ESTILO VIDA, PREVENÇÃO E A PROMOÇÃO DE SAÚDE Guilherme Ramos Sens* Médico de Família e Comunidade – ESF Ibicaré, SC Mestrando em Promoção de Saúde – UNASP/SP Contatos: [email protected] Em nossa sociedade moderna a ideia de prevenção goza de grande respeitabilidade, afinal, “prevenir é melhor do que remediar”. As diferenças de entendimento e comunicação entre pacientes e médicos, as muitas influências sobre a prática médico-científica interferiram na qualidade das ações sanitárias, inclusive a prevenção, reduzindo a respeitabilidade e fazendo surgir à prevenção quaternária. Na década de 1960, pesquisadores sistematizaram o conceito de prevenção em três diferentes níveis: prevenção primária, secundária e terciária, baseados na problemática da história natural da doença (na qual a doença se instala, inicialmente assintomática, após passa a ter sintomas, progride e leva a sequelas e pode levar a morte)1. Prevenção Primária: é aquela praticada antes da doença se estabelecer, em indivíduos saudáveis, tentando reduzir fatores de risco. Por exemplo: vacinação, entrevista motivacional para mudança de estilo de vida, cessação do tabagismo, etc. Prevenção Secundária: é a praticada para diagnóstico precoce, quando a doença ainda é assintomática. Por exemplo: rastreamento do câncer de mama (mamografia), câncer de colo de útero (preventivo), de diabetes (glicemia de jejum) da aterosclerose (que é obstrução de vasos sanguíneos, sendo rastreada com ultrassonografia com doppler) e a aferição da tensão arterial para paciente com hipertensão. Prevenção Terciária: é aquela praticada após o indivíduo ter sintomas de uma dada doença, ou após uma sequela, e antes de sua complicação. Objetiva limitar a progressão da doença, promovendo adaptação a sequelas e reintegração do indivíduo ao meio. Por exemplo: reabilitação de paciente amputado, tratamento de hipertensão e diabetes para paciente com lesões em órgão alvo (órgãos que são comumente lesionados por níveis cronicamente elevados de pressão arterial e diabetes, como olhos, coração, rins e cérebro), o ajuste de ruídos em prótese auditiva em paciente com deficiência da audição. Prevenção Quaternária: é detecção de indivíduos em risco de intervenções diagnósticas e/ou terapêuticas para protegê-los de novas intervenções médicas inapropriadas e sugerir-lhes alternativas eticamente aceitáveis. Ainda na década de 80, pesquisadores chegaram ao conceito de prevenção quaternária considerando a antropologia médica, na qual os médicos são atraídos pela ciência (doença) e os pacientes pela consciência (experiência com o sofrimento). Apresentam dois extremos: os indivíduos doentes, que não se sentem enfermos e, os indivíduos que se sentem enfermos, mas não estão doentes. Para ambas as demandas aplicam-se ações sanitárias diferentes2. Até o surgimento do conceito de prevenção quaternária existia uma “lacuna epistêmica e histórica”3, na qual a discussão de prevenção ocorre sem considerar duas grandes questões: 1) a questão antropológica, não considerando as diferentes percepções sobre a saúde e o adoecer, existentes entre profissionais de saúde e seus pacientes; 2) e o fato de vivermos numa época onde muitas influências além da ciência, tencionam o setor saúde. Esta diferença de entendimento sobre a saúde, o adoecer e a doença dificulta a comunicação, o atendimento, a adesão, interferindo diretamente nas relações profissional-pessoa, na adesão ao tratamento, na satisfação com o processo terapêutico e de trabalho em saúde. E fazem surgir quatro demandas operacionais, que serão também ocupados pelas diferentes níveis de prevenção. Quadro 1: Conceitos de prevenção interrrelacionados4 Conhecimento Científico (do médico), baseado na história natural da doença Consciência ou sensação do paciente, baseado na experiência com a enfermidade Ausência de Doença Presença de Doença I = Prevenção Primária: Ação II = Prevenção Secundária: realizada para evitar ou Ação realizada para detectar remover a causa de um um problema de saúde em problema de saúde em um estágio inicial em um indivíduo indivíduo ou população antes ou população, dessa forma Sensação de que ele se manifeste. Inclui facilitando Saúde promoção de saúde a cura, ou e reduzindo, ou prevenindo que proteção específica. se espalhe ou cause efeitos de longo prazo. IV = Prevenção Quaternária III = Prevenção Terciária: (nicho principal de ação): Ação realizada para reduzir os Ação feita para identificar efeitos crônicos de um um paciente ou população problemas de saúde em um Sensação de em risco Enfermidade supermedicalização, protege-lo de de indivíduo ou população ao para minimizar o prejuízo funcional uma em consequência de problema intervenção médica excessiva de saúde agudo ou crônico. e sugerir alternativos procedimentos Inclui reabilitação cientifica eticamente embasados. e Quadro 2: Demandas operacionais2 Conhecimento Científico (do médico), baseado na história natural da doença Presença de Doença I = Pessoa saudável que II = Pessoa Doente que com a enfermidade baseado na experiência sensação do paciente, Consciência ou Ausência de Doença Sensação de se sente saudável se sente saudável Saúde IV = Pessoa saudável que III = Pessoa doente que Sensação de se sente enferma se sente enferma Enfermidade Das demandas destacadas no quadro, a prevenção quaternária permeia cada um deles, tendo espaço privilegiado naquelas situações onde existe sensação de enfermidade por parte do paciente, mas não existe doença presente (IV). Sendo este espaço especial de ação (pois nesta demanda, o indivíduo sadio não precisa de intervenção médica, mas, por sentir-se enfermo tencionará o profissional para ter esta intervenção), mas não exclusivo, podendo ocorrer em qualquer um das demais demandas. Um exemplo disso seria o de pessoas com doenças crônicas que, estando mal adaptadas a essa condição (pertenceriam ao nicho III), continuam a demandar novos exames, consultas e tratamentos, mesmo com já acertada conduta médica inicial. Pesquisa da década de 80 enfoca o interesse da indústria farmacêutica (e também de outros que lucram com a doença) de influenciar os médicos e suas prescrições 5. Num texto incisivo e corajoso, autores discorrem sobre a propaganda frente ao médico, afirmando que a medicina e as atividades sanitárias são muitas vezes realizadas de forma interesseira e maliciosa tanto na prevenção, quanto na promoção de saúde e novos diagnósticos e pesquisas de medicamentos,5,6. Outros autores destacam destaca os malefícios para a relação médico-paciente, e a criação de uma contra-cultura ao profissional médico7. Este contexto chegou às escolas médicas desde as influências do Relatório Flexner, e por sua vez nos profissionais lá formados, o que tem acumulado gerações de propagadores destas práticas8,9,10. Estando com todas estas influências, e que aqui só foram citadas, sobre sua mente, e com a grande pressão assistencial demandando respostas rápidas, especialmente de pessoas que estão sãs, mas sentem-se enfermas, é que o profissional de saúde está sujeito a praticar intervenções desnecessárias, sejam diagnósticas ou terapêuticas, o chamado sobrediagnóstico ou sobretratamento. Estes ocorrem em muitas situações, como por exemplo, diagnostica-se como problema, doença, algo que representa uma fase normal da vida, e que embora tenha seu sofrimento intrínseco o ato de ter um rótulo de doença gera ansiedade e sofrimentos desnecessários, e pode levar a intervenções terapêuticas que podem ser prejudiciais e desnecessárias. Surge desta aplicação o conceito de ‘Não doença’ e ‘Medicalização Social’. O conceito de ‘Não doença’ se define como: “Um problema ou preocupação humanos que alguns definiram como uma condição médica, mas que seriam melhor solucionadas se o problema ou processo não tivesse sido definido como tal"11. São exemplos: o envelhecimento, o parto, cabelos grisalhos, ressaca, orelhas grandes, celulite, etc. A ‘Medicalização Social’ é definida como um “Processo de converter situações que sempre foram tidas como normais em quadros patológicos e a pretensão de resolver pela medicina situações que não são médicas, mas sociais, profissionais e de relações inter-pessoais [tradução]”12,13,14,15. As consequências do sobrediagnóstico16: 1. Asma - estudo canadense sugere 30% das pessoas com diagnóstico pode não ter asma, e 66 % das pessoas diagnosticadas podem não precisar de medicadimentos, fato semelhante ocorrento com pacientes diagnosticados com embolia pulmonar com embolos muito pequenos; 2. Déficit de Atenção e Hiperatividade – rapazes nascidos no final do ano escolar tem 30% mais chance de diagnóstico e 40% a mais de chance de medicação do que aqueles que nasceram no início do ano, como se a fase de desenvolvimento infanto-juvenil interferisse no diagnóstico e na percepção dos educadores e pais que demandam por um diagnóstico; 3. Revisão sistemática câncer de mama sugere até um terço dos casos de triagem de câncer (acontecendo em até 25% dos casos de neoplasias pulmonares e até 60% nos de próstata, triados pelo PSA) pode ser detectado em estágio que regridiria espontâneamente, e apesar do aumento subtancial no número de diagnósticos a taxa de mortalidade permaneceu praticamente inalterada (o que ocorreu com muitos tipos de cânceres, como o de tireoide); 4. O aumento dos critérios diagnósticos, sob uma definição controversa das doenças levou a um aumento surpreendente dos diagnósticos (1 em 10 pessoas muito idosas passaram a ter doença renal crônica, 1 em 5 gestanes passaram a ter diabetes gestacional, e um aumento considerável de mulheres de baixo risco passaram a ter osteoporose) sitações com desfechos clínicos bastante controversos; 5. Revisões sistemáticas estimam a possibilidade de sobrediagnóstico entre hipertensos e até 80% das pessoas que foram tratadas para colesterol estariam com níveis séricos normais. Outros autores destacam o excesso de exames de rastreamento e medicalização de fatores de risco como itens integrantes da prevenção quaternária17. CONSIDERAÇÕES FINAIS O profissional de saúde é um educador por excelência, deve usar sua influência sobre indivíduos e populações para a promoção da saúde e felicidade dos mesmos18,19. Muitas são as pressões sofridas pelos profissionais de saúde, do mercado, dos gestores, das pessoas a quem ele presta assistência. E muitas vezes tais influências estão iludidas, enganadas ou até mesmo mal intencionadas. A existência da prevenção quaternária deseja ser não uma verdade absoluta, mas sim um alerta e uma reflexão para profissionais, sociedade e indivíduos de que suas condutas em relação a saúde precisam mudar. O arcenal tecnológico para diagnóstico e tratamento não tem o potencial que se credita a ele ter, e muitas vezes pode ser ainda mais deletério. E as mudanças no estilo de vida tem o tamanho impacto resolutivo que neste livro se mostra ter, mesmo exigindo perseverante esforço e disciplina, por que não dar mais valor a elas? Que DEUS tenha misericórdia de Suas criaturas e lhes dê a capacidade de executar as mudanças necessárias em seus estilos de vida, para que a saúde e o gozo possam ser mais adequadas aos Seus propósitos! REFERÊNCIAS 1. Leavell H, Clark E. 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