Sobreviventes de cancro: uma nova população de alto risco

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N.º 43 Jan-Mar 2017 Pág. 74-77
Manuela Fiuza
Serviço de Cardiologia, Hospital Universitário de Santa Maria (CHLN)
Centro Académico de Lisboa e Centro Cardiovascular da Universidade de Lisboa,
Faculdade de Medicina, Portugal
Sobreviventes de cancro: uma nova população de alto
risco cardiovascular
Introdução
Nas últimas duas décadas a taxa de
sobrevivência dos doentes com cancro tem
vindo a aumentar. Só nos EUA há atualmente mais de 14 milhões de sobreviventes
de cancro (cerca de 4% da população), com
uma taxa de sobrevivência aos cinco anos
que já ultrapassa os 68%, números inimagináveis até há bem pouco tempo1.
Tal deve-se sobretudo à melhoria dos
métodos de screening e às novas terapêuticas oncológicas farmacológicas (terapêuticas biológicas e imunológicas), assim como
às novas metodologias utilizadas na radioterapia torácica.
Com efeito, observa-se atualmente uma
mudança de paradigma em relação ao
doente oncológico, que passou a ser visto
como portador de doença crónica.
Esta nova realidade está a dar origem a
uma nova área de cuidados médicos, mais
abrangente, em que é necessário fazer a
vigilância não apenas da recorrência da
doença e deteção de segundas neoplasias,
como também a monitorização de efeitos
adversos tardios das terapêuticas oncológicas, nomeadamente no sistema cardiovascular.
De facto, os doentes sobreviventes de
cancro têm uma elevada incidência de doenças cardiovasculares (DCV), que são a principal causa de mortalidade nestes doentes,
a seguir às segundas neoplasias.
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Há vários fatores que ajudam a explicar
o risco aumentado de DCV nesta população: muitos sobreviventes vão desenvolver
os chamados fatores de risco (FR) tradicionais relacionados com o envelhecimento,
como hipertensão arterial (HTA), diabetes
mellitus (DM), dislipidémia e obesidade,
sendo que estes FR são comuns às duas
doenças. As próprias terapêuticas oncológicas podem aumentar o risco de aparecimento de alguns destes FR e, as alterações
no estilo de vida após os tratamentos oncológicos, como o aumento de peso e a redução da atividade física, podem também exacerbar o risco de DCV.
Vários estudos2 têm referido que esta
população apresenta um risco 15 vezes
maior de vir a desenvolver insuficiência
cardíaca, cinco a dez vezes de enfarte do
miocárdio e nove vezes de acidente vascular cerebral. Estes riscos atribuídos à cardiotoxicidade (CTX) das terapêuticas oncológicas, podem permanecer por toda a vida.
Estas diferentes manifestações de DCV
levantam questões ainda não totamente
esclarecidas. Primeiro, o mecanismo pelo
qual a terapêutica oncológica pode originar uma determinada doença cardiovascular pode ser diferente do mecanismo patogénico habitual da doença. Assim sendo,
poderá não ser apropriado, usar nestes
doentes, o mesmo tratamento para as DCV,
que é recomendado aos doentes que não
têm cancro. Segundo, a presença de cancro,
muitas vezes limita as opções terapêuticas
que são utilizadas em situações semelhantes nos doentes sem cancro.
Dada a dimensão e relevância desta questão, faz todo o sentido falar de Cardio-Oncologia, como uma nova subespecialidade
médica, partilhada entre cardiologistas e
oncologistas e que implica uma abordagem
muito específica do doente oncológico com
problemas cardíacos e dos sobreviventes de
cancro, com monitorização cardíaca regular e continuada3.
Terapêuticas oncológicas
São conhecidas as sequelas cardíacas das chamadas terapêuticas oncológicas tradicionais, como a quimioterapia
condução). A CTX secundária à radioterapia pode ocorrer em 50% dos doentes e é
geralmente muito tardia, podendo só manifestar-se 20 a 30 anos depois da radioterapia. Mais recentemente, as novas técnicas
de radiação, que incluem o planeamento
tridimensional, o breath-hold e o gating,
permitem quase excluir o coração do campo
a irradiar e usar doses mais baixas de radiações (< 30 Gy). Com estas novas metodologias é expectável que se verifique uma
diminuição das taxas de cardiotoxicidade
precoces e tardias, relacionadas com esta
terapêutica4.
As novas terapêuticas, denominadas
terapêuticas biológicas, traduzem um
melhor conhecimento das vias de sinalização molecular envolvidas no desenvolvimento e progressão dos tumores. Têm um
Os doentes sobreviventes de cancro têm uma elevada incidência
de doenças cardiovasculares. Os riscos atribuidos à cardiotoxicidade
das terapêuticas oncológicas podem permanecer por toda a vida
com antraciclinas (em particular a doxorubicina), associadas a risco aumentado de
disfunção sistólica do ventrículo esquerdo
e insuficiência cardíaca. Mais de 50% dos
doentes expostos a terapêutica com antraciclinas vão ter algum grau de disfunção
ventricular 10 a 20 anos após a quimioterapia e cerca de 5% vão ter insuficiência
cardíaca com taxas de mortalidade, que
podem ultrapassar os 60%4. O risco de CTX
tem uma distribuição etária bimodal, sendo
mais frequente nos mais jovens e nos mais
idosos e está relacionada com a dose cumulativa utilizada (> 550 mg/m2).
A radioterapia torácica, em particular quando irradiado o lado esquerdo, pode
atingir o coração, podendo ocasionar alterações em qualquer estrutura cardíaca (vasos,
miocárdio, válvulas, pericárdio, sistema de
mecanismo de ação mais seletivo, umas
dirigidas primariamente à célula tumoral
(anticorpos monoclonais, pequenas moléculas e terapêutica hormonal), outras dirigidas ao microambiente tumoral (inibidores da angiogénese, imunoterapia)5.
Estas novas terapêuticas oncológicas
alteraram significativamente a história
natural de muitos cancros mas, tal como
as terapêuticas sistémicas, podem apresentar também efeitos cardiotóxicos. Estes são
menos frequentes no miocárdio, sobressaindo os efeitos vasculares (HTA; enfarte
do miocárdio; fenómenos tromboembólicos) e as alterações metabólicas (dislipidémia, hiperglicémia; obesidade) que se
podem manifestar durante ou após os tratamentos3-5 (Quadro 1).
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Monitorização cardiovascular
Os doentes sobreviventes de cancro devem
ter um plano individualizado de monitorização oncológica e que deve incluir a monitorização cardíaca de acordo com o potencial de
CTX das terapêuticas oncológicas realizadas.
Os doentes de alto risco cardiovascular devem ser referenciados à consulta de
cardio-oncologia para monitorização mais
apertada e eventual intervenção terapêutica.
A regularidade da monitorização destes
doentes é avaliada caso a caso, e inclui a
Quadro 1
Manifestações de cardiotoxicidade relacionadas com a terapêutica oncológica
Terapêuticas tradicionais
Cardiotoxicidade
Antraciclinas (ex: doxorubicina)
Disfunção VE/IC
Arritmias
Platinas (ex: cisplatina)
HTA
Isquémia miocárdio
Antimetabolitos (ex: 5-FU)
Isquémia miocárdio
Arritmias
Radioterapia
Isquémia miocárdio
Miocardite
Arritmias
Valvulopatias
Pericardite
Disfunção autonómica
Novas terapêuticas
Inibidores da tirosinoquinase
(ex: trastuzumab; bevacizumab)
HTA
Doença vascular (coronária; cerebral; periférica)
Arritmias (incluindo FA)
QT longo
Miocardiopatia/IC
Alterações metabólicas (dislipidémia; hiperglicémia)
Inibidores da angiogénese (ex:sunitinib)
HTA
Tromboembolismo arterial
Isquémia miocárdio
Inibidores de proteassomas (ex: carfilzomib)
HTA
Miocardiopatia/IC
Imunomodeladores (ex: talidomida)
Imunoterapias/checkpoint imunes (ex: nivolumab)
Tromboembolismo arterial e venoso
Miocardite
Arritmias (FA)
Isquémia miocárdio
Hipotensão
HTA - hipertensão arterial; IC - insuficiência cardíaca; VE - ventrículo esquerdo; FA - fibrilhação auricular.
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ecocardiografia nas suas várias modalidades, sendo a técnica de imagem de eleição
para avaliar as principais sequelas cardíacas das terapêuticas oncológicas; o eletrocardiograma e, alguns biomarcadores laboratoriais (ex: NT-ProBNP; Galectina 3).
O controlo dos fatores de risco é fundamental. Tem sido proposta uma abordagem
tipo A-B-C-D-E5:
A - Alerta/Avaliação/Aspirina;
B - (Blood pressure) controlo da pressão arterial;
C - Controlo do Colesterol/Cessação
tabágica;
D - Dieta/controlo da Diabetes;
E - Exercício físico/Ecocardiograma.
A terapêutica das sequelas cardíacas
é, de uma maneira geral, semelhante à da
população em geral, e inclui modeladores
do sistema renina-angiotensina; beta-bloqueantes; estatinas; anti-hipertensores.
Porém, novos desafios terapêuticos se
estão a colocar nesta população de sobreviventes. São exemplo, a abordagem das síndromes coronárias agudas ou crónicas, que
necessitem de terapêutica de revasculariza-
ção. À luz dos conhecimentos atuais, não é
recomendada a utilização de stents revestidos. O ácido acetil-salicílico pode ser utilizado e é até recomendado6. Outro exemplo,
é a abordagem da estenose valvular aórtica,
nomeadamente nos doentes que fizeram
radioterapia torácica, que poderá tornar
proibitiva a abordagem cirúrgica (fibrose
mediastínica, aorta de porcelana, cirurgias
torácicas prévias) e nos quais se deve ponderar, como alternativa, fazer a substituição valvular por via percutânea6.
Conclusões
As terapêuticas oncológicas estão a conseguir controlar o cancro e aumentar a
sobrevivência destes doentes. Mas estes
benefícios podem ser anulados devido ao
aparecimento mais tardio de efeitos adversos cardíacos destas terapêuticas. Nos
doentes sobreviventes de cancro, a mortalidade por DCV, é causa principal de morte
não-tumoral nestes doentes.
Como tal, é fundamental que os oncologistas e cardiologistas trabalhem em
equipa para definirem as melhores estratégias de monitorização e terapêutica, nesta
emergente população de doentes.
Referências
auspices of the ESC Committee for Practice Guidelines. Eur Heart J. 2016; 37: 2768-2801
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community-based retrospective cohort study. J
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Moslehi J. Cardiovascular toxic effects of targeted cancer therapies. N Engl J Med. 2016; 375:
1457-67
6.
Iliescu CA, Grines CL, Herrmann J, et al. SCAI
Expert consensus statement: Evaluation, management, and special considerations of cardio-oncology patients in the cardiac catheterization
laboratory (endorsed by the cardiological society
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Interv. 2016; 87:E202-23
3.
Fiuza M, Ribeiro L, Magalhães A, et al. Organização e implementação de uma consulta de Cardio-Oncologia. Rev Port Cardiol. 2016; 35: 485-94
4.
Zamorano JL, Lancellotti P, Muñoz DR, et al.
2016 ESC Position Paper on cancer treatments
and cardiovascular toxicity developed under the
77
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