Capítulo XXI: Tratamento medicamentoso (Revisa as principais drogas utilizadas na fibromialgia, seus mecanismos de ação, efeitos colaterais e limitações de eficácia. Capítulo não indicado para pacientes. Dificuldade grande. Considere pular este capítulo). “Tratamento” implica uma doença ou ao menos um problema. Fibromialgia é uma doença? O presente livro foi escrito logo após o lançamento da 5ª edição do “Manual Diagnóstico e estatístico das desordens mentais” (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders), ou DSM. Tal manual tenta lançar os limites do que deve ser considerado “normal” ou “patológico” do ponto de vista psiquiátrico. O grande problema é que essas fronteiras não são reais. O que existe são contínuos, e qualquer ponto de clivagem deve ser considerado artificial. Os maiores críticos de como a 5ª edição se delimitou afirmam que elas agravam um conhecido problema da 4ª edição do manual: definições muito amplas. Eles afirmam que o manual do jeito que está classifica como “portadores de condições psiquiátricas” mais de 50% da população mundial. Ao discutirmos o diagnóstico da fibromialgia, no capítulo 3, afirmei que ele “é completamente dependente de onde você quer colocar suas fronteiras”, e “que o uso ou não do rótulo “fibromialgia” deve ser determinado pela praticidade dessa ação”. Existem vantagens e desvantagens em puxar a fronteira mais para cá ou mais para lá. As principais desvantagens do excesso de diagnósticos são o aumento da sensação de doença e desengano e o excesso de medicações. Uma porcentagem enorme de nossa população já toma regularmente medicamentos psicotrópicos, e há dúvidas sobre se estamos realmente nos beneficiando disso. Neste capítulo, deixarei claras as limitações do tratamento medicamentoso. A esperança de que tudo se resolva com o uso de pílulas é ingênua. De qualquer forma, as pílulas têm o seu papel e, sem bem utilizadas, podem ser importantes ferramentas. A discussão sobre o tratamento farmacológico da fibromialgia do ponto de vista prático, ou seja, drogas, doses, esquemas, é inadequada para este livro, uma vez que apenas uma minoria dos leitores será composta de médicos ou estudantes de medicina. Em vez disso, veremos, neste capítulo conceitos gerais sobre as drogas comumente utilizadas e o que podemos esperar delas. A Tabela abaixo resume o perfil terapêutico das principais drogas utilizadas no tratamento da fibromialgia. Tabela 7: Principais drogas utilizadas no tratamento da fibromialgia. Droga Classe medicamentosa Principais mecanismos de Ação em Principais limitações Ref. ao ação uso Paracetamol Analgésico opióide não Inibição da COX-2 central > periférica Dor Toxicidade hepática (dose dependente) [178] Dipirona Analgésico opióide não Inibição da COX-2 central > periférica Dor Agranulocitose, anemia aplastica (raro), alergia [179] Tramador Analgésico opióide Receptor opióide μ; Dor Nausea, tontura, boca seca, desconforto gastrointestinal, obstipação, tolerância (uso contínuo) [180] Potencia norepinephrina, antagonista reserpine, atividade anticolinérgica, antagonista receptor 5-HT2; antagonista TRPV1 Dor Sonolência, boca seca, tontura [181] IRSN; Dor Sonolência [182] Antagonista αadrenérgico; Fadiga Boca seca Distúrbio de sono Desarranjo gastrointestinal Liberador de serotonina; Inibidor de recaptação de norepinefrina; Antagonista de receptor NMDA Antagonista 5HT2C e Ciclobenzaprina Amitriptilina Antidepressivo tricíclico / Relaxante muscular Antidepressivo tricíclico Antagonista NMDA; Distúrbio de sono Fadiga Ganho de peso Bloqueador canais Na/Ca; Ativador canais de K Contração muscular de Duloxetina* Antidepressivo dual IRSN Dor Náuseas Distúrbio de sono Boca seca [182] Hiperidrose Depressão Tontura Minacipran* Antidepressivo dual IRSN Dor Náuseas Fadiga Dor de cabeça Distúrbios cognitivos Hiperidrose [182] Hipertensão Palpitação Pregabalina* Anticonvulsivante Canais de Ca α2δ Dor Tontura Sono Sonolência [182] Ganho de peso Edema Gabapentina Anticonvulsivante Canais de Ca α2δ Dor Tontura Sono Peso [182] COX -= cicloxigenase; IRSN = Inibidor da recaptação de serotonina e noradrenalina; NMDA= receptor N-metill-D-aspartato; Na= sódio; Ca= cálcio; K= potássio; TRPV1= receptores vanilóides tipo 1 * Drogas aprovadas pelo FDA (Food and Drugs administration) para uso em fibromialgia Analgésicos Como discutido no capítulo III, dor gera dor. O modelo animal de injeção de ácido lático na panturrilha de camundongos, capaz de produzir hiperalgesia e alodínea em todo o corpo, é um bom exemplo disso. Sejam quais forem os mecanismos pelos quais isso acontece, é provável que qualquer um de nós vá desenvolver síndromes de sensibilidade central se experimentar dor localizada por tempo e intensidade suficiente. Indivíduos com propensão à fibromialgia muito provavelmente irão desencadear crises se experimentarem dores localizadas significantes. Analgésicos podem e devem ser utilizados por fibromiálgicos, de preferência no início das dores localizadas, na tentativa de evitar seus efeitos sistêmicos, mas uma importante ressalva deve ser feita: o uso crônico de analgésicos é, paradoxalmente, uma conhecida causa de dor. Isso não é tão difícil de entender. Dor sinaliza lesão tecidual ou ameaça de lesão tecidual. Abolir a dor é tão eficiente quanto desligar a luz vermelha acesa no painel do carro e seguir dirigindo. Os limites físicos para os fibromiálgicos (tipicamente os tipo 1) são, com frequência, delimitados exclusivamente pela dor. Ao desligar a sinalização de lesão, esses indivíduos não veem mais impedimentos para continuar, sistematicamente, a abusar de seu próprio corpo, ampliando as lesões. Em pouco tempo, elas serão grandes demais para serem mascaradas por tais substâncias. Os analgésicos podem ser divididos em duas classes, os opióides e os não opióides. Opióides Como vimos no capítulo XI, estudos que utilizaram ressonância magnética funcional, e outros que mediram a concentração de opióides diretamente no líquor, apontaram uma exacerbação, e não diminuição, do sistema opióide nos fibromiálgicos. Isso ajuda a explicar por que medicamentos opióides geralmente não funcionam bem nesses pacientes. Ao contrário, existem dados que sugerem que tais drogas possam piorar sua dor [183]. Nos fibromiálgicos, os opióides endógenos estão lá, em abundância, mas não têm onde se ligar. Concentrações ainda maiores podem piorar o quadro, principalmente pela indução de náuseas e ansiedade. Isso não impede que, eventualmente, subgrupos de fibromiálgicos respondam bem aos opióides. Se o paciente experimentou, no passado, melhora da dor com tais medicações, não há impedimento em utilizá-las em eventos agudos de exacerbação da dor. É importante manter em mente, no entanto, que elas não devem ser utilizadas, cronicamente, pelo alto risco de dependência e por significantes efeitos colaterais. Se por alguma razão, a decisão médica passar pelo uso de opióides, o tramadol deve ser a droga de escolha em função da existência de alguma evidência favorecendo seu uso (ao menos atrelado ao paracetamol) em pacientes fibromiálgicos [184]. A diferença de eficácia dessa droga em relação a de outros opióides tem sido creditada, na verdade, às ações não opióides da substância. Além de sua ação agonista fraca em receptores opióides µ, o tramador também inibe, parcialmente, a receptação de serotonina e noradrenalina, estimula a secreção de serotonina, antagoniza receptores serotoninérgicos tipo 2c, receptores vanilóides tipo 1 TRPV1 (envolvido na percepção de dor relacionada à temperatura) e receptores NMDA (envolvidos em uma série de ações excitatórias do sistema nervoso central). Analgésicos não opióides “Algia”, do grego, quer dizer dor, e “ana” indica oposição, ausência. “Analgésico”, ao pé da letra, é toda substância que tira a dor. Para a maioria das pessoas, no entanto, analgésicos são medicações compradas, sem receita médica, em farmácias ou supermercados, que servem para tirar a dor. O paracetamol (Tylenol®) e a dipirona (Novalgina®) são seus maiores exemplos. O que poucos sabem é que, exceto pelos opióides, todos eles são anti-inflamatórios. O paracetamol, a dipirona e todos os outros anti-inflamatórios exercem suas ações principalmente por meio da inibição da cicloxigenase (COX), uma enzima chave para a produção de prostaglandinas, prostaciclinas e tromboxano, mediadores importantes de dor e inflamação. Duas são as principais diferenças entre o paracetamol e a dipirona e os demais antiinflamatórios: uma seletividade relativa para a COX-2 e uma atividade limitada fora do sistema nervoso central. Alguns anti-inflamatórios mais recentes também apresentam tal seletividade para o segundo tipo dessa enzima. A vantagem disso é um menor efeito colateral no trato gastrointestinal. Uma possível desvantagem é a ausência do efeito antitrombótico observado com o uso de anti-inflamatórios não seletivos, como o ácido acetil salicílico (AAS). O motivo pelo qual o paracetamol e a dipirona têm ação reduzida fora do sistema nervoso central ainda é pouco compreendido. Uma possibilidade é que essas substâncias sejam destruídas por substâncias oxidantes produzidas pelas células inflamatórias nos locais onde há inflamação. Na prática, o que importa é que, por fazerem menos mal ao trato gastrointestinal e aos rins, os “analgésicos não opióides”, o paracetamol e a dipirona, podem ser usados com mais frequência e com mais segurança do que os outros anti-inflamatórios. Importante ressaltar que o risco de provocar dor crônica de difícil tratamento com seu uso contínuo, como discutido no início deste capítulo, é real. Além disso, outros efeitos colaterais devem ser pesados, entre eles o risco de hepatite medicamentosa com o paracetamol e de agranulocitose/ anemia aplástica com a dipirona. Essa última condição, extremamente rara, mas muito grave e imprevisível, levou à proibição da dipirona em diversos países, como os EUA. Anti-inflamatórios Os anti-inflamatórios são subdivididos em esteroidais (hormonais) e não esteroidais (não hormonais). Anti-inflamatórios não esteroidais São os anti-inflamatórios comuns, comprados sem prescrição médica. Um raciocínio semelhante àquele aplicado ao uso de analgésicos deve ser aplicado em relação ao uso de anti-inflamatórios não esteroidais: Eles podem ser úteis na prevenção da “sistematização” da dor localizada, mas seu uso também incorre no risco de gerar dor crônica de difícil tratamento. Existem ainda outros fatores complicantes: o uso frequente de anti-inflamatórios não esteroidais está ligado a diversos efeitos colaterais como lesões no trato digestivo, hepatite medicamentosa e insuficiência renal crônica irreversível. Dessa forma, deve-se evitar o uso constante de tais medicamentos. O uso em situações isoladas, principalmente no início de dor localizada, é bastante útil. Relaxantes musculares Sob esse título estão incluídas diversas substâncias com múltiplos mecanismos de ação. Algumas delas agem, centralmente, diminuíndo a ativação das respostas motoras, e outras, perifericamente, diminuindo a resposta dos músculos à ativação nervosa. A ciclobenzaprina, vendida no Brasil como relaxante muscular e sem receita médica, é, na verdade, um antidepressivo e será mais bem abordada em breve. Nenhum outro relaxante muscular foi adequadamente avaliado em ensaios clínicos na fibromialgia. A maioria dos especialistas consideram tais substâncias úteis, mas de eficácia limitada. Seu uso é frequentemente associado aos anti-inflamatórios no controle da dor aguda, no intuito de evitar o desencadeamento de crises fibromiálgicas. Fora uma possível sonolência e sedação, comuns nas drogas de ação central, seu uso é bastante bem tolerado. Calmantes “Calmantes” são medicações usadas no tratamento agudo de ansiedade. Existem basicamente 2 classes de medicamentos nesse grupo: os barbitúricos e os benzodiazepínicos. Ambas agem basicamente via amplificação da ação dos neurônios GABAérgicos. Recordando, GABA é o principal neurotransmissor inibidor do sistema nervoso central. O primeiro barbitúrico (o próprio ácido barbitúrico) foi sintetizado em 1864, mas suas propriedades terapêuticas só foram descobertas no século XX. Apenas nos anos 50, ficou claro o enorme potencial, que tais medicações apresentam de causar dependência química. Em 1955, o primeiro benzodiazepínico foi sintetizado, mas o primeiro sucesso de vendas (Valium®) foi lançado na década de 60. Eles rapidamente substituíram os barbituratos, por apresentarem menor toxicidade e, teoricamente, menor potencial de dependência. Essa última característica, no entanto, não se provou claramente verdadeira. Nem sempre é fácil determinar quando o uso é mantido por vício ou por permanência da necessidade clínica, afinal ansiedade é uma condição crônica. Mas boa parte dos indivíduos que usam tais substâncias por um período mais prolongado permanece utilizando-as pelo resto da vida, a não ser que haja, por parte do médico, um firme posicionamento contrário. Não é minha intenção diminuir a importância e a utilidade dessas drogas, pois tratar ansiedade patológica sem benzodiazepínicos é impensável. Mas o uso delas na fibromialgia é, geralmente, dispensável e contraproducente. Apesar dos benzodiazepínicos serem bastante eficientes em iniciar um sono bastante prazeroso, a qualidade e o poder reparador desse sono são baixos. Esses agentes aumentam as fases 1 e 2 do sono e reduzem as ondas lentas - fase 3. A perda da fase 3 está associada a delírio, à necessidade de mais sedação e à diminuição do processo reparador do sono [185]. Com seu uso, o paciente refere ter dormido bem, mas mantém todos os sintomas de quem não dormiu como dificuldade de concentração, irritabilidade, olhos secos, falta de memória e dor. Indutores do sono Mais recentemente, uma nova classe de hipnóticos não benzodiazepínicos rapidamente alastrou-se no mercado. O Zolpidem e a Zopiclona são seus principais componentes. Como os benzodiazepínicos, eles agem via potencialização dos circuitos GABAérgicos, mas possuem uma meia vida bem menor, de 2 a 3 horas. Tal característica rendeu, em comparação ao que acontece com o uso de benzodiazepínicos, esperanças de menos efeitos colaterais e menos dependência. Com esse discurso, a indústria farmacêutica conseguiu aprovar, no Brasil, a ausência da necessidade de receitas azuis para a compra dessas medicações - basta uma receita carbonada. No entanto, uma revisão de 2004 mostrou que seu uso prolongado está associado à tolerância, dependência, insônia rebote e diversos efeitos colaterais no sistema nervoso central [186]. A qualidade do sono induzido por tais medicações não é em nada melhor do que daquele induzido pelos benzodiazepínicos, portanto seu uso na fibromialgia não é recomendado. Antidepressivos e anticonvulsivantes Os medicamentos mais bem estudados e mais consistentemente associados à melhora dos sintomas da fibromialgia são certos anticonvulsivantes e certos antidepressivos. A gabapentina e a pregabalina são os anticonvulsivantes que já se comprovaram úteis. Entre os antidepressivos estão os chamados “tricíclicos” e diversos inibidores da receptação de serotonina e norepinefrina (antidepressivos “duais”). A ciclobenzaprina, vendida no Brasil como relaxante muscular e sem receita médica é, na verdade, um antidepressivo tricíclico - também largamente utilizado na fibromialgia. Gabapentina e Pregabalina Os mecanismos pelos quais tais medicações atuam ainda estão sendo elucidados. No capítulo III, vimos que a administração da gabapentina no sistema nervoso central, antes da injeção de ácido lático na perna do ratinho, inibe o desenvolvimento da hiperalgesia e alodínea nesse modelo animal de fibromialgia. Tanto a gabapentina quanto a pregabalina se ligam a canais de cálcio voltagem- dependentes em neurônios dos sistemas nervosos central e periférico. O efeito final é o aumento da concentração de GABA (ácido γ-Aminobutírico, o principal neurotransmissor inibitório), um aumento da resposta ao GABA e uma diminuição da secreção de neurotransmissores monoamínicos, incluindo o glutamato ( principal estimulante do sistema nervoso central) e noradrenalina. Além de uma redução da excitabilidade geral dos neurônios, boa parte da ação analgésica dessas substâncias se dá pela exacerbação do sistema descendente noradrenérgico que, como vimos no capítulo XI, inibe, na medula espinhal, a ascensão do estímulo doloroso. A substância-P e o “peptídeo relacionado aos genes da calcitonina” são dois outros neuromediadores de dor parcialmente inibidos por tais substâncias. Antidepressivos Os mecanismos pelos quais os antidepressivos agem no controle da dor também são conhecidos apenas parcialmente. Na história dessas substâncias, os “neurotônicos”, que anedoticamente eram utilizados para o tratamento de depressão, foram substituídos pelos inibidores da mono-amino oxidade (iMAO) e pelos tricíclicos. Todos os antidepressivos aumentam a disponibilidade de serotonina no sistema nervoso central, mas os iMAO e os tricíclicos também modificam amplamente a disponibilidade de outros neurotransmissores e, por isso provocam uma gama de efeito colaterais indesejados. Nos anos 70, o primeiro inibidor seletivo da recaptação de serotonina, a fluoxetina, foi sintetizado e se tornou o primeiro “blockbuster” do setor. Praticamente todos os antidepressivos lançados subsequentemente seguiram a mesma ideia: manter os níveis de serotonina elevados por meio da prevenção da reabsorção dessa molécula pelo cérebro, sem modificar muito a disponibilidade dos outros neurotransmissores. Vimos no capitulo VI, que estudos de genoma inteiro apontaram uma associação entre o “gene transportador da serotonina” (SLC6A4) e fibromialgia. O alelo desse gene implicado leva a uma redução da disponibilidade de serotonina no cérebro. Ao contrabalancear essa característica, é possível que os antidepressivos diminuam tal propensão genética à fibromialgia. Para recordar, vimos no capitulo VI que a serotonina é um neurotransmissor fundamental na fisiopatologia do sono. Além disso, vimos no capítulo XI que o aumento global de serotonina inibe o sistema de busca. Essas são outras possíveis vias de ação dos antidepressivos na fibromialgia. Apesar disso, os inibidores seletivos de recaptação da serotonina têm se mostrado muito pouco eficazes no tratamento da fibromialgia. Nessa doença, apenas os antigos tricíclicos e os novos inibidores de recaptação de serotonina e norepinefrina (duloxetina e milnacipran) são efetivos. Aparentemente, a ação nos outros neurotransmissores, em especial da norepinefrina, também é necessária. As 5 “aminas”, dopamina, glutamina, norepinefrina, epinefrina e serotonina influenciam, igualmente, o sistema motivacional de busca e o sono. Isso é particularmente interessante porque boa parte dos reumatologistas divide a impressão de que o melhor efeito terapêutico dessas drogas só é alcançado quando um sono de boa qualidade é finalmente recuperado. Vimos que a entrega ao sono só é possível quando o sistema de busca é finalmente desligado (ou superado), portanto essa observação não permite inferir se o efeito benéfico dessas drogas se dá diretamente sobre o sono ou sobre o sistema de busca. Provavelmente se dá por ambas as vias e ainda por outras como a inibição das vias ascendentes da dor na medula. Quando discutimos o modelo animal da reserpina, no capítulo XI, vimos que o uso dessa substância reduz drasticamente a disponibilidade das aminas nos sistemas nervosos central e periférico. As aminas estão diretamente envolvidas em diversos circuitos sabidamente responsáveis pelo processamento e sinalização da dor, em especial alguns na medula espinhal, tálamo e córtex pré-frontal. Essas vias também são modificadas com o uso dos tricíclicos e inibidores combinados da recaptação de serotonina e norepinefrina. A eficácia dessas duas classes de antidepressivos já foi demonstrada em ensaios clínicos envolvendo grupo placebo, mas existem poucos estudos comparando tais substâncias entre si. A escolha do tratamento para um indivíduo, em especial, é largamente baseada na experiência clínica do médico, nas experiências pessoais prévias do paciente e na expectativa que o médico tem dos efeitos colaterais que o paciente irá experimentar. “Expectativa”, porque existe uma enorme variação na resposta que cada um de nós tem a cada uma dessas medicações, tanto em relação aos efeitos desejados quanto aos adversos. Outras drogas O dinamismo da indústria farmacêutica torna os livros inadequados para quem quer se manter atualizado sobre as novas tendências do setor. No momento em que este livro estava sendo escrito drogas ativamente estudadas na fibromialgia incluíam: pramipexol, quetiapina, naltrexone, hormônio de crescimento, oxibato de sódio e cannabinoides como o nabilone. Além das medicações, a estimulação eletromagnética transcraniana é outra frente de investimentos. Associação de drogas Como veremos mais detalhadamente a seguir, a grande maioria dos pacientes fibromiálgicos não responde adequadamente a uma única droga, deixa de responder com o tempo ou apresenta efeitos colaterais que impedem seu uso. Para tais pacientes, a combinação de diferentes drogas pode ser uma opção, por associar múltiplos mecanismos de ação tendo em vista diferentes sintomas. Por exemplo, as doses de antidepressivos tricíclicos capazes de gerar um significante efeito antidepressivo são, frequentemente, não toleradas. Ao mesmo tempo, antidepressivos seletivos para serotonina não são eficazes em tratar os sintomas da fibromialgia. A associação, à noite, de inibidores de receptação da serotonina com pequenas doses de tricíclicos pode contornar essas limitações [187]. Outras combinações ocasionalmente utilizadas incluem: - Antidepressivos duais e anticonvulsivantes [188] - Ciclobenzaprina e inibidores seletivos de receptação de serotonina. Se por um lado as associações somam mecanismos de ações, elas também, frequentemente, somam efeitos colaterais. Médicos que não se sintam confortáveis em lidar com elas devem, antes de associá-las, solicitar a opinião de especialistas. Limitações do tratamento Medicamentoso Apesar dos antidepressivos acima referidos serem considerados como primeiras opções para o tratamento da fibromialgia, uma metanálise de 2012 mostrou que apenas “uma minoria dos pacientes experimentou melhoras substanciais dos sintomas sem, ou com poucos, efeitos colaterais. Um grande número de pacientes largou o tratamento em função de tais efeitos adversos, ou por experimentar um alívio pequeno dos sintomas que não justificariam os efeitos colaterais” [189]. Apesar da “eficácia” dessas medicações em ensaios clínicos, a maioria dos pacientes do “mundo real” não é significantemente beneficiado por nenhuma medicação em especial e, frequentemente, não permanece no tratamento em médio-longo prazo. Em uma análise de um grande banco de dados, envolvendo mais de 13.000 pacientes diagnosticados com fibromialgia, apenas 1/5 deles mantinham-se no tratamento após 1 ano [190]. Mesmo aqueles que de início se beneficiam das medicações, frequentemente deixam de fazê-lo ao longo do tempo. Tal fato não chega a surpreender àqueles que conhecem a história do uso dos antidepressivos na condição para a qual eles foram criados - a depressão. A primeira droga baseada na hipótese da diminuição da disponibilidade de serotonina na depressão foi a fluoxetina, o Prozac®, um gigantesco sucesso de vendas desde a década de 80. Praticamente, todos os antidepressivos subsequentes seguiram o mesmo princípio: manter os níveis de serotonina elevados por meio da prevenção da reabsorção dessa molécula pelo cérebro. Apesar de, ainda hoje, essa classe de drogas permanecer como a mais utilizada no tratamento da depressão, a confiança em sua eficácia, no tratamento de tal condição, vem gradualmente diminuindo. Os ensaios clínicos dos anos 80 e 90 indicavam que elas ajudariam de 80 a 90% dos deprimidos a entrar em remissão. Nos anos 2000, estudos sugeriram uma proporção mais modesta, de 60 a 70%. Tais números eram ainda otimistas quando comparados aos de outro estudo promovido pelo Instituto Americano de Saúde Mental (National Institute of Mental Health - NIMH), não pela indústria farmacêutica [191]. Além do fato de ser grande o número de pacientes avaliados (2876), esse último estudo foi especialmente importante por estudar, pela primeira vez, os efeitos de tais medicações na população como ela é, e não em indivíduos cuidadosa e tendencialmente selecionados. Os achados apontaram apenas 30% de remissão da depressão e, mesmo assim, com o uso de doses bem acima das convencionais e após um tratamento mais prolongado do que o esperado. As gerações subsequentes de antidepressivos não tiveram desempenho significantemente melhor do que as primeiras [192]. Qual a causa dessa aparente perda e eficácia ao longo dos anos? Em primeiro lugar, é possível (provável) que eles nunca tenham sido tão eficazes quanto a indústria farmacêutica gostaria que nós acreditássemos. Em segundo lugar, os trabalhos iniciais foram realizados em uma população nunca antes tratada, e os trabalhos mais recentes incluíam, frequentemente, usuários ou ex-usuários de antidepressivos. Como previamente discutido neste livro, o uso crônico de substâncias psicoativas frequentemente induz tolerância. O termo engloba uma série de fenômenos diferentes, como a diminuição do número e/ou sensibilidades dos receptores para a substância, a crescente eficiência em sua depuração hepática e renal, a exacerbação reativa de circuitos contrários, a exacerbação reativa de mecanismos psicossociais contrários, a perda do efeito placebo e, entre outros, a diminuição da aderência ao tratamento. Mesmo quando tudo dá certo, as coisas podem não acabar bem. Ao discutir o papel dos analgésicos no tratamento da fibromialgia, coloquei que o alívio das dores leva, frequentemente, o fibromiálgico a persistir nos mecanismos que causam as lesões, levando a situações difíceis de serem contornadas. Mecanismos semelhantes são desencadeados com os antidepressivos que atingem o objetivo de aliviar os sintomas. Resumo do Capítulo XXI: Revisa as principais drogas utilizadas na fibromialgia, seus mecanismos de ação, efeitos colaterais e limitações de eficácia. As principais drogas comumente utilizadas no tratamento da fibromialgia são analgésicos, antidepressivos e anticonvulsivantes. Os analgésicos não opióides (dipirona e paracetamol) podem ser úteis se usados quando do início da dor localizada. O uso crônico pode ser causa de dor de difícil tratamento. Dos analgésicos opióides, o único que encontra algum respaldo para o uso na fibromialgia é o tramadol. Para alguns pacientes, ele pode ser útil quando do início de dores localizadas e em crises de exacerbação das dores. O uso crônico não é aconselhado. Os antidepressivos são as drogas mais utilizadas na fibromialgia. Deles, os seletivos para inibição de receptação de serotonina têm pouco ou nenhum efeito sobre os sintomas dessa síndrome, mas podem ser utilizados no tratamento da depressão e ansiedade associadas. Os tricíclicos são os mais eficazes, mas seu uso é limitado por efeitos colaterais. Os duais, como opção, foram aprovados para o uso na fibromialgia. A ciclobenzaprina é vendida como relaxante muscular, mas é um antidepressivo tricíclico com pouca ou nenhuma ação sobre a depressão. É também uma opção terapêutica. Alguns anticonvulsivantes são úteis no tratamento da fibromialgia, principalmente a gabapentina e a pregabalina. Esse último foi aprovado para uso em tal condição. A maior parte dos pacientes não responde adequadamente a uma única droga, deixa de responder com o tempo ou apresenta efeitos colaterais que impedem seu uso. A combinação de drogas pode, momentaneamente, contornar tais situações, mas em longo prazo pouco pode ser esperado do tratamento farmacológico isolado na fibromialgia.