Tratamento medicamentoso

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Capítulo XXI: Tratamento medicamentoso
(Revisa as principais drogas utilizadas na fibromialgia, seus mecanismos de ação, efeitos
colaterais e limitações de eficácia. Capítulo não indicado para pacientes. Dificuldade grande.
Considere pular este capítulo).
“Tratamento” implica uma doença ou ao menos um problema. Fibromialgia é uma
doença? O presente livro foi escrito logo após o lançamento da 5ª edição do “Manual
Diagnóstico e estatístico das desordens mentais” (Diagnostic and Statistical Manual of
Mental Disorders), ou DSM. Tal manual tenta lançar os limites do que deve ser
considerado “normal” ou “patológico” do ponto de vista psiquiátrico. O grande
problema é que essas fronteiras não são reais. O que existe são contínuos, e qualquer
ponto de clivagem deve ser considerado artificial. Os maiores críticos de como a 5ª
edição se delimitou afirmam que elas agravam um conhecido problema da 4ª edição
do manual: definições muito amplas. Eles afirmam que o manual do jeito que está
classifica como “portadores de condições psiquiátricas” mais de 50% da população
mundial. Ao discutirmos o diagnóstico da fibromialgia, no capítulo 3, afirmei que ele “é
completamente dependente de onde você quer colocar suas fronteiras”, e “que o uso
ou não do rótulo “fibromialgia” deve ser determinado pela praticidade dessa ação”.
Existem vantagens e desvantagens em puxar a fronteira mais para cá ou mais para lá.
As principais desvantagens do excesso de diagnósticos são o aumento da sensação de
doença e desengano e o excesso de medicações. Uma porcentagem enorme de nossa
população já toma regularmente medicamentos psicotrópicos, e há dúvidas sobre se
estamos realmente nos beneficiando disso. Neste capítulo, deixarei claras as limitações
do tratamento medicamentoso. A esperança de que tudo se resolva com o uso de
pílulas é ingênua. De qualquer forma, as pílulas têm o seu papel e, sem bem utilizadas,
podem ser importantes ferramentas.
A discussão sobre o tratamento farmacológico da fibromialgia do ponto de vista
prático, ou seja, drogas, doses, esquemas, é inadequada para este livro, uma vez que
apenas uma minoria dos leitores será composta de médicos ou estudantes de
medicina. Em vez disso, veremos, neste capítulo conceitos gerais sobre as drogas
comumente utilizadas e o que podemos esperar delas.
A Tabela abaixo resume o perfil terapêutico das principais drogas utilizadas no
tratamento da fibromialgia.
Tabela 7: Principais drogas utilizadas no tratamento da fibromialgia.
Droga
Classe
medicamentosa
Principais
mecanismos de
Ação em
Principais
limitações
Ref.
ao
ação
uso
Paracetamol
Analgésico
opióide
não
Inibição
da
COX-2 central >
periférica
Dor
Toxicidade
hepática (dose
dependente)
[178]
Dipirona
Analgésico
opióide
não
Inibição
da
COX-2 central >
periférica
Dor
Agranulocitose,
anemia
aplastica (raro),
alergia
[179]
Tramador
Analgésico
opióide
Receptor
opióide μ;
Dor
Nausea,
tontura, boca
seca,
desconforto
gastrointestinal,
obstipação,
tolerância (uso
contínuo)
[180]
Potencia
norepinephrina,
antagonista
reserpine,
atividade
anticolinérgica,
antagonista
receptor 5-HT2;
antagonista
TRPV1
Dor
Sonolência,
boca
seca,
tontura
[181]
IRSN;
Dor
Sonolência
[182]
Antagonista αadrenérgico;
Fadiga
Boca seca
Distúrbio de
sono
Desarranjo
gastrointestinal
Liberador
de
serotonina;
Inibidor
de
recaptação de
norepinefrina;
Antagonista de
receptor NMDA
Antagonista 5HT2C e
Ciclobenzaprina
Amitriptilina
Antidepressivo
tricíclico
/
Relaxante
muscular
Antidepressivo
tricíclico
Antagonista
NMDA;
Distúrbio de
sono
Fadiga
Ganho de peso
Bloqueador
canais Na/Ca;
Ativador
canais de K
Contração
muscular
de
Duloxetina*
Antidepressivo
dual
IRSN
Dor
Náuseas
Distúrbio de
sono
Boca seca
[182]
Hiperidrose
Depressão
Tontura
Minacipran*
Antidepressivo
dual
IRSN
Dor
Náuseas
Fadiga
Dor de cabeça
Distúrbios
cognitivos
Hiperidrose
[182]
Hipertensão
Palpitação
Pregabalina*
Anticonvulsivante
Canais de Ca
α2δ
Dor
Tontura
Sono
Sonolência
[182]
Ganho de peso
Edema
Gabapentina
Anticonvulsivante
Canais de Ca
α2δ
Dor
Tontura
Sono
Peso
[182]
COX -= cicloxigenase; IRSN = Inibidor da recaptação de serotonina e noradrenalina; NMDA=
receptor N-metill-D-aspartato; Na= sódio; Ca= cálcio; K= potássio; TRPV1= receptores vanilóides
tipo 1
* Drogas aprovadas pelo FDA (Food and Drugs administration) para uso em fibromialgia
Analgésicos
Como discutido no capítulo III, dor gera dor. O modelo animal de injeção de ácido
lático na panturrilha de camundongos, capaz de produzir hiperalgesia e alodínea em
todo o corpo, é um bom exemplo disso. Sejam quais forem os mecanismos pelos quais
isso acontece, é provável que qualquer um de nós vá desenvolver síndromes de
sensibilidade central se experimentar dor localizada por tempo e intensidade
suficiente. Indivíduos com propensão à fibromialgia muito provavelmente irão
desencadear crises se experimentarem dores localizadas significantes. Analgésicos
podem e devem ser utilizados por fibromiálgicos, de preferência no início das dores
localizadas, na tentativa de evitar seus efeitos sistêmicos, mas uma importante
ressalva deve ser feita: o uso crônico de analgésicos é, paradoxalmente, uma
conhecida causa de dor. Isso não é tão difícil de entender. Dor sinaliza lesão tecidual
ou ameaça de lesão tecidual. Abolir a dor é tão eficiente quanto desligar a luz
vermelha acesa no painel do carro e seguir dirigindo. Os limites físicos para os
fibromiálgicos (tipicamente os tipo 1) são, com frequência,
delimitados
exclusivamente pela dor. Ao desligar a sinalização de lesão, esses indivíduos não veem
mais impedimentos para continuar, sistematicamente, a abusar de seu próprio corpo,
ampliando as lesões. Em pouco tempo, elas serão grandes demais para serem
mascaradas por tais substâncias.
Os analgésicos podem ser divididos em duas classes, os opióides e os não opióides.
Opióides
Como vimos no capítulo XI, estudos que utilizaram ressonância magnética funcional, e
outros que mediram a concentração de opióides diretamente no líquor, apontaram
uma exacerbação, e não diminuição, do sistema opióide nos fibromiálgicos. Isso ajuda
a explicar por que medicamentos opióides geralmente não funcionam bem nesses
pacientes. Ao contrário, existem dados que sugerem que tais drogas possam piorar sua
dor [183]. Nos fibromiálgicos, os opióides endógenos estão lá, em abundância, mas
não têm onde se ligar. Concentrações ainda maiores podem piorar o quadro,
principalmente pela indução de náuseas e ansiedade. Isso não impede que,
eventualmente, subgrupos de fibromiálgicos respondam bem aos opióides. Se o
paciente experimentou, no passado, melhora da dor com tais medicações, não há
impedimento em utilizá-las em eventos agudos de exacerbação da dor. É importante manter
em mente, no entanto, que elas não devem ser utilizadas, cronicamente, pelo alto risco de
dependência e por significantes efeitos colaterais.
Se por alguma razão, a decisão médica passar pelo uso de opióides, o tramadol deve ser a
droga de escolha em função da existência de alguma evidência favorecendo seu uso (ao menos
atrelado ao paracetamol) em pacientes fibromiálgicos [184]. A diferença de eficácia dessa
droga em relação a de outros opióides tem sido creditada, na verdade, às ações não opióides
da substância. Além de sua ação agonista fraca em receptores opióides µ, o tramador também
inibe, parcialmente, a receptação de serotonina e noradrenalina, estimula a secreção de
serotonina, antagoniza receptores serotoninérgicos tipo 2c, receptores vanilóides tipo 1 TRPV1 (envolvido na percepção de dor relacionada à temperatura) e receptores NMDA
(envolvidos em uma série de ações excitatórias do sistema nervoso central).
Analgésicos não opióides
“Algia”, do grego, quer dizer dor, e “ana” indica oposição, ausência. “Analgésico”, ao
pé da letra, é toda substância que tira a dor. Para a maioria das pessoas, no entanto,
analgésicos são medicações compradas, sem receita médica, em farmácias ou
supermercados, que servem para tirar a dor. O paracetamol (Tylenol®) e a dipirona
(Novalgina®) são seus maiores exemplos. O que poucos sabem é que, exceto pelos
opióides, todos eles são anti-inflamatórios. O paracetamol, a dipirona e todos os
outros anti-inflamatórios exercem suas ações principalmente por meio da inibição da
cicloxigenase (COX), uma enzima chave para a produção de prostaglandinas,
prostaciclinas e tromboxano, mediadores importantes de dor e inflamação. Duas são
as principais diferenças entre o paracetamol e a dipirona e os demais antiinflamatórios: uma seletividade relativa para a COX-2 e uma atividade limitada fora do
sistema nervoso central. Alguns anti-inflamatórios mais recentes também apresentam
tal seletividade para o segundo tipo dessa enzima. A vantagem disso é um menor
efeito colateral no trato gastrointestinal. Uma possível desvantagem é a ausência do
efeito antitrombótico observado com o uso de anti-inflamatórios não seletivos, como
o ácido acetil salicílico (AAS). O motivo pelo qual o paracetamol e a dipirona têm ação
reduzida fora do sistema nervoso central ainda é pouco compreendido. Uma
possibilidade é que essas substâncias sejam destruídas por substâncias oxidantes
produzidas pelas células inflamatórias nos locais onde há inflamação. Na prática, o
que importa é que, por fazerem menos mal ao trato gastrointestinal e aos rins, os
“analgésicos não opióides”, o paracetamol e a dipirona, podem ser usados com mais
frequência e com mais segurança do que os outros anti-inflamatórios. Importante
ressaltar que o risco de provocar dor crônica de difícil tratamento com seu uso
contínuo, como discutido no início deste capítulo, é real. Além disso, outros efeitos
colaterais devem ser pesados, entre eles o risco de hepatite medicamentosa com o
paracetamol e de agranulocitose/ anemia aplástica com a dipirona. Essa última
condição, extremamente rara, mas muito grave e imprevisível, levou à proibição da
dipirona em diversos países, como os EUA.
Anti-inflamatórios
Os anti-inflamatórios são subdivididos em esteroidais (hormonais) e não esteroidais
(não hormonais).
Anti-inflamatórios não esteroidais
São os anti-inflamatórios comuns, comprados sem prescrição médica. Um raciocínio
semelhante àquele aplicado ao uso de analgésicos deve ser aplicado em relação ao uso
de anti-inflamatórios não esteroidais: Eles podem ser úteis na prevenção da
“sistematização” da dor localizada, mas seu uso também incorre no risco de gerar dor
crônica de difícil tratamento. Existem ainda outros fatores complicantes: o uso
frequente de anti-inflamatórios não esteroidais está ligado a diversos efeitos colaterais
como lesões no trato digestivo, hepatite medicamentosa e insuficiência renal crônica
irreversível. Dessa forma, deve-se evitar o uso constante de tais medicamentos. O uso
em situações isoladas, principalmente no início de dor localizada, é bastante útil.
Relaxantes musculares
Sob esse título estão incluídas diversas substâncias com múltiplos mecanismos de
ação. Algumas delas agem, centralmente, diminuíndo a ativação das respostas
motoras, e outras, perifericamente, diminuindo a resposta dos músculos à ativação
nervosa. A ciclobenzaprina, vendida no Brasil como relaxante muscular e sem receita
médica, é, na verdade, um antidepressivo e será mais bem abordada em breve.
Nenhum outro relaxante muscular foi adequadamente avaliado em ensaios clínicos na
fibromialgia. A maioria dos especialistas consideram tais substâncias úteis, mas de
eficácia limitada. Seu uso é frequentemente associado aos anti-inflamatórios no
controle da dor aguda, no intuito de evitar o desencadeamento de crises
fibromiálgicas. Fora uma possível sonolência e sedação, comuns nas drogas de ação
central, seu uso é bastante bem tolerado.
Calmantes
“Calmantes” são medicações usadas no tratamento agudo de ansiedade. Existem
basicamente 2 classes de medicamentos nesse grupo: os barbitúricos e os
benzodiazepínicos. Ambas agem basicamente via amplificação da ação dos neurônios
GABAérgicos. Recordando, GABA é o principal neurotransmissor inibidor do sistema
nervoso central. O primeiro barbitúrico (o próprio ácido barbitúrico) foi sintetizado em
1864, mas suas propriedades terapêuticas só foram descobertas no século XX. Apenas
nos anos 50, ficou claro o enorme potencial, que tais medicações apresentam de
causar dependência química. Em 1955, o primeiro benzodiazepínico foi sintetizado,
mas o primeiro sucesso de vendas (Valium®) foi lançado na década de 60. Eles
rapidamente substituíram os barbituratos, por apresentarem menor toxicidade e,
teoricamente, menor potencial de dependência. Essa última característica, no entanto,
não se provou claramente verdadeira. Nem sempre é fácil determinar quando o uso é
mantido por vício ou por permanência da necessidade clínica, afinal ansiedade é uma
condição crônica. Mas boa parte dos indivíduos que usam tais substâncias por um
período mais prolongado permanece utilizando-as pelo resto da vida, a não ser que
haja, por parte do médico, um firme posicionamento contrário.
Não é minha intenção diminuir a importância e a utilidade dessas drogas, pois tratar
ansiedade patológica sem benzodiazepínicos é impensável. Mas o uso delas na
fibromialgia é, geralmente, dispensável e contraproducente. Apesar dos
benzodiazepínicos serem bastante eficientes em iniciar um sono bastante prazeroso, a
qualidade e o poder reparador desse sono são baixos. Esses agentes aumentam as
fases 1 e 2 do sono e reduzem as ondas lentas - fase 3. A perda da fase 3 está
associada a delírio, à necessidade de mais sedação e à diminuição do processo
reparador do sono [185]. Com seu uso, o paciente refere ter dormido bem, mas
mantém todos os sintomas de quem não dormiu como dificuldade de concentração,
irritabilidade, olhos secos, falta de memória e dor.
Indutores do sono
Mais recentemente, uma nova classe de hipnóticos não benzodiazepínicos
rapidamente alastrou-se no mercado. O Zolpidem e a Zopiclona são seus principais
componentes. Como os benzodiazepínicos, eles agem via potencialização dos circuitos
GABAérgicos, mas possuem uma meia vida bem menor, de 2 a 3 horas. Tal
característica rendeu, em comparação ao que acontece com o uso de
benzodiazepínicos, esperanças de menos efeitos colaterais e menos dependência. Com
esse discurso, a indústria farmacêutica conseguiu aprovar, no Brasil, a ausência da
necessidade de receitas azuis para a compra dessas medicações - basta uma receita
carbonada. No entanto, uma revisão de 2004 mostrou que seu uso prolongado está
associado à tolerância, dependência, insônia rebote e diversos efeitos colaterais no
sistema nervoso central [186]. A qualidade do sono induzido por tais medicações não é
em nada melhor do que daquele induzido pelos benzodiazepínicos, portanto seu uso
na fibromialgia não é recomendado.
Antidepressivos e anticonvulsivantes
Os medicamentos mais bem estudados e mais consistentemente associados à melhora
dos sintomas da fibromialgia são certos anticonvulsivantes e certos antidepressivos. A
gabapentina e a pregabalina são os anticonvulsivantes que já se comprovaram úteis.
Entre os antidepressivos estão os chamados “tricíclicos” e diversos inibidores da
receptação de serotonina e norepinefrina (antidepressivos “duais”). A ciclobenzaprina,
vendida no Brasil como relaxante muscular e sem receita médica é, na verdade, um
antidepressivo tricíclico - também largamente utilizado na fibromialgia.
Gabapentina e Pregabalina
Os mecanismos pelos quais tais medicações atuam ainda estão sendo elucidados. No
capítulo III, vimos que a administração da gabapentina no sistema nervoso central,
antes da injeção de ácido lático na perna do ratinho, inibe o desenvolvimento da
hiperalgesia e alodínea nesse modelo animal de fibromialgia. Tanto a gabapentina
quanto a pregabalina se ligam a canais de cálcio voltagem- dependentes em neurônios
dos sistemas nervosos central e periférico. O efeito final é o aumento da concentração
de GABA (ácido γ-Aminobutírico, o principal neurotransmissor inibitório), um aumento
da resposta ao GABA e uma diminuição da secreção de neurotransmissores monoamínicos, incluindo o glutamato ( principal estimulante do sistema nervoso central) e
noradrenalina. Além de uma redução da excitabilidade geral dos neurônios, boa parte
da ação analgésica dessas substâncias se dá pela exacerbação do sistema descendente
noradrenérgico que, como vimos no capítulo XI, inibe, na medula espinhal, a ascensão
do estímulo doloroso. A substância-P e o “peptídeo relacionado aos genes da
calcitonina” são dois outros neuromediadores de dor parcialmente inibidos por tais
substâncias.
Antidepressivos
Os mecanismos pelos quais os antidepressivos agem no controle da dor também são
conhecidos apenas parcialmente. Na história dessas substâncias, os “neurotônicos”,
que anedoticamente eram utilizados para o tratamento de depressão, foram
substituídos pelos inibidores da mono-amino oxidade (iMAO) e pelos tricíclicos. Todos
os antidepressivos aumentam a disponibilidade de serotonina no sistema nervoso
central, mas os iMAO e os tricíclicos também modificam amplamente a disponibilidade
de outros neurotransmissores e, por isso provocam uma gama de efeito colaterais
indesejados. Nos anos 70, o primeiro inibidor seletivo da recaptação de serotonina, a
fluoxetina, foi sintetizado e se tornou o primeiro “blockbuster” do setor. Praticamente
todos os antidepressivos lançados subsequentemente seguiram a mesma ideia:
manter os níveis de serotonina elevados por meio da prevenção da reabsorção dessa
molécula pelo cérebro, sem modificar muito a disponibilidade dos outros
neurotransmissores.
Vimos no capitulo VI, que estudos de genoma inteiro apontaram uma associação entre
o “gene transportador da serotonina” (SLC6A4) e fibromialgia. O alelo desse gene
implicado leva a uma redução da disponibilidade de serotonina no cérebro. Ao
contrabalancear essa característica, é possível que os antidepressivos diminuam tal
propensão genética à fibromialgia.
Para recordar, vimos no capitulo VI que a serotonina é um neurotransmissor
fundamental na fisiopatologia do sono. Além disso, vimos no capítulo XI que o
aumento global de serotonina inibe o sistema de busca. Essas são outras possíveis vias
de ação dos antidepressivos na fibromialgia. Apesar disso, os inibidores seletivos de
recaptação da serotonina têm se mostrado muito pouco eficazes no tratamento da
fibromialgia. Nessa doença, apenas os antigos tricíclicos e os novos inibidores de
recaptação de serotonina e norepinefrina (duloxetina e milnacipran) são efetivos.
Aparentemente, a ação nos outros neurotransmissores, em especial da norepinefrina,
também é necessária. As 5 “aminas”, dopamina, glutamina, norepinefrina, epinefrina e
serotonina influenciam, igualmente, o sistema motivacional de busca e o sono. Isso é
particularmente interessante porque boa parte dos reumatologistas divide a
impressão de que o melhor efeito terapêutico dessas drogas só é alcançado quando
um sono de boa qualidade é finalmente recuperado. Vimos que a entrega ao sono só é
possível quando o sistema de busca é finalmente desligado (ou superado), portanto
essa observação não permite inferir se o efeito benéfico dessas drogas se dá
diretamente sobre o sono ou sobre o sistema de busca. Provavelmente se dá por
ambas as vias e ainda por outras como a inibição das vias ascendentes da dor na
medula.
Quando discutimos o modelo animal da reserpina, no capítulo XI, vimos que o uso
dessa substância reduz drasticamente a disponibilidade das aminas nos sistemas
nervosos central e periférico. As aminas estão diretamente envolvidas em diversos
circuitos sabidamente responsáveis pelo processamento e sinalização da dor, em
especial alguns na medula espinhal, tálamo e córtex pré-frontal. Essas vias também
são modificadas com o uso dos tricíclicos e inibidores combinados da recaptação de
serotonina e norepinefrina.
A eficácia dessas duas classes de antidepressivos já foi demonstrada em ensaios
clínicos envolvendo grupo placebo, mas existem poucos estudos comparando tais
substâncias entre si. A escolha do tratamento para um indivíduo, em especial, é
largamente baseada na experiência clínica do médico, nas experiências pessoais
prévias do paciente e na expectativa que o médico tem dos efeitos colaterais que o
paciente irá experimentar. “Expectativa”, porque existe uma enorme variação na
resposta que cada um de nós tem a cada uma dessas medicações, tanto em relação
aos efeitos desejados quanto aos adversos.
Outras drogas
O dinamismo da indústria farmacêutica torna os livros inadequados para quem quer se
manter atualizado sobre as novas tendências do setor. No momento em que este livro
estava sendo escrito drogas ativamente estudadas na fibromialgia incluíam:
pramipexol, quetiapina, naltrexone, hormônio de crescimento, oxibato de sódio e
cannabinoides como o nabilone. Além das medicações, a estimulação
eletromagnética transcraniana é outra frente de investimentos.
Associação de drogas
Como veremos mais detalhadamente a seguir, a grande maioria dos pacientes
fibromiálgicos não responde adequadamente a uma única droga, deixa de responder
com o tempo ou apresenta efeitos colaterais que impedem seu uso. Para tais
pacientes, a combinação de diferentes drogas pode ser uma opção, por associar
múltiplos mecanismos de ação tendo em vista diferentes sintomas.
Por exemplo, as doses de antidepressivos tricíclicos capazes de gerar um significante
efeito antidepressivo são, frequentemente, não toleradas. Ao mesmo tempo,
antidepressivos seletivos para serotonina não são eficazes em tratar os sintomas da
fibromialgia. A associação, à noite, de inibidores de receptação da serotonina com
pequenas doses de tricíclicos pode contornar essas limitações [187]. Outras
combinações ocasionalmente utilizadas incluem:
- Antidepressivos duais e anticonvulsivantes [188]
- Ciclobenzaprina e inibidores seletivos de receptação de serotonina.
Se por um lado as associações somam mecanismos de ações, elas também,
frequentemente, somam efeitos colaterais. Médicos que não se sintam confortáveis
em lidar com elas devem, antes de associá-las, solicitar a opinião de especialistas.
Limitações do tratamento Medicamentoso
Apesar dos antidepressivos acima referidos serem considerados como primeiras
opções para o tratamento da fibromialgia, uma metanálise de 2012 mostrou que
apenas “uma minoria dos pacientes experimentou melhoras substanciais dos sintomas
sem, ou com poucos, efeitos colaterais. Um grande número de pacientes largou o
tratamento em função de tais efeitos adversos, ou por experimentar um alívio
pequeno dos sintomas que não justificariam os efeitos colaterais” [189].
Apesar da “eficácia” dessas medicações em ensaios clínicos, a maioria dos pacientes
do “mundo real” não é significantemente beneficiado por nenhuma medicação em
especial e, frequentemente, não permanece no tratamento em médio-longo prazo. Em
uma análise de um grande banco de dados, envolvendo mais de 13.000 pacientes
diagnosticados com fibromialgia, apenas 1/5 deles mantinham-se no tratamento após
1 ano [190]. Mesmo aqueles que de início se beneficiam das medicações,
frequentemente deixam de fazê-lo ao longo do tempo. Tal fato não chega a
surpreender àqueles que conhecem a história do uso dos antidepressivos na condição
para a qual eles foram criados - a depressão.
A primeira droga baseada na hipótese da diminuição da disponibilidade de serotonina
na depressão foi a fluoxetina, o Prozac®, um gigantesco sucesso de vendas desde a
década de 80. Praticamente, todos os antidepressivos subsequentes seguiram o
mesmo princípio: manter os níveis de serotonina elevados por meio da prevenção da
reabsorção dessa molécula pelo cérebro. Apesar de, ainda hoje, essa classe de drogas
permanecer como a mais utilizada no tratamento da depressão, a confiança em sua
eficácia, no tratamento de tal condição, vem gradualmente diminuindo. Os ensaios
clínicos dos anos 80 e 90 indicavam que elas ajudariam de 80 a 90% dos deprimidos a
entrar em remissão. Nos anos 2000, estudos sugeriram uma proporção mais modesta,
de 60 a 70%. Tais números eram ainda otimistas quando comparados aos de outro
estudo promovido pelo Instituto Americano de Saúde Mental (National Institute of
Mental Health - NIMH), não pela indústria farmacêutica [191]. Além do fato de ser
grande o número de pacientes avaliados (2876), esse último estudo foi especialmente
importante por estudar, pela primeira vez, os efeitos de tais medicações na população
como ela é, e não em indivíduos cuidadosa e tendencialmente selecionados. Os
achados apontaram apenas 30% de remissão da depressão e, mesmo assim, com o uso
de doses bem acima das convencionais e após um tratamento mais prolongado do que
o esperado. As gerações subsequentes de antidepressivos não tiveram desempenho
significantemente melhor do que as primeiras [192].
Qual a causa dessa aparente perda e eficácia ao longo dos anos? Em primeiro lugar, é
possível (provável) que eles nunca tenham sido tão eficazes quanto a indústria
farmacêutica gostaria que nós acreditássemos. Em segundo lugar, os trabalhos iniciais
foram realizados em uma população nunca antes tratada, e os trabalhos mais recentes
incluíam, frequentemente, usuários ou ex-usuários de antidepressivos. Como
previamente discutido neste livro, o uso crônico de substâncias psicoativas
frequentemente induz tolerância. O termo engloba uma série de fenômenos
diferentes, como a diminuição do número e/ou sensibilidades dos receptores para a
substância, a crescente eficiência em sua depuração hepática e renal, a exacerbação
reativa de circuitos contrários, a exacerbação reativa de mecanismos psicossociais
contrários, a perda do efeito placebo e, entre outros, a diminuição da aderência ao
tratamento. Mesmo quando tudo dá certo, as coisas podem não acabar bem. Ao
discutir o papel dos analgésicos no tratamento da fibromialgia, coloquei que o alívio
das dores leva, frequentemente, o fibromiálgico a persistir nos mecanismos que
causam as lesões, levando a situações difíceis de serem contornadas. Mecanismos
semelhantes são desencadeados com os antidepressivos que atingem o objetivo de
aliviar os sintomas.
Resumo do Capítulo XXI: Revisa as principais drogas utilizadas na fibromialgia, seus
mecanismos de ação, efeitos colaterais e limitações de eficácia.
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

As principais drogas comumente utilizadas no tratamento da fibromialgia são
analgésicos, antidepressivos e anticonvulsivantes.
Os analgésicos não opióides (dipirona e paracetamol) podem ser úteis se
usados quando do início da dor localizada. O uso crônico pode ser causa de dor
de difícil tratamento.
Dos analgésicos opióides, o único que encontra algum respaldo para o uso na
fibromialgia é o tramadol. Para alguns pacientes, ele pode ser útil quando do
início de dores localizadas e em crises de exacerbação das dores. O uso crônico
não é aconselhado.
Os antidepressivos são as drogas mais utilizadas na fibromialgia. Deles, os
seletivos para inibição de receptação de serotonina têm pouco ou nenhum
efeito sobre os sintomas dessa síndrome, mas podem ser utilizados no
tratamento da depressão e ansiedade associadas. Os tricíclicos são os mais
eficazes, mas seu uso é limitado por efeitos colaterais. Os duais, como opção,
foram aprovados para o uso na fibromialgia.
A ciclobenzaprina é vendida como relaxante muscular, mas é um
antidepressivo tricíclico com pouca ou nenhuma ação sobre a depressão. É
também uma opção terapêutica.
Alguns anticonvulsivantes são úteis no tratamento da fibromialgia,
principalmente a gabapentina e a pregabalina. Esse último foi aprovado para
uso em tal condição.
A maior parte dos pacientes não responde adequadamente a uma única
droga, deixa de responder com o tempo ou apresenta efeitos colaterais
que impedem seu uso. A combinação de drogas pode,
momentaneamente, contornar tais situações, mas em longo prazo pouco
pode ser esperado do tratamento farmacológico isolado na fibromialgia.
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