Cunha e cols Peso cardíaco e coeficiente peso cardíaco/peso corporal Arq Bras Cardiol Artigo Original 2002; 78: 382-4. Peso Cardíaco e Coeficiente Peso Cardíaco/Peso Corporal em Adultos Subnutridos Daniel Ferreira da Cunha, Selma Freire de Carvalho da Cunha, Marlene Antônia dos Reis, Vicente de Paula Antunes Teixeira Uberaba, MG Objetivo - Comparar o peso do coração e o coeficiente da relação peso cardíaco/peso corporal de adultos com ou sem subnutrição crônica. Métodos - De uma casuística inicial de 210 necropsias de adultos, foram registrados os pesos corporais e do coração e calculado o coeficiente peso cardíaco/peso corporal (PCa/PCo x 100). Foram excluídos casos com sorologia positiva para doença de Chagas e indivíduos com edema, obesidade, cardiopatias, hepatopatias, nefropatias e hipertensão arterial sistêmica. Subnutrição foi caracterizada pelo índice de massa corporal <18,5kg/m2. Diferenças com p<0,05 foram consideradas significantes. Resultados - Os indivíduos dos grupos subnutridos (n=15) e controles (n=21) foram estatisticamente diferentes, respectivamente, quanto ao índice de massa corporal (15,9±1,7 vs 21,3±2,5kg/m2), peso cardíaco (267,3±59,8 vs 329,1±50,4g) e coeficiente PCa/PCo (0,64±0,12 vs 0,57±0,09%). Observou-se correlação positiva e significativa entre o peso cardíaco e índice de massa corporal (r=0,52) e peso cardíaco e peso corporal (r=0,65). Conclusão - Subnutridos têm corações menos pesados e maior coeficiente PCa/PCo que os não-subnutridos, achados que indicam possível preservação do miocárdio em relação à intensidade do emagrecimento corporal, associada ao provável aumento relativo do tecido conjuntivo e dos vasos sangüíneos cardíacos. Palavras-chave: coração, hipotrofia cardíaca, nutrição, subnutrição protéico-energética Faculdade de Medicina do Triângulo Mineiro, Uberaba, MG Correspondência: Daniel Ferreira da Cunha - Nutrologia - Faculdade de Medicina do Triângulo Mineiro - Av. Getúlio Guaritá, 130 - 38025-180 - Uberaba, MG E-mail: [email protected] Recebido para publicação em 10/1/01 Aceito em 23/5/01 A subnutrição crônica decorre do aporte inadequado de nutrientes, com predomínio dos processos catabólicos sobre o anabolismo e desgaste progressivo das reservas corporais de gorduras e proteínas musculares. Em indivíduos adultos, a subnutrição energética crônica manifesta-se por progressiva perda de peso corporal, com hipofunção e hipotrofia de órgãos, como baço, intestinos e rins 1. Experimentos com animais 2 e necropsias de crianças subnutridas mostram que o coração sofre hipotrofia proporcional ao grau de emagrecimento 3,4. Embora sejam raros os trabalhos sobre morfometria e função do coração de adultos subnutridos 5, experimentos com animais sugerem que o miocárdio sofre menor desgaste que a musculatura esquelética estriada, possivelmente devido ao aumento relativo da vascularização e da oxigenação dos miocardiócitos 6. Entretanto, não são raros os pacientes que desenvolvem taquicardia, retenção hídrica e descompensação cardíaca durante a terapia nutricional, sendo este fenômeno atribuído à disfunção miocárdica, associada à hipotrofia cardíaca secundária à subnutrição 7. O coeficiente do peso cardíaco/peso corporal (PCa/ PCo), cujo valor normal está em torno de 0,5±0,02, tem sido empregado na caracterização da hipertrofia miocárdica 8 e poderia ser utilizado na avaliação da hipotrofia miocárdica. Embora realizado com outros objetivos, um trabalho feito por nosso grupo 8 indicou que as pessoas que morreram com doenças caquetizantes apresentaram a relação PCa/ PCo maior que o normal. Entretanto, ainda não foram descritas as relações entre o coeficiente PCa/PCo com outros parâmetros de avaliação nutricional, incluindo o peso corporal, a altura e o índice de massa corporal. A hipótese deste estudo foi que, em decorrência da relativa preservação do peso cardíaco em relação ao índice de massa corporal, adultos subnutridos teriam maior coeficiente PCa/PCo que controles não-subnutridos. O objetivo do presente trabalho foi comparar o peso cardíaco e o coeficiente PCa/PCo de adultos com ou sem subnutrição crônica. Métodos O trabalho foi realizado nas Disciplinas de Nutrologia Arq Bras Cardiol, volume 78 (nº 4), 382-4, 2002 382 Arq Bras Cardiol 2002; 78: 382-4. Cunha e cols Peso cardíaco e coeficiente peso cardíaco/peso corporal e Patologia Geral da Faculdade de Medicina do Triângulo Mineiro (FMTM), Uberaba, MG, após aprovação da Comissão de Ética Médica do Hospital Escola. Numa primeira etapa, de um total de 315 necropsias realizadas no Hospital Escola-FMTM no período entre dezembro/86 e janeiro/98, foram selecionados 210 protocolos de necropsias completas de adultos com idade >21 anos. Os diagnósticos principais, realizados à necropsia e os dados gerais dos indivíduos, incluindo sexo, cor, idade, altura, peso corporal e peso cardíaco foram registrados num banco de dados eletrônico. Posteriormente, foram excluídos os portadores de cardiopatias chagásica, hipertensiva, isquêmica, reumática ou pulmonar. Devido à influência do edema no peso corporal, também foram excluídos os casos com anasarca ou edema localizado, não-inflamatório. Foram ainda excluídos os casos com sinais de hepatopatia crônica (hepatite virótica e alcoólica ou cirrose), glomerulopatia e obesidade, definida por índice de massa corporal maior que 27kg/m2. Positividade das reações sorológicas para doença de Chagas e presença de trombose intracardíaca ou pericardite também foram critérios para não-inclusão de casos, bem como de pacientes com sinais morfológicos renais sugestivos de insuficiência renal crônica, condição muitas vezes associada com cardiomegalia 9. O estado nutricional foi caracterizado pelo índice de massa corporal, calculado pelo peso corporal em quilos dividido pela altura em metros ao quadrado (kg/m2), sendo considerados subnutridos 10 os indivíduos com índice de massa corporal <18,5kg/m2. O coeficiente PCa/PCo, peso cardíaco (g)/peso corporal (g) x 100 foi calculado em todos os casos 8. Após verificação da normalidade estatística dos dados numéricos contínuos obtidos, os grupos subnutridos e controles foram comparados usando-se o teste “t” de Student. O teste do quiquadrado e o teste exato de Fisher foram empregados na comparação de proporções. O coeficiente de correlação de Pearson foi utilizado para verificar as correlações entre peso corporal e peso cardíaco e índice de massa corporal e peso cardíaco. Foram consideradas significativas as diferenças com p<0,05. Resultados Foram estudados 36 casos, sendo 15 com subnutrição protéico-energética e 21 controles. Subnutridos e controles não mostraram diferença estatística, respectivamente, quanto à idade (42,3±18,3 vs 44,7±21,8 anos), proporção de sexo masculino:feminino (11:4 vs 18:5) e cor branca: nãobranca (10:5 vs 16:5). Da mesma forma, a porcentagem dos diagnósticos mais comuns à necropsia foram similares, respectivamente, entre subnutridos e controles: broncopneumonia (40 vs 38,1), gastrite (40 vs 28,6), síndrome da imunodeficiência adquirida (26,7 vs 19,9), neoplasias malignas (13,3 vs 19), pancreatite crônica (13,3 vs 33,3) e sepsis (13,3 vs 19). Nenhum indivíduo apresentou alterações cardíacas macro ou microscópicas compatíveis com diagnósticos de degeneração, necrose, infiltrado inflamatório ou presença de parasitas oportunísticos. Os indivíduos dos grupos subnutridos e controles apresentaram estatura similar, respectivamente 1,62±0,12 vs 1,65±0,08m; entretanto, os indivíduos subnutridos tiveram menor peso corporal e índice de massa corporal que os controles (p<0,05) (tab. I). O peso do coração foi menor entre subnutridos (267,3±59,8g) quando comparados aos controles (329,1±50,4g), mas a relação PCa/PCo foi maior no grupo subnutridos (0,64±0,12%) que entre controles (0,57±0,09%). As correlações entre peso corporal e peso cardíaco (fig. 1) e entre índice de massa corporal e peso cardíaco (fig. 2) mostraram-se positivas e significativas (p<0,05). Discussão No presente estudo, documentou-se que o coração é proporcionalmente mais pesado em adultos subnutridos que entre controles não-subnutridos, fenômeno que pode ser interpretado como manifestação de relativa preservação cardíaca em relação à intensidade da perda de peso corporal. Interpretação que está de acordo com a descrição de maiores coeficientes PCa/PCo em pessoas mais magras, quando comparadas com indivíduos de maior peso corporal 11 e também com a documentação de coeficientes PCa/PCo de 0,60± 0,13% em pessoas que morreram em decorrência de doenças caquetizantes 8. A exclusão de indivíduos obesos, bem como de cardiopatas e de portadores de doenças sistêmicas, como hipertensão arterial sistêmica ou insuficiência renal crônica, diminuiu a possibilidade da concomitância de condições causadoras de hipertrofia miocárdica ou dilatação cardíaca 12. Da mesma forma, a exclusão de casos com edema ou derrames Tabela I - Idade, parâmetros antropométricos e peso cardíaco de adultos subnutridos e controles. Parâmetros Controles (n = 21) Idade (anos) Indice de massa corporal (kg/m2) Peso corporal (kg) Peso cardíaco (g) Peso cardíaco/peso corporal (%) 44,7 ± 21,8 21,3 ± 2,46 58,2 ± 7,2 329,1 ± 50,4 0,57 ± 0,09 Subnutridos (n = 15) 42,3 ± 18,3 15,9 ± 1,69* 41,9 ± 6,7* 267,3 ± 59,8* 0,64 ± 0,12* *p < 0,01 r = 0,65 p<0,01 Fig. 1 - Correlação entre peso corporal (kg) e peso do coração (g) de adultos subnutridos ou controles. 383 Cunha e cols Peso cardíaco e coeficiente peso cardíaco/peso corporal r = 0,52 p<0,01 Fig. 2 - Correlação entre índice de massa corporal (IMC) e peso do coração de adultos subnutridos ou controles. cavitários também aumentou a confiabilidade da antropometria na avaliação do estado nutricional 10. Pelos critérios utilizados neste trabalho, que não incluiu indivíduos com subnutrição protéica, do tipo kwashiorkor 1, pode-se afirmar que houve predomínio de casos com subnutrição do tipo marasmo, que resulta do balanço energético negativo prolongado, sendo caracterizado por intenso desgaste das reservas de gordura corporal e relativa preservação da massa muscular. Embora o tipo de subnutrição raramente seja detalhado em trabalhos realizados com pessoas adultas 1, é descrito que o coração é relativamente poupado na inanição prolongada 1,3,4, o que está de acordo com a maior relação peso cardíaco/peso corporal observada no presente estudo. No entanto, também se observou correlação positi- Arq Bras Cardiol 2002; 78: 382-4. va e significativa entre o peso corporal e o peso cardíaco (r=0,65), bem como deste com o índice de massa corporal (r=0,52), o que indica que quanto mais emagrecido estiver o indivíduo, menor será o peso do coração. Dessa forma, conforme observado em estudos da morfometria de miocardiócitos 5, casos com subnutrição avançada têm maiores graus de hipotrofia cardíaca 13, fato que pode ter repercussão clínica, incluindo prolongamento do intervalo QTc no eletrocardiograma 14, menor débito cardíaco 2 e maior risco de desenvolvimento da síndrome da realimentação, situação em que a descompensação cardíaca decorreria da disfunção miocárdica associada à hipotrofia cardíaca secundária à subnutrição 7. Em conjunto, estes dados indicam que se o miocárdio sofre hipotrofia, o mesmo parece não ocorrer com o tecido conjuntivo presente no coração 3,5, fato corroborado pela maior tortuosidade dos vasos coronarianos e a desproporção entre o tamanho do coração hipotrofiado e dos vasos da base, preservados na subnutrição. Concluindo, embora se tenha documentado preservação relativa do peso cardíaco em adultos com marasmo, os resultados deste estudo também indicam hipotrofia cardíaca associada à subnutrição crônica grave. Estudos futuros devem esclarecer se pelo menos parte da manutenção do peso cardíaco se deve ao aumento relativo do tecido conjuntivo, que seria mais preservado que o muscular durante a inanição prolongada. Referências 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. McMahon MM, Bistrian BR. The physiology of nutritional assessment and therapy in protein-calorie malnutrition. Dis Mon 1990; 36: 373-417. Alden PB, Madoff RD, Stahl TJ, Lakatua DJ, Ring WS, Cerra FB. Left ventricular function in malnutrition. Am J Physiol 1987; 253: H380-7. Webb JG, Kiess MC, Chan-Yan CC. Malnutrition and the heart. Can Med Assoc J 1986; 135: 753-8. Freeman LM, Roubenoff R. The nutrition implications of cardiac cachexia. Nutr Rev 1994; 52: 340-7. Cunha DF, Pedrini CH, Sousa JC, et al. 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