida. A noção de ruptura compreende a
velhice também como uma construção social caracterizada tanto pelo desligamento com
certos papéis sociais adotados durante a vida adulta, quanto pela presença de doenças
físicas e/ou mentais.
Nesse sentido, para a psicologia, a assistência social, a demografia e a sociologia,
por exemplo, a velhice é relacional do ponto de vista de quem a concebe, dependendo dos
eventos biológicos, psicológicos e sociais pelos quais cada pessoa passou ao longo de sua
vida e pelos quais ela irá referenciar seu ponto de vista sobre a experiência da velhice, seja
ela presente ou futura. Tais eventos irão influenciar diretamente a construção social da
velhice, efetivada tanto pelos especialistas como pelos próprios sujeitos envelhecidos, a
partir da prevalência da noção de continuidade ou da noção de ruptura. Quando é a noção
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de continuidade que é acionada como elemento principal para análise, os especialistas
costumam afirmar a importância tanto do exame sobre as demais fases do ciclo de vida para
a compreensão da velhice, quanto da preparação para a velhice efetivada pelas pessoas
situadas em diversas fases etárias, no sentido seja de preservar a inserção social por meio da
manutenção de uma identidade social ou de manter as redes de sociabilidade.
Para os geriatras, de modo geral, os eventos sociais, biológicos e psicológicos são
responsáveis diretos pela própria experiência da velhice, mas a ênfase recai sobre os
aspectos biológicos, sendo a velhice caracterizada por intermédio da ausência,
enfraquecimento ou manutenção das potencialidades do corpo e da mente das pessoas em
processo de envelhecimento.
As noções de continuidade e de ruptura permeiam também a distinção feita,
praticamente por todos os trabalhos examinados, entre o que seria uma velhice problema e
o que seria uma velhice bem-sucedida, ora sendo causa, ora sendo conseqüência dessas
duas situações. Nesse sentido, pode-se concluir que a velhice problema resulta de fatores
que são gerados tanto pela forma como o indivíduo está ligado às outras fases da sua vida,
quanto pela ruptura pela qual ele passou em relação a essas demais fases. De modo que a
velhice problema pode resultar: 1. dos estereótipos negativos acionados pela sociedade em
geral em relação às pessoas tidas como velhas; 2. dos transtornos emocionais individuais,
resultantes das ausências, perdas ou rupturas das interações sócioafetivas; 3. da nãoconstrução de uma consciência da velhice enquanto uma parte do processo da vida humana,
sendo essa não-construção uma espécie de rejeição da velhice estigmatizada; 4. da falta de
ações individuais que visem a autopreservação do corpo e da mente; 5. da falta de
preparação para o período pós-aposentadoria enquanto uma fase do ciclo da vida onde a
preservação da identidade social torna-se problemática; 6. pela falta de condições objetivas
mínimas de existência dos idosos devido à carência socioeconômica dos indivíduos
situados tanto na fase adulta quanto na velhice. Por outro lado, a velhice problema seria
responsável: 1. pelo alto custo social da população envelhecida causado pelos gastos com a
saúde e que envolve o apoio dessas pessoas pelo Estado e pela sociedade civil; 2. pela
inadaptação social dos sujeitos envelhecidos por causa da estigmatização da velhice; 3. pela
falta de autonomia e independência física e mental das pessoas idosas em relação às suas
capacidades funcionais. De modo que, a velhice problema seria identificada por esses
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especialistas pela evidência de aspectos tais como:1. desvinculação parcial ou total com
determinados papéis sociais até então efetivados - na família, no trabalho, na comunidade
etc.; 2. isolamento pessoal e social; 3. perda de status social; 4. perdas familiares pela
viuvez ou a emancipação do filhos; 5. doenças físicas e/ou mentais - doenças
cardiovasculares, neoplasias, depressão, demência, etc.; 6.distúrbios emocionais - irritação
e/ou ansiedade constante; 7. incapacidade física, mental ou cognitiva; 8. improdutividade.
Em síntese, a configuração de um quadro conceitual do que seria uma velhice indesejada,
isto é, uma velhice problema, pode ser construído tanto pela própria vivência real desses
aspectos apresentados acima, quanto pelas concepções em relação aos sujeitos considerados
“velhos/as” acionadas a partir desses aspectos por segmentos sociais, como parte daquele
composto pelos especialistas da velhice. Em outras palavras, isto que dizer que os aspectos
definidores da velhice problema podem ser tanto representações sociais quanto realidades
objetivamente vividas pelos sujeitos tidos como velhos ou velhas.
Já uma velhice bem-sucedida seria caracterizada pelos seguintes aspectos: 1. boa
saúde; 2. comportamento saudável - alimentação adequada, uso moderado de bebida
alcoólica, adoção de acompanhamento médico, prática de esportes ou exercícios físicos,
adoção de atitudes que levem à prática de relações sociais com o maior grau de intensidade
possível; 3. participação em atividades sociais, artísticas, culturais e de lazer; 4. integração
social - compreendida a partir dos conceitos de funcionalidade e produtividade; 5. alegria;
6. atividade; 7. dinamismo; 8. capacidade física, mental e cognitiva; 9. motivação para a
vida; 10. bons laços afetivos e sociais; 11. renda econômica suficiente para a garantia da
qualidade de vida construída em cima dos aspectos acima citados.
O ponto que cabe ser enfatizado, é que nenhum desses aspectos é dado, mas
resultante de certas percepções e constrangimentos sociais que convém explicitar. Assim, a
noção de uma velhice bem-sucedida - bem como a que é a sua contraface, a velhice
problema - está intimamente ligada às noções de funcionalidade, atividade, produtividade e
de vida em extensão. Nessa perspectiva, a tentativa de desmontar a imagem negativa da
velhice e o estabelecimento de noções exclusivamente positivas sobre ela propostos por
grande parte dos especialistas, pode produzir efeitos opostos e dar lugar a uma
estigmatização da velhice que não se enquadra nas teorias propostas. Isso porque o conceito
positivo de velhice, expresso pela noção de velhice bem-sucedida, parece estar vinculado à
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representação social de uma fase específica e sintética do ciclo de vida enquanto ideal a ser
seguido, enquanto que o conceito negativo de velhice, expresso na noção de velhice
problema, parece que se vincula à representação social dos indivíduos idosos resultante das
opções individuais ao longo do ciclo de vida. Goffman (1975) distingue a identidade social
em dois níveis: a identidade social virtual é aquela que corresponde às expectativas e
exigências do que certos indivíduos deveriam ser; no entanto, nem sempre essas exigências
e expectativas são preenchidas e a categoria e os atributos com que o indivíduo demonstra
possuir são definidos como sua identidade social real, que, em alguns casos, é menos
desejável e recebe uma avaliação depreciativa e de descrédito, constituindo, nesse caso, um
estigma.
Mas, será que somos sujeitos totalmente autônomos em relação à definição de nossa
identidade social? Ou, novamente, utilizando-se da reflexão lançada por Featherstone
(1994): especialmente no caso da velhice, não haveria limites impostos à cultura pelos
corpos dos sujeitos aos quais ela destina-se?
Para tentar responder à essa questão foram selecionados três grupos da cidade de
Belo Horizonte para a pesquisa etnográfica: o Vitallis, um clube localizado na zona sul, que
agregava pessoas de classe média na faixa etária dos 50 aos 75 anos de idade; a Casa do
Ancião, um grupo de pessoas carentes com média de 77 anos de idade, residentes em um
asilo da Sociedade São Vicente de Paula, localizado na região nordeste e a APOSVALE,
uma associação de aposentados da Cia. Vale do Rio Doce, com idade média de 60 anos,
localizada na região central da cidade.
A pesquisa de campo revelou uma tendência na associação entre a idade cronológica e a
expressão terceira idade. Em grande parte das entrevistas, o limite de 60 anos de idade foi
acionado para delimitar o pertencimento a esta categoria. No entanto, tal tendência não se
mostrou homogênea entre as falas dos entrevistados, tendo sido possível perceber certa
plasticidade na noção de terceira idade, de modo que, esta categoria foi freqüentemente
utilizada de acordo com os atributos da pessoa à qual ela se destina. Mais especificamente, a
categoria terceira idade, assim como as categorias melhor idade e maturidade, foi acionada
independentemente da idade cronológica, a partir da existência de determinadas características
pessoais, como aquelas referentes ao estado físico e mental. A capacidade e a autonomia física
e mental e o estado de espírito - caracterizado pela alegria, o dinamismo e a disposição para a
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vida - foram os elementos acionados para substituir, em alguns contextos, a idade cronológica
como marco para as identidades sociais que se opõe a de velho e velha, tais como pessoa da
terceira idade e idoso.
É interessante notar que, num primeiro momento, o asilo se apresentou como o local
de convivência de pessoas envelhecidas com aspectos remetentes à velhice problema pobres, tristes, apáticas, desamparadas e doentes - diferentemente do Clube Vitallis e da
APOSVALE, onde conviviam pessoas com aspectos remetentes a elementos constituintes
da velhice bem-sucedida - alegres, independentes, com disposição para a vida, saudáveis e
ativas. Entretanto, na Casa do Ancião, apesar da presença de portadores de doenças físicas
e mentais, também estava presente a tentativa de desvinculação entre a noção de velhice e a
de decadência e tristeza. Também lá havia a tentativa de re-construção da noção de velhice
fundada no vínculo com a idéia de alegria e de disposição para a vida, remetentes à noção
velhice bem-sucedida e expressa pela categoria terceira idade. As categorias idoso e idosa
também apareceram, especialmente quando referenciadas à partir da idade cronológica,
como substituto mais respeitoso do que as categorias velho e velha.
Contudo, a grande diferença entre o Vitallis, a APOSVALE e a Casa do Ancião era
a forma como se efetivava as tentativas de reconstrução de uma identidade comum
associada à noção de velhice bem-sucedida. No Vitallis e na APOSVALE a própria adesão
ao grupo (e é importante ressaltar que os seus membros possuiam autonomia e capacidade
física e mental para ela) constituía a tentativa de adoção de uma identidade ideal, isto é, de
pessoa envelhecida biologicamente, porém alegre, disposta, ativa e com um corpo
conservado.Já no asilo, podemos perceber que, apesar da tentativa de re-construção da velhice
estar presente nos discursos dos residentes, através do uso da categoria terceira idade e seus
correlatos simbólicos, parece encontrar nas doenças e na baixa autonomia dos residentes, os
limites para o seu desenvolvimento.
Em relação às formas de sociabilidades percebidas no Vitallis e na APOSVALE,
pode-se notar que essas constituíam o mecanismo fundamental para que os membros desses
grupos construíssem e reafirmassem uma identidade comum e contrastante com a
identidade de velho e de velha, a saber, a de sujeito da terceira idade. Tal categoria além de
estar ancorada em parâmetros como a capacidade e a autonomia física e mental e o estado
de espírito era também mediada pela experiência coletiva e pública. Nesse sentido, o clube
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e associação de aposentados simbolizam o espaço e o tempo concretos para a conquista
dessa identidade comum e, em contraposição ao espaço doméstico, representaria o locus ideal
para o desenvolvimento de uma velhice bem-sucedida. Ou seja, o clube e a associação seriam o
espaço social onde as pessoas poderiam realizar práticas de sociabilidades, geralmente
fundadas em uma corporalidade moderna, para à obtenção e à manutenção de uma velhice bemsucedida. Práticas essas que são mediadas pela experiência coletiva e pública e que simbolizam
a ruptura com os valores tradicionais ligados à velhice-problema, tais como a tristeza, o
isolamento, a decadência, a dependência e a doença. Também no asilo, apesar das tentativas da
autopreservação da identidade pessoal, tendo em vista o caráter de instituição total
(GOFFMAN, 1999) e os limites impostos pelas deficiências corporais, nos momentos de
atividades que promoviam maior entusiasmo como o baile e a dança sênior, pode-se observar a
mesma relação entre sociabilidade-identidade comum-corporalidade.
Tal análise nos traz a necessidade de refletir sobre as reais motivações que levam os
pesquisados a buscarem a reconstrução de uma identidade social na velhice, como também
sobre os valores sociais dos contextos nos quais são produzidas e reproduzidas essas novas
identidades.
Conclusão
Caracterizada como a velhice problema, a imagem tradicional da velhice – associada à
doença, à tristeza, à inatividade, ao isolamento e à improdutividade - serve como parâmetro
negativo (isto é, como o que as pessoas envelhecidas não devam buscar ser) e para as propostas
efetuadas pelas políticas sociais. As ações coletivas propostas e efetivadas via Estado, ciência e
mídia visam prevenir e combater a velhice problema. Ao nível individual, a velhice problema é
reveladora do comportamento e das opções adotadas ao longo da vida. Nesse nível, a velhice
problema geralmente é pensada como resultante das experiências passadas (e, nessa medida, de
responsabilidade) de cada indivíduo na sociedade, com relativa independência dos eventos
socioeconômicos, culturais e biológicos pelos quais eles passaram, apesar desses eventos serem
constantemente apresentados como constituintes das experiências de vida. No entanto, o
problema parece estar na própria representação da velhice. Enquanto ainda vivemos em um
país de grandes desigualdades sociais, a noção globalizante, ao mesmo tempo que
individualizante de velhice bem-sucedida é tanto alternativa à noção de velhice problema
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quanto um reforço da estigmatização em torno desta categoria, já que reforça a marginalização
social daqueles que não alcançaram ou não objetivaram tal forma de viver os anos mais
avançados de suas vidas.
No caso da velhice, um problema que permanece em aberto é que, embora seja
louvável combater os estereótipos negativos, é preciso não perder de vista que substituí-los
ou negá-los em noções homogeneizadoras é um procedimento que freqüentemente acaba
por reforçá-los. Outro problema (e mais decisivo) é que permaneceu não problematizando o
critério de base para a atribuição da velhice problema, a saber, o da atividade como
produtividade. Nesse sentido, não ser uma pessoa que vive ou almeja uma velhice bemsucedida torna-se uma marca do fracasso. Ainda mesmo que sob a pretensão de tornar
possível a igualdade de condições - via educação, apoio social, cuidados com a saúde e
participação social - para a obtenção desse tipo ideal de velhice, o que essa noção acaba por
efetuar é a manutenção do critério de estigmatização da velhice.
Já a velhice bem-sucedida revelada sob a categoria terceira idade, é identificada
por valores como a vida em extensão, a saúde, a autonomia, a capacidade física e mental e a
visibilidade pública dos sujeitos e de suas ações. Foucault nas idéias levantadas em seus
livros Microfísica do Poder (1985) e Vigiar e Punir (1987) apresenta um bom caminho
para pensar que o caráter público da velhice na modernidade não é por acaso: tem toda uma
intencionalidade por parte das esferas de poder. Tomando essa perspectiva pode-se inferir
que uma das exigências e/ou expectativas da velhice na atualidade é que ela seja vivida o
mais publicamente possível, isto é, visível aos olhos da sociedade. O caráter público e
sistemático dos clubes, das associações e de outras formas e espaços para a sociabilidade na
velhice é o que incita os indivíduos a manter a aparência corporal saudável, o dinamismo, a
atividade e a produtividade. Aliado à ideologia do sucesso investida na forma da velhice
bem-sucedida o caráter público da sociabilidade atua sobre os diferentes segmentos sociais
de modo que a equação entre custo/benefício tenha para a esfera do Estado o melhor
resultado possível.
É preciso pensar a velhice enquanto um evento onde aspectos negativos e positivos
possam conviver com o próprio indivíduo e a sociedade. É importante que todas as
reflexões e propostas sejam analisadas a partir da percepção da indissociabilidade existente
entre corpo/alma, corpo/indivíduo, isto é, entre o corpo biológico e a unidade social. Não
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adianta pretender estender a vida biológica com o uso de tecnologias e adoção de
comportamentos saudáveis se não pudermos também termos garantido a nossa integração
com a sociedade, além e apesar dessa extensão. Isto é, a vida humana deve ser respeitada e
valorizada efetivamente sob todos os seus aspectos, mesmo aqueles que são gerados por
modos diferentes de engajamento no mundo.
Nesse sentido, cabe prosseguir com a investigação tanto sobre os aspectos que
permeiam as diferentes visões de mundo dos sujeitos humanos e que alicerçam seus
processos de corporeidade, de identidade e de sociabilidade, como também os aspectos que
permeiam e alicerçam os processos sociais de construção e reconstrução das representações
sociais da velhice.
Referências Bibliográficas
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STUCCHI, Deborah. O curso da vida no contexto da lógica empresarial, juventude, maturidade e
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