História da Bioética: Caso Tuskegee

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Caso Tuskegee
José Roberto Goldim
Em 1895 Booker T. Washington era o diretor da Escola Normal de Tuskegee para
Professores Negros, situada no condado de Macon/Alabama, nos Estados Unidos.
Era uma escola modelo que havia sido criada por um ex-escravo que tinha tido
sucesso como negociante. Durante a Atlanta Cotton Exposition, Booker T.
Washington fez uma proposta para que houvesse um maior desenvolvimento na
região predominantemente negra do estado do Alabama/EUA. A sua proposta foi
aceita pelo filantropo Julius Rosenwald, que foi o fundador das lojas Sears.
Em 1900 o experimento de desenvolvimento da região de Tuskegee, no condado
de Macon, Alabama tem início. O Fundo Rosenwald permitiu a criação de escolas,
fábricas, negócios e agricultura. O projeto é assumido por Robert Motin, em 1915,
quando Booker T. Washigton morreu.
Durante os exames médicos realizados nas pessoas que estavam sendo
recrutadas para lutar na I Guerra Mundial foi constatado que as doenças venéreas
eram um importante problema de saúde pública. Com o fim da guerra, em 1918, foi
criado um conselho interdepartamental, constituído pelas Secretarias, que nos
Estados Unidos equivalem a ministérios, da Marinha, da Guerra e do Tesouro,
especificamente para tratar de higiene social. Neste mesmo ano foi criada a Divisão
de Doenças Venéreas no Serviço de Saúde Pública Norte-Americano. Em 1919 já
funcionavam mais de 202 clínicas em 30 diferentes estados, com mais de 64.000
pacientes atendidos. Com a perda do ímpeto causado pelo esforço de guerra, os
recursos foram sendo gradativamente reduzidos e o programa de doenças
venéreas, que tratava predominantemente sífilis, foi sendo desmontado. Em 1926
foram retirados todos os fundos federais para o tratamento de doenças venéreas.
O tratamento disponível para a sífilis em 1929 utilizava basicamente mercúrio e
bismuto. Este tratamento podia durar meses, necessitando de não menos de 20
consultas médicas em um ano. As substâncias utilizadas no tratamento geravam
muitos efeitos tóxicos, em muitos casos acarretando a morte do paciente. O índice
de cura não atingia a 30%.
Em 1929, foi publicado um estudo, realizado na Noruega, a partir de dados
históricos, de mais de 2000 casos de sífilis não tratado. Neste mesmo ano o Fundo
Rosenwald foi procurado pelo Serviço de Saúde Pública do Governo NorteAmericano buscando recursos para sanar as dificuldades econômicas no
tratamento dos pacientes com sífilis. A coordenação da divisão médica do projeto
era chefiada pelo médico Michael M. Davis, um dos precursores da medicina
comunitária e da economia médica, que tinha implantado um sistema de clínicas
para tratamento de sífilis em Boston. Um de seus objetivos era o de integrar
profissionais de saúde negros no atendimento das doenças venéreas. Vale lembrar
que naquela época existiam faculdades de medicina para formar médicos brancos e
outras para médicos negros. O representante do Serviço de Saúde Pública no
projeto era o Dr. Taliaferro Clark. O custo estimado para tratar uma comunidade era
de US10.000,00 por ano. O Fundo Rosenwald alocou US$50.000,00 para este
programa. Foram escolhidas cinco comunidades, sendo que uma delas era o
condado de Macon, no Alabama, onde já ocorria o projeto Tuskegee.
Um dos limitantes para o desenvolvimento da região de Tuskegge eram
justamente os aspectos de saúde, sendo a sífilis o maior problema da comunidade,
que ocorria em 35% da população em idade fértil. Esta comunidade era
predominantemente pobre, negra e rural. Estas pessoas não dispunham de US$5,00
para pagar o preço de uma consulta médica na época.
Em 1931 o Fundo Rosenwald retirou o seu suporte para o projeto de
desenvolvimento, em consequência da crise econômica iniciada em 1929. Os Drs.
Taliaferro Clark e Raymond A. Vondelehr decidiram acompanhar a evolução dos
homens que não haviam sido tratados de sífilis, com o objetivo de levantar novos
fundos para tratá-los.
Em 1932 já haviam organizado um acompanhamento de 399 homens com sífilis e
201 sem doença. Todos estes homens eram avaliados periodicamente em suas
condições físicas e era dito a eles que estavam sendo tratados. A contrapartida pela
participação no projeto era o acompanhamento médico, uma refeição quente no dia
dos exames e o pagamento das despesas com o funeral. Para todos os
participantes era dito que tinham "sangue ruim", que já era uma denominação
corriqueira na comunidade negra.
O administrador do Projeto Tuskegee, Robert Motin, concordou com a realização
do projeto, desde que profissionais negros fossem diretamente envolvidos e que o
projeto recebesse os devidos créditos pela participação. A enfermeira Eunice
Rivers, contratada como assistente de pesquisa, e o Dr. Eugene H Dibble, ambos
negros, foram incorporados ao grupo para serem facilitadores na integração com a
comunidade. Como os fundos para o tratamento não foram obtidos o
acompanhamento deste grupo de 600 homens continuou como uma pesquisa. Este
talvez tenha sido um dos motivos pelos quais nunca foi encontrado um projeto de
pesquisa referente ao estudo de sífilis não tratado em Tuskegee, pois teve início
com
uma
finalidade
e
continuou
com
outra.
Até 1952 foram feitos quatro grandes levantamentos com estes participantes, em
1932, 1938, 1948 e 1952, de acordo com um artigo publicado sobre questões
metodológicas - Twenty Years of Followup Experience in a Long-Range Medical
Study. Alguns dados deste artigo são extremamente elucidativos. Os participantes
se negaram a fazer nova punção lombar, fizeram apenas no primeiro levantamente,
em 1932. As condições econômicas dos participantes eram extremamente
precárias, a ponto de ser extremamente atraente a oferta de um prato de comida
quente a cada consulta. Os participantes tiveram boa adesão ao projeto, muito em
função do contato sistemático e continuado da enfermeira Rivers. Ela buscava os
participantes em casa em um automóvel especialmente alocado para a pesquisa.
Uma evidência desta boa relação foi a de que em 146 óbitos, até 1952, foi obtida
autorização
para
realização
de
145
necrópsias.
Em 1936 foi publicado um artigo - Untreated syphilis in the male Negro. A
comparative study of treated and untreated cases - com os dados sobre o
andamento do estudo. Esta publicação gerou alguma polêmica, porém logo
superada.
A partir de 1945 já havia terapêutica estabelecida para o tratamento de sífilis
utilizando penicilina. Em 1947 o serviço de saúde pública norte-americana criou
"Centros de Tratamento Rápido" para pacientes com sífilis. Mesmo assim, todos os
indivíduos incluídos no estudo continuavam sem receber tratamento por decisão
formal dogrupo de pesquisadores..
De 1947 a 1962, 127 alunos negros de medicina tiveram participação no estudo.
Em 1957 foi dado a cada um dos participantes do projeto um diploma do Serviço
de Saúde Pública Norte-Americano agradecendo a participação de 25 anos no
estudo.
Em 1961 foi publicado outro levantamento geral do estudo, esta vez com os
dados de 30 anos de acompanhamento - The Tuskegee study of untreated syphilis:
the 30th year of observation.
Em 1968 algumas pessoas que tinham conhecimento do estudo, como o Prof.
Peter Bauxum, começaram a demonstrar contrariedade com a continuação do
mesmo.
Em 1969, a imprensa noticiou a confirmação de que já tinham ocorrido 28 mortes
por sífilis no estudo. James Jones, que posteriormente escreveria uma livro - Bad
Blood: the Tuskegee syphilis experiment - relatando os detalhes do projeto como
um todo, acreditou que o mesmo já havia sido cancelado quando foi feita esta
divulgação do número de mortes. O Centro de Controle de Doenças de Atlanta
reiterou, em 1969 a necessidade de continuar o estudo pela sua importância. Em
1970 o capítulo local da Associação Médica Norte-Americana se manifestou
favorável à continuidade da pesquisa.
A reporter Jean Heller, da Associated Press, publicou no New York Times, em
26/7/72, uma matéria denunciando este projeto. O impacto desta denúncia foi muito
grande junto a sociedade, porém o estudo somente foi encerrado meses após.
Durante a realização do projeto foram publicados 13 artigos que no próprio título
expressavam que o não tratamento era o objetivo do mesmo. Salvo na publicação
de 1936, a comunidade científica nunca mais se manifestou contrariamente a este
respeito, mesmo quando temas livres eram apresentados em congressos, em
especial na área de Epidemiologia.
Após 40 anos de acompanhamento, ao término do projeto, haviam apenas 74
sobreviventes, sendo que 28 morreram diretamente de sífilis e 100 pessoas de
complicações decorrentes da doença. Ao longo do estudo 40 esposas e 19 recémnascidos se contaminaram. A instituição responsável pela condução do projeto, na
suas últimas etapas, foi o Centro de Controle de Doenças (CDC) de Atlanta. O
governo norte-americano pagou mais de dez milhões de dólares em indenizações
para mais de 6.000 pessoas, mas não se desculpou pelo abuso.
Uma comissão de pessoas vinculadas a história da medicina e a bioética,
liderada pelo Dr. James Jones, exigiu que o governo norte americano pedisse
desculpas públicas e formais aos 8 sobreviventes e as famílias dos demais
participantes. Em 16 de maio de 1997 o Presidente Bill Clinton pediu desculpas
formais para os cinco sobreviventes que compareceram à solenidade na Casa
Branca.
Jones JH. Bad blood: the Tuskegee syphilis experiment. New York: Free, 1993:1-11.
Vieira S, Hossne WS. Experimentação com seres humanos. São Paulo: Moderna, 1987:47.
Clinton pede desculpas aos sobreviventes de Tuskegee - CNN 16/05/1997
Vonderlehr RA, Clark T, Wenger 0C, Heller JR Jr. Untreated syphilis in the male Negro. A comparative
study of treated and untreated cases. Ven Dis Inform 1936;17: 260-265.
Rockwell DH et al. The Tuskegee study of untreated syphilis: the 30th year of observation. Archives
of Internal Medicine 1961;114:792-798.
O
Caso
Tuskegee:
quando
Ética
Aplicada
à
Página de Abertura - Bioética
Atualizado
©Goldim/1997-2001
a
ciência
Pesquisa
em
se
torna
em
eticamente
Saúde
inadequada
(aula)
08/07/2001
capturado em 16/03/07, às 08:15:02, de http://www.ufrgs.br/bioetica/tuekegee.htm
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