Nº 5 - TJPE

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Revista do CEJ
5
Centro de Estudos Judiciários
Tribunal de Justiça de Pernambuco
ISSN 1983-8662
Revista do CEJ
5
Centro de Estudos Judiciários
Tribunal de Justiça de Pernambuco
Novembro de 2015
Av. Dantas Barreto, 191 - Salas 112/114 - Santo Antônio
Recife, PE - CEP 50.010-919.
www.tjpe.jus.br/cej
Ficha técnica
Título: Revista do CEJ - Centro de Estudos Judiciários
Editora: Tribunal de Justiça de Pernambuco
Impressão: Imprima Soluções Gráficas
N. de edição: 5
5ª edição: 600 exemplares
ISSN: 1983-8662
Revista do CEJ - Centro de Estudos Judiciários.
Tribunal de Justiça de Pernambuco. (Ano 1, n. 1, jun. 2008)
– Recife: O Tribunal, 2015.
N. 5. nov. 2015
299 p.
Irregular
ISSN 1983-8662
1. Direito - Periódico 2. Centro de Estudos Judiciários.
I. Título.
CDD 341.4197
Sumário
Apresentação
Jones Figueirêdo Alves
11
191º aniversário do TJPE – Ciclo de palestras
Abertura do ciclo de palestras
Jovaldo Nunes Gomes
15
Jurisprudência do STJ e o meio ambiente
Antônio Herman Benjamin
19
Discurso de agradecimento aos palestrantes
Jones Figueirêdo Alves
29
Novo Código de Processo Civil
Luiz Fux
31
Doutrina
Demandas de massa e o problema da admissibilidade do
IRDR no CPC-2015
Alexandre Freire Pimentel e Bruna Liana Amorim de Andrade
49
Responsabilidade civil contratual e o dano moral no ordenamento
jurídico brasileiro: sua aplicabilidade nos tribunais
Artur de Lima Barretto Lins
71
Perda ou não do objeto do agravo de instrumento face à prolação da
sentença no processo originário
Carlos Rogério de Souza Silva
85
A União Europeia e o Brasil: recursos hídricos na política e legislação
ambiental
Christiano German e Alberto Nogueira Virgínio
95
As “histórias patrocinadas do facebook” – os limites da utilização de
dados pessoais no marketing on-line
Demócrito Reinaldo Filho
121
A força dos precedentes
Frederico Ricardo de Almeida Neve
131
O ativismo judicial do Supremo Tribunal Federal do Brasil nas
questões envolvendo segurança pública. Possibilidade de atuação
judicial em função executiva
Gleydson Lima
135
Negócios jurídicos existenciais. Os contratos gestacionais e as
diretivas antecipadas de vontade
Jones Figueirêdo Alves
165
Responsabilidade civil do provedor de conteúdo por lesão a direito
da personalidade na Internet
Rafael Cavalcanti Lemos
181
O jurista e filósofo Clóvis Beviláqua
Rogério Medeiros Garcia de Lima
207
Direito da personalidade – natureza jurídica, delimitação do objeto e
relações com o Direito Constitucional
Silvio Romero Beltrão
225
O assistente técnico em psicologia nos processos judiciais - o que
todos os operadores da lei precisam saber
Tania Guerra Cardoso
247
De lege ferenda
Projeto de Lei do Senado n. 658/2015, de 30.09.2015
Altera o Código Penal para dar novo tratamento a marcos temporais que
causam a prescrição da pretensão executória e a interrupção da prescrição da
263
pretensão punitiva.
Prescrição criminal e impunidade
Luiz Edson Fachin
267
Juizados Especiais
Enunciados aprovados no Fórum Nacional de Juizados
Especiais – FONAJE
Enunciados Cíveis
Enunciados Criminais
Enunciados da Fazenda Pública
273
287
298
Apresentação
O Centro de Estudos Judiciários lança, agora, o quinto volume
da Revista do CEJ, trazendo temas de alta relevância na atualidade para
todos que lidam com o Direito. Em especial, nesta edição, foram incluídas
as conferências proferidas no Ciclo de Palestras realizado nas festividades
do 191º aniversário do Tribunal de Justiça de Pernambuco, que teve como
convidados ilustres, entre outros, os Ministros Luiz Fux e Antônio Herman
Benjamin.
Mantendo o propósito de disseminar o conhecimento e a
otimização da prestação jurisdicional visado nos volumes anteriores,
além das palestras dos ministros, foram selecionados trabalhos de
grande interesse para os estudiosos do Direito e para o público em geral,
tratando de variados temas, como o Incidente de Resolução de Demandas
Repetitivas, trazido no Código de Processo Civil de 2015; o dano moral
decorrente do descumprimento contratual; os recursos hídricos no
Brasil e União Europeia; a utilização de dados pessoais no marketing online; o fortalecimento do Direito Jurisprudencial com vistas a garantir a
previsibilidade e segurança das decisões judiciais; a problemática da
decisão final no processo originário acarretar ou não a perda superveniente
do objeto do agravo de instrumento; contratos gestacionais e reprodução
assistida; traços biográficos do jurista e filósofo Clóvis Beviláqua; o Direito
da personalidade; e, por fim, a questão do psicólogo como assistente
técnico no judiciário, sobretudo no que trata da alienação parental.
Também foram incluídos os capítulos De lege ferenda, que traz o Projeto
de Lei do Senado n. 658/2015, de 30.09.2015 e artigo que trata do assunto,
do Ministro Luiz Edson Fachin e “Juizados Especiais”, com enunciados
cíveis, criminais e da fazenda pública aprovados no Fórum Nacional de
Juizados Especiais – FONAJE.
Agradecimentos especiais aos palestrantes e autores dos
artigos, cujos trabalhos engrandecem a ciência do Direito e promovem
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Apresentação
o aprendizado de todos que se interessam pelos assuntos jurídicos;
ao Desembargador Jovaldo Nunes Gomes, que ao realizar o ciclo de
palestras, na sua gestão, nos brindou com conferências que enobrecem
a edição desta revista; ao Presidente do Tribunal de Justiça de
Pernambuco, Desembargador Frederico Ricardo de Almeida Neves, pelo
apoio dispensado ao Centro de Estudos Judiciários e pela contribuição
enriquecedora com o artigo de sua autoria, bem como à equipe do CEJ,
pelo esmero no desempenho das tarefas para a publicação da presente
obra.
Des. Jones Figueirêdo Alves
Diretor do CEJ
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191º aniversário do TJPE – Ciclo de
palestras
Abertura do ciclo de palestras1
Jovaldo Nunes Gomes2
Boa tarde a todos e a todas!
Excelentíssimo Senhor Ministro Francisco Falcão do Superior
Tribunal de Justiça e Corregedor Nacional do Conselho Nacional de
Justiça. Excelentíssimos Senhores Ministros Herman Benjamin e Paulo de
Tarso Sanseverino do Superior Tribunal de Justiça. Querida colega Fátima
Bezerra, Presidente do Tribunal de Justiça do Estado da Paraíba. Querido
amigo Ivanildo Andrade, Presidente do Tribunal Regional do Trabalho.
Decano da Casa, Jones Figueirêdo. Meus Senhores e Minhas Senhoras.
Há cerca de três ou quatro meses, em conversa com o Ministro
Falcão, disse-lhe que 13 de agosto seria o aniversário do Tribunal de
Justiça de Pernambuco, que amanhã completará 191 anos de existência.
O Ministro, como sempre, prestigiou as solenidades do Tribunal de Justiça
de Pernambuco, quer quando integrante do Tribunal Regional Federal, e
agora, principalmente, como integrante do Superior Tribunal de Justiça
e Corregedor Nacional de Justiça. Ele, na oportunidade, disse que queria
participar destas solenidades, não apenas com a sua presença física, mas
também trazendo alguns colegas dos tribunais superiores.
Hoje, nós temos aqui a alegria de, na fase inicial das homenagens
dos 191 anos do Tribunal de Justiça, contarmos com a presença de cinco
Ministros do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça.
Isso, Ministro Falcão, para nós é uma demonstração do seu
prestígio e do apreço e admiração que Vossa Excelência tem pelo Tribunal
de Pernambuco. Eu quero, em nome de Vossa Excelência, agradecer aos
Ministros Herman Benjamin, Paulo de Tarso e Og Fernandes. E isso, repito,
é uma demonstração não só de Pernambuco, mas do Nordeste, que parte
dele está aqui representada pela nossa queridíssima Paraíba, na pessoa
1
Palestra proferida em 12.08.2013, na solenidade comemorativa do 191º aniversário do TJPE.
2
Desembargador do Tribunal de Justiça de Pernambuco. Integrante da 5ª Câmara Cível, do 1º Grupo de
Câmaras Cíveis e da Corte Especial. Presidente do TJPE no biênio 2012/2014.
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Abertura do ciclo de palestras
da Desembargadora Presidenta Fátima Bezerra e do nosso querido amigo
Herman.
Eu quero, em nome da Mesa Diretora do Tribunal de Justiça,
composta por mim, pelo Desembargador Fernando Eduardo Ferreira e
pelo Desembargador Frederico Neves, agradecer a presença de todos. Sei
que daqui a pouco seremos brindados com a palestra do Ministro Herman
Benjamin, que também saiu dos seus afazeres, tem compromisso e daqui
a instantes viajará para Brasília. Ministro, eu quero, de público, agradecer
a presença de Vossa Excelência, o esforço que fez para estar aqui presente
entre nós, assim como o Ministro Paulo de Tarso, e dizer que Pernambuco
está agradecido a todos, com a presença dos queridos desembargadores
de hoje e de ontem, como costuma dizer o Desembargador decano, Jones
Figueirêdo. E dizer também que nós estamos de parabéns, o Tribunal de
Pernambuco está de parabéns nesses 191 anos de existência.
Como eu já afirmei no vídeo a que acabamos de assistir, acho
que o sentimento de todos nós que fazemos o Poder Judiciário é a
angústia de ver uma prestação jurisdicional tardia. Isso aflige, Ministro
Falcão, a todos nós, a Vossa Excelência, às Cortes Superiores, porque, como
costumo dizer, e vou repetir aqui, todos nós, no fim do mês, pouco ou
muito, temos o privilégio de ir ao supermercado fazer a nossa feira, pagar
a prestação do nosso carro, da nossa casa. Muitos não têm esse privilégio
e, ainda, dependem de uma decisão do Poder Judiciário, quer na Justiça
do Trabalho, Doutor Valdir Carvalho, quer na Justiça federal ou estadual.
Eu não posso, Ministro Falcão, Ministro Herman, Ministro Paulo de Tarso,
conceber que o Judiciário demore quatro, cinco, seis anos para ultimar
uma prestação jurisdicional a quem tanto precisa. Eu tenho externado
isso, angustia-me, acho que angustia a todos nós que fazemos parte do
Poder Judiciário.
Esses 191 anos de existência do Poder Judiciário de Pernambuco,
que tem dado a sua contribuição, servem para despertar ainda mais esse
sentimento de angústia, para que nós todos que, de forma direta ou
indireta, fazemos o Poder Judiciário Nacional, possamos encurtar esse
prazo da prestação jurisdicional. É com essa intenção que nós celebramos
os 191 anos do Tribunal de Justiça de Pernambuco.
Tenho contado com o apoio irrestrito da Casa, dos colegas
magistrados e dos servidores. Todos nós estamos empenhados em
16
Revista do CEJ - n. 5, p. 15-17 - nov. 2015
Jovaldo Nunes Gomes
encurtar esse espaço de tempo entre o início e o fim de uma demanda
judicial, principalmente para aqueles que mais precisam.
Essa celebração serve como uma reflexão para que possamos
fazer alguma coisa, mas fazer alguma coisa a mais do que já fazemos.
Tenho certeza que essa angústia, que não é só minha, mas de todos, irá
nos fazer refletir.
Mais uma vez, quero agradecer a presença dos eminentes
ministros aqui presentes, dos colegas, Alderita, que veio também de
Brasília, pois está convocada pelo Superior Tribunal de Justiça, mas compõe
esta Casa; aos colegas que estão aqui presentes, agradecer a todos.
Dando como aberto este ciclo de palestras que teremos hoje
à tarde, aqui no Tribunal de Justiça, quero passar a presidência dos
trabalhos ao Desembargador Jones Figueirêdo, que presidirá a Mesa,
na qual palestrará o Ministro paraibano Herman Benjamin, de Catolé do
Rocha. Obrigado a todos pela presença.
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Jurisprudência do STJ e o meio ambiente
Antônio Herman Benjamin3
Queria inicialmente dizer, meu caro Desembargador Jones
Figueirêdo, que é sempre um prazer retornar a este Tribunal e é o oposto
do que disse o nosso Presidente Jovaldo, de que este Tribunal estaria
honrado com a nossa presença. Nós é que nos sentimos profundamente
honrados de estar aqui, e eu, que sou paraibano, e já estive aqui outras
tantas vezes antes de ingressar no Superior Tribunal de Justiça. Queria
agradecer ao Presidente a iniciativa, e ao conspirador chefe, que já foi aqui
identificado de público, que é meu colega Francisco Falcão, que nos pega
de surpresa nas férias com uma intimação, que aceitei de muito gosto, e
meu colega Paulo Sanseverino idem, para estarmos aqui comemorando
este um ano a mais, é quase uma extensão, dos 190 anos de celebração
desta Corte.
Peço permissão a Sua Excelência, o Presidente, e aos meus
colegas Francisco Falcão e Paulo Sanseverino, para saudar a todos, na
figura dessa pessoa extraordinária, o Ministro Demócrito Reinaldo, e
dizer, Ministro, que Vossa Excelência faz muita falta no nosso Tribunal,
pela seriedade da sua vida pessoal e como juiz, sobretudo, pela qualidade
dos seus votos, que são exemplares, de uma clareza extraordinária. Então,
deixo aqui um registro de um aprendiz que continua aprendendo com
seus votos e com isso tenho certeza que a vinculação entre nós todos está
muito viva. Por último, nesta apresentação, meu caro Desembargador
Jones, dizer que aqueles que são mais atentos às notas biográficas e à
geografia, podem imaginar que há aqui nesta Mesa um complô da
Paraíba, ou seja, no posicionamento das pessoas que integram esta Mesa,
como se a Paraíba quisesse conquistar o Estado de Pernambuco ou o
Judiciário do Estado de Pernambuco. Ele próprio, eu, a Desembargadora
Fátima Bezerra, e um terreno disputado que é o Ministro Francisco Falcão
que, para utilizar a expressão dos mais antigos, seria uma espécie de terra
3
Ministro do STJ desde 06.09.2006. Presidente da 1ª Seção e integrante da 2ª Turma, da Corte Especial e do
Conselho de Administração. Diretor da Revista do STJ. Ministro do Tribunal Superior Eleitoral.
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Jurisprudência do STJ e o meio ambiente
incógnita, em que ora nós achamos que ele é paraibano e aí, logo em
seguida, ele nos trai com declarações de amor vigorosas a Pernambuco e
à Justiça pernambucana. A rigor, ele é de todos, mas quero dizer que está
sentado à Mesa também, o Ministro Paulo Sanseverino, que é gaúcho, e
de certa maneira quebra este paradigma paraibano, mas evidente que os
mais estudiosos da história bem sabem da antiquíssima aliança entre a
Paraíba e o Rio Grande do Sul. Então, nós paraibanos, estamos hoje aqui
fazendo a festa dos 191 anos do Tribunal de Justiça de Pernambuco.
Quero por último, e disse que era o último ponto da
introdução, mas o faço agora, dizer que é muito bom festejar algo que
nós entendemos velho com temas e com perspectivas que mostram
a atualidade e o desafio da atualidade permanente daquilo que nós
imaginávamos velho. Hoje, como disse o Presidente, nós estaremos
debatendo três temas que não integram a modernidade, mas integram, a
rigor, a pós-modernidade dos desafios que estão postos para a jurisdição
brasileira. De um lado, vamos chamar assim, a nova responsabilidade
civil e em terras de civilistas, está aqui entre tantos o Desembargador
Jones Figueirêdo, mas, sobretudo, o maior especialista que nós temos
no Superior Tribunal de Justiça nesta matéria da responsabilidade civil,
que é o Ministro Paulo Sanseverino. Todos nós, e eu, em particular,
não é que apreciamos os julgados do Ministro Paulo Sanseverino, nós
bebemos nesta fonte permanente de ideias modernas, que trazem um
compromisso muito sério com a justiça social.
À tarde, ao final do expediente, o Ministro Luiz Fux vai aprofundar
a questão do acesso à Justiça no plano da nova processualística. Mas eu,
no tema específico do meio ambiente, que é o que me coube, gostaria
de antecipar que sempre dizem: “você é um apaixonado pelo meio
ambiente”, como se primeiro eu fosse o único, no Superior Tribunal de
Justiça, e segundo, se eu fosse o maior, mas o maior apaixonado pelo tema
ambiental é o Ministro Francisco Falcão. Aliás, algo que vem do pai dele,
sobre quem eu já escrevi um artigo, comentando um dos seus acórdãos
monumentais, que salvou a costa de João Pessoa. O mar pode ser o
mesmo, mas a ocupação urbanística não é a mesma entre João Pessoa
e Recife, e o que nos salvou dos espigões de Boa Viagem foi exatamente
um acórdão magistral do ministro, do outro Falcão, que confirmou um
dispositivo da Carta Constitucional da Paraíba, impedindo os espigões na
primeira faixa da praia e fazendo escalonamento desses edifícios. Então,
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Revista do CEJ - n. 5, p. 19-27 - nov. 2015
Antônio Herman Benjamin
eu me sinto muito alegre, mas, tomando o espaço de alguém que deveria
estar efetivamente falando sobre a questão ambiental aqui hoje.
Já diretamente no meu tema, eu quero, e cumprindo os
dispositivos, meu caro Ministro Paulo Sanseverino, antes que eu seja
cobrado, do Código de Defesa do Consumidor, dizer e alertar sobre aquilo
que eu não vou sequer mencionar na tarde de hoje. Eu não vou falar da
matéria penal, porque teria aqui a minha querida Alderita Ramos e o
meu adorado amigo Og Fernandes que podem perfeitamente dar uma
aula em profundidade sobre essa matéria. Não vou cuidar de patrimônio
cultural em que o Superior Tribunal de Justiça tem acórdãos magníficos
sobre patrimônio histórico. Não vou tratar de ação civil pública, minha
querida Margarida, que eu sei que é um tema que a atrai, mas apenas
alguma palavra sobre a inversão do ônus da prova já que esta é uma
matéria que interessa não apenas ao meio ambiente, mas também a todas
as disciplinas jurídicas e, sobretudo, ao Direito do Consumidor.
Seria interessante, também, ainda em termos de alerta, lembrar
que essa expressão “diálogo das fontes”, que foi introduzida no Brasil
pela Professora Cláudia Lima Marques, em homenagem ao seu mestre
Erik Gein (que está perto dos seus noventa anos ou oitenta e alguma
coisa), no Direito Ambiental tem maior importância do que no Direito
do Consumidor porque nós não temos uma única lei, como é o Código
de Defesa do Consumidor, que representa a Bíblia e todo o resto vem
por agregação. Nós temos, no Direito Ambiental, uma série de normas,
sem falar na Constituição Federal, a criar enormes dificuldades para o
juiz. Daí o desafio do chamado “diálogo das fontes”, que é exatamente o
juiz trabalhar, ao mesmo tempo, com a norma constitucional, a norma
ambiental stricto sensu, a norma tributária, e às vezes, o novo Código Civil
que, aliás, tem dispositivos que não vou tratar aqui, mais revolucionários
do que o próprio texto da legislação ambiental, enfim, e até mesmo a Lei
da Improbidade Administrativa, como os eminentes desembargadores
bem o sabem.
Eu começo uma rápida intervenção, que o programa chamou
de palestra, estritamente descritiva, para trazer uma notícia acerca dos
precedentes mais recentes do Superior Tribunal de Justiça, que são
centenas em matéria ambiental, e isto não é mérito do Superior Tribunal
de Justiça, é mérito da Justiça brasileira, porque esses processos não
começam no Superior Tribunal de Justiça e sim nos Estados, nas Varas
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Jurisprudência do STJ e o meio ambiente
estaduais e federais e depois nos Tribunais de Justiça e Tribunais
Regionais.
Nesta brevíssima análise panorâmica da jurisprudência
brasileira, eu começo pelo começo. Qual a natureza jurídica das
obrigações ambientais? Esse é um tema fundamental, porque vai
resolver uma série de problemas sobre a aplicação da lei. Como, por
exemplo, a aplicação imediata da lei, ou “uma possível retroatividade da
lei” que seria sim, retroatividade da lei, se não fosse uma resposta sobre
esta pergunta que considerasse essas obrigações como de natureza
propter rem. O Superior Tribunal de Justiça, em dezenas de precedentes,
pacificou a matéria no sentido de que as obrigações ambientais de
qualquer natureza, sejam aquelas no campo da poluição industrial,
sejam aquelas oriundas do Código Florestal, têm natureza propter rem,
ou seja, aderem ao título, aderem ao bem, e o fato de o desmatamento
ter ocorrido há quinze anos, sob a orientação do proprietário anterior,
é desinfluente no que tange à aplicação da legislação vigente, tal qual
uma hipoteca que acompanha o bem.
Passando agora diretamente ao dano ambiental, tema dos mais
importantes, eu trago alguns precedentes, que dizem o óbvio, ou seja,
repetem a lei, que a responsabilidade civil pelo dano ambiental é objetiva,
nos termos do art. 14, da Lei da Política Nacional do Meio Ambiente.
Por que eu trago os precedentes, se a lei já diz isso? Porque no Brasil, às
vezes, a lei afirma categoricamente algo e nós juízes, ou alguns de nós,
negamos o que está dito na lei, inventamos uma vírgula, inventamos uma
interpretação cumulativa para um “ou” que é claramente alternativo, sem
fazer uma análise mais aprofundada, e eu diria mais socialmente adequada
dos objetivos daquela norma. Aqui, poderia perfeitamente o Superior
Tribunal de Justiça ou os Tribunais de Justiça e Tribunais Regionais Federais
terem dito: não, a lei usa essa nomenclatura independentemente da
existência de culpa, mas não é bem assim e, no entanto, a Justiça brasileira
já pacificou esse entendimento fazendo uma leitura estrita, literal, do art.
14, § 1º, da Lei 6.938 de 1981.
Agora, no tema da causalidade, o Direito Ambiental, meu caro
Desembargador e Professor Jones, em termos de nexo de causalidade,
afasta-se do Código Civil, porque essa Lei da Política Nacional do Meio
Ambiente, no seu art. 3º, quando define poluidor, e poluidor é qualquer
degradador, inclusive o desmatador, faz referência à figura do poluidor
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Antônio Herman Benjamin
indireto: “todo aquele que direta ou indiretamente degrada o meio
ambiente”, e isto faz com que a aplicação dessa norma amplie o nexo
de causalidade para além daquela sistemática tradicional do Código
Civil. Quem sou eu, numa Mesa onde há civilistas, para tecer maiores
comentários a esse respeito? E aí o Superior Tribunal de Justiça, eu cito
precedente da minha relatoria, mas há outros, diz que, na apuração do
nexo de causalidade, no dano ambiental, equiparam-se quem faz, quem
não faz como deveria fazer, seriam as hipóteses típicas de omissão, quem
deixa de fazer, quem não se importa que façam, quem financia para que
façam e quem se beneficia enquanto outros fazem. Para cada uma dessas
hipóteses, há precedentes concretos do Superior Tribunal de Justiça nesta
matéria.
A aplicação do princípio da precaução que, como a própria
expressão está dizendo, é um princípio anterior ao dano, mas o Superior
Tribunal de Justiça, numa série de precedentes, inclusive precedente do
Ministro Francisco Falcão, vem adotando o princípio da precaução numa
perspectiva mais ampla. Por exemplo, no que tange ao reconhecimento do
chamado periculum in mora reverso, normalmente nas cautelares o pedido
do empreendedor é a suspensão de segurança. Esta obra está parada e
há um perigo patrimonial claríssimo para o meu empreendimento, para
o meu bolso, e poucas vezes, mas cada vez mais, os juízes param para
perguntar: mas não há um periculum in mora reverso?
Este é um país em que o Poder Judiciário, nós juízes, temos
dificuldades para mandar derrubar puxadinho em favela, em área com
risco à saúde pública, quanto mais depois do trânsito em julgado de uma
ação mandar derrubar um edifício que tem noventa andares. Alguém
conhece algum precedente nesse sentido? Eu não conheço. Sem falar
que, enquanto que o aspecto patrimonial é de máxima fungibilidade,
o aspecto da saúde pública, urbanística e ambiental é de mínima
fungibilidade. Eu não posso trocar o meio ambiente, a saúde das pessoas
por uma prestação pecuniária. Então, aí está um precedente da relatoria
do Ministro Ari Pagendler, quando era Presidente do Superior Tribunal de
Justiça, que cuida exatamente desta questão:
em matéria de meio ambiente vigora o princípio da precaução
que, em situações como a dos autos, cujo efeito da decisão
impugnada é de autorizar a continuidade de obras de
empreendimento imobiliário em área de proteção ambiental,
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Jurisprudência do STJ e o meio ambiente
recomendo a paralisação das obras, porque os danos por elas
causados podem ser irreversíveis, acaso a demanda seja ao
final julgada procedente.
Inversão e ônus dinâmico da prova: aqui, eu trago o leading
case do Ministro Francisco Falcão, que é bem citado nos textos
doutrinários. Como lembram os eminentes desembargadores e
participantes deste colóquio, por vício redibitório dos redatores do
Código de Defesa do Consumidor, entre os quais eu, a inversão do
ônus da prova foi incluída no artigo 6º, que cuida dos direitos básicos
do consumidor e não na parte processual. O resultado disso, dessa
topografia insuficiente ou, se quiserem, equivocada, é que começou
uma corrente doutrinária e jurisprudencial a dizer que, como esse
dispositivo estava no campo do direito material, topograficamente
falando, não se aplicava a todo o resto do universo, dos interesses
difusos e coletivos, ou seja, a parte processual do Código de Defesa
do Consumidor, que por conta de um dispositivo lá inserido, se
aplica a todo universo da Lei n. 7.347 de 1985. Nesse precedente, o
Relator Ministro Francisco Falcão diz exatamente o oposto, e a partir
daí sucedem-se outros precedentes afirmando que: é irrelevante a
topografia do dispositivo em questão. O que importa é sua natureza
jurídica e, se a sua natureza jurídica é processual, ele está ligado por
uma espécie de cordão umbilical ao título processual do Código de
Defesa do Consumidor.
Ainda sobre o ônus da prova, um precedente da Ministra Eliana
Calmon, agora já não mais analisando apenas este conflito de topografia
entre dispositivos no microssistema do Código de Defesa do Consumidor,
mas já dizendo de forma peremptória que se aplica o que é possível à
inversão do ônus da prova no campo ambiental.
A prescrição: esse é um tema absolutamente fascinante e,
aqui, eu deixo a provocação para que, no futuro, no Tribunal de Justiça
de Pernambuco, em outro evento, possamos discutir as novas tendências
da prescrição. Um dos microssistemas mais interessantes para a análise
da prescrição é exatamente o direito ambiental. Eu disse que não
faria nenhuma análise dogmática, mas aqui eu não consigo. O que é a
prescrição? Não é só aquela ideia de esquecimento, porque tem coisas
que não queremos esquecer e não devemos esquecer, mas deixemos
esse aspecto ao lado, a prescrição é, antes de qualquer coisa, uma sanção
24
Revista do CEJ - n. 5, p. 19-27 - nov. 2015
Antônio Herman Benjamin
indireta do ordenamento, aquele que se queda tranquilo quando teve os
seus direitos ofendidos.
Se a Constituição Federal de 1988 diz que o direito ao meio
ambiente ecologicamente equilibrado é bem de uso comum do povo e
que são tuteladas as presentes e futuras gerações, eu estou dizendo que
é titular desse direito também as gerações futuras. Ora, como eu posso
punir as gerações futuras por não terem exercitado seu direito a tempo
ou dentro daquele período estabelecido pelo Código Civil e pela civilística
tradicional?
Muitas vezes o dano ambiental é continuado ou seus efeitos
são continuados. Pensem num lixão. Significa dizer que o dano está a cada
instante, a cada momento se renovando, e se está se renovando, é o leading
case do Ministro João Otávio de Noronha, o caso do polo carbonífero
de Santa Catarina, dano ambiental gigantesco, crateras abertas, lençol
freático contaminado, população diretamente atingida, mas passaram
quarenta anos, foram quarenta anos de exploração, e vem o Ministro João
Otávio de Noronha e a nossa Segunda Turma diz: “não, aqui este dano se
renova a cada instante e nós não podemos falar de prescrição”.
No que se refere à flora, há vários precedentes nesse sentido,
mas eu trago um dos mais recentes do Ministro Mauro Campos, deixando
muito claro que, no Código Florestal anterior, como no Código Florestal
atual, este microssistema se aplica tanto às propriedades rurais como às
propriedades urbanas. Aliás, é claríssimo o Código Florestal atual quando
diz, no que tange as áreas de preservação permanente, que estas normas se
aplicam inclusive no território urbano. É um tema que certamente já deve
ter frequentado aqui o Tribunal de Justiça e que voltará na perspectiva do
novo Código Florestal. Só que o novo Código Florestal tem norma mais
clara do que o Código Florestal anterior.
Ainda na flora, a questão da reserva legal e da averbação. O
Código Florestal atual deixa transparecer que a averbação da reserva
legal foi extinta. A rigor, é um regime intermediário, isto certamente em
breve, se é que já não está aqui no Tribunal de Justiça e na Corregedoria.
E qual é esse regime misto? Mas, para entender esse regime misto, nós
teremos de saber a sua razão. Uma das explicações para a falência do
Código Florestal de 1965, no que se refere à averbação da reserva legal, é
que não é barato averbar a reserva legal, e as pessoas tinham dificuldade
Revista do CEJ - n. 5, p. 19-27 - nov. 2015
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Jurisprudência do STJ e o meio ambiente
em fazer essa averbação. E o que fez o novo Código? Não é necessária a
averbação, na matrícula, da reserva legal, basta uma espécie de averbação
administrativa no âmbito do chamado Cadastro Rural Ambiental. Mas,
não dispensou a averbação no momento da prática de algum ato que
afete o domínio, porque, aí sim, será necessária a averbação. Então,
eu posso passar cinquenta anos sem averbar a reserva legal, mas no
momento em que for alienar o meu imóvel, eu vou ter que averbá-la, ou
então, no momento em que eu for averbar uma compensação ambiental,
eu tenho que dar conhecimento a terceiros. Do contrário, terceiros não
terão a possibilidade de conhecer, indo ao Cartório, quais são os ônus que
incidem sobre aquela propriedade, sobre aquele imóvel.
Por enquanto, considerando o tempo pouco que tenho, o
máximo de aprofundamento que eu poderia exercitar neste momento, é
lembrar que o Código flexibilizou a averbação da reserva legal; dispensou
como obrigatoriedade imediata e, mais do que tudo, para esse argumento
de que permanece o dispositivo que consta da Lei de Registros Públicos
que cuida da averbação, não foi modificado. Nós sabemos da importância
da Lei de Registros Públicos, mas nós temos que fazer o diálogo das fontes
aqui e buscar uma compatibilização entre a Lei de Registros Públicos, que
determina a averbação sempre, e esta filosofia do Código Florestal que
diz que se deve averbar administrativamente, no momento de prática
de algum ato que precise de alteração na matrícula, buscando o Cartório
imobiliário, aí sim, proceda à necessária averbação.
Sobre o nosso papel de Juiz, acho que o primeiro debate
é se nós juízes somos, realmente, importantes no âmbito ambiental.
Esta é uma questão que o Ministro Falcão e eu, muitas vezes, dividimos
apreensões acerca desse tema. Não há no Direito nenhuma área que
mais precise do juiz do que a ambiental. Vão dizer: é a proteção da saúde
humana nos termos tradicionais do Código Civil ou do Código Penal. Eu
pergunto: o que é mais importante? Ou, melhor dizendo, no plano lógico,
qual é a precedência? E aí a importância se equipara, porque não dá para
proteger um sem proteger o outro. É proteger apenas a vida humana ou é
proteger a vida humana a partir dos fundamentos que a asseguram, numa
perspectiva coletiva e numa perspectiva até planetária?
Então, hoje, nós juízes somos chamados a proteger já não
mais apenas a vida humana, mas a vida humana na perspectiva dos
fundamentos que a permitem. Às vezes, a permitem de uma maneira
26
Revista do CEJ - n. 5, p. 19-27 - nov. 2015
Antônio Herman Benjamin
direta, como a contaminação por mercúrio ou por metais pesados, de
um manancial onde a população tira o seu abastecimento, inclusive nas
cidades; às vezes de uma maneira indireta, ou seja, naquilo que tem a ver
com a paisagem e com outros atributos daqueles povos que se têm por
civilizados. Acredito que o Brasil hoje, a partir da Constituição de 1988,
civilizado é. Eu acredito que o nosso país é civilizado.
Agradeço muitíssimo o convite e atenção de todos.
Muito obrigado.
Revista do CEJ - n. 5, p. 19-27 - nov. 2015
27
Discurso de agradecimento aos
palestrantes
Jones Figueirêdo Alves4
Eminente Presidente, eminentes Desembargadores que
integram esta Corte, Desembargadores eméritos, referindo-me aos
Desembargadores que já integraram esta Corte, Meus Senhores, Minhas
Senhoras.
O nosso Ministro Herman Benjamin fez ao meio dia uma
palestra em vídeoconferência participando de um evento na Alemanha
e, por mais de meia hora, na sala de vídeoconferência deste Tribunal,
interagiu com ambientalistas, juristas europeus. Eu posso dizer que
essa palestra de Vossa Excelência foi melhor porque Vossa Excelência se
supera a cada vez, sempre será a melhor a nova palestra. Para sintetizar a
fala do nosso ministro, eu gostaria de destacar quando Sua Excelência se
reportou, com precisão de estilete, que a jurisprudência deve sublinhar o
ditado da lei. Essa jurisprudência que o Superior Tribunal de Justiça vem
fazendo no arrimo da legislação do meio ambiente, termo da Declaração
de Estocolmo ou a própria Lei de Política do Meio Ambiente, a Lei 6.938/81,
em verdade está plasmando o Código Verde para além do Código Civil.
Mas, o importante não fica somente nisso, é que se a jurisprudência é o
ditado da lei, Vossa Excelência não quis tratar da matéria penal, mas aqui
em homenagem a Ministra Alderita Ramos e ao Ministro Og, lembrar que,
no último dia 6 deste mês, o Supremo Tribunal Federal, em uma decisão
paradigmática no Recurso Extraordinário n. 554881, admitiu a abertura
de processo criminal contra a pessoa jurídica independentemente
de estar tramitando ação penal contra as pessoas físicas, dando uma
construção nova, no voto da Ministra Rosa Weber, para a proteção de um
desenvolvimento sustentável.
Quero crer, eminentes colegas, seleto auditório, que a fala do
nosso Ministro Herman traz consigo uma grande exortação, não apenas
4
Desembargador decano do Tribunal de Justiça de Pernambuco. Membro da 4ª Câmara Cível, Presidente da
Comissão de Organização Judiciária e Regimento Interno do TJPE - COJURI e Diretor do Centro de Estudos
Judiciários do TJPE.
Revista do CEJ - n. 5, p. 29-30 - nov. 2015
29
Discurso de agradecimento aos palestrantes
de um compromisso jurídico, mas de um compromisso social de toda
comunidade, em prol de que nós possamos trabalhar com a jurisdição
voltada à proteção do meio ambiente. De forma que, com esta sua fala, nós
nos sentimos muito mais comprometidos porque a jurisdição vem dizendo
com exatidão que a legislação ambiental ou a função socioambiental
vem sendo trabalhada em desempenho de uma sociedade de forma
ecologicamente mais equilibrada.
Eu gostaria de, em nome no nosso Presidente do Tribunal de
Justiça, Desembargador Jovaldo, em nome de todos os meus eminentes
pares e deste público que nos honra prestigiando a sua palestra, agradecer,
de forma muito expandida, a contribuição relevante que Vossa Excelência
vem dando como doutrinador, como magistrado, como ministro do
Superior Tribunal de Justiça, mas, sobretudo como o jurista comprometido
com essa nova realidade brasileira para que estejamos sempre voltados a
coibir os danos ambientais.
Muito obrigado.
30
Revista do CEJ - n. 5, p. 29-30 - nov. 2015
Novo Código de Processo Civil
Luiz Fux5
Gostaria, em primeiro lugar, de saudar todos os membros
desta Mesa na pessoa do queridíssimo amigo Ministro Francisco Falcão,
que me deu uma honra singular, levando-me a sua casa e pude, naquela
oportunidade, conversar com o Ministro Djaci Falcão. E Seferis, quando
recebeu o Prêmio Nobel de Literatura, disse que o tempo é sábio e sabe
que não pode separar aquilo que é inseparável na vida, aqueles destinos
e, hoje, eu ocupo a cadeira que foi a do Ministro Djaci Falcão, com muita
honra, no Supremo Tribunal Federal. Além de saudar, aqui, a Mesa, na
pessoa do Ministro Francisco Falcão, gostaria de saudar todos os meus
colegas de sacerdócio, meus colegas de apostolado, porquanto eu sou juiz
de carreira, desde o interior até a capital; na pessoa do meu querido amigo
Ministro Demócrito Reinaldo, que não tive muito o prazer em convivermos,
mas eu sou daqueles que ouvem com muita atenção o conselho dos anos
e da experiência e me recordo que conversamos muitíssimo no limiar da
sua saída e do meu ingresso, e sou grato até hoje por tudo quanto ouvi
de Vossa Excelência. É em nome do Ministro Demócrito Reinaldo, que eu
posso, então, cumprimentar todos os integrantes do Tribunal de Justiça.
Recordo-me que, numa passagem de Shakespeare, ele afirmava, na peça
sobre Júlio César, no discurso de Marco Antônio, que “o homem constrói o
seu presente com o seu passado; constrói o seu futuro com o seu presente”.
E esta imagem de hoje, aqui, deste Tribunal reunido, me faz exatamente
empreender um mergulho no meu passado.
Eu fui juiz de carreira e me recordo perfeitamente da vida dos
meus companheiros, da luta da magistratura, que efetivamente é, sem
dúvida alguma, o mais alto apostolado que um homem pode se dedicar
nessa vida de Deus. De sorte que eu presto a todos a minha reverência
exatamente pela função que exercem em prol da vida e da esperança dos
cidadãos.
5
Ministro do STF. Integrante da 1ª Turma e da Comissão de Regimento. Presidente da Comissão de Juristas
instituída pelo Senado Federal que elaborou o anteprojeto do novo Código de Processo Civil. Ex-Ministro do
STJ.
Revista do CEJ - n. 5, p. 31-45 - nov. 2015
31
Novo Código de Processo Civil
Por outro lado, também, é essa a minha história de vida, fui do
Ministério Público, não me identifiquei com a função e depois fiz concurso
para a magistratura. E é exatamente pelo fato de ter vivido a magistratura
desde muito cedo, que se torna extremamente honroso poder participar
deste momento glorioso do Tribunal de Justiça de Pernambuco. São quase
dois centenários de existência de uma escola que se projetou pelo Brasil e
que está na gênese dos tribunais de justiça, a criação da escola jurídica de
pilares extremamente profundos e inabaláveis.
Eu sempre gostei de ouvir os antigos e acho que o valor da
releitura é extraordinário, porque os currículos das faculdades – meus
filhos fizeram faculdade muito jovens – deveriam ser invertidos. Os jovens
deveriam aprender sociologia, antropologia, filosofia do Direito no final
do curso para poder entender tudo aquilo que eles estudaram acerca do
direito positivo. Tanto mais que hoje vivemos a era do pós-positivismo.
Passamos do naturalismo, positivismo, agora, o pós-positivismo.
E nessa releitura dos antigos, eu me recordo perfeitamente
da obra de Carnelutti, Diritto e processo, onde ele afirma que nós juízes
mantemos uma luta contra o tempo que é absolutamente invencível. A
duração dos processos não depende exatamente de nós, magistrados, ela
depende da matéria-prima que nós aplicamos, e a população não entende
porque não sabe que nós, juízes, num sistema de tripartição de poderes,
não podemos criar um processo que seja mais rápido que aquele que a lei
estabelece.
E também não desconhecemos que aqui e alhures de há muito
se reclama em relação à morosidade judicial. O Professor Vincenzo Vigoriti,
quando se iniciou na Itália o estudo sobre a efetividade do processo, se
efetivamente o processo dava razão a quem tem, num prazo razoável, ele
afirmava: “o binômio contemporâneo dos males do processo são o custo
e a duração”.
Com relação aos custos, o Brasil resolveu essa questão de
maneira singular. A própria Constituição Federal estabelece que a justiça
é gratuita de forma integral, inclusive em relação às custas extrajudiciais.
O Superior Tribunal de Justiça tem jurisprudência no sentido de que se
aplica inclusive àquelas despesas extrajudiciais e às pessoas jurídicas que
passam por momentos difíceis, mas, realmente, a questão da duração é
uma questão ainda tormentosa.
32
Revista do CEJ - n. 5, p. 31-45 - nov. 2015
Luiz Fux
O Professor Mauro Cappelletti, que faleceu em 1999, na cidade
de Verona, na Itália, lavrou um dos mais audaciosos projetos de acesso à
Justiça, que foi o Projeto de Florença, juntamente com o Prêmio GLAAD, da
Universidade de Stanford, ele detectou que havia uma série de barreiras
de acesso à justiça e, dentre tantas barreiras, a de uma duração imoderada
dos processos em todo o mundo.
Nós temos, hoje, uma síntese disso, uma obra traduzida pela
Professora Ellen Gracie, Ex-Ministra do Supremo Tribunal Federal. Na
verdade, eu tive o prazer de ver ao vivo esse Projeto de Florença, na
Universidade de Roma, onde o Professor Mauro Cappelletti sucedeu
Calamandrei na cátedra, e são quatorze volumes de cinco mil páginas
cada um, em papel de pergaminho, no qual constam todos os dados mais
precisos que se podem imaginar sobre a demora da prestação jurisdicional
em todo o mundo.
Assim, por exemplo, pelo que eu me lembre, está lá no Projeto
de Florença: na Itália, um processo demora quinhentos e sessenta e seis
dias na primeira instância e setecentos e sessenta e nove dias na segunda
instância; na Espanha, um processo não termina antes de cinco anos e
tantos meses, muito embora ostente uma ley de enjuiciamiento civil, que
é um ordenamento moderníssimo; na França e na Bélgica, antes de três
anos, um processo não termina em primeiro grau.
Então, não temos do que nos envergonhar, a menos que esse
seja, digamos assim, um mal contemporâneo e universal, porque, mesmo
nas famílias do sistema da common law,
w quando não há conciliação,
os processos também são muito demorados. A diferença é de que nós
fazemos pesquisas em anos e eles fazem em semanas, mas, contando as
semanas, vamos chegar exatamente ao mesmo quadro deletério que se
retrata no sistema, digamos assim, romano-germânico, muito embora,
hodiernamente, não se possa mais dizer que o Brasil ostenta um sistema
genuinamente romano-germânico ou um sistema da civil law,
w tamanha,
hoje, a influência da common law,
w através das class actions, através do
precedente judicial e de uma realidade que hoje um jovem quando entra
numa faculdade não pode deixar de reconhecer.
Hoje, a jurisprudência dos tribunais é fonte formal do Direito,
resolvem-se as questões à luz da jurisprudência, em caráter obrigatório.
Os próprios juízes podem eventualmente julgar até improcedente uma
Revista do CEJ - n. 5, p. 31-45 - nov. 2015
33
Novo Código de Processo Civil
demanda, sem ouvir o réu, porque em nada vai prejudicá-lo, porque
é improcedente o pedido, baseado na jurisprudência dos tribunais
superiores. O juiz de primeiro grau pode negar seguimento ao recurso se
ele for contrário à jurisprudência dos tribunais.
Então, não há mais a menor dúvida sobre ser hoje a jurisprudência
uma fonte formal do Direito.
Mas essa questão da demora na prestação jurisdicional é
uma questão universal. Sucede que, as constituições federais não
podem se resumir em meras promessas e divagações acadêmicas, e
a Emenda n. 45 trouxe como garantia do cidadão a duração razoável
dos processos, através da inserção de um dispositivo no artigo 5º da
Constituição Federal.
Ora, nós somos juízes, nós não sabemos como conceituarmos
duração razoável, mas, a contrario sensu, nós sabemos o que não é razoável.
Recentemente, o Conselho Nacional de Justiça determinou
que se procedesse a uma citação numa ação de usucapião, onde esse ato
convocatório não se realizava há 30 anos.
E mesmo hoje, se considerarmos que o término de uma
demanda nos tribunais superiores leva um decênio, nós vamos concluir
que isso efetivamente não é razoável.
E foi exatamente sob essa exigência, esse reclamo da
morosidade judicial, que gera um grau alarmante de insatisfação em
relação a nós do Poder Judiciário, que não temos nada com isso, nós
cumprimos as etapas estabelecidas na lei, é que o Governo brasileiro
resolveu, em bom momento, promover a criação de um novo Código.
O Código de 1973 é um ordenamento magnífico, mas não atende mais
aos reclamos atuais da sociedade. Ninguém aguenta mais esperar a
consumação de um século para que obtenha uma resposta judicial.
Então, é preciso também que nós do Poder Judiciário não
sejamos acusados de algo que não nos compete. Como é que os juízes
podem prestar uma Justiça rápida diante de um quadro absolutamente
inusitado, como, verbi gratia, ocorre hoje com um milhão de ações de
poupadores em caderneta de poupança? Esse número se transmudará
em um milhão de recursos.
34
Revista do CEJ - n. 5, p. 31-45 - nov. 2015
Luiz Fux
Qual é o Tribunal do mundo que pode prestar uma Justiça num
prazo razoável com esse número de demandas? Exatamente por isso que
o governo brasileiro entendeu que nós tivemos um belíssimo Código
de 39, praticamente o mesmo tempo decorrido até esse novo Código
que se espera entrar em vigor no ano vindouro. 39 um Código, 73 outro
Código, absorvendo inúmeros institutos jurídicos da Europa. Sempre
costumo dizer que há coisas belíssimas na Itália, magníficas na Alemanha,
mas que não servem no Brasil, porque o Brasil tem a sua cultura, tem as
suas necessidades, tem a sua população, enfim, não é possível se aplicar
cegamente uma lei que não atende à população.
Há um estudo empírico de John Mill sobre Law and societyy –
A lei e a sociedade, onde ele esclarece que o cidadão que não sabe os
direitos que tem não pode exercer os seus direitos. É preciso aumentar
o grau de conhecimento da população quanto ao instrumental jurídico
colocado à sua disposição.
Nós não podemos pensar em países diminutos, que têm uma
cultura completamente diferente da nossa, aplicando institutos jurídicos
que não têm a menor eficiência.
Exatamente no afã de implementarmos essa promessa
constitucional da duração razoável dos processos, o governo brasileiro
criou uma comissão para elaborar um novo Código. E aqui, me permitam
os Senhores, essa é a última palestra do dia, nós também precisamos nos
desprender um pouco, e eu me recordo do Professor Barbosa Moreira, no
auge da sua juventude acadêmica, onde ele dizia o seguinte: “Luís, quando
você for fazer parte de uma comissão, você tenha muito cuidado, porque
o camelo é um cavalo criado por uma comissão”. São tantas as opiniões,
que o cavalo acabou saindo igual a um camelo. O camelo acabou saindo
daquele jeito, sendo uma promessa de se fazer um cavalo.
É claro que a comissão tinha que contar com a participação de
toda a sociedade, de contar com a participação de especialistas de todas
as gerações – da geração do Código de 39, da geração do Código de 73 e
da geração futura desse novel Código que, se Deus ajudar, em 2014, ele
entra em vigor. Eu falo se Deus ajudar, e olho para o meu companheiro de
sacerdócio Frederico Neves, e verifico que a metodologia da Comissão foi a
mais democrática possível. A sociedade brasileira falou e foi ouvida. Foram
muitas contribuições, e Frederico é um dos autores dessas contribuições,
Revista do CEJ - n. 5, p. 31-45 - nov. 2015
35
Novo Código de Processo Civil
pela Associação dos Magistrados do Brasil. Nós recebemos, mais ou
menos, duzentos e quarenta memoriais de vários segmentos jurídicos de
Escolas Científicas do Direito, seiscentos mil e-mails e fizemos audiências
públicas em todo o Brasil.
Então, esse é um Código da nação brasileira, da sociedade
brasileira, porque 80% das sugestões foram acolhidas. Evidentemente
que, o projeto ingressando na Casa do Povo, na Câmara dos Deputados,
para sair é muito difícil, mas está saindo agora, voltando para sua Casa de
origem.
Nós, da Comissão, tínhamos que ter uma maneira de trabalhar
para podermos elaborar um código que representasse a expectativa do
povo, porque a jurisdição é eminentemente uma função popular. Nós,
juízes, temos que saber que o quanto possível as nossas decisões devem
estar aproximadas do povo e que o Poder Judiciário, assim como todos os
poderes, é exercido em nome do povo e para o povo. Então, nós, inclusive
o Supremo Tribunal Federal, principalmente em julgamento de casos
objetivos, devemos contas à sociedade. Nós não podemos, por exemplo,
julgar uma união homoafetiva, uma Marcha da Maconha, sem aferirmos
a voz das ruas. Nós temos que saber se a sociedade está preparada para
receber uma determinada decisão que hoje a doutrina norte-americana
cognomina de desacordo moral razoável. A nossa desvantagem para a
Suprema Corte Americana é que nós, juízes, não podemos pronunciar o
non liquet, temos que dar a última palavra. Essa é a grande diferença pela
qual a Suprema Corte Americana tem 80 (oitenta) processos para julgar e
o Supremo Tribunal Federal tem 88.000 (oitenta e oito mil). Uma diferença
brutal, porque nós não podemos pronunciar o non liquet,
t nós temos
que dar a última palavra. Nós não podemos entender que a sociedade
ainda não esteja preparada para receber, por exemplo, uma decisão
sobre casamento de pessoas do mesmo sexo, sobre aborto, eutanásia,
nós temos que decidir à luz da axiologia constitucional, dos princípios
constitucionais da dignidade humana, os princípios constitucionais da
isonomia e do devido processo legal. Enfim, à luz daqueles valores e
daqueles fins públicos que são colimados pela Constituição Federal.
O que a Comissão fez? A Comissão cometeu o bom plágio, ela se
baseou exatamente nesse Projeto de Florença, no qual o Professor Mauro
Cappelletti e o Professor Bryant Garth procuraram estudar as causas de
36
Revista do CEJ - n. 5, p. 31-45 - nov. 2015
Luiz Fux
barreira de acesso à justiça, para depois, então, elaborarem os dispositivos
legais.
A mesma coisa fizemos nós, durante um mês, cada membro da
Comissão pensou sobre o Código em relação aos institutos que estavam
dando certo, que não estavam dando certo, o que é que impedia os juízes
de promoverem uma justiça rápida.
Baseados também no Congresso Panamericano de Direito
Processual, realizado em Foz do Iguaçu, em 2009, e nas reformas
recentíssimas do Código italiano, que são reformas que estão sendo
levadas a efeito até agora, ela começou em 2010, e até hoje vem sendo
reformada, recentemente o Código português, reforma do Código
alemão, reforma do Código japonês, que paradoxalmente é do sistema
romano-germânico, e não do sistema anglo-saxônico, baseados nesses
modelos, então, nós procuramos, em primeiro lugar nos curvarmos à
realidade de que não somos mais um país genuinamente do sistema da
civil law,
w somos também, por várias influências um país que hoje recebe
institutos da common law,
w que, aliás, era uma velha advertência do
Professor Chiovenda, quando afirmava: “A grande evolução do processo
civil será a sua lenta involução para o velho processo civil romano”. Que é
o que hoje está acontecendo, e que nós vamos ver rapidamente dentro do
nosso limite nessa homenagem aqui.
Pois bem, baseado nesses estudos e nesse último congresso,
verificamos basicamente três causas marcantes que impediam os juízes,
nós, de prestarmos uma jurisdição em um prazo razoável.
Em primeiro lugar, o processo civil brasileiro é muito prenhe
de solenidades e liturgias. Exatamente para engessar os juízes, que são
obrigados a cumprir aquelas etapas, na medida em que os princípios do
Código foram erigidos na era do Iluminismo, onde havia uma profunda
desconfiança em relação ao Poder Judiciário e sua vinculação com o ancien
régime. Montesquieu, por exemplo, não admitia, os teóricos do Iluminismo
não admitiam que o juiz pudesse dar a solução final. Para Rousseau, o juiz era
um ditador do processo. Montesquieu pretendia que nós juízes fôssemos
apenas la bouche de la loi – a boca da lei, pronunciar as palavras da lei,
sem nula execution, sem a previa convinition. O juiz sem poder. O juiz que
condena não é aquele que realiza a sua condenação, essa era a filosofia do
Iluminismo. Então, com um grau de desconfiança desses, evidentemente,
Revista do CEJ - n. 5, p. 31-45 - nov. 2015
37
Novo Código de Processo Civil
não se poderia andar muito adiante. Esse era o perfil do Código. Então,
o Código prenhe de liturgias. Inúmeras preliminares. Até os profissionais
da advocacia sentem-se no dever de suscitar preliminares que às vezes
até inexistem. Parece um vezo natural da advocacia, preliminarmente é
matéria de mérito. Aqui, numa colocação sadia, advogados dizem que
levam tudo mastigado para nós, não sabem como é difícil engolir. Mas
para nós juízes eles levam realmente ali as preliminares e as questões
formais. Então verificamos que é extremamente solene o processo. Pode
ser mais rápido com a extirpação de algumas solenidades.
Segundo lugar, o Direito brasileiro ostenta uma raríssima
prodigalidade recursal. É talvez o sistema que contempla o maior
número de recursos. Quem assistir a um julgamento na Suprema Corte
vai ficar perplexo com o anúncio do julgamento do recurso, embargos de
declaração nos embargos de declaração nos embargos de declaração no
agravo regimental no agravo de instrumento no recurso extraordinário.
Então são recursos infindáveis.
Eu vou dar um exemplo para os senhores, para expungir
qualquer responsabilidade dos juízes. Por amostragem, nós pensamos
um caso em que havia uma impugnação ao valor da causa, uma
impugnação à gratuidade, uma exceção de incompetência, uma
impugnação à intervenção de terceiros, e um incidente de falsidade. Esses
cinco incidentes foram decididos por cinco decisões interlocutórias, que
desafiaram ao longo do curso do processo vinte e cinco recursos. Cinco
decisões interlocutórias desafiaram vinte e cinco recursos. É fácil nós
calcularmos agora os vinte e cinco recursos. Então, como é que se pode
prestar uma justiça em prazo razoável com vinte e cinco recursos, com o
processo tramitando ainda em primeiro grau de jurisdição? Verificamos
essa prodigalidade recursal.
E, finalmente, uma litigiosidade desenfreada, derivada de uma
regra constitucional que nenhuma lesão ou ameaça ao direito pode
escapar à apreciação do Judiciário. Com a criação então de Juizados
Especiais, baratos, céleres, vigora aquela velha parêmia inglesa “better the
road, more the traffic”,
” quer dizer, melhor a estrada, maior é o tráfego. Se é
bom, é bonito, é barato, então, vamos lá. Os juizados hoje estão em uma
situação completamente contraditória com a própria ratio que levou o
legislador a criá-los.
38
Revista do CEJ - n. 5, p. 31-45 - nov. 2015
Luiz Fux
Como é que a Comissão procurou enfrentar esses problemas?
Em primeiro lugar, com relação ao excesso de solenidades
e liturgias. E me permitam falar um pouco mais rápido assim, porque
é apenas uma informação. Eu não posso falar sobre o Novo Código,
Frederico sabe disso, porque o Código entrou uma coisa na Câmara dos
Deputados e saiu outra. Quando se fala em “coisa” aqui em Recife, tem uma
versão futebolística, mas a “coisa” que eu estou dizendo é o Código, do
jeito que ele ficou. Com relação às liturgias, às formalidades, esse projeto
procurou, por exemplo, transformar todas as ações em ações dúplices.
Então, a parte que tem um contra direito a exercer em face do réu, para
evitar duplicação de processo, pode fazer da ação que lhe é proposta uma
ação dúplice. Se o vendedor cobra o preço, mas não entrega a coisa, o
réu se defende e diz que não pagou porque a coisa não lhe foi entregue
e automaticamente formula o pedido na própria contestação, sem
necessidade da reconvenção, que veio importada do Direito italiano, com
aquelas dificuldades procedimentais todas.
Em segundo lugar, há uma regra de ouro que foi considerada a
mais bela regra de Direito Processual do mundo, no Congresso Mundial de
Processo Civil em Portugal, que é o artigo 249, § 2º, que dispõe: ”Quando o
juiz puder decidir o mérito a favor da parte a quem favorece a decretação
de nulidade, ele deve decidir o mérito”. Porque a jurisdição não cumpre o
seu escopo pacificador quando nós resolvemos o processo sem análise do
mérito, pois aquela questão de fundo, aquele litígio, fica em aberto.
Pois bem, nós propusemos que a parte, por mais preliminares
que suscite, por exemplo, se ela impugna o indeferimento de uma prova,
tem que apostar na solução final, porque várias vezes ela pode perder o
incidente e ganhar a causa e não vai ter interesse nenhum em promover
o julgamento daquele agravo. Foi uma ilusão do Professor Buzaid – uma
boa ilusão, porque é um código magnífico – imaginar que um agravo
de instrumento com sua formação de instrumento não fosse paralisar
o processo. Eu, então, com muita honra, que fui boy de escritório de
advocacia, sei o quanto demora a formação de um instrumento de um
agravo. Então, o que o projeto propõe? Que a parte alegue todas as
preliminares que pretenda, mas que no final só tenha um recurso único,
no qual ela vai apostar. Em primeiro lugar, em um resultado do processo,
porque mesmo com aquelas preliminares, ela pode vencer. Então, ela vai
Revista do CEJ - n. 5, p. 31-45 - nov. 2015
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Novo Código de Processo Civil
escolher no final se vai recorrer daquilo tudo ou não. A grande realidade é
a seguinte, nós que somos juízes de carreira sabemos que não podemos
sacrificar a questão de fundo em privilégio da questão da forma. A
questão da forma, imaginem os Senhores, qual a vantagem de se declarar
um juízo incompetente? Qual a finalidade? Nós juízes somos competentes
para tudo. Eu fui juiz de interior, fazia tudo, absolutamente tudo. Hoje,
na Itália, a incompetência absoluta e a relativa têm um tratamento igual,
a única coisa que acontece é remeter o processo ao juízo competente.
Por que é que vai anular aquilo tudo? São juízes da mesma forma. E
mais, na Itália, eles aplicam o instituto denominado translation iudicii,
no qual mesmo que o processo tramite no contencioso administrativo,
quando deveria tramitar pelo Judiciário, eles aproveitam tudo em prol do
princípio da efetividade. Ter competência absoluta ou relativa não tem a
menor importância. Nós temos capacidade de resolver questão de família,
questões criminais, porque o Direito é um só. A filosofia do Direito, a moral,
a ética de que está impregnada a norma jurídica, isso é do conhecimento
de todos, basta que nós nos detenhamos na apreciação do caso concreto.
Então, eliminamos essa possibilidade de o juiz, a cada passo que dá no
processo, ser interrompido com um agravo.
Alguns se queixaram: “mas vamos terminar o agravo?” Porque
nós sabemos como é importante, às vezes o agravo é importantíssimo.
Então mantivemos o agravo com as tutelas de urgência. Nas tutelas de
urgência até aprimoramos os agravos, eles têm até a sustentação oral, mas
só nesses casos das liminares, de preferência, satisfativas e não cautelares.
E com relação à duplicidade, é exatamente um dos instrumentos que vai
agilizar sobremodo aquelas ações em que há uma pretensão contraposta
do réu em face do autor.
Com relação à prodigalidade recursal, uma grande preocupação
da Comissão foi não arranhar a Constituição Federal, porque não
adianta elaborarmos um belo ordenamento que, numa penada de um
Ministro do Supremo Tribunal Federal, é suspenso e declarada a sua
inconstitucionalidade. Além de termos essa preocupação, também,
submetemos o Código ao Supremo Tribunal Federal antes. Não há controle
prévio de constitucionalidade, mas só uma nota técnica.
Com relação à prodigalidade recursal, nós vimos esse quadro
alarmante. Vimos, ainda, outro quadro diverso, que só no Brasil temos o
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Revista do CEJ - n. 5, p. 31-45 - nov. 2015
Luiz Fux
recurso de embargos infringentes. Vejam o seguinte: a questão não é saber
o grau de provimento dos embargos infringentes, mas qual é a quantidade
de decisões não unânimes proferidas nos tribunais. Elas são tão menores
do que as decisões unânimes, que o número de embargos infringentes é
muito menor que o número de apelações. E é isso que interessa e não o
grau de provimento. O que fizemos? Eliminamos os embargos infringentes,
mas tornamos o voto vencido componente do acórdão passível de subir à
apreciação superior, no efeito devolutivo. Agora, imaginem os Senhores,
colegas de profissão, a vantagem que nós tivemos com isso, os embargos
infringentes passam primeiro por um juízo de admissibilidade, que se for
negativo, desafia milhões de recursos. Então encurtamos esse prazo.
Segundo lugar, estabelecemos uma sucumbência recursal,
porque no Brasil aventura judicial é barata, não custa nada, a parte
recorre, paga o preparo do recurso e não acontece nada se ela perder. Há
quase que uma volúpia recursal. Então estabeleçamos uma sucumbência
recursal que nem gera o enriquecimento ilícito, mas também tem a sua
capacidade persuasória. Recorrer no Brasil não será mais uma aventura
judicial graciosa, o profissional vai ter que se explicar com a parte, se
efetivamente tiver que pagar sucumbência recursal.
Nós nos deparamos com algumas injustiças que hoje não se
justificam mais, a parte ingressa com recurso especial, o Tribunal entende
que a matéria é constitucional e não admite o recurso especial. E ela vai
para o extraordinário, o Supremo diz que a matéria é infra e ela perde o
extraordinário e perde os dois. Então, estabelecemos também, à luz do
princípio da proporcionalidade, um termo médio criando a fungibilidade
entre os recursos dos Tribunais Superiores. Se a matéria for constitucional,
vai para o Supremo, admite-se aquele recurso só para mandar para
o Supremo Tribunal Federal. Se for infraconstitucional, o Supremo
Tribunal Federal determina a remessa para o Superior Tribunal de Justiça.
Evidentemente, se o Supremo Tribunal Federal disser que a matéria é
infraconstitucional, e não é constitucional, essa é efetivamente a última
palavra, porque é o Tribunal de última instância que a Constituição impõe
que dê a palavra final.
Um aspecto importantíssimo na questão dos recursos, nós
procuramos dar a necessária força à jurisprudência dos tribunais,
porquanto a jurisprudência torna o resultado judicial previsível, dá
segurança jurídica e permite que na prática se aplique com efetividade
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41
Novo Código de Processo Civil
o princípio da isonomia. Eu confesso aos Senhores que sempre que
participei de eventos com juízes anglo-saxônicos imaginava-os sem
muita criatividade, porquanto que o sistema da civil law é baseado na
justiça e na razão, porque eles não acreditam que uma causa seja tão
diferente assim uma da outra que não mereça a mesma solução, e nós
sabemos que nem sempre é assim. Mas certa feita, lembrando a obra
de Dennis Lloyd sobre a ideia de lei, verifiquei que a ratio essendi do
precedente é a aplicação do princípio da isonomia, e isso é uma realidade
que nós convivemos. Às vezes, as partes têm a mesma pretensão jurídica
e a decisão é completamente diferente. Em nome de uma independência
jurídica, que não constrói absolutamente nada no Poder Judiciário,
muito ao contrário, essas decisões conflitantes levam ao descrédito
do Poder Judiciário. Então, é importante que nós tenhamos uma linha
de pensamento, daí a necessidade de a jurisprudência ter a sua força
necessária, na medida em que ninguém hoje vive sem um mínimo de
previsibilidade, sem um mínimo de segurança. O ser humano precisa
prever para poder se organizar. O professor Canotilho afirma isso e o
velho e justo filósofo Bertrand afirmava, o jurisdicionado como cidadão
não pode só saber se uma coisa é proibida, como ocorre com os cães,
quando um taco de beisebol toca-lhes o focinho. E, realmente, essa
surpresa jurisprudencial, não é possível que seja mantida.
Então, a força da jurisprudência vai se basear, em primeiro
lugar, na obrigatoriedade de obediência à jurisprudência dos tribunais
superiores, que vai permitir, inclusive, os juízes julgarem de plano,
e, em segundo lugar, inviabiliza a admissibilidade do recurso. Vejam
quanto tempo nós já ganhamos, porque não cabe recurso, porque a
matéria já está pacificada no Tribunal Superior e os próprios juízes já
podem julgar. Nós sabemos que hoje, qualquer operador do Direito – e
nós juízes, que somos um pouquinho mais, somos operários do Direito
– inicia o seu trabalho abrindo a rede mundial de computadores,
onde nós sabemos o fim da linha, nós sabemos a jurisprudência que
há de ser aplicada ao caso concreto. Aqui surge uma questão muito
interessante: é que em razão da natural demora do processo, que é
um pouco excessiva, a instantaneidade é uma utopia, porque não se
poderia imaginar que o juiz sem o amadurecimento pudesse julgar.
Nós sabemos que o processo, quando acode as instâncias superiores,
já se passou um largo tempo.
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Revista do CEJ - n. 5, p. 31-45 - nov. 2015
Luiz Fux
O que é que pode acontecer na prática? Já aconteceu no nosso
Tribunal, o Ministro Falcão trabalhava comigo lá na primeira sessão,
nós modificamos por uma questão até de moralidade, uma pretensão
que vinha veiculada – os profissionais do Direito fazem a sua parte,
quem tem que cuidar disso somos nós juízes. Então, nós modificamos a
jurisprudência em relação a um determinado crédito fiscal, só que aquela
jurisprudência era vintenária. Imaginem os Senhores o seguinte: nem o
Estado, quando é declarado inconstitucional um tributo, tem dinheiro
para devolver o que já foi pago, e uma empresa pode cair em bancarrota
se ela não se organiza contabilmente para pagar aquele tributo que venha
a ser declarado devido.
Pois bem, nesse particular, nós tivemos que importar do
sistema anglo-saxônico dois institutos muito interessantes. O primeiro
deles denomina-se distinguish e o segundo overruling. O distinguish é
muito importante, e isso vai acabar modificando, inclusive, a cultura dos
currículos da Faculdade de Direito, porque se trata de uma necessária
adequação do caso concreto ao precedente judicial. E o bacharel em
Direito vai precisar se acostumar com esse ajuste, porque todas as vezes
que, atendendo de muito bom grado aos profissionais do Direito, lá no
Supremo Tribunal Federal e assim também o era no Superior Tribunal de
Justiça, nós invocávamos a existência do precedente, do repetitivo, da
repercussão geral, e o advogado sempre dizia: não, mas o meu caso tem
uma peculiaridade. Todos os casos têm uma peculiaridade! Isso é falta
de cultura do ajuste do distinguish, da adaptação do precedente ao caso
concreto. Isso vai interferir profundamente nos currículos das faculdades.
O overruling, porque o Direito não é um museu de princípios, há coisas que
mudam com essa jurisprudência. Nós chegamos à conclusão que, na época
em que o Brasil estava com um balanço de pagamento descontrolado,
valia a pena incentivar a exportação, mas chega um momento em que
aquilo se estabilizou. Como é que o Brasil, que não tem dinheiro para
absolutamente nada, poderia dar créditos tributários imensos? Então, nós
modificamos essa jurisprudência através desse denominado overruling.
Só que, se o Estado for pego de surpresa por modificação
jurisprudencial, ele não pode pagar, porque já gastou com as necessidades
públicas. O particular que não se organizou, quebra. Então, no sistema
anglo-saxônico há no overruling a modulação. Nós sabemos que, uma vez
proferida decisão pelo Tribunal Superior, aquela decisão é declaratória e
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Novo Código de Processo Civil
tem efeito ex tunc, só que esse efeito ex tuncc surpreende a todos. Então,
se na data da propositura da ação, aquela era a jurisprudência vintenária,
solidificada, é preciso modular o efeito da modificação de jurisprudência
em nome do princípio da segurança jurídica e da proteção da confiança,
que são hoje cláusulas pétreas constitucionais.
Por fim, o último defeito que nós verificamos, que impede
uma duração razoável dos processos, é essa litigiosidade desenfreada.
Oitocentas mil ações. E não é só isso, inúmeras ações iguais, sem que se
fale em caderneta de poupança, por exemplo.
São Paulo foi precursor de um caso, de um leading case que é
comum em todo o país, pois todos os estados da Federação têm shopping
center. Lá começou a discussão sobre a possibilidade de um lojista de
shopping centerr ter também uma loja de rua, próxima ao shopping center,
r
se ele estaria se aproveitando do investimento e carreando legiões de
clientes para a sua loja fora do shopping, que tem um aluguel muito
diferente, porque é um investimento bom, um investimento comum em
prol de todos os comerciantes. Essa causa hoje, denominada “cláusula de
raio”, discute a quantos quilômetros a loja deve se localizar. É uma causa
do Brasil inteiro, isso é uma causa repetitiva, assim como uma causa de
poupança é repetitiva. Nós temos oitocentas mil ações de caderneta de
poupança, umas cinquenta mil ações destas de cláusula de raio, temos
cinquenta mil ações sobre se lojas de posto de gasolina podem vender
remédio. Então, não é justo que o Rio dê uma decisão, São Paulo dê outra,
Recife outra e assim por diante. Por esta razão, para resolver esse problema
da litigiosidade desenfreada, nós fomos ao Direito germânico e pensamos
no instituto que foi criado para o mercado de capitais, denominado
musterverfahren, ou seja, processo padrão, processo modelo, em que uma
causa que é igual a tantas outras é submetida ao amplo grau de jurisdição.
Então, se ela tiver matéria constitucional, vai ao Supremo, se tiver matéria
infraconstitucional, vai para o Superior Tribunal de Justiça, e a primeira
causa que for detectada com esse grau de repetitividade é comunicada
ao CNJ, e o Tribunal que detecta essa repetição determina que todas as
outras causas do seu território sejam suspensas. É claro que o Tribunal
de Pernambuco não pode parar a causa de São Paulo, mas o Superior
Tribunal de Justiça pode, por isso que é comunicado pro cadastro do CNJ.
No projeto, há um prazo estabelecido de um ano e meio para que aquela
causa seja resolvida e a decisão daquela tese jurídica seja internalizada
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Revista do CEJ - n. 5, p. 31-45 - nov. 2015
Luiz Fux
em todas as ações idênticas. Com isso, nós tratamos uma causa individual,
não com litigiosidade de varejo comum, mas é um tratamento coletivo
de uma causa individual. Nós não queríamos criar um processo coletivo,
o que violaria essa regra constitucional de que legitimatio ad causam é
individual e cada um tem o direito de pedir em juízo, sem prejuízo de
criar um grave problema de mercado da advocacia. Então, todos podem
litigar em juízo, todos podem formular suas causas petendi, mas a decisão
daquela tese jurídica se projeta na causa, que vai ser decidida com base
naquele precedente. O juiz pode negar seguimento ao recurso, julgar a
ação imediatamente e em um ano e meio estarão resolvidas oitocentas
mil ações em todo o território nacional. Com isso, nós pretendemos
exatamente criar instrumento para que nós juízes possamos prestar
justiça num prazo razoável.
Eu me recordo perfeitamente que depois daquele prazo de
reflexão para mudanças tão radicais do processo civil, num dado momento,
um dos componentes da comissão disse: “Fux, mas para isso aí é preciso
acabar o mundo para começar tudo de novo”. Eu disse: não, eu acredito
na sensibilidade das pessoas que entendem que é possível realmente,
até mesmo na vida pessoal, é possível renascer várias vezes na mesma
vida. Quantas vezes fazemos força para isso? E é possível efetivamente,
nós reconstituirmos algo. Cito Fernando Pessoa: “não se pode servir à sua
época e a mesma época e a todas as épocas ao mesmo tempo”.
E aí faço, como fiz no início, um mergulho um pouco mais
profundo no meu passado, porque muito me encantava uma obra que,
sem nenhuma maturidade, por isso tem que inverter essa pirâmide
do curriculum do Direito, mas uma obra que me encantava que era a
Introdução ao pensamento jurídico do professor Karl Engish, havia uma
menção a Julius V. Kirchmann, que dizia que somente o sol, a lua e as
estrelas continuavam a brilhar igual desde a criação do universo. O Direito
deveria viver em constante modificação, porquanto instrumento da vida
e instrumento da esperança.
Muito obrigado!
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Doutrina
Demandas de massa e o problema da
admissibilidade do IRDR no CPC-2015
Alexandre Freire Pimentel6
Bruna Liana Amorim de Andrade7
Sumário: Introdução. 1 Distinguindo: direitos coletivos,
difusos e individuais-homogêneos. 2 Das ações individuais
homogêneas (plúrimas e singulares). 3 Direito comparado:
ações de classe, ações de grupo e o Musterverfahren alemão.
4 Direito processual social e a necessidade de instituição de
técnicas processuais de extensão dos efeitos da coisa julgada
em demandas individuais homogêneas. 5 O incidente de
demandas repetitivas (IRDR) no CPC-2015. 6 Requisitos de
admissibilidade. Conclusão. Referências.
Introdução
O atual Código de Processo Civil foi instituído pela Lei n.
5.869/1973, e entrou em vigor a partir do dia 1º de janeiro de 1974,
porém foi estruturado com base numa sistemática de resolução de litígios
individuais e tradicionalmente marcado pela rigidez formalista orientada
pelo purismo da separação das tutelas.8 Em paralelo às quatro décadas
de sua vigência, o código sofreu dezenas de emendas legais, bem
como se submeteu a alterações derivadas da promulgação de emendas
constitucionais. Dentre tais câmbios, devem ser destacados os relativos
6
Juiz de Direito Titular da 29ª Vara Cível do Recife – TJPE – Seção A. Diretor da Escola Judicial do TRE-PE. Pósdoutorado pela Universidade de Salamanca – USAL-Espanha, com bolsa da CAPES-FUNDAÇÃO CAROLINA.
Doutor e Mestre (FDR-UFPE). Professor de Direito Processual Civil da Universidade Católica de Pernambuco
e da Faculdade de Direito do Recife (UFPE). Consultor ad-hoc da CAPES (Comissão de Aperfeiçoamento de
Pessoal do Nível Superior-MEC) e do CONPEDI (Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito).
Membro da Associação Norte e Nordeste dos Professores de Processo (ANNEP). Membro do Conselho
Editorial da Revista de Processo (IUDICIUM) da Universidade de Salamanca (España). Juiz colaborador da
ENFAM (Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados). Ex-Promotor de Justiça.
7
Advogada.
8
Interessa registrar, porém, que o fato de o CPC ter sido subdividido em cinco livros não significa que tenha
sistematizado cinco espécies distintas de tutela, pois o livro IV, na verdade, no pertinente à jurisdição
contenciosa, cuida de processos de conhecimentos dotados de um rito diferenciado daqueles (ordinário
e sumário) regulados no livro I. O livro V, por sua vez, não tratou de regulamentar uma tutela jurisdicional
específica, cuidou, sobretudo, do sistema de direito processual intertemporal. Mas, nem por isso deixou
de preservar a eficácia de distintos procedimentos instituídos pelo CPC de 1939, mantendo-os vigentes
durante a presente ordem processual, como, por exemplo, ocorreu com a ação de dissolução de sociedade
empresarial (CPC, art. 1.218).
Revista do CEJ - n. 5, p. 49-70 - nov. 2015
49
Demandas de massa e o problema da admissibilidade do IRDR no CPC-2015
à tentativa de compatibilização do CPC à tutela jurisdicional de interesse
coletivo, ainda quando exercitado através de demandas de massa
individuais, como aconteceu com a adoção da técnica da expansão do
julgamento dos recursos excepcionais repetitivos. Restou sedimentada
a consciência acerca da necessidade de criação de técnicas processuais
capazes de responder à desenfreada multiplicação do número de litígios
no Brasil. Tal fenômeno consistiu numa decorrência de uma equivocada
visão, a qual considera que tanto maior será o nível do exercício da
cidadania quanto maior for o acesso ao judiciário. A tão festejada teoria
do acesso à justiça, sem dúvida, contribuiu para o aumento de demandas
no judiciário, o que, não necessariamente, quer significar aumento no
índice de acesso à justiça.9
Porém, não parece razoável supor que o movimento do acesso
à justiça, por si só, tenha sido responsável pelo aumento de procura
do judiciário, já que os aspectos sociológicos e, sobretudo, o fator da
distribuição de riquezas e esclarecimento da população sobre seus
direitos, isto sim, tenham influído verdadeiramente na mitigação do
fenômeno da litigiosidade contida. Fato é que a expansão do exercício
do direito à tutela jurisdicional levou ao crescimento dos denominados
litígios de massa, considerando que na sociedade de consumo cada vez
mais um número maior de cidadãos passam a exercitar uma mesma classe
ou tipo de direito, os quais são caracterizados pelas pretensões individuais
que, entretanto, apresentam questões comuns.
Pois bem, em 2004, ocorreu uma tentativa de se minimizar a
morosidade da justiça brasileira, com o patrocínio dos Chefes dos Três
Poderes, da qual resultou a Emenda Constitucional n. 45, firmando o “Pacto
de Estado em favor de um Judiciário mais rápido e republicano”, com o
intuito de obtenção de uma tramitação rápida e efetiva dos processos e,
também, a uniformização das decisões proferidas, em prol da segurança
jurídica.
Depois, para reforçar tal desiderato, em 2009, foi firmado o “II
Pacto Republicano de Estado por um sistema de justiça mais acessível,
ágil e efetivo”. Em decorrência, foi instituída, pelo Ato n. 379 do então
Presidente do Senado Federal, em 30 de setembro do mesmo ano, uma
Comissão de Juristas com o escopo de elaborar Anteprojeto de um Novo
9
50
DANTAS, Bruno. Repercussão geral. Perspectivas histórica, dogmática e de direito comparado. Questões
processuais. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2009, p. 86.
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Alexandre Freire Pimentel | Bruna Liana Amorim de Andrade
Código de Processo Civil, a qual foi presidida pelo atual Ministro do
Supremo Tribunal Federal, Luiz Fux, e composta pelos juristas Adroaldo
Furtado Fabrício, Bruno Dantas, Elpídio Donizete Nunes, Humberto
Theodoro Junior, Jansen Fialho de Almeida, José Miguel Garcia Medina,
José Roberto dos Santos Bedaque, Marcus Vinícius Furtado Coelho, Paulo
Cezar Pinheiro Carneiro e Tereza Arruda Alvim Wambier, como relatorageral dos trabalhos. A Comissão designada apresentou o seu projeto para
apreciação, no dia 8 de junho de 2010, que tramitou pelo Senado Federal
sob o número PLS 166/2010.
Durante sua elaboração, foram realizadas audiências públicas
nas cinco regiões do país, a fim de que houvesse um contato direto,
através de discussões de novas ideias e principais problemas do atual
ordenamento processual civil brasileiro, com a população e, sobretudo,
com os agentes do Direito, magistrados e advogados.
Ainda em 2010, o Projeto chegou à Câmara dos Deputados, com
numeração 8.046/2010, contendo diversas alterações no texto original.
No referido PLS 166/2010, com a proposta de reduzir o número
de processos em trâmite que tratem de questões similares, na onda
renovatória em busca de uma justiça célere e efetiva, nos artigos 895 a
906, Seção II, Capítulo VII, foi disposto um novo instituto, inicialmente
denominado de “Incidente de Coletivização”, com redação final de
“Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas”, o qual constitui o
objeto do presente trabalho.
Uma breve análise histórica da evolução processual leva a uma
melhor compreensão da aplicabilidade ao ordenamento jurídico pátrio
do referido instituto.
No período inicial do liberalismo, o sistema processual restou
caracterizado pela tutela proteção indivíduo em face do poder de império
do Estado, com a predominância da autonomia e liberdade das partes
privadas. O princípio dispositivo soergueu-se como um verdadeiro
corolário desse momento histórico.10 A propósito, Dierle Nunes acrescenta
que:
10
DIAS JUNIOR, Cláudio Renato Pinho. A (in)adequação do incidente de resolução de demandas repetitivas ao
processo jurisdicional democrático. Conteúdo Jurídico, Brasília-DF, 30 nov. 2011. Disponível em: <http://
www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=1055.34741&seo=1>. Acesso em: 14 jan. 2013.
Revista do CEJ - n. 5, p. 49-70 - nov. 2015
51
Demandas de massa e o problema da admissibilidade do IRDR no CPC-2015
[...] o liberalismo processual acabava criando um sistema
degenerado, que facilitava a esperteza da parte mais hábil que
conduziu grandes processualistas à construção da visão do
processo como um jogo ou uma guerra [...]11.
Ao final, o Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas será
destrinchado, de acordo com sua formulação no PLS n. 166/10, e posterior
PL 8.046/2010, em tramitação na Câmara dos Deputados, à luz do artigo
65 da Constituição da República Federativa do Brasil.
Portanto, na idade contemporânea, na primeira fase da
evolução processual, tivemos o predomínio das perspectivas liberais
econômicas que desaguaram no direito, instrumentalizadas nos princípios
da igualdade formal, do dispositivo e da escritura, os quais obstavam de
sobremaneira a figura do juiz, que era visto como mero expectador do
desenrolar processual12.
1 Distinguindo: direitos coletivos, difusos e individuais-homogêneos
A partir do parágrafo único do artigo 81 do CDC, a doutrina
passou a construir uma taxonomia ternária dos direitos coletivos, pela qual
são eles subdivididos em: coletivos (stricto sensu), difusos e individuais
homogêneos. De fato, há três distintas classes de direitos coletivos, como
passaremos a demonstrar.
Os direitos difusos são aqueles representados por interesses
transindividuais, de natureza indivisível, cujos titulares são pessoas
indeterminadas, porém ligadas por circunstâncias fáticas comuns a todos,
razão pela qual também são direitos coletivos. Encontram-se em estado
fluido, disperso por toda a sociedade, e, além de se caracterizarem pela
indeterminação dos titulares e pela indivisibilidade do objeto, diferenciamse, também, como percebeu Mancuso, pela tendência à transformação no
tempo e no espaço.13
Distintamente, os direitos e interesses coletivos, em sentido
estrito, apesar de também serem indivisíveis, são aqueles cujos titulares
11
NUNES, Dierle José Coelho. Comparticipação e policentrismo: horizontes para a democratização processual
civil. 2008. 217 p. – Tese de Conclusão de Programa de Pós-Graduação em Direito. Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2008, p. 45.
12
DIAS JUNIOR, Cláudio Renato Pinho. Op. cit., p. 14.
13
MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Interesses difusos: conceito e legitimação para agir. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2000, p. 137.
52
Revista do CEJ - n. 5, p. 49-70 - nov. 2015
Alexandre Freire Pimentel | Bruna Liana Amorim de Andrade
são grupos, categorias ou classes determinadas de pessoas unidas entre
si ou com a parte contrária por meio de uma relação jurídica-base. O
espectro dos direitos coletivos stricto sensu,14 portanto, é restrito a uma
categoria determinada de pessoas, ao passo que nos direitos difusos não
é possível determinar-se os respectivos titulares de per si, pois que tais
direitos pertencem à toda sociedade civil, indistintamente considerada.
Por essa razão, a coisa julgada numa demanda relativa a direitos
coletivos stricto sensu é ultra partes, porém não é erga omnes, ou seja, é
ultra partes porque a ação é movida com lastro em legitimidade ad
causam extraordinária, pela qual o ente representativo, como ocorre com
os sindicatos, representam uma categoria de pessoas que não participam
diretamente da relação processual, a sentença é ultra partes precisamente
por atingir essas pessoas. Diferentemente, nas demandas relativas a
direitos coletivos difusos, que também são exercitadas com base em
legitimidade ad causam extraordinária, como acontece com a ação civil
pública promovida pelo representante do Ministério Público, a coisa
julgada, além de ser ultra partes, também é erga omnes, na medida em que
atinge a todos os integrantes da sociedade civil. De pronto, percebe-se
que em relação a essas duas categorias há um traço comum representado
pela identificação do exercício da legitimidade extraordinária para a causa.
Ao mesmo tempo, entretanto, diferenciam-se em razão da extensão dos
efeitos da coisa julgada.
Por sua vez, os direitos individuais homogêneos, estes, apesar de
também possuírem uma origem comum, marcada pela homogeneidade
de situações jurídicas dos titulares da pretensão, designam um tertium
genus dos “direitos coletivos”, considerando que a sua defesa em juízo
tanto pode ser perpetrada individualmente quanto coletivamente.
Na primeira hipótese, cada um dos titulares exercita
isoladamente a pretensão por meio de ação individual, caso em
que, não ocorre o efeito expansivo da coisa julgada de um para outro
demandante, porquanto, propriamente falando, teremos ações individuais
com fundamentos idênticos, por isso mesmo denominadas ações
individuais homogêneas, ou demandas repetitivas, de massa. Na segunda
hipótese, porém, nada impede que os entes dotados pela Constituição
Federal, ou pela lei, de legitimidade extraordinária possam agir em nome
14
A expressão “stricto sensu”” presta-se para diferenciar os direitos coletivos que nem se enquadram no conceito
de direitos difusos, nem individuais homogêneos.
Revista do CEJ - n. 5, p. 49-70 - nov. 2015
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Demandas de massa e o problema da admissibilidade do IRDR no CPC-2015
próprio, mas na defesa de um direito ‘individual homogêneo’, como já
consentiram tanto o Supremo Tribunal Federal quanto o Superior Tribunal
de Justiça. Ora, se os direitos individuais homogêneos materiais podem
ser processualmente demandados através da atuação do Ministério
Público ou de um sindicato, não há como negar que integram a categoria
dos direitos coletivos.
A propósito, o Superior Tribunal de Justiça já decidiu que o
artigo 3º, § 1º, I, da Lei n. 10.259/2001 (lei dos juizados especiais federais),
que expressamente considera três distintas categorias de direitos
coletivos, a saber: os direitos difusos, coletivos (stricto sensu) e individuais
homogêneos, de fato, não se incluem na competência dos juizados
especiais cíveis federais.15 No julgamento do conflito de competência n. CC
80398 MG 2007/0037165-0, o STJ admitiu expressamente que os direitos
individuais homogêneos podem ser demandados tanto individualmente
quanto coletivamente; e que eles somente se excluem da competência
dos juizados nessa última hipótese.16
Aliás, o TST, escudado na construção pretoriana do STF, já
decidiu que até mesmo os sindicatos possuem legitimidade ad causam
para a promoção da defesa de direitos individuais homogêneos.17
Os direitos individuais homogêneos, portanto, enquadramse na categoria dos direitos coletivos porque sua defesa em juízo pode
15
Diz o artigo em questão: Art. 3º – “Compete ao Juizado Especial Federal Cível processar, conciliar e julgar
causas de competência da Justiça Federal até o valor de sessenta salários mínimos, bem como executar as
suas sentenças. § 1º Não se incluem na competência do Juizado Especial Cível as causas: I - referidas no art.
109, incisos II, III e XI, da Constituição Federal, as ações de mandado de segurança, de desapropriação, de
divisão e demarcação, populares, execuções fiscais e por improbidade administrativa e as demandas sobre
direitos ou interesses difusos, coletivos ou individuais homogêneos”.
16
Ementa: “CONFLITO DE COMPETÊNCIA. VARA FEDERAL E JUIZADOS ESPECIAIS FEDERAIS. DIREITOS
INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS. AÇÕES INDIVIDUAIS PROPOSTAS PELO PRÓPRIO TITULAR DO DIREITO.
COMPETÊNCIA DOS JUIZADOS. 1. A Primeira Seção desta Corte firmou o entendimento de que a exceção à
competência dos Juizados Especiais Federais prevista no art. 3º, § 1º, I, da Lei 10.259/2001 se refere apenas às
ações coletivas para tutelar direitos individuais homogêneos, e não às ações propostas individualmente pelo
próprios titulares. 2. Conflito conhecido para declarar a competência do Juizado Especial Federal”. Processo:
CC 80398 MG 2007/0037165-0. Relator(a): Ministro Castro Meira. Julgamento: 11/09/2007 - Órgão Julgador:
S1 - Primeira Seção. Publicação: DJ 08.10.2007, p. 199. Sem saliência no original.
17
A Sexta Turma reformou acórdão do Tribunal Regional do Trabalho da Terceira Região (MG) que desqualificou
o Sindicato para ajuizar ação que não fosse de interesse direto da categoria. O TRT entendeu que, quando
se depara com pedidos de horas extras por motivos diversos e o não pagamento de parcela de adicional
noturno, o “que se tem são direitos personalíssimos e ou pessoais do empregado, não como membro da
categoria”. No entanto, o ministro Maurício Godinho Delgado, relator do processo na Sexta Turma, ressaltou
que a “extensão da prerrogativa conferida ao sindicato foi objeto de discussão no STF, tendo sido pacificada
a interpretação que a Constituição Federal (inciso III do art. 8º) confere ampla legitimidade às entidades
sindicais, abrangendo subjetivamente, todos os integrantes da categoria a que pertencem e, objetivamente,
seus direitos individuais homogêneos”. RR-99700-26.2001.5.03.0059. In: www.jusbrasil.com.br.
54
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Alexandre Freire Pimentel | Bruna Liana Amorim de Andrade
ser efetivada por entes que gozam da representatividade processual
consubstanciada em legitimidade extraordinária. O fato de também
poderem ser exercitados isoladamente não os desqualifica como direitos
coletivos, até porque também os direitos coletivos, em sentido estrito, por
exemplo, também o podem, e, nem por isso, perdem sua qualidade de
coletivo.
2 Das ações individuais homogêneas (plúrimas e singulares)
Do ponto de vista processual, pode-se destacar que os direitos
individuais homogêneos podem ser exercitados isoladamente, em
demandas distintas, por cada um dos respectivos titulares, contudo
tais demandas são baseadas em fundamentos jurídicos comuns. Nesse
caso, teremos demandas de massa estritamente individuais, as quais, no
entanto, não excluem as demandas individuais de massa plúrimas, isto
é, quando promovidas em litisconsórcio ativo facultativo. Também nesta
situação, elas não perdem sua característica individualizante.
Observe-se que as demandas plúrimas litisconsorciadas, não se
inserem no âmbito dos denominados direitos coletivos, porquanto estes
pressupõem o exercício de direitos através da legitimidade extraordinária.
Nessa questão, Leonardo Garcia esclarece que, enquanto o Brasil adota
um sistema ope legis de outorga de legitimidade rigorosamente taxativo,
diferentemente dos Estados Unidos, que preferiram um mecanismo ope
iudicis para as class actions, pelo qual compete ao juiz, diante de cada caso
concreto, decidir acerca da representatividade do requerente em relação
ao objeto litigioso do processo.18
Mas, a recíproca não é necessariamente verdadeira. Noutras
palavras, os direitos coletivos caracterizam-se, no plano processual, em
especial, em razão do exercício da legitimidade extraordinária, isso é
fato, sobretudo porque estamos a falar de um sistema jurídico que, até
o presente momento, não regulamentou o incidente de demandas
repetitivas. Todavia, nem todo exercício de direito em juízo, através de
legitimidade extraordinária ad causam, estará a designar a presença de um
direito coletivo. É que o artigo 6º do CPC admite a substituição processual
(legitimação extraordinária) no âmbito da tutela dos direitos individuais.
Logo, quando isto se der, o critério em questão não se apresentará eficaz
18
GARCIA, Leonardo Medeiros. Direito do consumidor. 5 ed. Niterói: Ímpetus, 2009, p. 375.
Revista do CEJ - n. 5, p. 49-70 - nov. 2015
55
Demandas de massa e o problema da admissibilidade do IRDR no CPC-2015
para distinguir as espécies sob análise, porquanto não se cuida de um
instituto que se aplique exclusivamente às demandas coletivas.
Assim, melhor nos parece que a distinção entre direitos
coletivos e individuais explica-se em razão das características do próprio
direito material, pois será este que condicionará o direito processual, e
não o contrário.
Perceba-se que, também no plano processual, admite-se que
entidades dotadas de legitimidade extraordinária possam agir em juízo
na defesa de direitos estritamente individuais, como acontece com o
Ministério Público quando age em nome próprio, mas na defesa de
direitos da vítima ou de seus familiares, na execução da sentença penal no
cível (CPC, art. 475-N, II c/c art. 566, II).
Distintamente, as demandas de massa, que consistirão no objeto
de nosso estudo, são exercitadas por meio de legitimação ordinária, ainda
que se trate de exercício de direito litisconsorciado, já que nesse caso cada
pretendente estará a agir na defesa de direito próprio.
As demandas individuais de massa acarretaram uma indesejada
inflação jurisdicional cada vez mais constante e crescente, que, por sua
vez, denunciou o inegável despreparo do judiciário para resolver, eficaz e
tempestivamente, essa classe de litígios, e isso decorre tanto de problemas
estruturais quanto da ausência de meios processuais adequados, capazes
de proporcionar um tratamento isonômico e célere, a todos os litigantes
que estão na mesma situação jurídica. Logo, uma providência urgente a
ser adotada, ainda na sistemática vigente, foi a adaptação dos institutos
processuais do CPC de 1973 a essa realidade. A situação de crise a que foi
submetido o judiciário, atingiu níveis dramáticos posto que passou a afetar
a própria legitimação do poder frente à sociedade civil, como observou
Baltazar José Vasconcelos Rodrigues.19 Ademais, como apropriadamente
observou Zavascki, não se pode tratar direitos individuais considerados
em sua coletividade da mesma maneira que se tratam os direitos coletivos
transindividuais.20 Assim, era preciso encontrar um mecanismo de
19
RODRIGUES, Baltazar José Vasconcelos. Incidente de resolução de demandas repetitivas: especificação de
fundamentos teóricos e práticos e análise comparativa entre as regras previstas no projeto do novo Código
de Processo Civil e o Kapitanleger-Musterverfahrensgesetzz do Direito Alemão. Revista Eletrônica de Direito
Processual – REDP, Rio de Janeiro, v. VIII, ano 5, jul./dez. 2011. p. 96. Disponível em <http://www.redp.com.
br>. Acesso em: 8 ago. 2012.
20
ZAVASCKI, Teori Albino. Processo coletivo: tutela de direitos coletivos e tutela coletiva de direitos. 5. ed. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 32.
56
Revista do CEJ - n. 5, p. 49-70 - nov. 2015
Alexandre Freire Pimentel | Bruna Liana Amorim de Andrade
tratamento processual coletivo para os direitos individuais homogêneos,
já que as formas de tutela de direitos coletivos, difusos e em sentido estrito,
não são apropriadas ao tratamento de direitos individuais homogêneos,
quando estes são exercitados de maneira dispersa, individual e repetitiva.
Para tanto, o legislador nacional volveu os olhos para o direito
comparado, do qual extraiu elementos para conformar a decisão acerca
da adoção de um modelo específico, ou se, a partir da análise das distintas
possibilidades, poderia edificar um sistema híbrido ou até mesmo original.
Vejamos, então, alguns desses modelos no direito alienígena.
3 Direito comparado: ações de classe, ações de grupo e o
Musterverfahren alemão
O sistema inglês constitui-se em fonte jurídica pioneira na
regulamentação das ações de grupos de pessoas que se encontram
em situação jurídica idêntica. Entretanto, isto não se deu desde os
seus primórdios, também lá foi necessário que as situações de fato
impusessem alterações substanciais no ordenamento processual
inglês. Nesse sistema, os tribunais de direito (court of law) não
permitiam o instituto do litisconsórcio facultativo, apenas era admitido
o litisconsórcio necessário juntamente com a intervenção ‘compulsória’
de terceiros, quando, neste caso, houvesse ligação direta e imediata
com o julgamento. Os tribunais de equidade (courts of equityy ou courts of
Chancery), por seu turno, admitiam uma intervenção litisconsorcial dita
‘voluntária’, fundada, em especial, na existência de questões comuns,
a qual, na prática, continuava a traduzir uma espécie de intervenção
obrigatória, na medida em que todos os que se enquadravam na
mesma situação deveriam forçosamente ser chamados a intervir no
processo, sob pena de extinção do feito. Este instituto restou conhecido
como compulsory joinder rule ou necessary parties rule, no qual todos os
intervenientes se tornavam partes no processo.21
Pois bem, foi para proporcionar um aperfeiçoamento do
necessary parties rule que foi instituído o bill of peace, o qual versava sobre
o que na atualidade se denomina de ações representativas, em que um
indivíduo seria responsável por litigar em nome de uma coletividade.
No entanto, essa possibilidade estava condicionada às hipóteses de
21
GIDI, Antonio. A Class Action como instrumento de tutela coletiva dos direitos. As ações coletivas em
uma perspectiva comparada. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 41.
Revista do CEJ - n. 5, p. 49-70 - nov. 2015
57
Demandas de massa e o problema da admissibilidade do IRDR no CPC-2015
litisconsórcio multitudinário, isto é, aquele no qual o número de litigantes
torna impraticável o normal desenvolvimento do procedimento, mas
a sentença proferida na ação representativa fazia coisa julgada erga
omnes.2223
Em seguida, logrou destaque, no pertinente à vinculação
dos julgamentos e aos seus efeitos, o instituto do absent class members,
pelo qual pessoas que não participavam efetivamente do contraditório
passaram a ser atingidas pela sentença. Não obstante, essa inserção
automática estava excepcionada caso um indivíduo manifestasse, de
forma expressa, o desejo de não ser atingido pelos efeitos da coisa
julgada ou, numa segunda hipótese, restringindo esta aos ausentes, sob
o fundamento de buscar uma maior eficácia da tutela coletiva. Assim,
novos institutos foram buscados, a fim de que pudesse equilibrar “o
interesse dos ausentes com as exigências da tutela coletiva”.24 Foi daí
que surgiram as denominadas ações de grupo as quais se constituem
em institutos de resolução das demandas coletivas, porém sem adotar a
ficção representativa das ações de classe.
As ações de grupo nos Estados Unidos delinearam-se com
base em um caso concreto com questões similares às demais demandas
individuais e, a partir da análise teórica formulada em face da controvérsia,
daí a tese vencedora passa servir para os demais casos idênticos, no
entanto, resta preservada a individualidade de cada relação processual.
Os membros da coletividade deixam de ser representados fictamente e
passam a fazer parte da própria controvérsia, uma vez que a apreciação
das questões coletivas se restringiria à fatia em comum das lides. De
acordo com Scarpniella Bueno, “A class action do direito norte-americano
pode ser definida como o procedimento em que uma pessoa, considerada
individualmente, ou um pequeno grupo de pessoas, enquanto tal,
passa a representar um grupo maior ou classe de pessoas, desde que
compartilhem, entre si, um interesse comum”.25
22
GIDI, Antonio. A Class Action como instrumento de tutela coletiva dos direitos. As ações coletivas em
uma perspectiva comparada. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 42.
23
Assim, como acrescenta Gidi, recorrendo a Calvert e Smit “[...] a criação das class actions deveu-se à
necessidade e conveniência de ‘contornar’ a regra de litisconsórcio necessário de todos os interessados, para
que fosse possível fazer justiça nas situações em que tal litisconsórcio não era possível [...]. Da mesma forma
como a regra geral da presença compulsória de todos os interessados era ditada pela conveniência, o desvio
dessa regra também foi ditado pela conveniência”.
24
CABRAL, Antônio do Passo. O novo procedimento-modelo (Musterverfahren) alemão: uma alternativa às
ações coletivas. In: Revista de Processo – v. 147. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 128.
25
BUENO, Cassio Scarpinella. As class actions norte-americanas e as ações coletivas brasileiras: pontos para uma
58
Revista do CEJ - n. 5, p. 49-70 - nov. 2015
Alexandre Freire Pimentel | Bruna Liana Amorim de Andrade
Pari passu, no direito inglês, as Rules of Civil Procedure de
1999, que correspondem a um verdadeiro código de processo civil,
regulamentaram as ‘causas piloto’, ou group litigation order, pelas quais,
elege-se uma ou algumas demandas paradigmáticas (pilotos) com o
objetivo de serem decididas antecedentemente às demais, que guardem
relação de semelhança litigiosa (de fato e de direito) com elas, estas causas,
por sua vez, têm o seu curso procedimental suspenso até que se decidam
as eleitas como ‘pilotos’; em seguida, o julgamento nelas proferido será
estendido e aplicado às demais que se encontravam suspensas.26
Na Alemanha, há um mecanismo processual de demandas
repetitivas assemelhado ao group litigation order, intitulado de
procedimento-modelo ou padrão (Musterverfahren), previsto na Lei de
Introdução do Procedimento-Modelo para os investidores em mercado de
capitais, o qual foi instituído em agosto de 2005. No sistema alemão, o qual
se limita à matéria relacionada com o mercado de capitais, a instauração
do procedimento requer expressa provocação das partes, tanto pode ser
suscitado pelo autor quanto pelo réu, através de requerimento dirigido
ao juízo de origem no qual ficar clara a repercussão geral que o justifica. O
juízo de primeiro grau labora quanto ao juízo de admissibilidade, porém
o mérito do incidente é julgado pelo tribunal superior. A admissão do
incidente pressupõe, no mínimo, a demonstração do envolvimento de
pelo menos dez demandas repetitivas.27
Antes da admissão, deve haver a publicação de um cadastro
eletrônico, sem ônus para as partes, no qual devem constar especificados
os pontos relevantes da causa, tais como pedido, partes e o objetivo do
procedimento. A divulgação do cadastro não deve ultrapassar o prazo
de quatro meses, período no qual deve haver a habilitação de pelo
menos dez demandas similares. Após, haverá a decisão de admissão, a
qual não se sujeita a impugnação imediata. Depois, ocorrerá a reunião
de processos que possuam similitude de objetos litigiosos (incluindo
matéria fática e jurídica) desde que comuns, com remessa ao tribunal
superior competente. No tribunal, ocorrerá a escolha de dois líderes de
reflexão conjunta. Disponível em: <http://www.scarpinellabueno.com.br/Textos/Class%20actionbrasileiro.
pdf>. Acesso em: 19 out. 2015.
26
MENDES, Aluísio Gonçalves de Castro. Ações coletivas no direito comparado e nacional: temas atuais de
direito processual civil. 4. v. Coord. MARINONI, Luiz Guilherme. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002,
pp. 44-46.
27
CABRAL, Antônio do Passo. O novo procedimento-modelo (Musterverfahren) alemão: uma alternativa às
ações coletivas, In: Revista de Processo – v. 147. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, pp. 127-133.
Revista do CEJ - n. 5, p. 49-70 - nov. 2015
59
Demandas de massa e o problema da admissibilidade do IRDR no CPC-2015
cada um dos polos da demanda, com a atribuição de representar a todos
conjuntamente, sem, no entanto, excluir totalmente a participação dos
demais, os quais poderão aditar pontos não abordados pelos líderes.
Os demais processos relacionados ao incidente ficarão suspensos até a
decisão final.28
Esse sistema efetiva-se por meio de legitimação ordinária e seu
principal objetivo, como esclarece Antônio Cabral, é delimitar o âmbito
da decisão coletiva, que se limita às questões comuns existentes nas
demandas individuais envolvidas. Aqui, ocorre o julgamento de uma
única ação cuja decisão expande-se às demais. Enfim, o incidente não
será admitido sempre já se encontrar madura para julgamento, bem
como quando puder prolongar excessivamente da duração do processo,
ou quando se considerar que as questões controvertidas não merecerem
consideração de relevância capaz de ensejar a pretendida eficácia coletiva
da decisão, ou seja, se restar comprovada a repercussão geral.29
Em relação à extensão dos efeitos da coisa julgada aos processos
individuais, interessa acrescentar que ela somente incidirá quanto aos
feitos que tiverem sido suspensos quando do momento da remessa dos
autos à instância superior. Não se aplica às demandas futuras.30
4 Direito processual social e a necessidade de instituição de técnicas
processuais de extensão dos efeitos da coisa julgada em demandas
individuais homogêneas
Um aspecto que bem denuncia a ultrapassagem da fase liberal
do direito processual, a qual se caracterizou pelo exercício individual dos
direitos (legitimidade ordinária), pelo uso da lógica formal silogística com
a atividade jurisdicional subsuntiva;31 pela adoção da técnica de processo
dual; pela taxonomia ternária das ações; e por um standard
d de juiz mais
assemelhado ao iudex do que ao praetorr romano, que atuava sem o mais
mínimo ius imperium; para a etapa de direito processual social, consiste na
instituição de novas técnicas de exercício da legitimação extraordinária,
clamando pela instituição de um regime processual diferenciado a
28
Idem.
29
Idem.
30 CABRAL, Antônio do Passo. O novo procedimento-modelo (Musterverfahren) alemão: uma alternativa às
ações coletivas, In: Revista de Processo – v. 147. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 142.
31
60
ADEODATO, João Maurício. Ética e retórica: para uma teoria da dogmática juridical. São Paulo: Saraiva, 2002,
p. 261.
Revista do CEJ - n. 5, p. 49-70 - nov. 2015
Alexandre Freire Pimentel | Bruna Liana Amorim de Andrade
fim de que os efeitos da coisa julgada pudessem atingir terceiros não
participantes da relação processual. Diferentemente, o estado social de
direito passou se preocupar com a vicissitude de regulamentar o exercício
de uma tutela jurídica que não pertencesse apenas ao indivíduo, mas a toda
a comunidade.32 Como prefere Flávio Mafra, foi necessário regulamentar
meios processuais de representatividade de determinadas corporações
por certos indivíduos e, em sucessivo, sobre a representatividade de
determinadas classes de pessoas.33
Dessa forma, ao mesmo tempo em que se garantem direitos,
evita-se o acúmulo desnecessário de demandas judiciais por pessoas que
se encontram em situações idênticas ou similares, como acontece com a
atuação do Ministério Público na ação civil pública, o qual, como vimos,
tanto pode agir na defesa de direitos difusos quanto na dos individuais
homogêneos.
Foi nessa senda, que o instituto de direito processual
iberoamericano (IBDP) desarrolhou estudos no sentido da criação de um
código de direito processual coletivo para a Iberoamérica. A técnica da
ampliação da legitimação extraordinária, portanto, presta-se para evitar
o fluxo desnecessário de ações em juízo, e, para tanto, já possuímos
instrumentos processuais destinados a tal desiderato, como a ação
popular e a ação civil pública.3435
Porém, há situações nas quais há demandas judiciais já
promovidas por requerentes que se encontram na mesma situação
jurídica, contendo objetos litigiosos idênticos ou similares, e que se
repetem num sem número de causas que exigem, de per si, uma sentença
para cada processo, os quais são propostas, através do exercício da
legitimidade ad causam ordinária, isto é, os demandantes agem em nome
próprio na defesa de direito próprio, porém logram sentenças as mais
distintas de procedência e de improcedência, e, dentro de cada classe
32
RODRIGUES, Marcelo Abelha. Ação civil pública. In: DIDIER JÚNIOR, Fredie. (Coord.). Ações constitucionais.
2. ed. Salvador: Podivm, 2007, pp. 253-254.
33
LEAL, Márcio Flávio Mafra. Ações coletivas: história, teoria e prática. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris,
1998, pp. 21-33.
34
GRINOVER, Ada Pellegrini; WATANABE, Kazuo; MULLENIX, Linda. Os processos coletivos nos países de civil
law e common law: uma análise de direito comparado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 27.
35
Para Ada Pelegrini Grinover, dentre os países adotantes do sistema da civil law, o Brasil foi pioneiro no
pertinente à regulamentação legal de ações coletivas, sobretudo em relação à proteção do patrimônio
ambiental, destacando as leis da ação popular e da ação civil pública como instrumentos legislativos
precursores no assunto.
Revista do CEJ - n. 5, p. 49-70 - nov. 2015
61
Demandas de massa e o problema da admissibilidade do IRDR no CPC-2015
(de procedência ou de improcedência) não divergem os conteúdos dos
julgados. Isto denuncia que, além do gravame de um sem número de
litigantes poderem obter tratamento diferenciado, conquanto estejam
em situações idênticas ou similares, o tempo da resolução das demandas
protrai-se indefinidamente no tempo.
Tal fenômeno da repetição desenfreada de processos, que
possuem o mesmo objeto litigioso, exigiu o desenvolvimento de novas
técnicas de extensão dos efeitos da coisa julgada, mas não em relação
a terceiros não participantes da demanda, como ocorre com a ação civil
pública, e sim no tocante aos demandantes das causas repetidas, isto é, de
demandantes de outros processos idênticos ou similares.
A situação agora enfrentada opera-se de maneira diferente
da que se verifica nas ações coletivas. Nestas, basta o julgamento da
ação proposta no primeiro grau de jurisdição, julgamento de uma única
ação, e os efeitos da sentença já atingirão os terceiros não participantes
representados pelo exercício da legitimação extraordinária. Contudo, nas
causas repetidas não é possível que os efeitos do julgamento de primeiro
grau de uma única causa se espraie para atingir outras que tramitam por
outros juízos, os quais poderão inclusive ter entendimento jurídico distinto
do que julgou primeiramente, ainda que a tese jurídica seja idêntica.
Assim, para evitar que pessoas que se encontrem na mesma
situação jurídica logrem tratamento sentencial diferente, fato que fere
tanto a isonomia quanto a garantia constitucional da duração razoável
do processo, bem como a segurança jurídica, é que foram instituídos
mecanismos processuais de extensão dos efeitos do julgamento de um
recurso, no âmbito de uma demanda individual, por um tribunal aos
demais recursos existentes nas causas repetidas, e que se encontram
ainda em andamento.
Perceba-se que não se trata de extensão dos efeitos da coisa
julgada em ações coletivas, lastreadas em legitimação extraordinária, mas
em causas individuais homogêneas ou simplesmente conexas exercitadas
com fulcro na legitimação ordinária.
No Brasil, premido pela crise do tempo na resolução das
demandas, o legislador passou cada vez a aproximar-se do sistema da
commom law à medida que adotou técnicas processuais de abreviação
62
Revista do CEJ - n. 5, p. 49-70 - nov. 2015
Alexandre Freire Pimentel | Bruna Liana Amorim de Andrade
de litígios individuais em prestígio aos precedentes estabelecidos pelos
tribunais de superposição nacionais, as quais representam um inequívoco
prenúncio da instituição do incidente de demandas repetitivas, como,
exemplificativamente, pode-se destacar: o julgamento superantecipado
da lide (prima facie), introduzido pela Lei n. 11.277/2006, nas hipóteses
nas quais a matéria de mérito for exclusivamente de direito e, no juízo,
preexistirem sentenças de improcedência em casos idênticos (CPC,
art. 285-A); a súmula impeditiva de recurso, estabelecida pela Lei
n. 11.276/2006, pela qual se permitiu ao juiz de primeiro grau a
denegação do recurso de apelação, tão somente em face de a sentença
apresentar conformidade com os enunciados das súmulas do Supremo
Tribunal Federal ou do Superior Tribunal de Justiça (CPC, art. 518, §1º);
o julgamento de recursos repetitivos, pela técnica de amostragem,
criada pela Lei n. 11.418/2006, aplicável nos recursos extraordinário e
especial, sempre que houver multiplicidade de recursos e se verificar a
identidade quanto ao fundamento sobre questões de direito, hipótese
na qual haverá a análise de um ou mais recursos paradigmáticos,
restando os demais sobrestados até a decisão final, a qual repercutirá
sobre os feitos suspensos (CPC, artigos 543-B e 543-C); bem como
a adoção da súmula vinculante. Vê-se que todos esses institutos
quedam-se diretamente relacionados com o incidente de demandas
repetitivas.3637
5 O incidente de demandas repetitivas (IRDR) no CPC-2015
O CPC-2015 tem por objetivo primordial a celeridade na
resolução dos conflitos, sobretudo no pertinente às demandas de massa.
Foi com esse escopo que houve a inserção no ordenamento brasileiro
do instituto do “incidente de resolução de demandas repetitivas”. Tal
procedimento encontrava-se abarcado nos arts. 930 a 941 do projeto
do novo código e, uma vez transformado em lei, quedou-se positivado
nos arts. 976 a 987. O incidente de resolução de demandas repetitivas
(IRDR) constitui-se numa efetiva alternativa para a resolução e contenção
das ações repetitivas, através da expansão dos efeitos da coisa julgada
36
CUNHA, Leonardo José Carneiro da. As causas repetitivas e a necessidade de um regime que lhe seja próprio.
Revista da Faculdade de Direito do Sul de Minas. Pouso Alegre, v. 25, n. 2 - jul/dez 2009, p. 260.
37
A propósito da adoção da súmula vinculante, Leonardo Cunha reconhece que “[...] constitui importante
mecanismo para a racionalização das causas repetitivas. Aliás, um dos requisitos para a edição da súmula
vinculante é que haja reiteradas decisões do STF em matéria constitucional, o que demonstra que a súmula
vinculante guarda pertinência com as demandas de massa”.
Revista do CEJ - n. 5, p. 49-70 - nov. 2015
63
Demandas de massa e o problema da admissibilidade do IRDR no CPC-2015
produzida na demanda decidida, evitando-se, assim, decisões conflitantes
e, ao mesmo tempo, produzindo-se decisão única para todas as causas
atingidas em tempo real.
Em síntese, o incidente acarreta o agrupamento de processos
sob o fundamento de idêntica questão de direito, em similar método com
o procedimento de julgamento por amostragem dos recursos repetitivos –
arts. 543-B e 543-C do atual CPC. Mas, distingue-se dentre outros aspectos,
em face da possibilidade de instauração em qualquer grau de jurisdição,
incluindo demandas que adentraram na fase recursal.
6 Requisitos de admissibilidade
Os requisitos para admissão do incidente previstos no art. 930
do Projeto n. 8.046/2010 apresentavam-se nos seguintes termos:
Art. 930. É admissível o incidente de demandas repetitivas
sempre que identificada controvérsia com potencial de gerar
relevante multiplicação de processos fundados em idêntica
questão de direito e de causar grave insegurança jurídica,
decorrente do risco de coexistência de decisões conflitantes.
Porém, após o retorno do Projeto ao Senado, o texto final
aprovado do NCPC restou estampado no art. 976, dessa forma:
Art. 976. É cabível a instauração do incidente de resolução de
demandas repetitivas quando houver, simultaneamente:
I - efetiva repetição de processos que contenham controvérsia
sobre a mesma questão unicamente de direito;
II - risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica.
§ 1º A desistência ou o abandono do processo não impede o
exame de mérito do incidente.
§ 2º Se não for o requerente, o Ministério Público intervirá
obrigatoriamente no incidente e deverá assumir sua
titularidade em caso de desistência ou de abandono.
§ 3º A inadmissão do incidente de resolução de demandas
repetitivas por ausência de qualquer de seus pressupostos de
admissibilidade não impede que, uma vez satisfeito o requisito,
seja o incidente novamente suscitado.
64
Revista do CEJ - n. 5, p. 49-70 - nov. 2015
Alexandre Freire Pimentel | Bruna Liana Amorim de Andrade
§ 4º É incabível o incidente de resolução de demandas
repetitivas quando um dos tribunais superiores, no âmbito
de sua respectiva competência, já tiver afetado recurso
para definição de tese sobre questão de direito material ou
processual repetitiva.
§ 5º Não serão exigidas custas processuais no incidente de
resolução de demandas repetitivas.
Percebe-se que o legislador restringiu o uso do instituto
à “questão unicamente de direito” associada ao risco de ofensa à
isonomia “e” à segurança jurídica. A sua incidência resume-se às
causas cuja matéria fática possa ser confirmada unicamente por meio
de prova documental. É comum, no dia-a-dia, essas causas versarem
sobre questões previdenciárias, tributárias, seguros de saúde etc,
apresentando a mesma tese, em situação fático-jurídica semelhante,
diferenciando-se apenas os sujeitos processuais: o autor e réu. Podese afirmar, que, essas causas denotam a existência de um “interesse”
que ultrapassa o interesse subjetivo dos litigantes, sendo conveniente,
e justo, que todos os titulares do mesmo direito logrem tratamento
isonômico.
No que diz respeito ao “risco à segurança jurídica”, vê-se
que a preocupação do NCPC foi a de proporcionar confiabilidade às
decisões judiciais, superando-se o grande problema derivado do fato
de o ordenamento jurídico admitir a possibilidade de mais de uma
interpretação jurisdicional para a mesma causa, fato que além de malferir
o princípio da isonomia também agride a segurança jurídica. Em que pese
tal previsão, esse requisito mostra-se de cunho subjetivo, uma vez que
competirá ao próprio tribunal presumir a potencialidade de insegurança
que as eventuais decisões individuais possam causar.
O art. 933 do Projeto rezava que “O juízo de admissibilidade
e o julgamento do incidente competirão ao plenário do tribunal
ou, onde houver, ao órgão especial”. Entretanto, o Senado Federal
alterou a competência para o julgamento do IRDR, restando a questão
disposta no art. 978 do NCPC, com a possibilidade de julgamento por
órgão colegiado distinto do plenário ou do órgão especial, desde seja
no âmbito interno do tribunal o responsável pela uniformização da
jurisprudência, vejamos:
Revista do CEJ - n. 5, p. 49-70 - nov. 2015
65
Demandas de massa e o problema da admissibilidade do IRDR no CPC-2015
O julgamento do incidente caberá ao órgão indicado
pelo regimento interno dentre aqueles responsáveis pela
uniformização de jurisprudência do tribunal.
Parágrafo único. O órgão colegiado incumbido de julgar o
incidente e de fixar a tese jurídica julgará igualmente o recurso,
a remessa necessária ou o processo de competência originária
de onde se originou o incidente.
De melhor técnica a redação do Senado, considerando que de
acordo com a Constituição Federal, compete aos tribunais dispor sobre
sua organização endógena, inclusive sobre a competência de seus órgãos
colegiados. Logo, o IRDR deve ser decidido pelo órgão colegiado indicado
pelo regimento interno como sendo o competente para uniformizar a
jurisprudência do tribunal, mas deve-se registrar que a decisão adotada
no IRDR não vinculará os órgãos colegiados do tribunal eventualmente
sobrepostos ao indicado no regimento interno como competente para
decidir o incidente.
Expliquemos a questão: é possível que um determinado
tribunal eleja como competente para julgar o IRDR um órgão colegiado
que seja sobreposto às turmas ou câmaras que julgam as apelações e
os agravos de instrumento. Nesse caso, restará sobreposto a tal órgão a
Corte Especial ou o Pleno, os quais não se submetem, regimentalmente
falando, ao caráter vinculativo das decisões dos seus órgãos subpostos.
Essa nuance é importante, porque o art. 985 do CPC-2015 prescreve que
uma vez julgado o incidente, a tese jurídica adotada será aplicada
a todos os processos individuais ou coletivos que versem sobre
idêntica questão de direito e que tramitem na área de jurisdição
do respectivo tribunal, inclusive àqueles que tramitem nos
juizados especiais do respectivo Estado ou região.
Mas é curial que tal dispositivo somente se aplica aos órgãos
inferiores àquele que julgou o incidente.
Uma vez admitido o IRDR, competirá ao relator adotar as
providências previstas no art. 982 do CPC-2015, dentre as quais destacamos
o dever de suspender todos os processos pendentes que tramitem pelo
território abrangido pela jurisdição do seu tribunal, incluídos os processos
coletivos. O efeito da suspensão dos processos pendentes é de índole
66
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Alexandre Freire Pimentel | Bruna Liana Amorim de Andrade
cogente, eis que o art. 982 usa o verbo “suspender” no modo imperativo,
sem qualquer outra opção ao relator, o qual, aliás, deverá comunicar a
decisão de suspensão a todos os órgãos jurisdicionais competentes.
Entretanto, a suspensão processual acarretada pelo IRDR não impede a
concessão de medidas de urgência, cuja apreciação não será procedida
pelo relator, mas pelo juiz perante o qual tramitar o processo em que
tenha se verificado a situação de perigo de dano.
Conclusão
As considerações aqui colocadas, em nenhum momento,
procuraram pôr a termo a discussão sobre o assunto, uma vez que, em
razão de ser um novo instituto, não há um posicionamento doutrinário
solidificado, nem, tampouco, existem precedentes jurisprudenciais
pertinentes.
Inserido no PLS 166/2010, o incidente de resolução de demandas
repetitivas apresenta peculiaridades que o afasta do procedimento que
lhe serviu de inspiração, o Musterverfahren tedesco. Seu consiste em
promover o célere julgamento de questões isomórficas, com a redução
de número de causas que tramitam nos tribunais, e com a uniformização
de jurisprudência de caráter vinculante, fatores que traduzem um grande
passo adiante na efetividade eficiente da tutela dos direitos no Brasil, visto
que prevê a participação da sociedade civil em geral no seu julgamento e a
possibilidade de reclamação, em caso da autoridade judiciária inobservar
o precedente firmado.
O problema da multiplicação de processos é observado em
caráter mundial, atingindo países de diferentes níveis de desenvolvimento,
decorrente não só da estrutura econômica atualmente presenciada, mas
também da proliferação rápida de informações. Consequentemente,
desperta-se a necessidade de evitar que decisões, proferidas por um
mesmo órgão, ou órgãos adstritos a um mesmo tribunal, acerca de
uma mesma situação, conflitem entre si, colocando em perigo a própria
confiança e legitimidade institucional do Poder Judiciário.
Assim, o legislador brasileiro, desde a vigência do atual Código
de Processo Civil, vem demonstrando essa preocupação e uma tendência,
por meio de diversas alterações já efetuadas, em adotar institutos que
visem uma maior celeridade, efetividade e segurança jurídica do sistema
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67
Demandas de massa e o problema da admissibilidade do IRDR no CPC-2015
processual, como, por exemplo, o julgamento por amostragem de recurso
especial e extraordinário e a súmula vinculante.
Assim, reputamos o IRDR como o melhor mecanismo processual
apresentado pelo NCPC, com vistas à solução das demandas de massa no
Brasil com relevo para a preservação da igualdade e coerência da ordem
jurídica, através do julgamento em bloco e construção de uma tese
única a ser observada, obrigatoriamente, pelos demais juízos, apesar de
considerarmos improvável a diminuição do trabalho jurisdicional. Isto é,
a simplificação na resolução desses casos não implicará a diminuição do
ajuizamento de demandas no Judiciário. Para tanto, seria válido observar
com bons olhos o modelo americano das class actions, cujo resultado
mostrou-se satisfatório, historicamente, na perseguição desse objetivo.
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Alexandre Freire Pimentel | Bruna Liana Amorim de Andrade
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Revista do CEJ - n. 5, p. 49-70 - nov. 2015
Responsabilidade civil contratual e o
dano moral no ordenamento jurídico
brasileiro: sua aplicabilidade nos
tribunais
Artur de Lima Barretto Lins
Sumário: Introdução. 1 Fundamentação, caracterização e
conceito. 2 Responsabilidade civil contratual e indenização
por dano moral. Considerações finais. Referências.
Introdução
Ante o novo paradigma jurídico pós Constituição da República
de 1988, a pergunta feita pelo professor Sergio Cavalieri Filho (2010, p. 81)
ainda ressoa na doutrina e na jurisprudência: o que é o dano moral?
Isso porque já é amplamente pacificada a existência cumulada
de um dano moral e de um dano material decorrentes de um mesmo
fato, de acordo com a Súmula 37 do Superior Tribunal de Justiça (STJ)38.
A previsão concreta em nossa legislação, sem a necessidade de se buscar
uma interpretação extensiva decorrente dos clamores doutrinário e
jurisprudencial para o reconhecimento desse tipo de lesão (CAVALIERI
FILHO, 2010, pp. 84 a 86), veio com a expressa previsão nos incisos X e V do
art. 5º da Constituição da República, desdobrada infraconstitucionalmente
em diplomas específicos39.
Importa, para esse estudo, sabermos quais os seus
fundamentos, o que caracteriza ou configura o dano moral, quem
pode sofrê-lo, quem pode pleitear sua reparação, como essa reparação
é feita e, por fim, mas perpassando toda a discussão, sua aplicabilidade
nos tribunais pátrios.
Uma análise superficial à produção de decisões finais de
mérito desses tribunais – em primeiro e segundo grau de recurso, além
38
STJ, Súmula 37: São cumuláveis as indenizações por dano moral e material oriundos do mesmo fato.
39
Apenas a título de exemplo: inciso III do art. 6º do Código de Defesa do Consumidor (CDC) e art. 186 do
Código Civil (CC).
Revista do CEJ - n. 5, p. 71-94 - nov. 2015
71
Responsabilidade civil contratual e o dano moral no ordenamento jurídico brasileiro: sua aplicabilidade nos
tribunais
de revisões pelos tribunais superiores – é suficiente para demonstrar o
reconhecimento de indenização por danos morais em virtude do não
cumprimento do contrato40.
É dever, tanto do doutrinador quanto do aplicador do caso
concreto, verificar se essa possibilidade é uma decorrência de um
descumprimento direto de cláusulas contratuais41 ou se são causas
supervenientes relativamente independentes (CAVALIERI FILHO, 2010, p.
512), além de verificar se o dano moral advém do simples inadimplemento
ou se são necessários outros fatores para sua ocorrência.
Esses são os exames aos quais procederemos.
1 Fundamentação, caracterização e conceito
O art. 5º da Constituição da República, ao tratar do dano moral,
resguarda a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas42.
A origem dessa proteção é a dignidade da pessoa humana, princípio
fundamental da República Federativa, nos termos do artigo primeiro
da Carta Magna. De acordo com lição de Immanuel Kant (in CAVALIERI
FILHO, 2010, p. 83), a dignidade é um conceito objetivo, uma qualidade
inerente ao ser humano, insubstituível, não comercializável, devendo ser
autonomamente exercida pelo sujeito.
Além desses direitos, reconhecidos na Constituição, há outros
direitos da personalidade “que não estão diretamente vinculados à
dignidade” (CAVALIERI FILHO, 2010, p. 84) tais como o direito ao nome,
direitos autorais, convicções religiosas, sócio-políticas etc., mas que são,
também, englobados pelos direitos da personalidade.
Modernamente, tem-se entendido que o “tempo perdido”,
especialmente nas relações de consumo, acarreta lesão de ordem
40
Ao longo do texto, traremos desses exemplos, tanto de decisões em casos concretos como de alguns
entendimentos sumulados. A título de curiosidade, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios
possui uma página institucional na internet com pouco mais de duas dezenas de Acórdãos sob a rubrica
“Inadimplemento contratual – dano moral”. Disponível em: <http://www.tjdft.jus.br/institucional/
jurisprudencia/temas-em-debate/jurisprudencia-reiterada-1/direito-civil/inadimplemento-contratual2013-dano-moral>. Acesso em 19 ago. 2013.
41
CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de responsabilidade civil. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2010, pp. 292-298.
42
Inciso X do art. 5º da Constituição da República: “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a
imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua
violação”.
72
Revista do CEJ - n. 5, p. 71-94 - nov. 2015
Artur de Lima Barretto Lins
moral (DESSAUNE, 2012, passim)43. Para esse autor, o dano moral, em
uma relação consumerista, caracteriza-se pela “violação do recurso
cognitivo abstrativo do consumidor (sua consciência)44, quanto (pel)
o abalo dos seus recursos vitais vulneráveis (seu equilíbrio psíquico e
físico)” (DESSAUNE, 2012, p. 87).
Para a caracterização do dano moral, não se leva em
consideração meramente a dor sentida, a humilhação sofrida, o
sofrimento, pois estes são consequências do dano. Para que haja
dano, essa dor, sofrimento, humilhação devem “fugir à normalidade”,
interferindo “intensamente no comportamento psicológico do
indivíduo” (CAVALIERI FILHO, 2010, pp. 83 e 87).
Esse é o entendimento atual do STJ, segundo o qual:
Na verdade, a vida em sociedade traduz, infelizmente, em
certas ocasiões, dissabores que, embora lamentáveis, não
podem justificar a reparação civil, por dano moral. Assim, não é
possível se considerar meros incômodos como ensejadores de
danos morais, sendo certo que só se deve reputar como dano
moral a dor, o vexame, o sofrimento ou mesmo a humilhação
que, fugindo à normalidade, interfira intensamente no
comportamento psicológico do indivíduo, chegando a causarlhe aflição, angústia e desequilíbrio em seu bem estar. (STJ REsp
1234549 SP, Rel. Min. Massami Uyeda, 3ª Turma. DJe 10.2.2012).
No caso concreto, a configuração dessas condições não têm
sido amplamente analisadas no STJ nem no Supremo Tribunal Federal
(STF), diante dos enunciados de Súmulas que impedem o reexame de
matérias fáticas nesses tribunais superiores, o que apenas ocorreria em
grau de Recurso Ordinário ou Ação Originária45
E como se dá essa interferência, já que, para essa
caracterização, levar-se-ia em consideração apenas o fato, pois o dano
seria presumido pela existência da conduta e do seu nexo causal?
43
Chancelando esse posicionamento, ver os seguintes acórdãos: TJRS, Apelação Cível n. 70034739904, 10ª
Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Paulo Antônio Kretzmann, julgado em 22.07.2010 e o TJPE,
Apelação Cível 230521-7. Voto/Vista do Des. Jones Figueirêdo. Relator do acórdão: Des. Eurico de Barros
Correia Filho, 4ª Câmara Cível. Julgado em 07.04.2011.
44
“Entendendo que consciência é o processo cognitivo responsável por criar a realidade de cada um e a ela
(realidade) atribuir significados e importância pessoais” (DESSAUNE, 2012, p. 87).
45
STJ, Súmula 7: A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial; STF, Súmula 279: Para
simples reexame de prova não cabe recurso extraordinário.
Revista do CEJ - n. 5, p. 71-94 - nov. 2015
73
Responsabilidade civil contratual e o dano moral no ordenamento jurídico brasileiro: sua aplicabilidade nos
tribunais
Tanto os tribunais quanto a doutrina utilizam a conhecida condição
do bonus pater familias da tradição romano-germânica ou do ordinary
person do direito anglo-saxão (SCHREIBER, 2013, p. 39). Essas figuras
tomam “como paradigma o cidadão que se coloca a igual distância
do homem frio, insensível, e o homem de extrema sensibilidade”46,
critério objetivo que evita distorções, mas desde que utilizado sem
subjetivismos pelo julgador, isto é, desde que não “construído sobre a
formação socioeconômica do magistrado”, e sim de acordo com dados
obtidos do caso concreto e cotejados com o contexto socioeconômico,
segundo a lição de Anderson Schreiber (2013, p. 40).
A existência do dano moral, sua prova, de acordo com o
professor Cavalieri (2010, p. 90), “decorre da gravidade do ilícito em si”,
estando o dano moral in re ipsa. A jurisprudência do STJ, no entanto,
“não tem mais considerado este um caráter absoluto”, conforme artigo
institucional produzido pela Coordenadoria de Editoria e Imprensa do
próprio tribunal47.
Nesse texto são citados exemplos de julgados (REsp 969.097 e
REsp 494.867) nos quais se exigiu dos autores prova de que os atos se
deram de forma injusta, despropositada, com reflexos na vida pessoal do
autor, com a ocorrência de danos concretos48. Tais são, porém, repercussões
do ato danoso, reflexos decorrentes do ilícito, que devem ser levados em
conta no momento do arbitramento do dano (CAVALIERI FILHO, 2010, pp.
88 e 96).
A indenização por dano moral não tem a natureza de restituir
integralmente o bem lesado, pois os direitos da personalidade não podem
ser quantificados (CAVALIERI FILHO, 2010, pp. 96 e 97), mas serve para
compensar o sofrimento causado pelo agente. De acordo com o Código
Civil (CC), em seu art. 944, “a indenização mede-se pela extensão do dano”,
devendo essa compensação tomar esse critério como pontapé inicial para
o arbitramento do dano moral.
46
Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Apelação Cível 8.218/1995, 2ª Câmara, Rel. Des. Sérgio Cavalieri Filho.
47
No artigo institucional do próprio tribunal: STJ define em quais situações o dano moral pode ser presumido,
1 jul 2012. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=398&tmp.
texto=106255>. Acesso em: 12 jun. 2013.
48
Em contraste com antigo posicionamento dessa corte, v.: “os prejuízos extrapatrimoniais suportados pela
vítima independem de prova material para que surja o direito à reparação por dano moral, bastando a
comprovação da ação voluntária e do seu nexo causal: Estando comprovado o fato não é preciso a prova do
dano moral” (STJ, AGA 250722/SP, j. 19/11/1999, 3ª Turma, r. Carlos Alberto Menezes Direito, DJ 07.02.2000).
74
Revista do CEJ - n. 5, p. 71-94 - nov. 2015
Artur de Lima Barretto Lins
A Constituição da República não recepcionou as regras
que previam indenização tarifada (STF, RE 172.720-RJ, RTJ 162/1.093,
apud CAVALIERI FILHO, ibidem), mas os tribunais superiores, além de
critérios relativos à capacidade econômica do ofensor e da vítima, do
comportamento do ofendido e do grau de culpa do ofensor, sempre com
razoabilidade e proporcionalidade, têm admitido os danos punitivos,
como medida pedagógica49, modelo que, segundo Schreiber (2013, pp
211-214), tem sofrido inúmeras críticas, seja por não respeitar o critério
previsto no art. 944 do CC, seja porque não há previsão legal, seja
porque gera enriquecimento sem causa à parte beneficiada e mesmo
porque traz ao direito civil sanção que tem caráter eminentemente
penal.
Além da pessoa física, a pessoa jurídica também pode sofrer
dano moral. Esse entendimento é pacificado em nossos tribunais e
está sumulado pelo STJ50. De acordo com o professor Cavalieri (2010, p.
101), esse dano existirá apenas quando houver dano à honra objetiva
desses entes, ou seja, quando houver ofensa à reputação, ao bom
nome, à imagem da pessoa jurídica perante a sociedade, pois a honra
subjetiva diz respeito à autoestima do ser, sentimento inexistente na
pessoa jurídica.
Quem pode pleitear a indenização por danos morais? De
maneira cristalina, a pessoa que alega ter sofrido o dano (CAVALIERI FILHO,
2010, p. 91), mas, no caso do falecimento da vítima, três teorias cercam
o direito sucessório: a da intransmissibilidade, a da transmissibilidade
condicionada e a da transmissibilidade incondicionada (CAVALIERI FILHO,
2010, pp. 93 e 94)51.
A teoria da intransmissibilidade define que não há direito ação
transmitido como herança de pessoa falecida, pois apenas esta seria
legítima para propor ação de reparação de dano sofrido apenas por ela
própria. Na transmissibilidade condicionada e na transmissibilidade
incondicionada busca-se verificar se há transmissão do direito de
49
“O valor do dano moral tem sido enfrentado no STJ com o escopo de atender a sua dupla função: reparar
o dano buscando minimizar a dor da vítima e punir o ofensor, para que não volte a reincidir. Fixação de
valor que não observa regra fixa, oscilando de acordo com os contornos fáticos e circunstanciais [...]”. (REsp
604801/RS. Rel. Min. Eliana Calmon, 2ª Turma. DJ 07.03.2005, p. 214).
50
STJ, Súmula 227: A pessoa jurídica pode sofrer dano moral.
51
Nota-se que, em todos os casos, não é o dano moral em si, que é personalíssimo, e sim sua reparação
econômica.
Revista do CEJ - n. 5, p. 71-94 - nov. 2015
75
Responsabilidade civil contratual e o dano moral no ordenamento jurídico brasileiro: sua aplicabilidade nos
tribunais
reparação dos danos apenas quando a vítima já tenha ajuizado ação
(com posterior habilitação dos herdeiros) ou se os herdeiros podem
ajuizar ação própria para buscar a compensação material por dano
moral sofrido pelo de cujus. A jurisprudência recente, tanto do STF
quanto do STJ apontam na coexistência pacífica das teorias que
aceitam a transmissibilidade52, pois, segundo o professor Cavalieri:
52
76
Nesse sentido, segue decisão monocrática do Min. Dias Toffoli: “Da análise dos artigos 12 e 943 do Código
Civil deduz-se que o direito à indenização, tanto de ordem material como moral, são assegurados aos
sucessores do lesado, transmitindo-se com a herança, uma vez que o direito que se sucede é o de ação, que
possui natureza patrimonial, e não o direito moral em si, que é personalíssimo e, portanto, intransmissível”
(STF, AI 832751 SP, decisão monocrática. Relator: Min. Dias Toffoli. DJe 28.09.2012); e, em valoroso voto: [...] A
questão controvertida consiste em saber se os pais possuem legitimidade ativa ad causam para propor ação,
postulando indenização por dano moral sofrido, em vida, pelo filho falecido. 3. É certo que esta Corte de
Justiça possui orientação consolidada acerca do direito dos herdeiros em prosseguir em ação de reparação
de danos morais ajuizada pelo próprio lesado, o qual, no curso do processo, vem a óbito. Todavia, em se
tratando de ação proposta diretamente pelos herdeiros do ofendido, após seu falecimento, a jurisprudência
do Superior Tribunal de Justiça possui orientações divergentes. De um lado, há entendimento no sentido
de que “na ação de indenização de danos morais, os herdeiros da vítima carecem de legitimidade ativa ad
causam” (REsp 302.029/RJ, 3ª Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, DJ de 1º.10.2001); de outro, no sentido de
que “os pais - na condição de herdeiros da vítima já falecida - estão legitimados, por terem interesse jurídico,
para acionarem o Estado na busca de indenização por danos morais, sofridos por seu filho, em razão de atos
administrativos praticados por agentes públicos [...]”. Isso, porque “o direito de ação por dano moral é de
natureza patrimonial e, como tal, transmite-se aos sucessores da vítima (RSTJ, vol. 71/183)”. (REsp 324.886/
PR, 1ª Turma, Rel. Min. José Delgado, DJ de 03.09.2001). 4. Interpretando-se sistematicamente os arts. 12,
parágrafo
p
g
único,, e 943 do Código
g Civil (antigo art. 1.526 do Código Civil de 1916), infere-se que o direito
à indenização, ou seja, o direito de se exigir a reparação de dano, tanto de ordem material como moral, foi
assegurado pelo Código
g Civil aos sucessores do lesado, transmitindo-se com a herança. Isso, porque o direito
que se sucede é o de ação, que possui natureza patrimonial, e não o direito moral em si, que é personalíssimo
e, portanto, intransmissível. 5. José de Aguiar Dias leciona que não há princípio algum que se oponha à
transmissibilidade da ação de reparação de danos, porquanto “a ação de indenização se transmite como
qualquer outra ação ou direito aos sucessores da vítima. Não se distingue, tampouco, se a ação se funda em
dano moral ou patrimonial. A ação que se transmite aos sucessores supõe o prejuízo causado em vida da
vítima” (Da Responsabilidade Civil, Vol. II, 4ª ed., Forense: Rio de Janeiro, 1960, p. 854). 6. Como bem salientou
o Ministro Antônio de Pádua Ribeiro, no julgamento do REsp 11.735/PR, “o direito de ação por dano moral é
de natureza patrimonial e, como tal (2ª Turma, DJ de 13.12.1993), transmite-se aos sucessores da vítima”. 7. “O
sofrimento, em si, é intransmissível. A dor não é ‘bem’ que componha o patrimônio transmissível do de cujus.
Mas me parece de todo em todo transmissível, por direito hereditário, o direito de ação que a vítima, ainda
viva, tinha contra o seu ofensor. Tal direito é de natureza patrimonial. Leon Mazeaud, em magistério publicado
no Recueil Critique Dalloz, 1943, pág. 46, esclarece: ‘O herdeiro não sucede no sofrimento da vítima. Não seria
razoável admitir-se que o sofrimento do ofendido se prolongasse ou se entendesse (deve ser estendesse)
ao herdeiro e este, fazendo sua a dor do morto, demandasse o responsável, a fim de ser indenizado da dor
alheia. Mas é irrecusável que o herdeiro sucede no direito de ação que o morto, quando ainda vivo, tinha
contra o autor do dano. Se o sofrimento é algo entranhadamente pessoal, o direito de ação de indenização
do dano moral é de natureza patrimonial e, como tal, transmite-se aos sucessores’.” (PORTO, Mário Moacyr,
in Revista dos Tribunais, Volume 661, pp. 7/10). 8. “O dano moral, que sempre decorre de uma agressão a
bens integrantes da personalidade (honra, imagem, bom nome, dignidade etc.), só a vítima pode sofrer, e
enquanto viva, porque a personalidade, não há dúvida, extingue-se com a morte. Mas o que se extingue
- repita-se - é a personalidade, e não o dano consumado, nem o direito à indenização. Perpetrado o dano
(moral ou material, não importa) contra a vítima quando ainda viva, o direito à indenização correspondente
não se extingue com sua morte. E assim é porque a obrigação de indenizar o dano moral nasce no mesmo
momento em que nasce a obrigação de indenizar o dano patrimonial - no momento em que o agente inicia
a prática do ato ilícito e o bem juridicamente tutelado sofre a lesão. Neste aspecto não há distinção alguma
entre o dano moral e patrimonial. Nesse mesmo momento, também, o correlativo direito à indenização, que
tem natureza patrimonial, passa a integrar o patrimônio da vítima e, assim, se transmite aos herdeiros dos
titulares da indenização” (CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil, 7ª ed., São Paulo:
Atlas, 2007, pp. 85/88). 9. Ressalte-se, por oportuno, que, conforme explicitado na r. sentença e no v. acórdão
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Artur de Lima Barretto Lins
[...] cuida-se da incorporação ao patrimônio dos herdeiros
daquele direito que nasceu e foi reconhecido pela própria
vítima, a qual, contudo, não teve oportunidade de iniciar a
ação. Pensamos que esse é o critério que deve prevalecer
(2010, p. 95).
2 Responsabilidade civil contratual e indenização por dano moral
De acordo com a lição de Sérgio Cavalieri Filho (2010, pp. 290
a 295), para que haja responsabilidade civil contratual, é necessária a
existência de uma relação jurídica prévia, um contrato, diferentemente
da responsabilidade extracontratual, na qual não existe qualquer “liame
jurídico anterior” entre as partes envolvidas em uma obrigação dessa
natureza, mas sim um dever geral de não fazer mal a ninguém (STOCCO,
2007, p. 114), quando surge a responsabilidade e o dever de indenizar
a posteriorii ao ato ilícito. O dever jurídico violado, na responsabilidade
contratual, tem por fonte a vontade das partes, e a deturpação desse
ato volitivo é que faz surgir o ilícito contratual, seja por meio do
inadimplemento, seja por meio da mora (CAVALIERI FILHO, 2010, pp. 292
e 295).
Em regra, o descumprimento contratual não gera obrigação
de indenizar danos morais (ou extrapatrimoniais). Seu descumprimento,
como já ventilado, resolve-se na reparação com juros moratórios, cláusula
penal e perdas e danos.53 E quando há uma frustração à não perfeição
do motivo da realização de um contrato, essa frustração pode causar
sofrimento tal que descambe em dano moral?
De acordo com o Enunciado n. 14 do Fórum dos Juizados
recorrido, “o finado era solteiro e não deixou filhos, fato incontroverso comprovado pelo documento de fl.
14 (certidão de óbito), sendo os autores seus únicos herdeiros, legitimados, pois, a propor a demanda” (fl.
154). Ademais, foi salientado nos autos que a vítima sentiu-se lesada moral e fisicamente com o ato praticado
pelos policiais militares e que a ação somente foi proposta após sua morte porque aguardava-se o trânsito
em julgado da ação penal. 10. Com essas considerações doutrinárias e jurisprudenciais, pode-se concluir
que, embora o dano moral seja intransmissível, o direito à indenização correspondente transmite-se causa
mortis, na medida em que integra o patrimônio da vítima. Não se olvida que os herdeiros não sucedem
na dor, no sofrimento, na angústia e no aborrecimento suportados pelo ofendido, tendo em vista que os
sentimentos não constituem um “bem” capaz de integrar o patrimônio do de cujus. Contudo, é devida a
transmissão do direito patrimonial de exigir a reparação daí decorrente. Entende-se, assim, pela legitimidade
ativa ad causam dos pais do ofendido, já falecido, para propor ação de indenização por danos morais, em
virtude de ofensa moral por ele suportada (STJ. REsp 978651 SP, 1ª Turma. Relatora: Min. Denise Arruda, DJe
26.03.2009. Disponível em: <http://stj.jusbrasil.com/jurisprudencia/3994552/recurso-especial-resp-978651sp-2007-0159666-6>. Acesso em: 13 jun. 2013).
53
Art. 475 do Código Civil: A parte lesada pelo inadimplemento pode pedir a resolução do contrato, se não
preferir exigir-lhe o cumprimento, cabendo, em qualquer dos casos, indenização por perdas e danos.
Revista do CEJ - n. 5, p. 71-94 - nov. 2015
77
Responsabilidade civil contratual e o dano moral no ordenamento jurídico brasileiro: sua aplicabilidade nos
tribunais
Especiais de Pernambuco54:
ENUNCIADO 14: O inadimplemento contratual, por si só, não
enseja o dano moral, salvo se da infração advém circunstância
que atente contra a dignidade ou frustre, de modo intenso,
uma expectativa ansiosamente desejada. (à unanimidade).
“Circunstância que atente contra a dignidade” não é difícil de
ser revelada, especialmente por causa dos comandos constitucionais55,
porém o que poderia “frustrar, de modo intenso, uma expectativa
ansiosamente desejada”? Poderia tal epígrafe ser albergada sob um
“conceito jurídico indeterminado”?56
De acordo com as decisões judiciais que traremos à baila, essas
perguntas serão respondidas.
O dano moral, de acordo com Dessaune (2012, p. 87), não é
apenas a violação da consciência57 da vítima, como também “abalo dos
seus recursos vitais vulneráveis (seu equilíbrio psíquico e físico)”. Na seara
do caso concreto, a jurisprudência dominante entende que há de serem
superados os meros aborrecimentos do cotidiano, como assim expomos:
RECURSO INOMINADO. CONSUMIDOR. PROVEDOR DE
INTERNET. UOL. CONTRATAÇÃO COMPROVADA MEDIANTE
O FORNECIMENTO DE DADOS. DISPONIBILIZAÇÃO
NÃO COMPROVADA, AUSENTE DISPONIBILIZAÇÃO DE
TECNOLOGIA PELA OPERADORA DE TELECOMUNICAÇÕES.
REPETIÇÃO DO INDÉBITO. DANO MORAL INOCORRENTE.
SENTENÇA REFORMADA. 1. Conforme ressai do contraditório
efetivado nos autos, não é verossímil que a parte autora
tenha contratado serviço de provedor de internet sem
54
PERNAMBUCO. Tribunal de Justiça de Pernambuco. Enunciado 14 do Fórum dos Juizados Especiais de
Pernambuco: O inadimplemento contratual, por si só, não enseja o dano moral, salvo se da infração advém
circunstância que atente contra a dignidade ou frustre, de modo intenso, uma expectativa ansiosamente
desejada. Art. 475 do Código Civil: A parte lesada pelo inadimplemento pode pedir a resolução do contrato,
se não preferir exigir-lhe o cumprimento, cabendo, em qualquer dos casos, indenização por perdas e danos.
Disponível em: <http://www.tjpe.jus.br/juizadosesp/EnunciadosCiveis.pdf>. Acesso em: 19 ago. 2013.
55
Para um estudo sobre o tema, v. LINS, Artur. O dano moral no ordenamento jurídico brasileiro e sua
aplicabilidade nos tribunais. 2013. 10 f. Trabalho entregue como requisito para a disciplina Elementos
da Responsabilidade Civil Objetiva da Pós-Graduação em Responsabilidade Civil e Direito do Consumidor,
Universidade Estácio de Sá, 2013.
56
Sobre esse assunto, v. MENDONÇA, Kylce Anne Pereira Collier de. Argumentação, termos jurídicos
indeterminados e discricionariedade na administração pública brasileira. Mestrado em Direito.
Programa de Pós-Graduação em Direito – PPGD, UFPE, Recife, 2004.
57
“Entendendo que consciência é o processo cognitivo responsável por criar a realidade de cada um e a ela
(realidade) atribuir significados e importância pessoais” (DESSAUNE, 2012, p. 87).
78
Revista do CEJ - n. 5, p. 71-94 - nov. 2015
Artur de Lima Barretto Lins
ter acesso à banda larga, senão se induzida em erro pela
prestadora de serviços. Nesse sentido, é de se manter
a sentença no tangente à repetição do indébito, pelos
próprios fundamentos. 2. Circunstância de inadimplemento
contratual que, via de regra, não constitui suporte fático
bastante a fundamentar obrigação reparatória, na medida
em que o respectivo descumprimento é incapaz de
transbordar os limites do mero dissabor, deixando de
incorrer em lesão a direitos de personalidade. 3. Sentença
reformada para afastar a condenação a título de danos
morais. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO.58.
Por outro lado, corroborando a lição de Dessaune, o Superior
Tribunal de Justiça (STJ), além de possuir súmulas a respeito
de inadimplemento contratual e dano moral59, já pacificou seu
entendimento nesse sentido:
Nos casos de negativa de cobertura por parte do plano
de saúde, em regra não se trata de mero inadimplemento
contratual. A recusa indevida de tratamento médico - nos
casos de urgência - agrava a situação psicológica e gera aflição,
que ultrapassam os meros dissabores, caracterizando o dano
moral indenizável. (STJ AgRg no AREsp 213169 RS, 4ª Turma.
Relator: Min. Luis Felipe Salomão. DJe 11 out. 2012).
Deve ser verificado, porém, que não apenas o inadimplemento
direto pode ser capaz de gerar danos dessa natureza, mas comportamentos
paralelos, supervenientes, também possuem esse condão.
Além do art. 475 do Código Civil (CC), inúmeros outros artigos,
especialmente do Código de Defesa do Consumidor (CDC) asseguram,
caso não haja respeito à garantia contratual e/ou legal, a possibilidade de
restituição imediata da quantia paga, com resolução do contrato, “sem
prejuízo de eventuais perdas e danos”60. É o que o professor Cavalieri Filho
58
BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Contratação comprovada mediante o fornecimento
de dados. Disponibilização não comprovada, ausente disponibilização de tecnologia pela operadora
de telecomunicações. Repetição do indébito. Dano moral inocorrente. Sentença reformada. Recurso
cível n. 71004185641. Recorrente: Universo Online S/A. Recorrido: Marlon Leandro Andrade Rodrigues.
Relatora: Ketlin Carla Pasa Casagrande. Julgado em 16.08.2013. Disponível em: <http://www1.tjrs.jus.br/
busca/?q=inadimplemento+e+contratual+e+dano+e+moral&tb=jurisnova&pesq=ementario&partialfields
=tribunal%3ATurmas%2520Recursais.%28TipoDecisao%3Aac%25C3%25B3rd%25C3%25A3o%7CTipoDecisao
%3Amonocr%25C3%25A1tica%7CTipoDecisao%3Anull%29&requiredfields=&as_q=>. Acesso em: 20 ago.
2013.
59
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Súmula n. 370: Caracteriza dano moral a apresentação antecipada de
cheque pré-datado. Súmula n. 388: A simples devolução indevida de cheque caracteriza dano moral.
60
Inciso II do § 1º do art. 18; inciso IV do art. 19; inciso II do art. 20; inciso III do art. 35; § 1º do art. 84.
Revista do CEJ - n. 5, p. 71-94 - nov. 2015
79
Responsabilidade civil contratual e o dano moral no ordenamento jurídico brasileiro: sua aplicabilidade nos
tribunais
(2010, p. 512) se refere como dano extra rem, diferenciando-o do dano
circa rem, senão vejamos:
A expressão latina circa rem significa próximo, ao redor, ligado
diretamente à coisa, de modo que não pode dela desgarrarse. Assim, dano circa rem é aquele que é inerente ao vício do
produto ou do serviço, que está diretamente ligado a ele, não
podendo dele desgarrar-se.
A expressão latina extra rem indica vínculo indireto, distante,
remoto; tem sentido de fora de, além de, à exceção de.
Consequentemente, o dano extra rem é aquele que apenas
indiretamente está ligado ao vício do produto ou do serviço
porque, na realidade, decorre de causa superveniente,
relativamente independente, e que por si só produz o
resultado. A rigor, não é o vício do produto que causa o dano
extra rem – dano material ou moral –, mas sim a conduta do
fornecedor, posterior ao vício, por não dar ao caso a atenção
e a atenção devidas. O dano moral, o desgosto íntimo, está
dissociado do defeito, a ele jungido apenas pela origem.
Na realidade, decorre de causa superveniente (o não
atendimento pronto e eficiente ao consumidor, a demora
injustificável na reparação do vício). Tem caráter autônomo.
No nosso entender, esse é o principal fundamento61 do dano
moral no caso de inadimplemento contratual62.
61
A título de exemplo: VÍCIO DO PRODUTO. GELADEIRA DEFEITUOSA. DESCASO COM O CONSUMIDOR
PARA REALIZAR A TROCA DO PRODUTO. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DAS RÉS. DANOS MATERAIS
CARACTERIZADOS. DANOS MORAIS EXCEPCIONALMENTE CONFIGURADOS. O consumidor pode optar
pelo recebimento do valor pago, de acordo com o artigo 18, §3º, do CDC. Nessa linha, considerando que o
prazo de 30 (trinta) dias estabelecido no artigo 18, §1º, do CDC é usado em situações excepcionais, as quais
permitem a substituição de partes do produto, no caso posto a julgamento, é possível o desfazimento do
negócio com a devolução do valor pago pela geladeira e, em contrapartida, a devolução daquela. Justificase a devolução do produto ao fornecedor, com a restituição do preço, em razão do elevado valor do bem
e por se tratar de produto essencial à vida moderna, frisando que mesmo sendo possível o conserto, esta
circunstância acarreta a diminuição do preço do bem. Por fim, a situação narrada autoriza a fixação de
danos morais no valor de R$ 1.000,00 (mil reais), como decidido na origem, pois presente o descaso com
o consumidor e o lapso temporal que o autor encontra-se sem usufruir o bem, o que autoriza, de forma
excepcional, a configuração de danos morais. Danos morais arbitrados em sintonia com a Proposição n. 05,
aprovada no Encontro de Juizados Especiais Cíveis e Criminais de Gramado (maio de 2005), e de acordo com
os critérios da razoabilidade e da proporcionalidade. A condenação das rés é solidária por força do artigo
18 do CDC. Sentença mantida. Recurso desprovido. (Recurso Cível n. 71003979218, 1ª Turma Recursal Cível,
Turmas Recursais, Relator: Lucas Maltez Kachny, julgado em 28.05.2013).
62
Excetuando-se os casos onde há causa não relativa, mas totalmente independente para esse tipo de lesão.
80
Revista do CEJ - n. 5, p. 71-94 - nov. 2015
Artur de Lima Barretto Lins
Considerações finais
O dano moral não pode ser visto apenas como os constitucionais
danos à vida, à honra, à privacidade e à imagem das pessoas.63 O conceito
de dignidade da pessoa humana, trazido como valor fundamental
por nossa constituição, abriga “aspectos diversos da pessoa humana”,
especialmente “sua integridade psicofísica” (SCHREIBER, 2013, p. 92).
Creio que a dignidade da pessoa humana é o vértice axiológico de todo
o sistema jurídico pátrio, e a legislação infraconstitucional64 tem e deve
respeitar esse fundamento. Ofender a dignidade é ofender o que faz do
ser humano único, mas não indivíduo, pois a dignidade é um sentimento
de partilha social (especialmente quanto à honra objetiva, presente nas
pessoas jurídicas)65, e o dano moral sofrido por uma pessoa é aquele
sentido por outra, ainda que incapaz, deficiente mental, recém-nascida
(SARLET, 2012, pp. 251 e ss). Um deslize quanto ao respeito à dignidade é
um dano moral provocado.
Critérios subjetivistas existem e devem ser mantidos quanto ao
arbitramento do dano moral, levando-se em consideração os esquemas
já propostos e analisados pela jurisprudência e doutrina pátrias, porém
com especial atenção aos danos morais punitivos, por serem uma forma,
pela rápida análise feita nesse artigo, que demonstra ir de encontro à
nossa legislação pátria. Cabe ao Poder Legislativo se posicionar quanto
a isso, quem sabe nos termos do direito norte-americano, “que distingue
claramente os compensatory damages e punitive damages” (SCHREIBER,
2013, p. 213). Esse tipo de indenização prevê um duplo proveito econômico
ao ofendido, não utilizando os “efeitos pedagógicos de punição” para fixar
os danos morais compensatórios, como feito aqui no Brasil.
Vimos ainda que o dano moral é personalíssimo, mas, em
eventual caso de falecimento do ofendido, nossos tribunais superiores
têm aceitado que os herdeiros busquem na justiça a reparação econômica
pela ofensa moral, ainda que a vítima não tenha ingressado previamente
com uma ação nesse sentido. Recomendamos, quanto a isso, a lição
contida no voto da Ministra do STJ Denise Arruda, disponibilizado na nota
63
Inciso X do art. 5º da Constituição da República.
64
Dentre outros diplomas, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o Estatuto do Idoso, o Estatuto
do Torcedor, o CDC, as leis que regulam as atividades empresariais e a livre concorrência, o CC e a Lei de
Introdução às Normas Brasileiras (quando trazem como regra o princípio da boa fé objetiva, a função social
do contrato e os fins sociais das normas).
65
Ver Súmula n. 227 do STJ.
Revista do CEJ - n. 5, p. 71-94 - nov. 2015
81
Responsabilidade civil contratual e o dano moral no ordenamento jurídico brasileiro: sua aplicabilidade nos
tribunais
13 desse trabalho.
Por fim, os tribunais e a doutrina têm considerado, ultimamente,
não apenas a dor psíquica, a lesão proveniente de um ato injurioso como
possibilidade de dano moral no caso de inadimplemento contratual. De
acordo com Dessaune (2012, p. 134-136), o dano moral também tem causa
no “desvio produtivo” capaz de acarretar, especialmente nas relações de
consumo, “prejuízo do tempo desperdiçado”.
As lições do professor Cavalieri Filho acerca de danos circa
rem e extra rem demonstram que causas supervenientes, relativamente
independentes ao inadimplemento contratual, mas desde que evidente o
nexo de causalidade, podem gerar danos extrapatrimoniais.
O tempo perdido tem razão no descaso (GUGLINSKIN, 2012)66
do inadimplente e acarreta à vítima “escassez, inacumulabilidade e
irrecuperabilidade” (DESSAUNE, 2012, p. 136). Nesse sentido, recomendase a busca por outras decisões judiciais que vinculem o dano moral
decorrente de inadimplemento contratual ao descaso por parte do agente,
como a que aqui segue transcrita, do Desembargador Jones Figueirêdo
do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE):
A questão é de extrema gravidade e não se pode admiti-la, por
retóricas de tolerância ou de condescendência, que sejam os
transtornos do cotidiano que nos submetam a esse vilipêndio
de tempo subtraído de vida, em face de uma sociedade
tecnológica e massificada, impessoal e disforme, onde nela
as pessoas possam perder a sua própria individualidade,
consideradas que se tornem apenas em usuários numerados
em bancos informatizados de dados (TJPE. AC 230521-7. Voto/
Vista do Des. Jones Figueiredo. Relator do Acórdão Des. Eurico
de Barros Correia Filho, 4ª Câmara Cível. Julgado em 7.4.2011).
66
82
GUGLINSKIN, Vitor. Perda de tempo provocada por descaso gera dano moral. Consultor Jurídico. Disponível
em: <http://www.conjur.com.br/2012-mai-11/vitor-guglinskin-danos-morais-descaso-perda-tempo-util>.
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Revista do CEJ - n. 5, p. 71-94 - nov. 2015
Artur de Lima Barretto Lins
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1999.
Revista do CEJ - n. 5, p. 71-94 - nov. 2015
83
Responsabilidade civil contratual e o dano moral no ordenamento jurídico brasileiro: sua aplicabilidade nos
tribunais
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STOCCO, Rui. Tratado de responsabilidade civil: doutrina e jurisprudência. 7.
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84
Revista do CEJ - n. 5, p. 71-94 - nov. 2015
Perda ou não do objeto do agravo de
instrumento face à prolação da sentença
no processo originário
Carlos Rogério de Souza Silva67
Em síntese, o presente trabalho objetiva verificar se a prolação
de sentença no processo que tramita no primeiro grau do qual emanou a
decisão combatida por intermédio do agravo de instrumento acarreta ou
não a perda de objeto do recurso instrumental.
Como é cediço, a regra é a interposição do agravo na modalidade
retida. Contudo, nos termos do disposto no artigo 522, caput,
t do Código
de Processo Civil pátrio, caberá agravo na modalidade de instrumento
visando combater decisões interlocutórias suscetíveis de causar à parte
interessada lesão grave ou de difícil reparação, bem como nos casos de não
admissão do recurso de apelação ou nas hipóteses em que se discutirem
os efeitos (devolutivo e/ou suspensivo) em que o apelo é recebido.
Conforme será explanado neste estudo, é mister analisar cada
caso concreto com bastante atenção e percuciência para verificar se, de
fato, o agravo de instrumento perdeu supervenientemente o seu objeto
ante a prolação da sentença pelo juízo a quo.
Muitos operadores do Direito (em especial, os julgadores)
acreditam que a prolação de sentença no processo originário do qual
emanou a decisão combatida por intermédio do agravo de instrumento
acarreta, consequentemente, a perda de objeto do recurso instrumental,
na medida em que esta decisão de mérito absorve os efeitos da decisão
agravada por se tratar de juízo de cognição exauriente. Nesse sentido:
AGRAVO EM AGRAVO DE INSTRUMENTO. NEGATIVA DE
SEGUIMENTO. SUPERVENIÊNCIA DE SENTENÇA EXTINTIVA SEM
RESOLUÇÃO DO MÉRITO. PERDA DO OBJETO. 1. A prolação de
sentença após o julgamento do Agravo de Instrumento que
manteve a decisão a quo no sentido de negar os benefícios
da justiça gratuita acarreta a perda do objeto do Agravo de
67
Analista Judiciário do TJPE – APJ/Assessor Técnico-Judiciário – com lotação no Gabinete do Desembargador
José Fernandes de Lemos.
Revista do CEJ - n. 5, p. 85-94 - nov. 2015
85
Perda ou não do objeto do agravo de instrumento face à prolação da sentença no processo originário
Instrumento e, consequentemente, do Agravo Legal interposto
contra a decisão ad quem. 2. Recurso não provido. (TJPE;
Recurso de Agravo n. 341232-4, Relator: Des. Stênio José de
Sousa Neiva Coêlho, 1ª Câmara Cível, Julgamento: 09.09.2014,
publicação no DJE: 16.09.2014).
Com efeito, poder-se-ia até afirmar que o entendimento supra
mencionado seria a regra.
Entretanto, há de se ter em mente que esta regra possui
exceções: há situações em que é necessário haver uma mitigação a este
entendimento a fim de verificar que, conquanto tenha sido proferida a
sentença no processo do primeiro grau, é imperiosa a apreciação do
agravo de instrumento, mormente porquanto seu objeto ainda não se
esvaiu.
É que a superveniência de sentença no processo principal não
conduz necessariamente à perda de objeto do agravo de instrumento.
Tudo vai depender tanto do teor da decisão impugnada, ou seja, da
matéria que será examinada pelo tribunal ao analisar o agravo, quanto do
conteúdo da sentença.
Nesse sentido, já se manifestou o Colendo Superior Tribunal
de Justiça amparado pelo entendimento de doutrina abalizada sobre o
ponto controvertido:
PROCESSUAL
CIVIL.
RECURSO
ESPECIAL.
AGRAVO
DE INSTRUMENTO EM PROCESSO [...] JULGADO
POSTERIORMENTE À SENTENÇA. DÚVIDA QUANTO À
PERDA DE OBJETO. [...] 1. A superveniência da sentença no
processo principal não conduz, necessariamente, à perda
do objeto do agravo de instrumento. A conclusão depende
tanto “do teor da decisão impugnada, ou seja, da matéria
que será examinada pelo tribunal ao examinar o agravo,
quanto do conteúdo da sentença” (O destino do agravo
depois de proferida a sentença. Aspectos Polêmicos
e Atuais dos Recursos Cíveis e de Outros Meios de
Impugnação às Decisões Judiciais. Série 7. Nelson Nery Jr. e
Teresa Arruda Alvim Wambier - coordenadores. São Paulo:
RT, 2003). 2. A questão soluciona-se pela aplicação de dois
critérios: a) o da hierarquia, segundo o qual a sentença não
tem força para revogar a decisão do tribunal, razão por
86
Revista do CEJ - n. 5, p. 85-94 - nov. 2015
Carlos Rogério de Souza Silva
que o agravo não perde o objeto, devendo ser julgado; b) o
da cognição, pelo qual a cognição exauriente da sentença
absorve a cognição sumária da interlocutória. Neste caso,
o agravo perderia o objeto e não poderia ser julgado. [...].
(REsp 742.512/DF, Rel. Ministro Castro Meira, Segunda Turma.
Julgado em: 11.10.2005, DJ 21.11.2005, p. 206). (destaques
inexistentes no original).
Ainda a fim de corroborar a tese de que a superveniência de
sentença no processo principal não conduz obrigatoriamente à perda de
objeto do recurso instrumental, é imprescindível trazer à tona o seguinte
precedente do Egrégio Tribunal Regional Federal da 5ª Região que,
também respaldado pelo entendimento doutrinário, sustenta a mesma
tese:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. SUPERVENIÊNCIA DA SENTENÇA
NO PROCESO PRINCIPAL. PERDA DO OBJETO. INOCORRÊNCIA.
[...] - A superveniência da sentença no processo principal
não conduz necessariamente à perda de objeto do agravo
de instrumento. Nada obsta que o tribunal decida tornar
insubsistentes os atos subsequentes à interposição do
recurso que sejam incompatíveis com o resultado do
julgamento proferido (Nelson Nery Junior e Rosa Maria
Andrade Nery, in Código de Processo Civil Comentado e
Legislação Processual Civil Extravagante em Vigor, Editora
Revista dos Tribunais, 4ª edição, p. 103). - Precedentes da turma.
- Agravo de instrumento provido (TRF 5ª Região -1ª Turma,
Processo n. 20.050.5347-0, DJ de 17.09.2011). (Destaques
nossos).
Como saber, portanto, de acordo com o caso concreto em
análise, se o mérito do agravo de instrumento deve ou não ser apreciado
considerando já ter havido no processo do 1º grau - do qual surgiu a
decisão agravada – sentença meritória?
Antes de responder à indagação, deve-se destacar que,
além da instigação que o tema suscita face sua importância teórica e
principalmente prática – o que por si só já seria suficiente para prender a
atenção do leitor – é fundamental relembrar que o agravo de instrumento
não tem, via de regra, efeito suspensivo, ou seja, sua interposição em nada
afetará o curso do procedimento regular do processo principal, de modo
Revista do CEJ - n. 5, p. 85-94 - nov. 2015
87
Perda ou não do objeto do agravo de instrumento face à prolação da sentença no processo originário
que, exceto se o relator do recurso a ele atribuir efeito suspensivo (CPC,
artigo 527, III), a ação principal não será suspensa pelo fato de haver um
agravo de instrumento pendente de julgamento no Tribunal.
Pois bem. Voltando ao cerne da discussão, passa-se a responder
à pergunta formulada acima.
Para se verificar, portanto, a perda ou não do objeto do agravo
de instrumento, deve-se analisar, de acordo com a situação concreta, qual
dos seguintes critérios se aplica: o da hierarquia
q , segundo o qual a sentença
não tem força para revogar a decisão do tribunal; ou o da cognição,
g ç , em
que a cognição exauriente da sentença absorve a cognição sumária da
decisão interlocutória.
Nesse aspecto a doutrina pátria assim se manifesta:
[...] Há quem diga que, admitido o agravo de instrumento, a
decisão do tribunal, seja a que o acolhe ou a que o rejeita,
substitui a decisão interlocutória, de modo que a sentença,
por ter sido proferida por juízo singular, não poderia ser
incompatível com a decisão tomada pelo órgão colegiado
nos autos do agravo de instrumento. Este é o chamado
critério da hierarquia e com base nele se entende que,
justamente porque há a possibilidade de as decisões
serem incompatíveis (acórdão do agravo e sentença), o
agravo de instrumento não fica prejudicado por conta da
superveniência da sentença. Os efeitos desta decisão final,
portanto, ficariam condicionados ao desprovimento do agravo
– isto é, a confirmação da decisão interlocutória. Há, por outro
lado, quem diga que, por ter sido proferida com base
num juízo de cognição exauriente, a sentença englobaria
a decisão interlocutória impugnada – que fora proferida
com base em juízo de cognição sumária -, de modo que
o agravo de instrumento perderia seu objeto [...].68 (grifos
nossos).
Nesse aspecto, com bastante percuciência manifestouse o ilustre Ministro Castro Meira, do Superior Tribunal de Justiça, ao
fundamentar o seu voto lançado no Recurso Especial n. 742.512/DF, do
qual foi relator:
68
88
DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Curso de direito processual civil. 9 ed. Editora Jus
Podivm, 2011. V. 3. P. 174.
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Carlos Rogério de Souza Silva
[...] Imagine-se, por exemplo, que a liminar tenha sido
concedida pelo tribunal em razão do que consta do documento
X. Suponha-se que, na instrução, resta comprovada a falsidade
desse documento ou surgem outros elementos de convicção
que reduzem o seu valor probante, tendo sido, em razão
disso, julgado improcedente o pedido do autor. Neste caso, a
sentença deve sobrepor-se à decisão do agravo, o qual perderia
o seu objeto, pois o critério da cognição prevalece sobre o da
hierarquia.
Se, entretanto, não há modificação do quadro fático e
probatório, nem sobrevém qualquer elemento que afaste a
premissa da decisão proferida pelo tribunal no agravo, então
prevalece a hierarquia, não perdendo o agravo o seu objeto.
Conclui-se: se não houve alteração do quadro, mantendo-se
os mesmos elementos de fato e de prova existentes quando
da concessão da liminar pelo tribunal, a sentença não atinge
o agravo, mantendo-se a liminar. Nesse caso, prevalece o
critério da hierarquia. Se, entretanto, a sentença está fundada
em elementos que não existiam ou em situação que afasta o
quadro inicial levado em consideração pelo tribunal, então a
sentença atinge o agravo, desfazendo-se a liminar [...]. (REsp
742.512/DF, Rel. Ministro Castro Meira, Segunda Turma, julgado
em 11/10/2005, DJ 21/11/2005, p. 206).
Logo, caso entenda-se pela incidência do critério da cognição, o
agravo de instrumento perderá o seu objeto face à prolação de sentença
no processo principal.
Todavia, a aplicação da hierarquia fará com que o mérito do
recurso instrumental deva ser analisado pelo Tribunal, pois restará vivo o
interesse recursal do recorrente. Dessa forma, caso a sentença lhe tenha
sido desfavorável, poderá reverter a situação quando do julgamento do
mérito do recurso instrumental.
É o que novamente diz a doutrina pátria:
[...] A premissa que se deve estabelecer para o correto
enfrentamento do ponto é a de que a perda, ou não, do objeto
do agravo pendente de julgamento não é questão que deva
ser analisada em abstrato. A sorte do agravo de instrumento
pendente de julgamento dependerá sempre da análise do
caso concreto, não se podendo dizer abstratamente que a só
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Perda ou não do objeto do agravo de instrumento face à prolação da sentença no processo originário
superveniência da sentença vai gerar, ipso facto, a perda de
objeto do referido recurso. [...] Em suma, a questão
q
deve ser
analisada sob a ótica do interesse recursal do agravante;
g
;
se,, a despeito
p
da sentença
ç superveniente,
p
, ainda lhe for
útil,, de algum
g
modo,, o julgamento
j g
do agravo
g
– é dizer,,
se a sua p
posição
ç no processo
p
puder
p
ser,, de alguma
g
forma,,
melhorada com aquele
q
julgamento
j g
– não se pode
p
ter por
p
prejudicado
p
j
aquele
q
recurso; se, ao contrário, a partir da
prolação da sentença, o provimento ou desprovimento do
agravo não tiver o condão de influenciar em sua situação
processual, outro caminho não restará senão o de tê-lo por
prejudicado [...].69 (com destaques).
Com a aplicação do critério da hierarquia e havendo o
interesse recursal, naturalmente a parte recorrente terá o direito de ter
seu recurso analisado pelo Tribunal competente para o julgamento,
independentemente do resultado final meritório (provimento ou não),
vez que a todos os litigantes é assegurado o princípio constitucional do
duplo grau de jurisdição.
A partir da análise de um caso concreto do Tribunal de
Justiça de Pernambuco70, utilizando os argumentos aqui expostos, é
que se chega à conclusão sobre a perda ou não do objeto do agravo
de instrumento.
O autor propôs uma ação de cobrança em face do réu, tendo
requerido a concessão dos benefícios da gratuidade da justiça por
entender que era hipossuficiente na forma da Lei n. 1.060/1950, não
podendo arcar com as despesas processuais sem prejuízo do sustento
próprio e dos seus familiares.
Ao despachar a petição inicial, o juiz, analisando as provas
colacionadas aos autos, decidiu indeferir o pedido de justiça gratuita,
determinando à parte, em consequência, que, no prazo improrrogável
de 10 (dez) dias, efetuasse o preparo com o recolhimento das devidas
custas processuais, sob pena de extinção do feito sem resolução do
mérito.
69
DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Curso de direito processual civil. 9 ed. Editora Jus
Podivm, 2011. V. 3. PP. 176-177.
70
Recurso de Agravo no Agravo de Instrumento n. 353218-5, Relator: Des. Jovaldo Nunes Gomes, 5ª Câmara
Cível, Decisão proferida no dia 05.11.2014, publicação no DJE: 13.11.2014.
90
Revista do CEJ - n. 5, p. 85-94 - nov. 2015
Carlos Rogério de Souza Silva
Contra esta decisão interlocutória, o autor interpôs agravo de
instrumento, sem, no entanto, ter cumprido a determinação judicial no
sentido de efetuar o preparo.
Ocorre que, decorrendo in albis o prazo sem o devido preparo,
o juiz de piso, posteriormente ao manejo recursal, extinguiu o processo
originário sem julgamento do mérito.
O relator do agravo de instrumento, por sua vez, ao apreciar o
recurso, verificou que o processo do qual emanou a decisão agravada já
havia sido sentenciado, razão pela qual o magistrado não conheceu do
recurso instrumental ante a perda superveniente do seu objeto.
Em suma, o relator aplicou a este caso concreto o critério da
cognição. Agiu ele acertadamente?
Conquanto inexista consenso a este respeito, tampouco
posicionamento consolidado sobre esta matéria, já há quem entenda que
o Relator equivocou-se porquanto deveria ter sido utilizado o critério da
hierarquia.
Sem sombra de dúvidas, o caso comportava aplicação do
princípio da hierarquia em detrimento do critério da cognição.
In casu¸ é indubitável haver um nexo lógico de subordinação
entre a sentença do feito e o objeto do agravo de instrumento, de maneira
que o eventual provimento do recurso, naturalmente, causaria a perda de
eficácia da sentença, nada obstando que o Tribunal tornasse insubsistentes
os atos subsequentes à interposição do recurso que fossem ou pudessem
ser incompatíveis e/ou conflitantes com o julgamento do mérito recursal.
Ora, apesar de o juízo singular não ter a obrigatoriedade de
aguardar o julgamento do agravo de instrumento para poder sentenciar
o processo originário, neste caso concreto, por uma prudência/cautela,
deveria ter esperado o resultado do recurso antes de sentenciar o feito
extinguindo a ação, na medida em que os objetos (do recurso e da ação
principal) se confundem e se complementam, possuindo uma relação
de interdependência, vez que o eventual provimento do agravo de
instrumento concederia a benesse da gratuidade da justiça à parte e
acarretaria, consequentemente, a desnecessidade do recolhimento do
preparo.
Revista do CEJ - n. 5, p. 85-94 - nov. 2015
91
Perda ou não do objeto do agravo de instrumento face à prolação da sentença no processo originário
A decisão proferida no agravo de instrumento, portanto,
repercutiu sobremaneira no processo originário, principalmente na
sentença nele proferida, havendo com isso a ocorrência dos efeitos
expansivos objetivos externos do agravo de instrumento perante a
sentença:
[...] Em regra, a prolação de sentença no processo do qual
emanou a decisão combatida por intermédio do agravo
de instrumento acarreta a perda de objeto do recurso
instrumental na medida em que esta decisão de mérito
absorve os efeitos da decisão agravada por se tratar de juízo de
cognição exauriente. [...] Ocorre que há exceção a esta regra.
É que a superveniência de sentença no processo principal
não conduz necessariamente à perda de objeto do agravo
de instrumento. Tudo vai depender tanto do teor da decisão
impugnada, ou seja, da matéria que será examinada pelo
tribunal ao analisar o agravo quanto do conteúdo da sentença.
[...] Portanto, a fim de verificar a perda ou não do objeto do
agravo de instrumento deve-se analisar a situação concreta
para que se saiba qual dos dois critérios deverá ser utilizado: o
da hierarquia
q
(segundo o qual a sentença não tem força para
revogar a decisão do tribunal) ou o da cognição
g ç (pelo qual a
cognição exauriente da sentença absorve a cognição sumária
da interlocutória). Caso incida o critério da cognição haverá a
perda de objeto do agravo de instrumento. Por outro lado, a
aplicação da hierarquia fará com que o recurso instrumental
deva ser analisado. Na hipótese dos autos, entendo que deve
ser aplicado o critério da hierarquia, razão pela qual o agravo de
instrumento não perdeu o seu objeto mesmo com a prolação
da sentença no processo originário. [...] Por derradeiro, em
respeito e obediência ao princípio constitucional do duplo grau
de jurisdição, há de se destacar que os agravantes têm o direito
de ver seu recurso ser apreciado por este Tribunal de Justiça
seja lá qual for o resultado (provimento ou não) a que chegue
esta Corte de Justiça. Ante o exposto, DOU PROVIMENTO
ao recurso de agravo para tornar sem efeito/revogar a
decisão terminativa de fl., 77, determinando a intimação dos
agravados para, querendo, apresentar suas contrarrazões no
prazo legal, após o que (com ou sem manifestação) devem os
autos retornar conclusos para apreciação do mérito do agravo
de instrumento. [...] Cumpra-se. - Des. Jovaldo Nunes Gomes
92
Revista do CEJ - n. 5, p. 85-94 - nov. 2015
Carlos Rogério de Souza Silva
Para ilustrar todo o exposto, importante o julgado a seguir
transcrito:
PROCESSUAL CIVIL. NEXO LÓGICO DE SUBORDINAÇÃO
ENTRE ANTERIOR DECISÃO INTERLOCUTÓRIA E POSTERIOR
SENTENÇA. AGRAVO DE INSTRUMENTO. PERDA DE
OBJETO. NÃO-OCORRÊNCIA. EFEITOS EXPANSIVOS
OBJETIVOS EXTERNOS SOBRE A SENTENÇA. I. Quando
há um nexo lógico de subordinação entre a anterior
decisão interlocutória e a posterior sentença, a prolação
desta não acarreta a perda de objeto do agravo de
instrumento, cujos efeitos expansivos objetivos externos
(ou retrooperantes), no caso de procedência, podem se
traduzir em natural perda de eficácia dos ulteriores atos
decisórios incompatíveis, inclusive a própria sentença
[...]. (TRF-2 - AG: 200902010088348, 8ª Turma Especializada,
Relatora: Desembargadora Federal Fátima Maria Novelino
Sequeira. Julgado em: 08/06/2011. D.P.: 16.06.2011) (Com
destaques).
Assim, como conclusão, deve-se entender que nem sempre a
decisão final no processo originário acarretará a perda superveniente do
objeto do agravo de instrumento. É imprescindível verificar, com extrema
atenção e profundidade, as peculiaridades do caso concreto, mormente
o teor da decisão agravada, isto é, a matéria que será examinada pelo
Tribunal em sede de agravo de instrumento, bem como o conteúdo da
sentença proferida pelo juiz visando perquirir se será aplicado o critério
da hierarquia ou da cognição, a depender do caso analisado.
Revista do CEJ - n. 5, p. 85-94 - nov. 2015
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Perda ou não do objeto do agravo de instrumento face à prolação da sentença no processo originário
Referências
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. 2ª Turma. STJ - Resp 742512 DF
(2005/0062075-9). Recorrente: Murilo Celso de Campos Pinheiro. Recorrido: José
Eduardo de Paula Alonso. Relator: Ministro Castro Meira. Data de julgamento:
11.10.2005. DJ 21 nov. 2005. p. 206.
BRASIL. Tribunal Regional Federal (2ª Região). 8ª Turma Especializada. AG
200902010088348. Agravante: União Federal. Agravado: Hilda de Oliveira e Silva.
Relatora: Desembargadora Fátima Maria Novelino Sequeira. Data de julgamento:
8.6.2011. DJ: 16.6.2011.
JUNIOR, Fredie Didier; CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Curso de direito
processual civil. v. 3. 9 ed. Salvador: Editora Jus Podium, 2011.
PERNAMBUCO. Tribunal de Justiça de Pernambuco. 1ª Câmara Cível. Agravo n.
344350-9. Apelante: Sul America Companhia Nacional De Seguros. Apelado: José
Euclides de Mesquita e outros. Relator: Desembargador Stênio José de Sousa
Neiva Coêlho. Data de julgamento: 9.9.2014. DJPE 16.9.2014, p. 177.
PERNAMBUCO. Tribunal de Justiça de Pernambuco. 5ª Câmara Cível. Recurso de
Agravo no Agravo de Instrumento n. 0010678-41.2014.8.17.0000 (0353218-5).
Agravantes: Azril Gandelsman e Ana Longman Gandelsman. Agravados: Sérgio
Longman e Liliane Viera Longman. Relator: Desembargador Jovaldo Nunes
Gomes. Data de julgamento: 5.11.2014. DJPE, 13.11.2014, p. 1015.
94
Revista do CEJ - n. 5, p. 85-94 - nov. 2015
A União Europeia e o Brasil: recursos
hídricos na política e legislação
ambiental
Christiano German71
Alberto Nogueira Virgínio72
Agradecimentos: Agradecemos à Fundação KonradAdenauer, no Rio de Janeiro, pelo apoio oferecido ao
Congresso Internacional sobre o Meio Ambiente da AMB, em
Manaus. Os nossos agradecimentos incluem, em especial,
o senhor Michael Wittemann, engenheiro diplomado para
técnicas de abastecimento na Alemanha (Diplom-Ingenieur
der Versorgungstechnik - FU), da companhia pública de
águas (Wasserverband) da cidade de Peine na Baixa-Saxonia,
Alemanha, pela revisão deste artigo e detalhes importantes
sobre os procedimentos de saneamento das águas na
Alemanha.
Sumário: Introdução. 1 A importância dos recursos hídricos
no século XXI. 1.1 O mistério da água nas culturas e ciências.
1.2 A situação atual no mundo. 2 O problema da preservação
da água. 2.1 Proteção e gestão das águas na Europa. 2.2 A
cooperação com a União Europeia e a legislação no Brasil.
Conclusões. Referências.
Nas lendas sobre a origem do rio Amazonas, os mitos e a ciência
se misturam. Um dos mitos de criação indígena reza que o rio é originário
do amor irrealizável entre o sol e a lua. Como a lua não conseguia dividir o
céu simultaneamente com o sol amado, a lua pôs-se a chorar. As lágrimas
da lua escavaram um profundo vale entre as serras, criando um imenso
rio, posteriormente denominado de Amazonas73.
71
Professor de Ciência Política e Relações Internacionais na Universidade Católica de Eichstaett e de Política
Europeia na Universidade Técnica de Braunschweig – RFA. Email: [email protected].
72
Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco, Vice-Presidente do TRE-PE e Diretor
Adjunto da Secretaria de Planejamento Estratégico da Associação dos Magistrados Brasileiros – AMB. Email:
[email protected].
73
Fiennes, Sir Ranulph et al.: Extreme der Erde, Editora National Geographic, Hamburgo, 2ª edição 2005, p. 264.
Revista do CEJ - n. 5, p. 95-119 - nov. 2015
95
A União Europeia e o Brasil: recursos hídricos na política e legislação ambiental
Ao analisar a questão da origem da água em nosso planeta,
esse mito de criação não está tão longe das teorias científicas atuais. Por
isso, nessa primeira parte, pretendemos detalhar somente os conceitos
teóricos sobre a origem da água nas culturas e na ciência, assim como
o seu significado único para a natureza e todos os seres vivos. Nesse
cenário, apresentamos em uma visão geral um levantamento atual sobre
a problemática da água, questão essa cada vez mais urgente no mundo
inteiro.
Na segunda parte, tratamos dos desafios concretos enfrentados
para garantir os recursos hídricos à humanidade. Aqui, apresentamos
primeiramente a política de proteção hídrica da União Europeia – UE e
os problemas de sua realização prática nos estados membros. Depois,
queremos detalhar como o Brasil lida atualmente com esses desafios e
quais são as possibilidades que existem para uma cooperação com a UE
sobre a proteção dos recursos hídricos.
1 A importância dos recursos hídricos no século XXI
1.1 O mistério da água nas culturas e ciências
Os antigos mitos sobre a origem da água do Amazonas falam
sobre o pranto da lua. Na questão da origem da água, até hoje não
resolvida conclusivamente, muitos cientistas partem do princípio de
que a água, em algum momento, veio de fora através dos oceanos da
terra – possivelmente de asteroides ou cometas. No ano de 2008, houve
uma descoberta que apoia essa teoria: duas equipes de astrônomos
descobriram, independentemente, que o asteróide “24 Themis”, que circula
como um dos maiores objetos entre Marte e Júpiter, está envolto de uma
fina camada de gelo74. E também na lua já foi constatada a existência de
água em forma de gelo75.
Como nos mitos sobre a criação do rio mais longo do mundo,
com 6.850 quilômetros de extensão desde sua nascente, as lendas sobre a
água têm um papel central nas diferentes culturas e suas religiões76. Todas
74
Campins, Humberto et al.: Water ice and organics on the surface of the asteroid 24 Themis, Nature, 2010, Vol.
464, pp. 1320-1321.
75
Astronomie. Der Mond enthält hundert Mal mehr Wasser als gedacht, in: Zeit Online 27.05.2011. Disponível
em: <http://www.zeit.de/wissen/2011-05/mond-wasser-wissenschaft>. Acesso em: 13 jun. 2012.
76
INPE. Estudo do INPE indica que o rio Amazonas é 140 km mais extenso do que o Nilo. Disponível em: <http://
www.inpe.br/noticias/noticia.php?Cod_Noticia=1501>. Acesso em: 13 jun. 2012.
96
Revista do CEJ - n. 5, p. 95-119 - nov. 2015
Christiano German | Alberto Nogueira Virgínio
elas têm em comum o fato de destacarem um uso consciente da água
como fonte e símbolo da vida77.
“No início era a água”, consta no mito da criação da Bíblia78.
No antigo testamento e no Judaísmo, a água é considerada o elemento
originário da vida. No Cristianismo, a água representa a fertilidade, a cura e
a origem de toda a vida. Além disso, a água é o símbolo para a vida eterna
e para a cura (águas com poder de cura, por exemplo, de Lourdes). Jesus
compara a palavra de Deus com uma fonte de água viva. Confúcio (551 479) afirma “Os sábios encontram alegria na água” e o sábio grego Tales
de Mileto (624 - 546) escreve “Tudo começa na água, pois a água é tudo
e para a água tudo retorna”. Também no Islamismo, a água tem um papel
importante, é considerada como condição prévia para a vida humana. No
Islamismo sunita, o direito de matar a sede é um dos direitos mais santos
escriturados. Para esse fim, é necessário proporcionar acesso a toda água
localizada em propriedade privada. No Budismo e Hinduísmo, em feriados
importantes as estátuas são lavadas com água de cheiro, esborrifar água
mutuamente é símbolo de pureza e alegria de viver. Um ditado indiano
diz: “Água, você é a fonte de todas as coisas e de toda existência”.
Ao contrário desse respeito cultural e religioso pela água
como fonte de vida, o manejo atual, muitas vezes pouco sensato do
ser humano com esse maior bem, fez com que a água não seja mais
símbolo da vida, mas que pode ser compreendida cada vez mais
também como símbolo da morte79. Especialmente no hemisfério sul
do planeta, os efeitos da escassez da água manifestam-se de forma
trágica: mais de um bilhão de pessoas não têm acesso seguro à água
potável, sofrem de doenças causadas por água contaminada, vivem
em constante fome e sede. Essa escassez, muitas vezes geográfica,
geralmente ainda aumenta com a distribuição extremamente desigual
dos recursos entre as populações pobres e ricas. Enfim, não se trata de
um destino natural, mas de uma questão de justiça.
A exigência de uma distribuição justa terá uma posição decisiva
77
Sobre as religiões: Vogt, Markus: Wasser – Ursprung allen Lebens. Thesen aus der Sicht Christlicher
Sozialethik, Thesen zum Element Wasser, 8 de junho de 2011, Munique Disponível em: <http:www.kaththeol.
uni-muenchen.de/lehrstuehle/christl_sozialethik/personen/1vogt/texte_vogt/vogt_wasser.pdf>. Acesso
em 13 jun. 2012.
78
Gênesis, 1.1-2, 4ª.
79
A tese fundamental é a de que “água é ao mesmo tempo o símbolo da vida como da morte”. Veja na
bibliografia Prof. Dr. Markus Vogt, Lehrstuhl für Christliche Sozialethik (Cátedra de Ética Social Cristã),
Ludwig-Maximilians-Universität München, in: Wasser – Ursprung allen Lebens (2011).
Revista do CEJ - n. 5, p. 95-119 - nov. 2015
97
A União Europeia e o Brasil: recursos hídricos na política e legislação ambiental
em relação à problemática da água em todos os países em questão,
destacando o papel central do Poder Judiciário face aos interesses
políticos, econômicos e sociais divergentes e em boa parte agressivos. A
Associação dos Magistrados do Brasil – AMB tem, portanto, um papel de
vanguarda mundial com o manifesto in dubio pro natura nesse I Encontro
Internacional de Direito Ambiental, na cidade de Manaus, que é dotada de
significado simbólico.
1.2 A situação atual no mundo
Mesmo na ciência, a água continua sendo pesquisada como
elemento natural único. A Terra é o único planeta de nosso sistema solar,
em que há água líquida disponível na superfície. De fato, a terra é em
70% (setenta por cento) coberta de água. Por esse motivo, ela é também
denominada de Planeta Azul. A água é considerada uma condição central
para que a vida, como nós a conhecemos, possa ser gerada. O corpo
humano consiste em aproximadamente 60% (sessenta por cento) de água.
- Inventário da Água na Superfície da Terra (2006)
A quantidade total de água do planeta é estimada em 1,4 bilhões
de quilômetros cúbicos. Pelo menos na prática, nada da quantidade de
água existente há mais de quatro bilhões de anos se perde no sistema da
Terra. Essa é a boa nova, pois não existe tecnologia para produzir água
nova. A maior parte, 97% (noventa e sete por cento), é água salgada.
Somente aproximadamente 2,75% (dois vírgula setenta e cinco por
cento), 38,5 milhões de quilômetros cúbicos, são água doce.80. E apenas
aproximadamente 0,3% (zero vírgula três por cento) dessas reservas
de água doce – aproximadamente 100.000 km³ (cem mil quilômetros
cúbicos) ou 0,008% (zero vírgula zero zero oito por cento) de toda a água
– é facilmente acessível para o ser humano, especialmente em lagos e
rios81. A notícia ruim é que outras reservas importantes, como a água do
r dependendo de sua localização, (Shallow/
lençol freático (Groundwater),
Deep) precisa de 100 (cem) a 10.000 (dez mil) anos para se regenerar. Mas
há também reservas hídricas que se regeneram em poucos anos. Isso
depende basicamente do tipo do solo, por exemplo, arenoso, e também
80
PhysicalGeography.net: Chapter 8: Introduction to the Hydrosphere (2006). Disponível em: <www.
physicalgeography.net/fundamentals/8b.html>. Acesso em: 11 jun. 2012.
81
Zahlen und Fakten: Globalisierung, Wasserverbrauch, em: Bundeszentrale für politische Bildung, Bonn,
Situação: 14.09.2010. Acesso em: 12 jun. 2012.
98
Revista do CEJ - n. 5, p. 95-119 - nov. 2015
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da precipitação. Na Alemanha, as reservas hídricas subterrâneas, por lei,
precisam ser manejadas de tal forma que não seja retirado mais do que a
natureza recupera em média. Assim, a água se tornará um bem finito para
a humanidade se não houver um consumo consciente e uma advertência
também articulada enfaticamente pelos representantes responsáveis das
autoridades no Brasil82.
- Permanência típica da água encontrada em vários reservatórios
(2006)
Fato é que a relação entre a demanda e a disponibilidade de
água já alcançou um nível crítico em muitas partes do mundo. A escassez
e a seca já se tornaram um grande desafio – e a mudança climática
provavelmente ainda tende a agravar o problema. Em meados deste
século, na pior das hipóteses, sete bilhões de pessoas em 60 (sessenta)
países do mundo, na melhor das hipóteses, dois bilhões de pessoas em 48
países, sofrerão os efeitos da escassez da água.
Assim, a questão hoje é especialmente a quantidade de água
tecnicamente renovável por pessoa/ano, ou seja, em princípio uma
reciclagem sustentável da quantidade de água disponível. O critério é
frequentemente usado para mensurar a quantidade de água disponível.
Na Suíça, a quantidade de água renovável por pessoa e ano é de, por
exemplo, 6.520 m3 (seis mil, quinhentos e vinte metros cúbicos), na
Argélia, 770 m3(setecentos e setenta metros cúbicos), na Arábia Saudita,
160 m3(cento e sessenta metros cúbicos). Nos países com reservas de
água sustentáveis abaixo de 1.700 m3 (mil e setecentos metros cúbicos),
já existe escassez de água; abaixo de 1.000 m3 (mil metros cúbicos), já
falamos em falta de água83.
Reservas de água no mundo inteiro
Apesar da crescente falta de disponibilidade, ainda há muitas
possibilidades para economizar – melhora da técnica de irrigação,
cultivo de produtos adaptados, uma atitude de consumo consciente e o
refreamento do uso de água potável no setor agrário – as quais ainda não
82
SERPA, Flávio de Carvalho: Águas no Brasil, em: National Geographic Brasil (Edição Especial Água), abr. 2011,
ano 11, n. 133, pp. 46-67, p. 52.
83
Märki-Koepp, Martina: Wasser für den blauen Planeten, em: Bulletin. Magazin der Eidgenössischen
Technischen Hochschule Zürich (EZH), N. 289, Maio de 2003, p. 5
Revista do CEJ - n. 5, p. 95-119 - nov. 2015
99
A União Europeia e o Brasil: recursos hídricos na política e legislação ambiental
foram plenamente exploradas84. Especialmente na África, mas também
em muitas partes da Ásia, podemos prever catástrofes de fome e maiores
conflitos por água, com o aumento da população, a queda do nível do
lençol freático, a secagem dos rios, que provoca a morte de gado e a perda
de colheitas85.
Esse fato também foi registrado pela Organização das Nações
Unidas (ONU), que iniciou um programa para a década internacional
de água de 2005 a 2015. Além disso, a Conferência das Nações Unidas
pelo desenvolvimento sustentável no Rio de Janeiro, a Rio+20, também
se ocupou com a questão da água86. A UE empenhou-se em acelerar
consideravelmente a transição das economias mundiais para as
denominadas “Economias Verdes Inclusivas” (Inclusive Green Economies).
Além disso, a UE exigiu metas com prazos concretos nas áreas de energia,
água, eficiência de recursos, uso sustentável das terras, biodiversidade,
assim como para os oceanos87.
A precursora da Rio+20 foi a conferência líder para o meio
ambiente e desenvolvimento das Nações Unidas, no Rio de Janeiro, duas
décadas antes. Nesta, 172 (cento e setenta e dois) países deliberaram
a “Agenda 21”, um programa sustentável de ações políticas, de
desenvolvimento e de meio ambiente para o século 2188.
Finalmente, queremos ainda destacar que a Assembleia Geral
das Nações Unidas declarou, mediante a solicitação da Bolívia, em 28 de
julho de 2010, com 122 (cento e vinte e dois) países votando a favor e sem
votos contrários, o acesso à água potável limpa e ao saneamento básico
como direitos humanos. Entre os países apoiadores estão também o Brasil
e a Alemanha. Abstiveram-se do voto 41 países, dentre eles EUA, Austrália
84
Zahlen und Fakten: Globalisierung, Wasserverbrauch, em: Bundeszentrale für politische Bildung, Bonn,
Situação: 14/09/2010. Acesso em 12 jun. 2012.
85
Para um panorama amplo dos conflitos sobre recursos hídricos. Pacific Institute, The World’s Water. Disponível
em: <http://www.worldwater.org/conflict.html>. Acesso em 25 jun. 2012.
86
RESOLUTION 58/217: Internationale Aktionsdekade “Wasser – Quelle des Lebens” 2005-2015. Disponível em:
<http://www.un.org/Depts/german/gv-58/band1/ar58217.pdf>. <http://www.un.org/waterforlifedecade/
water_at_rio.shtmlund www.un.org/waterforlifedecade/>. Acesso em: 15 jun. 2012.
87
Rio+20, United Nations Conference on Sustainable Development. Disponível em: <http://www.bmu.de/rio_
plus_20/doc/47266.php und http://www.uncsd2012.org/>. Em português: <http://www.rio20.info/2012/>.
Acesso em: 21 jun. 2012.
88
Um dos primeiros grandes projetos modelo para realizar a Agenda 21 na Alemanha foi o projeto nacional,
“Altmühltal-Agenda-21-Projekt (1995–1998)” no vale do rio Altmühl na Baviera, realizado pela Universidade
Católica de Eichstätt-Ingolstadt e premiado pelo então Presidente da República Federal da Alemanha Roman
Herzog. Foram 25 áreas de projetos com mais de 100 medidas.
100
Revista do CEJ - n. 5, p. 95-119 - nov. 2015
Christiano German | Alberto Nogueira Virgínio
e Quênia, além de 18 países da UE89. Países como, por exemplo, a África do
Sul e o Equador incluíram o direito à água em suas constituições90.
2 O problema da preservação da água
2.1 Proteção e gestão das águas na Europa
A relação entre a demanda e a disponibilidade de água já
alcançou uma situação crítica também em muitas regiões da Europa.
Em alguns estados membros, já há uma escassez de água em todo o
território. E o problema não se limita apenas aos países vizinhos do Mar
Mediterrâneo, mas também países como a República Checa, já relatam
sobre regiões com frequente escassez d’água91.
Há alguns anos, a Comissão Europeia exige rigorosamente
dos estados membros impulsos políticos, por exemplo, em relação à
política das tarifas de água, melhoria dos instrumentos para a gestão
das águas e medidas para incentivar o uso consciente e a economia
da água. A grande importância que os estados membros da União
Europeia conferem aos padrões de qualidade da água, baseia-se na
Legislação da UE92. A diretiva 98/83/CE, do Conselho Europeu, de 03 de
novembro de 1998, sobre a qualidade de água de consumo, estabeleceu
parâmetros rígidos e obrigatórios de salubridade e higiene. O termo
“Água destinada ao consumo humano” é definido obrigatoriamente
para todos os estados membros no “Artigo 2º: Definições”, da diretiva93.
Além disso, os estados membros da UE são obrigados a entregar a cada
três anos um relatório sobre a qualidade da água potável. Assim, pode89
RESOLUTION 64/292: Das Menschenrecht auf Wasser und Sanitärversorgung, Deliberada na 108ª sessão
plenária em 28 de julho de 2010. Disponível em: <http://www.un.org/Depts/german/gv-64/band3/ar64292.
pdf>. Acesso em: 15 jun. 2012.
90
Krennerich, Michael: Forum. Das Menschenrecht auf Wasser – weit mehr als ein unverbindliches Ziel, em:
NJW-aktuell, Edição 39/2010, p. 18.
91
Ambiente: escassez de água e secas – uma grande preocupação para muitas regiões da Europa,
IP/10/577 Bruxelas, 18 de Maio de 2010. Disponível em: <http://europa.eu/rapid/pressReleasesAction.
do?reference=IP/10/577&format=HTML&aged=0&language=DE&guiLanguage=de>
92
Acesso em 08 jun. 2012.
Sínteses da legislação da UE. Disponível em <http://europa.eu/legislation_summaries/index_pt.htm> e
Proteção e gestão das águas. Disponível em: <http://europa.eu/legislation_summaries/environment/water_
protection_management/index_pt.htm>. Acesso em: 15 jun. 2012.
93
RICHTLINIE 98/83/EG DES RATES vom 3. November 1998 über die Qualität von Wasser für den
menschlichen
Gebrauch.
Disponível
em:
<http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.
do?uri=CELEX:31998L0083:DE:NOT>.
Em português: <http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=OJ:L:1998:330:0032:0054:PT:PDF>.
Acesso em 18 jun. 2012.
Revista do CEJ - n. 5, p. 95-119 - nov. 2015
101
A União Europeia e o Brasil: recursos hídricos na política e legislação ambiental
se ao menos garantir que em toda a UE a água encanada possa ser
usada para cozinhar94.
Nos países como a Alemanha, onde as diretivas foram
imprescindivelmente colocadas em prática, aplicam-se, para água de
consumo, diretivas mais rígidas do que para a água mineral engarrafada. A
norma alemã para água de consumo é um exemplo positivo da conversão
da diretiva do CE 83/98 em direito nacional e ainda foi melhorada no ano
de 201195.
Para tal, a norma nacional de água para consumo do ano de
2001 foi adaptada em alguns pontos nos desenvolvimentos mais recentes.
Além da consideração dos mais atuais conhecimentos científicos, buscavase ainda uma adesão maior às diretivas do direito europeu, assim como
uma desburocratização. Também o direito de proteção ao consumidor foi
fortalecido. Um complemento importante foi o exame da legionella em
instalações de aquecimento de água de consumo96. Desde então, existe
a obrigatoriedade de se realizar anualmente o exame para instalações
de água quente em prédios públicos ou comerciais, nos quais houve
uma vaporização da água de consumo (por exemplo, em chuveiros).
Aqui também podemos citar, além dos prédios públicos, como creches e
piscinas públicas, prédios para locação residencial. Se forem constatadas
concentrações muito altas, a vigilância sanitária competente, assim
como os locatários, deverão ser informados. Além disso, a Alemanha foi
o primeiro estado membro da União Europeia a definir um valor limite
para o urânio em água para consumo. Com 0,010 (zero vírgula zero dez)
miligramas (=10 microgramas) por litro, o valor limite para urânio na
Alemanha é o mais rígido do mundo, oferecendo a todos os segmentos
da população – incluindo bebês – a proteção da saúde contra possíveis
danos causados pelo urânio na água de consumo.
94
Qualität von Trinkwasser, em: Europa. Zusammenfassungen der EU-Gesetzgebung (Situação: 28/10/2011).
Disponível em: <http://europa.eu/legislation_summaries/environment/water_protection_management/
l28079_de.htm>. Em português: <http://europa.eu/legislation_summaries/environment/water_protection_
management/l28079_pt.htm>. Acesso em: 18 jun. 2012.
95
Erste Verordnung zur Änderung der Trinkwasserverordnung (1. TrinkwVÄndV) vom 03.05.2011. Disponível
em: <http://www.umweltbundesamt.de/wasser/themen/downloads/trinkwasser/BGBl_IS_748.pdf>. Acesso
em: 20 jun. 2012.
96
Bactérias do tipo Legionella podem causar pneumonias graves (Doença do legionário) e produzir a Febre
de Pontiac. Trinkwasserverordnung und Legionellen (Situação: 19/10/2011), em: Bundesministerium für
Gesundheit). Disponível em: <http://www.bmg.bund.de/ministerium/presse/pressemitteilungen/2011-02/
aenderung-der-trinkwasserverordnung/trinkwasserverordnung-und-legionellen.html>. Acesso em 03 jul.
2012.
102
Revista do CEJ - n. 5, p. 95-119 - nov. 2015
Christiano German | Alberto Nogueira Virgínio
Outra norma legal da UE, após 1998, a Diretiva-Quadro da
Água 2000/60/CE, entrou em vigor em 22 de dezembro de 2000. Nos
fundamentos dessa diretiva ampliada podemos ler:
(1) A água não é um produto comercial, como outro qualquer,
mas um patrimônio que deve ser protegido, defendido e
tratado como tal.
(9) É necessário desenvolver uma política comunitária
integrada no domínio das águas”97
Com essa diretiva complementar foram dados novos impulsos,
especialmente para uma proteção hídrica integrada de maior viés
ecológico.
Como em outros países da UE, a transposição dessa DiretivaQuadro para a ordem jurídica nacional acarreta problemas jurídicos,
especialmente devido ao federalismo que divide as competências
legislativas entre a União e os Estados Federados. Por isso, houve
necessidade de uma reforma do federalismo na Alemanha para colocar
em prática as deliberações da UE da Diretiva-Quadro da Água. Além disso,
há muitos conflitos adicionais da UE com os diferentes países membros
em relação ao pleno cumprimento da Diretiva-Quadro da Água.
O conflito atual no âmbito do cumprimento pleno da DiretivaQuadro da Água de 2000 versa, por exemplo, sobre uma definição distinta
do conceito “serviços hídricos” da UE e da Alemanha98. Conforme as
normas da UE, os custos ambientais e dos recursos também precisam ser
computados nos serviços hídricos. Portanto, os “serviços hídricos” para a UE
também abrangem o uso de água na refrigeração de instalações industriais
e de irrigação na agricultura. Sob esse ponto de vista, por exemplo, a
indústria e a agricultura na Alemanha não praticam o uso consciente e
97
Bundesministerium für Umwelt, Naturschutz und Reaktorsicherheit (BMU): Die Europäische
Wasserrahmenrichtlinie und ihre Umsetzung in Deutschland. Disponível em: <http://www.bmu.de/
binnengewaesser/gewaesserschutzpolitik/europa/doc/3063.php>. Acesso em 20.06.2012. Em português:
Directiva 2000/60/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de outubro de 2000, que estabelece
um quadro de ação comunitária no domínio da política da água. Disponível em: <http://eur-lex.europa.eu/
LexUriServ/LexUriServ.do?uri=CELEX:32000L0060:pt:HTML>.
98
Artigo 2º, Definições 38. “Serviços hídricos”: todos os serviços que forneçam a casas de habitação, a entidades
públicas ou a qualquer atividade econômica:
a) A captação, represamento, armazenagem, tratamento e distribuição de águas de superfície ou
subterrâneas;
b) A recolha e tratamento de águas residuais por instalações que subsequentemente descarregam os seus
efluentes em águas de superfície.
Revista do CEJ - n. 5, p. 95-119 - nov. 2015
103
A União Europeia e o Brasil: recursos hídricos na política e legislação ambiental
econômico de água. A Alemanha aplica as normas da UE para “serviços
hídricos” somente para o abastecimento de água de consumo e o esgoto,
assim como o tratamento de esgotos. A comissão solicitou diversas vezes
que a Alemanha alterasse a sua interpretação sobre os serviços hídricos,
pela última vez em setembro de 2011. Como última etapa em um processo
de violação contratual, a Comissão Europeia deu entrada, em 2012 num
processo no Tribunal de Justiça da União Europeia contra a República
Federal da Alemanha. Casos semelhantes são analisados também em
países como a Áustria, Dinamarca, Finlândia, Hungria, os Países Baixos,
Suécia e a região Bélgica de Flandres pela Comissão. Os países indiciados
estão sujeitos a multas99.
Uma consulta ao site do Comissário do Meio Ambiente da
União Europeia, Janez Potočnik, revela que foram iniciados ou estão
iminentes uma série de outros processos e ações, que visam impor o
cumprimento das disposições da UE, contra os países membros100. E o
Comissário do Meio Ambiente ainda considera valores limites mais rígidos
para a qualidade da água. A cada quatro anos, a lista das substâncias mais
perigosas é avaliada no âmbito da higiene da água conforme o estado
da ciência. Até o momento, foram encontradas 33 (trinta e três) dessas
“substâncias prioritárias” como fósforo, benzeno, atrazina e metais pesados
como chumbo e mercúrio. Segundo os planos da comissão da UE deverão
ser acrescidas outras 15 (quinze) substâncias. Pela primeira vez, serão
incluídos resíduos de medicamentos como o analgésico diclofenaco, de
medicamentos anti-hipertensivos, de meios de contraste que contém
iodo, usados no raio-x, assim como a pílula anticoncepcional.
Neste primeiro momento, questiona-se se não haveria uma
super-regulamentação, possivelmente fora da realidade por parte
da UE. Como já descrito até o momento, nem a Diretiva-Quadro da
Água da União Europeia do ano 2000 pode ser cumprida em todos
os países, e em segundo lugar, a realização técnica de padrões ainda
maiores na qualidade de água seria difícil de se financiar, mesmo
pelos países com maiores recursos na UE. Somente para a região do
lago Bodensee na Alemanha, o terceiro maior lago da Europa Central,
99
Europäische Kommission: Umweltpolitik. Kommission verklagt Deutschland wegen Wasserdienstleistungen,
31.05.2012. Disponível em: <http://ec.europa.eu/deutschland/press/pr_releases/10684_de.htm>. Acesso
em: 20 jun. 2012.
100
Comissário do Meio Ambiente da União Europeia, Janez Potočnik. Disponível em: <http://ec.europa.eu/
commission_2010-2014/potocnik/index_en.htm>. Acesso em: 21 jun. 2012.
104
Revista do CEJ - n. 5, p. 95-119 - nov. 2015
Christiano German | Alberto Nogueira Virgínio
após o Plattensee e o Genebra, a complementação do equipamento
técnico necessário às instalações de tratamento deverá custar
aproximadamente um bilhão de euros. Outro problema, em muitos
lagos e rios na Europa, consiste ainda no fato de eles ultrapassarem
as fronteiras e a qualidade de água variar nos determinados países –
como é de se esperar – com frequência. Em terceiro lugar, os valores
sugeridos para novas micro contaminações indesejadas são tão baixos,
na faixa de nanogramas por litro, e para a sua comprovação analítica e
o monitoramento das águas são necessários processos sensíveis e de
altos custos. Todavia, há atualmente novos conhecimentos científicos
que apontam para possíveis situações de insalubridade, mesmo com a
ingestão de resíduos mínimos de medicamentos. Assim, por exemplo,
existe a suspeita de que resíduos de pílulas anticoncepcionais podem
comprometer a fertilidade da população masculina. A consequência é
que os novos valores limite e valores máximos discutidos não poderão
ser cumpridos em muitas reservas hídricas que até o momento tenham
apresentado uma qualidade de água excelente101. Para complementar,
é importante instituir uma melhor política de informação e incentivo à
população para aumentar a cautela no uso de medicamentos, deixando
de descartá-los pelo esgoto, por exemplo.
2.2 A cooperação com a União Europeia e a legislação no Brasil
Face às diretivas europeias apresentadas com suas
exigências, em partes rigorosas, em relação à qualidade da água, a
legislação no Brasil ainda deixa muito a desejar. Além disso, precisam
ser consideradas as condições gerais muito distintas em comparação
com a Europa. Primeiramente, o Brasil é um dos países com a maior
quantidade de água do mundo, respondendo por um quinto de todos
os recursos hídricos102.
A provável maior reserva de água do mundo encontra-se no
norte do Brasil, entre os territórios dos Estados do Amazonas, Pará e
Amapá. O aquífero Alter do Chão foi descoberto em 2010. As primeiras
estimativas partem de um volume de água superior a 86.000 km³ (oitenta
101
Rieger, Arnold: “Der Bodensee ist der EU nicht sauber genug” (Manchete) e “Wie gefährlich ist die Apotheke
im See?” (p. 6), em: Stuttgarter Nachrichten, 4 de maio de 2012.
102
Sacher, Danuta: Es geht nicht nur um die Dienstleistung. Wasserprivatisierung in Lateinamerika, em: ila 281
dezembro/janeiro de 2004/05. Disponível em: <www.ila-web.de/artikel/ila281/wasser.htm>. Acesso em: 08
jun. 2012.
Revista do CEJ - n. 5, p. 95-119 - nov. 2015
105
A União Europeia e o Brasil: recursos hídricos na política e legislação ambiental
e seis mil quilômetros cúbicos)103, quantidade suficiente para suprir cem
vezes as necessidades de água de toda a população mundial.
Aquíferos no Brasil
E no sul do Brasil, há ainda uma segunda reserva de água
subterrânea, o Aquífero Guarani, que recebeu esse nome em homenagem
ao povo indígena guarani que habitava a região até a chegada dos
europeus. Com uma extensão de quase 1,1 milhão de km² (corresponde
a mais que o dobro do território da França) esse aquífero tem uma área
enorme. Com um volume total estimado de até 45.000 km³ (quarenta e
cinco mil quilômetros cúbicos), esse aquífero representa, todavia, somente
a metade dos recursos hídricos subterrâneos do aquífero Alter do Chão no
norte do país.
O principal problema desse outro tesouro global consiste no
fato de atravessar as fronteiras dos países Brasil, Uruguai, Argentina e
Paraguai, tendo, portanto, um significado geopolítico específico. Conforme
estimativas, 70% (setenta por cento) deste aquífero encontram-se sob
território brasileiro. O segundo maior percentual de aproximadamente
19% (dezenove por cento) está sob território da Argentina. Em face
dessa riqueza em reservas hídricas cada vez mais importantes, não
somente estados terceiros como os EUA, mas especialmente empresas
internacionais demonstram um interesse ativo e estratégico na região.
Além disso, a região já é considerada foco de conflitos em potencial no
futuro. Durante um exercício militar em 2007, a Argentina já simulou uma
guerra pela reserva hídrica.
No mais, ambos aquíferos correm grande risco devido à poluição,
à exploração excessiva, assim como aos efeitos da mudança climática.
Especialistas temem que algum dia a retirada de água seja maior do que
a regeneração natural.
Ficou evidente, que o Brasil tem uma responsabilidade
global, não somente pela floresta amazônica, mas também pelos seus
recursos hídricos únicos. Essa crescente importância do Brasil no mundo
103
Sobre este assunto veja Pößneck, Janine: Das blaue Gold des Guarani-Aquifer, em: Focus Brasilien, Analysen &
Kommentare, Konrad-Adenauer-Stiftung, janeiro de 2012. Disponível em: <http://www.kas.de/wf/doc/61401442-1-30.pdf>. Acesso em: 25 jun. 2012 e Aquífero na Amazônia pode ser o maior do mundo, dizem
geólogos, (artigo e mapa 19.04.2010). Disponível em: <http://www.vnews.com.br/noticia.php?id=70222>.
Acesso em: 28 jun. 2012.
106
Revista do CEJ - n. 5, p. 95-119 - nov. 2015
Christiano German | Alberto Nogueira Virgínio
foi reconhecida pela UE e foi firmado um acordo sobre uma parceria
estratégica, na qual as questões ambientais também têm um papel
importante. Essa nova forma de colaboração teve início em 04 de julho
de 2007, em Lisboa, com um encontro de cúpula entre a UE e o Brasil.
Além de muitos outros aspectos, foi acordado que o diálogo já existente
nas áreas de ambiente e desenvolvimento sustentável será ampliado104. A
questão dos recursos hídricos foi citada especificamente:
A gestão dos recursos hídricos, a proteção do meio marinho,
a luta contra a poluição pelo mercúrio ou os modelos de
consumo e de produção sustentáveis constituem também
desafios enfrentados pelas duas partes105.
E também no documento de estratégia, por país, de 2007-2013,
entre a UE e o Brasil, o problema foi detalhado: “o país deve lutar contra
a degradação da qualidade dos recursos hídricos [...]”106. Além disso, foi
acordada ainda uma parceria estratégica com a Alemanha, em 14 de maio
de 2008. Nesta, as partes contratantes concordam em “focar a cooperação
em áreas do manejo de recursos naturais [...]”.
Foram realizadas cúpulas anuais entre a UE e o Brasil, sendo que
a 5ª Cúpula entre a UE e o Brasil, em 4 de outubro de 2011, em Bruxelas,
também deveria oferecer um caminho para um crescimento ecológico
em relação à Rio+20107. Na polêmica declaração de aproximadamente
50 páginas da Rio+20 de 2012, com o título “O futuro que desejamos”,
104
Strategische Partnerschaft EU/Brasilien: P6_TA(2009)0140. Recomendação do Parlamento Europeu
de 12 de março de 2009 à Comissão para a parceria estratégica entre a União Europeia e o Brasil
(2008/2288(INI)-(2010/C 87 E/34). Disponível em: <http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.
do?uri=OJ:C:2010:087E:0168:0172:DE:PDF>. Acesso em: 27 jun. 2012.
105
Auf dem Weg zu einer strategischen Partnerschaft zwischen der EU und Brasilien, in: Europa. Zusammenfassungen
der EU-Gesetzgebung. Disponível em: <http://europa.eu/legislation_summaries/external_relations/
relations_with_third_countries/latin_america/r14021_de.htm>. Em português: <http://europa.eu/
legislation_summaries/external_relations/relations_with_third_countries/latin_america/r14021_pt.htm>.
Acesso em: 27 jun. 2012.
106
Europäische Kommission - Länderstrategiepapier 2007-2013 für Brasilien, in: Europa. Zusammenfassungen
der EU-Gesetzgebung (12.06.2008). Disponível em: <http://europa.eu/legislation_summaries/external_
relations/relations_with_third_countries/latin_america/r15014_de.htm>. Em português: <http://europa.eu/
legislation_summaries/external_relations/relations_with_third_countries/latin_america/r15014_pt.htm>.
Acesso em: 28 jun. 2012.
107
Gipfeltreffen EU-Brasilien: Neue Bande knüpfen: Europäischer Rat (04.10.2011). Disponível em: <http://www.
Em
european-council.europa.eu/home-page/highlights/eu-brazil-summit-creating-new-ties?lang=de>.
português: <http://www.european-council.europa.eu/home-page/highlights/eu-brazil-summit-creatingnew-ties?lang=pt>. Acesso em 29 jun. 2012. Veja também Fischer-Bollin, Peter: Der 3. EU-Brasilien-Gipfel
am 6. Oktober in Stockholm. Erwartungen und Perspektiven, em: Focus Brasilien, Analysen & Kommentare,
Konrad-Adenauer-Stiftung, setembro de 2009. Disponível em: <http://www.kas.de/wf/doc/kas_17670-544-130.pdf>. Acesso em: 27 jun. 2012.
Revista do CEJ - n. 5, p. 95-119 - nov. 2015
107
A União Europeia e o Brasil: recursos hídricos na política e legislação ambiental
a comunidade dos estados pela primeira vez aderiu ao conceito da
“Economia Verde”, um modelo econômico que enfoca mais fortemente a
proteção dos recursos naturais. O relatório global Fifth Global Environmental
Outlook Report,
t que também lida com a problemática da água, havia sido
apresentado previamente aos tomadores de decisão (policy makers) 108.
A UE considera a declaração da Rio+20 pouco comprometedora,
mas um primeiro passo na direção certa. Também as Nações Unidas
elogiam os esforços, mas ninguém ficou verdadeiramente satisfeito,
especialmente as associações de meio-ambiente. Segundo entendimento
do Comissário de Meio Ambiente da EU, Janez Potočnik, deve-se ao
empenho da UE que a declaração final, imposta unilateralmente pelo
Brasil, tenha sido melhorada em pontos decisivos. Potočnik considera
um sucesso da UE, entre outros, a defesa do direito à água potável e a
um saneamento básico digno, assim como a valorização do programa
ambiental das Nações Unidas, no qual futuramente todos os estados das
Nações Unidas serão filiados109. Assim, por exemplo, a versão espanhola
da declaração, no capítulo Agua y saneamiento, no item 121, destaca, com
observação sobre a “Década da água”.
Reafirmamos nuestros compromisos relativos al derecho humano
al agua potable y el saneamiento, que ha de hacerse efectivo
gradualmente en beneficio de nuestra población, respetando
plenamente nuestra soberanía nacional. Resaltamos también
nuestro compromiso con el Decenio Internacional para la
Acción “El agua, fuente de vida”, 2005-2015110.
Aqui também ficou claro que deliberações internacionais mais
concretas, como também a consolidação da parceria entre a UE e o Brasil,
podem ser esperadas com mais facilidade quando se trata de assuntos
econômicos. O Brasil está em décimo lugar entre os parceiros comerciais
da UE com 2,2% (dois vírgula dois por cento) de todo o volume comercial
108
UNEP 2012: GEO5. The Fifth Global Environmental Outlook Report. Summary for Policy Makers. Disponível em:
<http://www.unep.org/geo/pdfs/GEO5_SPM_English.pdf> e <http://www.unep.org/portuguese/geo/>.
Acesso em 06 jul. 2012.
109
Abschluss des Gipfel Rio+20. Wenig Konkretes über “die Zukunft, die wir wollen” von Jule Reimer, Deutschlandfunk,
em: Tagesschau.de (03.07.2012). Disponível em: <http://www.tagesschau.de/ausland/rio206.html>. Acesso
em: 03 jul. 2012.
110
El futuro que queremos. Documento final de la Conferencia, 19 de junio de 2012. Disponível em: <http://www.
uncsd2012.org/content/documents/778futurewewant_spanish.pdf>. Um pouco estranho parece o fato
de que a declaração chave The Future We Want (O futuro que queremos) no site oficial da Rio+20 (www.
uncsd2012.org) foi somente publicado em árabe, chinês, inglês, francês, russo e espanhol. Disponível em:
<http://sustainabledevelopment.un.org/index.php?menu=1481>.
108
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da União. E a UE é o principal parceiro comercial do Brasil, com um total de
22,2% (vinte e dois vírgula dois por cento).
O governo brasileiro tem ciência de sua responsabilidade
pelos recursos hídricos. A base da legislação no Brasil é a Lei n. 9.433,
de 8 de janeiro de 1997, que institui a Política Nacional de Recursos
Hídricos e cria o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos
Hídricos111. Antecedeu essa lei a definição das reservas hídricas como
“bem de domínio público”, no capítulo II - Da União, artigo. 20, da
Constituição de 1988. Uma disposição igual ou semelhante não existe
no contrato de Lisboa ou na Lei Fundamental da República Federal da
Alemanha. Na lei de água brasileira de 1997 consta, portanto, logo no
início no título I - Da Política Nacional de Recursos Hídricos - capítulo I,
dos Fundamentos nos artigos:
Art. 1º - A Política Nacional de Recursos Hídricos baseia-se nos
seguintes fundamentos:
I - a água é um bem de domínio público;
II - a água é um recurso natural limitado, dotado de valor
econômico;
III - em situações de escassez, o uso prioritário dos recursos
hídricos é o consumo humano e a dessedentação de animais,
Art. 2º - I - assegurar à atual e às futuras gerações a necessária
disponibilidade de água, em padrões de qualidade adequados
aos respectivos usos [...].
A norma da UE acima já citada (Diretiva-Quadro Água 2000/60/
CE) tem metas semelhantes:
A água não é um produto comercial como outro qualquer, mas
um patrimônio que deve ser protegido, defendido e tratado
como tal.
Na Alemanha, a legislação sobre a gestão da água de 2009 trata
desse item em outra redação considerando as definições da UE. Por isso,
consta no capítulo 1, no § 4º, sobre “Propriedade de água, Restrições da
propriedade de terras” no item (2): “Águas correntes na superfície assim
111
Lei n. 9.433, de 8 de janeiro de 1997. Institui a Política Nacional de Recursos Hídricos, cria o Sistema Nacional
de Gerenciamento de Recursos Hídricos, regulamenta o inciso XIX do art. 21 da Constituição Federal, e altera
o art. 1º da Lei n. 8.001, de 13 de março de 1990, que modificou a Lei n. 7.990, de 28 de dezembro de 1989.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9433.htm>. Acesso em: 05 jul. 2012.
Revista do CEJ - n. 5, p. 95-119 - nov. 2015
109
A União Europeia e o Brasil: recursos hídricos na política e legislação ambiental
como águas subterrâneas não estão sujeitas a propriedade privada”. Além
disso, consta no capítulo 2, na seção 1, § 6º, sobre os princípios gerais da
gestão de águas:
1. As águas deverão ser manejadas de forma sustentável
especialmente com o objetivo de [...], 3. Usá-las para o bem de
todos e conforme os interesses de cada um.
Assim, a água como bem de todos tem um papel de destaque
na Constituição e na legislação no Brasil, na UE e na Alemanha. Somente
a colocação em prática dessas prioridades foi realizada com maior
consequência na UE112.
Todavia, há também no Brasil sinais positivos que partem do
governo federal. Isso ficou patente em um levantamento atual sobre a
qualidade dos recursos hídricos no Brasil de 2012, publicado no âmbito
de um amplo estudo da Agência Nacional de Águas criada no âmbito de
uma nova legislação em 2000113. Na introdução, ficou claro que os dois
grandes desafios do Brasil mencionados no setor do abastecimento de
água estão sendo endereçados114. O estudo pragmático propriamente
dito já impressiona pela grande quantidade de detalhes em um país
de dimensões continentais com mais do dobro do tamanho da UE e
aproximadamente 25 vezes o tamanho da Alemanha.
Num extenso resumo, é citado em primeiro lugar o problema,
até o momento não resolvido, do saneamento básico e do tratamento de
esgotos:
Atualmente, os esgotos domésticos representam a principal
pressão sobre os recursos hídricos do País, em função da falta
de rede de coleta e tratamento ou do tratamento ineficiente
dos esgotos coletados. O resultado disso é o lançamento
de cargas orgânicas domésticas remanescentes nos corpos
hídricos, principalmente nas proximidades dos aglomerados
112
Gesetz zur Ordnung des Wasserhaushalts (Wasserhaushaltsgesetz - WHG). Data de edição: 31/07/2009, última
alteração artigo 5º, inciso 9, da Lei de 24 de fevereiro de 2012. Disponível em: <http://www.gesetze-iminternet.de/bundesrecht/whg_2009/gesamt.pdf>. Acesso em: 03 jul. 2012.
113
Agência Nacional de Águas (Brasil): Panorama da Qualidade das Águas Superficiais do Brasil 2012. Disponível
em:
<http://arquivos.ana.gov.br/imprensa/publicacoes/Panorama_Qualidade_Aguas_Superficiais_
BR_2012.pdf>. Acesso em 02 jul. 2012.
114
Todas as áreas problemáticas da ecologia no Brasil já são conhecidas durante décadas. Veja German,
Christiano: ‘Meio Ambiente’ als Problembereich der brasilianischen Innenpolitik”, in: Kohlhepp, G./ Schrader,
A. (Hrsg.), Ökologische Probleme in Lateinamerika, Tübingen 1987, pp. 279-292.
110
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urbanos, incorrendo na deterioração da qualidade da água
com consequências econômicas e sociais115.
No Brasil, há quatro etapas do tratamento de água: preliminar,
primário, secundário e terciário. Do volume total de esgotos tratados por
dia no Brasil, 8,5 milhões de m3, apenas 10% (dez por cento) passam por
tratamento terciário.
Carga orgânica remanescente – 2008
Um estudo comparável e também muito detalhado sobre a
gestão de águas na Alemanha Wasserwirtschaft in Deutschland, com
as respectivas referências ao direito conjunto da UE, foi publicado em
2010 pelo Ministério Alemão de Meio-Ambiente. O motivo para tal foi a
já mencionada nova lei alemã para a gestão dos recursos hídricos, que
pôde entrar em vigor no plano federal após a reforma do federalismo,
em 1º de março de 2010. Na primeira parte do estudo, é constatado que
as exigências mínimas descritas no capítulo 18, da Agenda 21, para um
abastecimento de água seguro (40 litros de água de consumo salubre por
habitante e por dia, abastecimento de 75% da população urbana com
instalações sanitárias, estabelecimento de padrões para as descargas de
esgotos municipais e industriais, nível mínimo da eliminação de resíduos)
já foram colocados em prática na Alemanha. Há 99% (noventa e nove por
cento) da população ligada à rede de abastecimento pública de água
de consumo e o percentual da população que tem acesso a sistemas de
esgoto é semelhante116.
Conclusões
Diante desse cenário, queremos focar especialmente na
água de consumo como bem necessário para a sobrevivência do
ser humano em nossa conclusão. Na Alemanha, por exemplo, as
concessionárias públicas só garantem a qualidade até o medidor na
entrada da residência. Pelas instalações domésticas e sua aplicabilidade
em relação à salubridade e a qualidade técnica adequada para o
115
Agência Nacional de Águas (Brasil): Panorama da Qualidade das Águas Superficiais do BRASIL 2012, pp. 206208.
116
Umweltbundesamt: “Wasserwirtschaft in Deutschland”, 1ª parte: “Grundlagen” e 2ª parte: “Gewässergüte”,
Situação: julho de 2010. Disponível em: <http://www.bmu.de/binnengewaesser/downloads/doc/46635.
php>. Acesso em: 04 jul. 2012.
Revista do CEJ - n. 5, p. 95-119 - nov. 2015
111
A União Europeia e o Brasil: recursos hídricos na política e legislação ambiental
transporte de água de consumo respondem os proprietários da casa
e dos apartamentos. Em apartamentos locados, para garantir a saúde
pública, não são mais permitidas, por exemplo, tubulações de chumbo.
Os antigos tubos precisam ser substituídos por novas tubulações de
materiais certificados117. Para os proprietários, essas modernizações
são muito caras. No caso do Brasil, isso significaria que, em uma data
remota, quando a água de consumo de qualidade potável passar pelas
tubulações, também as respectivas medidas construtivas precisarão
ser cumpridas para que os enormes gastos no tratamento da água
façam sentido.
Outra área problemática não solucionada é, no Brasil, o uso
tradicional da água como mercadoria para fins comerciais ou também
políticos. Assim consta na legislação brasileira que “a água é um
recurso natural limitado, dotado de valor econômico”, mas não consta
explicitamente como nas leis da UE “a água não é um produto comercial
como outro qualquer, mas um patrimônio que deve ser protegido,
defendido e tratado como tal”. Por este motivo, as mídias brasileiras e os
ambientalistas criticam, há décadas, o afastamento desse valioso recurso
de sua finalidade, deixando de ser um bem comum.
Assim, segundo a Defensoria da Água, grupos multinacionais
já buscaram informações sobre locais adequados para a retirada de
água no aquífero transfronteiriço do Guarani e adquiriram terrenos
nessas áreas. Foi criada uma ONG pela Conferência Nacional dos
Bispos do Brasil, no ano de 2004, no âmbito da Campanha da
Fraternidade de 2004, que tinha como tema principal “Fraternidade e
Água”. A defensoria advertiu sobre a possibilidade de que empresas
multinacionais possam adquirir conhecimentos sobre o aquífero do
Guarani para usá-lo no comércio privado. Uma privatização da água
poderia acarretar o aumento do preço. O “ouro azul”, de fato, não
seria mais um bem público118. Em um estudo de 2008, a defensoria
ainda alertou para o fato de que 70% (setenta por cento) da água no
Brasil é imprópria para o consumo humano. As principais causas da
contaminação seriam atribuídas principalmente ao agronegócio e à
117
Umweltbundesamt: Ratgeber Gesundheitliche Aspekte der Trinkwasser-Installation (Situação: junho de
2007). Disponível em: <http://www.umweltdaten.de/publikationen/fpdf-l/3058.pdf>. Acesso em: 05 jul.
2012.
118
Pößneck, Janine: Das blaue Gold des Guarani-Aquifer, em: Focus Brasilien, Analysen & Kommentare, KonradAdenauer-Stiftung, janeiro de 2012, p. 2, a.a.O.
112
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atividade industrial. Além disso, existiria uma falta generalizada de
controle e de fiscalização119.
O uso da água como mercadoria comercial política para a
compra de votos também tem uma longa tradição, por exemplo, no
Nordeste do Brasil, onde a população sofre recorrentes períodos de seca.
Em um ano de eleições como 2012, especialmente quando se trata de
eleições municipais, onde estes casos ocorrem com maior frequência, a
organização não governamental Articulação para o Semiárido (ASA) exige
que os ministérios criem um disque denúncia para apontar essas práticas e
que o Supremo Tribunal Eleitoral estabeleça uma campanha: “Não troque
seu voto por água. Água é direito seu”120. A declaração ainda afirma:
O Brasil tem o dever ético de não consentir que as medidas
de emergência e socorro às pessoas se transformem em
instrumentos de manipulação e desvirtuação das eleições.
A preocupação se dirige ao uso político do carro-pipa, entre
outras, uma prática comum durante as ações de mitigação dos efeitos da
estiagem121.
Outro agente que tem pouco interesse em ampliar o
abastecimento da água de consumo para a sociedade é provavelmente
o lobbyy da água mineral, que tem bastante poder e que há décadas
registra altos lucros. Afinal, o ser humano deve consumir em média 2,5
(dois e meio) a 3 (três) litros de água limpa diariamente. Conforme um
estudo do Departamento Nacional de Produção Mineral – DNPM, existiam
987 (novecentos e oitenta e sete) concessões de lavra de água mineral
ao fim de 2010 em todo o país. A produção brasileira de água mineral
engarrafada pode ter chegado até 11,6 (onze vírgula seis) bilhões de litros
em 2011, segundo informações do setor privado de águas minerais122.
119
Jornal do Brasil-JB Online: Estudo mostra que poluição tomou 70% das águas de rios do Brasil, 24.10.2011
e 06.07.2012. Disponível em: <http://www.jb.com.br/ciencia-e-tecnologia/noticias/2008/03/22/estudomostra-que-poluicao-tomou-70-das-aguas-de-rios-do-brasil/>. Acesso em: 06 jul. 2012.
120
Nas eleições semi-competitivas durante o governo militar, a troca “voto por água” teria sido classificado
como “voto comprado”. Veja German, Christiano: Brasilien. Autoritarismus und Wahlen, München/Köln/
London, 1983, p. 227.
121
Ações para barrar o uso eleitoral da água, in: Jornal do Commercio (Recife)-JC Online, 23.05.2012. Disponível
em: <http://jconline.ne10.uol.com.br/canal/cidades/regional/noticia/2012/05/23/acoes-para-barrar-o-usoeleitoral-da-agua-42998.php>. Acesso em: 06 jul. 2012 e A Articulação do Semiárido (ASA): declaração sobre
o atual momento da Seca no Semiárido. Disponível em: <http://www.moc.org.br/download/24-05-2012_
Documento%20ASA%20OFICIAL.pdf>. Acesso em: 06 jul. 2012.
122
Kulaif, Yara: Água Mineral, DNPM/SP – Sumário Mineral 2011. Disponível em: <https://sistemas.dnpm.gov.br/
publicacao/mostra_imagem.asp?IDBancoArquivoArquivo=7113>. Acesso em 06 jul. 2012. Com referência à
Revista do CEJ - n. 5, p. 95-119 - nov. 2015
113
A União Europeia e o Brasil: recursos hídricos na política e legislação ambiental
Com o crescimento econômico, a indústria de água mineral no Brasil conta
com taxas de crescimento ainda maiores – assim como o governo conta
com o arrecadamento de impostos.
Em setembro de 2005, o regulamento técnico para água mineral
de 2000 foi atualizado. Foram consideradas a necessidade de constante
aperfeiçoamento das ações de controle sanitário na área de alimentos e
a necessidade de atualização da legislação sanitária de alimentos, com
base no enfoque da avaliação de risco e da prevenção do dano à saúde da
população123. Nesta, são estabelecidas maiores exigências de qualidade
para a água mineral.
Como já mencionado, por motivos de salubridade, deve-se dar
preferência à água mineral e não à água encanada no Brasil. Na Alemanha,
a situação é diferente. A renomada Fundação Stiftung Warentest testou em
junho de 2012 a qualidade de 29 marcas de água mineral, que oferecem
água mineral sem gás. No resultado, todos os produtos apresentaram
problemas. Quase dois terços dos produtos continham poucos minerais,
além disso, mais de uma em três garrafas apresentavam contaminações
microbiológicas, problemas na identificação ou pequenos defeitos no
gosto. Os pesquisadores chegaram à conclusão de que a água potável da
torneira na Alemanha é mais acessível, muitas vezes de melhor qualidade,
bem mais barata e com todas as etapas do tratamento da água incluídas no
preço (0,30 centavos de um Euro por litro, em Colônia)124 (correspondendo
à aprox. 0,70 centavos de um Real por litro). Na conclusão, já não há mais
motivo para beber água mineral, uma vez que, com a alimentação, a
quantidade de minerais ingerida já é suficiente.
Esse sucesso, quase considerado pela população como coisa
normal em um estado de direito democrático e social, no qual o recurso
da água potável tornou-se um bem comum, corresponde à inicialmente
mencionada e hoje em dia muitas vezes negligenciada valorização da
água nos mitos e nas convicções das culturas antigas.
Revista Água & Vida ABINAM – ano 12, n. 67, fev/mar 2011, São Paulo.
123
Brasil. Ministério da Saúde. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Resolução RDC n. 54/2000. Diário Oficial,
15 de junho de 2000 e Brasil. Ministério da Saúde. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Resolução RDC
n. 275 de 22 de setembro de 2005. Disponível em: <http://www.cetesb.sp.gov.br/solo/agua_sub/arquivos/
RDC_275_2005.pdf>. Acesso em: 06 jul. 2012.
124
Stiftung Warentest: Mineralwasser. Disponível em: <http://www.test.de/thema/mineralwasser/>. Acesso em:
06 jul. 2012. Im Supermarkt oder beim Discounter in Deutschland zahlt man für Mineralwasser ab ca. 13 Cent pro
Liter, für klassische Marken sogar meist mehr als 50 Cent.
114
Revista do CEJ - n. 5, p. 95-119 - nov. 2015
Christiano German | Alberto Nogueira Virgínio
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Revista do CEJ - n. 5, p. 95-119 - nov. 2015
119
As “histórias patrocinadas do facebook”
k
– os limites da utilização de dados
pessoais no marketing on-line
Demócrito Reinaldo Filho125
O facebookk é o serviço de rede social mais utilizado em todo o
mundo. Fundado em fevereiro de 2004, é operado pela companhia privada
Facebook Inc., com sede na Califórnia (EUA). Em 04 de outubro de 2012,
atingiu a marca de 1 bilhão de usuários ativos(1). Em agosto deste ano, a
companhia divulgou que uma em cada três pessoas nos Estados Unidos
visita o site todos os dias(2). No Brasil, as estatísticas também revelam um
crescimento exponencial. No final de 2011, tornou-se a maior rede social
do país, ultrapasando o orkut (3). Em julho deste ano, alcançou a marca de
76 de milhões de cadastrados(4), o que coloca o Brasil como o segundo
maior mercado em número de usuários da rede social, só perdendo para
os Estados Unidos.
Com números impressionantes como esses, que demonstram
o crescimento acentuado através da adesão constante de novos usuários,
não seria difícil perceber que o facebookk tornou-se também um grande
negócio para quem quer anunciar produtos e marcas. Aliás, o facebook
é um serviço “gratuito” e gera receita somente através da venda de
publicidade, o que inclui banners no site, anúncios e, mais recentemente,
as controvertidas “histórias patrocinadas” (ou, em inglês, sponsored stories).
As “histórias patrocinadas” são um modelo de publicidade
diferente criado no interior do site do facebook. Ao contrário dos anúncios,
elas são divulgadas em forma de “destaques”(5) no feed
d de notícias(6) e
mostram as interações das pessoas. Quando um usuário interage com
uma página, aplicativo ou evento, uma “história” é criada para que seus
amigos vejam no feed
d de notícias. Os anunciantes pagam para exibir a
atividade dos usuários do site na forma de histórias patrocinadas, em
razão da maior probabilidade de influenciar os demais a adquirir o serviço
ou comprar o produto patrocinado. Como reconhece o próprio facebook,
k
“as pessoas são influenciadas pelos gostos e conexões de seus amigos”,
125
Juiz de Direito da 32ª Vara do Recife-PE.
Revista do CEJ - n. 5, p. 121-129 - nov. 2015
121
As “histórias patrocinadas do facebook” – os limites da utilização de dados pessoais no marketing on-line
daí que incentiva potenciais anunciantes em seu site com o seguinte
exemplo: “quando alguém curte sua página, significa que a pessoa está
interessada em se conectar com você e isso pode ser interpretado como
um endosso de sua marca ou serviço”(7).
Esse novo arquétipo publicitário, possibilitado a partir do
modo como as interações ocorrem na rede social, tem no entanto gerado
bastante polêmica.
Na verdade, a própria arquitetura dos anúncios do facebookk em si
já é bastante polêmica. A publicidade on-line emprega métodos e softwares
especializados em mineração de dados (data mining), que permitem aos
anunciantes definir o público-alvo de seus anúncios e quais informações
ele visualiza. O facebookk coleta e organiza informações sensíveis de seus
usuários, como, por exemplo, informações demográficas, geográficas e
comportamentais. Além dos dados cadastrais de cada um dos seus usuários
(o que inclui nome, endereço de e-mail, data de nascimento, gênero e,
em alguns casos, até mesmo o número de telefone), o facebookk também
dispõe de informações que eles compartilham no site, quando executam
qualquer ação, tais como publicar uma atualização de status, carregar uma
foto, marcar alguém em uma foto, comentar uma atividade de um amigo,
curtir uma determinada página, adicionar local à publicação ou iniciar
um relacionamento. Todas as informações compartilhadas, incluindo os
comentários, curtidas, fotos, vídeos, nomes dos usuários e conteúdos dos
posts ficam armazenados no banco de dados do facebook. Além disso,
outras informações adicionais são coletadas a partir do computador,
telefone celular ou outros dispositivos que os usuários utilizam para se
conectar ao site, como, por exemplo, endereço de IP, provedor de Internet,
localização, o tipo de navegador e páginas visitadas. Assim, o facebook
dispõe de tecnologia informacional para possibilitar a oferta de anúncios
personalizados, em razão da imensa quantidade de dados pessoais que
coleta de seus usuários. Ao contratar um anúncio, o anunciante pode,
por exemplo, escolher um público formado apenas por mulheres, de
determinada idade, que moram em um local específico e que tenham
predileção por algum tipo de comida ou vestimenta. Se os usuários do
facebookk indicam algum tópico específico de interesse, ao curtirem
uma página ou comentarem alguma atividade, incluindo temas ligados
à religião, saúde ou preferência política, o anunciante também pode
escolher alcançar aqueles que se relacionam com o assunto específico.
122
Revista do CEJ - n. 5, p. 121-129 - nov. 2015
Demócrito Reinaldo Filho
Os anúncios publicitários no facebookk são por vezes, vinculados
a ações sociais dos usuários. Por exemplo, um anúncio de um restaurante
pode ser vinculado à notícia de que um determinado usuário curtiu a
página desse restaurante no facebook. Mas esse tipo de histórico de
notícias (de curtidas) não é exibido no feed
d de notícias, e sim vinculado ao
anúncio (na parte superior direita do site)(8).
Muito mais complicada é a modalidade de publicidade na forma
de “histórias patrocinadas”, pois parece utilizar a imagem das pessoas
(usuários do site) de forma indevida. A história patrocinada aparece como
publicação no feed
d de notícias de uma forma que não é possível distinguila de uma publicidade comercial. Utiliza a foto do perfil do usuário, seu
nome e uma declaração de que curtiu uma determinada página, associada
a uma determinada marca comercial ou produto(9).
Esse tipo de publicidade é bem mais vantajoso para o facebook
e seus anunciantes, pois sua veiculação através do feed
d de notícias permite
uma maior probabilidade de que a rede de contatos (amigos) do usuário
que fez a interação com a página a vejam. Anúncios fixos postados do lado
direito da página do site quase nunca são lidos pelos usuários. Ademais,
uma declaração de que um amigo gosta de uma determinada marca ou
produto é capaz de significar para a pessoa alvo desse tipo de publicidade
uma declaração de confiança, uma espécie de chancela ou endosso sobre
tal produto ou serviço.
O problema é que utilizar o nome e a imagem das pessoas
com fins comerciais sem remunerá-las por isso parece não se coadunar
com normas e princípios que dão proteção a atributos da personalidade
humana. Além disso, é preciso que se obtenha consentimento expresso
antes de tal utilização. No caso do facebook,
k é bem verdade que sua nova
política de uso de dados pessoais informa que são utilizados em anúncios
(incluindo fotos do perfil)(10), mas quando a forma de publicidade intitulada
de “história patrocinada” tornou-se funcional, não se renovou aos usuários
antigos um pedido expresso de consentimento para tal finalidade. Assim,
se um usuário aderiu ao facebookk antes da implantação da função da
“história patrocinada”, ele não deu permissão para que seus dados sejam
usados em publicidade da forma que hoje é feita. A empresa que opera
o facebook,
k para poder utilizar a foto do perfil e o nome da pessoa,
indicando para toda a sua rede de amigos que ela “curtiu” determinada
Revista do CEJ - n. 5, p. 121-129 - nov. 2015
123
As “histórias patrocinadas do facebook” – os limites da utilização de dados pessoais no marketing on-line
marca, produto ou fabricante, teria que buscar novo consentimento aos
usuários, informando-lhes adequadamente sobre as modificações na sua
publicidade. Nada disso parece ter sido feito.
Para piorar, as configurações de privacidade do site só se
aplicam aos anúncios sociais, mas não às histórias patrocinadas. Em outras
palavras, se um determinado usuário não quiser que seu histórico de
notícias (curtidas e outras ações) seja vinculado a anúncios publicitários,
pode desativar essa função(11). Já em relação às “histórias patrocinadas”
não é possível fazer o mesmo(12)..
Ainda levanta preocupações adicionais o fato de que o facebook
tem uma grande quantidade de usuários que são crianças e adolescentes.
Como se sabe, o site permite que qualquer pessoa que declare ter pelo
menos 13 anos de idade possa se tornar usuário (13).
Mas na verdade, o universo de usuários do facebookk parece
incorporar crianças até mesmo abaixo desse limite etário. Com base em
dados de maio de 2011 do ConsumersReports.org, existiam 7,5 milhões
de crianças menores de 13 anos com contas no facebook,
k violando os
termos de serviço do próprio site(14). Ou seja, um considerável percentual
de usuários do fabebookk é formado de crianças e adolescentes, que não
podem por si próprios dar autorizações válidas para o uso de seus dados
pessoais. Seria necessário que o facebookk tivesse como dar conhecimento
aos pais e representantes legais dessa categoria de usuários a respeito de
como seus dados são utilizados no site, bem como requisitar diretamente
deles (pais) autorização para o uso do nome e imagem de seus filhos em
campanhas publicitárias.
Por conta disso tudo, o facebookk foi acionado na Califórnia,
numa corte distrital(15). Cinco pessoas ingressaram com a ação em 2011(16),
contestando a legalidade da publicidade do site na forma de “histórias
patrocinadas”. Antes que o processo tivesse algum pronunciamento
judicial sobre o mérito da demanda, as partes resolveram extinguilo, mediante acordo em que o facebookk se comprometeu a pagar a
quantia de 20 milhões de dólares(17). O facebookk também aceitou alterar
a sua “Declaração de Direitos e Responsabilidades” (também chamada
de termos de uso)(18), para dar aos usuários um panorama mais claro de
como seus nomes, fotos e gostos (expressados pela função “curtir”) são
utilizados em conexão com as “histórias patrocinadas”. A despeito da
124
Revista do CEJ - n. 5, p. 121-129 - nov. 2015
Demócrito Reinaldo Filho
contrariedade manifestada por alguns grupos de defesa de direitos de
menores, o acordo foi homologado judicialmente.
No dia 29 de setembro de 2013, a chefe de assuntos ligados
à privacidade do facebook, Erin Egan, publicou uma mensagem no site,
comunicando que havia sido feita uma revisão em dois importantes
documentos, a “Declaração de Direitos e Responsabilidades” e a
“Política de Uso de Dados”. Segundo ela, a revisão foi necessária para
dar melhor explicação sobre como o nome do usuário, sua foto do perfil
e outros dados pessoais podem ser usados em conexão com anúncios
ou conteúdo comercial, para ficar claro que “está dando permissão
ao facebookk para esse uso”(19). De logo, surgiram pressões para que o
facebookk desista das alterações propostas. Várias entidades de proteção
da privacidade, lideradas pela EPIC- Eletronic PrivacyInformation Center,
enviaram uma carta(20) à FTC-Federal Trade Comission - que vem a ser uma
espécie de agência reguladora do governo dos EUA encarregada da
proteção de direitos dos consumidores. Na carta, os grupos de defesa
da privacidade digital argumentam que as alterações irão possibilitar
que o facebookk utilize as fotos e nomes de seus usuários para fins
comerciais, sem que eles, quando se registraram no site, tivessem dado
consentimento para tal. Argumenta-se também que as alterações são
especialmente perniciosas para os menores de idade, pois a nova
redação do documento propõe a seguinte representação fictícia:
Se você tiver menos de 18 (dezoito) anos, ou tiver menos
de qualquer idade aplicável à maioridade, você declara que
pelo menos um de seus pais ou responsáveis legais também
concordou com os termos desta seção (e com o uso do seu
nome, imagem do perfil, conteúdo e informações) em seu
nome.(21).
Através dessa enunciação, o facebookk considera ter obtido
uma autorização parental com o simples ingresso do menor no site, mas
se trata de representação meramente fictícia (e despida de valor), pois
não se exige um consentimento expresso dos pais. Para utilizar dados de
menores, o facebookk teria que ter se utilizado de uma ferramenta para que
os pedidos de registro ficassem pendentes, até que os pais manifestassem
sua concordância com a política de uso.
O envolvimento de crianças e adolescentes é realmente um
elemento fundamental quanto se trata de examinar a legalidade da
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125
As “histórias patrocinadas do facebook” – os limites da utilização de dados pessoais no marketing on-line
publicidade na forma de “histórias patrocinadas” do facebook. Existem
muitas páginas e comunidades fazendo publicidade ou apologia do
consumo de cigarros e bebidas, e outras com orientação política,
ideológica e sexual. Permitir que menores de idade possam não só ter
acesso a esse tipo de material informacional, mas também vincular sua
imagem a determinados conteúdos inadequados viola as leis e princípios
de proteção a esse grupo de pessoas mais vulnerável.
Nos EUA, a FTC
C já anunciou que vai abrir investigação contra o
facebook . No Canadá, também foi proposta uma ação coletiva contra o
facebook,
k por uma mulher que se sentiu lesada ao ver sua imagem e nome
sendo utilizados para fins comerciais sem seu consentimento específico(23)
.Não é difícil imaginar que essa questão da legalidade das “histórias
patrocinadas” do facebookk em breve assome aos tribunais brasileiros.
(22)
126
Revista do CEJ - n. 5, p. 121-129 - nov. 2015
Demócrito Reinaldo Filho
Referências
(1) Facebook mostra o raio-x de 1 bilhão de usuários. Folha de São Paulo,
São Paulo, 04 out. 2012. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/
tec/2012/10/1163808-facebook-mostra-o-raio-x-de-1-bilhao-de-usuarios.
shtml>. Acesso em: 4 out. 2012.
(2) Facebook divulga número de usuários diários dos EUA e Reino
Unido. Terra, 13 ago. 2013. Disponível em: <http://m.terra.com.br/
noticia?n=625c7a5568870410VgnCLD2000000dc6eb0aRCRD>. Acesso em: 4
out. 2013.
(3) Facebook passa Orkut e vira maior rede social do Brasil, diz pesquisa.
Globo.com, 17 jan. 2012. Disponível em: <http://g1.globo.com/tecnologia/
noticia/2012/01/facebook-passa-orkut-e-vira-maior-rede-social-do-brasil-dizpesquisa.html>. Acesso em: 4 out. 2013.
(4) SBARAI, Rafael. Veja Vida Digital, 30 jul. 2013. Facebook alcança marca de 76
milhões de usuários no Brasil. Disponível em: <http://veja.abril.com.br/noticia/
vida-digital/facebook-alcanca-marca-de-76-milhoes-de-usuarios-no-brasil>.
Acesso em: 4 out. 2013.
(5) Facebook libera publicidade nos feeds e chama de “destaques”. Terra,
12 jan. 2012. Disponível em: <http://tecnologia.terra.com.br/negocios-e-ti/
facebook-libera-publicidade-nos-feeds-e-chama-de-quotdestaquesquot,2
668fe32cdbda310VgnCLD200000bbcceb0aRCRD.html>. Acesso em: 19 abr.
2012.
(6) O Feed de notícias é a coluna central da página inicial do usuário do Facebook.
É uma lista em constante atualização de publicações das outras pessoas e
páginas que um determinado usuário segue no Facebook. As publicações no
Feed de notícias incluem atualizações de status, fotos, vídeos, links, atividade de
aplicativos e opções Curtir.
(7) Informações contidas na “Central de Ajuda” do site do Facebook,
k Disponível
em: <https://www.facebook.com/help/294671953976994>.
(8) Ver foto com anúncio em destaque, indicando onde é posicionado
no site do Facebook. Disponível em: <http://fotos.sapo.pt/sitiocomvista/
fotos/?uid=Hn8g45hYy4EfGdoTdRUo>.
(9) Veja aqui foto que realça a diferença de concepção entre o anúncio e a
“história patrocinada”, destacando que esta aparece no centro (Feed
d de notícias)
do site, enquanto aquele se situa no lado direito. Disponível em: <http://www.
nuvemlab.com.br/blog/historias-patrocinadas-no-facebook/>.
Revista do CEJ - n. 5, p. 121-129 - nov. 2015
127
As “histórias patrocinadas do facebook” – os limites da utilização de dados pessoais no marketing on-line
(10) Na parte que presta esclarecimentos sobre “Como funcionam os anúncios
e as histórias patrocinadas”. Disponível em: <https://www.facebook.com/about/
privacy/advertising>.
(11) Para tanto, basta utilizar a configuração de Editar anúncios sociais.
(12) Isso está expressamente dito, na política de uso de dados pessoais do
k na parte que informa sobre “Como funcionam os anúncios e as Histórias
Facebook,
patrocinadas”, da seguinte maneira: “Sua configuração Mostrar minhas ações
ç
sociais em Anúncios do Facebookk controla somente os anúncios com contexto
social. Ela não controla Histórias patrocinadas
p
, anúncios nem informações sobre
os serviços e recursos do Facebookk ou outros conteúdos do Facebook”.
(13) “Ferramentas para Pais e Educadores”. Disponível em: <https://www.
facebook.com/help/parents>.
(14) Five million Facebook users are 10 or younger. Disponível em: <http://www.
consumerreports.org/cro/news/2011/05/five-million-facebook-users-are-10-oryounger/index.htm>. Acesso em 10 mai. 2011.
(15) U.S. District Court, Northern District of California.
(16) Fraley, et al. v. Facebook, Inc., et al., Case No. CV-11-01726 RS.
(17) MINERS, Zach. Judge approves $20 million Facebook fund to settle
advertising suit. PCWorld, 26 ago. 2013. Disponível em: <http://www.pcworld.
com/article/2047520/judge-approves-20-million-facebook-fund-to-settleadvertising-suit.html>. Acesso em: 4 out. 2013.
(18) Ver cópia da Declaração de Direitos e Responsabilidade do Facebook.
Disponível em: <https://www.facebook.com/legal/terms>.
(19) Ver o inteiro teor do texto divulgado a respeito da revisão das políticas
de uso de dados pessoais e declaração de direitos e responsabilidade.
Disponível em: <https://www.facebook.com/notes/facebook-site-governance/
atualiza%C3%A7%C3%B5es-propostas-para-os-documentos-de-governan%C3
%A7a/10153197317185301>.
(20) Ver o texto da carta. Disponível em: <http://epic.org/privacy/ftc/PrivacyGrps-FTC-tr-9-13.pdf>.
(21) No original, em inglês: “If you are under the age of eighteen (18), or
under any other applicable age of majority, you represent that at least one of
your parents or legal guardians has also agreed to the terms of this section
(and the use of your name, profile picture, content, and information) on your
behalf.”
128
Revista do CEJ - n. 5, p. 121-129 - nov. 2015
Demócrito Reinaldo Filho
(22) GOEL, Vindu; WYATT, Edward. Facebook Privacy Change Is Subject of F.T.C.
Inquiry, The New York Times, 11 set. 2013. Disponível em: <http://www.nytimes.
com/2013/09/12/technology/personaltech/ftc-looking-into-facebook-privacypolicy.html?_r=1&>. Acesso em: 4 out. 2013.
(23) B.C. woman sues Facebook for using her photo. CBC News, 12 abr. 2012.
Disponível em: <http://www.cbc.ca/news/canada/british-columbia/b-c-womansues-facebook-for-using-her-photo-1.1192457>. Acesso em: 4 out. 2013.
Revista do CEJ - n. 5, p. 121-129 - nov. 2015
129
A força dos precedentes126
Frederico Ricardo de Almeida Neves127
As lacunas e o envelhecimento das normas, as contradições
entre princípios e os conceitos jurídicos indeterminados, ao tempo em
que tornam exangue o positivismo clássico, justificam, em larga medida,
a atividade criativa do direito, pelo intérprete-aplicador da norma, no ato
de julgar. Tal realidade, se por um lado fortalece a atividade jurisdicional,
pode, por outro ângulo de visada, mutilar a previsibilidade e conduzir a
uma debilitação do grau de segurança do direito. Importa reter, para além
disso, que a tendência hodierna de se valorizar a celeridade processual
não deve levar a subalternizar, como por vezes entre nós se verifica, a
imprescindível maturação da decisão judicial.
Assentes essas premissas, há que se formular a pergunta
essencial: Nesse cenário, qual o instrumento capaz de assegurar uma
solução judicial que seja, a um só tempo, rápida e segura? Estou certo
de que o único caminho suscetível de garantir níveis aceitáveis de
previsibilidade e segurança das decisões judiciais é o do fortalecimento
do Direito Jurisprudencial. A edição de enunciados vai ao encontro desse
anseio, porque eles refletem o pensamento do tribunal sobre determinadas
questões já reiteradas vezes dilucidadas, permitindo que se imprima, bem
se percebe, maior rapidez às decisões judiciais, sem descurar a garantia da
previsibilidade inerente à segurança dos julgados.
O projeto de novo código de processo civil em tramitação no
Congresso Nacional, atento à importância do binômio rapidez/segurança,
empresta especial relevo à força dos precedentes, ao estabelecer que
os tribunais devam uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável,
editando os enunciados correspondentes à súmula da jurisprudência
dominante, na forma e segundo as condições fixadas no regimento
interno (artigo 508).
126
Resumo do pronunciamento feito pelo autor por ocasião do VI Encontro de Saúde Suplementar, realizado na
Cidade de Gravatá – PE, no dia 05.10.2013.
127
Desembargador Presidente do Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco no biênio 2014/2016.
Revista do CEJ - n. 5, p. 131-133 - nov. 2015
131
A força dos precedentes
Mas mais: também está expresso no texto proposto que,
para dar efetividade à aludida regra, e aos princípios da legalidade,
da segurança jurídica, da duração razoável do processo, da proteção
da confiança e da isonomia, os juízes e tribunais deverão seguir:
(i) as súmulas vinculantes, as decisões proferidas em assunção de
competência, em incidente de resolução de demandas repetitivas e
em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos; (ii)
os enunciados das súmulas do STF em matéria constitucional, do STJ
em matéria infraconstitucional e dos tribunais aos quais estiverem
vinculados.
Acresce notar que o projeto ainda deixa explicitado que, não
havendo enunciado de súmula da jurisprudência dominante, os juízes e
tribunais seguirão os precedentes do plenário do tribunal ou do órgão
especial respectivo, onde houver, e os dos órgãos fracionários superiores,
nesta ordem, sendo ainda interessante sublinhar a possibilidade de o órgão
jurisdicional distinguir o caso sob julgamento, mediante argumentação
racional e justificativa convincente, de situação fática distinta ou questão
jurídica não examinada, caso em que imporá outra solução jurídica.
Os enunciados, se bem se vir, com a novel redação, deixarão de
ser instrumentos meramente persuasivos - que servem de base apenas
para estimular novos julgamentos idênticos sobre a mesma matéria.
A proposta de novo código de processo civil, ao contrário, chamando a
intervir princípios de magnitude constitucional (tais como os da legalidade,
da segurança jurídica, da duração razoável do processo, da proteção da
confiança e da isonomia), empresta força imperativa aos preceitos que
versam sobre a uniformização e estabilização da jurisprudência, ao dispor
que os juízes e tribunais estarão compelidos a seguir, para além das
súmulas vinculantes, as decisões proferidas em assunção de competência,
em incidente de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de
recursos extraordinários e especiais repetitivos, bem assim os enunciados
das súmulas do STF em matéria constitucional, do STJ em matéria
infraconstitucional, e dos tribunais aos quais estiverem vinculados, na
falta daquel’outros.
Particularidade digna de registro é, outrossim, a que impõe aos
juízes e tribunais, na ausência do enunciado de súmula da jurisprudência
dominante, o respeito aos precedentes do plenário do tribunal ou do
132
Revista do CEJ - n. 5, p. 131-133 - nov. 2015
Frederico Ricardo de Almeida Neves
órgão especial respectivo, onde houver, e aos dos órgãos fracionários
superiores, nesta ordem.
Tudo isso permite aclarar um fator a ter presente no exercício
da função jurisdicional. A sociedade moderna não mais admite um
Judiciário moroso, atravancado, ineficiente, que não esteja devidamente
apetrechado para resolver os problemas levados a julgamento, de forma
tempestiva e segura. Urge que haja uma mudança de mentalidades, com a
simplificação dos meios, com vistas ao atendimento eficiente dos anseios
do cidadão, destinatário do serviço judicial.
Revista do CEJ - n. 5, p. 131-133 - nov. 2015
133
O ativismo judicial do Supremo
Tribunal Federal do Brasil nas questões
envolvendo segurança pública.
Possibilidade de atuação judicial em
função executiva
Gleydson Lima128
Sumário: Introdução. 1 Direito à segurança pública. 1.1
Estado social e constitucionalismo no Brasil. 1.2 O direito
à segurança pública. 1.2.1 A segurança pública enquanto
direito fundamental inscrito na Constituição. 1.3 Política de
segurança pública: formulação e execução. 1.4 Serviço de
segurança pública: efetividade versus ineficiência. 2 O dever
fundamental de prestar segurança pública. 2.1 Os direitos
prestacionais em Alexy. 2.2 O dever fundamental de prestar
segurança pública. 3 Atuação do poder judiciário no caso de
lesão aos direitos fundamentais por ineficiência. O ativismo
judicial. 3.1 A legitimidade democrática dos juízes para
efetivação dos direitos fundamentais. 3.2 Revisão do dogma
da separação de poderes. O controle judicial da inatividade
administrativa enquanto garantia do cumprimento dos
deveres positivos da administração. 3.3 Princípio da reserva
do possível versus princípio da proibição da proteção
deficiente: limite e parâmetro para atuação jurisdicional.
4 Controle judicial da política e do serviço de segurança
pública realizado pela Corte Constitucional do Brasil. 4.1
Controle da omissão ou ineficiência executiva pelo Supremo
Tribunal Federal do Brasil. 4.2 Comentários sobre decisões do
Supremo Tribunal Federal do Brasil. Conclusões. Referências.
Introdução
Com o presente trabalho, buscamos estudar a concretização do
direito fundamental à segurança pública, e assim evidenciar que, através
da preservação da ordem pública, podemos diminuir as desigualdades
sociais. Outrossim, trabalhamos a possibilidade de o Judiciário controlar a
128
Juiz de Direito na Comarca de Recife-PE, Mestre em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito da
Universidade de Lisboa e Professor licenciado de Processo Penal da Faculdade ASCES.
Revista do CEJ - n. 5, p. 135-164 - nov. 2015
135
O ativismo judicial do Supremo Tribunal Federal do Brasil nas questões envolvendo segurança pública.
Possibilidade de atuação judicial em função executiva
omissão ou ineficiência do Executivo (e aqui nos referimos à ação executiva
apenas, não havendo estudo sobre a omissão legislativa) na política e no
serviço de segurança.
A força normativa da Constituição associada ao princípio-valor
da dignidade da pessoa humana, vinculando os direitos fundamentais,
constituem o novo modelo de constitucionalismo, e, com ele, o tema
concretização da Constituição ganha força, tendo as funções estatais o
dever de promoverem os direitos fundamentais constitucionalmente
inscritos.
A segurança pública, enquanto direito fundamental, traz em
si tanto o significado de segurança jurídica, com a conjugação de ações
preventivas e repressivas para se preservar a liberdade dos cidadãos,
quanto a noção de segurança material, explicitada na efetiva proteção do
Estado contra toda e qualquer agressão praticada por particular contra
particular, coibindo-se a submissão de um cidadão por outro.
Nesta órbita de ideias, busca este breve ensaio, em seu
capítulo primeiro, expor a importância da segurança pública no texto
constitucional, presente tanto no preâmbulo constitucional quanto no
capítulo de direitos e garantias fundamentais, quando transparece seu
aspecto direito individual oponível contra o Estado. Trata também o
estudo do tema segurança pública enquanto direito social, com inscrição
em capítulo próprio e demonstração de que, mesmo sendo dever do
Estado, deve contar com a participação de todos que compõem o corpo
social.
Mas o enfoque será dado no caráter prestacional do direito à
segurança, demonstrando que, mesmo podendo gerar um direito público
subjetivo em casos esparsos, é o dever de prestar segurança que traz ao
Estado a responsabilidade de proteger os direitos, liberdades e garantias.
Trazemos no segundo capítulo tanto o enfoque dos deveres de proteção
no aspecto subjetivo exposto por Robert Alexy quanto a perspectiva
objetiva dos deveres de proteção, bem falada por Reis Novais.
A partir das considerações acima evidenciadas, seguimos para
a análise central do estudo, que é a legitimidade do Poder Judiciário para
concretizar o direito fundamental à segurança pública, com estudo do
princípio da separação dos poderes na ótica da democracia constitucional
136
Revista do CEJ - n. 5, p. 135-164- nov. 2015
Gleydson Lima
e divagação sobre o princípio da reserva do possível, enquanto limitador
da atuação jurisdicional, e o princípio da proibição da insuficiência,
enquanto parâmetro para esta atuação.
Em capítulo final, há análise da jurisprudência do Supremo
Tribunal Federal quando de sua atuação na proteção do direito à
segurança pública, analisando-se quando tal direito fora tratado
no seu aspecto de direito prestacional e quando fora analisado no
aspecto de direito social, demonstrando as incoerências na análise do
princípio da proibição do défice para a concessão do dever de proteção
e, mais raramente, do direito subjetivo público à segurança pública,
mas observando que a atuação da Corte Constitucional é proativa e
garante, por vezes, o que o Estado na sua função administrativa não
exerce por omissão deliberada.
A tônica da exposição é um estudo da Justiça Constitucional
com enfoque no tema segurança pública e, no âmbito desse movimento
de ideias, a presente proposta de estudo se individualiza por trazer
particularmente a possibilidade de controle das políticas de segurança
enquanto dever do Estado, demonstrando também que a segurança
pública, em casos mais raros, poderá gerar direito público subjetivo.
1 Direito à segurança pública
1.1 Estado social e constitucionalismo no Brasil
Robert Alexy129 expõe a figura dos direitos de proteção e, dentre
estes, chama direitos fundamentais sociais os direitos de proteção stricto
sensu, expondo que o Estado não deve apenas se abster em relação aos
particulares, mas ter posição ativa. Nessa seara, os particulares podem
pleitear ao Estado uma prestação positiva. No Brasil, assim como na
Constituição portuguesa e em geral nas Constituições da América
Latina, a opção constituinte foi por encartá-los no texto constitucional,
vinculando, assim, os poderes públicos (Executivo, Legislativo e Judiciário)
e emprestando a justiciabilidade a tais direitos.
Formalmente, enquanto direitos fundamentais sociais, temos
os previstos no Capítulo II do Título II, que são intitulados “Direitos Sociais”,
não se podendo conceber nem os Direitos previstos no Título VIII (Ordem
129
ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. 2 ed. São Paulo:
Malheiros, 2011, p. 499.
Revista do CEJ - n. 5, p. 135-164 - nov. 2015
137
O ativismo judicial do Supremo Tribunal Federal do Brasil nas questões envolvendo segurança pública.
Possibilidade de atuação judicial em função executiva
Social) enquanto direitos sociais fundamentais. Já ao se travar o critério
material do que seja direito fundamental social buscamos seu conceito
quando do parágrafo 2º do art. 5º, que assevera que “os direitos e garantias
expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime
e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a
República Federativa do Brasil seja parte”, conjugado com o art. 7º, caput,
t
da Constituição, expressando tais direitos “além de outros que visem a
melhoria de sua condição social”.
Concretizar os direitos sociais é tema bastante discutido tanto
na doutrina quanto na jurisprudência, principalmente diante do impacto
financeiro que o caráter positivo dos direitos fundamentais traz em si.
Jorge Reis Novais é estudioso do tema e discorre que
concebidos, como todos os direitos fundamentais, enquanto
direitos dirigidos primariamente contra o Estado ou face ao
Estado, o reconhecimento de direitos sociais convoca, desde
logo, a questão de saber se cabe nas funções constitucionais
de um Estado de Direito dos nossos dias a de se obrigar
juridicamente ao fornecimento aos cidadãos ou, pelo menos,
aos mais carecidos, de prestações fácticas destinadas a
promover, possibilitar ou garantir o acesso individual a bens
econômicos, sociais e culturais130.
Essa dimensão prestacional dos direitos fundamentais é
atualmente muito debatida no Supremo Tribunal Federal131, com atuação
bastante ativa ao consagrar tais direitos.
Miguel Nogueira de Brito, referindo-se à teoria de Dworkin, diz
que
uma democracia deliberativa é bastante mais complexa do
que a constituição de uma concepção da democracia que
perspectiva o voto como simples expressão de interesses
individuais e prévios ao processo político. A complexidade
da constituição da democracia deliberativa levar-nos-ia a
considerar como consentâneas com o princípio democrático,
130
NOVAIS, Jorge Reis. Direitos sociais: Teoria Jurídica dos Direitos Sociais enquanto Direitos Fundamentais.
Coimbra: Coimbra Editora, 2010, p. 65.
131
No decorrer do trabalho, visualizaremos algumas das decisões do Supremo Tribunal Federal brasileiro,
albergando a proteção aos direitos fundamentais, em especial quando há inércia do Poder Executivo em
cumprir o chamado “mínimo existencial”, incorrendo na proteção insuficiente. Haverá discussão se nos
direitos prestacionais deve buscar o Estado apenas o mínimo ou a excelência da prestação.
138
Revista do CEJ - n. 5, p. 135-164- nov. 2015
Gleydson Lima
assim entendido, diversas restrições constitucionais às decisões
das maiorias, como as normas sobre direitos fundamentais e
a respectiva justiciabilidade em face das decisões dos corpos
legislativos 132,
entendendo, mais adiante, em uma concepção dualista, que os direitos
fundamentais se afirmam contra o poder133.
É no caráter positivo ou prestacional dos direitos fundamentais,
discutido e difundido pelo Supremo Tribunal Federal ao estabelecer e
proteger os chamados direitos de segunda geração que vivemos esse
estágio constitucional em que os direitos sociais “poderão se apresentar
como direitos subjetivos (individuais ou metaindividuais), permitindo,
assim, sua judicialização, ainda que com certas dificuldades práticas,
pois são, isso sim, situações jurídicas complexas”134, cabendo ao Estado a
proteção e promoção de tais direitos135.
1.2 O direito à segurança pública
1.2.1 A segurança pública enquanto direito fundamental inscrito na
Constituição
A segurança pública vem a conjugar ações preventivas e
repressivas, visando tanto a segurança jurídica quanto a segurança
material. Entende-se segurança jurídica aquela destinada a coibir os
abusos estatais contra o cidadão e segurança material a proteção pelo
Estado contra as agressões praticadas entre particulares, permitindo-se a
vida com liberdade, sem a subjunção de um indivíduo por outro136.
Vê-se, pois, que a segurança pública tem conotação não só
de direito de defesa como de direito de prestação, o que é plenamente
viável também a nível constitucional, pois a opção do constituinte
132
BRITO, Miguel Nogueira. A Constituição Constituinte. Ensaio sobre o Poder de Revisão da Constituição.
Coimbra: Editora Coimbra, 2000, p. 370.
133
Idem, p. 371.
134
LAGE, Lívia Regina Savergnini Bissoli. Políticas Públicas como programas e ações para o atingimento dos
objetivos fundamentais do Estado. In: PELLEGRINI, Ada Pellegrini Grinover; WATANABE, Kasuo (Coord.). O
controle jurisdicional das políticas públicas. Rio de Janeiro: Forense Editora, p. 156.
135
SARLET, Ingo Wolgang. Constituição, proporcionalidade e direitos fundamentais: o Direito Penal entre a
proibição de excesso e de insuficiência. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.
v. 81. Coimbra: 2005, p. 331.
136
FILOCRE, Lincoln D’Aquino. Direito de segurança pública: limites jurídicos para políticas de segurança
pública. Coimbra: Almedina, 2010, p. 13
Revista do CEJ - n. 5, p. 135-164 - nov. 2015
139
O ativismo judicial do Supremo Tribunal Federal do Brasil nas questões envolvendo segurança pública.
Possibilidade de atuação judicial em função executiva
brasileiro permite essa visão, inclusive classificando-a enquanto direito
social.
A palavra segurança tem posição de destaque na Constituição
e habita desde o preâmbulo, caminhando pelos direitos e deveres
individuais e coletivos, findando com capítulo específico no Título da
Defesa do Estado e das Instituições Democráticas.
Já no preâmbulo, a Constituição expressa que no Estado
Democrático é assegurado “o exercício dos direitos sociais e individuais,
a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade
e a justiça como valores supremos”. Sabendo não ser consenso o valor
jurídico do preâmbulo de uma Constituição137, temos que mesmo os mais
céticos indicam que o preâmbulo tem a característica de dar unidade ao
corpo constitucional.
O capítulo dos direitos e garantias individuais e coletivas traz,
logo no art. 5o da Constituição Federal, a segurança enquanto direito
individual, oponível contra o Estado, preservando a segurança jurídica
do cidadão contra qualquer abuso estatal e exigindo deste uma posição
negativa. É, pois, a segurança atribuída no art. 6o que nos interessa no
presente trabalho acadêmico, expressando o dever do Estado de fazer
a intervenção de polícia de maneira eficiente, satisfatória e adequada,
garantindo a vida em sociedade de maneira harmônica.
Tratando do aspecto organizacional do direito social à
segurança, o constituinte traz capítulo próprio na Constituição para tratar
da segurança pública, estruturando e dando funcionalidade para se
preservar a ordem pública.
Para Lincoln D’Aquino Filocre138 a ordem pública é o estado
de estabilidade dinâmica, ou seja, não é a completa ausência de
crimes, mas criminalidade suportável dentro da estabilidade social, até
porque não é crível existir sociedade sem qualquer espécie de crime
ante a imprevisibilidade dos riscos nem querer atribuir ao Estado a
responsabilização por qualquer ato criminoso de um particular. A opção
137
O professor Jorge Miranda, no segundo tomo do seu Manual de Direito Constitucional, 4a edição, Coimbra,
2000, pp. 239-240, faz referência a três correntes, quais sejam: a tese da irrelevância jurídica, a tese da eficácia
idêntica a qualquer dispositivo constitucional e, entre as duas, a tese da relevância específica ou indirecta,
não confundindo preâmbulo e preceito constitucional.
138
FILOCRE, Lincoln D’Aquino. Direito de segurança pública: limites jurídicos para políticas de segurança
pública. Coimbra: Almedina, 2010, p. 24.
140
Revista do CEJ - n. 5, p. 135-164- nov. 2015
Gleydson Lima
de colocar a segurança pública enquanto dever do Estado visa buscar o
equilíbrio, com os indivíduos sentindo tranquilidade social.
1.2.2 A segurança pública enquanto função essencial do Estado
O artigo 144 da CRFB139 traz a segurança enquanto dever do
Estado, mas também direito e responsabilidade de todos, visualizando,
pois, a segurança enquanto um direito de defesa, prestacional e oponível
contra terceiros.
Como visto, temos o que os administrativistas chamam de
interesse público primário, podendo o cidadão invocar o direito à
segurança pública contra o Estado, e no nosso entendimento sempre que
o Estado for omisso ou preste ineficientemente não o serviço de combate
ao crime, mas de preservação da ordem pública e isso venha a gerar direito
público subjetivo.
Se o Estado chama para si a responsabilidade pelo controle
social, deve manter a tranquilidade social. Daí, temos que os particulares
podem invocar o direito público subjetivo de segurança pública, quando
comprovada que a omissão estatal gerou dano a particular.
Apesar de debates apaixonados, é cediço que cabe ao Poder
Executivo o exercício da manutenção de ordem pública, exercendo-o
dentro do chamado poder discricionário.
O grande problema é que houve total desvirtuamento do que
seja poder discricionário no direito brasileiro, não se entendendo poder
discricionário enquanto melhor escolha quando a lei transpassar para
o administrador a função, mas sim poder sem limites e sem qualquer
controle.
Para Celso Antonio Bandeira de Mello140, a atuação discricionária
nos termos da legalidade é mais dever do que poder, devendo a atuação
administrativa conformar-se à legalidade ao que aliamos a necessidade
de maior fundamentação, para mostrar o administrador que está a tomar
a decisão mais acertada.
139
Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a
preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, [...].
140
MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Discricionariedade e controle jurisdicional. 2 ed. São Paulo: Malheiros,
1996, p. 13.
Revista do CEJ - n. 5, p. 135-164 - nov. 2015
141
O ativismo judicial do Supremo Tribunal Federal do Brasil nas questões envolvendo segurança pública.
Possibilidade de atuação judicial em função executiva
Para cumprir sua função essencial, o Estado (Poder Executivo)
atuará tanto diretamente, através da função policial, quanto indiretamente,
autorizando e fiscalizando empresas de segurança, promovendo
políticas públicas diretamente para a segurança ou com reflexos na
segurança, através de políticas de cunho assistencial, socioeconômico
ou socioeducativo, além de mobilizar a sociedade em política social
participativa141.
1.3 Política de segurança pública: formulação e execução
Como visto anteriormente, o art. 144 da Constituição Brasileira
estabelece que a segurança pública deve ser realizada para preservar a
ordem pública e a incolumidade das pessoas e do patrimônio e só assim
a política pública de segurança irá sistematizar o preceito constitucional.
A formulação da política de segurança deve ser atribuição tanto do
Legislativo quanto do Executivo. É possível ao Legislativo aprovar lei
tal qual fez com outros direitos, a exemplo do direito do ambiente e do
direito do consumidor. Já o Executivo, na ausência ou para fazer valer a
política de segurança engendrada pelo legislativo, deve ter plano certo e
transparente sobre a matéria.
O parágrafo sétimo do mesmo artigo prevê que o serviço de
segurança seja prestado de maneira eficiente, e à vista disso a política
de segurança deve buscar a manutenção de padrões aceitáveis de
criminalidade, atuando tanto preventiva quanto repressivamente,
cabendo ao Poder Executivo a execução da política pública.
Entendida a segurança pública enquanto direito fundamental e
o dever Estatal em manter a ordem pública e a incolumidade das pessoas
e patrimônio, temos que a aplicabilidade direta do preceito constitucional
traz a concretização exigida pelo constituinte, apesar de o contido no
parágrafo sétimo ensejar norma de caráter aparentemente programático.
1.4 Serviço de segurança pública: efetividade versus ineficiência
Diz Valter Foleto Santin142 que
o fornecimento de segurança pública é um serviço primário,
essencial, de relevância pública, de uso comum (uti universi),
141
FILOCRE, Lincoln D’Aquino. Direito de segurança pública: limites jurídicos para políticas de segurança
pública. Coimbra: Almedina, 2010, p. 135.
142
SANTIN, Valter Foleto. Controle judicial da segurança pública: eficiência do serviço na prevenção e
repressão ao crime. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p. 119.
142
Revista do CEJ - n. 5, p. 135-164- nov. 2015
Gleydson Lima
em caráter geral, beneficiando todos os cidadãos e a população
fixa e flutuante. [...] O bem jurídico imediato tutelado é a
segurança pública; o mediato, é a ordem pública, o cidadão e
o patrimônio.
Em sendo direito fundamental, temos a sua aplicabilidade
imediata (CF, art. 5o, § 1º), restando ao aplicador sua plena realização
(efetividade). Assim, efetivar o direito à segurança pública é realizar a
eficácia contida na Constituição. A busca pela realização dos direitos
fundamentais traz ao Estado o dever de proteger tais direitos. É através da
eficiência no serviço de segurança que o prestaremos de maneira efetiva,
real.
A prestação de um serviço eficiente na segurança tanto atende
ao interesse do cidadão na sua individualidade quanto materializa o difuso
direito da paz social143. Assim, não só a prestação do serviço de segurança
pública, mas o eficiente serviço de segurança é dever prestacional do
Estado a ser cobrado pelo particular e entidades com legitimidade para
tanto. Em sendo responsabilidade de todos, deve o Estado prestar o
serviço com a participação da sociedade na formulação da política.
A ineficiência na prestação da segurança pode e deve gerar
responsabilização estatal, não se descurando que o Estado tem o dever
de manter a ordem pública e não de extirpar completamente o crime,
fenômeno social que nasce com as civilizações e as acompanha. Deve
o Estado manter a estabilidade social, no conceito dinâmico de ordem
pública.
O controle extrajudicial da segurança pública na visão de
Valter Foleto144, dá-se através do próprio Executivo, com as ouvidorias
e nomeações e substituições de agentes públicos; pelo legislativo, com
as comissões parlamentares de inquérito e impeachment de agentes
públicos; pelo Ministério Público, com atividades administrativas de
controle externo e através de ação civil ou penal pública e também
pelo controle popular, com participação em audiências públicas sobre
o tema, reclamações, representações e pedidos de informação, além
do habeas data.
143
Idem, p. 152.
144
SANTIN, Valter Foleto. Controle judicial da segurança pública: eficiência do serviço na prevenção e
repressão ao crime. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p. 190-192.
Revista do CEJ - n. 5, p. 135-164 - nov. 2015
143
O ativismo judicial do Supremo Tribunal Federal do Brasil nas questões envolvendo segurança pública.
Possibilidade de atuação judicial em função executiva
2 O dever fundamental de prestar segurança pública
2.1 Os direitos prestacionais em Alexy
Robert Alexy145 traz à baila a discussão sobre os “direitos a
ações estatais positivas”, chamando-os também “direitos a prestações
em sentido amplo”, estabelecendo que os direitos fundamentais podem
trazer em si tanto o direito a uma abstenção estatal quanto o direito a
uma ação afirmativa por parte do Estado. O Tribunal Constitucional
Alemão traz decisões demonstrando tanto o caráter de defesa quanto o
caráter prestacional dos direitos fundamentais, decisões estas discutidas
por Alexy146. O estudo demonstra que não há divisão estanque e que um
direito não é apenas de defesa ou apenas prestacional.
A distinção entre direitos de defesa e direitos prestacionais perde
sentido quando se demonstra que um mesmo direito pode conter os dois
aspectos, a exigir tanto um respeito e não interferência por parte do Estado
quanto uma prestação estatal para promovê-lo. Tal diferença sempre foi
reverberada pelos Tribunais, para com isso explicitar ser mais fácil e prático
reconhecer direitos de liberdade que os chamados direitos sociais, posto
que estes necessitam de previsão e dotação orçamentárias147, retirando
por vezes das mãos do Judiciário a possibilidade de intervir nas finanças
do ente administrativo. A divisão pode até se manter, mas devemos
observar que a Constituição deve ser cumprida e assim quando houver
omissão ou alocação irregular de recursos por parte do administrador,
pode e deve o Judiciário intervir na questão orçamentária para fazer valer
o dever constitucional de salvaguarda dos direitos fundamentais e da
dignidade da pessoa humana.
2.2 O dever fundamental de prestar segurança pública
O direito é fator histórico influenciado pela ideologia prevalente
no momento de sua realização. Assim, em um primeiro momento, os
direitos fundamentais assumiram posição eminentemente de defesa;
eis que a concepção burguesa em França objetivava, com a Revolução,
por termo ao poder do monarca. Mas, já nesta fase, observamos uma
145
ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. 2 ed. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo:
Malheiros, 2011, p. 431.
146
Idem, p. 436-440.
147
ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. 2 ed. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo:
Malheiros, 2011, p. 61.
144
Revista do CEJ - n. 5, p. 135-164- nov. 2015
Gleydson Lima
preocupação do legislador com os direitos de igualdade e com os deveres
que o Estado tem para com os indivíduos quando consagrou na Declaração
Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, no seu art. 2o, que
toda organização política tem por propósito preservar os direitos naturais
e inalienáveis do homem, compreendendo estes o direito à liberdade, à
propriedade, à segurança e o de resistência contra a opressão148.
Assim, a segurança aparece não apenas enquanto direito de
liberdade expressa na segurança individual contra atos do Estado mas
também enquanto dever do Estado de prover segurança dos cidadãos até
para que os demais direitos fossem exercidos de maneira plena.
Todavia, como é cediço, a concepção de Estado Liberal
com contraposição entre indivíduos e Estado fora perdendo força e,
estabelecido o Estado Social149, cresce em perspectiva a teoria dos deveres
de proteção, sendo o Estado protetor dos seus cidadãos. A teoria da
eficácia horizontal indireta dos direitos fundamentais150 entre particulares
explica o dever de proteção do Estado para os seus cidadãos em relação
à segurança pública, cabendo ao Estado, através de seus agentes, prover
a paz social e a garantia dos direitos e liberdades, até porque o inimigo
dos direitos individuais por vezes não é o Estado, como disciplinado na
concepção liberal, mas outros indivíduos, cabendo ao Estado a proteção
do indivíduo contra o indivíduo.
Alexy trata dos deveres de proteção sob o aspecto de direitos
subjetivos à proteção estatal, chamando-os “direitos de proteção” quando
explicita que “por direitos de proteção devem ser entendidos os direitos
do titular de direitos fundamentais em face do Estado a que este o
proteja contra intervenções de terceiros”, expondo ainda que “somente
a subjetivação dos deveres de proteção faz justiça ao sentido original
e permanente dos direitos fundamentais como direitos individuais”151.
148
Art. 2o da Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789: A finalidade de toda associação
política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem. Esses direitos são a liberdade, a
propriedade, a segurança e a resistência à opressão.
149
NOVAIS, Jorge Reis. Os princípios constitucionais estruturantes. Coimbra: Coimbra Editora, 2011, p. 30.
Sobre o tema e do mesmo autor: Contributo para uma Teoria do Estado de Direito, Coimbra, 2006, em que se
visualiza a digressão histórica e uma profunda discussão sobre o Estado de Direito em suas multifacetadas
dimensões.
150
CANARIS, Claus-Wilheim. Direitos Fundamentais e Direito Privado. Tradução de Ingo Wolfgang Sarlet e
Paulo Mota Pinto. Coimbra: Almedina, 2003, p. 54.
151
ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. 2 ed. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo:
Malheiros Editores, 2011, p. 450.
Revista do CEJ - n. 5, p. 135-164 - nov. 2015
145
O ativismo judicial do Supremo Tribunal Federal do Brasil nas questões envolvendo segurança pública.
Possibilidade de atuação judicial em função executiva
Assim, é a partir dos direitos subjetivos que os indivíduos podem
reclamar do Estado a devida proteção, e, em casos excepcionais,
justicializar a questão.
Na perspectiva dos deveres de proteção na vertente objetiva,
temos em Reis Novais152 a objetivação dos direitos fundamentais,
desvinculando-os de titulares individuais, cabendo aos poderes a
promoção e proteção dos direitos fundamentais independentemente de
um titular vir a reclamá-lo. No Estado Social, cabe às funções estatais o
papel de universalizar os direitos fundamentais. A perspectiva objetiva
difere da perspectiva subjetiva, pois nesta é exigível apenas o mínimo
social porquanto que naquela o Estado deve prover o “ótimo alcançável”153.
Os deveres fundamentais são divididos em “deveres
fundamentais autônomos”, que são normas que expõem explicitamente
deveres, tal qual o dever de serviço militar aos homens, e os “deveres
fundamentais associados a direitos”, colocando-se o dever à segurança
pública nesta última categoria154.
O artigo 144 da Constituição Brasileira155 demonstra a segurança
enquanto dever do Estado mas também direito e responsabilidade de
todos, abarcando um modelo em que todos, seja o Poder Público, seja o
particular, têm deveres na proteção dos direitos, liberdades e garantias,
calcados na solidariedade que deve embasar a convivência.
Apesar de alguns entenderem não ser o direito à segurança
pública um direito fundamental e de não se encontrar formalmente
no rol dos direitos e garantias individuais e coletivos, tem natureza de
fundamental, ex vi art. 5o, parágrafo primeiro da Constituição da República.
A doutrina atualmente empresta grande relevância ao estudo
da promoção e concretização dos direitos de igualdade, buscando com
isso obrigar o Estado a prover os mais necessitados do acesso aos bens
econômicos, sociais e culturais. Assim, aliar tal estudo ao das políticas
152
NOVAIS, Jorge Reis. As restrições aos direitos fundamentais não expressamente autorizadas pela
Constituição. Coimbra: Coimbra Editora, 2003, p. 58.
153
SAMPAIO, Jorge Silva. O dever de proteção policial de direitos, liberdades e garantias. Coimbra: Coimbra
Editora, 2012, p. 94.
154
ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. Coimbra:
Almedina, 1998, p. 109.
155
Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a
preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:
146
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Gleydson Lima
públicas para consecução dos direitos é o grande desafio que se
impõe aos administradores. É nessa dimensão prestacional dos direitos
fundamentais, inclusive estimulada pelo Supremo Tribunal Federal, que
vivenciamos esta fase do constitucionalismo, que não mais se contenta
em apenas respeitar direitos como consagra e protege ativamente os
direitos fundamentais.
Travando a dicotomia entre deveres de proteção de cunho
subjetivo e deveres de proteção de cunho objetivo, o dever de segurança
exposto na Constituição tem caráter objetivo, proveniente do efeito
irradiante dos direitos fundamentais, até em respeito ao direito de
liberdade, pois é a segurança que emprestará a necessária liberdade aos
cidadãos. Promovendo a segurança, o Estado estará por via transversa
assegurando os direitos fundamentais156.
Na visão de Casalta Nabais157, temos os deveres de direitos
fundamentais, ou seja, são os deveres de proteção derivados de direitos
fundamentais, e assim a segurança pública é dever do Estado para coibir
qualquer agressão aos direitos dos que integram a sociedade158.
O estudo dos deveres fundamentais é realizado em paralelo
com o estudo dos direitos fundamentais, calcado na premissa de que
direitos e deveres são institutos correlatos e que, no Estado Constitucional,
ao se garantir direitos fundamentais está se difundindo a necessidade do
exercício dos deveres, conjugando-se plena democracia com respeito à
dignidade da pessoa humana.
Se o Estado trouxe para si o direito de resolução de querelas
entre seus súditos, tem o dever de promover o bem comum e coibir a
vingança privada, cabendo ao Estado, em especial em relação à segurança
pública, não somente proteger tais direitos fundamentais, como também
efetivá-los, esbarrando-se, como se bem sabe, na chamada reserva do
possível, pois a disponibilidade financeira para a efetivação deve ser
considerada, sendo esta matéria tratada em capítulo próprio.
Está, pois, em débito o Estado que não protege de maneira
156
SAMPAIO, Jorge Silva. O dever de proteção policial de direitos, liberdades e garantias. Coimbra: Coimbra
Editora, 2012, p. 98.
157
NABAIS, José Casalta. O dever fundamental de pagar impostos: contributo para a compreensão constitucional
do estado fiscal contemporâneo. Coimbra: Almedina, 1998, p. 78.
158
SAMPAIO, Jorge Silva. Op cit, p. 99.
Revista do CEJ - n. 5, p. 135-164 - nov. 2015
147
O ativismo judicial do Supremo Tribunal Federal do Brasil nas questões envolvendo segurança pública.
Possibilidade de atuação judicial em função executiva
suficiente os direitos fundamentais, não efetivando seu dever de proteger
os cidadãos contra agressões injustas de outrem, pois a efetividade dos
direitos e deveres fundamentais é a tônica do moderno constitucionalismo,
pautado na dignidade da pessoa humana e na efetivação pelo menos do
mínimo social.
3 Atuação do poder judiciário no caso de lesão aos direitos
fundamentais por ineficiência. O ativismo judicial
3.1 A legitimidade democrática dos juízes para efetivação dos direitos
fundamentais
Para alguns críticos do chamado “ativismo judicial”, uma
jurisdição constitucional ativa é uma restrição ilegítima da soberania
popular, pois emanando o poder do povo não podem representantes
de poder, não-eleitos pelo povo, direcionar e decidir por vezes contra a
vontade geral. Tal assertiva, todavia, não encontra assento nas chamadas
repúblicas constitucionais substancialistas – e o Brasil neste conceito
se enquadra – em que o juiz constitucional tem a função de guardar os
princípios e regras constitucionais159. Adotando-se, pois, essa teoria da
self restraint,
t não haveria a legitimação do juiz constitucional, o que não
se coaduna com o modelo brasileiro, em que o juiz constitucional tem
atuação proativa, à luz dos institutos do mandado de injunção e da ação
direta de inconstitucionalidade por omissão160.
Não há discussão quanto a existência e efetividade da jurisdição
constitucional, mas não encontramos consenso em relação à sua
legitimidade. Ao se falar em ativismo judicial temos que observar até onde
deve o Tribunal Constitucional intervir e em se admitindo a legitimidade, a
discussão recai sobre o limite para o Tribunal substituir o critério adotado
pela maioria, posto que o Executivo e o Legislativo representam o anseio
popular expressado através do voto.
Ao exprimir a Constituição que “compete ao Supremo Tribunal
Federal, precipuamente, a guarda da Constituição”161, quis o constituinte
originário dar aos juízes constitucionais representação da soberania
159
MELLO, Claudio Ari. Democracia constitucional e direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2004, p. 186 e ss., em que o autor traz contraponto com a chamada Democracia democráticodeliberativa.
160
TAVARES, André Ramos. Paradigmas do judicialismo constitucional. São Paulo: Saraiva Editora, 2012, p. 68.
161
Art. 102, caput,
t da Constituição da República Federativa do Brasil.
148
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Gleydson Lima
popular, na defesa dos princípios e regras constitucionalmente expressos.
Eis, pois, a legitimidade da Justiça Constitucional expressa de maneira
clara na Constituição.
Muitos são os fundamentos para a defesa da jurisdição
constitucional, mas o presente estudo vai dar ênfase à virtude que tem
o Poder Judiciário de tutelar os direitos fundamentais. Existe democracia
deliberativa quando os órgãos representativos cumprem e protegem
os direitos e tudo está conforme e tranquilo, mas é a democracia
constitucional que tem a resposta para quando tais órgãos descumprem
a proteção constitucional, fundamentando assim o caráter democrático
da jurisdição constitucional162 163.
A independência e a imparcialidade dos órgãos do Poder
Judiciário são garantias ainda maiores da democracia constitucional, pois
fazem valer a Constituição prestigiando a igualdade material, por vezes
contramajoritária, sem se subordinar a ingerências políticas. De se ver,
também, que no sistema constitucional, os próprios juízes estão limitados
pelo sistema democrático, não podendo tomar decisões políticas, mas
apenas materializar os direitos sociais e prestacionais.
Assim, temos que, teoricamente, pode e deve o Tribunal
Constitucional intervir, à vista de preceito constitucional, e deve fazêlo sempre para preservar a Constituição. A substituição do que quer
e pensa a maioria só se faz para preservar a Constituição, não se
permitindo ao Tribunal agir de maneira não jurídica, ou seja, agir de
maneira eminentemente política, haja vista ser este preceito entregue
aos órgãos democraticamente eleitos, só cabendo ao juiz a interpretação
constitucional.
O grande problema do chamado ativismo judicial é a busca de
um conceito unívoco para o instituto. Ora, cada país carrega sua realidade
local, e se tem que buscar a resposta para o ativismo nestas peculiaridades
da sociedade, observando-se que cumpre ao juiz interpretar a lei e a
Constituição, observando-se os casos concretos na busca da melhor
resolução do litígio.
No Brasil, a inércia dos Poderes Executivo e Legislativo em
162
MELLO, Claudio Ari. Democracia constitucional e direitos fundamentais. Porto Alegre, Livraria do
Advogado, 2004, p. 189.
163
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Tradução de Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2011.
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149
O ativismo judicial do Supremo Tribunal Federal do Brasil nas questões envolvendo segurança pública.
Possibilidade de atuação judicial em função executiva
cumprirem suas funções constitucionais, por vezes com omissão
deliberada, provoca uma reação do Judiciário que amparado pelo
preceito constitucional de “guardião da Constituição” por vezes substitui
o legislador e o administrador. Entendemos que não pode haver
substituição deliberada aos Poderes democraticamente eleitos mas deve
haver controle da omissão quando esta fulminar direitos fundamentais e
em especial a dignidade da pessoa humana, agindo o Judiciário enquanto
“concretizador de direitos fundamentais declarados pela Constituição”164.
3.2 Revisão do dogma da separação de poderes. O controle judicial
da inatividade administrativa enquanto garantia do cumprimento
dos deveres positivos da administração
Para uma Constituição estabelecer apenas parâmetros mínimos,
deve consagrar os direitos fundamentais e a separação dos poderes.
Distribuem-se funções para se evitar o despotismo de um Poder, dando
respaldo e agigantamento à democracia, resvalando-se qualquer tentativa
de absolutismo. Muitos são os exemplos constantes da Constituição tanto
da separação das funções quanto da interpenetração de uma função em
outra.
Na atualidade, a grande discussão é se a separação é estanque
ou mitigada, e se esta mitigação importa em rompimento do sistema
democrático e desrespeito às funções primárias. É o estudo bastante
atual da possibilidade de a jurisdição constitucional exercer o controle
de constitucionalidade dos atos legislativos e administrativos, quando
a omissão ou a deficiência nos deveres de proteção for observada nos
Poderes Executivo e Legislativo. É a jurisdição constitucional um dos
principais instrumentos da democracia.
A Justiça Constitucional deverá exercitar sua competência, na
visão de Mônica Mattedi165, quando o legislador não cumprir ou cumprir
insuficientemente os deveres de proteção, e ainda quando houver
supressão ou restrição às prestações já concretizadas por lei anterior.
Some-se a esse fundamento que também o Judiciário deve controlar a
constitucionalidade quando há omissão ou insuficiência pelo Executivo
164
TAVARES, André Ramos. Paradigmas do judicialismo constitucional. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 69.
165
MATTEDI, Mônica. A atuação do Poder Judiciário na efetivação dos direitos sociais: a dignidade da
pessoa humana como parâmetro e a separação dos poderes como limite. Relatório de Mestrado em Ciências
Jurídico-Políticas. Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. 2009, p. 56.
150
Revista do CEJ - n. 5, p. 135-164- nov. 2015
Gleydson Lima
na proteção dos direitos fundamentais, até contra a prática de abuso por
particulares, na chamada eficácia externa dos direitos fundamentais.
Muitos radicalizam ao dizer que o adentramento na esfera
administrativa provocaria a ocorrência do fenômeno da judicialização
da política, com nítida interferência do juiz em seara não evidenciada
na Constituição e quebra do princípio da separação dos poderes. Tal
argumento é calcado em premissa falsa, pois se a separação dos poderes
fosse o óbice para a concretização dos direitos sociais expressos na
Constituição, não poderia também o juiz intervir nos direitos políticos
e civis.
É interessante que os críticos do chamado ativismo judicial só
expressam óbice quando o juiz o faz em relação aos direitos de cunho
prestacional, não se apercebendo que ao analisar e exercer a jurisdição
constitucional nada mais faz o magistrado que sopesar valores e interpretar
o texto constitucional.
Diz Konrad Hesse166 que “na atualidade é decisiva para uma
ampla garantia e efetividade dos direitos fundamentais a proteção pelos
tribunais” e, em especial, o dever de proteção dos direitos fundamentais
para afastar omissão ou ineficiência estatal.
O Poder Judiciário deve agir para dar validade ao sistema
constitucional, com atuação direta e protetiva, por vezes restringindo
direitos individuais, quando os órgãos democraticamente eleitos
descumprirem sua função em relação aos direitos sociais e prestacionais.
De salientar que os direitos sociais por vezes são ademocráticos, o que
leva os órgãos eleitos pelo povo a não contrariarem a maioria, servindo
o Poder Judiciário justamente para reconhecer os direitos das minorias
dentro do contexto democrático.
Sendo a jurisdição constitucional delegatária do Poder
Constituinte, cabe a ela proteger os direitos fundamentais sociais,
mormente por ser um poder imune às influências políticas (pelo menos
no campo teórico) e com a característica da imparcialidade, preservandose assim a democracia em sua essência.
166
HESSE, Konrad. Temas fundamentais do Direito Constitucional, textos selecionados e traduzidos por
Carlos dos Santos Almeida, Gilmar Ferreira Mendes e Inocêncio Mártires Coelho. São Paulo, Editora
Saraiva, p. 64.
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151
O ativismo judicial do Supremo Tribunal Federal do Brasil nas questões envolvendo segurança pública.
Possibilidade de atuação judicial em função executiva
3.3 Princípio da reserva do possível versus princípio da proibição da
proteção deficiente: limite e parâmetro para atuação jurisdicional
Grande estudo sobre o princípio da reserva do possível
fora realizado pela doutrina que dele se socorre para caracterizar a
impossibilidade financeira de o Estado prover os direitos sociais e de caráter
prestacional. Em contraponto a este argumento de muitos defensores da
proteção isonômica dos direitos sociais em relação aos demais direitos
constantes da Constituição, temos a figura do mínimo existencial que traz
a noção de que nos direitos sociais basta o Estado prover o mínimo para a
sobrevivência digna dos cidadãos, e neste parâmetro a figura da reserva do
possível perde conotação, pois, para suprir o mínimo social, sempre haverá
possibilidade financeira, bastando ao Estado bem realizar a alocação do
recurso. Saliente-se, neste estudo, que mesmo se satisfazendo com o
mínimo, devemos sempre que possível buscar a excelência na satisfação
do direito.
O grande problema travado são os conceitos extrajurídicos
insertos no princípio da reserva do possível, conceitos estes que são
levados a uma análise jurídica. Assim, quando da análise deste princípio,
em contraponto à figura do mínimo existencial, temos que observar se
realmente tem-se escassez material do recurso e não alocação de recurso
ao bel prazer do administrador, sem observar e suplantando direitos
sociais em benefício de interesses menores, que nem sempre estão em
consonância com a moral que se espera de quem ocupa cargos públicos.
O princípio da proibição da proteção deficiente também é
chamado na doutrina como proibição da insuficiência, proibição do
defeito ou princípio da infraproteção167, consagrando a proporcionalidade
em sua integralidade. O professor Reis Novais, ao estudar o princípio,
empresta-lhe o vocábulo “proibição do défice”168. Tal princípio não permite
uma atuação estatal omissa ou insuficiente, que não se coaduna com os
direitos fundamentais, dever estatal destinado para todas as funções
estatais.
Analisa-se o princípio da proibição da proteção insuficiente
dentro do estudo dos deveres de proteção do Estado e, sendo a segurança
167
NOVAIS, Jorge Reis. As restrições aos direitos fundamentais não expressamente autorizadas pela
Constituição. Coimbra: Coimbra Editora, 2003.
168
NOVAIS, Jorge Reis. As restrições aos direitos fundamentais não expressamente autorizadas pela
Constituição. Coimbra: Coimbra Editora, 2003, p. 77.
152
Revista do CEJ - n. 5, p. 135-164- nov. 2015
Gleydson Lima
pública um dever acometido ao Estado, quando este o presta de maneira
insuficiente ou é omisso neste dever é acionado o princípio, pois há
violação de direito fundamental169.
O princípio do défice de proteção coloca como exigência uma
proteção eficiente dos direitos fundamentais, ou seja, que a proteção seja
efetiva e não fictícia, não havendo a exigência de uma proteção em grau
elevado, mas não permitindo também que se desça abaixo de um mínimo
exigível pelo princípio, que se entende tenha a dignidade da pessoa
humana enquanto parâmetro balizador.
Não se retira o poder discricionário do administrador, mas deve
este balizar sua conduta para conformá-la com o mínimo de proteção
exigido constitucionalmente, pois, não estar conforme a proteção exigida
importa em violação do princípio. A constitucionalidade pode e deve ser
controlada pela Justiça Constitucional para se aferir se o dever de proteção
é eficaz e apropriado, satisfazendo as mínimas exigências na sua prática.
Pode o administrador graduar a proteção dentro dos parâmetros que
impuser enquanto corretos, mas não pode descer do patamar exigível,
indo aquém do mínimo, quando, assim, deverá ser desenvolvido ou
ampliado.
Do mesmo modo, se encontra o administrador vinculado
à proibição do excesso, sendo esta a baliza para o máximo da
discricionariedade, pois, quando exerce a proteção perante terceiros,
estará por via transversa interferindo na liberdade de alguém. A proibição
do excesso está ligada ao fator interferência, limitando-o, ao passo que
a proteção da insuficiência está ligado ao fator proteção, balizando a
atuação estatal170. Deve o executor do dever de proteção encontrar-se
atento para a razoabilidade da intervenção, pois mesmo a proteção de
interesse relevante não deve restringir liberdades além do razoável.
A reserva do financeiramente possível vem com o escopo de
restringir direitos fundamentais e a proibição da proteção insuficiente
pondera tal princípio e traz a dignidade da pessoa humana como
fundamento para ordenação orçamentária.
169
SCHWABE, Jungen. Cinquenta anos de jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal Alemão.
Montevideo: Konrad-Adenauer-Stiftung, 2005, p. 171.
170
Sobre o tema ver PASCUAL, Gabriel. Doménech. Derechos fundamentales y riesgos tecnológicos.
Centro de Estudios Políticos y Constitucionales. Madrid, 2006 e PULIDO, Carlos Bernal. El principio de
proporcionalidad y los derechos fundamentals. Centro de Estudios Políticos y Constitucionales. 3a
edición. Madrid, 2007.
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153
O ativismo judicial do Supremo Tribunal Federal do Brasil nas questões envolvendo segurança pública.
Possibilidade de atuação judicial em função executiva
4 Controle judicial da política e do serviço de segurança pública
realizado pela Corte Constitucional do Brasil
4.1 Controle da omissão ou ineficiência executiva pelo Supremo
Tribunal Federal do Brasil
A Constituição de 1988 traz a visão da efetividade
constitucional171, intensificando-se jurisprudencialmente com um maior
controle de constitucionalidade da atividade administrativa. Interessante
acórdão sobre o tema foi o RE 436996/SP, concedido contra o Município
Paulista de Santo André, que teve como relator o Ministro Celso de Mello.172
No caso, a Suprema Corte entendeu que a criança de até seis anos de idade
tem direito a atendimento em creche e em pré-escola, considerando
tratar-se de “dever jurídico cuja execução se impõe ao poder público,
notadamente ao município”. Após essa decisão, o Supremo Tribunal
Federal inaugurou uma série de decisões sobre a matéria “proteção de
direitos fundamentais”.
O princípio da proporcionalidade, é bem verdade, vem sendo
utilizado pelo Tribunal Constitucional brasileiro há mais de uma década,
sempre no aspecto proibição do excesso, impossibilitando que o Estado
intervenha nos direitos de defesa. Em uma chamada “segunda fase da
proporcionalidade”, o Supremo Tribunal Federal passou a também utilizar
o princípio da proibição da proteção deficiente para concretizar os direitos
prestacionais e sociais.
O Professor Jorge Reis Novais173 estabelece a suficiência
dogmática do princípio, e a esta tese somos filiados, expondo que, ao se
analisar a insuficiência, não se precisará estabelecer os critérios utilizados
para a proibição do excesso (aptidão, proporcionalidade em sentido estrito,
indispensabilidade, razoabilidade e indeterminabilidade), registrando-se
apenas a razoabilidade e a dignidade da pessoa humana, aplicando-se o
171
Em sua obra O direito constitucional e a efetividade de suas normas, Luis Roberto Barroso parte dos
seguintes pressupostos de um Direito Constitucional timbrado pela efetividade: “1) a Constituição, sem
prejuízo de sua vocação prospectiva e transformadora, deve conter-se em limites de razoabilidade no
regramento das relações de que cuida, para não comprometer o seu caráter de instrumento normativo
da realidade social; 2) as normas constitucionais têm sempre eficácia jurídica, são imperativas e sua
inobservância espontânea enseja aplicação coativa; 3) as normas constitucionais devem estrutura-se e
ordenar-se de tal forma que possibilitem a pronta identificação da posição jurídica em que investem os
jurisdicionados; 4) tais posições devem ser resguardadas por instrumento de tutela adequados, aptos à sua
realização prática”. p. 86.
172
O Acórdão foi publicado no Diário da União no dia 07 de novembro de 2005.
173
NOVAIS, Jorge Reis. As restrições aos direitos fundamentais não expressamente autorizadas pela
Constituição. Coimbra: Coimbra Editora, 2003, p. 73.
154
Revista do CEJ - n. 5, p. 135-164- nov. 2015
Gleydson Lima
princípio nos deveres de proteção e efetivação dos direitos fundamentais
que recaiam sobre a administração, com a omissão atuando enquanto
causa autônoma de restrição do direito fundamental em comento.
Analisaremos, pois, como vem utilizando o Tribunal Constitucional
brasileiro o retromencionado princípio na jurisprudência em geral e na
segurança pública, demonstrando a incoerência em alguns julgados.
Desde o ano de 2006, quando inaugurou o uso do princípio,
o Tribunal já o utilizou por mais de 20 (vinte) vezes, em decisões que
abarcam os direitos sociais e os deveres de proteção, havendo também
tanto decisões plenárias quanto decisões de turmas e monocráticas174.
Nos julgados, sempre observamos o recurso aos temas dever de proteção,
omissão estatal e proibição da proteção deficiente. Interessante explicitar
que a pesquisa não encontrou nenhum julgado relacionado a mandado
de injunção ou ação direta de inconstitucionalidade por omissão, campos
nos quais deveria ser bem empregada, posto que é sede de discussão
sobre a matéria.
Aspecto interessante nas decisões do Supremo Tribunal Federal
é não enxergarmos quando da utilização do princípio a necessária colisão
nos direitos prestacionais, como ocorreu na decisão paradigmática do
aborto na Alemanha, em que o direito do nascituro colidiu com o direito
da disposição do corpo pela mãe. Já nos direitos sociais, os acórdãos e
monocráticas estão mais atentos à colisão, até porque sempre haverá
necessária colisão entre aquele direito social atendido e os demais que
ficarão sobrestados por recursos financeiros, devido ao atendimento
daquela demanda em especial.
4.2 Comentários sobre decisões do Supremo Tribunal Federal do Brasil
No aspecto proibição da proteção deficiente na segurança
pública, temos o tema tratado pelo Supremo Tribunal Federal nos Agravos
Regimentais em Recursos Extraordinários de números 367.432 (relator
Ministro Eros Grau) e 559.646 (relatora Ministra Ellen Gracie). Em ambos
os recursos, o Tribunal, por unanimidade, acatou a tese de ser função
institucional do Poder Judiciário determinar a implantação de políticas
174
Houve pesquisa nos acórdãos SL/AgR 47-PE, ADI/MC 1.407-DF, PSV 30, RE 418.376-5-MS, SS/AgR 2.944-PB,
ADC 5, ADI 1.800, ADI 3.112, ADI 3.510, SS/AgR 3.345-RN, AgR 3.355-RN, STA/AgR 175-CE e nas decisões
monocráticas AgR/RE 559.646-PR, Agr/RE 367.432-PR, SS 3.690-CE, SS 3.724-CE, SS 3.751-SP, STA 244-CE,
STA175-CE, STA 245-RS, STA 408-BA e STA 419-RN.
Revista do CEJ - n. 5, p. 135-164 - nov. 2015
155
O ativismo judicial do Supremo Tribunal Federal do Brasil nas questões envolvendo segurança pública.
Possibilidade de atuação judicial em função executiva
públicas quando os órgãos competentes não o fizerem, comprometendo
a integridade dos direitos individuais e coletivos, mesmo que tais direitos
tenham um conteúdo programático na visão doutrinária, visualizando
a aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais e, de maneira
transversa, visualizando o aspecto dos deveres de proteção do Estado.
Quanto ao Agravo em Recurso Extraordinário n. 367.432/PR,
o Tribunal de Justiça do Estado do Paraná havia negado provimento
aos recursos para preenchimento de cargos no quadro de servidores da
Secretaria de Segurança Pública, construção de cadeias, delegacias de
polícia e compra de veículos, armamentos e munições, sob o argumento
de não caber ao Judiciário ordenar tais obras e serviços sem interferir no
planejamento administrativo e orçamentário, expondo o princípio da
separação dos poderes para negar provimento ao apelo.
Para fundamentar o voto, o relator, Ministro Eros Grau, traz à
baila fundamentação exposta na ADPF 45, publicada no DJ de 4.5.2004,
relatoria do Ministro Celso de Mello175, elucidando a dimensão política
da jurisdição constitucional atribuída ao Supremo Tribunal Federal ante
a abusividade governamental, neste caso por omissão, além de lembrar a
necessidade de efetivação das liberdades positivas diante do desrespeito
do Poder Público, gerando a inconstitucionalidade por omissão.
Apesar do acórdão expor que se preservara direito social, temos
nítido direito prestacional preservado, pois, com a efetivação da medida
de segurança pública, não teremos destinatário certo, mas toda população
será beneficiada pela melhoria no setor.
Há, ainda, na decisão vergastada, contraponto com a reserva
do possível, mas a se dizer que o Estado não pode colocar tal princípio
para se eximir de cumprir os fundamentos constitucionais, promovendo
o bem-estar dos indivíduos, que nada mais é que a tão falada dignidade
da pessoa humana, que baliza e norteia os gastos prioritários que deve
ter o Estado na sua visão orçamentária. Traz o acórdão, de maneira clara,
a já falada visão de que o conceito de ativismo judicial não é unívoco, ao
175
Em acórdão publicado no dia 17.11.05, com Relatoria do Ministro Carlos Velloso, temos de maneira explícita
a posição do Supremo Tribunal Federal sobre o conflito Separação de Poderes e exercício da Jurisdição
Constitucional para efetivação da Constituição, quando diz o Ministro que “cabe ao Judiciário fazer valer,
no conflito de interesses, a vontade concreta da lei e da Constituição. Se assim procede, estando num dos
polos da ação o Estado, o fato de o Judiciário decidir contra a pretensão deste não implica, evidentemente,
ofensa ao princípio da separação dos poderes, convindo esclarecer que, conforme lição de Balladore Palieri,
constitui característica do Estado de Direito sujeitar-se o Estado à Jurisdição”.
156
Revista do CEJ - n. 5, p. 135-164- nov. 2015
Gleydson Lima
salientar que “os Poderes Legislativo e Executivo no Brasil se mostraram
incapazes de garantir um cumprimento racional dos respectivos preceitos
constitucionais”176, referindo-se aos gastos públicos e à separação de
poderes.
Já no Agravo Regimental no Recurso Extraordinário n.
559.646-PR177, de relatoria da Ministra Ellen Gracie, tivemos idêntico
pensamento, com deslinde tal qual a decisão anterior. Versa a decisão que
não há ingerência do Poder Judiciário quando o Executivo se encontra
inadimplente na implementação de políticas públicas constitucionalmente
previstas. É, mesmo sem explicitar o princípio da proibição da proteção
deficiente, a aplicação deste aos deveres de proteção.
Por via transversa, o tema segurança pública é trabalhado no
Supremo Tribunal Federal na Proposta de Súmula Vinculante 30, tornandose depois a Súmula Vinculante 26178, em que o Tribunal reconheceu o
excesso da Lei n. 8.072/90, que proibia a progressão de regime nos crimes
denominados hediondos, mas também enxerga que, para a progressão
em tais crimes, pode o juiz das execuções determinar a realização de
exame criminológico para aferição de requisito subjetivo, evidenciando
que a liberdade de indivíduo que pratica crime hediondo sem a necessária
cautela pode implicar em proteção insuficiente da vida e segurança dos
demais membros da sociedade.
Denota-se neste julgado, em especial no voto do Ministro
Gilmar Mendes, a omissão do Estado ao facultar o exame criminológico
na Lei de Execuções Penais (Lei n. 7.210/84)179, e a Súmula explicita que,
mesmo sendo uma faculdade do juiz, pode este determinar para os casos
de crimes hediondos, promovendo quase um aconselhamento para os
magistrados de primeiro grau.
176
AgR em RE n. 367.432/PR, publicado no Diário da Justiça no dia 14.5.2010.
177
Publicado no Diário da Justiça no dia 24.6.2011.
178
Súmula Vinculante n. 26 - PSV 30 - DJe n. 35/2010 - Tribunal Pleno de 16.12.2009 - DJe n. 238, p. 1, em
23.12.2009 - DOU de 23.12.2009, p. 1. Progressão de Regime no Cumprimento de Pena por Crime Hediondo
- Inconstitucionalidade - Requisitos do Benefício - Exame Criminológico. Para efeito de progressão de
regime no cumprimento de pena por crime hediondo, ou equiparado, o juízo da execução observará
a inconstitucionalidade do art. 2º da Lei n. 8.072, de 25 de julho de 1990, sem prejuízo de avaliar se o
condenado preenche, ou não, os requisitos objetivos e subjetivos do benefício, podendo determinar, para
tal fim, de modo fundamentado, a realização de exame criminológico.
179
Art. 112, Lei n. 7.210/84. A pena privativa de liberdade será executada em forma progressiva com a
transferência para regime menos rigoroso, a ser determinada pelo juiz, quando o preso tiver cumprido
ao menos um sexto da pena no regime anterior e ostentar bom comportamento carcerário, comprovado
pelo diretor do estabelecimento, respeitadas as normas que vedam a progressão. (Redação dada pela Lei n.
10.792, de 2003).
Revista do CEJ - n. 5, p. 135-164 - nov. 2015
157
O ativismo judicial do Supremo Tribunal Federal do Brasil nas questões envolvendo segurança pública.
Possibilidade de atuação judicial em função executiva
Interessante julgamento monocrático tem em Pedido de
Suspensão de Tutela Antecipada de n. 419180, proveniente do Estado do
Rio Grande do Norte, decisão em que o então Presidente do Supremo
Tribunal Federal, Ministro Gilmar Mendes, baseando-se no direito à
segurança, garante a transferência de presos mantidos de maneira precária
em delegacias de polícia até a construção de unidades prisionais. Neste
caso, há tutela da proteção policial de direitos dos presos, constatando-se
verdadeiro direito social, eis que a prestação a ser cumprida tem cunho
individual e determinado.
Também evidenciado o direito subjetivo público quando do
julgamento da Suspensão de Tutela Antecipada no Agravo Regimental/
PE n. 223, em que o Supremo Tribunal Federal determinou que o Estado
de Pernambuco pagasse todas as despesas necessárias à realização de
cirurgia para implante de marcapasso diafragmático muscular em cidadão
vítima de assalto em que o disparo dado pelo assaltante resultou em
tetraplegia da vítima, entendendo o Tribunal que o Estado não prestou
a devida segurança, no aspecto policiamento ostensivo, o que levou ao
crime e à consequente incapacidade do autor do pedido. Claro restou que
houve reconhecimento de direito subjetivo público à indenização por
ineficiência do Estado na prestação do serviço de segurança.
O Supremo Tribunal Federal reconhece não mais haver uma
separação estanque de poderes e que as normas de conteúdo programático
não podem se converter em promessas constitucionais, relegandose a Constituição a um texto sem valor normativo. Expõem também os
acórdãos que não pode o Poder Público manipular sua atividade financeira,
criando obstáculo artificial para a consecução do direito prestacional,
estabelecendo assim os conceitos de reserva do possível natural (quando
realmente não há recursos) e artificial (quando há destinação errônea dos
recursos). A liberdade de conformação do administrador não é absoluta,
devendo se pautar pela garantia do mínimo existencial e pela dignidade
da pessoa humana.
Para a Corte Constitucional, havendo violação clarividente e
sem legitimidade pelo legislador, pode e deve o Judiciário se imiscuir
na conveniência e oportunidade, podendo tanto na política quanto no
serviço realizar interferência constitucional.
180
STA 419-RN, publicada no Diário da Justiça no dia 22.4.2010.
158
Revista do CEJ - n. 5, p. 135-164- nov. 2015
Gleydson Lima
Além de evidenciar a proibição da proteção deficiente, o
Supremo Tribunal alertou ser função do Judiciário “fazer valer, no conflito
de interesses, a vontade concreta da lei e da Constituição”181, não havendo
ofensa à separação de poderes, eis que o preceito decorre da própria
Constituição.
Em contraponto, como lado negativo dos acórdãos e decisões
monocráticas, temos que, por vezes, o ativismo do Supremo Tribunal
Federal, baseado no princípio da proibição da proteção deficiente, fora
utilizado em diversas matérias, sem manter um necessário vínculo com os
deveres de proteção e, por vezes, sem explicitar a colisão de princípios, além
de, até o presente momento, não ter a Corte Constitucional reconhecido
leading case, o que impossibilita, de certo modo, a utilização do princípio
como fundamento para decisões posteriores, sendo sua utilização uma
exceção na Corte.
Com a aplicação do princípio da proibição da proteção
deficiente, o Supremo Tribunal Federal amplia muito sua margem decisória,
praticando verdadeiro “ativismo judicial”, mas, em contrapartida, exerce
sua função constitucional de guardião da Constituição, fazendo valer os
direitos prestacionais e os direitos sociais quando o administrador, por
mera conveniência, não consagra aos cidadãos o mínimo, protegendo-os
deficientemente.
Conclusão
A segurança pública é direito fundamental com características
de defesa, prestacional e, mais raramente, direito social, devendo o Poder
Executivo prestar o mínimo de segurança aos brasileiros e estrangeiros
residentes ou temporariamente no País, não se permitindo mais a visão
retrógrada da discricionariedade sem controle, em detrimento do direito
à vida, em última análise, pois a insegurança está a levar vidas e fazer
imperar o medo.
A Constituição empresta grande valor ao tema segurança
pública, perfilhando suas linhas desde o preâmbulo, todavia tendo
destaque enquanto direito de defesa e direito prestacional, podendo,
em casos raros, gerar direito subjetivo. É no contexto de “direitos a ações
estatais positivas” que enfocamos nosso estudo, mostrando também que
181
STA 223-PE, publicada no Diário da Justiça no dia 18.3.2008.
Revista do CEJ - n. 5, p. 135-164 - nov. 2015
159
O ativismo judicial do Supremo Tribunal Federal do Brasil nas questões envolvendo segurança pública.
Possibilidade de atuação judicial em função executiva
a segurança pública é um serviço estatal primário e essencial, que deve
ser servido para toda população de maneira eficiente, atendendo assim
tanto o interesse do cidadão, considerado enquanto indivíduo, quanto
o interesse de preservar a paz social. Deve o Governo estabelecer uma
política de segurança para os que se encontram sob sua tutela.
O direito à segurança pública correlaciona os direitos à vida, à
dignidade da pessoa humana e à plena liberdade. O antropocentrismo
da Constituição Federal faz com que o direito à segurança pública, como
uma extensão do direito à vida e à dignidade humana, sirva de critério
para controle, através do processo de interpretação e aplicação do Direito
pelo Poder Judiciário, da atuação administrativa – área tradicionalmente
reservada à discricionariedade dos titulares de órgãos eletivos.
De evidenciar que, na visão objetiva que encaramos os deveres
de proteção, há desvinculação de titulares diretos de direitos para que
haja a proteção e promoção do direito fundamental à segurança pública,
cabendo ao Estado conceder aos seus súditos pelo menos o mínimo
existencial, mas sem descurar que sempre deve buscar o resultado ótimo
dos seus serviços.
Na esteira do pensamento dos deveres de proteção, temos
que cabe a todas as funções estatais promoverem e protegerem os
direitos fundamentais, concretizando-os de maneira a tornar efetiva a
Constituição. Assim, quando o Legislativo ou o Executivo não cumprem
os papéis constitucionais a eles atribuídos, cabe ao Poder Judiciário,
enquanto guardião da Constituição, fazer valer os ditames nela inscritos.
Demonstramos que, de acordo com o que prescreve a
“democracia constitucional”, o poder constituinte originário concedeu
aos juízes o poder de representação da soberania popular para defesa dos
princípios e regras constantes da Constituição.
O estudo assevera que, na independência e imparcialidade
dos juízes, buscamos a resposta para a verdadeira igualdade material
e se o juiz não se afasta de sua função interpretativa, com base no que
dita a Constituição, não há que se encarar o que atualmente se chama
de “ativismo judicial” como algo pejorativo, mas enquanto dever
constitucional expresso.
Não pode, pois, a Justiça Constitucional substituir o
legislador e o administrador nas suas funções típicas por mero capricho
160
Revista do CEJ - n. 5, p. 135-164- nov. 2015
Gleydson Lima
ou superposição, devendo agir somente quando autorizada pela
Constituição, balizada pelo princípio da reserva do possível e pelo
princípio da proibição da proteção deficiente.
Entendemos, entretanto, que a reserva do possível não pode
servir ao administrador enquanto escudo ilegítimo para que este escolha,
sem critério constitucional ou legal, onde empregará o dinheiro público,
devendo assim balizar sua atividade pela dignidade da pessoa humana
prestando, no mínimo, o essencial a uma vida digna.
É o princípio da proibição da insuficiência que será o contraponto
ao princípio da reserva do possível para mostrar ao Estado que não se
pode descer aquém do mínimo, sob pena de inconstitucionalidade.
Aliando o princípio mencionado ao tema segurança pública, entendemos
que não pode o Estado jamais coibir o crime, fator humano e social, mas
deve manter a criminalidade em níveis suportáveis, prestando o dever
de preservar as liberdades, direitos e garantias, sob pena de atuação do
Poder Judiciário para garantir a Constituição.
Em análise última, colacionamos julgados da Suprema Corte
brasileira em que houve exame mesmo perfunctório dos temas abordados
durante o trabalho e demonstramos que, mesmo de maneira incipiente,
o Supremo Tribunal Federal já utiliza as balizas constitucionais existentes
para garantir a segurança pública à população, demonstrando até que
pode haver ingerência na conveniência e na oportunidade, quando os
demais poderes não cumprirem o mínimo social, gerando instabilidade
social e insegurança.
Através dos elementos trazidos, concluímos que, amparada no
parâmetro da dignidade da pessoa humana e consubstanciada no mínimo
social, pode e deve a Suprema Corte pautar sua atividade jurisdicional
para efetivar o direito à segurança pública, sem substituir diretamente o
administrador, mas indicando que este está prestando o serviço aquém
do mínimo esperado pela Constituição.
Revista do CEJ - n. 5, p. 135-164 - nov. 2015
161
O ativismo judicial do Supremo Tribunal Federal do Brasil nas questões envolvendo segurança pública.
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Revista do CEJ - n. 5, p. 135-164- nov. 2015
Negócios jurídicos existenciais. Os
contratos gestacionais e as diretivas
antecipadas de vontade182
Jones Figueirêdo Alves183
Sumário: Introdução. 1 Contratos de gestação. 2 Contratos
de gestação em espécie. 3 Testamento vital.
Introdução
A existência humana e o sentido da vida, nos seus propósitos e
significados, ultrapassam vetustos questionamentos filosóficos quando,
com os avanços médico-científicos, a ciência passa a reclamar respostas
jurídicas compatíveis a uma nova dimensão de dignidade da pessoa. O
dilema não é mais somente de Hamlet.
Uma antiga ordem jurídica resulta insuficiente quando, do
mundo dos fatos, eventos biogenéticos e novas terapêuticas de esforço
colimam tratar a vida, do ponto de seu começo até a sua terminalidade,
com mecanismos de intervenção severa, a exigir melhores atenções do
direito.
No ponto, a expressão “negócios jurídicos existenciais” colocase em modernidade do direito, quando suportes fáticos orientam novas
relações jurídicas em matéria de presunção de filiação, diante de contratos
gestacionais, ou quando se prioriza a ortotanásia (ROSKAM, 1950) em
âmbito da autonomia privada, em sua natureza objetivista, como mera
aceitação da morte.
Em ambas as hipóteses, a essência existencial é o elemento
determinante, de modo que, na tramitação do tema, procriação assistida
e diretivas antecipadas de vontade podem ser reunidas sob o enfoque
contratual.
182
Texto orientador da palestra proferida em 12.09.2014 no VI Congresso Paulista de Direito de Família e
I Congresso de Direito de Família do Sudeste, promovidos pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família,
secção São Paulo – IBDFAM-SP; em São Paulo (SP), no auditório da Universidade Paulista – UNIP.
183
Desembargador decano do Tribunal de Justiça de Pernambuco.
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165
Negócios jurídicos existenciais. Os contratos gestacionais e as diretivas antecipadas de vontade
Antes de mais, para uma análise acerca das relações jurídicas
em sede de reprodução assistida, impende observar como haverão de
situar-se tais relações, em esfera concomitante com as limitações éticas,
e em confronto com um inegável direito à procriação, os denominados
direitos reprodutivos.
Mais precisamente, as técnicas de PMA devem ser havidas
e tratadas, do ponto de vista jurídico, como um direito fundamental,
nomeadamente para aqueles onde a reprodução com intervenção médica
seja a única fórmula eficiente ao casal que não pode gerar um filho por
meios naturais.
Assim, o reclamo de um modelo de Direito Reprodutivo, como
categoria jurídica de direitos de nova geração, conciliador entre ciência
e bioética, está a indicar a necessidade de diretivas legais de inusitada
relevância. Ou seja, de os sistemas jurídicos identificarem, de forma
homogênea e indiscrepante, a dimensão do direito de reprodução
assistida, nos seus limites adequados, em satisfação e proteção da
dignidade dos projetos parentais.
Aqui se colocam, de logo, as primeiras problematizações, para
ingresso na primeira parte temática do que se pretende expor.
A ciência tem apresentado ao biodireito uma multifacetada
filiação octogenética, a demonstrar a existência possível de diversos
contratos gestacionais, ao tempo em que, por essencial, implica o direito
reprodutivo uma legitimidade de acesso aos recursos das novas técnicas
de reprodução medicamente assistida.
A busca do filho, por meios não naturais, encontra o caminho
dos avanços da tecnologia, mediante referidas técnicas, que faz também
encontrar “novas famílias” ou famílias exsurgentes.
Tal sucede nos casos da mulher solteira, em produção
184
“Segundo dados do IBGE, a população brasileira vem crescendo na proporção de 2,3 filhos por mulher, o
que representa um índice muito próximo da chamada ‘taxa de reposição’, que é de 2,1 filhos por mulher.
Tendo em vista que nossa população já atingiu o limite do aceitável, a notícia seria reconfortante não fosse a
constatação de que ainda há, no país, regiões muito pobres em que as mulheres têm um filho por ano e podem
ultrapassar o total de vinte gestações até a menopausa. As chamadas ‘políticas de planejamento familiar’, em
geral boicotadas por setores conservadores da sociedade, precisam ser ampliadas e adaptadas à realidade
da emancipação feminina e dos direitos sexuais. Não resolve instituir programas partindo da premissa de
que apenas a mulher casada irá procriar. Ao contrário, a mulher casada de hoje é, proporcionalmente, a que
menos engravida involuntariamente. Por isso, o planejamento não deve ser encarado como familiar, mas
como reprodutivo, abrangendo pessoas casadas ou solteiras”. (Luiza Nagib Eluf/2004).
166
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Jones Figueirêdo Alves
independente, que obtém o sêmen de doador desconhecido (famílias
monoparentais), de casais homoafetivos, obtendo gametas em doação,
traduzindo-se em famílias de dois pais ou de duas mães, e nas famílias por
design, nova entidade familiar com uma co-parentalidade singularizada
apenas pelas relações do filho com os seus co-pais, estes sem a moldura
clássica do casal da família, como adiante se tratará.
O princípio da maternidade sempre certa (“mater sempre certa
est”), no fato do nascimento do filho por quem o gestou, traduzido no n. 1
do artigo 1.796 do Código Civil português, coloca-se relativizado, a partir
da maternidade substitutiva, maternidade por outrem ou maternidade
sub-rogada, com a cessão de útero.
De fato, as técnicas de reprodução estão a permitir a
construção de uma criança com a contribuição de seis pessoas diferentes,
quando, a esse respeito, Stela de Almeida Neves Barbas aponta uma
tridimensionalidade procriativa.
Essa apresentada nas dimensões orgânica (pai/mãe genética
- dadores de esperma/óvulo), física (mãe gestante/pai, ou seja, a mãe
portadora e seu companheiro) e simbólica (pai/mãe adotivos).185
Enquanto isso, o clássico Guilherme Oliveira (Coimbra, 1992)
apenas afirmava: “Mãe só há duas”:
(i) a mulher que gerou o embrião formado a partir de ovócito
dela mesma (maternidade gestacional e genética);
(ii) a mulher que gera em seu útero embrião que tem origem
em ovócito de outra mulher.
Mas se dirá que mãe só há três, sendo a terceira a do projeto
parental, que recepciona, socioafetiva, o filho encomendado com o sêmen
do marido.
Ou também se dirá: mãe só há quatro, sendo esta última a
adotiva, em circunstância de quando a mãe genética, doadora do óvulo,
altruisticamente faz a doação para a terceira, a que destinou a gestação de
encomenda pela segunda, e essa terceira, então separada do marido, não
aceita mais o filho, colocando-o, afinal, para adoção.
185
BARBAS, Stela Marcos de Almeida Neves et al. Estabelecimento da maternidade: A Gestação por outrem à luz
do Direito Civil português. In: Bioética e direitos da pessoa humana; Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2012,
pp. 271-282.
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Negócios jurídicos existenciais. Os contratos gestacionais e as diretivas antecipadas de vontade
Pois bem. A primeira problematização, a suscitar intenso debate
quanto ao direito à procriação, como “direito ao filho”, diz respeito ao
elemento temporal.
Embora parte da doutrina sustente que o direito reprodutivo
deva ser exercido a todo momento e seja em que circunstância for” (Ana
Paula Guimarães, Coimbra/PT, 1999), certo é que este é limitado, por
alguns países, às chamadas “famílias biparentais” (casais casados ou que
vivam em condições análogas às dos cônjuges), então excluídas as pessoas
separadas ou solteiras; e também a gravidez, com reprodução assistida,
apresenta-se apenas admitida às mulheres de até cinquenta anos, devido
aos riscos à saúde da mãe geratriz e ao bebê, como agora sucede com a
Resolução n. 2.013, do CFM, de 16.04.2013 (I, n. 06). Mas não é só.
Pais de idade avançada, sem filhos, devem utilizar as novas
tecnologias de reprodução assistida, quando os filhos daí advindos, por
certo, serão órfãos precoces e eles, os pais, não poderão projetar o futuro
dos mesmos?
As paternidades tardias, notadamente as maternidades,
constituem projetos parentais egoísticos, em ordem de os filhos, surgidos
de uma medicina de ponta, inevitavelmente, tornarem-se, quando jovens,
cuidadores dos velhos pais? Isto quando estes, designadamente, é que
deveriam prestar aos filhos os maiores cuidados, na idade em que os
jovens mais precisam do apoio dos pais?
Em ser assim, a paternidade deve se submeter a limites temporais
de idade dos pais, ou mais precisamente, os direitos reprodutivos devem
observar exercício em tempo adequado, a evitar situações extravagantes
na relação parental?
A justiça italiana disse que sim, em decisão com tais fundamentos,
que repercutiu no direito biomédico e suscitou novas discussões de
bioética.
Cinco juízes da corte de Turim afirmaram (setembro/2011), em
relatório de quinze páginas, no rumoroso “Caso De Ambrosis”, que os pais
Gabriella (57 anos) e Luigi De Ambrosis (70 anos), casados há vinte e um
(21) anos e sem filhos nesse período, não poderiam ter mais a guarda da
filha nascida de reprodução assistida, em razão da idade avançada de
ambos e, de consequência, de lhes faltar condições de criá-la.
168
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Jones Figueirêdo Alves
Viola, agora com um ano e sete meses, foi arrebatada dos
pais e colocada em adoção. A decisão judicial unânime acusou os pais
de “egoístas e nascisistas”, por terem a criança em idade avançada,
expressando que “essa criança é fruto de uma aplicação distorcida das
enormes possibilidades oferecidas pelas novas tecnologias”. O processo
começou quando vizinhos indicaram que a criança estaria negligenciada
pelos pais, com prejuízo ao seu bem-estar, tendo os exames psicológicopsiquiátricos indicado que a mãe não estabelecera “vínculos emocionais
com a filha”.
Impõe-se dizer que as técnicas de RMA (reprodução
medicamente assistida) foram realizadas fora da Itália, onde não se
permite a doação de óvulos, como ocorreu no “Caso De Ambrosis” - e mais
recentemente (09/2011), em outros dois casos de casais idosos (pai-mãe
de 65/57 anos e 70/58 anos), que geraram filhos gêmeos.
Pois bem. A principal questão trazida pelo projeto parental
controvertido na decisão italiana é a de saber se a idade dos pais é
determinante à afirmação adequada da paternidade pretendida.
De saída, cuidamos que não. Aliás, os casos de gravidez tardia,
com técnicas de RMA, têm sido muito frequentes, figurando a espanhola
Maria del Carmen Lara, em 2006, quando teve gêmeos, a romena Adriana
Iliescu, e Elizabeth Adeney, do Condado de Suffolk (DW), todas aos 66
anos, como as mães mais velhas. E por gravidez natural, a britânica Dawn
Brooke, em 1997, aos 59 anos.
1 Contratos de gestação
Assentadas essas primeiras premissas, cuidemos dos contratos
gestacionais.
O jurista português Fernando Araújo refere ao “contrato de
gestação”, submetendo-o a dois modelos, um envolvendo os próprios
pais genéticos; o outro, como “gestação de substituição”, onde a mãehospedeira não é a mãe genética.
Nesse sentido, considera:
Na sua forma tecnicamente mais simples, corresponde à
inseminação artificial de uma “mãe hospedeira” por um
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169
Negócios jurídicos existenciais. Os contratos gestacionais e as diretivas antecipadas de vontade
dador conhecido, para que, por efeito de um contrato
entre ambos, o “contrato de gestação”, a criança gerada seja
entregue ao dador, que é o pai biológico. Numa forma mais
complexa, envolve a fertilização in vitro de ovócitos de uma
mãe biológica e a posterior implantação de alguns dos
embriões resultantes na “mãe portadora”, que neste caso
deixa de ser a mãe genética, para que a criança gerada seja
entregue aos progenitores biológicos 186
Como se observa, o autor cogita do “contrato de gestação”,
sem implicar, todavia, no seu objeto, “gestação de substituição”, isto
porque, na primeira forma enunciada, a mãe portadora confunde-se com
a mãe genética, simplesmente gestando filho para entrega futura ao pai
também genético, sem que, entre ambos, exista relação de ordem familiar,
conjugal, convivencial ou afetiva, senão e tão somente uma relação
jurídico-contratual.
A hipótese tem lugar no conhecido caso “Nancy B”, mãe
portadora e genética, que pretendeu anular o contrato “mediante o qual
se obrigava a entregar a criança gerada ao pai biológico e a consentir na
adoção pela mulher do pai biológico”.
A Corte de Apelações da Califórnia, ao confirmar (julho, 1991)
a decisão do tribunal de primeira instância, ponderou pela prioridade
dos interesses da criança, que, na hipótese, admitiu-os protegidos pela
ligação afetiva revelada ao pai e à sua mulher, não cuidando de avaliar
os fundamentos éticos e psicológicos da mãe genética para incumprir o
contrato. De fato, as diversas modalidades da maternidade de substituição
têm provocado controvérsias maiores.187
186
ARAÚJO, Fernando. A procriação assistida e o problema da santidade da vida. Coimbra: Livraria Almedina,
1999, p. 26-27.
187
Proclama o n. 3. do artigo 8º da LPMA portuguesa (Lei n. 32/2006, de 26 de julho), que “a mulher que suportar
uma gravidez de substituição de outrem, é havida, para todos os efeitos legais, como a mãe da criança que
vier a nascer”. Isto implica dizer que toda a mãe portadora, seja ou não com seu material genético, será mãe
nos exatos termos da lei portuguesa, embora admita Stela Barbas que tal imposição legal signifique, em
ultima palavra, o estabelecimento da filiação como uma sanção civil.
Lado outro, admite-se a paternidade como ficção jurídica, nos casos de inseminação artificial heteróloga,
onde o filho é havido como do marido da mulher inseminada, a tanto prestando o seu consentimento (art.
1.826, CCpt. e art. 1.597, inc. V, CCbr). E ao fim e ao cabo de tal presunção de filiação, exclui-se a paternidade do
dador do sêmen, a saber do art. 21 da LPMA. Entretanto, embora a maternidade de substituição represente,
às expressas, uma variante eloquente da inseminação artificial heteróloga, não se exclui a maternidade da
cedente do útero, que em maioria dos casos, não oferece também seu material genético.
A nosso sentir, por identidade de razões, a lei incorpora uma contradição substancial, ao afastar a paternidade
do dador do sêmen, o pai genético, e não adotar a mesma diretiva, quando se trate da mãe substitutiva,
biológica ou biológica e genética. Muito ao revés, cuida de constituir um novo vínculo de filiação, o da
170
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Jones Figueirêdo Alves
O modelo da esposa infértil, que admite o sêmen do marido
artificialmente inseminado na mãe substituta, doadora do óvulo, alude o
Gênesis (30,3) “onde Sara, mulher de Abraão, pede a este que tenha um
filho com Hagar, sua criada, para que através dela também se tornasse
mãe”.
Aqui se tem o tipo de gestação de substituição como
contrato de maternidade sub-rogada, quando além de ser gestadora
do embrião, a mulher também é doadora do óvulo, ou seja, do material
genético.
Em bom rigor, haverá de se reconhecer que a doadora do óvulo,
tendo gestado também o embrião, perfaz a idéia de quem gera um filho
para destiná-lo à adoção, em última análise.
Também ocorrem modelos mais dilemáticos, onde (i) o embrião
resultante da fertilização in vitro dos gametas do casal é transferido para
o útero da mãe substituta, resultando maternidade de substituição
biológica pela mãe hospedeira, verificando-se em relação ao filho gestado
a existência de pais estritamente genéticos e (ii) o embrião fertilizado
in vitro, tendo ambos os gametas doados, ocorrendo a mãe substituta
gestado filho para pais sociais, ou pais socioafetivos, em programação
parental daqueles. Em ambos os casos, a substituição será apenas
gestacional.
Exemplo outro mais se acentua quando se trata de gestações
de substituição, em contratos de barriga de aluguel destinados à família
constituída em relação homoafetiva, quando ambos os parceiros serão
os pais da criança, sem qualquer maternidade definida senão aquela
da mulher geratriz, unicamente hospedeira. Nessa hipótese, a mulher
cede seu útero para gerar um filho, após inseminação com o embrião,
paternidade por parte do marido da mãe portadora, que anuiu a essa gestação por outrem, e como tal
assume o equivalente da paternidade consagrada ao marido que assentiu a inseminação artificial heteróloga,
ficando nessas hipóteses de assentimentos ambos havidos como pai. Essa perplexidade ocorre, a desnaturar
a idéia do projeto parental, em direito ao filho, e a inevitável realidade da maternidade substitutiva.
Ora bem. Diante do problema posto, Stela Barbas indica, de lege ferenda, uma regulação à gestação por
outrem, em princípio de respeito à mãe genética, quando o estabelecimento da maternidade deverá, ser
fixado a quem, recorrendo à mãe portadora, ofereceu os ovócitos; tal não sucedendo, porém, quando
estes forem da própria mãe substitutiva ou de terceira mulher. Como bem colocado, a seu entender, razões
suportam a solução indicada ao sistema jurídico, em primazia da origem genética da maternidade.
Para além disso, cuide-se, refletir com maior largueza, em casos de monoparentalidade programada, onde
proceda-se a maternidade de substituição em reprodução colaborativa a uma pessoa solteira, seja homem
ou mulher.
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Negócios jurídicos existenciais. Os contratos gestacionais e as diretivas antecipadas de vontade
gerado por um deles, em fertilização in vitro, com os óvulos doados por
terceira mulher.
Situações outras não estão inteiramente reguladas, ou não
disciplinadas pelo legislador, no amplo espectro que envolve acordos
de maternidade de substituição, a exemplo de ocorrências atípicas, já
registradas em casuística ou em doutrina, que cogitam de:
(i) recusa da mãe substitutiva, mais das vezes unicamente
hospedeira (sem doação de seu material genético) à entrega da criança
gestada;
(ii) recusa dos pais comitentes a recepcionar a criança, nascida
com alguma deficiência;
(iii) situação de morte da mãe substitutiva, em causa do parto,
no trato da responsabilidade contratual ínsita da relação subjacente.
(iv) situação de separação dos pais encomendantes, ou de
morte de um deles ou de ambos.
Em suma, nada obstante a presunção básica de o parto indicar a
mãe, ou seja, a parturiente ser, em regra, a mãe biológica e geratriz, como
tornam assentes alguns ordenamentos jurídicos dominantes, a exemplo
do direito português, o pressuposto é desafiado por relevâncias de uma
nova realidade cientifíca, a exigir, daí, cuidadosa análise jurídica.
2 Contratos de gestação em espécie
Posta essa visão, cuide-se, agora, da tipologia dos contratos
gestacionais, onde o primeiro deles é o mais convencional, o da cessão
temporária de útero para os fins de gestação por outrem.
A relação intersubjetiva contratual envolve, na maioria, o casal
interessado, titulares do projeto parental, e uma mulher disponível e
prestativa que vai gerar a criança. Em um dos polos da relação, o dos
contratantes, o casal ou apenas um dos pares (homem e mulher), que
tem interesse no resultado da gravidez substituta, para obter um filho,
e no outro polo, a mulher, mãe geratriz, que vai gerar um filho para
outrem.
Como antes referido, ela pode não ser apenas geratriz, mas
fornecedora do óvulo. Nesse caso, a maternidade de substituição
representa, às expressas, uma variante eloquente da inseminação artificial
172
Revista do CEJ - n. 5, p. 165-180 - nov. 2015
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heteróloga, importando considerar que a cedente do útero, mesmo com
seu material genético, faz a cessão para um projeto parental de terceiros.
Mais das vezes, a gestação de substituição, atendido que as
cedentes devem pertencer à família de um dos parceiros, em parentesco
consanguíneo até o quarto grau, respeitada também a idade limite de até
cinquenta anos, tem sido exercitada por mulheres avós que gestam os
seus netos.
Essa circunstância envolve uma notável discussão da
possibilidade de a filiação comportar ou não compartilhamento entre
mais de um pai ou mais de uma mãe.
A maternidade substitutiva avoenga, que teve sua ocorrência
pioneira, em 1987, na África do Sul, e no Brasil, em Nova Lima, MG, em
2008, tem sugerido que essa relação constitua uma maternidade dúplice,
inegável que a avó se torna, pelo vínculo nutriente, na prática, uma
eficiente genitora socioafetiva do neto gestado.
Situação às avessas surge com o famoso caso Bouvin, quando
Melanie Boivin (35) teve seus óvulos congelados para sua filha Flavie
(7) usá-los no futuro. Ela sofre da condição genética chamada Síndrome
de Turner e, na hipótese, terá um filho que virá a ser filho genético da
própria avó.
Pois bem. Não há negar, nesse cenário, o surgimento de
figurações múltiplas de filiação. Tem-se, com efeito, (i) a maternidade
binária ou dual, nas hipóteses de mãe de gestação (biológica) e mãe
genética (doadora de óvulo), com a diretiva de presunção jurídica
de filiação, a tanto que a Áustria e outros países proíbem doação de
óvulos. Essa maternidade dúplice tem sido corrente, nos casos de casais
homoafetivos, a tanto se admitindo conferir maternidade socioafetiva
para a companheira da mãe biológica em parceria.
A maternidade trinária ou tríplice tem seu registro mais
eloquente, no caso inglês das irmãs Alex, Charlote e Helen. Alex (1),
mulher estéril, recebeu a doação de óvulo da irmã Charlotte (2), enquanto
outra irmã, Helen (3), cedeu o útero, tendo sido o óvulo fecundado com
o sêmen do marido da primeira, apresentando-se definido o projeto
parental para eles. Bem de ver que, nessa hipótese, foi estabelecida
uma filiação trinária, por encomenda de filho, configurando, afinal, uma
Revista do CEJ - n. 5, p. 165-180 - nov. 2015
173
Negócios jurídicos existenciais. Os contratos gestacionais e as diretivas antecipadas de vontade
maternidade socioafetiva programada, a que planejou Alex, com seu
marido, este pai genético ao fornecer o material seminal. Fossem, em
conjunto, pais encomendantes, ter-se-ia a hipótese de uma verdadeira
adoção programada, com intervenção de pais genéticos e de uma mãe
biológica.
Os projetos parentais estão a edificar novas realidades
contratuais gestacionais, uma delas, antes referida de passagem, é a das
famílias por design.
Nela, o projeto parental do filho desejado ganha relevo não
apenas na esfera da afetividade, mas no da co-parentalidade, quando
ambos os pais idealizam o filho, como sujeito jurídico do estado de filiação
que os unifica como pais, independente das relações subjacentes que os
aproximam ou não enquanto parceiros do mesmo projeto.
No caso, a questão agora assume proporções inusitadas,
quando redes sociais e sites americanos na Internet estão aproximando
pessoas apenas para a procriação pretendida; pessoas desconhecidas e
não propriamente interessadas em um relacionamento amoroso entre si e
que as coloquem, noutro passo, como pais consequentes da união afetiva
constituída.
Aqueles que em determinada faixa etária não tiveram ainda
filhos, por razões várias (exemplo: o da maior prioridade dada à profissão), e
que não desistiram do projeto parental, estão agora na corrida cibernética
da procura do pai ou da mãe do filho, unicamente pelo filho, servindo
a Web de bússola de encontro, nos fins da procriação, sem casamento,
sem união estável ou qualquer outro tipo de envolvimento. Uma nova
entidade familiar aparece, a da co-parentalidade, formada por um filho e
os co-pais.
Esses pais identificados por aproximação formam uma família
apenas destinada ao filho internético, plasmado da rede social e que não
conhecerá uma família convencional, senão apenas um pai e uma mãe,
como pais concebidos por seus interesses individuais próprios, os de
terem um filho com a assistência genética do outro genitor, nada mais
havendo entre eles.
É a família por parceria dos pais, tipicamente formada somente
para a co-parentalidade e não para uma relação convivencial-afetiva.
174
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Jones Figueirêdo Alves
O principal site é o Family by Design - www.familybydesign.
com - fundado por Darren Speedale, que promove arranjos familiares
com intentos procriativos, aproximando pessoas para atender os seus
objetivos parentais.
A diferença é que não se tratarão de doadores anônimos
para uma reprodução assistida, mediante inseminações artificiais ou
concepções de laboratório. Bem é certo que poderão preferir essas
técnicas, sem necessariamente o uso do método natural. Todavia,
serão sempre pessoas identificadas, parceiros escolhidos, inclusive,
por determinados perfis.
A gestação programada virtualmente, mediante decisão
conjunta de terem um filho juntos, envolve os pares na Internet, mesmo
que desconhecidos, a partir de questionários rigorosamente respondidos,
onde são elencados dados pessoais a partir de preferências, gostos e
demais informações, que poderão ser de interesse comum.
A funcionalidade da pesquisa, para o fim de escolha do casal,
situa-se, com mais precisão, nas definições acerca da guarda e educação
do filho projetado, quando um e outro já evidenciam como gostariam de
cuidar do filho, como dividir as tarefas inerentes ao exercício do poder
familiar de cada um, e como poderão trabalhar uma cooperação deles
pais, entre si, para proteger os interesses maiores do filho.
Essas tratativas prévias servem de contratualidade preliminar,
valendo admitir que contratos dessa espécie regularão novos arranjos
familiares para uma parceria do inusitado projeto parental.
Em outra vertente, evoca-se, a exemplo, o projeto parental
frustrado, no célebre “Caso Jaycee”, órfã de ninguém, quando seu
nascimento foi contratado pelo casal Luanne-John Biuzzanca, que se
separou antes de a criança nascer. Um drama que o direito não resolve, à
míngua de uma disciplina jurídica que albergue toda a dignidade da vida.
Aliás, expressou a ministra Carmen Lúcia, do Supremo Tribunal
Federal brasileiro, a dignidade da vida fez-se direito. É diante de um
tempo de tecnicalidades avançadas de reprodução, onde avós gestam
seus próprios netos, que se teme entender que o emprego de um tecido
ovariano fetal possa dizer e significar também que a mãe genética de
alguém seja um feto.
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Negócios jurídicos existenciais. Os contratos gestacionais e as diretivas antecipadas de vontade
Fiquemos por enquanto, nas implicações apontadas em
situações bem postas por Maria Helena Diniz, quanto à filiação
octogenética.
São sete situações paradigmáticas, que podem ser elencadas:
(i) fecundação de um óvulo da mulher com o sêmen do marido,
transferindo-se o embrião para o útero de outra mulher;
(ii) fertilização in vitro com sêmen e óvulo de estranhos, por
encomenda de um casal estéril, implantando-se o embrião no útero da
mulher ou no de outra;
(iii) fecundação, com sêmen do marido, de um óvulo não
pertencente à mulher, mas implantado no seu útero;
(iv) fertilização, com esperma de terceiro, de um óvulo não
pertencente à mulher, porém com imissão do embrião no útero dela;
(v) fecundação na proveta de óvulo da mulher com material
fertilizante do marido, colocando-se o embrião no útero dela própria;
(vi) fertilização, com esperma de terceiro, de óvulo da mulher,
implantando-se em útero de outra mulher;
(vii) fecundação in vitro de óvulo da mulher com sêmen do
marido, congelando-se o embrião, para que, depois do falecimento
daquela, seja inserido no útero de outra, ou para que, após a morte do
marido, seja implantado no útero da mulher ou no de outra.
Esse desenho no trato de filiações não convencionais, que
configuram, seguramente, novos conceitos de maternidade e de
paternidade, evidencia a importância do tema.
3 Testamento vital
Sobre o tema do testamento vital, diga-se, antes de mais, que
algo pode ser certo, na incerteza de quando a morte chega. No plano
material, ela não terá significado maior, porque “enquanto somos, ela não
terá chegado e ao chegar não somos mais”. No entanto, a sua proximidade
quando decadente o corpo por doenças incuráveis, bastante indicativa nos
estágios terminais de vida, tem provocado a consciência de necessidade
de uma morte digna.
Nesse novo plano, o da morte digna, enquanto o legislador
sequer conceitua a morte, senão admitindo, por óbvio, que deixa o ser
humano de existir com ela (artigo 6º do Código Civil), pelo evento que
176
Revista do CEJ - n. 5, p. 165-180 - nov. 2015
Jones Figueirêdo Alves
somente a ciência médica possa defini-lo; exulta, na atualidade, a exata
compreensão tanatológica de que a pessoa deve vivenciar, com maior
dignidade, o seu próprio processo de morte.
Em outras palavras, zelar pela qualidade da vida cessante, onde
a morte tenha seu tempo correto, certo e indeclinável, sem as abreviações
de vida favorecidas pela eutanásia ou sem o adiamento impositivo da
distanásia, por cuidados paliativos, afigura-se como um novo direito
personalíssimo.
Mais precisamente, quando o período vital se achar em manifesto
esgotamento, impossível a cura, sem reversões do quadro clínico terminal,
a vontade prévia do paciente, a respeito, ou na sua impossibilidade, do
seu representante legal, coloca-se fundamental ao desfecho, por diretivas
antecipadas e instrumentalizadas pelo denominado testamento vital.
Não apenas nesse contexto de terminalidades. Com maior
extensão, a declaração antecipada de vontade, e não a vontade
propriamente dita, se constitui em elemento essencial desse especial
negócio jurídico testamentário, ao nível da autonomia privada do paciente
em dispor da tomada de suas decisões sobre os limites da atuação médica
em face de si mesmo. Cuida-se do seu direito de decidir, por si ou por
mandatário, sobre os procedimentos médicos, mormente se submetidos
a risco de morte ou em estado vegetativo, de longa duração, este diverso
do estágio terminal.
Ou seja, as declarações prévias servirão para configurar a
autodeterminação do paciente, enquanto no pleno uso de sua capacidade,
em gestão adequada da dor e do sofrimento que possam permear uma
situação futura de doença ou de riscos por tratamentos médicos ou
intervenção cirúrgica, como, aliás, refere o artigo 15 do Código Civil.
Pois bem. Certo que a validade do negócio jurídico consiste, por
fundamento legal, na autonomia da vontade do declarante, sob a égide de
sua dignidade como pessoa, é possível verificar que, malgrado ainda não
introduzidos em nosso sistema jurídico, o testamento vital tem amparo na
Resolução n. 1.995/2012 do Conselho Federal de Medicina e a ortotanásia,
no Código de Ética Médica.
Assinala-se que, particularmente, no Estado de São Paulo, a Lei
n. 10.241/1999 (Lei Mário Covas) permite ao usuário dos serviços públicos
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Negócios jurídicos existenciais. Os contratos gestacionais e as diretivas antecipadas de vontade
de saúde “consentir ou recusar de forma livre, voluntária e esclarecida,
com adequada informação, procedimentos diagnósticos ou terapêuticos
a serem nele realizados” (art. 2º, VII), ou, ainda, a recusa de tratamentos
dolorosos ou extraordinários para o prolongamento da vida (art. 2º, VIII).
Não há confundir a ortotanásia ali autorizada com a eutanásia
passiva, revestida de um non facere, quando tratamentos admissíveis ao
paciente são suspensos, com a antecipação gradual do evento morte
(Caso Terry Schiavo, 1990/2005).
No mais, o direito do paciente à ortotanásia já foi reconhecido
em sede de jurisprudência, em decisão pioneira do TJRS, na Apelação
70054988266, quando um ancião obteve decisão judicial “para negar-se
a ver sua perna amputada como meio hábil ao tratamento para livrá-lo
da morte”. Nesse conduto, o direito à vida (art. 5º, caput,
t CF) há de ser
combinado com o princípio da dignidade da pessoa (art. 2º, III, CF),
significando dizer vida com dignidade ou razoável qualidade, não se
confundindo, ademais, o direito à vida com o dever à vida.
Inegavelmente, a incidência da ortotanásia, por via autorizada,
reclama uma declaração válida e eficaz, por agente capaz, pelo que o
paciente incapaz não mais terá condições de manifestar a sua vontade.
De efeito, a exteriorização antecipada dessa vontade, em tempo
hábil, a ser cumprida, segundo as diretivas por ela estabelecidas, resultou,
pela primeira vez, prevista na “Lei da Morte Natural” (“Natural Death Act”),
na Califórnia, EUA, instituindo-se, para esse fim, o testamento vital.
A seu turno, as Resoluções editadas pelo CFM, números
1.805/2006 e 1.995/2012, em respectivo, efetiva a prevalência da
vontade declarada do paciente, importando a suspensão de tratamentos
paliativos de prolongamento inútil da vida (art. 1º, Res. 1805/06) e, afinal,
regulamenta as diretivas antecipadas de vontade, apenas suscetíveis de
incumprimento quando em desacordo com os preceitos ditados pelo
Código de Ética Médica (art. 2º, § 2º; Res. 1.995/12).
Em idêntica latitude, a Lei portuguesa n. 25, de 16.07.2012, Lei
do Testamento Vital, regulamenta as disposições antecipadas de vontade,
com prazo de validade para a declaração, renovável mediante confirmação,
e estabelece três exceções para seu descumprimento, dentre elas o risco
iminente de morte e a escusa de consciência do médico.
178
Revista do CEJ - n. 5, p. 165-180 - nov. 2015
Jones Figueirêdo Alves
Ainda que no prazo de validade, a terceira exceção guarda
conformidade com a assertiva de ser possível a desatualização da vontade
do paciente, decorrente do avanço científico das terapias disponíveis.
A doutrina sustenta que “a ineficácia do testamento por
caducidade aumenta a insegurança do declarante, deixando-o vulnerável
quanto ao momento da necessidade de sua utilização” (CARLA NERY,
2013).
Todavia, anota-se, com relevância, que o testamento vital deva
ser desconsiderado, ante ulterior evolução dos meios terapêuticos, no
enfrentamento de doenças havidas por irreversíveis, certo que então
alterados os desígnios existenciais da patologia então invencível.
No ponto, aqui se defende a relativização do Enunciado n. 528
das “Jornadas de Direito Civil”, ao dispor válida a declaração de vontade
expressa em documento autêntico, também chamado “testamento vital”,
em que a pessoa estabelece disposições sobre o tipo de tratamento
de saúde, ou não tratamento, que deseja no caso de se encontrar sem
condições de manifestar a sua vontade.
Em hipóteses que tais, uma situação existencial superveniente
deve merecer devida pertinência de excepcionalidade, a tanto que
se apresenta razoavelmente adequada uma previsão de prazo do
testamento.
Em outro giro, coloca-se em discussão situação determinante
de não validade da declaração de vontade do paciente. É que, “no âmbito
do direito médico, a autonomia do paciente tem sido designada como
direito ao consentimento informado, por ser este, segundo MARTINEZ
(2005), o único instrumento suscetível de garantir o pleno respeito à
autonomia da vontade do enfermo”.
Em corolário lógico-jurídico, “o consentimento informado
é o fundamento da autodeterminação e o instrumento que torna
legítima a recusa de tratamento” (RODOTÁ, 2007), assim entendendose, por definitivo, que “para análise das diretivas antecipadas, é de suma
importância as noções acerca do consentimento informado”.
Em outras palavras, na relação contratual médico-paciente, o
paciente, para assumir sua autonomia de vontade, como sujeito ativo da
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Negócios jurídicos existenciais. Os contratos gestacionais e as diretivas antecipadas de vontade
decisão, deverá ser inteiramente ciente de sua situação, com informações
adequadas para as diretivas antecipadas que venha a constituir em
testamento.
O direito à autodeterminação do paciente foi consagrado no
célebre Case Nancy Cruzan, com a decisão da Suprema Corte americana, em
novembro de 1990, a provocar, inclusive, edição de lei federal, positivando
o direito de preparo pelo paciente de uma diretiva antecipada.
Como se observa, a atuação médica haverá, por certo, de
se coadunar, sempre com dignidade do paciente, significando, nesse
alcance, que as diretivas antecipadas de vontade devem ser encaradas
não apenas como extensão das dinâmicas do consentimento informadas.
Para além disso, implica que a ortotanásia é o significado de uma prática
terapêutica, sempre que o testamento assim estabeleça.
Diretiva permanente é a de a dignidade do paciente dever ser
sempre saudável, como eficientes deverão ser os resultados da reprodução
assistida. De tal ordem, sabe-se, de há muito, que o homem se tornou o
primeiro produto da evolução capaz de dominar a própria evolução.
180
Revista do CEJ - n. 5, p. 165-180 - nov. 2015
Responsabilidade civil do provedor
de conteúdo por lesão a direito da
personalidade na Internet188
Rafael Cavalcanti Lemos189
Miranda (1981, p. 354) critica os países de língua e cultura latinas
(ou – melhor – “de língua não alemã”) pela resistência à criação e emprego
de termos novos a (1) novos fatos ou (2) relações recém-descobertas
em fatos velhos. O encontro entre o mundo jurídico e o (mundo) da
informática revela-se altamente problemático por falta de cultura jurídica
dos técnicos e (de cultura) técnica dos juristas (PAESANI, 1999, p. 14). A
Internet em pouco tempo saiu do ambiente acadêmico para se tornar um
espaço em que se podem realizar quase todas as atividades do cotidiano
(REINALDO FILHO, 2000, p. 105-106). O termo tradicional português
“provedor” adquiriu com ela (Internet) vários significados. Como explica o
ministro Luís Felipe Salomão em seu voto no REsp 997.993/MG (4ª Turma
do Superior Tribunal de Justiça, julgado em 21 de junho de 2012, DJe de
6 de agosto de 2012),
os provedores backbone – “espinha dorsal” – configuram
as estruturas físicas primárias pelas quais transitam a quase
totalidade dos dados transmitidos pela internet. No caso
brasileiro, a Embratel realiza os serviços de provedor backbone.
Os provedores de conteúdo formam a intermediação entre o
editor da informação de um site [também dito “provedor de
informação” – SANTOS, 2011, p. 80] e o internauta que a acessa.
Os provedores de acesso são o meio pelo qual o usuário se
conecta à rede, mediante a aquisição de um “endereço IP”,
funcionando como um intermediário entre o equipamento
188
Texto escrito anteriormente à entrada em vigor (em 23 de junho de 2014) da Lei n. 12.965, de 23 de abril
de 2014, a qual, de todo modo – conquanto “inaplicável [...] a fatos pretéritos” –, ao “prev[er], em seu art. 15,
a obrigação de manter ‘registros de acesso a aplicações de internet’, pelo prazo de seis meses”, “só reforça
o entendimento” “consolidado no sentido de que os provedores de hospedagem [rectius: (provedores) de
conteúdo ou, em termos da lei (12.965/2014) mesma, (provedores) ‘de aplicações de internet’]’ [...], embora
dispensados de fiscalizar o conteúdo das postagens realizadas pelos usuários, têm a obrigação de identificar
o autor de alguma ofensa, por meio do IP do usuário” (cf. voto do relator, Min. Paulo de Tarso Sanseverino, no
AgRg no REsp 1384340/DF, 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, unânime, j. 5.5.2015, DJe 12.5.2015).
189
Juiz de direito do Tribunal de Justiça de Pernambuco, especialista em Direito Processual Civil pela Universidade
Federal de Pernambuco e mestre em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.
Revista do CEJ - n. 5, p. 181-206 - nov. 2015
181
Responsabilidade civil do provedor de conteúdo por lesão a direito da personalidade na Internet
do usuário e a internet, tal como o serviço de telefonia, sendo
responsável pela qualidade da conexão, disponibilidade,
velocidade e segurança. Os provedores de hospedagem, por
sua vez, dão suporte ou alojamento às páginas de terceiros,
vale dizer, oferecem a interessados espaço virtual próprio
para a alocação de um site. Como regra, os servidores de
hospedagem não interferem no conteúdo do site, mas
somente o proprietário deste. E, finalmente, o provedor de
correio eletrônico é aquele vocacionado ao fornecimento de
uma caixa postal virtual, mediante a qual se trocam mensagens
e na qual elas podem ser armazenadas.
Como já explicava há mais de uma década o professor da
universidade Harvard Lawrence Lessig (1999, p. 222), quando era maior
a crença na impossibilidade de controle sobre a Internet (LESSIG, 2006, p.
IX), a qual seria um campo liberto do Estado (LESSIG, 2006, p. 2), às vezes
uma certa hesitação antes de resolver questões de ordem constitucional
no ciberespaço definitivamente, ou com firmeza, ou com qualquer
pretensão de permanência, é totalmente apropriada, mas, noutros
casos, magistrados, especialmente os de instâncias inferiores, devem
ser mais enérgicos (LESSIG, 1999, p. 222). (Magistrados) de instâncias
inferiores sim, porque há muitos deles e vários são extraordinariamente
talentosos e criativos (LESSIG, 1999, p. 222). Suas vozes ensinariam algo,
mesmo provisórias ou de alcance limitado suas decisões (LESSIG, 1999,
p. 222). Nos casos de aplicação duma norma tradicional (por força de
interpretação tradicional conferida à lei) a situações fáticas novas (simple
translation), quando inexistem ambiguidades latentes e a tradição
parece falar claramente, os magistrados deveriam promover com firmeza
argumentos que visassem preservar, num novo contexto, os valores
originais de liberdade (LESSIG, 1999, p. 222). Nesses casos, há um espaço
relevante para o ativismo, e os magistrados devem identificar os valores de
determinada cultura jurídica e defendê-los, não necessariamente porque
esses valores estejam certos, mas porque, se devem ser ignorados, devese fazê-lo (ignorar esses valores) só porque foram rejeitados (não por um
juízo, mas) pelo povo (LESSIG, 1999, p. 222). Porém, nos casos em que a
aplicação duma norma tradicional a situações fáticas novas não seja tão
simples (where translation is not so simple), diz Lessig (1999, p. 223), os
magistrados, especialmente os de instâncias inferiores, têm um papel
diferente. Nesses casos, os magistrados (especialmente os de instâncias
182
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Rafael Cavalcanti Lemos
inferiores, insiste) deveriam resistir a essa aplicação (duma norma
tradicional às novas situações) – “should kvetch190” (LESSIG, 1999, p. 223).
Eles deveriam falar sobre as questões que essas mudanças suscitam e
(deveriam) identificar os valores concorrentes em jogo (LESSIG, 1999, p.
223). Mesmo se a decisão a adotar em determinado caso é deferente ou
passiva, deve sê-lo (deferente ou passiva) sob protesto (LESSIG, 1999, p.
223). A prudência pode ser adequada a esses casos, mas, para justificar
sua (dos magistrados) passividade e compensar por permitirem que as
pretensões fracassem, os magistrados devem ao menos suscitar aos olhos
do mundo jurídico o conflito que aqueles (casos) trouxeram à tona (LESSIG,
1999, p. 223).
Casos difíceis não precisam resultar em mau direito, mas
também não deveriam ser tratados como se fossem fáceis (LESSIG, 1999,
p. 223). Esta (tratar como fáceis casos difíceis) é a resposta mais simples
ao problema da ambiguidade latente, mas é incompleta (LESSIG, 1999,
p. 223). A ambiguidade latente nos força a confrontar questões de valor
constitucionall e escolher (LESSIG, 1999, p. 223). Uma solução melhor
ajudaria a resolver essas questões: assim como nunca será tarefa dos juízos
fazer escolhas definitivas em matéria de valor,
r suscitando essas questões
os juízos podem inspirar outros a decidi-las (LESSIG, 1999, p. 223). Podese negar essa ambiguidade (LESSIG, 1999, p. 223). Pode-se argumentar
que os constituintes tinham em mente que o juízo nada faria quanto a
ambiguidades latentes; que em tais contextos o processo democrático
(Lessig – 1999, p. 223 – faz expressa referência ao artigo V da Constituição
dos EEUU, o qual trata das emendas a esta) entraria em cena para corrigir
uma má aplicação do direito ou para responder a uma nova circunstância
(LESSIG, 1999, p. 223). Esse bem pode ter sido seu (dos constituintes)
modo de ver (LESSIG, 1999, p. 223).
Não pensa, contudo, Lessig (1999, p. 223) que essa intenção seja
clara o suficiente para rebater sua (de Lessig) consideração de como se
pode melhor enfrentar a série de questões por vir sobre a aplicação dum
valor constitucional ao ciberespaço, preferindo errar tomando o partido
dum ativismo inofensivo a (errar tomando o partido) duma passividade
debilitante. É um pequeno papel para os juízos desempenharem na
conversa bem maior que é preciso ter – mas então, segundo ele (LESSIG,
190
“Kvetch” em inglês significa “reclamar, especialmente de modo inveterado” e vem do iídiche “kvetschn”, que
quer dizer “apertar” (WEBSTER, 1996, p. 1.069).
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183
Responsabilidade civil do provedor de conteúdo por lesão a direito da personalidade na Internet
1999, p. 223), ainda não iniciada. Chegar-se-ia, em muitos domínios da
vida social, a ver a Internet como o produto de alguma coisa alienígena
– alguma coisa que não se poderia controlar porque não se pode
controlar nada (LESSIG, 1999, p. 233). Alguma coisa, pelo contrário, que
se deveria simplesmente aceitar, enquanto ela invade e transforma a
vida das pessoas (LESSIG, 1999, p. 233). Para o professor de Harvard,
vivia-se, no fim dos anos 1990, a era do avestruz (LESSIG, 1999, p. 234).
As pessoas estavam animadas com o que não conseguiam entender e
orgulhosas por deixar as coisas à mão invisível (LESSIG, 1999, p. 234).
Elas (pessoas), no entanto, é que faziam invisível a mão, olhando para o
outro lado (LESSIG, 1999, p. 234).
Na chamada “web 2.0”, proliferam serviços tendencialmente
gratuitos que permitem aos usuários a colocação e transmissão de
conteúdos gerados por eles (usuários) mesmos; nela (web 2.0), pois,
o usuário deixa de ser mero consumidor dos serviços on-line para se
tornar outrossim ativo participante em sua (dos serviços) criação e
desenvolvimento (FACHANA, 2012, p. 17). A Internet, permitindo a todos
que sejam provedores de informação (LESSIG, 2006, p. 2), em confronto
com os meios tradicionais de comunicação, cuja (dos meios) arquitetura
de publicação é da espécie “um para vários” (LESSIG, 2006, p. 2), apresenta
potencial consideravelmente maior de causar dano, o qual por ela é
velozmente multiplicado e mais dificilmente reparado (SANTOS, 2011, p. 80).
Como ensinam Bartelembs e Timm (2008, p. 198), deve-se romper com a
tradição de abordar questões de direito com os olhos fechados ao que
decidem os juízos: jurisprudência é direito vivo (law in action, em oposição
ao law on the books) (BARTELEMBS, TIMM, 2008, p. 198). A maioria das
alterações legais promovidas pelo Código Civil brasileiro de 2002 não
é senão a cristalização, pelo legislador, da jurisprudência consolidada ou
tendenciall (FACCHINI, 2007, p. 32). Bibliotecas não são o espaço mais
adequado para estudar o ciberespaço (LESSIG, 2006, p. XVII).
As normas emergentes dos julgados sobre responsabilidade
civil na Internet regulam, justo como arrolou Lessig em 2006, p. 155, a
propriedade intelectual, a privacidade e a liberdade de expressão. Em
1991, no caso Cubby, Inc. versus CompuServe, Inc., a Corte Distrital de Nova
Iorque decidiu que, não havendo sido possível ao provedor de conteúdo
revisar texto ofensivo que terceiro publicara por meio dele (provedor), não
poderia aquele (provedor) ser por ele (texto) responsabilizado (REINALDO
184
Revista do CEJ - n. 5, p. 181-206 - nov. 2015
Rafael Cavalcanti Lemos
FILHO, 2011). Esse julgado serviu de inspiração à regra, adotada nos EEUU
e no continente europeu, de que a responsabilidade do provedor de
conteúdo existe tão só quando não remova o (conteúdo) que seja ilícito: o
Communications Decency Act,
t promulgado nos EEUU em 1996 para coibir
em favor das crianças a divulgação de material obsceno por meio da
Internet, confere, em sua seção 230, imunidade ao provedor que seja mero
instrumento de terceiro que a (divulgação) promova; o Digital Millennium
Copyright Actt (doravante DMCA), por sua vez, versa sobre o uso da
produção intelectual em meio eletrônico, isentando de responsabilidade
o provedor para com o conteúdo que seja disponibilizado na Internet
por terceiro (REINALDO FILHO, 2011). Na Europa, a seção 4 do capítulo
II da Diretiva 2000/31/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 8
de junho de 2000, outrossim aborda a responsabilidade dos prestadores
intermediários de serviços e, nos artigos 12 a 15, constrói um regime de
responsabilidade semelhante ao do DMCA, sem limitar-se contudo à
violação de direito autoral: o prestador de (na tradução oficial portuguesa)
“serviço da sociedade da informação” (termo mais amplo do que “de
conteúdo”) não é responsável, em princípio (id est,
t caso não tenha estado
na origem da transmissão, não haja selecionado o destinatário desta, nem
tenha selecionado ou modificado a informação objeto da transmissão –
art. 12, n. 1, alíneas a a c, da diretiva), por dados (mensagem de correio
eletrônico v.g.) transmitidos por terceiro, mas o (responsável) será caso, em
se tratando de armazenagem daqueles (dados), não remova – ou impeça
o acesso a – os (dados) ilícitos (RENALDO FILHO, 2011), como decidido, a
propósito, nos EEUU em A&M Records, Inc. versus Napster, Inc., (2001), em
que debatida a violação de direitos autorais (SANTOS, 2011, p. 81).
No Brasil, entretanto, entendia-se diversamente: o provedor de
conteúdo teria o dever de vigilância sobre o conteúdo que publicasse por
haver assumido o risco de que o serviço prestado fosse eventualmente
utilizado para a lesão de direito, como se verifica do julgado no processo
196.01.2006.028424-6, que tramitou na 2ª vara cível da comarca de
Franca, em São Paulo, o qual cita decisão, no mesmo sentido, na apelação
cível 431.247-4/0-00, julgada em 22 de março de 2007 pela 8ª Câmara
de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo (REINALDO FILHO,
2011). Essas decisões, de qualquer modo, faziam referência à culpa
do provedor de conteúdo (REINALDO FILHO, 2011). Outros julgados
brasileiros, com base no risco decorrente da natureza da atividade
desenvolvida pelo provedor de conteúdo, desenvolveram tese de sua
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Responsabilidade civil do provedor de conteúdo por lesão a direito da personalidade na Internet
(do provedor) responsabilidade objetiva por ato ilícito de terceiro que se
servisse daquela (atividade) (REINALDO FILHO, 2011). Assim o acórdão da
13ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Minas Gerais no julgamento
da apelação cível 1.0439.08.085208-0/001 em 12 de fevereiro de 2009, o
qual (acórdão) manteve a sentença no processo 1.0439.08.085208-0/001,
que correu na 3ª vara cível de Muriaé, pela qual (sentença) condenada
empresa hospedeira de blog a compensar o autor da ação por dano moral
provocado por terceiro nele (blog) redator (REINALDO FILHO, 2011). Da
mesma maneira decidiu o mencionado tribunal (de Justiça de Minas
Gerais) em 5 de agosto de 2009 quando da análise da apelação cível
1.0701.08.221685-7/001 (REINALDO FILHO, 2011).
Ao mesmo tempo, juízos brasileiros, rejeitando a teoria do
risco (cf. apelação cível 70045012994, 5ª Câmara Cível do Tribunal de
Justiça do Rio Grande do Sul, julgada em 19 de outubro de 2011, DJ de
24 de outubro de 2011), perfilhavam orientação contrária e defendiam a
responsabilidade no molde ianque-europeu (dito “notice and take down”
– cf. FACHANA, 2012, p. 138): apenas quando se recusasse a identificar
o ofensor ou a fazer cessar a agressão (v.g. removendo os dados ilícitos
quando deles comunicado, ainda que extrajudicialmente – cf. apelação
cível 0638758-41.2010.8.13.0024, 17ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça
de Minas Gerais, julgada em 1º de setembro de 2011, decisão publicada
em 20 de setembro de 2011; cf. tb. recurso cível 71002760601, 3ª Turma
Recursal Cível dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais do Rio Grande do
Sul, julgado em 14 de abril de 2011, DJ de 20 de abril de 2011) é que se
poderia (sem, entretanto, lhe – do provedor de conteúdo – desconsiderar
a personalidade jurídica, salvo alegação e prova de “conduta pessoal
ilegal praticada pelo administrador ou sócio” – cf. apelação 002211829.2007.8.26.0000, 5ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça
de São Paulo, julgada em 10 de agosto de 2011, DJe de 30 de agosto de
2011) responsabilizar o provedor de conteúdo (REINALDO FILHO, 2011 –
cf. tb. processo 2009.01.1.154740-8, 2ª Turma Cível do Tribunal de Justiça
do Distrito Federal e dos Territórios, DJe de 27 de maio de 2011), a não ser
que este (provedor de conteúdo) houvesse anunciado a impossibilidade
de alguém divulgar informação difamatória em seu (do provedor de
conteúdo) site (REINALDO FILHO, 2000, p. 109-110). Sua (do provedor
de conteúdo) responsabilidade, portanto, não seria nem solidária com o
terceiro nem objetiva (REINALDO FILHO, 2011). Nesse sentido: apelação
cível 130075-8, 5ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Paraná, julgado
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Rafael Cavalcanti Lemos
em 19 de novembro de 2002; apelação cível 2004.001.03955, 3ª Câmara
Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, julgado em 4 de novembro
de 2004; apelação cível 0147550-7, 5ª. Câmara Cível do Tribunal de Justiça
do Paraná, julgado em 30 de julho de 2007 (afastando a aplicação do
artigo 896 do Código Civil brasileiro de 1916, que diz a solidariedade não
poder ser presumida, resultando de lei ou vontade das partes, dispositivo
reproduzido pelo artigo 265 do Código Civil brasileiro de 2002) (REINALDO
FILHO, 2011). A responsabilidade objetiva, quando não é da natureza
do negócio – e mesmo inviável por limitação razoável de pessoal ou
(por limitação) da técnica presente (cf. apelação cível 2010.026544-9, 2ª
Câmara de Direito Civil do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, decisão
publicada em 29 de agosto de 2011 – contra, cf. processo 201000801912,
Turma Recursal dos Juizados Especiais Cíveis da Comarca de Aracaju em
Sergipe, DJ de 9 de dezembro de 2010; cf. tb. acórdão no REsp 1.117.633/
RO, 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, cujo julgamento deu-se em
9 de março de 2010, decisão mantenedora da do Tribunal de Justiça de
Rondônia, que tomava como exemplo de controle possível da Internet
o exercido na China - REINALDO FILHO, 2011) – o controle editorial,
inviabiliza-o (negócio) – SANTOS, 2011, p. 81. Em verdade, pelo próprio
caráter transnacional191 da Internet é difícil identificar que seja ilícito para
determinado ordenamento jurídico no qual difundida por provedor de
conteúdo uma informação (FACHANA, 2012, p. 173 – no mesmo sentido,
cf. MARTINS; MARTINS, 2007, p. 155; cf. tb. GANDELMAN, 1997, p. 161-162).
No julgamento do AgRg no REsp 1.309.891/MG, em 26 de junho de 2012
(DJe de 29 de junho de 2012), a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça,
chegou a afirmar que, “[n]a linha dos precedentes desta Corte, o provedor
de conteúdo de internet não responde objetivamente pelo conteúdo
inserido pelo usuário em sítio eletrônico, por não se tratar de risco inerente
à sua atividade”, não se lhe (ao provedor de conteúdo) aplicando pois o
191
A transnacionalidade da Internet, que anula limites de espaço e tempo, fazendo nascer uma sociedade
global de comunicação (PAESANI, 1999, p. 14), gera ainda dificuldade de ordem processual: “Como eu vou,
por exemplo, proibir uma homepage no Paraguai, que fale mal de mim, já que eu estou aqui no Brasil e tenho
de aplicar nossa legislação, e que daqui do Brasil eu tenho acesso a essa homepage? Nós temos de seguir as
regras dos artigos 88 a 90 do Código de Processo Civil [brasileiro de 1973], ou seja, o juiz brasileiro só será
competente nos casos de responsabilidade civil quando a obrigação deva ser cumprida no Brasil, o domicílio
do réu for aqui no Brasil, o fato ter ocorrido no Brasil ou o ato deva ser praticado no Brasil. Nos demais casos,
não há como você tornar competente, a não ser por tratados internacionais, o juiz brasileiro para julgar
um caso desses.” (PIMENTEL, 2000a, p. 102; no mesmo sentido, cf. BRASIL, 2000, p. 113). Por esse motivo, o
direito informático deve “ser concebido como um direito internacional, capaz de poder ver aplicadas suas
normas a todos os países do mundo” (PIMENTEL, 2000b, p. 160). Como diz Corrêa (2000, p. 72), “[u]suários de
computadores, sistemas provedores, conexões em rede e centrais de dados podem estar todos no mesmo
país, portanto, dentro de uma mesma jurisdição”, estando a questão em que a Internet se estende por vasto
número de distintas jurisdições.
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Responsabilidade civil do provedor de conteúdo por lesão a direito da personalidade na Internet
artigo 927, parágrafo único, do Código Civil brasileiro de 2002; quanto
à solidariedade, (o provedor de conteúdo) “[e]stá obrigado, no entanto,
a retirar imediatamente o conteúdo moralmente ofensivo, sob pena de
responder solidariamente com o autor direto do dano” (leading case o REsp
1.193.764/SP, 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, julgado em 14 de
dezembro de 2010 – cf. REINALDO FILHO, 2011 –, são ainda precedentes os
acórdãos em: REsp 1193764/SP, 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça,
julgado em 14 de dezembro de 2010, DJe de 8 de agosto de 2011; REsp
1186616/MG, 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, julgado em 23 de
agosto de 2011, DJe de 31 de agosto de 2011; REsp 1306066/MT, 3ª Turma
do Superior Tribunal de Justiça, julgado em 17 de abril de 2012, DJe de
2 de maio de 2012; REsp 1308830/RS, 3ª Turma do Superior Tribunal de
Justiça, julgado em 8 de maio de 2012, DJe de 19 de junho de 2012; REsp
1192208/MG, 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, julgado em 12 de
junho de 2012, DJe de 2 de agosto de 2012; REsp 1300161/RS, 3ª Turma
do Superior Tribunal de Justiça, julgado em 19 de junho de 2012, DJe de
26 de junho de 2012). Sendo mero veículo da informação o provedor de
conteúdo, id est,
t (sendo um) terceiro o provedor dessa (informação) sem
que se possa exigir controle editorial a efetuar por aquele (provedor de
conteúdo), caso dos sites de relacionamento (Orkut192 e Facebook v.g.) e
dos blogs (Twitter e.g.), sua (do provedor de conteúdo) responsabilidade
(subjetiva) surge com a inércia após avisado do ilícito (SANTOS, 2011, p.
81), independentemente de indicação precisa, pelo ofendido, da página
em que contida a ofensa (REsp 1175675/RS, 4ª Turma do Superior Tribunal
de Justiça, julgado em 9 de agosto de 2011, DJe de 20 de setembro de
2011). Como definido pelo Superior Tribunal de Justiça no julgamento do
REsp 1323754/RJ (3ª Turma, julgado em 19 de junho de 2012, DJe de 28
de agosto de 2012), o provedor de conteúdo tem 24 (vinte e quatro) horas,
a contar da ciência que lhe seja dada do ilícito, para o (ilícito) fazer cessar.
Ausente a ilicitude da informação, deve ser ela, sendo o caso (id est,
t se se
destinava a permanência), novamente publicada e (deve) o provedor de
conteúdo tomar “as providências legais cabíveis contra os que abusarem
da prerrogativa de denunciar”193 (REsp 1323754/RJ, 3ª Turma do Superior
192
“[Q]uanto ao encerramento da comunidade Orkut”, cf. voto do relator (Min. Paulo de Tarso Sanseverino) do
AgRg no REsp 1384340/DF (3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, unânime, j. 5.5.2015, DJe 12.5.2015):
“trata-se de impossibilidade superveniente, causada pelo próprio devedor, não havendo liberação da
obrigação” (“de identificar o autor de alguma ofensa, por meio do IP do usuário”), “conforme disposto no art.
399 do Código Civil”.
193
Na Alemanha, diferentemente, precisa dar-se a retirada imediata tão somente quando, como decidido pelo
Supremo Tribunal Federall alemão (VI ZR 93/10) em 25 de outubro de 2011, “a referência é tão concretamente
188
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Rafael Cavalcanti Lemos
Tribunal de Justiça, julgado em 19 de junho de 2012, DJe de 28 de agosto
de 2012).
O Superior Tribunal de Justiça não ignora que, “[p]or mais que
se intitule um site de seguro, a Internet sempre estará sujeita à ação de
hackers, que invariavelmente conseguem contornar as barreiras que
gerenciam o acesso a dados e informações” (REsp 1300161/RS, 3ª Turma,
julgado em 19 de junho de 2012, DJe de 26 de junho de 2012). É, porém,
razoável exigirr dos provedores de conteúdo sem controle editorial (cf.
artigo 15, número 2, in fine, da Diretiva 2000/31/CE do Parlamento Europeu
e do Conselho, de 8 de junho de 2000, e artigo 13, alínea b, do português
Regime Jurídico do Comércio Eletrônico) que mantenham cadastro de
usuários que os (usuários) permita identificar a fim de que estes (usuários)
respondam pelos ilícitos que cometam (SANTOS, 2011, p. 81), não sendo
suficiente (que mantenham) canal para denúncia de ilícito (REsp 1308830/
RS, 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, julgado em 8 de maio de 2012,
DJe de 19 de junho de 2012). Não procedendo o provedor de conteúdo ao
cadastro dos usuários, deve, visando coibir o anonimato (artigo 5º, inciso
IV, da Constituição da República do Brasil de 1988), ao menos registrar o
protocolo na Internet (IP) dos computadores daqueles (usuários), “meio
razoavelmente eficiente de rastreamento dos seus usuários, medida de
segurança que corresponde à diligência média esperada dessa modalidade
de provedor de serviço de internet” (ainda que, pelo chamado IP spoofing,
o autor de ilícito possa usurpar IP alheio – FACHANA, 2012, p. 159); não
o fazendo, aquele (provedor de conteúdo) pode (como sugerido em
REINALDO FILHO, 2011) ser civilmente responsabilizado no lugar destes
(usuários), por negligência (culpa in omittendo) – REsp 1193764/SP, 3ª
Turma do Superior Tribunal de Justiça, julgado em 14 de dezembro de 2010,
DJe de 8 de agosto de 2011 (no mesmo sentido, cf. SANTOS, 2011, p. 81;
apelação cível 0638758-41.2010.8.13.0024, 17ª Câmara Cível do Tribunal
de Justiça de Minas Gerais, julgada em 1º de setembro de 2011, decisão
publicada em 20 de setembro de 2011; apelação cível 200.2008.0316058/001, 2ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça da Paraíba, DJ de 9 de março
de 2010; REsp 1186616/MG, 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça,
julgado em 23 de agosto de 2011, DJe de 31 de agosto de 2011; REsp
formulada que a violação de direito possa ser constatada sem dificuldade (i.e. sem necessidade de exame
jurídico ou fático mais aprofundado) com base nas alegações do ofendido” (no original: “wenn der Hinweis so
konkret gefasst ist, dass der Rechtsverstoß auf der Grundlage der Behauptungen des Betroffenen unschwer - das
heißt ohne eingehende rechtliche und tatsächliche Überprüfung - bejaht werden kann” – VERANTWORTLICHKEIT,
2011).
Revista do CEJ - n. 5, p. 181-206 - nov. 2015
189
Responsabilidade civil do provedor de conteúdo por lesão a direito da personalidade na Internet
1306066/MT, 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, julgado em 17 de
abril de 2012, DJe de 2 de maio de 2012; REsp 1300161/RS, 3ª Turma do
Superior Tribunal de Justiça, julgado em 19 de junho de 2012, DJe de 26
de junho de 2012, em que discutida a responsabilidade de provedor de
correio eletrônico, considerado, no acórdão, “espécie do gênero ‘provedor
de conteúdo’, pois propicia o envio de mensagens aos destinatários
indicados pelos usuários, incluindo a possibilidade de anexar arquivos
de texto, som e imagem”). Quanto a sites em que se anunciem propostas
eróticas, remuneradas ou não, convém ainda maior rigorr no cadastro dos
usuários, sendo preciso que o provedor de conteúdo adote medidas que
permitam confirmar a veracidade das informações pessoais a ele (provedor
de conteúdo) fornecidas (REsp 997.993/MG, 4ª Turma, julgado em 21 de
junho de 2012, DJe de 6 de agosto de 2012). Em face de provedor de mera
pesquisa, contudo, o qual indica (e basta que o faça, pela natureza do
serviço que presta) a URL da página que contém a informação ilícita, é
mesmo reputado ausente o interesse de agirr do ofendido (cf. REsp 1316921/
RJ, 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, julgado em 26 de junho de
2012, DJe de 29 de junho de 2012).
O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, ao apreciar, por sua
13ª Câmara Cível, a apelação cível 2007.001.523346 em 16 de janeiro de
2008, sustentou que o provedor de conteúdo, por não ser remunerado por
quem lhe (do provedor) acesse as páginas na Internet,
t não trava relação de
consumo com este (quem lhe acesse as páginas na Internet) (REINALDO
FILHO, 2011). A web 2.0, contudo, gera, por meio da publicidade em suas
páginas, proveitos econômicos substanciais aos provedores de conteúdo
(FACHANA, 2012, p. 137). Mesmo que se verifique haverr remuneração,
ainda que indireta, com a consequente incidência do Código de Defesa do
Consumidor (artigo 3º, parágrafo 2º), não se pode reputar defeituoso (artigo
14) o serviço prestado pelo provedor de conteúdo caso este (serviço) não
exija, por sua (do serviço) natureza, controle editorial194 (cf. REsp 1316921/
RJ, 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, julgado em 26 de junho de
2012, DJe de 29 de junho de 2012, em que discutida a responsabilidade de
provedor de pesquisa, considerado espécie do gênero “de conteúdo”; cf.
194
No julgamento, em 23 de novembro de 2011 (decisão publicada no DJ de 25 de novembro de 2011), da
apelação cível 70044213767, entendeu todavia a 9ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do
Sul que o defeito estava em que o provedor de conteúdo não removera anúncio de prestação de serviço
sexual após comunicado da falsidade de seu (do anúncio) conteúdo. Na decisão (publicada no DJe de 24 de
junho de 2011) da 3ª Turma Recursal dos Juizados Especiais do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos
Territórios no processo 2010.01.1.189972-5, por sua vez, foi considerado defeito o provedor de conteúdo não
ter sido capaz de impedir clonagem de perfil dum usuário.
190
Revista do CEJ - n. 5, p. 181-206 - nov. 2015
Rafael Cavalcanti Lemos
tb. REsp 566.468/RJ, 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, julgado em
23 de novembro de 2004, DJ de 17 de dezembro de 2004, p. 561, em que
o fato consistia na inclusão ilícita de dados pessoais em site de encontros;
apelação cível 70043955822, 9ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio
Grande do Sul, julgada em 9 de novembro de 2011, DJ de 2 de dezembro de
2011; REsp 1300161/RS, 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, julgado
em 19 de junho de 2012, DJe de 26 de junho de 2012; REsp 1192208/MG,
3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, julgado em 12 de junho de 2012,
DJe de 2 de agosto de 2012; REsp 1.308.830/RS, 3ª Turma do Superior
Tribunal de Justiça, julgado em 8 de maio de 2012, DJe de 19 de junho de
2012; REsp 1.186.616/MG, 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, julgado
em 23 de agosto de 2011, DJe de 31 de agosto de 2011; REsp 1.193.764/
SP, 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, julgado em 14 de dezembro
de 2010, DJe de 8 de agosto de 2011). Na ausência de obrigação, legal ou
contratual, de editoria pelo provedor de conteúdo, o ilícito, para a 1ª Turma
Recursal dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais do Tribunal de Justiça
do Distrito Federal e dos Territórios (apelação cível 2006.01.1.006826-5,
julgado em 31 de outubro de 2006), deve ser considerado fato de terceiro.
Não pode, no entanto, aquele (provedor de conteúdo) alegar, contra a
retirada imediata da informação, que a responsabilidade é de sociedade
controladora (o artigo 28, parágrafo 2º, do brasileiro Código de Defesa
do Consumidor dispõe ser subsidiária a responsabilidade de sociedade
controlada), pois, apresentando-se semelhante àquela (sociedade
controladora estrangeira) ao mercado, com isso auferindo benefícios,
assume o risco gerado com tal conduta (apresentar-se como se da própria
controladora se tratasse) – REsp 1.021.987/RN, 4ª Turma, julgado em 7 de
outubro de 2008, DJe de 9 de fevereiro de 2009. Incidindo as normas do
Código de Defesa do Consumidor, há solidariedade entre todos os que
contratualmente participem da cadeia de prestação de serviços (um site
hospedeiro não se confunde, pois, com o mero provedor de hospedagem,
sendo dito que o primeiro provê conteúdo em cadeia), seja por uma
“imputação legall de responsabilidade que é servil ao propósito protetivo
do sistema” (cf. especialmente os artigos 7º, parágrafo único, 18, caput,
t e
25, parágrafo 1º, do Código de Defesa do Consumidor), seja por culpa in
eligendo – REsp 997.993/MG, 4ª Turma, julgado em 21 de junho de 2012,
DJe de 6 de agosto de 2012, em que discutida a hospedagem dum site
noutro site, veiculado, no primeiro (site), anúncio ofensivo à honra objetiva
de quem o (anúncio) não promovera. Enfim, sempre que atingido por
Revista do CEJ - n. 5, p. 181-206 - nov. 2015
191
Responsabilidade civil do provedor de conteúdo por lesão a direito da personalidade na Internet
relação considerada de consumo entre provedor de conteúdo e usuário,
atribui-se por equiparação, ex vii do artigo 17 do Código de Defesa do
Consumidor, essa condição (consumidor)
r ao ofendido (REsp 997.993/MG,
4ª Turma, julgado em 21.6.2012, DJe 6.8.2012).
As receitas publicitárias adquiridas pelos provedores de
conteúdo são proporcionais ao número de visualizações de – e colocação de
informação em – suas páginas; deste modo, haveria não apenas interesse
daqueles (provedores de conteúdo) em que se coloque ela (informação)
nestas (páginas), senão verdadeiro incentivo a que assim se proceda (colocar
informação nas páginas) (FACHANA, 2012, p. 137-138). Os provedores
de conteúdo na web 2.0 seriam, portanto, em regra (sendo destarte
necessária uma análise casuística), mais do que simples intermediários de
serviços, equiparando-se, neste caso (provedores de conteúdo mais do
que simples intermediários de serviços), a editores, como decidiu (embora
minoritária a corrente jurisprudencial seguida, talvez porque atualmente
a maiorr parte dos litígios termine em transação) o Tribunal de Grande
Instance de Paris no caso Jean Yves L. ditt Lafesse versus Myspace (2007),
não se lhes (aos provedores de conteúdo) aplicando, consequentemente,
regime (como o da Diretiva 2000/31/CE do Parlamento Europeu e do
Conselho, de 8 de junho de 2000) que os (provedores de conteúdo) isente
de responsabilidade para com a informação inserta por usuário em página
sua (do provedor de conteúdo) (FACHANA, 2012, p. 138, 140 e 141). De
qualquer modo i.e. mesmo quando se entenda o provedor de conteúdo
não ser mero intermediário de serviço, é preciso que o benefício por ele
(provedor de conteúdo) auferido seja diretamente atribuível ao conteúdo
ilícito e (que ele, provedor de conteúdo), direta ou indiretamente, para este
(conteúdo ilícito) haja contribuído (FACHANA, 2012, p. 142).
Os direitos fundamentais vinculam não apenas o legislador
senão também os órgãos jurisdicionais (cf. CANARIS, 2009, p. 39, em
que é feita referência ao artigo 1º, número 3, da Lei Fundamental alemã,
correspondente ao artigo 5º, parágrafo 1º, da Constituição da República
do Brasil de 1988 e ao artigo 18, número 1, da Constituição da República
Portuguesa de 1976). A vinculação destes (órgãos jurisdicionais), por
seu turno, não se restringe ao âmbito jurídico-processual, alcançando
outrossim o (âmbito) jurídico-material; caso contrário, a efetividade
daqueles (fundamentais) direitos ficaria severamente prejudicada
(CANARIS, 2009, p. 40 e 130). Serem ricas de eficácia adaptativa sem que
192
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Rafael Cavalcanti Lemos
deixem de ser do seu tempo (i.e. oportunas) é o que, para Miranda (1981,
p. 357), deve-se exigir de todas as leis. O advento da Internet tornou
obsoleta boa parte dos sistemas jurídicos nacionais (REINALDO FILHO,
2000, p. 106). Do ponto de vista fático, é, em grande medida, tão somente
a jurisprudência que confere pleno conteúdo às leis, influenciando
decisivamente as consequências práticas da legislação para as posições
jurídicas fundamentais dos cidadãos (CANARIS, 2009, p. 40-41 e 130). O
Código de Processo Civil brasileiro de 1973, em seu artigo 126, claramente
diz que, mesmo que se enxergue lacuna em – ou obscura – a lei, não pode
o juiz abster-se de decidir, mas, antes, (pode) socorrer-se dos princípios
gerais do direito (cf. REINALDO FILHO, 2000, p. 108). Fosse doutro modo,
a proteção dos direitos fundamentais dependeria dos acasos da técnica
legislativa e seria bem mais intensa no caso duma norma precisa em sua
(da norma) hipótese do que no (caso) duma cláusula geral (CANARIS,
2009, p. 41), a qual (cláusula geral), aliás, é a mais adequada técnica
legislativa à informática195, em virtude da dinâmica deste fenômeno
(PIMENTEL, 2000b, p. 159). A aplicação e o desenvolvimento das leis
constituem o necessário complemento de sua (das leis) aprovação pelo
legislador, sujeitando, assim como a este (legislador), imediatamente
o juízo, mesmo no âmbito direito privado, à observância dos direitos
fundamentais (CANARIS, 2009, p. 41). Por seu turno, o cabimento de
recurso extraordinário (no Brasill – na Alemanha, Verfassungsbeschwerde
ou, em português, “queixa constitucional”) por aplicação inconstitucional,
pelo Poder Judiciário, do direito material privado, corrobora que haja
sujeição direta, no plano jurídico-material, dos juízos cíveis aos direitos
fundamentais, devendo ser aferidas, imediatamente segundo estes
(direitos fundamentais), as proposições em que aqueles (juízos cíveis),
interpretando e desenvolvendo o direito, embasem suas (dos juízos cíveis)
decisões (CANARIS, 2009, p. 41-42 e 131). Essas proposições necessitam
ser formuladas como normas e pensadas como parte do direito material
para que se lhes (das proposições) verifique em seguida o respeito aos
direitos fundamentais (CANARIS, 2009, p. 42 e 131). Noutras (de Canaris
– 2009, p. 43) palavras:
deve conceber-se a ratio decidendi de uma decisão judicial
como norma, e comprovar se esta violaria um direito
195
Não só a esta (informática), mas, para Silva (2006, p. 740), (técnica legislativa mais adequada) à responsabilidade
civil como um todo: “Já que a responsabilidade civil avança conforme progride a civilização, há necessidade
de constante adaptação deste instituto às novas necessidades sociais. Bem por isso, as leis sobre essa
matéria devem ter caráter genérico [...] e aos tribunais cabe delas extrair os preceitos para aplicá-los ao caso
concreto.”.
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193
Responsabilidade civil do provedor de conteúdo por lesão a direito da personalidade na Internet
fundamental, sendo que há-de partir-se, aqui, da aplicação
imediata deste – de forma não diferente do que se passa
perante o legislador privado.
O Código Civil brasileiro de 2002 inova com um capítulo (o II
do título I do livro I da parte geral) sobre os direitos da personalidade (os
quais já eram abordados nos artigos 5º a 12 do Código Civil italiano de
1942 e nos 70 a 81 do português de 1966). Esse capítulo é uma atenuação
do patrimonialismo do direito civil clássico e um impulso em direção à
repersonalização do direito privado, (impulso em direção a) um (direito)
no qual a pessoa e sua dignidade existencial sejam postos no centro do
sistema jurídico, em lugar do patrimônio (FACCHINI NETO, 2007, p. 30, n.
2). Para Silva (2006, p. 742), é na defesa da personalidade que encontra
respaldo o princípio da reparação do dano, sendo a responsabilidade civil
“verdadeira tutela privada à dignidade da pessoa humana”.
O nome da pessoa não pode ser empregado por outrem em
publicações ou representações que a exponham ao desprezo público,
mesmo não havendo intenção difamatória (artigo 17 do Código Civil
brasileiro de 2002). São proibidas a divulgação de escritos, a transmissão
da palavra e a publicação, exposição ou utilização da imagem de uma
pessoa, se lhe atingirem a honra, boa fama ou respeitabilidade, salvo
se autorizadas ou necessárias aquelas (a divulgação de escritos, a
transmissão da palavra e a publicação, exposição ou utilização da imagem
de uma pessoa) à administração da justiça ou à manutenção da ordem
pública (artigo 20, caput,
t do Código Civil brasileiro de 2002). No campo
da responsabilidade civil, a tutela reparatória pode ser insuficiente, razão
pela qual o legislador lança às vezes mão da chamada pena privada
(instrumento sancionatório punitivo), quando inexistente ou ineficaz uma
tutela preventiva (FACCHINI NETO, 2007, p. 30, n. 2). No direito brasileiro
contemporâneo, pode-se exigir que cesse a ameaça ou lesão a direito da
personalidade e (pode-se) reclamar perdas e danos, devendo o magistrado,
a requerimento do interessado, impedir ou fazer cessar qualquer ato
contrário à inviolabilidade da vida privada da pessoa naturall (artigos 12 e
21 do Código Civil brasileiro de 2002).
Para a Constituição da República do Brasil de 1988 (artigo
5º, inciso X), é inviolável o direito à intimidade, vida privada, honra ou
imagem das pessoas, assegurada uma indenização ou compensação pelo
dano respectivamente material ou moral que decorra de sua (do direito à
194
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Rafael Cavalcanti Lemos
intimidade, vida privada, honra ou imagem) transgressão. Privacidade é um
conceito indeterminado sem extensão constitucionalmente delimitada, a
preencher caso a caso pelo magistrado (REINALDO FILHO, 2002, p. 36). A
partir de decisões do Tribunal Constitucional da Alemanha aparentemente
divergentes construiu-se uma teoria dita “das esferas” (estas – esferas – de
proteção, com diferentes intensidades, do direito à privacidade): a (esfera)
mais interior, a (esfera) privada ampliada e a (esfera) social (ALEXY, 2012,
p. 360-361). A (esfera) mais interior não estaria sujeita a uma ponderação
de princípios, consoante a jurisprudência do Tribunal Constitucional da
Alemanha – cf. especialmente BVerfGE 34, 238 (245: “âmbito nuclear,
r
protegido de maneira absoluta, da organização privada da vida” – no
original, “den absolut geschützten Kernbereich privater Lebensgestaltung” –
cf. http://www.servat.unibe.ch/dfr/bv034238.html#Rn030) –, mas, como
explica Alexy (2012, p. 361-362), essa ideia mesma (de que a esfera mais
interior não estaria sujeita a uma ponderação de princípios) é o resultado
duma ponderação: aquela (ponderação) concludente de que, para com
determinados comportamentos e situações vividas pelo indivíduo, haveria
uma prevalência absoluta (de modo que se possa, em vez de princípio,
falar de verdadeira regra) do princípio da liberdade negativa em sentido
estrito196, associado ao (princípio) da dignidade humana, sobre todos os
demais. A (esfera) privada ampliada seria aquela (esfera) com exclusão da
(esfera) mais interior – cf. BVerfGE 27, 1 (7-8); 27, 344 (351); 32, 373 (379); 33,
367 (376); 34, 238 (246); 35, 202 (220) –, na qual (esfera privada ampliada)
restrições seriam possíveis, conquanto estas (restrições) exigissem razões
relevantes (ALEXY, 2012, p. 361-362). A (esfera) social, enfim, abarcaria
tudo que não estivesse inserto ao menos na (esfera) privada ampliada
(ALEXY, 2012, p. 361). Frequentemente, todavia, é difícil classificar um caso
como de esfera privada ampliada ou de (esfera) social, porquanto entre
aquela (esfera privada ampliada) e esta (esfera social) há, naturalmente,
uma gradação (ALEXY, 2012, p. 363). Como ensina, pois, Alexy (2012, p.
363-364):
A teoria das esferas demonstra ser, portanto, uma descrição
extremamente rudimentarr dos diferentes graus de intensidade
aos quais, sob diferentes condições, a proteção de direitos
fundamentais está submetida. Na parte em que é correta essa
196
O princípio da liberdade negativa em sentido estrito, também chamado (princípio) “da liberdade liberal”, de
acordo com Alexy (2012, p. 351-352), visa assegurar a um titular de direito fundamental a maior liberdade de
ação, situação e posição jurídicas possível por meio da proibição de condutas que lhe (do titular de direito
fundamental) oponham obstáculo à ação, afetem situação ou suprimam posição.
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195
Responsabilidade civil do provedor de conteúdo por lesão a direito da personalidade na Internet
teoria sustenta que a proteção da liberdade é tão mais intensa
quanto mais peso tiver o princípio da liberdade negativa em
conjunto com outros princípios, sobretudo o da dignidade
humana.
Na Constituição da República do Brasil de 1988 ainda, lê-se
que é livre a expressão intelectual, artística, científica e de comunicação,
independentemente de censura ou licença (inciso IX do artigo 5º), e a
manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob
qualquer forma, processo ou veículo, não devem sofrer qualquer restrição
(salvo a de ordem também constitucional), vedada toda censura de
natureza política, ideológica ou artística (artigo 220, caputt e parágrafo 2º)
– cf. apelação cível 70045012994, 5ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça
do Rio Grande do Sul, julgada em 19 de outubro de 2011, DJ de 24 de
outubro de 2011. Sob pretexto de dificultar a difusão de informação
ilícita, por conseguinte, não se pode reprimir o direito da coletividade
à informação: “Sopesados os direitos envolvidos e o risco potenciall de
violação de cada um deles, o fiel da balança deve pender para a garantia
da liberdade de informação assegurada pelo art. 220, § 1º, da CF/88,
sobretudo considerando que a Internet representa, hoje, importante
veículo de comunicação social de massa.” (REsp 1316921/RJ, 3ª Turma do
Superior Tribunal de Justiça, julgado em 26 de junho de 2012, DJe de 29 de
junho de 2012). É certo, porém, que “o princípio da liberdade de expressão
não é absoluto e, bem por isto, deve ser exercido de forma harmônica com
os demais preceitos também resguardados pela Constituição Federal (§
2º do art. 5º), por exemplo, o princípio da dignidade da pessoa humana”
(apelação cível 2010.026544-9, 2ª Câmara de Direito Civil do Tribunal de
Justiça de Santa Catarina, decisão publicada em 29 de agosto de 2011).
Nos Estados Unidos, o professor de Direito Constitucional na Universidade
Harvard Laurence Tribe chegou a sugerir que se emendasse a Constituição
dos Estados Unidos para uma expressa garantia, no ciberespaço, tanto da
liberdade de expressão quanto do direito à privacidade (GOUVÊA, 1997,
p. 50). Os provedores de conteúdo na Internet, imensa sua força difusora
de idéias, são essenciais à participação na vida democrática (FACHANA,
2012, p. 157), havendo-se recentemente mostrado instrumentos capazes
até de eficazmente combater governos autoritários (SANTOS, 2011, p. 81).
Eles, como os veículos de comunicação em geral, são “instância natural de
formação da opinião pública” e “alternativa à versão oficial dos fatos”, nos
termos com que se referiu à imprensa o Supremo Tribunal Federal – ainda
196
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Rafael Cavalcanti Lemos
que para este desfrute ela (imprensa) “uma liberdade de atuação ainda
maiorr que a liberdade de pensamento, de informação e de expressão
dos indivíduos em si mesmos considerados” – em acórdão na ADPF 130/DF
(julgada em 30 de abril de 2009, Tribunal Pleno, DJe de 6 de novembro
de 2009). No julgamento da apelação cível 1.0105.02.069961-4/001, em
18 de novembro de 2008, a 18ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de
Minas Gerais recusou que se pudesse equiparar o provedor de conteúdo à
“agência noticiosa” da Lei de Imprensa (5.250/1967), porquanto a Internet
conecta computadores dispersos por todo o mundo, permitindo trocas de
dados, por meio dum protocolo comum, diretamente inseridos por seus (da
Internet) usuários, sem que haja dever de controle imposto por lei àquele
(provedor), cuja atividade seria regida em verdade pelo Código Civil; além
disso, a Constituição da República do Brasil de 1988, em seu artigo 5º,
inciso XII, garante o sigilo das comunicações de dados197 (REINALDO FILHO,
2011 – cf. tb. apelação cível 70043955822, 9ª Câmara Cível do Tribunal de
Justiça do Rio Grande do Sul, julgada em 9 de novembro de 2011, DJ de 2
de dezembro de 2011), o qual (sigilo) apenas com uma nova constituição
pode vir a ser violado (BRASIL, 2000, p. 116). É preciso verificar se, como
se dá para com os portais de notícias, o provedor de conteúdo também o
(provedor) é de informação (SANTOS, 2011, p. 80-81). Nessa hipótese, sua
(do provedor de conteúdo) responsabilidade seria, para Santos (2011, p.
81), como a (responsabilidade) da mídia impressa, do rádio e da televisão:
objetiva. Pois todos (provedor de conteúdo outrossim de informação;
mídia impressa, rádio e televisão) são editores do que por meio deles é
publicado (SANTOS, 2011, p. 81). A responsabilidade solidária da mídia
impressa, do rádio e da televisão, contudo, sedimentada na súmula 221 do
Superior Tribunal de Justiça, tinha por base o artigo 49, parágrafo 2º (que
também estabelecia responsabilidade objetiva à mídia impressa, ao rádio
e à televisão), da Lei de Imprensa, a qual (lei) não foi recepcionada pela
Constituição da República do Brasil de 1988 (cf. julgamento pelo Supremo
Tribunal Federal brasileiro, em 30 de abril de 2009, na ADPF 130/DF), a
despeito de que aquela (súmula) continue a ser invocada (cf. apelação
cível 06.003012-7, 3ª Câmara Especializada Cível do Tribunal de Justiça
do Piauí, julgada em 3 de março de 2011, DJe de 4 de março de 2011;
apelação cível 6.044/2009 [89.160/2010], 1ª Câmara Cível do Tribunal de
Justiça do Maranhão, julgada em 25 de fevereiro de 2010, DJe de 8 de
197
Esse sigilo (das comunicações de dados), na Alemanha, gera mesmo uma tolerância, legalmente assegurada,
à utilização da correspondência eletrônica corporativa para o trato de assuntos particulares (OLIVO, 1997, p.
32).
Revista do CEJ - n. 5, p. 181-206 - nov. 2015
197
Responsabilidade civil do provedor de conteúdo por lesão a direito da personalidade na Internet
março de 2010; apelação cível 2007.035605-6, 5ª Câmara de Direito Civil
do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, julgada em 2 de junho de 2011,
acórdão publicado em 14 de julho de 2011).
Concebe-se que alguém responda pelos prejuízos de outrem
por causa do risco que o primeiro haja criado, embora proceda sem culpa
ou até licitamente e mesmo não provindo o dano de ato seu mas de
acontecimento natural ou de ato de terceiro ou (ato) do próprio lesado,
bastando que esse alguém tenha criado determinado risco, (tenha)
tomado uma iniciativa que lhe seja proveitosa conquanto envolvendo
risco a terceiros (TELLES, 2010, p. 216). Prescinde-se assim da culpa, quer
como elemento individualizador da pessoa que ficará obrigada a indenizar,
quer como fator significativo-ideológico justificante da própria situação
de responsabilidade (CORDEIRO, 2010, p. 591), bastando constatar relação
de causalidade entre a conduta arriscada e o dano (SILVA, 2006, p. 739;
COSTA, 2009, p. 613-614)198. Uma esfera de riscos pode ser estabelecida
por diversas concepções que às vezes se cumulam (LEITÃO, 2010, p. 381):
De acordo com a concepção do risco criado, cada pessoa que
cria uma situação de perigo deve responder pelos riscos que
resultem dessa situação. Por sua vez, segundo a concepção
do risco-proveito, a pessoa deve responder pelos danos
resultantes das actividades que tira proveito. Na concepção do
risco de autoridade, deve responder pelos danos resultantes
das actividades que tem sob o seu contrôle. (LEITÃO, 2010, p.
381).
Sendo objetiva a responsabilidade pelo risco, demanda previsão
legal expressa – MARTINEZ, 2010/2011, p. 139. Estende-se ao Brasil (cf.
SILVA, 2006, p. 740) a afirmação de Cordeiro (2010, p. 600), originalmente
voltada ao direito europeu, de que
aparentemente estamos em face de uma tendência para
generalizar a responsabilidade pelo risco, fazendo-a surgir
perante qualquer elemento de perigosidade que escape ao
controlo do seu autor ou beneficiário.
O artigo 927, parágrafo único, do Código Civil brasileiro de 2002
– como o (artigo) 483, número 2, do (Código Civil) português de 1966 –
198
A culpa não pode ser esquecida, no entanto, quando da fixação do quantum indenizatório ou compensatório
(COSTA, 2009, p. 613).
198
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dispõe haver obrigação de reparar o dano independentemente de culpa
nos casos especificados em lei, sendo um deles (casos) logo indicado no
próprio dispositivo: quando a atividade normalmente desenvolvida pelo
autor do dano implicar, por sua natureza, risco ao direito de outrem. Essa
responsabilidade civil objetiva, cuja redação original (i.e. no projeto do
Código Civil) era
quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do
dano implicar, por sua natureza, grande risco para os direitos de
outrem, salvo se comprovado o emprego de medidas preventivas
tecnicamente adequadas199 (cf. SILVA, 2006, p. 738),
funda-se na teoria do risco criado pelo exercício de atividade lícita mas
perigosa (DINIZ, 2006, p. 716 – cf. tb. SILVA, 2006, p. 738).
Não é, pois, que não haja risco de lesão a direito da personalidade
na atividade desenvolvida pelo provedor de conteúdo (contra, cf. REINALDO
FILHO, 2011). O risco com que se preocupa o direito não pode ser apenas
o (risco) de dano material. A atividade daquele (provedor de conteúdo)
permite uma multiplicação fácill e velozz do dano inédita. Governos, por seu
turno, ficam tentados a impor aos provedores de conteúdo a obrigação de
filtrar a informação disponibilizada em suas (dos provedores de conteúdo)
páginas, sob a alegação de combate ao terrorismo ou (combate) à
divulgação de segredos de Estado (cf. FACHANA, 2012, p. 145, em que, na
nota 300, faz-se menção exemplificativa ao notório incômodo causado aos
EEUU em razão da divulgação, pelo Wikileaks, de centenas de milhares de
telegramas oriundos de embaixadas ianques). Em virtude dos benefícios à
liberdade de expressão produzidos por essa mesma atividade (desenvolvida
pelo provedor de conteúdo) é que ele (provedor de conteúdo) não deve
ser objetivamente responsabilizado. O modelo de negócio, essencial à
manutenção dos serviços na web 2.0, em que um provedor de conteúdo
ganha consoante o número de visualizações de determinada informação
pode mesmo ser dito consequência da democratização da Internet
(FACHANA, 2012, p. 143-144). Para que um provedor de conteúdo seja
excluído (o que seria contrário à evolução da Internet e lhe – ao provedor
de conteúdo – representaria pesada sanção) dum regime de isenção de
responsabilidade, é necessário demonstrarr que a publicidade veiculada
199
A emenda sofrida pelo dispositivo na Câmara dos Deputados deveu-se a que “o texto, ao mesmo tempo
em que acolhia a responsabilidade sem culpa, inseria o critério de culpa como motivo de exclusão de
responsabilidade, pelo emprego de medidas tecnicamente adequadas” (SILVA, 2006, p. 738).
Revista do CEJ - n. 5, p. 181-206 - nov. 2015
199
Responsabilidade civil do provedor de conteúdo por lesão a direito da personalidade na Internet
em página que contenha informação ilícita, por causa desta (informação
ilícita) e não pela popularidade gerall do próprio site, àquela (página)
seja por ele (provedor de conteúdo) direcionada, visando a maior ganho
(com publicidade), sob pena de que se atinjam gravemente os direitos
fundamentais à liberdade de expressão e à informação (FACHANA,
2012, p. 143). Noutras palavras e visto doutro ângulo, é preciso verificar
se há tratamento efetivamente neutro, pelo provedor de conteúdo, das
informações insertas em suas páginas, para que (o provedor de conteúdo)
se valha dum regime de isenção de responsabilidade (FACHANA, 2012, p.
143). Ainda neste caso (tratamento efetivamente neutro, pelo provedor
de conteúdo, das informações insertas em suas páginas), porém, se (o
provedor de conteúdo) obtiver vantagem publicitária excepcionall com a
informação ilícita, está obrigado o provedor de conteúdo a compensar o
lesado por seu (do provedor de conteúdo) enriquecimento sem causa (cf.
FACHANA, 2012, p. 144, em que, no entanto, não é feita expressa referência
ao instituto do enriquecimento sem causa).
O avanço tecnológico atual possibilita maiorr controle,
pelo provedor de conteúdo, da informação por meio dele (provedor
de conteúdo) divulgada na Internet (FACHANA, 2012, p. 145 e 152).
Ferramentas de deep packet inspection (DPI) permitem-lhe (ao provedor
de conteúdo) classificar o conteúdo que passar por seus (do provedor de
conteúdo) servidores e até visualizá-lo (conteúdo), o que é evidentemente
mais eficazz que o “notice and take down” normalmente reputado bastante
para afastar a responsabilidade do provedor de conteúdo pelo ilícito
divulgado por terceiro em suas (do provedor de conteúdo) páginas
(FACHANA, 2012, p. 145). No entanto, especialmente em se tratando de
mensagens de correio eletrônico, a leitura da informação representa
verdadeira violação de correspondência (FACHANA, 2012, p. 145 e 147).
A propósito, decidiu o Tribunal de Justiça da União Européia, em 24 de
novembro de 2011, no processo C-70/10, não ser possível, ainda que por
via judicial, impor ao provedor de conteúdo a instalação dum sistema
gerall e preventivo de filtragem, que seria desproporcionall ante a restrição
dos direitos fundamentais à privacidade e à informação que implicaria, em
confronto com o fim in casu de proteção ao direito autoral, entendimento
reiterado pela mesma corte em 16 de fevereiro de 2012 no processo
C-360/10 (FACHANA, 2012, p. 151-152). Em verdade, como explica
Fachana (2012, p. 152-153 – cf. tb. p. 160), mesmo nos dias correntes, não
é ainda possível impedir com eficiência, sem prévia avaliação humana,
200
Revista do CEJ - n. 5, p. 181-206 - nov. 2015
Rafael Cavalcanti Lemos
mormente quando criptografada a informação200, a ofensa ao bom nome
ou a violação do direito à imagem.
Na França, visando a uma maior proteção do direito autoral, foi
editada, em 12 de junho de 2009, a Lei 2009-699 (loi favorisant la diffusion
et la protection de la création sur Internett – em português, “lei para o
favorecimento da difusão e proteção da criação na Internet”), conhecida
por (Lei) HADOPI, sigla da Haute Autorité pour la Diffusion des Oeuvres
et la Protection des Droits sur Internett (Alta Autoridade para a Difusão de
Obras e Proteção de Direitos na Internet) – FACHANA, 2012, p. 154-155.
Essa lei adota o procedimento chamado “three strikes and you’re out”: a
HADOPI, após queixa de violação de direito autoral, notifica o provedor
de conteúdo a que preste informações acerca do titular da conta de
acesso à Internet utilizada para o ilícito; obtidas as informações, aquela
(HADOPI) notifica este (titular da conta), por correio eletrônico, relatando
a detecção do ilícito (em FACHANA, 2012, p. 155, n. 318, afirma-se a
ocorrência já de mais ou menos quatrocentas mil notificações a titulares
de conta); havendo, em seis meses da notificação por e-mail, novo ilícito
praticado por meio da mesma conta de acesso, aquela (notificação) é
repetida, mas por carta registrada ao domicílio do titular da conta, com
aviso de recebimento; se, em um ano da segunda notificação, der-se
outro ilícito, é instaurado pela HADOPI processo em face do titular da
conta, podendo este (titular da conta) ser sancionado à suspensão de
acesso à Internet por um período de três meses a um ano, durante o qual
(período) aquele (titular da conta) estará obrigado a pagar ao provedor
de conteúdo por este (acesso à Internet) – FACHANA, 2012, p. 155 e 156,
n. 321. O titular da conta possui, com presunção de culpa afastável tão
somente por meio do uso de filtros antipirataria de modelo aprovado pela
HADOPI, um dever de vigilância sobre o acesso à Internet, sendo (o titular
da conta) normalmente também o proprietário do computador com
que ele (acesso) se dá, o que leva Fachana (2012, p. 156 e 159) a afirmar
que “a Lei HADOPI vem dar um ‘novo fôlego’ à responsabilidade do dono
da coisa no âmbito da Internet”. O processo que conduza à aplicação
de sanção suspensiva de acesso à Internet deve ser judicial, consoante
a décision 2009-580 DC du Conseil Constitutionnel, prolatada em 10 de
junho de 2009, não podendo uma autoridade administrativa restringir
200
Pensada como a solução para a segurança na transmissão de dados pela Internet (REIS, 1996, p. 54),
criptografia é o processo que torna ilegível a informação a quem não possua o bloco de dados que a
(informação) permita decifrar (CRUMLISH, 1997, p. 67 e 83), sem a qual (criptografia) “o que as pessoas
enviam por computador é algo equivalente a um cartão postal” (CORRÊA, 2000, p. 81).
Revista do CEJ - n. 5, p. 181-206 - nov. 2015
201
Responsabilidade civil do provedor de conteúdo por lesão a direito da personalidade na Internet
direito (de acesso à Internet) corolário da liberdade constitucionalmente
assegurada de expressão e pensamento (FACHANA, 2012, p. 156 e 161).
Como previa Gouvêa (1997, p. 105), as mudanças tecnológicas têm
levado as sociedades da era digital a conferir relevância ao acesso à
Internet. Os que dela (Internet) não participam findam atualmente por
sofrer mesmo exclusão no mundo real (CARVALHO et al., 2007, p. 137).
A despeito de que a Lei HADOPI tenha, de fato, reduzido o número de
downloads ilegais, consoante estudo promovido pelo Môle Armoricain
de Recherche sur la Société de l’Information et les Usages d’Internett (http://
www.marsouin.org/), há evidente desproporcionalidade entre fim –
proteção dos direitos autoral e conexos – e meios – imposição, ao titular
da conta de acesso à Internet, de dever de vigilância sobre ela (conta) e
sanção suspensiva deste (acesso)201 – FACHANA, 2012, p. 157-159. Além
disso, a presunção de culpa do titular da conta de acesso, mormente
em caso de IP spoofing, é quase inafastável por quem, como a maioria
da gente, possua conhecimentos mínimos de informática (FACHANA,
2012, p. 159-160). Apesar de que, em Portugal, a Lei 32/2008, de 17 de
julho, que transpôs para a ordem jurídica lusitana a Diretiva 2006/24/
CE do Parlamento Europeu e do Conselho, obrigue os provedores de
conteúdo tão só a que armazenem os dados pessoais dos usuários por
ao menos um ano, a fim de que as competentes autoridades judiciárias
deles (dados) se possam utilizar na investigação de crime grave (artigos
6º e 9º da referida lei), é autorizado ao Poder Judiciário, pelo artigo 227
do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos, a imposição de
medidas que, “segundo as circunstâncias, se mostrem necessárias para
garantir a protecção urgente do direito”, as quais (medidas), por analogia,
poderiam ser, consoante Fachana (2012, p. 158-159, n. 328), aplicadas ao
mundo digital. Debate-se ainda, de jure Lusitano constituendo, o uso dum
software de nome honeypot, o qual simula um arquivo ilícito a carregar
em rede P2P, de modo a identificar quem o descarregue (FACHANA,
2012, p. 158-159). Melhor é que os provedores de conteúdo todos,
como proposto na Diretiva 2000/31/CE em seu artigo 16, criem claros,
específicos aos serviços que prestem e de amplo conhecimento códigos
de conduta (ditos softlaw) aos usuários a fim de que estes (usuários)
sejam com eficiência advertidos de que sua (dos códigos de conduta)
violação acarretará sanções que eventualmente culminem em que não
201
Para Fachana (2012, p. 175), isso (desproporcionalidade entre meios e fim) não impedirá que o modelo da Lei
HADOPI se estenda aos demais países integrantes da União Europeia, em virtude do lobby das associações de
direito autoral e (do lobby)
y das empresas de comercialização de obras por este (direito autoral) protegidas.
202
Revista do CEJ - n. 5, p. 181-206 - nov. 2015
Rafael Cavalcanti Lemos
mais possam utilizar os serviços daqueles (provedores de conteúdo) cujo
softlaw
w foi transgredido – FACHANA, 2012, p. 169.
Enfim, sendo exorbitante o quantum compensatório por dano
moral na Internet fixado em processo judicial, cabe sua (do quantum)
revisão pelo Superior Tribunal de Justiça (REsp 1192208/MG, Rel. Ministra
Nancy Andrighi, 3ª Turma, julgado em 12/06/2012, DJe 02/08/2012). Como
ficou, aliás, decidido pelo Supremo Tribunal Federal na ADPF 130/DF,
a excessividade indenizatória é, em si mesma, poderoso
fator de inibição da liberdade de imprensa, em violação ao
princípio constitucional da proporcionalidade. A relação de
proporcionalidade entre o dano moral ou material sofrido por
alguém e a indenização que lhe caiba receber (quanto maior
o dano maior a indenização) opera é no âmbito interno da
potencialidade da ofensa e da concreta situação do ofendido.
Nada tendo a ver com essa equação a circunstância em si
da veiculação do agravo por órgão de imprensa, porque,
senão, a liberdade de informação jornalística deixaria de
ser um elemento de expansão e de robustez da liberdade de
pensamento e de expressão lato sensu para se tornar um fator
de contração e de esqualidezz dessa liberdade.
Revista do CEJ - n. 5, p. 181-206 - nov. 2015
203
Responsabilidade civil do provedor de conteúdo por lesão a direito da personalidade na Internet
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206
Revista do CEJ - n. 5, p. 181-206 - nov. 2015
O jurista e filósofo Clóvis Beviláqua
Rogério Medeiros Garcia de Lima202
Resumo: Este trabalho aborda a vida e obra do grande
jurista e filósofo brasileiro Clóvis Beviláqua. Seu pensamento
filosófico deve ser compreendido no contexto da Escola do
Recife. Não foi um filósofo criador e original, mas era dotado
de inexcedível habilidade para assimilar o que havia de bom
em novas ideias. Após receber forte influência do positivismo,
estudou posteriormente outros sistemas e concepções
filosóficos. Seu pensamento influenciou intensamente a
Filosofia do Direito no Brasil.
Abstract: This article approachs life and work of the brazilian
jurist and philosopher Clóvis Beviláqua. His idea must be
comprehended in philosophical context of the Escola do
Recife. He was not a creative and original philosopher, but he
was equipped to insuperable capacity to assimilate the good
news ideas. After accept great influence of the positivism, then
examined others philosophical systems. His opinion inspired
intensely the philosophy of law in Brasil.
Palavras-chave: Clóvis – Beviláqua - Pensamento – Filosófico.
Keywords: Clovis - Beviláqua - Thinking – Philosophical.
Introdução
Este trabalho aborda a vida e obra do grande jurista e filósofo
brasileiro Clóvis Beviláqua.
Nascido em Viçosa, Estado do Ceará, trazia nas veias a mistura
de sangue italiano, português, indígena e brasileiro.
202
Doutor em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Brasil.
Professor do Centro Universitário Newton Paiva e da Escola Judicial Desembargador Edésio Fernandes.
Desembargador do Tribunal de Justiça de Minas Gerais. . Palestra apresentada durante o X Colóquio Tobias
Barreto, “A Filosofia Jurídica Luso-Brasileira do século XIX”, promovido pelo Instituto de Filosofia LusoBrasileira, em parceria com o Centro de História da Cultura, da Universidade Nova de Lisboa, e a Universidade
Federal de São João del-Rei, Lisboa, 20 de novembro de 2014.
Revista do CEJ - n. 5, p. 207-223 - nov. 2015
207
O jurista e filósofo Clóvis Beviláqua
Ao iniciar o curso de Direito, interessava-se por política e
literatura. Depois de formado, revelou-se a vocação pelos assuntos
jurídicos e filosóficos. Foi professor da Faculdade de Direito do Recife.
Casado com Amélia, levava vida familiar afetuosa e pacata.
A família instalou-se definitivamente no Rio de Janeiro, quando Clóvis
elaborou o projeto de Código Civil Brasileiro.
Estudioso e disciplinado, trabalhou diuturnamente até morrer.
O pensamento filosófico de Clóvis Beviláqua deve ser
compreendido no contexto da Escola do Recife. Esse movimento, que
teve como figura central o professor sergipano Tobias Barreto de Menezes,
buscou a renovação do pensamento brasileiro, notadamente no campo
jurídico, a partir de novas ideias filosóficas.
O denominado culturalismo estava no cerne do movimento
recifense. Para Tobias Barreto, cultura é “a antítese da natureza, no sentido
de que ela importa uma mudança do natural, no sentido de fazê-lo belo
e bom”.
Clóvis Beviláqua não foi um filósofo criador e original, mas era
dotado de inexcedível habilidade para assimilar o que havia de bom em
novas ideias.
Na mocidade, recebeu forte influência do positivismo. Mais
tarde, estudou a fundo todos os sistemas e concepções filosóficos.
Leu monistas e dualistas, cepticistas e moralistas, enciclopedistas e
ideologistas, pessimistas e otimistas, ecletistas e sensualistas, teologistas
e misticistas, quietistas e dogmatistas, positivistas e evolucionistas.
O momento áureo da Escola do Recife não está na filosofia,
mas na Filosofia do Direito. Pela primeira vez em nossa cultura, o Direito é
transformado em fenômeno histórico, sujeito a desenvolver-se no tempo,
ligado à vida.
Beviláqua, autor do Projeto do Código Civil Brasileiro de 1916,
ainda influencia intensamente o pensamento jurídico brasileiro. O
Superior Tribunal de Justiça, mais alta Corte brasileira para interpretação
da lei federal, proclama, ainda hoje, que o jurista há de aplicar as leis com
o espírito ao nível do seu tempo, mergulhado na viva realidade ambiente,
e não acorrentado a algo do passado, nem perdido em alguma paragem,
208
Revista do CEJ - n. 5, p. 207-223 - nov. 2015
Rogério Medeiros Garcia de Lima
mesmo provável, do distante futuro. Deve levar em conta o estado de
coisas existentes no momento em que ela deve ser aplicada, pois somente
assim assegura o progresso do Direito, um progresso razoável para uma
evolução lenta.
1 Perfil biográfico de Clóvis Beviláqua
1.1 Nascimento e infância
Clóvis Beviláqua foi um notável jurista, filósofo, literato e
historiador brasileiro. Nasceu em 4 de outubro de 1859, na cidade de
Viçosa do Ceará, a cerca de 350 quilômetros de Fortaleza.
A família Beviláqua tem origem italiana (SCHUBSKY, 2006, p. 201). Seu avô paterno, Ângelo Beviláqua, chegou ao Brasil entre o final do
século XVIII e o início do seguinte. Instalou-se no Nordeste e se casou com
Luiza Gaspar de Oliveira, de ascendência indígena.
O avô materno de Clóvis, José Aires da Rocha, era português,
enquanto a avó materna, Maria da Costa Ferreira, nasceu no Piauí.
O pai do jurisconsulto, o padre e político cearense José
Beviláqua, foi vigário de sua cidade natal, Viçosa do Ceará, na serra de
Ibiapaba, onde manteve união estável com Martiniana Maria de Jesus.
Em seu testamento, José afirmou ter vivido “de portas adentro”
com Martiniana, natural do Piauí. Da união, entre outros filhos, nasceu
Clóvis. Observe-se que, durante o século XIX, não eram raros elos
matrimoniais envolvendo clérigos.
O jurista – verifica-se - trazia nas veias a mistura de sangue
italiano, português, indígena e brasileiro. É um exemplo da miscigenação
referida por Gilberto Freyre:
Todo brasileiro, mesmo o alvo, de cabelo louro, traz na alma,
quando não na alma e no corpo – há muita gente de jenipapo
ou mancha mongólica pelo Brasil – a sombra, ou pelo menos a
pinta, do indígena ou do negro (FREYRE, 1983, p. 283).
Clóvis era um menino meigo e, desde a infância, mostrouse amigo dos animais, notadamente os pássaros. Antes de completar
dez anos, aprendeu as primeiras letras com o pai, padre José. Inclusive
rudimentos de francês e latim (SCHUBSKY, 2006, p. 24).
Revista do CEJ - n. 5, p. 207-223 - nov. 2015
209
O jurista e filósofo Clóvis Beviláqua
1.2 Formação em Direito
Clóvis iniciou os estudos na Faculdade de Direito de Recife, em
1878. Graduou-se em 1882.
Nos anos iniciais da faculdade, seu interesse era totalmente
voltado para a política e a literatura, mais especificamente a crítica literária.
No final do curso, Clóvis passaria a manifestar gosto e vocação
pelos assuntos jurídicos e filosóficos. Ao longo da vida, depois de formado,
sua produção intelectual multifária desabrocharia em diversos sentidos.
Em seus estudos políticos e literários, emergiu o vigoroso
defensor dos ideais republicanos e abolicionistas. Ainda em 1882,
participou do Clube Republicano Acadêmico e colaborou com o jornal
desse agrupamento estudantil, A República.
Sob a influência de vultos da inteligência brasileira,
especialmente dos pensadores, juristas e escritores sergipanos Tobias
Barreto e Sílvio Romero, Clóvis vinculou-se à Escola do Recife, grupo
filosófico que representou importante renovação de ideias no país.
Na realidade, até o advento da Escola do Recife, não havia qualquer
originalidade no pensamento filosófico nacional, profundamente
marcado por visão conservadora e arisca às inovações (SCHUBSKY,
2006, p. 28-30).
1.3 Recato e vida familiar
Clóvis Beviláqua casou no Recife, em 1884, com Amélia de
Freitas.
Depois de Clóvis ser convidado para elaborar o Projeto do
Código Civil, a família fixou residência definitivamente na cidade do Rio
de Janeiro.
Segundo a neta Maria Cecília, o avô Clóvis “era um espírito
manso, dedicado à esposa, às filhas e à leitura”. Abrigava mais de vinte
mil livros em sua casa, no bairro Tijuca. Maria Teresa, outra neta, afirma
que, à exceção da cozinha e do banheiro, em todos os outros cômodos da
residência havia livros: “nas estantes que iam do chão ao teto, quase três
metros de altura, e empilhados pelos cantos”.
210
Revista do CEJ - n. 5, p. 207-223 - nov. 2015
Rogério Medeiros Garcia de Lima
O jurista adorava bichos. Seu insólito mundo incluía animais de
estimação, às dezenas: gato, cachorro, tartaruga, aves etc. A neta Maria
Cecília revela episódio pitoresco. Alguém se dirigira à casa do avô para
pegar um parecer por ele concluído. No entanto, Clóvis fez o cliente
esperar, porque um gato estava dormindo sobre o volume de papéis.
Tranquilamente, avisou: “Vamos esperar o gatinho acordar” (SCHUBSKY,
2006, p. 36-7).
A casa dos Beviláqua era uma espécie de “epicentro do
saber jurídico do Rio de Janeiro”. Clóvis recebia diariamente a visita de
especialistas e, principalmente, estudantes de Direito.
Nos fins de semana, promovia “almocinhos”. Eram “eventos
jurídico-gastronômicos que combinavam a boa mesa e apaixonados
debates sobre Filosofia, Sociologia, Literatura e, claro, Direito” (SCHUBSKY,
2006, p. 37-8).
O jurista era apaixonado por Amélia, vivia sempre ao lado da
esposa. Ela era escritora e Clóvis rompeu com a Academia Brasileira de
Letras, que ajudara a fundar, em função da recusa, pela entidade, em
aceitar a inscrição de Amélia para disputar a cadeira de Alfredo Pujol
(SCHUBSKY, 2006, p. 40).
Inobstante o talento e fama do jurista, Clóvis auferia modesta
renda. Disciplinado, acordava todos os dias, por volta das quatro horas.
Tomava o café que ele mesmo preparava e voltava ao quarto para trabalhar.
Ali, passava praticamente o dia todo, parando apenas para as refeições ou
atender os visitantes.
1.4 Morte
Embora debilitado fisicamente, no dia em que morreu, 26 de
julho de 1944, Clóvis repetiu o ritual cotidiano. Só não preparou o café,
porque estava adoentado. Ainda pela manhã, a filha Floriza entrou no
quarto e encontrou o pai caído, morto. Sobre a mesa, estava o último
texto que Clóvis havia produzido (SCHUBSKY, 2006, p. 38-42).
2 Breve passagem pela política
Clóvis Beviláqua, após a Proclamação da República (1889), foi
eleito deputado à Assembleia Constituinte do seu Estado natal. Mudou-se
Revista do CEJ - n. 5, p. 207-223 - nov. 2015
211
O jurista e filósofo Clóvis Beviláqua
para Fortaleza e colaborou ativamente na elaboração da Constituição do
Ceará.
Todavia, foi a única vez que exerceu mandato político:
Convidado, mais tarde, para a Câmara dos Deputados e para o
Senado, recusou. Francisco Sá quis indicá-lo para Governador
do Ceará, mas Clóvis declinou, cedendo a vez a Justiniano
de Serpa, e volta para o magistério no Recife, o seu meio
intelectual (ROMÉRO, 1956, p. 55).
3 Literatura
Clóvis Beviláqua foi notável escritor e crítico literário. Publicou
vários ensaios e se tornou conhecido e respeitado nacionalmente. Foi sócio
fundador da Academia Brasileira de Letras. Ocupou a cadeira catorze, cujo
patrono era Franklin Távora.
4 Carreira jurídica
Escreveu Hermes Lima:
Toda a atuação de Clóvis Beviláqua verificou-se no campo
intelectual. A política não o seduziu. Não o seduziu a advocacia.
Desde muito moço ocupa-se de questões gerais de filosofia, de
sociologia, de direito e de literatura (ROMÉRO, 1956, p. 55).
Com dificuldade, conseguiu ser nomeado Promotor de Justiça
em Alcântara, Maranhão. Não primou pela assiduidade e era pouco
produtivo (SCHUBSKY, 2006, p. 30).
Em 1889, prestou concurso público e se tornou professor de
Filosofia no Curso Anexo da Faculdade de Direito do Recife. A seguir,
assumiu a cátedra de Legislação Comparada naquela instituição.
Docente dos mais respeitados, escrevera excelentes livros
sobre Direito Civil e Legislação Comparada. Em 1899, Epitácio Pessoa,
então Ministro da Justiça, convidou-o a escrever o projeto do Código Civil
Brasileiro.
José Carlos Moreira Alves, Ministro aposentado do Supremo
Tribunal Federal, assinalou a rapidez impressionante com que Clóvis
212
Revista do CEJ - n. 5, p. 207-223 - nov. 2015
Rogério Medeiros Garcia de Lima
redigiu o projeto. Desde a sua mudança para a cidade do Rio de Janeiro,
vindo de Recife, até a elaboração do texto, decorreram aproximadamente
sete meses. Teixeira de Freitas, responsável pela primeira tentativa de
elaboração de nossa codificação civil, demorou alguns anos, e não chegou
a concluir seu projeto, que já tinha mais de quatro mil artigos. Coelho
Rodrigues gastou quase três anos, na Suíça, para a feitura do seu projeto.
Concluiu Moreira Alves:
Um Código Civil, como bem dizia o professor Miguel Reale, é
em verdade a Constituição do homem comum, porque nele se
faz o detalhamento dos aspectos de vida que a todos interessa.
Daí, sua importância capital. (SCHUBSKY, 2006, p. 177).
Clóvis Beviláqua foi assessor jurídico do Ministério das Relações
Exteriores, onde, ao longo de muitos anos, produziu excelentes pareceres.
Sua casa tornou-se uma espécie de sucursal do Ministério.
Tia Dorinha (a primogênita) contava que, em 1934, o governo
instalou aqui uma linha telefônica exclusiva para que vovô e
o jurisconsulto que assumiu o seu lugar, como consultor do
Itamaraty, pudessem conversar’, revela Maria Cecília. A linha só
teria sido desligada quando Clóvis morreu. (SCHUBSKY, 2006,
p. 28-30).
O jurista também elaborava pareceres privados. Eram um alívio
financeiro para a família, especialmente depois da sua aposentadoria.
Apesar do prestígio alcançado nacional e internacionalmente, Clóvis vivia
em situação de penúria.
Mesmo sendo uma fonte de renda essencial, [...] dava pareceres
a quem batesse à sua porta, sem pensar nos honorários.
‘Dinheiro não tinha a menor importância. Não era raro aparecer
alguém aqui para pagar por um parecer que ele sequer
lembrava que tinha feito’, acentua Maria Teresa (SCHUBSKY,
2006, p. 38).
Em suma, o jurista, professor e político San Tiago Dantas cunhou
a expressão “oráculo” para se referir a Clóvis Beviláqua, quando discursou
durante sessão da Câmara dos Deputados, de 5 de outubro de 1959, em
homenagem ao centenário de nascimento do jurista cearense (SCHUBSKY,
2006, p. 142-143).
Revista do CEJ - n. 5, p. 207-223 - nov. 2015
213
O jurista e filósofo Clóvis Beviláqua
5 O pensamento filosófico de Clóvis Beviláqua
Não se compreende o pensamento filosófico de Clóvis Beviláqua
fora do contexto da Escola do Recife, tantas vezes mencionada neste
colóquio.
Esse período de efervescência intelectual, na capital
pernambucana, coincide com a chamada “Questão Coimbrã”. Foi um
movimento, na Universidade de Coimbra, em Portugal, de renovação
literária e ideológica, que tinha entre os protagonistas Antero de Quental
(SARAIVA e LOPES, s. d., p. 824, 829 e 851; MÓNICA, M. F., 2001, p. 23-24;
COUTINHO, Folha de S. Paulo, São Paulo, 2 nov., 2014).
A figura nuclear da Escola do Recife era o professor sergipano
Tobias Barreto de Menezes, que ingressou em 1882, por concurso, como
professor daquela faculdade:
Encarnou a luta entre o escolasticismo formalista de uma
tradição jurídica imóvel e as últimas correntes laicizantes e
revolucionárias que Tobias desejava encarnar. Foi o maior
animador intelectual da época, [...] segundo seus discípulos
Sílvio Romero e Graça Aranha. (PAES e MASSAUD, 1967, 51-52).
Para Fernando de Azevedo, Tobias Barreto, sem ser filósofo ou
pensador original, mas antes agitador de ideias e destruidor de rotinas,
prestou à cultura nacional serviços assinalados. Atraiu a atenção para os
estudos filosóficos, vulgarizou os autores alemães e contribuiu, como
nenhum outro, para a renovação das concepções jurídicas no Brasil:
A sua coragem indômita e o gosto pela luta que o arrastavam a
polêmicas, quase sempre violentas e bravias, como as de Sílvio
Romero, outro admirável debatedor de ideias, se lhe tiraram
a serenidade para as obras de criação, formaram em torno de
seu nome uma atmosfera de batalha e lhe permitiram fazer
uma pequena revolução intelectual, de libertação do espírito,
numa atmosfera carregada de preconceitos. (AZEVEDO, 1964,
p. 340).
As primeiras faculdades de Direito surgiram para preparação
dos quadros políticos e administrativos do Império brasileiro, logo após
a Independência. Com elas, era superada a desvantagem de continuar a
tê-los formados, com mentalidade reinol, pela Universidade de Coimbra.
214
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Rogério Medeiros Garcia de Lima
Essa mentalidade ainda estava presente nas sebentas didáticas
coimbrãs, associadas às exegeses conservadoras da legislação das
Ordenações Afonsinas, Manuelinas e Filipinas do Reino de Portugal.
(CHACON, 2008, p. 11-12).
André Rebouças escandalizava-se, em 15 de maio de 1864,
diante do atraso da Instrução Pública em Pernambuco:
Os lentes da Escola de Direito são quase pela mor parte
ultramontanos. O direito natural é aí ensinado por Pe. Ventura
Caparelli. [...] Os alunos são irmãos de Nossa Senhora do Bom
Conselho. Acompanham as numerosas procissões do Recife,
vestidos de casaca preta, com opa e trazendo pendentes do
pescoço uma medalha com as armas da Escola presas a uma
fita vermelha. (CHACON, 2008, p. 89).
A Escola do Recife reagiu principalmente com Jhering e Kant:
A reação foi iniciada pelos próprios estudantes em ruidosos
e frequentes protestos, e aprofundou a movimentação com
‘um bando de ideias novas’ na sua definição por Sílvio Romero,
rumo à elaboração do Código Civil de Clóvis Beviláqua e Código
Penal de Virgílio de Sá Pereira, aquele aceito nos começos da
Primeira República, este recusado ao seu término. (CHACON,
2008, p. 11-12).
Para Antonio Paim, a preferência pela vida espiritual, no que ela
tem de mais nobre e elevado, caracteriza o projeto da Escola do Recife.
Reformar o país é alterar e redirecionar essa camada mais alta de sua
tradição cultural, inclusive a meditação de caráter ético.
No plano filosófico, a Escola do Recife soube se situar no
momento de interseção em que viveu, quando a filosofia se defrontava
com a onda positiva contestadora de sua validade.
A Escola do Recife desenvolveu interesse pela produção
intelectual brasileira, herdada dos primeiros românticos. Despe-a,
contudo, da feição ingênua de que se revestira. Esse trabalho assume a
forma de inventário. Pretende-se científico e duradouro.
À Escola do Recife pode ainda ser atribuído o mérito de ter
lançado as bases da sociologia brasileira.
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215
O jurista e filósofo Clóvis Beviláqua
No entanto, fracassaram as incursões da Escola do Recife na
arena política. A única reforma institucional importante que lhe pode ser
atribuída é a elaboração do Código Civil de 1916, devida a Clóvis Beviláqua.
(PAIM, 1997, p. 94-96).
Miguel Reale denominou de “culturalismo” o movimento,
característico da Escola do Recife, que elegeu a filosofia como elemento
unificador da variada incursão promovida nos diversos componentes da
vida social.
Para Tobias Barreto, a cultura é “a antítese da natureza, no
sentido de que ela importa uma mudança do natural, no sentido de fazêlo belo e bom”. Designa pelo nome geral de natureza
o estado originário das coisas, o estado em que elas se acham
depois do seu nascimento, enquanto uma força estranha, a
força espiritual do homem, com sua inteligência e vontade,
não influi sobre elas e não as modifica (PAIM, 1979, p. 62 e 65).
Tobias Barreto acompanhou a mudança processada na
ideia de cultura elaborada na Alemanha. Kant e Hegel permitiram-lhe,
cada um a seu modo, compreender a cultura como objeto filosófico.
Incluía a capacidade humana de estruturar projetos racionais, base da
meditação filosófica. Tobias observou as consequências negativas de se
reduzir cultura a uma categoria restrita da ciência sociológica, conforme
entendiam os positivistas. Compreendeu-a como expressão de valores e,
assim, chegou a um conceito de cultura abrangente da ideia de que se
trata de uma forma de controle e aperfeiçoamento do homem e de um
resultado da ação:
A sociedade enquanto conjunto de pessoas em movimento
decide pelos valores que ele, formula-os como expressão
histórica. Devemos compreender a cultura como um elemento
capaz de impor ao sujeito o autoaperfeiçoamento. A cultura
passa a ser entendida como um sistema de forças que tem
objetivos éticos. A prática cultural provoca a eliminação das
anomalias da vida social, e o conceito de seleção natural
empregado por Darwin ganha o sentido de uma seleção
ética, jurídica, religiosa, intelectual, estética, cuja orientação
contraria a noção de evolução biológica. (CARVALHO, 2011, p.
82-83).
216
Revista do CEJ - n. 5, p. 207-223 - nov. 2015
Rogério Medeiros Garcia de Lima
Clóvis Beviláqua sintetizava:
Assim como o lago, cristalino ou turvo, reflete o firmamento,
cada um de nós reflete, fraca ou fortemente, o espírito
dominante na época em que vive, porque o homem é parte
componente do meio social, cuja influência necessariamente
recebe. (ROMÉRO, 1956, p. 17).
O pensador cearense era cético ao afirmar:
É bem verdade que não podemos apresentar no Brasil um
filósofo que incontestavelmente tenha dado contribuição
original e indispensável ao pensamento filosófico e
científico da humanidade, a ponto de provocar em Tobias
Barreto a afirmação de que: ‘não há domínio algum da
atividade intelectual em que o espírito brasileiro se mostre
tão acanhado, tão frívolo e infecundo como no domínio
filosófico’ (Tobias Barreto – ‘Questões Vigentes’ – pág. 245). E
o pensador sergipano tinha razão na época em que escreveu,
porque pode-se afirmar, em face de indagação histórica, que
a Filosofia, nos três primeiros séculos de nossa existência,
foi totalmente estranha na literatura nacional, devido ao
abandono da colônia, e, ainda mais, ao atraso da metrópole,
em relação ao pensamento filosófico da época. Foi preciso
avançar quase um século mais, para que se deparasse com
algum produto desta ordem, e, assim mesmo, como uma
pequena realidade.
Entretanto, se nada criamos de original no domínio
filosófico, refletiu sempre a nossa mentalidade, mais ou
menos intensamente, com firmeza de convicção variável,
as tentativas de interpretação do mundo que a ciência
universal engendra. Ao tempo em que escrevia Tobias
aquelas palavras, estávamos assistindo ao mais brilhante
surto, que, no campo filosófico, até então, havíamos
conhecido; e, porque Portugal não tinha filósofos, era
natural que as nossas vistas se voltassem para outros
países, principalmente a França, que, desde longos
anos, tem sido a nossa metrópole intelectual, apesar das
concessões mais francamente feitas, agora, à literatura
alemã, à inglesa, à italiana e à russa (ROMÉRO, 1956, p.
169).
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217
O jurista e filósofo Clóvis Beviláqua
Clóvis não foi um filósofo criador e original, mas era dotado de
inexcedível habilidade para assimilar o que havia de bom em novas ideias.
(ROMÉRO, 1956, p. 170).
Foi um livre pensador e definiu filosofia como “a mais alta
generalização dos conhecimentos humanos fornecidos pelas ciências
particulares”. Para ele, o “caráter essencial da filosofia, o que a distingue
de todos os outros conhecimentos, é a universalidade” (ROMÉRO, 1956, p.
171 e 198).
Ainda moço, foi influenciado pelo grande movimento filosófico
nascido e propagado na França, sob a influência de Auguste Comte. Esse
movimento repercutiu no Brasil através dos grandes vultos de Miguel
Lemos e Teixeira Mendes. Atraiu figuras das mais representativas da
cultura brasileira, como Benjamin Constant, Martins Júnior, Clodoaldo de
Freitas, Pereira Barreto e tantos outros, quase todos adeptos do regime
republicano. (ROMÉRO, 1956, p. 172).
A Proclamação da República no Brasil, em 1889, decorreu de um
movimento militar inspirado pelo ideário positivista. A bandeira nacional,
desde então, ostenta o dístico “Ordem e Progresso”:
Os oficiais que se reuniam (à volta do Marechal Floriano
Peixoto) possuíam outras características. Eram jovens que
haviam frequentado a Escola Militar e recebido a influência
do positivismo. Concebiam sua inserção na sociedade como
soldados-cidadãos, com a missão de dar um sentido aos
rumos do país. A República deveria ter ordem e também
progresso. Progresso significava [...] a modernização da
sociedade através da ampliação dos conhecimentos técnicos,
do crescimento da indústria, da expansão das comunicações.
(FAUSTO, 1994, p. 246).
No Rio, onde fez estudos preparatórios, recebeu Clóvis
Beviláqua os primeiros ensinamentos do positivismo, por intermédio
dos trabalhos de Miguel Lemos, mas se firmou na doutrina no
Recife, lendo o próprio Comte. Aprimorou seus conhecimentos
com o estudo dos trabalhos de Littré e S. Mill, os dois maiores
comentaristas do positivismo.
Mais tarde, estudou a fundo todos os sistemas e concepções
filosóficos, lendo monistas e dualistas, cepticistas e moralistas,
218
Revista do CEJ - n. 5, p. 207-223 - nov. 2015
Rogério Medeiros Garcia de Lima
enciclopedistas e ideologistas, pessimistas e otimistas, ecletistas e
sensualistas, teologistas e misticistas, quietistas e dogmatistas, positivistas
e evolucionistas. Decorrido algum tempo, Clóvis Beviláqua notou algumas
falhas na doutrina do positivismo e passou a se dedicar ao transformismo
darwínico, depois ao monismo haeckeliano, para terminar firmando-se no
evolucionismo spenceriano, talvez devido à influência de Tobias Barreto e
Sílvio Romero, que a princípio foram também comtistas.
Entretanto, Clóvis não se submeteu incondicionalmente ao
grande pensador inglês, naqueles pontos em que o evolucionismo ainda
não conseguiu convencer plenamente, nem calar as rebeldias da crítica,
como na classificação dos conhecimentos humanos, na teoria sobre o
desenvolvimento das ideias religiosas e na tentativa de conciliação entre
a religião e a ciência (ROMÉRO, 1956, p. 172).
Considerava o agnosticismo, sem dúvida, uma das notas
fundamentais da filosofia deste século:
Porém o sábio que afasta em todos os domínios da natureza
a intervenção do sobrenatural não poderá, sem notável
inconsequência, fazer do que ele ainda não conhece uma
redoma onde vá colocar um princípio que ele ainda conhece
menos. ‘Prefiro considerar a religião como uma criação
fundamental do espírito humano sim, porém que emudece
quando o verdadeiro sábio a interroga sobre as dúvidas que
lhe atormentam o espírito indagador’ (Clóvis Beviláqua – ‘Sílvio
Romero’ – Lisboa, 1905 – pág. 41). (ROMÉRO, 1956, p. 197-198).
Em síntese:
Clóvis Beviláqua foi um espírito aberto à compreensão e
à tolerância ideológica, mesmo quando seu pensamento
era divergente. Não fez da Filosofia o maior motivo de suas
preocupações mentais; mas durante vários anos teve nela
um objetivo consciente de realização, estruturado e definido
através de páginas que evidenciam uma inteligência superior.
Foi o direito que atraiu, em definitivo, o seu espírito; jamais,
porém, abandonou a visão filosófica dos problemas humanos
na pesquisa jurídica. A sua obra de jurista tem sangue de
pensador da Filosofia: é uma das raízes mais penetrantes de
sua grandeza. (NOGUEIRA, 1959, p. 45-46).
Revista do CEJ - n. 5, p. 207-223 - nov. 2015
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O jurista e filósofo Clóvis Beviláqua
6 A Filosofia do Direito em Clóvis Beviláqua
Para Antonio Paim, o momento áureo da Escola do Recife não
está na filosofia, mas na Filosofia do Direito. Pela primeira vez em nossa
cultura, o Direito é transformado em fenômeno histórico, sujeito a se
desenvolver no tempo e ligado à vida. Tobias Barreto, seguindo Jhering,
mas igualmente contribuindo com ideias próprias, proclamou que,
no imenso mecanismo humano, o Direito figura também como
uma das peças de torcer e ajeitar, em proveito da sociedade, o
homem da natureza.
Não mais o direito natural abstrato e divinizado, mas o
fenômeno histórico, produto cultural da humanidade, ligado à violência
e à luta. Numa expressão magistral Tobias Barreto diria que “a força que
não vence a força não se faz direito; o direito é a força que matou a própria
força” (PAIM, 1997, p. 96).
Prossegue Barreto:
Dizer que o direito é um produto da cultura humana importa
negar que ele seja, como ensinava a finada escola racionalista
e ainda hoje sustentam os seus póstumos sectários, uma
entidade metafísica, anterior e superior ao homem.
A proposição do programa é menos uma tese do que uma
antítese; ela opõe à velha teoria, fantástica e palavrosa, do
chamado direito natural, a moderna doutrina positiva do
direito oriundo da fonte comum de todas as conquistas e
progressos da humanidade em seu desenvolvimento.
[...] Quando, pois, dizemos que o direito é um produto da
cultura humana, é no sentido de ser ele um efeito, entre muitos
outros, desse processo enorme de constante melhoramento
e nobilitação da humanidade; processo que começou com o
homem, que há de acabar somente com ele, e que aliás não
se distingue do processo mesmo da história (BARRETO, 2001,
p. 31-33).
Clóvis Beviláqua também assinalou suas concepções jurídicas:
Não é preciso discutir agora as diferentes definições dadas ao
direito por filósofos e juristas. Seria ocioso. Como resultado de
indagações anteriores, estabeleçamos que, sociologicamente,
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Rogério Medeiros Garcia de Lima
o direito é uma regra social obrigatória, quer sob a forma de
lei, quer sob a de costume. É desse ponto de vista que Jhering
o define: ‘complexo das condições existenciais da sociedade,
coativamente asseguradas pelo poder público’. Olhando-o por
esse mesmo aspecto, disse Stammler que o direito não é mais
do que ‘o modo pelo qual os homens realizam, em comum, a
sua luta pela existência’[...].
Era preciso dar ao direito maior elasticidade, para que ele
não fosse um entrave à evolução social, que, afinal, depois
de alguma resistência, passaria por cima da lei assaz rígida,
desorganizando a função normal das fontes jurídicas dos
tempos modernos. Percebeu-o, inteligentemente, um dos mais
ilustres mestres da Faculdade de Paris, Bufnoir. Compreendendo
que o direito oferece uma extensão maior do que a dos textos,
e que não é a lógica o único instrumento de que se deve servir
o intérprete, ensina que ‘a ciência do direito deve dobrar-se às
exigências da vida real, e a solução que preconiza é a mais em
harmonia com as necessidades e as tendências da sociedade,
no meio da qual desenvolve as suas doutrinas’. Esta orientação
é seguida por Saleilles, que desenvolve o ponto de vista do
Bufnoir; por Geny, que dá um passo adiante e quer estabelecer
o prestígio da livre indagação científica, ‘inspirando-se nos
resultados fornecidos por todas as disciplinas, que, analisando
o mundo social, revelam, na sua estrutura íntima e nas suas
exigências profundas, o que se pode chamar de natureza
positiva das coisas; por Lambert, o profundo e erudito escritor
do Droit civil comparé, e por muitos outros.
Esta feição nova da doutrina em França e as audácias crescentes
de jurisprudência, mostram, de um lado, que as ideias sobre
interpretação já não satisfazem mais hoje as exigências do
momento; que a lei não é a fonte única do direito; e que a vida
social reagem incessantemente sobre o direito. (BEVILAQUA,
1976, p. 17, 18, 47 e 48; grifos no original).
A grande contribuição do jurista Clóvis Beviláqua – um dos
maiores, senão o maior que o Brasil conheceu – ainda se faz presente na
jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, a mais alta Corte nacional
para interpretação da lei federal:
O jurista, salientava Pontes de Miranda em escólio ao Código
de 1939 XII/23, ‘há de interpretar as leis com o espírito ao nível
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O jurista e filósofo Clóvis Beviláqua
do seu tempo, isto é, mergulhado na viva realidade ambiente,
e não acorrentado a algo do passado, nem perdido em
alguma paragem, mesmo provável, do distante futuro’. ‘Para
cada causa nova o juiz deve aplicar a lei, ensina Ripert (Les
Forces Créatives du Droit, p. 392), considerando que ela é uma
norma atual, muito embora saiba que ela muita vez tem longo
passado’; ‘deve levar em conta o estado de coisas existentes no
momento em que ela deve ser aplicada’, pois somente assim
assegura o progresso do Direito, um progresso razoável para
uma evolução lenta. (trecho do voto do ministro Sálvio de
Figueiredo Teixeira, relator do Recurso Especial n. 196-RS, in
Revista dos Tribunais, vol. 651, janeiro de 1990, pp. 170-173).
222
Revista do CEJ - n. 5, p. 207-223 - nov. 2015
Rogério Medeiros Garcia de Lima
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Editora Ltda., sem data.
SCHUBSKY, C. Clóvis Beviláqua: um senhor brasileiro. São Paulo: Lettera.doc,
2010.
Revista do CEJ - n. 5, p. 207-223 - nov. 2015
223
Direito da personalidade – natureza
jurídica, delimitação do objeto e relações
com o Direito Constitucional203
Silvio Romero Beltrão204
Resumo: A presente monografia pretende analisar dos
direitos da personalidade, seu conceito, natureza jurídica e
relações com os direitos fundamentais. Sendo a pessoa o fim
do direito, a mesma representa um valor a tutelar na proteção
de seu interesse moral e material e no desenvolvimento
de sua personalidade. Assim, os direitos da personalidade
vêm definidos como direitos essenciais do ser humano. Sua
natureza jurídica é construída por determinados atributos,
qualidades físicas ou morais da pessoa, individualizadas pelo
ordenamento jurídico que não se confundem com os direitos
fundamentais. Portanto, a ideia da presente monografia
é apontar a definição dos direitos da personalidade e
sua diferença em relação aos direitos fundamentais,
principalmente em razão dos referidos institutos terem a
mesma fonte ética da dignidade da pessoa humana como
forma de proteção da pessoa.
Palavras-chave: Direitos da Personalidade.
Características. Natureza. Direitos Fundamentais.
Conceito.
Resumen: La presente monografía pretende analizar los
derechos de la personalidad, su concepto, naturaleza jurídica y
relación con los derechos fundamentales. La persona es el fin del
derecho, representa un valor a tutelar en protección del su interés
moral y material y en el desenvolvimiento de su personalidad.
Asi, los derechos de la personalidad son biens essenciales de la
persona. Su naturaleza jurídica es construida por determinados
atributos, cualidad física o moral de la persona, individualizadas
por lo ordenamiento jurídico que no si confunde con los derechos
fundamentales. Por tanto, la idea de la presente monografía es
203
BELTRÃO, Silvio Romero. Direito da Personalidade: Natureza Jurídica, Delimitação do Objeto, Relações com
o Direito Constitucional. In: Joyceane Bezerra de Menezes. (Org.). Dimensões Jurídicas da Personalidade na
Ordem Constitucional Brasileira. 1 ed. Florianópolis: Conceito, 2010, v. 1, p. 471-489. ISBN: 978-85-78-740917.
204
Juiz de Direito, Mestre e Doutor em Direito Civil pela UFPE, professor de Direito Civil da UFPE.
Revista do CEJ - n. 5, p. 225-246 - nov. 2015
225
Direito da personalidade – natureza jurídica, delimitação do objeto e relações com o Direito Constitucional
apuntar la definición de los derechos de la personalidad y su
distinción con los derechos fundamentales, principalmente en
razón de los referidos institutos tienen la misma fuente de la
dignidad de la persona como forma de protección de la persona.
Palabra-ll ave: Derecho de la personalidad. Concepto.
Caracteres. Naturaleza. Derechos fundamentales.
1 A pessoa humana no ordenamento jurídico civil
Segundo a atual tendência jurídica, o termo pessoa natural
individualiza em nosso ordenamento jurídico o ser humano enquanto
expressão conclusiva do processo biológico que se inicia com a concepção
e vai até o nascimento.
A pessoa natural, em sua realidade e experiência, representa um
valor a tutelar em suas inúmeras formas de expressão, em seu interesse
moral e material e no desenvolvimento de sua personalidade. Representa,
de acordo com um reconhecimento unânime, o fim último da norma
jurídica.
Do ponto de vista do direito positivo, a individualização do
fundamento real do conceito jurídico de pessoa natural reporta-se às
experiências da vida que constituem a base de qualquer valor da realidade
humana; contudo, põe-se imediatamente o problema da identificação da
norma ou do princípio normativo, no qual atua a formalização do valor da
pessoa, ou seja, a transformação do conceito do valor da pessoa natural
na realidade da vida para um valor jurídico. (CENDON, 2000, p. 5).
Há na doutrina, porém, a controvérsia quanto ao surgimento
da tutela jurídica da personalidade, para doutrinadores como Menezes
Cordeiro (2007, p. 47), a proteção da pessoa tem importante antecedente
na actio iniuriarum do Direito Romano205, apesar de ainda não existir a
figura do Direito Subjetivo, naquela época.206
Por sua vez, Maria Celina Bodin de Moraes (TEPEDINO et al, 2004,
p. 31) esclarece que somente a partir do século XIX, com a elaboração das
205
“Todavia, a tutela da personalidade estava já consignada, no Direito romano. O Direito – particularmente
o civil – existe para defender as pessoas, sendo sintomático que, desde cedo, os hoje ditos bens de
personalidade tivessem obtido proteção. A idéia de que a dignidade das pessoas data do liberalismo não é
historicamente exacta.” (CORDEIRO, 2007, p. 47).
206
Nesse mesmo sentido Elimar Szaniawski (SZANIAWSKI, 2005, p.25).
226
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Silvio Romero Beltrão
doutrinas francesa e alemã, que se iniciou a construção dos direitos da
personalidade.207
A transposição histórica do valor real da pessoa natural para o
seu valor jurídico tem percorrido um caminho complexo e longo, que se
pode sinteticamente reconstruir.
O termo “pessoa” foi utilizado pela primeira vez em seu sentido
técnico pelos juristas do século XVI, unido sempre ao conceito de
capacidade jurídica. (CENDON, 2000, p. 6).
No século seguinte, a liberdade pessoal aparece como objeto de
estudo de Grozius, enquanto que a expressão “direito da personalidade”
se pode atribuir a Gierke, o qual, no fim do século XIX, individualizava os
aspectos pertinentes ao indivíduo, como a vida, a honra, a liberdade física
e o nome. (CENDON, 2000, p. 6).
Na contradição de uma sociedade que lutava contra o
privilégio de classe e que, todavia, teorizava o privilégio do Rei, não
se visualizava espaço para colocar a tutela da personalidade em
termos completos, como valor absoluto. Somente mais tarde começa
a prosperar a possibilidade de estruturar a sociedade sobre a base da
reciprocidade entre indivíduo e soberano (com obrigações e direitos
recíprocos), a qual é concebida com a teorização da divisão dos
poderes. (PERLINGIERI apud CENDON, 2000, p. 6).
O reconhecimento da existência de um direito natural do
homem une-se à Declaração solene com a qual se proclamava na França
revolucionária o Direito do Cidadão e a liberdade e igualdade de todos os
“homens”. Com a Revolução Francesa, portanto, obtém-se a afirmação da
existência de um direito inato ao homem, inserido no contexto histórico
de contraposição ao Estado. (CENDON, 2000, p. 6).
Ainda sob o ponto de vista histórico, os conceitos de pessoa e de
homem nem sempre tiveram correspondência. No período da escravidão,
despia-se o homem da condição de sujeito de direito para considerá-lo
coisa, desprovido da faculdade de ser titular de direitos, ocupando na
relação jurídica a situação de objeto. (PEREIRA, 1999, p. 142).
207
“Foi contudo, somente no século XIX, a partir da elaboração das doutrinas francesa e alemã , que se começou
a edificar a construção dos direitos atinentes à tutela da pessoa humana, considerados essenciais à esfera de
proteção de sua dignidade e integridade, denominando-se-lhes direitos da personalidade.”(TEPEDINO et al,
, 2004, p.31.).
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227
Direito da personalidade – natureza jurídica, delimitação do objeto e relações com o Direito Constitucional
No sentido jurídico, é para a pessoa que o direito foi feito,
conceituando-se pessoa todo ser humano capaz de direitos e obrigações.
O direito atribui à pessoa, a qualidade de sujeito de direitos como conteúdo
fundamental e finalístico da ordem jurídica, conforme a expressão de
Hermogeniano: “omme ius causa hominum constitutum est”.
” (ASCENSÃO,
1997, p. 38; PUERCHE, 1997, p. 17; PEREIRA, 1999, 142).
Assim, o Código Civil de 2002 atribui à pessoa a capacidade de
direitos e deveres na ordem civil, tal como fazia o Código Civil de 1916,
que utilizava a expressão “todo homem” para representar o ser humano.
Como a pessoa é o sujeito das relações jurídicas e a
personalidade a faculdade a ele reconhecida, pode-se dizer que toda
pessoa é dotada de personalidade. (PEREIRA, 1999, p. 142).
Uma das principais inovações do Código Civil de 2002 é a
inclusão em seu texto dos direitos da personalidade, seguindo uma
fórmula antes apresentada pelo Código Civil Italiano e Português, com a
valorização da pessoa e suas conquistas.
Assim, o nosso estudo irá concentrar-se na pessoa natural, o
ser humano, em face dos Direitos da Personalidade e seu regime jurídico,
descrevendo, principalmente, a distinção com os Direitos Fundamentais.
2 O conceito de direito da personalidade
A Constituição da República Federativa do Brasil tem como
um dos seus princípios fundamentais a dignidade da pessoa humana, a
qual revela o mais primário de todos os direitos, na garantia e proteção
da própria pessoa como um último recurso, quando a garantia de todos
os outros direitos fundamentais se revele excepcionalmente ineficaz,
proclamando a pessoa como fim e fundamento do direito. (MIRANDA,
1993, p. 166).
Os direitos e garantias fundamentais instituídos no art. 5º da
Constituição Federal têm como fonte ética, a dignidade da pessoa humana
como forma de proteção e desenvolvimento da pessoa.
Em face do princípio fundamental da dignidade da pessoa
humana, pode-se dizer que a pessoa é o bem supremo da ordem jurídica,
o seu fundamento e seu fim. Sendo possível concluir que o Estado existe
228
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Silvio Romero Beltrão
em função das pessoas e não o contrário, a pessoa é o sujeito do direito e
nunca o seu objeto. (ASCENSÃO, 1997, p. 64).
Não há valor que supere o valor da pessoa humana (SANTOS,
1999, p. 93). É nesse sentimento de valor que se fundamenta o direito da
personalidade como projeção da personalidade humana.
Com os direitos da personalidade, quer-se fazer referência a um
conjunto de bens que são tão próprios do indivíduo, que chegam a se
confundir com ele mesmo e constituem as manifestações da personalidade
do próprio sujeito. (MOTES, 1993, p. 29).
Francesco Messineo apresenta os direitos da personalidade
como limites impostos contra o poder público e contra os particulares,
atribuindo à pessoa um espaço próprio para o seu desenvolvimento, que
não pode ser invadido, recebendo uma proteção específica do direito. Os
direitos da personalidade designam direitos privados fundamentais, os
quais devem ser respeitados como o conteúdo mínimo para a existência
da pessoa humana, impondo limites à atuação do Estado e dos demais
particulares, contudo, tal conceituação não é suficiente para determinar
especificamente quais direitos são ou não da personalidade, sem que
exista uma tipificação, vez que a posição de Messineo é a de que os direitos
da personalidade só se operam por força de lei. (1950, p. 04).
Por outro lado, defendendo uma posição naturalista, Carlos
Alberto Bittar (2000, p. 07) entende que os direitos da personalidade
constituem direitos inatos, cabendo ao Estado apenas reconhecê-los
e sancioná-los em um ou outro plano do direito positivo, dotando-o de
proteção própria contra o arbítrio do poder público ou contra as incursões
de particulares.
Ora, a posição naturalista defende a ideia de que existem e
merecem respeito direitos da personalidade, mesmo não tipificados
pelo ordenamento jurídico, valendo-se do princípio geral da proteção da
dignidade da pessoa humana. (PONTES DE MIRANDA, 2000, p. 39).
Os direitos da personalidade vêm tradicionalmente definidos
como direitos essenciais do ser humano, os quais funcionam como o
conteúdo mínimo necessário e imprescindível da personalidade humana
(CHAVES, 1982, p. 39). A justificativa teórica para atribuir o caráter de
direitos inatos aos direitos da personalidade volta-se à circunstância de se
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229
Direito da personalidade – natureza jurídica, delimitação do objeto e relações com o Direito Constitucional
tratarem de direitos essenciais, naturais à pessoa humana que remetem
a sua existência ao mesmo momento e ao mesmo fato da existência da
própria pessoa.
A teoria do direito inato é consequência da reação contra o
extrapolamento de poderes do Estado que acompanhou a Revolução
Francesa em sua fase principal. Naquele período, pretendia-se reconhecer
um direito preexistente ao Estado, reconhecido e não criado por ele.
Assim, pode-se definir os direitos da personalidade como
categoria especial de direitos subjetivos que, fundados na dignidade da
pessoa humana, garantem o gozo e o respeito ao seu próprio ser, em
todas as suas manifestações espirituais ou físicas. (PUERCHE, 1997, p. 43).
3 Características dos direitos da personalidade
O Código Civil de 2002208 define algumas das características dos
direitos da personalidade quando destaca o seu aspecto intransmissível e
irrenunciável, como elementos resultantes da infungibilidade própria da
pessoa, que não permite que eles sejam adquiridos por outras pessoas,
em face da ligação íntima do direito com a personalidade. (PONTES DE
MIRANDA, 2000, p. 31).
O caráter intransmissível do direito da personalidade determina
que ele não pode ser objeto de cessão e até mesmo de sucessão, por ser
um direito que expressa a personalidade da própria pessoa do seu titular
e que impede a sua aquisição por um terceiro por via da transmissão.
Nesse sentido, são irrenunciáveis, pois a pessoa não pode
abdicar de seus direitos da personalidade, mesmo que não os exercite por
longo tempo, uma vez que ele é inseparável da personalidade humana.
Contudo, apesar do direito da personalidade não ser renunciável, o seu
exercício pode ser restringido em alguns casos, sem que haja a perda do
direito, e restabelecido a qualquer tempo. (BITTAR, 2000, p. 11).
Os direitos da personalidade são pessoais em face de seu
caráter não patrimonial, o que não impede que eles fundamentem
ações de responsabilidade civil (ASCENSÃO, 1997, p. 83). E não menos
interessante é a experiência da relação com o direito patrimonial, em
208
Código Civil/02, art. 11: “Com exceção dos casos previstos em lei, os direitos da personalidade são
intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária”.
230
Revista do CEJ - n. 5, p. 225-246 - nov. 2015
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face do nexo instrumental existente entre os bens inerentes à pessoa e
os bens patrimoniais. Ao contrário do que perdurou por bastante tempo
em nossa ordem jurídica, os bens da personalidade possuem uma
correlação imediata com o interesse econômico, onde diante da evolução
social e correspondente disposição constitucional e civil, há um reflexo
patrimonial nos direitos da personalidade. É certo que, o remédio contra
lesões aos direitos da personalidade são, de fato, as aplicações de medidas
próprias que visem à cessação da ofensa e a reintegração específica do
bem violado, acrescido do ressarcimento patrimonial.
Os direitos da personalidade são absolutos em face do seu
caráter erga omnes, em que a sua atuação se faz em toda e qualquer
direção, sem a necessidade de uma relação jurídica direta para se respeitar
este direito. Indiretamente, há uma obrigação negativa, em que todas as
pessoas devem respeitar a personalidade do titular do direito.209
Contudo, Menezes Cordeiro entende que apesar dos direitos da
personalidade serem apresentados como direitos absolutos, tal expressão
não é unívoca, devendo ser precisada.
O direito à confidencialidade de uma carta missiva confidencial
é, antes de mais, uma pretensão dirigida ao destinatário da
carta. Se o próprio autor da carta a lançar na comunidade, não
lhe caberá, depois, queixar-se de quebras de confidencialidade.
Do mesmo modo, o direito à confidencialidade das relações
que se estabeleçam entre o médico e o seu paciente ou entre
o advogado e o seu constituinte é, pelo menos, em primeira
linha, invocável inter partes. (CORDEIRO, 2007, p. 103).
Por sua vez, apesar do caráter absoluto dos direitos da
personalidade, eles não são ilimitados, sendo susceptíveis de limitações
impostas pelo próprio direito objetivo e em razão da necessidade de
conjugação com outras situações protegidas. (ASCENSÃO, 1997, p. 83).
Em face de seu caráter essencial, a maior parte dos direitos da
personalidade são direitos inatos, como direitos originários que nascem
com a própria pessoa, sendo também imprescritíveis, onde a omissão no
seu exercício não provoca a extinção do direito.
Alguns direitos da personalidade podem ser, em certas situações,
209
“Qualquer pessoa os pode violar, incorrendo no dever de não o fazer” (Cordeiro, 2007, p. 103).
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231
Direito da personalidade – natureza jurídica, delimitação do objeto e relações com o Direito Constitucional
restringíveis através de negócios jurídicos. Esses limites negociais são
relativos às convenções estabelecidas pelas partes, além dos limites
legais, pois, apesar de seu caráter essencial, não implica dizer que eles são
totalmente excluídos das atividades negociais. (ASCENSÃO, 1997, p. 85).
Assim, alguém que abre mão voluntariamente de seu direito
à intimidade ou à privacidade em programa de televisão, não está
ferindo princípio inerente à dignidade da pessoa humana. No direito civil
português, há disposição expressa possibilitando a limitação voluntária
ao exercício do direito da personalidade, desde que não seja contrária
aos princípios de ordem pública. Pode-se então verificar que a exposição
voluntária da privacidade de uma determinada pessoa não fere princípio
de ordem pública.
Ou seja, o acto lesivo dos direitos da personalidade é lícito
quando o lesado tenha consentido na lesão, desde que o
respectivo consentimento não seja contrário a uma proibição
legal ou aos bons costumes. O consentimento do lesado é aqui
um acto jurídico unilateral, meramente integrativo da exclusão
da ilicitude, ou seja, não constitutivo, na medida em que não
cria qualquer direito para o agente lesado. (SOUZA, 1995, p.
411).
O Código Civil de 2002210 preferiu redação mais complicada,
determinando que somente nos casos previstos em lei poderá haver
limitação voluntária do exercício dos direitos da personalidade, onde é
bastante difícil normatizar quais atos podem sofrer ou não limitação
voluntária no seu exercício. Contudo, deve-se levar em consideração se
na restrição do exercício de certos direitos da personalidade, há violação
ao princípio geral da preservação da dignidade humana e o respeito ético
da pessoa humana como atributo de uma cláusula geral.211
Sendo assim, mesmo havendo limitação voluntária ao exercício
do direito da personalidade, não haverá a perda desse direito pelo seu
titular, sendo sempre revogável a autorização concedida no negócio
jurídico. Mas, apesar de lícita a revogação da autorização, o titular do
210
Art. 11. CC: “Com exceção dos casos previstos em lei, os direitos da personalidade são intransmissíveis e
irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária”.
211
“No mesmo sentido, na Jornada de Direito Civil, promovida pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho
da Justiça Federal (CEJ), foi aprovado o enunciado n. 4, segundo o qual ‘o exercício dos direitos da
personalidade pode sofrer limitação voluntária, desde que não seja permanente nem geral’ (Ruy Rosado,
Jornada de Direito Civil, p. 51 in TEPEDINO et al, 2004, p. 34).
232
Revista do CEJ - n. 5, p. 225-246 - nov. 2015
Silvio Romero Beltrão
direito ficará obrigado a indenizar as legítimas expectativas criadas na
outra parte. É um exemplo típico de responsabilidade civil por ato lícito.
(ASCENSÃO, 1997, p. 85).
Dessa forma, a disponibilidade do exercício de certos bens da
personalidade, tais como o direito à imagem, tem como fundamento
principal a autorização expressa do titular, prevendo os modos de
divulgação e exercício do direito (BITTAR, 200, p. 45). Nesse sentido,
permite-se ao titular do direito, a correspondente remuneração pelo
direito exercido.
Contudo, mesmo havendo autorização do titular para o
exercício do direito da personalidade, tal autorização é sempre revogável,
ficando, porém, o titular do direito obrigado a indenizar o dano causado
às legítimas expectativas da outra parte.212
Por sua vez, Menezes Cordeiro analisando o caráter não
patrimonial dos Direitos da Personalidade, impõe algumas distinções:
Direitos de personalidade não-patrimoniais em sentido forte:
o Direito não admite que os correspondentes bens sejam
permutados por dinheiro: o direito à vida, o direito à saúde e à
integridade corporal;
Direitos de personalidade não-patrimoniais em sentido fraco:
eles não podem ser abdicados por dinheiro embora, dentro de
certas regras, se admita que surjam como objecto de negócios
patrimoniais ou com algum alcance patrimonial; assim sucede
com o direito à saúde ou à integridade física, desde que não
sejam irreversivelmente atingidos, nos termos que regem a
experimentação humana.
Direitos de personalidade patrimoniais: representam um valor
econômico, são avaliáveis em dinheiro e podem ser negociados
no mercado: nome, imagem e fruto da actividade intelectual.
(CORDEIRO, 2007, p. 106).
Os direitos da personalidade, apesar de serem considerados
absolutos, sofrem limitações em seu exercício. É certo que a unidade
normativa do direito da personalidade integra-se em nosso ordenamento
212
“A que vem então o dever de indemnizar? A revogação é acto lícito ou ilícito? Supomos que é lícito. Mas a
tutela da personalidade leva a que sejam causados danos a quem nenhuma responsabilidade teve. Nesse
conflito, a lei intervém, impondo como contrapartida ao titular o dever de indemnizar esses danos. É um
caso de responsabilidade civil por actos lícitos”. (ASCENSÃO, 1997, p. 86).
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233
Direito da personalidade – natureza jurídica, delimitação do objeto e relações com o Direito Constitucional
jurídico com outros direitos e poderes de conteúdo jurídico diverso, com
suas próprias valorações. (SOUZA, 1995, p. 515).
Esses limites podem ser intrínsecos ou extrínsecos. Será
intrínseco, quando demarcado pela própria lei que estabelece o seu
conteúdo, como uma pré-delimitação do domínio de aplicação do
respectivo direito. Será extrínseco, quando resultar da conjugação com
outras situações protegidas (ASCENSÃO, 1997, p. 84), tendo em vista que
os interesses protegidos pelo direito da personalidade podem conflitar
com outros direitos e poderes protegidos na ordem jurídica.
A imposição de limites aos direitos da personalidade, diante do
complexo normativo do sistema jurídico, em face da dinâmica do próprio
direito, demonstra que o seu exercício deve corresponder aos interesses
e fins sociais.
Assim, o caráter absoluto dos direitos da personalidade não
pode significar uma liberdade arbitrária atribuída ao seu titular, devendo,
pois, sofrer limitações do direito na própria lei que o instituiu e diante
da dinâmica do direito em face da conjugação com outras situações
protegidas; deve sofrer limitações valoradas, objetivamente segundo os
interesses e fins sociais da ordem jurídica213.
É que, correspondendo também os direitos de personalidade
a interesses ou fins jurídicos, não só o seu titular no respectivo
exercício não poderá, como vimos, exceder manifestamente os
limites impostos pelo fim social ou econômico desses direitos,
como também o próprio valor relativo de um concreto modo
de exercício de um direito de personalidade subjectivado
conflitual depende, em certa medida, das conseqüências
objectivas dele decorrentes, da natureza e da intensidade dos
interesses ou fins efectivamente prosseguidos pelo respectivo
titular e do posicionamento de tais conseqüências objectivas
e interesses ou fins subjectivos na hierarquia dos interesses
ou fins juridicamente tutelados por tal direito. (SOUZA,
1997, p. 535).
213
O Código Civil Português em seu artigo 335 dispõe de norma específica para a solução dos conflitos diante
do exercício de direitos. Art. 335 do Código Civil Português:“1- Havendo colisão de direitos iguais ou da mesma
espécie, devem os titulares ceder na medida do necessário para que todos produzam o seu efeito, sem maior
detrimento para qualquer das partes. 2- Se os direitos forem desiguais ou de espécie diferente, prevalece o que
deva considerar-se superior”.
234
Revista do CEJ - n. 5, p. 225-246 - nov. 2015
Silvio Romero Beltrão
4 Natureza jurídica dos direitos da personalidade
A determinação dos direitos da personalidade decorre da sua
própria função, consistente na satisfação das necessidades próprias das
pessoas, que estão a elas ligadas num nexo muito estreito, que poderia
dizer orgânico, e identificam-se com os mais elevados, entre todos os bens
susceptíveis de senhorio jurídico. Assim, os bens da vida, da integridade
física, da liberdade, apresentam-se de imediato como bens máximos, sem
os quais os demais perdem todo o valor. (CUPIS, 1959, p. 29).
A natureza jurídica dos direitos da personalidade foi bastante
discutida, argumentando vários autores que não poderia existir o direito
da pessoa sobre si mesmo, pois estaria se justificando o suicídio. (BITTAR,
2000, p. 04).
O objeto dos direitos da personalidade não é, portanto, exterior
ao sujeito, diferentemente dos demais bens. Porém, esta não exterioridade
não significa dizer que a pessoa e os bens da personalidade são idênticos,
pois o modo de ser da pessoa não é a mesma coisa da pessoa, do contrário,
entenderíamos que a pessoa seria ao mesmo tempo sujeito e objeto de si
própria, representando um ius in se ipsum.214
Adriano de Cupis, em sua obra I Diritto della Personalità é da
opinião de que a inadmissibilidade da teoria ius in se ipsum é um defeito
de construção jurídica e não uma apriorística impossibilidade lógica. Vez
que é difícil compreender como alguém possa ter como próprios, animais
que tenha adquirido, como direito da propriedade, e não possa ter direitos
sobre a sua mão, os seus pés e sua cabeça. (1959, p. 30). A objeção aos
direitos da personalidade destaca que seria impossível distinguir o sujeito
do objeto, vez que a mesma pessoa seria tanto o seu sujeito, quanto o seu
objeto. (PUERCHE, 1997, p. 42).
Nesse sentido, a pessoa não poderia ser titular de direitos
sobre suas qualidades ou partes do corpo, por integrarem um único ser
indivisível.
É certo que a pessoa é uma realidade física e moral inseparável,
onde suas qualidades essenciais integram um único ser indivisível,
contudo:
214
“direito sobre a própria pessoa”.
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235
Direito da personalidade – natureza jurídica, delimitação do objeto e relações com o Direito Constitucional
A vida, a integridade física, a honra ou a intimidade são partes
ou qualidades da pessoa que podem ser intelectualmente
objeto de consideração separada e independente, como
manifestações diferentes da personalidade. (PUERCHE,
1997, p. 42).
Se a inadmissibilidade lógica não pode ser aduzida contra o
ius in se ipsum, tampouco a mesma pode ser aduzida contra os
direitos da personalidade entendidos como direitos que tem
por objeto os modos de ser físicos e morais da pessoa. A vida,
a integridade física, a liberdade, e assim por diante constituem
aquilo que nós somos. Portanto, não se vê por qual motivo
o legislador deveria limitar-se a proteger a categoria do ter,
excluindo da própria esfera de consideração a categoria do ser.
(CUPIS, 1959, p. 30).
A oposição à existência dos direitos da personalidade foi
sustentada por Carnelutti que, assinalava que o simples modo de ser de
uma pessoa não poderia ser considerado bem jurídico, enquanto que
Aurélio Candiam, nesse mesmo sentido, afirmava a necessidade de relações
externas da pessoa com seus direitos, para justificar a impossibilidade da
existência de bens interiores à pessoa. (CUPIS, 1959, p. 30; BITTAR, 2000, p.
05; PONTES DE MIRANDA, p. 05).
Defendendo a existência dos direitos da personalidade, Pontes
de Miranda ensina que:
O direito à personalidade como tal é direito inato, no sentido de
direito que nasce com o indivíduo; é aquele poder in se ipsum,
a que juristas do fim do século XV e do século XVI aludiam,
sem ser, propriamente, o direito sobre o corpo, in corpus suum
potestas. Não se diga que o objeto é o próprio sujeito; nem se
pode dizer que, nele, o eu se dirige ao próprio eu. (PONTES DE
MIRANDA, 2000, p. 38).
Verifica-se que a maioria dos autores que contestam os direitos
da personalidade utiliza-se de elementos idênticos aos dos direitos
patrimoniais, onde a necessidade de relação jurídica externa com o bem
demonstra característica própria do direito da propriedade, o que não
acontece com os direitos da personalidade.215
215
“São direitos ínsitos na pessoa, em função de sua própria estruturação física, mental e moral. Daí, são dotados
de certas particularidades, que lhes conferem posição singular no cenário dos direitos privados”. (BITTAR,
2000, p. 05).
236
Revista do CEJ - n. 5, p. 225-246 - nov. 2015
Silvio Romero Beltrão
Assim, a dificuldade em separar a pessoa de suas qualidades
essenciais não pode ser óbice à aceitação dos direitos da personalidade,
diante da necessidade de individualização e proteção desses direitos,
impedindo que terceiros interfiram na esfera da personalidade humana,
garantindo à pessoa o exercício de todas as suas qualidades essenciais.
Conclui Adriano de Cupis que:
A exigência de um poder, de uma defesa subjetiva aos bens
da personalidade decorre do fato de que a sua interioridade
não implica automaticamente na sua plena permanência
ou conservação. Na verdade, a vida, a integridade física ou
a moral podem apesar da sua interioridade em relação ao
sujeito escapar ao mesmo, sofrendo diminuição por ação
de terceiros, sendo, portanto, necessário um poder jurídico
voltado justamente para garantir a plena conservação de
tais bens. Uma óbvia exigência de defesa postula que os
bens interiores sejam objeto de direito. (CUPIS, 1959, p. 34).
A identificação dos direitos da personalidade como direitos
subjetivos não aparecia, de fato, pacífica na doutrina.
Perlingeri (apud CENDON, 2000, p. 33) assinala que a
personalidade não pode ser exaurida na categoria de direito subjetivo,
pois, compreende que a subjetividade do direito está ligada à
presença própria de um valor, o qual não é encontrado nos direitos
da personalidade, que detém a mera disponibilidade de um interesse.
Diz o mesmo que, quando se qualifica a situação subjetiva da
personalidade como direito subjetivo, não se apresentam em relação
à personalidade as categorias dogmáticas do poder, interesse legítimo
e dever, elaboradas para classificar situações subjetivas, frustrando-se
o problema dos direitos da personalidade, pois, tais categorias não se
apresentam em relação à personalidade.
A razão de fundo para a oposição a uma identificação dos
direitos da personalidade como direito subjetivo está montada no
esquema em que foi construído o direito subjetivo, que permanece
protegida pelos elementos da propriedade, e na lógica do seu instituto
patrimonial é moldada à concepção da estrutura dos direitos individuais.
(CENDON, 2000, p. 33).
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237
Direito da personalidade – natureza jurídica, delimitação do objeto e relações com o Direito Constitucional
No Brasil, o próprio Teixeira de Freitas (TEIXEIRA DE FREITAS,
1915, p. 77) declarou explicitamente que “se no sentido mais filosófico
os direitos da personalidade forem considerados de propriedade, seguirse-á fazê-los entrar na órbita da legislação civil”.
Contudo, no direito da personalidade o bem jurídico a tutelar
aparece na verdade disfarçado de maneira diversa da qual acontece
no direito da propriedade. No direito da personalidade, o bem que
o sujeito pretende defender ou adquirir não se acha fora do ser, ou
situado na realidade do mundo estranho à natureza da pessoa. O direito
da personalidade, pelo contrário, é inerente à própria pessoa, a sua
individualidade física, a sua experiência de vida moral e social. (CENDON,
2000, p. 33).
Em outras palavras, se por tantos aspectos a teoria jurídica
sobre a existência de direitos subjetivos da personalidade acusa incerteza
e ambiguidade e uma linha conceitual não definida, isto é devido, em
princípio, a uma consideração substancial dos interesses confluentes
nos valores jurídicos da pessoa sobre o modelo de uma garantia jurídica
inserida na lógica da propriedade. A validade teórica de uma tendência
similar faz com que o modelo propriedade atravesse o conceito de direito
subjetivo e determina que o esquema fundamental e unificante de
todas as possíveis manifestações de direito privado, seja legada a razão
metodológica e histórica, que reduz toda categoria privatística à categoria
do ter. (CENDON, 2000, p. 34).
Com os direitos da personalidade, uma nova categoria se
modela, através da evidência do ser e não do ter216, que impõe a conclusão
que estes direitos tutelam tudo que lhe é peculiar, caracterizando-os como
direito subjetivo.
Citando Ferrara, Adriano de Cupis expõe que “no direito
subjetivo, a alavanca que movimenta o mecanismo de proteção é colocado
nas mãos do titular: que pode puxá-la quando quiser, no seu interesse”.217
Da mesma forma, os conceitos expostos bem jurídico e direito
subjetivo são duas entidades distintas e não se pode deixar de reagir à
teoria, pela qual o direito subjetivo seria pura e simplesmente a posição
216
Ter no sentido patrimonial.
217
“Nel diritto soggetivo, la leva di movimento del mecanismo di protezione è posta in mano al titolare: egli può
tirarla quando vuole, nel suo interesse”.
” (CUPIS, 1959, p. 68).
238
Revista do CEJ - n. 5, p. 225-246 - nov. 2015
Silvio Romero Beltrão
daquele a favor do qual a norma jurídica prescreve alguma coisa e portanto
assegura um bem, vez que a posição em que se concretiza a titularidade
de um direito subjetivo não pode ser reduzida à simples expectativa do
bem jurídico. (CUPIS, 1959, p. 68).
Pode-se assim concluir que não há nenhuma incompatibilidade
lógica para a existência e positivação dos direitos da personalidade
como direitos subjetivos, visto que a pessoa tem o poder de desenvolver
livremente a sua vida, utilizando-se das garantias jurídicas conferidas
pelos direitos da personalidade, para assegurar o exercício dos elementos
que compõem os valores essenciais da pessoa humana. Decorrendo
tais direitos da defesa dos interesses privados inerentes à proteção da
dignidade da pessoa humana.218
5 Distinção entre direitos da personalidade e direitos fundamentais
Apesar da maioria dos preceitos relativos ao direito da
personalidade serem tratados como direitos e garantias fundamentais,
há entre eles distinções, pois, os direitos da personalidade exprimem
aspectos que não podem deixar de ser conhecidos sem afetar a própria
personalidade humana, enquanto que os direitos fundamentais demarcam
em particular a situação do cidadão perante o Estado, com a preocupação
básica da estruturação constitucional.
Os princípios do Direito Civil são em regra princípios
constitucionais, pois, por serem comuns, podem ou não ter assento na
Constituição. Por isso é que se diz que muitos dos direitos fundamentais
são direitos de personalidade, mas nem todos os direitos fundamentais
são direitos de personalidade.
J.J. Gomes Canotilho, nesse sentido, comenta que:
As expressões ‘direitos do homem’ e ‘direitos fundamentais’
são freqüentemente utilizadas como sinônimas. Segundo a
sua origem e significado poderíamos distingui-las da seguinte
maneira: direitos do homem são direitos válidos para todos
os povos e em todos os tempos (dimensão jusnaturalistauniversalista); direitos fundamentais são direitos do homem,
218
“Se o direito subjetivo consiste num poder ideal de vontade reconhecido pela ordem jurídica ao respectivo
titular, torna-se perfeitamente concebível que tal direito possa versar sobre a própria pessoa do mesmo
titular, uma vez que o próprio poder material da vontade humana não se estende apenas ao mundo exterior,
mas abrange a própria pessoa do homem que é o sujeito dessa vontade”. (ANDRADE, 1974, p. 193).
Revista do CEJ - n. 5, p. 225-246 - nov. 2015
239
Direito da personalidade – natureza jurídica, delimitação do objeto e relações com o Direito Constitucional
jurídico-institucionalmente garantidos e limitados espaciotemporalmente. Os direitos do homem arrancariam da própria
natureza humana e daí o seu caráter inviolável, intemporal
e universal; os direitos fundamentais seriam os direitos
objectivamente vigentes numa ordem jurídica concreta.
(CANOTILHO, 1998, p. 359).
Os direitos de personalidade, como primeiro conceito afim dos
direitos fundamentais, são posições jurídicas do homem que ele tem pelo
simples fato de nascer e viver; são aspectos imediatos da exigência de
integração do homem, e ainda condições essenciais ao ser e dever ser.
Revelam o conteúdo necessário da personalidade, são direitos de exigir
de outrem o respeito da própria personalidade e têm por objeto os bens
da personalidade física, moral e jurídica.
Em síntese, apesar de largas zonas de coincidência, a projeção
da perspectiva dos direitos de personalidade e dos direitos fundamentais
são distintas, vez que:
Direitos fundamentais pressupõem relações de poder, os
direitos de personalidade relações de igualdade. Os direitos
fundamentais têm uma incidência publicística imediata,
quando ocorram efeitos nas relações entre os particulares; os
direitos de personalidade uma incidência privatística, ainda
quando sobreposta ou subposta a dos direitos fundamentais.
Os direitos fundamentais pertencem ao domínio do Direito
Constitucional, os direitos de personalidade ao do Direito Civil.
(MIRANDA, 1993, p. 55).
Nesse mesmo sentido, Rabindranath Capelo de Sousa
demonstra que a afinidade entre os direitos da personalidade e os direitos
fundamentais emerge da sobreposição ao nível da pessoa humana de dois
planos jurídicos do conhecimento: os do direito civil, onde se fundam os
direitos da personalidade e os do direito constitucional, onde se fundam
os direitos fundamentais. (1995, p. 584).
Esta larga coincidência entre os direitos de personalidade e
os direitos fundamentais não significa assimilação ou perda
de autonomia conceitual recíproca, pois tais categorias
jurídicas, mesmo quando tenham por objeto idênticos bens
da personalidade, revestem um sentido, uma função e um
âmbito distintos, em cada um dos planos em que se inserem.
240
Revista do CEJ - n. 5, p. 225-246 - nov. 2015
Silvio Romero Beltrão
Assim, as previsões dos arts. 70º e segs. do Código Civil,
referentes aos direitos da personalidade, valem apenas
nas relações paritárias entre particulares ou entre os
particulares e o Estado destituído do seu ius imperii e são
tutelados através de mecanismos coercivos juscivilísticos,
v.g., em matéria de responsabilidade civil e de providências
especiais preventivas ou reparadoras (arts. 70º, n. 2, e 483º
do Código Civil e 1474º e seg. do Código de Processo Civil).
Diferentemente, as previsões constitucionais (v.g. dos arts. 24º
e segs. da Constituição) relativas aos direitos fundamentais
pressupõem, em primeira linha, relações juspublicísticas, de
poder, são oponíveis ao próprio Estado, no exercício do seu
ius imperii, embora também produzam efeitos nas relações
entre os particulares (art. 18º, n. 1, da Constituição) e têm
mecanismos próprios de tutela constitucional, v.g., em
matéria de conformação legislativa e administrativa (arts.
3º, n. 3, 18º, n. 2 e 3, e 19º da Constituição), de declaração
de inconstitucionalidade por ação ou omissão (arts. 277º e
segs. da Constituição), de reserva relativa de competência
legislativa (art. 168º, n. 1, al. B, da Constituição) e de
delimitação de revisão constitucional (art. 288º, al. d, da
Constituição). (SOUZA, 1995, p. 584).
Apesar da individualização das diferenças entre direitos
fundamentais e direitos da personalidade, pode-se verificar uma
tendência de constitucionalização dos direitos da personalidade, em face
do princípio da dignidade da pessoa humana fundamentar as relações de
direitos da personalidade e a tutela jurídica dos direitos fundamentais.
Paulo Luiz Netto Lôbo, enfatizando a figura do direito civil
constitucional, aborda a pluridisciplinaridade do direito da personalidade,
onde na esfera constitucional são espécies do gênero direitos fundamentais
e na perspectiva civil, constituem direitos inatos à pessoa, que prevalecem
sobre todos os demais direitos subjetivos privados. (LÔBO, 2001, p. 79).
A tendência em se atribuir aos direitos da personalidade o
caráter de direitos fundamentais privados ocorre em razão de constar na
Constituição Federal como direitos fundamentais os mais importantes
direitos da personalidade, além do caráter residual que o Código Civil
impôs aos direitos da personalidade em face de sua enorme diversidade e
categorias preferindo não tipificá-los por completo.
Revista do CEJ - n. 5, p. 225-246 - nov. 2015
241
Direito da personalidade – natureza jurídica, delimitação do objeto e relações com o Direito Constitucional
Assim, tendo em vista as explicações acima expostas, apesar da
Constituição Federal em seu art. 5º determinar que
todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros
residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à
liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade,
tais direitos e deveres estão postos segundo a estruturação
constitucional, com a demarcação da posição do cidadão perante o Estado
e não da pessoa natural.
Carlos Rogel Videl (2002, p. 127) esclarece que as diferenças entre
os direitos da personalidade e os direitos fundamentais são diversas, pois,
o primeiro encontra-se demarcado em um âmbito estritamente privado
de relações entre os particulares, enquanto que o segundo se afirma no
âmbito do Direito Público, a favor do cidadão e diante dos poderes do
Estado. Daí acrescentar que, o âmbito dos direitos da personalidade são
pessoais, enquanto que os direitos fundamentais têm um âmbito político
e socioeconômico. (PUERCHE, 1997, p. 43).
Conclusão
O Código Civil, atribuindo aos direitos da personalidade um
caráter residual, preferiu disciplinar aquelas figuras que não se destacam
em uma carta política, como o direito ao nome e o direito à imagem,
não retomando algumas figuras significativas, como o direito à vida, ao
desenvolvimento da personalidade e à liberdade, que já se encontram
disciplinadas na Constituição Federal.
Mas, em face da falta de tipificação no Código Civil de vários
direitos da personalidade, como é possível demarcar e estabelecer quais
sejam estes direitos?
Ora, partindo da ideia de que a pessoa é o fundamento e
o fim do direito, pode-se destacar que não são todos os direitos que
disciplinam aspectos pessoais que podem ser tratados como direitos
da personalidade.
O ponto fundamental de destaque para a compreensão dos
direitos da personalidade é a proteção da dignidade da pessoa humana.
242
Revista do CEJ - n. 5, p. 225-246 - nov. 2015
Silvio Romero Beltrão
A esse respeito, José de Oliveira Ascensão escreve que:
A dignidade da pessoa humana implica que a cada homem
sejam atribuídos direitos, por ela justificados e impostos, que
assegurem esta dignidade na vida social. Esses direitos devem
representar um mínimo, que crie o espaço no qual cada
homem poderá desenvolver a sua personalidade. Mas devem
representar também um máximo, pela intensidade da tutela
que recebem. (ASCENSÃO, 1997, p. 64).
Nesse sentido, os direitos da personalidade distinguemse dos direitos pessoais, pois, a base dos direitos da personalidade é o
fundamento ético da dignidade da pessoa humana, enquanto que os
direitos pessoais são desprovidos deste fundamento, e acabam por
significar um direito não patrimonial, em relação aos direitos susceptíveis
de avaliação em dinheiro, com um campo muito mais vasto de incidência
do que os direitos da personalidade.
Assim, o direito da personalidade está sempre diante da
necessidade de uma valoração ética do princípio da dignidade da pessoa
humana, onde “só pode ser considerado direito da personalidade o
que manifeste essa exigência da personalidade humana.” (ASCENSÃO,
1997, p. 71).
Qualquer outra manifestação favorável ao indivíduo que não
tenha por base o princípio da dignidade da pessoa humana não pode ser
considerado direito da personalidade.
Assim, em certas ocasiões, o direito à imagem pode representar
ou não um direito da personalidade, em primeiro lugar, quando é
publicada uma fotografia não autorizada de uma pessoa em situação
que lhe cause constrangimento, e em segundo lugar, quando as fotos
produzidas representam a divulgação da imagem de uma modelo famosa
em uma capa de revista.
É necessário verificar em cada uma das situações a existência do
fundamento ético da dignidade da pessoa humana.
Desta forma, pode-se concluir que os direitos da
personalidade são uma categoria especial de direitos subjetivos que,
fundados na dignidade da pessoa humana, garantem o gozo e o
respeito ao seu próprio ser, em todas as suas manifestações espirituais
Revista do CEJ - n. 5, p. 225-246 - nov. 2015
243
Direito da personalidade – natureza jurídica, delimitação do objeto e relações com o Direito Constitucional
ou físicas (PUERCHE, 1997, p. 43) e não devem ser confundidos com os
Direitos Fundamentais, pois, estes últimos dizem respeito à qualidade de
cidadão da pessoa perante o Estado.
244
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Silvio Romero Beltrão
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246
Revista do CEJ - n. 5, p. 225-246 - nov. 2015
O assistente técnico em psicologia nos
processos judiciais - o que todos os
operadores da lei precisam saber
Tania Guerra Cardoso219
Sumário: Introdução. 1 Interseção da esfera jurídica com
o universo da psicologia. 1.1 Incursões da psicologia no
âmbito da lei. 1.2 O assistente técnico. 1.3 A experiência na
área jurídica. 2 O que os advogados precisam saber. 2.1 A
fundamentação legal que instaura a atuação do assistente
técnico. 2.2 A nomeação do assistente técnico. 2.3 O psicólogo
especialista. 2.4 O advento da síndrome de alienação parental
– SAP. 2.5 O ‘efetivo do afetivo’. 3. O homem da arte. Conclusão.
Referências.
Introdução
Que o profissional de psicologia é necessário em algum
momento das nossas vidas, isto já é sabido. Frequentemente, todos nós
lidamos com desafios emocionais que, quando enfrentados sozinhos, são
difíceis de ser manejados. E é justamente no consultório psicológico que
aliviamos a nossa carga e encontramos os caminhos mais assertivos para
lidarmos com os nossos desconfortos afetivos.
A cada dia, porém, cresce o número de pessoas que recorre à
justiça para a solução dos seus conflitos pessoais. E o fazem através de um
advogado que as represente em suas questões legais.
O que muitos ainda desconhecem é que, tanto quanto a
assistência jurídica, o suporte psicológico se faz imprescindível, não apenas
para uma resolução mais satisfatória desses impasses, mas, sobretudo
contribui para o esclarecimento do magistrado acerca da influência das
variáveis emocionais e subjetivas do comportamento em determinado
litígio.
219
Psicóloga assistente técnica em processos judiciais, presta assessoria aos escritórios: Cavalcanti Advocacia s/c,
Lima Advocacia e Martorelli Advocacia de Família e Sucessões, entre outros. Analista Judiciária aposentada do
TJPE (2012). Chefe do Núcleo de Psicologia do TJPE (2004-2006). Pós-graduada em Intervenção Psicossocial
à Família no Judiciário UFPE. Professora de Psicologia Jurídica. Email: [email protected].
Revista do CEJ - n. 5, p. 247-260 - nov. 2015
247
O assistente técnico em psicologia nos processos judiciais - o que todos os operadores da lei precisam saber
1 Interseção da esfera jurídica com o universo da psicologia
1.1 Incursões da psicologia no âmbito da lei
No que tange à interseção da esfera jurídica com o universo
da psicologia, porém, é sempre bom lembrar que a reflexão de Freud foi
de vanguarda quando em uma palestra para estudantes de Direito da
Universidade de Viena teria preconizado:
A tarefa do terapeuta, entretanto, é a mesma do juiz de
instrução. Temos de descobrir o material psíquico oculto, e
para isso inventamos vários estratagemas detetivescos, alguns
dos quais parece que os senhores, homens da lei, estão prestes
a copiar de nós. (FREUD, 1906).
Talvez tenha sido essa uma das primeiras incursões da psicologia
no âmbito da lei e da justiça.
O mesmo Freud profetizou em O mal estar na civilização:
A primeira exigência da civilização, portanto, é a da justiça,
ou seja, a garantia de que uma lei, uma vez criada, não será
violada em favor de um indivíduo. (FREUD, 1997).
Ainda, em O mal estar na civilização, ele descarta que a liberdade
individual seja um dom da civilização, pragmatizando: “O desenvolvimento
da civilização impõe restrições a ela, e a justiça exige que ninguém fuja a
essas restrições”. (apud GUERRA, 2002).
1.2 O assistente técnico
Mas o que vem a ser a atuação do psicólogo como assistente
técnico nos processos judiciais em nossa contemporaneidade?
Da mesma forma que o juiz nomeia o perito psicólogo para
dirimir as questões trazidas às Varas da Infância e Juventude
ou Varas de Família e Sucessões dos Foros Regionais e dos
Tribunais estaduais, as partes podem indicar seu psicólogo
assistente técnico, profissional igualmente habilitado, de sua
confiança, para exercer funções idênticas às do perito, e para
auxiliá-las no esclarecimento e defesa dos seus interesses no
litígio. O assistente técnico também pode servir de consultor
da parte, esclarecendo ou interpretando os fatos da causa, para
248
Revista do CEJ - n. 5, p. 247-260 - nov. 2015
Tania Guerra Cardoso
corroborar as alegações da parte ou para melhor elucidar o juiz
acerca de tais fatos. (AMARAL SANTOS, 1993 in SILVA, 1968)
O artigo 421, § 1º do CPC dispõe sobre a fundamentação legal
para a atuação do assistente técnico.
Art. 421. O juiz nomeará o perito, fixando de imediato o prazo
para a entrega do laudo.
§ 1º Incumbe às partes, dentro de 5 (cinco) dias, contados da
intimação do despacho de nomeação do perito:
I – indicar o assistente técnico;
[...].
Segundo Silva e Costa:
[...] a partir da avaliação de mais de um técnico é possível
avaliar e esclarecer as várias facetas que um só incidente pode
ter no caso em questão, e orientar a decisão do juiz. (SILVA e
COSTA, III Congresso Ibero-Americano de Psicologia Jurídica,
1999).
1.3 A experiência na área jurídica
É importante que o profissional de psicologia que aspira ser
assistente técnico disponha de determinada experiência de militância nos
fóruns e tribunais. O conhecimento dos ritos, uma compreensão básica da
legislação, e, sobretudo das características de personalidade da instituição
jurídica é fundamental para o êxito da sua atuação enquanto assistente
técnico nas questões judiciais.
Todavia, pelo fato de a psicologia jurídica se tratar de uma
área de conhecimento bastante recente e específica, os profissionais
existentes, que normalmente estão alocados em instituições judiciárias
prestando os seus serviços, encontram-se por outro lado, impedidos de
atuar em caráter particular.
Por esses e
pensamento
isso ocorra,
especializada
que desejem
Revista do CEJ - n. 5, p. 247-260 - nov. 2015
outros motivos, deveríamos aproximar o
da saúde mental do jurídico. Para que
deveríamos proporcionar uma formação
aos profissionais da área de saúde mental
atuar na justiça, pois serão eles que darão
249
O assistente técnico em psicologia nos processos judiciais - o que todos os operadores da lei precisam saber
um melhor entendimento do que a justiça espera desse
profissional e do que esse profissional pode fornecer à
justiça. Consequentemente, haverá uma maior confiança
para as duas áreas. (COHEN, 1999).
2 O que os advogados precisam saber
2.1 A fundamentação legal que instaura a atuação do assistente
técnico
Sobre o artigo 421, § 1º, I, do CPC, que dispõe sobre a indicação
do assistente técnico, em seu trabalho intitulado O papel dos assistentes
técnicos nos processos judiciais, Silva e Costa elencam:
1. É contratado pela parte, para auxiliá-la e ao seu advogado
naquilo que ela acredita estar certa.
2. A defesa do advogado estará pautada no parecer que o
assistente técnico fizer do laudo do perito.
3. Poderá fazer interpretações e sugestões ao seu cliente,
não correndo riscos de ter seu trabalho mal interpretado ou
manipulado pelas partes ou por seus advogados.
4. É importante que o Assistente Técnico conheça bem a
função do perito, para saber o que deve esperar do trabalho
desse profissional e como seu trabalho deverá encaminhar-se.
(SILVA e COSTA, 1999).
2.2 A nomeação do assistente técnico
O assistente técnico pode ser nomeado por apenas uma das
partes, através de uma petição proposta por seu advogado, requerendo
ao juiz a nomeação e indicando:
- o nome completo do psicólogo;
- número de inscrição no Conselho Regional de Psicologia;
- endereço (com CEP);
- justificativa plausível e fundamentada para a nomeação.
Já o texto O assistente técnico no Código de Processo Civill nos
assegura que
250
Revista do CEJ - n. 5, p. 247-260 - nov. 2015
Tania Guerra Cardoso
o assistente técnico é o auxiliar da parte que tem por
obrigação acatar, criticar ou complementar o laudo do perito
oficial, através de seu parecer, cabendo ao juiz, pelo princípio
do livre convencimento, analisar seus argumentos, podendo
fundamentar sua decisão também nesse parecer. (MAIA NETO,
1998).
A participação do assistente técnico poderá até vir a ser
contestada pelo advogado da parte contrária. Pode acontecer também (o
que é raro), de o juiz indeferir o pedido de indicação de assistente técnico
sob várias alegações.
Se isso acontecer, o advogado da parte que entende e acredita
na vantagem da participação do assistente técnico na causa
deverá apresentar recurso alegando cerceamento de defesa e
violação aos princípios constitucionais do contraditório e da
ampla defesa, o que poderá suspender temporariamente o
andamento do processo para discussão em instância superior
(Tribunal de Justiça do Estado), até que a questão seja sanada.
(SILVA, 2009).
Mesmo sendo o assistente técnico um perito parcial dentro da
arena jurídica, o psicólogo forense paulista pontua: “O psicólogo pode e
deve agir com isenção, conduzindo seu trabalho segundo os referenciais
técnicos e éticos de sua área”. (SHINE, 2005).
Maia Neto (1998) elabora uma lista de sugestões endereçadas
especificamente aos advogados, para balizar sua atuação no processo em
consonância com o assistente técnico:
a) Procurar contactar o assistente técnico antes mesmo do
início da ação, pois este poderá tornar-se seu consultor
técnico em todas as fases do processo.
b) Antecipar-se à nomeação do perito oficial, permitindo
ao assistente técnico tomar conhecimento do processo,
realizar um levantamento dos dados e propor sugestões de
quesitos.
c) Avisar ao assistente técnico da nomeação do perito oficial,
fornecendo seu nome, endereço e telefone, para que ele
possa contactá-lo com facilidade, a fim de fornecer-lhe as
informações necessárias e fazer as eventuais solicitações.
Revista do CEJ - n. 5, p. 247-260 - nov. 2015
251
O assistente técnico em psicologia nos processos judiciais - o que todos os operadores da lei precisam saber
d) Inteirar-se com o assistente técnico dos honorários que
usualmente são cobrados pelos peritos oficiais naquele tipo
de ação, que poderá ser guiado pelas tabelas profissionais
ou costumes locais.
e) Não se manifestar com relação aos atos praticados pelo
perito oficial sem discutir o assunto com o assistente técnico,
pois muitas vezes envolvem temas de caráter restrito à
categoria profissional em que se inserem estes profissionais.
f ) Dar ciência ao assistente técnico do depósito de honorários
do perito oficial, a partir do qual a perícia pode ter início a
qualquer momento.
g) Comunicar ao assistente técnico sobre a determinação
para o início da perícia, fornecendo-lhe o completo teor do
despacho, pois muitos juízes costumam fixar dia e hora para
a realização da vistoria que, preferencialmente, deve contar
com a presença do assistente técnico.
h) Informar ao assistente técnico sobre qualquer publicação
e despacho relacionados à prova pericial, direta ou
indiretamente.
i) Fornecer ao assistente técnico, imediatamente, informações
sobre publicação relativa à entrega do laudo pericial por
parte do perito oficial.
j) Discutir com o assistente técnico o teor da manifestação do
assistente técnico da parte contrária sobre o laudo pericial
entregue pelo perito oficial.
k) Discutir com o assistente técnico o conteúdo de seu parecer
sobre o laudo pericial entregue pelo perito oficial, pois
seu trabalho deve obedecer a uma linha de raciocínio e
estratégia elaborada pelo advogado na construção da lide.
l) Trocar informações com o assistente técnico relativamente
ao teor da petição sobre a vista ao laudo pericial do perito
oficial e parecer do assistente técnico da parte contrária.
(MAIA NETO, 1998).
2.3 O psicólogo especialista
O universo forense já percebeu e vem absorvendo
gradativamente a contribuição da psicologia em suas demandas. Muitos
252
Revista do CEJ - n. 5, p. 247-260 - nov. 2015
Tania Guerra Cardoso
escritórios de advocacia já solicitam a intervenção do profissional de
psicologia para assisti-los nos processos judiciais, sobretudo aquele
que possui reconhecida experiência na área jurídica. A aplicação dos
conhecimentos desses profissionais e de suas técnicas psicológicas está
se tornando indispensável ao melhor resultado das ações da justiça.
Os psicólogos especializados são chamados a atuar nos casos
que envolvem separação, divórcio, guarda de filhos, mudança de guarda,
regulamentação de visitas dos filhos, guarda compartilhada, abandono
afetivo, adoção, crimes de abusos, sejam eles de natureza psicológica ou
física, entre outros, com o propósito de avaliar as condições psíquicas dos
envolvidos para a tomada de decisões do juiz.
Além dessas atribuições, o assistente técnico pode também se
encarregar de preparar psicologicamente todos os envolvidos da parte
que o contratou para que eles venham a assumir o controle emocional
necessário durante todo o processo.
2.4 O advento da síndrome de alienação parental – SAP
A síndrome de alienação parental tem se tornado bastante
presente nas relações familiares em disputa judicial.
Gardner, psiquiatra norte-americano, assim conceituou a
síndrome de alienação parental – SAP:
A síndrome de alienação parental (SAP) é uma disfunção
que surge primeiro no contexto das disputas de guarda. Sua
primeira manifestação é a campanha que se faz para denegrir
um dos pais, uma campanha sem nenhuma justificativa. É
resultante da combinação de doutrinações programadas de
um dos pais (lavagem cerebral) e as próprias contribuições da
criança para a vilificação do pai alvo. (GARDNER,1998).
A síndrome de alienação parental é uma patologia psíquica
muito grave promovida pelo genitor que detém a guarda do(s) filho(s)
impelindo-o a tentar destruir os elos da criança com o genitor não
guardião. Ela ocorre com bastante frequência, sendo utilizada pelas figuras
parentais que tentam, através de várias manobras, sutis ou explícitas,
desqualificar ou depreciar a imagem do outro aos olhos dos filhos, visando
o distanciamento e até o rompimento dos laços entre eles.
Revista do CEJ - n. 5, p. 247-260 - nov. 2015
253
O assistente técnico em psicologia nos processos judiciais - o que todos os operadores da lei precisam saber
É importante se sublinhar aqui que, geralmente, as queixas de
abuso fazem referência a episódios anteriores à separação. Contudo, é
imprescindível que o assistente técnico venha a investigar exaustivamente
as razões pelas quais a ‘campanha de desmoralização’ contra o genitor
alienado só surge após o início do processo da separação. Como bem
adverte Gardner, na denúncia que o genitor alienador concebe em relação
aos possíveis danos causados ao(s) filho(s), certamente está implícito o
desejo de reparação à sua própria perda sofrida com a separação.
O processo de alienação pode se manifestar, entre outras,
através de duas práticas frequentes segundo Silva:
Obstrução a todo contato: o argumento mais utilizado é o
de que o outro genitor não é capaz de ocupar-se dos filhos
e que estes não se sentem bem quando voltam das visitas;
outro argumento é o de que ver o outro genitor não é
conveniente para os filhos e que estes necessitam de tempo
para se adaptarem. A mensagem dirigida aos filhos é que é
desagradável ir conviver com o outro genitor.
Denúncias falsas de abuso: Dos abusos normalmente invocados
o mais grave é o “abuso sexual” que ocorre em cerca de
metade dos casos de separação problemática, especialmente
quando os filhos são pequenos e mais manipuláveis. Porém
o mais frequente é o “abuso emocional” que ocorre quando
um genitor acusa o outro, por exemplo, de mandar os filhos
dormirem demasiado tarde. (SILVA, 2009).
Ainda, como tais práticas têm sido, via de regra, mais observadas
no comportamento da figura materna, essas duas posturas podem criar
mecanismos para manter uma simbiose avassaladora entre mãe e filho
gerando superproteção, dominação, dependência e opressão sobre a
criança. A mãe então lança mão de manipulações emocionais, sintomas
físicos, isolamento da criança com o objetivo de incutir-lhe insegurança,
ansiedade, angústia e culpa. Em casos mais extremos, porém não menos
importantes ou graves, a figura materna pode até lograr influência e
indução sobre a criança, estimulando-a a relatar supostos eventos de
agressões físicas/sexuais, atribuindo a autoria ao outro genitor, tramando
assim o afastamento entre pai e filho(s).
A SAP atua em duas vertentes:
254
Revista do CEJ - n. 5, p. 247-260 - nov. 2015
Tania Guerra Cardoso
a) Evidenciando a psicopatologia do genitor alienador para
atingir o intento de afastar os filhos do genitor alienado, para tanto se
utilizando de todos os recursos disponíveis.
b) Contribuindo, mais grave ainda, para que os filhos passem a
construir uma imago negativa do genitor alienado.
A afeição até então dedicada a este último, em contraponto
às maledicências impostas pelo genitor alienador, acaba por produzir
um sentimento ambivalente nos filhos, que transita entre amor e rancor.
Este estado de espírito, de uma maneira ou de outra, consegue confundir
o próprio juízo daqueles, produzindo oscilações entre ódio e culpa em
relação ao genitor alienado. A sua convivência com este vai então rareando
e definhando, podendo chegar ao estágio de absoluto afastamento.
Está instalado o conflito que, mais cedo ou mais tarde, acabará
por levar as desavenças familiares a uma ação judicial.
Tal comportamento alcançou níveis tão preocupantes que
terminou por ser enquadrado em lei. A Lei n. 12.318, de 26 de agosto de
2010, foi criada para conter os excessos que as famílias vinham cometendo
neste sentido, seja por revanches afetivas, seja por competição ou outros
interesses quaisquer. Há, inclusive, a previsão de multa e a perda da guarda
para quem manipular os filhos.
Além dessa síndrome, são comuns nos litígios familiares
alegações de falsos abusos sexuais contra os filhos, supostamente
perpetrados pelo genitor. Por ser um evento de difícil comprovação, visto
que muitas vezes sequer deixam vestígios, infelizmente, mesmo sendo um
argumento sem nenhum fundamento, tem sido frequentemente utilizado
pelas partes, visando o ganho da causa, o que impõe um aprofundamento
da investigação psicológica.
Convém salientarmos o quanto é estarrecedor que, em suas
contendas, as figuras parentais que recorrem a esse expediente escuso,
demonstrem pouca ou nenhuma preocupação com as repercussões de
suas manipulações no psiquismo dos filhos.
Nem sempre a relação conjugal poderá se recompor, mas o
essencial agora é reparar, ou pelo menos minimizar, todo e qualquer dano
possível, sobretudo para as crianças, tentando-se preservar as relações
entre pais e filhos.
Revista do CEJ - n. 5, p. 247-260 - nov. 2015
255
O assistente técnico em psicologia nos processos judiciais - o que todos os operadores da lei precisam saber
Além disto, o assistente técnico em psicologia nos processos
judiciais pode prestar ainda relevante trabalho como mediadorr entre as
partes litigantes, tentando facilitar um diálogo entre as mesmas para que
as animosidades sejam contidas e as questões controversas possam ser
dirimidas dentro do clima mais pacífico possível. Uma das funções desse
profissional é contribuir para que os danos emocionais sejam reduzidos
para todos os envolvidos no processo.
2.5 O ‘efetivo do afetivo’
Em brilhante artigo publicado na 9ª edição de 2013 da
Revista Advocatus, o Desembargador decano do Tribunal de Justiça de
Pernambuco, Excelentíssimo Senhor Doutor Jones Figueirêdo Alves, faz
uma exortação à socioafetividade na família moderna. Em suas palavras:
A afetividade tem conduzido o direito de família à sua
maior dimensão existencial, axiologicamente hierarquizada
como valor jurídico, e cuja concretude tem se prestado a
demonstrá-la como função essencial da nova família, a família
contemporânea. (ALVES, 2013, p. 21).
Bastante feliz em suas considerações acerca do valor do afeto
enquanto valor jurídico é precisamente neste contexto em que o trabalho
do psicólogo se insere e deveria ser estimulado nos fóruns da justiça.
Compartilhamos do ponto de vista do Desembargador que conceitua
a afetividade como um pilar indispensável às relações familiares e, por
consequência, a toda e qualquer forma de relações sociais.
Em seu artigo, Doutor Jones Figueirêdo Alves cita, entre outros,
o jurista João Batista Villela: “o amor está para o Direito das Famílias, assim
como a vontade está para o Direito das Obrigações”. E arremata: “Nele, a
família está inteira”. (ALVES, 2013).
Realçada aqui a importância fundamental da afetividade sobre
o comportamento humano, enfaticamente nas relações familiares, o
fenômeno nos remete a imperiosidade de se considerar, no ato de julgar:
a personalidade, o caráter, os sentimentos, a história de vida, as dinâmicas
familiares e todo o subjetivismo inerente a todos os atores presentes nos
processos judiciais dos tribunais. Sem o que, restará uma solução parcial
e, por que não dizer, até mesmo injusta aos confrontos.
256
Revista do CEJ - n. 5, p. 247-260 - nov. 2015
Tania Guerra Cardoso
As questões afetivas são a matéria fundante da ciência do
comportamento humano. E a psicologia pode ser considerada a sua
intérprete fiel.
O próprio presidente nacional do IBDFAM comentando decisão
que condenou um pai a indenizar a filha por abandono afetivo adverte com
muita propriedade: “o Direito não trata propriamente dos sentimentos,
mas das consequências decorrentes.” (PEREIRA, 2013 in Revista AdvocatusPE – 9ª edição – p. 29).
No estudo sobre a influência das emoções na decisão judicial,
Prado salienta o papel do juiz na elaboração jurídica, os reflexos sobre
a sentença dos atributos internos do magistrado, em especial, da
sensibilidade, da emoção e da criatividade. (PRADO, 2008).
3 O homem da arte
O médico, psicanalista e coordenador do curso de Saúde
Mental e Justiça da FMUSP assim descreve o profissional de Psicologia em
interface com o Direito:
A complexidade da vida moderna é tão grande que se tornou
necessário uma maior intervenção de especialistas nas lides
forenses. A lei dá a esses especialistas o majestoso nome de
homem da arte [...]. (COHEN, 1996).
Acreditamos que esse título refere-se ao minucioso e delicado
trabalho de investigação do profissional de psicologia no desvendar da
tessitura do comportamento humano, como uma complexa tapeçaria
de sentimentos, mistérios, incoerências, ideologias e especialmente, de
subjetividades.
Seria ainda oportuno transcrever a preocupação contida no
questionamento de Silva acerca da atuação do psicólogo no âmbito
jurídico.
Caberia, aqui, apenas uma observação: embora se trate da
Psicologia no interior do sistema judiciário, os procedimentos
para sua atuação são definidos por provimentos de órgãos da
Justiça, sem qualquer participação do Conselho Federal ou
Conselhos Regionais de Psicologia. Por que isso aconteceu?
Diante das dificuldades enfrentadas, ainda nos dias atuais,
Revista do CEJ - n. 5, p. 247-260 - nov. 2015
257
O assistente técnico em psicologia nos processos judiciais - o que todos os operadores da lei precisam saber
pelos psicólogos que atuam no Judiciário, deveria haver uma
ação mais contundente dos órgãos fiscalizadores da Psicologia,
para que ela pudesse delimitar o seu espaço na interface com
o Direito. (SILVA, 2009).
Referendamos o questionamento de Silva, acrescentando
ainda o nosso: Por que será que o assistente técnico ainda não tem sido
regularmente requisitado, visto o comprovado valor que ele representa
nas demandas judiciais? Talvez esse anonimato ainda passe por uma
ausência ou postura silente dos setores dos órgãos de classe, no sentido
de divulgar apropriadamente a sua expertise.
O que vem a contrariar a interpretação do famoso jurista
Carnelutti de que tal profissional “senta-se ao lado do juiz para examinar”.
Ou, nas palavras do Professor Enrico Altavilla, da Universidade
de Nápoles:
Mas nós diremos que é ainda mais necessário que todo
perito seja um psicólogo, porque até nos imóveis vestígios
materiais deixados pela acção humana ele poderá encontrar
os mais inesperados auxílios para o conhecimento do espírito
criminoso. (ALTAVILLA,1982).
Discorrendo sobre a justaposição entre a Psicologia e o Direito,
ressalva a autora:
Diante de certas dificuldades que surgem no trabalho da
Psicologia Jurídica, é importante valorizar toda e qualquer
iniciativa no sentido de se buscar, cada vez mais, a comunicação
entre essas duas Ciências, a fim de que se desenvolvam as
atividades dos operadores do Direito em nome de um maior
entendimento do comportamento humano e da cidadania.
(SILVA, 2009).
Tais crenças são reafirmadas no dizer do Doutor Frederico
Guilherme Rodrigues de Lima, presidente do Tribunal de Ética e Disciplina
da OAB-PE:
Como cediço, a sociedade impõe ao indivíduo a prática de
hábitos e costumes universalmente aceitos e, desse modo, o
conjunto de indivíduos coexistindo em torno desses valores há
de construir um grupo social capaz de perseguir a realização
258
Revista do CEJ - n. 5, p. 247-260 - nov. 2015
Tania Guerra Cardoso
plena de ações voltadas para o bem comum. (Revista Negócios
PE, Sociedade dos Advogados – 5ª edição, fl. 26).
Conclusão
É imprescindível que se reconheça que a função do assistente
técnico foi criada ex lege.
Assim sendo, a divulgação do trabalho desse profissional
deveria ser intensificada e apreciada, através dos canais de comunicações
específicos ao público interessado.
Em última análise, o assistente técnico em psicologia representa
um reforço diferencial e qualitativo, nas providências legais, prestando
assessoria especializada à classe advocatícia, beneficiando ad futurum a
família, a sociedade e a justiça.
Revista do CEJ - n. 5, p. 247-260 - nov. 2015
259
O assistente técnico em psicologia nos processos judiciais - o que todos os operadores da lei precisam saber
Referências
ALTAVILLA, Enrico. Psicologia judiciária – personagens do processo penal. 3. ed.
Coimbra: Armênio Amado Editor e Sucessor, 1982. 2 v. ALVES, Jones Figueirêdo.
A família no contexto da globalização e a socioafetividade como seu valor
jurídico fundamental. 9. ed. Recife: Revista Advocatus, 2013.
CARNELUTTI, Francesco. Lezioni sul processo penale. In: ALTAVILLA, Enrico.
Psicologia judiciária. Coimbra: Armênio Amado Editor e Sucessor, 1982. 2 v.
COHEN, Cláudio. O profissional de saúde mental no Tribunal. In: Saúde mental,
crime e justiça. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1996.
FREUD, Sigmund. A psicanálise e a determinação dos fatos nos processos
jurídicos. In: Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund
Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1976, 9 v.
_____.O mal estar na civilização. Rio de Janeiro: Imago, 1997.
GARDNER, R. A. (1998). The parental alienation syndrome (A síndrome de
alienação parental), 2. ed. Cresskill, NJ: Creative Therapeutics, Inc. Disponível em:
<http://www.rgardner.com>.
GUERRA, Tania. Psicologia jurídica: em busca de um bem-estar na civilização. In:
Interlocuções: Revista de psicologia da UNICAP. Recife, Fundação Antônio dos
Santos Abranches – FASA, 2002, ano 2, n. 1, 2, p. 20-35, jan./dez.2002.
LIMA, Frederico G. R. de. O Tribunal do Advogado. Revista Negócios PE –
sociedade dos advogados. 5. ed.
PRADO, Ligia R. de Almeida. O juiz e a emoção. 4 ed. Campinas: Millennium
Editora, 2008.
SHINE, Sidney. Avaliação psicológica e lei: adoção, vitimização, separação
conjugal, dano psíquico e outros temas. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2005.
SILVA, Denise Maria Perissini. Psicologia jurídica no processo penal brasileiro
– a interface da psicologia com o direito nas questões de família e infância. 1. ed.
Rio de Janeiro: Forense, 2009.
260
Revista do CEJ - n. 5, p. 247-260 - nov. 2015
De lege ferenda
Projeto de Lei do Senado n. 658/2015, de 30.09.2015
Altera o Código Penal para dar novo tratamento a marcos
temporais que causam a prescrição da pretensão executória e
a interrupção da prescrição da pretensão punitiva.220
O Congresso Nacional decreta:
Art. 1º Os arts. 112 e 117 do Decreto-Lei n. 2.848, de 7 de
dezembro de 1940 – Código Penal, passam a viger com as seguintes
alterações:
“Art. 112 ..................................................................
I – do dia em que transita em julgado a sentença condenatória
ou a que revoga a suspensão condicional da pena ou o livramento
condicional; ...................................................................................” (NR)
“Art. 117....................................................................
I
–
pelo
oferecimento
da
denúncia
ou
queixa;
...................................................................................
IV – pela publicação de sentença ou acórdão condenatórios
recorríveis, ou de qualquer decisão que, julgando recurso interposto,
confirme condenação anteriormente imposta, ainda que reduza a pena
aplicada;
....................................................................................
§ 3º No caso do inciso I, resta sem efeito a interrupção da
prescrição se a denúncia ou queixa é rejeitada por decisão definitiva.” (NR)
Art. 2º O Decreto-Lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940 –
Código Penal, passa a viger acrescido do seguinte artigo:
“Art. 117-A. Anulado o processo, o tempo transcorrido entre o
dia do ato declarado nulo e o dia da publicação da decisão que reconheceu
a nulidade deve ser desconsiderado para fins de contagem do prazo
prescricional.
220
Explicação da Ementa: Altera o Código Penal, para estabelecer que, anulado o processo, o tempo transcorrido
entre o ato declarado nulo e a publicação da decisão que reconheceu a nulidade deve ser desconsiderado
para fins de contagem do prazo prescricional, salvo se a nulidade foi declarada a pedido e no interesse da
acusação. Modifica as causas interruptivas da prescrição e o termo inicial da prescrição após a sentença
condenatória irrecorrível.
Revista do CEJ - n. 5, p. 263-265 - nov. 2015
263
Projeto de Lei do Senado n. 658/2015, de 30.09.2015
Parágrafo único. O disposto no caputt não se aplica às hipóteses
em que a nulidade foi declarada a pedido e no interesse da acusação.”
Art. 3º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
JUSTIFICAÇÃO
O presente projeto propõe algumas alterações na prescrição
penal.
O art. 112 do Código Penal (CP) trata da prescrição da pretensão
executória. Ou seja, aquela que flui em desfavor do Estado para o início
de uma execução criminal respaldada em decisão condenatória definitiva.
Nesse viés, não se confunde com a prescrição da pretensão punitiva,
de que tratam os arts. 109 a 111, que atinge o Estado pela demora no
julgamento da causa.
O inciso I do art. 112 cria uma anomalia no sistema penal. Nos
moldes da lei em vigor, se um juiz de primeiro grau condena o acusado a
uma determinada pena e o Ministério Público (MP) concorda com a pena,
não recorrendo, ocorre o trânsito em julgado para a acusação. Mas, se o
réu recorre, o trânsito em julgado não alcança a defesa. A partir daí, só
haverá o trânsito em julgado definitivo quando sobrevier decisão acerca
do último recurso da defesa. Pelo teor do art. 112, I, ora vigente, nessa
situação, o Estado não pode executar a pena. É um incentivo para a
defesa continuar a recorrer, ainda mais considerando o posicionamento
firmado pelo Supremo Tribunal Federal no sentido de entender inviável
a antecipação da execução da pena ainda não transitada em julgado em
razão da aplicação do princípio da presunção de inocência. O Estado,
enquanto titular do poder-dever de punir, fica nas mãos do indivíduo que
já tem contra si ao menos uma condenação. Com a presente alteração, a
prescrição passa a correr somente quando do trânsito em julgado para
todas as partes, extirpando do sistema essa incongruência sistemática.
Propomos ainda alterar o art. 117 do CP, que trata das hipóteses
de interrupção da prescrição da pretensão punitiva. O inciso I do art. 117
faz com que o titular da ação penal, isto é, o MP, espere pela decisão do
Poder Judiciário acerca do recebimento ou não da denúncia oferecida, para
só então a prescrição ser interrompida. Se o Poder Judiciário não promove
o andamento processual, todo o trabalho desenvolvido previamente
264
Revista do CEJ - n. 5, p. 263-265 - nov. 2015
Projeto de Lei do Senado n. 658/2015, de 30.09.2015
pelo MP e pela Polícia na colheita de provas e formação da opinio delicti
poderá ser inócuo tendo em vista a incidência da prescrição. Eis o motivo
pelo qual se mostra adequada a substituição do termo “recebimento”
por “oferecimento” da ação penal. É o marco de conclusão do trabalho
investigativo, e o seu efeito direto deve ser a interrupção da prescrição.
De todo modo, há que se ressaltar que a propositura da ação
penal deve, desde a exordial acusatória, atender aos ditames legais de
correlação entre descrição da conduta penalmente típica e embasamento
probatório mínimo, a fim de respaldar a persecução penal. Eis a razão do
novo § 3º. Se o Estado-juiz rejeitar a inicial acusatória, restará sem efeito a
interrupção prescricional.
A mudança proposta no inciso IV do art. 117, por sua vez, visa
desestimular recursos meramente protelatórios por parte da defesa.
Por fim, como cediço, a nulidade absoluta pode ser arguida a
qualquer tempo ou grau de jurisdição. Destarte, a inclusão do art. 117-A
no CP busca evitar que a defesa postergue intencionalmente a alegação
de uma nulidade absoluta previamente por ela identificada para fazê-la
em momento processual que entenda conveniente, no qual a retomada
do processo a partir do ato declarado nulo fulminaria a pretensão
punitiva do Estado em razão da ocorrência da prescrição. Isso gera custos
desnecessários para o erário e alimenta a sensação de impunidade.
Julgamos que tais alterações em muito contribuem para o
aperfeiçoamento de nossa legislação penal.
Sala das Sessões,
Senador Alvaro Dias
Revista do CEJ - n. 5, p. 263-265 - nov. 2015
265
Prescrição criminal e impunidade221
Luiz Edson Fachin222
Neste ano, foi apresentado ao Senado o Projeto de Lei 658,
que propõe alterar o Código Penal para dar novo tratamento às regras de
prescrição procurando eliminar algumas incongruências. A iniciativa do
senador Álvaro Dias (PSDB-PR) é da maior validade para o debate sobre as
garantias constitucionais, especialmente da não culpabilidade, e sobre a
percepção de impunidade.
Considerando que a inspiração socrática para uma atuação
como juiz sugere sempre diálogo, debate e problematização, colho esse
viés para tentar contribuir, dentro do quadro da Constituição republicana,
no cultivo de boas respostas aos graves quebra-cabeças que estamos
enfrentando nesta matéria.
Na proposta, a prescrição da pena já estabelecida na sentença
passa a fluir apenas quando já não caibam mais recursos tanto do acusado
como da acusação.
Hoje, quando o Ministério Público não recorre da sentença
condenatória, por entendê-la correta, mas o acusado recorre, inicia-se
a contagem do prazo, o que pode gerar uma situação de incoerência: o
Estado ainda não pode executar a pena, que é provisória, todavia já tem
contra si fluindo um prazo prescricional.
Situações concretas têm demonstrado que, não raras vezes,
quando o Estado obtém uma sentença condenatória definitiva, após
todos os recursos do acusado, não se pode mais executar a pena, porque
a prescrição já se consumou. Se prevalecer a proposta de mudança, esse
prazo terá início somente quando os recursos de todas as partes forem
definitivamente julgados.
221
222
FACHIN, Luiz Edson. Prescrição criminal e impunidade. Folha de São Paulo, São Paulo, 11 out. 2015. Disponível
em:
http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2015/10/1692550-prescricao-criminal-e-impunidade.shtml.
Acesso em: 19 out. 2015.
Ministro do Supremo Tribunal Federal.
Revista do CEJ - n. 5, p. 267-269 - nov. 2015
267
Prescrição criminal e impunidade
Propõe-se também alterar o Código Penal quando cuida das
hipóteses de interrupção do prazo de prescrição. Atualmente, quando o
Ministério Público se convence de que as suspeitas contra um acusado são
plausíveis e formula contra ele uma acusação, pela lei, o prazo prescricional
deve recomeçar a ser contado do zero.
Entretanto, isso só ocorre depois que o Poder Judiciário decide
receber a denúncia e dar início a um processo contra o acusado. O marco
de hoje é o “recebimento” da denúncia.
No projeto, indica-se a substituição desse momento pelo
do “oferecimento” da ação penal para evitar que, caso o Judiciário não
promova o andamento processual a tempo, o trabalho prévio de coleta
de provas e formulação da denúncia deixe de ser eventualmente inútil,
dado que a prescrição pode incidir depois do oferecimento da acusação,
mas antes da decisão de recebê-lo.
Na concepção apresentada há ainda outros aspectos. Cito
um deles: evitar que se postergue intencionalmente a alegação de uma
nulidade previamente identificada, para fazê-la em momento processual
que se entenda conveniente, no qual a retomada do processo a partir do
ato declarado nulo fulminaria a pretensão punitiva do Estado por causa
da prescrição.
Isso gera custos desnecessários para o erário e alimenta a
sensação de impunidade. E não é realmente um elemento racional dentro
do sistema jurídico-criminal.
Parece-nos que o espírito da proposta em andamento no
Legislativo é mesmo prestar um serviço à efetividade da prestação
jurisdicional sem afrontar garantias constitucionais. A justificativa do
projeto apresenta uma contribuição técnica à tarefa hercúlea de traduzir
limites racionais determinados, tentando equilibrar direitos e deveres,
enfim, liberdade e responsabilidade.
O tema parece do interesse da sociedade brasileira, e
evidentemente do Supremo Tribunal Federal, inclusive porque é
responsável, não só pelo julgamento de determinadas causas criminais,
mas por conduzir o respectivo processo penal.
A procura pelo verdadeiro e fundamental ordenamento ético
268
Revista do CEJ - n. 5, p. 267-269 - nov. 2015
Luiz Edson Fachin
e jurídico para a sociedade brasileira não pode prescindir de ideias,
propostas e debates transparentes, e assim de diálogos republicanos entre
Judiciário e Legislativo, bem como de abertura permanente à sociedade.
O andamento dos processos, especialmente os criminais, é
tema que transcende a mera técnica formal e, na compreensão das “raízes
do Brasil”, como escreveu Sérgio Buarque de Holanda, o desafio, também
nesse campo, é fazer que o interesse público esteja acima dos interesses
pessoais.
O sentimento de impunidade traduz a importância de
esquadrinhar soluções para essa crise de valores. Estou certo de que a
proposta em pauta tem algo a oferecer.
O princípio da presunção de inocência é, quando menos,
garantia constitucional que não pode nem deve ser relegada. Não
significa, contudo, que há óbice ao legítimo aprimoramento de nossa
legislação penal.
Revista do CEJ - n. 5, p. 267-269 - nov. 2015
269
Juizados Especiais
Enunciados aprovados no Fórum
Nacional de Juizados Especiais –
FONAJE223
Enunciados Cíveis
ENUNCIADO 1 – O exercício do direito de ação no Juizado Especial Cível é
facultativo para o autor.
ENUNCIADO 2 – Substituído pelo Enunciado 58.
ENUNCIADO 3 – Lei local não poderá ampliar a competência do Juizado
Especial.
ENUNCIADO 4 – Nos Juizados Especiais só se admite a ação de despejo
prevista no art. 47, inciso III, da Lei 8.245/1991.
ENUNCIADO 5 – A correspondência ou contrafé recebida no endereço
da parte é eficaz para efeito de citação, desde que identificado o seu
recebedor.
ENUNCIADO 6 – Não é necessária a presença do juiz togado ou leigo na
Sessão de Conciliação, nem a do juiz togado na audiência de instrução
conduzida por juiz leigo. (nova redação - XXXVII - Florianópolis/SC).
ENUNCIADO 7 – A sentença que homologa o laudo arbitral é irrecorrível.
ENUNCIADO 8 – As ações cíveis sujeitas aos procedimentos especiais não
são admissíveis nos Juizados Especiais.
ENUNCIADO 9 – O condomínio residencial poderá propor ação no Juizado
Especial, nas hipóteses do art. 275, inciso II, item b, do Código de Processo
Civil.
ENUNCIADO 10 – A contestação poderá ser apresentada até a audiência
de Instrução e Julgamento.
223
Enunciados atualizados até o XXXVII FONAJE.
Revista do CEJ - n. 5, p. 273-299 - nov. 2015
273
Enunciados aprovados no Fórum Nacional de Juizados Especiais – FONAJE
ENUNCIADO 11 – Nas causas de valor superior a vinte salários mínimos, a
ausência de contestação, escrita ou oral, ainda que presente o réu, implica
revelia.
ENUNCIADO 12 – A perícia informal é admissível na hipótese do art. 35 da
Lei 9.099/1995.
ENUNCIADO 13 – Os prazos processuais nos Juizados Especiais Cíveis
contam-se da data da intimação ou ciência do ato respectivo, e não da
juntada do comprovante da intimação, observando-se as regras de
contagem do CPC ou do Código Civil, conforme o caso (nova redação –
XXI Encontro – Vitória/ES).
ENUNCIADO 14 – Os bens que guarnecem a residência do devedor, desde
que não essenciais à habitabilidade, são penhoráveis.
ENUNCIADO 15 – Nos Juizados Especiais não é cabível o recurso de agravo,
exceto nas hipóteses dos artigos 544 e 557 do CPC. (nova redação – XXI
Encontro – Vitória/ ES).
ENUNCIADO 16 – Cancelado.
ENUNCIADO 17 – Substituído pelo Enunciado 98 (XIX Encontro – Aracaju/
SE).
ENUNCIADO 18 – Cancelado.
ENUNCIADO 19 – Cancelado (XXI Encontro – Vitória/ES).
ENUNCIADO 20 – O comparecimento pessoal da parte às audiências é
obrigatório. A pessoa jurídica poderá ser representada por preposto.
ENUNCIADO 21 – Cancelado (XXI Encontro – Vitória/ES).
ENUNCIADO 22 – A multa cominatória é cabível desde o descumprimento
da tutela antecipada, nos casos dos incisos V e VI, do art. 52, da Lei
9.099/1995.
ENUNCIADO 23 – Cancelado (XXI Encontro – Vitória/ ES).
ENUNCIADO 24 – Cancelado (XXI Encontro – Vitória/ ES).
ENUNCIADO 25 – Substituído pelo Enunciado 144 (XXVIII FONAJE –
Salvador/BA).
274
Revista do CEJ - n. 5, p. 273-299 - nov. 2015
Enunciados Cíveis
ENUNCIADO 26 – São cabíveis a tutela acautelatória e a antecipatória
nos Juizados Especiais Cíveis (nova redação – XXIV Encontro –
Florianópolis/SC).
ENUNCIADO 27 – Na hipótese de pedido de valor até 20 salários mínimos,
é admitido pedido contraposto no valor superior ao da inicial, até o limite
de 40 salários mínimos, sendo obrigatória a assistência de advogados às
partes.
ENUNCIADO 28 – Havendo extinção do processo com base no inciso I, do
art. 51, da Lei 9.099/1995, é necessária a condenação em custas.
ENUNCIADO 29 – Cancelado.
ENUNCIADO 30 – É taxativo o elenco das causas previstas no art. 3º da Lei
9.099/1995.
ENUNCIADO 31 – É admissível pedido contraposto no caso de ser a parte
ré pessoa jurídica.
ENUNCIADO 32 – Substituído pelo Enunciado 139 (XXVIII FONAJE –
Salvador/BA).
ENUNCIADO 33 – É dispensável a expedição de carta precatória nos
Juizados Especiais Cíveis, cumprindo-se os atos nas demais comarcas,
mediante via postal, por ofício do Juiz, fax, telefone ou qualquer outro
meio idôneo de comunicação.
ENUNCIADO 34 – Cancelado.
ENUNCIADO 35 – Finda a instrução, não são obrigatórios os debates orais.
ENUNCIADO 36 – A assistência obrigatória prevista no art. 9º da Lei
9.099/1995 tem lugar a partir da fase instrutória, não se aplicando para a
formulação do pedido e a sessão de conciliação.
ENUNCIADO 37 – Em exegese ao art. 53, § 4º, da Lei 9.099/1995, não se
aplica ao processo de execução o disposto no art. 18, § 2º, da referida
lei, sendo autorizados o arresto e a citação editalícia quando não
encontrado o devedor, observados, no que couber, os arts. 653 e 654
do Código de Processo Civil (nova redação – XXI Encontro – Vitória/ES).
ENUNCIADO 38 – A análise do art. 52, IV, da Lei 9.099/1995, determina
que, desde logo, expeça-se o mandado de penhora, depósito, avaliação
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Enunciados aprovados no Fórum Nacional de Juizados Especiais – FONAJE
e intimação, inclusive da eventual audiência de conciliação designada,
considerando-se o executado intimado com a simples entrega de cópia do
referido mandado em seu endereço, devendo, nesse caso, ser certificado
circunstanciadamente.
ENUNCIADO 39 – Em observância ao art. 2º da Lei 9.099/1995, o valor da
causa corresponderá à pretensão econômica objeto do pedido.
ENUNCIADO 40 – O conciliador ou juiz leigo não está incompatibilizado
nem impedido de exercer a advocacia, exceto perante o próprio Juizado
Especial em que atue ou se pertencer aos quadros do Poder Judiciário.
ENUNCIADO 41 – A correspondência ou contrafé recebida no endereço do
advogado é eficaz para efeito de intimação, desde que identificado o seu
recebedor (nova redação – XXI Encontro – Vitória/ES).
ENUNCIADO 42 – Substituído pelo Enunciado 99 (XIX Encontro –
Aracaju/SE).
ENUNCIADO 43 – Na execução do título judicial definitivo, ainda que não
localizado o executado, admite-se a penhora de seus bens, dispensado o
arresto. A intimação de penhora observará ao disposto no artigo 19, § 2º,
da Lei 9.099/1995.
ENUNCIADO 44 – No âmbito dos Juizados Especiais, não são devidas
despesas para efeito do cumprimento de diligências, inclusive, quando da
expedição de cartas precatórias.
ENUNCIADO 45 – Substituído pelo Enunciado 75.
ENUNCIADO 46 – A fundamentação da sentença ou do acórdão poderá ser
feita oralmente, com gravação por qualquer meio, eletrônico ou digital,
consignando-se apenas o dispositivo na ata (nova redação – XIV Encontro
– São Luis/MA).
ENUNCIADO 47 – Substituído pelo Enunciado 135 (XXVII FONAJE –
Palmas/TO).
ENUNCIADO 48 – O disposto no parágrafo 1º do art. 9º da Lei 9.099/1995
é aplicável às microempresas e às empresas de pequeno porte (nova
redação – XXI Encontro – Vitória/ES).
ENUNCIADO 49 – Cancelado (XXI Encontro – Vitória/ES).
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Enunciados Cíveis
ENUNCIADO 50 – Para efeito de alçada, em sede de Juizados Especiais,
tomar-se-á como base o salário mínimo nacional.
ENUNCIADO 51 – Os processos de conhecimento contra empresas sob
liquidação extrajudicial, concordata ou recuperação judicial devem
prosseguir até a sentença de mérito, para constituição do título executivo
judicial, possibilitando a parte habilitar o seu crédito, no momento
oportuno, pela via própria (nova redação – XXI Encontro – Vitória/ES).
ENUNCIADO 52 – Os embargos à execução poderão ser decididos pelo
juiz leigo, observado o art. 40 da Lei 9.099/1995.
ENUNCIADO 53 – Deverá constar da citação a advertência, em termos
claros, da possibilidade de inversão do ônus da prova.
ENUNCIADO 54 – A menor complexidade da causa para a fixação da
competência é aferida pelo objeto da prova e não em face do direito
material.
ENUNCIADO 55 – Substituído pelo Enunciado 76.
ENUNCIADO 56 – Cancelado.
ENUNCIADO 57 – Cancelado.
ENUNCIADO 58 (Substitui o Enunciado 2) – As causas cíveis enumeradas
no art. 275 II, do CPC admitem condenação superior a 40 salários mínimos
e sua respectiva execução, no próprio Juizado.
ENUNCIADO 59 – Admite-se o pagamento do débito por meio de
desconto em folha de pagamento, após anuência expressa do devedor
e em percentual que reconheça não afetar sua subsistência e a de sua
família, atendendo sua comodidade e conveniência pessoal.
ENUNCIADO 60 – É cabível a aplicação da desconsideração da
personalidade jurídica, inclusive na fase de execução. (nova redação – XIII
Encontro – Campo Grande/MS).
ENUNCIADO 61 – Cancelado (XIII Encontro – Campo Grande/MS).
ENUNCIADO 62 – Cabe exclusivamente às Turmas Recursais conhecer e
julgar o mandado de segurança e o habeas corpus impetrados em face de
atos judiciais oriundos dos Juizados Especiais.
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Enunciados aprovados no Fórum Nacional de Juizados Especiais – FONAJE
ENUNCIADO 63 – Contra decisões das Turmas Recursais são cabíveis
somente os embargos declaratórios e o Recurso Extraordinário.
ENUNCIADO 64 – Cancelado (XVI Encontro – Rio de Janeiro/RJ).
ENUNCIADO 65 – Cancelado (XVI Encontro – Rio de Janeiro/RJ).
ENUNCIADO 66 – Cancelado (XXI Encontro – Vitória/ES).
ENUNCIADO 67 – Substituído pelo Enunciado 91.
ENUNCIADO 68 – Somente se admite conexão em Juizado Especial Cível
quando as ações puderem submeter-se à sistemática da Lei 9099/1995.
ENUNCIADO 69 – As ações envolvendo danos morais não constituem, por
si só, matéria complexa.
ENUNCIADO 70 – As ações nas quais se discute a ilegalidade de juros
não são complexas para o fim de fixação da competência dos Juizados
Especiais, exceto quando exigirem perícia contábil (nova redação – XXX
Encontro – São Paulo/SP).
ENUNCIADO 71 – É cabível a designação de audiência de conciliação em
execução de título judicial.
ENUNCIADO 72 – Substituído pelo Enunciado 148 (XXIX Encontro –
Bonito/MS).
ENUNCIADO 73 – As causas de competência dos Juizados Especiais em
que forem comuns o objeto ou a causa de pedir poderão ser reunidas para
efeito de instrução, se necessária, e julgamento.
ENUNCIADO 74 – A prerrogativa de foro na esfera penal não afasta a
competência dos Juizados Especiais Cíveis.
ENUNCIADO 75 (Substitui o Enunciado 45) – A hipótese do § 4º, do art.
53, da Lei 9.099/1995, também se aplica às execuções de título judicial,
entregando-se ao exequente, no caso, certidão do seu crédito, como título
para futura execução, sem prejuízo da manutenção do nome do executado
no Cartório Distribuidor (nova redação – XXI Encontro – Vitória/ES).
ENUNCIADO 76 (Substitui o Enunciado 55) – No processo de execução,
esgotados os meios de defesa e inexistindo bens para a garantia do
débito, expede-se a pedido do exequente certidão de dívida para fins de
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Enunciados Cíveis
inscrição no Serviço de Proteção ao Crédito – SPC e SERASA, sob pena de
responsabilidade.
ENUNCIADO 77 – O advogado cujo nome constar do termo de audiência
estará habilitado para todos os atos do processo, inclusive para o recurso
(XI Encontro – Brasília-DF).
ENUNCIADO 78 – O oferecimento de resposta, oral ou escrita, não dispensa
o comparecimento pessoal da parte, ensejando, pois, os efeitos da revelia
(XI Encontro – Brasília-DF).
ENUNCIADO 79 – Designar-se-á hasta pública única, se o bem penhorado
não atingir valor superior a sessenta salários mínimos (nova redação – XXI
Encontro- Vitória/ES).
ENUNCIADO 80 – O recurso inominado será julgado deserto quando não
houver o recolhimento integral do preparo e sua respectiva comprovação
pela parte, no prazo de 48 horas, não admitida a complementação
intempestiva (art. 42, § 1º, da Lei 9.099/1995) (nova redação – XII Encontro
Maceió-AL).
ENUNCIADO 81 – A arrematação e a adjudicação podem ser impugnadas,
no prazo de cinco dias do ato, por simples pedido (nova redação – XXI
Encontro- Vitória/ES).
ENUNCIADO 82 – Nas ações derivadas de acidentes de trânsito
a demanda poderá ser ajuizada contra a seguradora, isolada ou
conjuntamente com os demais coobrigados (XIII Encontro – Campo
Grande/MS).
ENUNCIADO 83 – Cancelado (XIX Encontro – Aracaju/SE).
ENUNCIADO 84 – Compete ao Presidente da Turma Recursal o juízo de
admissibilidade do Recurso Extraordinário, salvo disposição em contrário
(nova redação – XXII Encontro – Manaus/AM).
ENUNCIADO 85 – O prazo para recorrer da decisão de Turma Recursal
fluirá da data do julgamento (XIV Encontro – São Luis/MA).
ENUNCIADO 86 – Os prazos processuais nos procedimentos sujeitos ao rito
especial dos Juizados Especiais não se suspendem e nem se interrompem
(nova redação – XXI Encontro – Vitória/ES).
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Enunciados aprovados no Fórum Nacional de Juizados Especiais – FONAJE
ENUNCIADO 87 – A Lei 10.259/2001 não altera o limite da alçada previsto
no artigo 3°, inciso I, da Lei 9099/1995 (XV Encontro – Florianópolis/SC).
ENUNCIADO 88 – Não cabe recurso adesivo em sede de Juizado Especial,
por falta de expressa previsão legal (XV Encontro – Florianópolis/SC).
ENUNCIADO 89 – A incompetência territorial pode ser reconhecida
de ofício no sistema de juizados especiais cíveis (XVI Encontro – Rio de
Janeiro/RJ).
ENUNCIADO 90 – A desistência do autor, mesmo sem a anuência do réu
já citado, implicará na extinção do processo sem julgamento do mérito,
ainda que tal ato se dê em audiência de instrução e julgamento (XVI
Encontro – Rio de Janeiro/RJ).
ENUNCIADO 91 (Substitui o Enunciado 67) – O conflito de competência
entre juízes de Juizados Especiais vinculados à mesma Turma Recursal
será decidido por esta. Inexistindo tal vinculação, será decidido pela
Turma Recursal para a qual for distribuído (nova redação – XXII Encontro
– Manaus/AM).
ENUNCIADO 92 – Nos termos do art. 46 da Lei 9099/1995, é dispensável o
relatório nos julgamentos proferidos pelas Turmas Recursais (XVI Encontro
– Rio de Janeiro/RJ).
ENUNCIADO 93 – Substituído pelo Enunciado 140 (XXVIII FONAJE –
Salvador/BA).
ENUNCIADO 94 – É cabível, em Juizados Especiais Cíveis, a propositura
de ação de revisão de contrato, inclusive quando o autor pretenda o
parcelamento de dívida, observado o valor de alçada, exceto quando
exigir perícia contábil (nova redação – XXX FONAJE – São Paulo/SP).
ENUNCIADO 95 – Finda a audiência de instrução, conduzida por Juiz Leigo,
deverá ser apresentada a proposta de sentença ao Juiz Togado em até dez
dias, intimadas as partes no próprio termo da audiência para a data da
leitura da sentença (XVIII Encontro – Goiânia/GO).
ENUNCIADO 96 – A condenação do recorrente vencido, em honorários
advocatícios, independe da apresentação de contrarrazões (XVIII Encontro
– Goiânia/GO).
ENUNCIADO 97 – O artigo 475, “j”, do CPC – Lei 11.323/2005 – aplica-se aos
Juizados Especiais, ainda que o valor da multa somado ao da execução
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Revista do CEJ - n. 5, p. 273-299 - nov. 2015
Enunciados Cíveis
ultrapasse o valor de 40 salários mínimos (XIX Encontro – Aracaju/SE).
ENUNCIADO 98 (Substitui o Enunciado 17) – É vedada a acumulação
simultânea das condições de preposto e advogado na mesma pessoa (art.
35, I e 36, II da Lei 8906/1994 combinado com o art. 23 do Código de Ética
e Disciplina da OAB) (XIX Encontro – Aracaju/SE).
ENUNCIADO 99 (Substitui o Enunciado 42) – O preposto que comparece
sem carta de preposição obriga-se a apresentá-la no prazo que for
assinado, para validade de eventual acordo, sob as penas dos artigos 20 e
51, I, da Lei 9099/1995, conforme o caso (XIX Encontro – Aracaju/SE).
ENUNCIADO 100 – A penhora de valores depositados em banco poderá
ser feita independentemente de a agência situar-se no Juízo da execução
(XIX Encontro – Aracaju/SE).
ENUNCIADO 101 – Aplica-se ao Juizado Especial o disposto no art. 285, a,
do CPC (XIX Encontro – Aracaju/SE).
ENUNCIADO 102 – O relator, nas Turmas Recursais Cíveis, em decisão
monocrática, poderá negar seguimento a recurso manifestamente
inadmissível, improcedente, prejudicado ou em desacordo com Súmula
ou jurisprudência dominante das Turmas Recursais ou da Turma de
Uniformização ou ainda de Tribunal Superior, cabendo recurso interno
para a Turma Recursal, no prazo de cinco dias (Alterado no XXXVI Encontro
– Belém/PA).
ENUNCIADO 103 – O relator, nas Turmas Recursais Cíveis, em decisão
monocrática, poderá dar provimento a recurso se a decisão estiver em
manifesto confronto com Súmula do Tribunal Superior ou Jurisprudência
dominante do próprio juizado, cabendo recurso interno para a Turma
Recursal, no prazo de 5 dias (alterado no XXXVI Encontro – Belém/PA).
ENUNCIADO 104 – Substituído pelo Enunciado 142 (XXVIII Encontro –
Salvador/BA).
ENUNCIADO 105 – Cancelado (XXXIII Encontro – Cuiabá/MT).
ENUNCIADO 106 – Havendo dificuldade de pagamento direto ao credor,
ou resistência deste, o devedor, a fim de evitar a multa de 10%, deverá
efetuar depósito perante o juízo singular de origem, ainda que os autos
estejam na instância recursal (XIX Encontro – Aracaju/SE).
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Enunciados aprovados no Fórum Nacional de Juizados Especiais – FONAJE
ENUNCIADO 107 – Nos acidentes ocorridos antes da MP 340/06, convertida
na Lei 11.482/07, o valor devido do seguro obrigatório é de 40 (quarenta)
salários mínimos, não sendo possível modificá-lo por Resolução do CNSP
e/ou Susep (nova redação – XXVI Encontro – Fortaleza/CE).
ENUNCIADO 108 – A mera recusa ao pagamento de indenização
decorrente de seguro obrigatório não configura dano moral (XIX
Encontro – Aracaju/SE).
ENUNCIADO 109 – Cancelado (XXIX Encontro – Bonito/MS).
ENUNCIADO 110 – Substituído pelo Enunciado 141 (XXVIII Encontro –
Salvador/BA).
ENUNCIADO 111 – O condomínio, se admitido como autor, deve ser
representado em audiência pelo síndico, ressalvado o disposto no
§ 2° do art. 1.348 do Código Civil (nova redação – XXI Encontro –
Vitória/ES).
ENUNCIADO 112 – A intimação da penhora e avaliação realizada na pessoa
do executado dispensa a intimação do advogado. Sempre que possível
o Oficial de Justiça deve proceder a intimação do executado no mesmo
momento da constrição judicial (art. 475, § 1º CPC) (XX Encontro – São
Paulo/SP).
ENUNCIADO 113 – As turmas recursais reunidas poderão, mediante
decisão de dois terços dos seus membros, salvo disposição regimental em
contrário, aprovar súmulas (XIX Encontro – São Paulo/SP).
ENUNCIADO 114 – A gratuidade da justiça não abrange o valor devido em
condenação por litigância de má-fé (XX Encontro – São Paulo/SP).
ENUNCIADO 115 – Indeferida a concessão do benefício da gratuidade da
justiça requerido em sede de recurso, conceder-se-á o prazo de 48 horas
para o preparo (XX Encontro – São Paulo/SP).
ENUNCIADO 116 – O Juiz poderá, de ofício, exigir que a parte comprove
a insuficiência de recursos para obter a concessão do benefício da
gratuidade da justiça (art. 5º, LXXIV, da CF), uma vez que a afirmação da
pobreza goza apenas de presunção relativa de veracidade (XX Encontro –
São Paulo/SP).
282
Revista do CEJ - n. 5, p. 273-299 - nov. 2015
Enunciados Cíveis
ENUNCIADO 117 – É obrigatória a segurança do Juízo pela penhora para
apresentação de embargos à execução de título judicial ou extrajudicial
perante o Juizado Especial (XXI Encontro – Vitória/ES).
ENUNCIADO 118 – Quando manifestamente inadmissível ou infundado o
recurso interposto, a turma recursal ou o relator em decisão monocrática
condenará o recorrente a pagar multa de 1% e indenizar o recorrido
no percentual de até 20% do valor da causa, ficando a interposição de
qualquer outro recurso condicionada ao depósito do respectivo valor (XXI
Encontro – Vitória/ES).
ENUNCIADO 119 – Substituído pelo Enunciado 147 (XXIX Encontro –
Bonito/MS).
ENUNCIADO 120 – A multa derivada de descumprimento de antecipação
de tutela é passível de execução mesmo antes do trânsito em julgado da
sentença (XXI Encontro – Vitória/ES).
ENUNCIADO 121 – Os fundamentos admitidos para embargar a execução
da sentença estão disciplinados no art. 52, inciso IX, da Lei 9.099/95 e não
no artigo 475-L do CPC, introduzido pela Lei 11.232/05 (XXI Encontro –
Vitória/ES).
ENUNCIADO 122 – É cabível a condenação em custas e honorários
advocatícios na hipótese de não conhecimento do recurso inominado
(XXI Encontro – Vitória/ES).
ENUNCIADO 123 – O art. 191 do CPC não se aplica aos processos cíveis
que tramitam perante o Juizado Especial (XXI Encontro – Vitória/ES).
ENUNCIADO 124 – Das decisões proferidas pelas Turmas Recursais em
mandado de segurança não cabe recurso ordinário (XXI Encontro –
Vitória/ES).
ENUNCIADO 125 – Nos juizados especiais, não são cabíveis embargos
declaratórios contra acórdão ou súmula na hipótese do art. 46 da Lei
9.099/1995, com finalidade exclusiva de prequestionamento, para fins de
interposição de recurso extraordinário (XXI Encontro – Vitória/ES).
ENUNCIADO 126 – Em execução eletrônica de título extrajudicial, o
título de crédito será digitalizado e o original apresentado até a sessão
de conciliação ou prazo assinado, a fim de ser carimbado ou retido pela
secretaria (XXIV Encontro – Florianópolis/SC).
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Enunciados aprovados no Fórum Nacional de Juizados Especiais – FONAJE
ENUNCIADO 127 – O cadastro de que trata o art. 1º, § 2º, III, “b”, da Lei
11.419/2006 deverá ser presencial e não poderá se dar mediante
procuração, ainda que por instrumento público e com poderes especiais
(XXIV Encontro – Florianópolis/SC).
ENUNCIADO 128 – Além dos casos de segredo de justiça e sigilo judicial,
os documentos digitalizados em processo eletrônico somente serão
disponibilizados aos sujeitos processuais, vedado o acesso a consulta
pública fora da secretaria do Juizado (XXIV Encontro – Florianópolis/SC).
ENUNCIADO 129 – Nos Juizados Especiais que atuem com processo
eletrônico, ultimado o processo de conhecimento em meio físico, a
execução dar-se-á de forma eletrônica, digitalizando as peças necessárias
(XXIV Encontro – Florianópolis/SC).
ENUNCIADO 130 – Os documentos digitais que impliquem efeitos no meio
não digital, uma vez materializados, terão a autenticidade certificada pelo
Diretor de Secretaria ou Escrivão (XXIV Encontro – Florianópolis/SC).
ENUNCIADO 131 – As empresas públicas e sociedades de economia mista
dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios podem ser demandadas
nos Juizados Especiais (XXV Encontro – São Luís/MA).
ENUNCIADO 132 – Substituído pelo Enunciado 144 (XXVIII Encontro –
Salvador/BA).
ENUNCIADO 133 – O valor de alçada de 60 salários mínimos previsto no
artigo 2º da Lei 12.153/09, não se aplica aos Juizados Especiais Cíveis, cujo
limite permanece em 40 salários mínimos (XXVII Encontro – Palmas/TO).
ENUNCIADO 134 – As inovações introduzidas pelo artigo 5º da Lei
12.153/09 não são aplicáveis aos Juizados Especiais Cíveis (Lei 9.099/95)
(XXVII Encontro – Palmas/TO).
ENUNCIADO 135 (substitui o Enunciado 47) – O acesso da microempresa
ou empresa de pequeno porte no sistema dos Juizados Especiais depende
da comprovação de sua qualificação tributária atualizada e documento
fiscal referente ao negócio jurídico objeto da demanda (XXVII Encontro –
Palmas/TO).
ENUNCIADO 136 – O reconhecimento da litigância de má-fé poderá
implicar em condenação ao pagamento de custas, honorários de
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Enunciados Cíveis
advogado, multa e indenização nos termos dos artigos 55, caput, da Lei
9.099/95 e 18 do Código de Processo Civil (XXVII Encontro – Palmas/TO).
ENUNCIADO 137 – Enunciado renumerado como n. 8 da Fazenda Pública
(XXXII Encontro – Armação de Búzios/RJ).
ENUNCIADO 138 – Enunciado renumerado como n. 9 da Fazenda Pública
(XXXII Encontro – Armação de Búzios/RJ).
ENUNCIADO 139 (substitui o Enunciado 32) – A exclusão da competência
do sistema dos Juizados Especiais quanto às demandas sobre direitos ou
interesses difusos ou coletivos, dentre eles os individuais homogêneos,
aplica-se tanto para as demandas individuais de natureza multitudinária
quanto para as ações coletivas. Se, no exercício de suas funções, os
juízes e tribunais tiverem conhecimento de fatos que possam ensejar a
propositura da ação civil coletiva, remeterão peças ao Ministério Público
e/ou à Defensoria Pública para as providências cabíveis (Alterado no XXXVI
Encontro – Belém/PA).
ENUNCIADO 140 (Substitui o Enunciado 93) – O bloqueio on-line de
numerário será considerado para todos os efeitos como penhora,
dispensando-se a lavratura do termo e intimando-se o devedor da
constrição (XXVIII Encontro – Salvador/BA).
ENUNCIADO 141 (Substitui o Enunciado 110) – A microempresa e a
empresa de pequeno porte, quando autoras, devem ser representadas,
inclusive em audiência, pelo empresário individual ou pelo sócio dirigente
(XXVIII Encontro – Salvador/BA).
ENUNCIADO 142 (Substitui o Enunciado 104) – Na execução por título
judicial, o prazo para oferecimento de embargos será de quinze dias e
fluirá da intimação da penhora (XXVIII Encontro – Salvador/BA).
ENUNCIADO 143 – A decisão que põe fim aos embargos à execução
de título judicial ou extrajudicial é sentença, contra a qual cabe apenas
recurso inominado (XXVIII Encontro – Salvador/BA).
ENUNCIADO 144 (Substitui o Enunciado 132) – A multa cominatória
não fica limitada ao valor de 40 salários mínimos, embora deva ser
razoavelmente fixada pelo Juiz, obedecendo ao valor da obrigação
principal, mais perdas e danos, atendidas as condições econômicas do
devedor (XXVIII Encontro – Salvador/BA).
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Enunciados aprovados no Fórum Nacional de Juizados Especiais – FONAJE
ENUNCIADO 145 – A penhora não é requisito para a designação de
audiência de conciliação na execução fundada em título extrajudicial
(XXIX Encontro – Bonito/MS).
ENUNCIADO 146 – A pessoa jurídica que exerça atividade de factoring
e de gestão de créditos e ativos financeiros, excetuando as entidades
descritas no art. 8º, § 1º, inciso IV, da Lei 9.099/95, não será admitida a
propor ação perante o sistema dos Juizados Especiais (art. 3º, § 4º, VIII, da
Lei Complementar n. 123, de 14 de dezembro de 2006) (XXIX Encontro –
Bonito/MS).
ENUNCIADO 147 (Substitui o Enunciado 119) – A constrição eletrônica de
bens e valores poderá ser determinada de ofício pelo juiz (XXIX Encontro
– Bonito/MS).
ENUNCIADO 148 (Substitui o Enunciado 72) – Inexistindo interesse de
incapazes, o espólio pode ser parte nos Juizados Especiais Cíveis (XXIX
Encontro – Bonito/MS).
ENUNCIADO 149 – Enunciado renumerado como n. 2 da Fazenda Pública
(XXIX Encontro – Bonito/MS).
ENUNCIADO 150 – Enunciado renumerado como n. 3 da Fazenda Pública
(XXIX Encontro – Bonito/MS).
ENUNCIADO 151 – Cancelado (XXIX FONAJE – Bonito/MS).
ENUNCIADO 152 – Enunciado renumerado como n. 5 da Fazenda Pública
(XXIX Encontro – Bonito/MS).
ENUNCIADO 153 – Enunciado renumerado como n. 6 da Fazenda Pública
(XXIX Encontro – Bonito/MS).
ENUNCIADO 154 – Enunciado renumerado como n. 1 da Fazenda Pública
(XXIX Encontro – Bonito/MS).
ENUNCIADO 155 – Admitem-se embargos de terceiro, no sistema dos
Juizados, mesmo pelas pessoas excluídas pelo parágrafo primeiro do art.
8º da Lei 9.099/95 (XXIX Encontro – Bonito/MS).
ENUNCIADO 156 – Na execução de título judicial, o prazo para oposição
de embargos flui da data do depósito espontâneo, valendo este como
termo inicial, ficando dispensada a lavratura de termo de penhora (XXX
Encontro – São Paulo/SP).
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Enunciados Criminais
ENUNCIADO 157 – O disposto no artigo 294 do CPC não possui
aplicabilidade nos Juizados Especiais Cíveis, o que confere ao autor
a possibilidade de aditar seu pedido até o momento da AIJ (ou fase
instrutória), sendo resguardado ao réu o respectivo direito de defesa (XXX
Encontro – São Paulo/SP).
ENUNCIADO 158 – Cancelado (XXXIII Encontro – Cuiabá/MT).
ENUNCIADO 159 – Não existe omissão a sanar por meio de embargos de
declaração quando o acórdão não enfrenta todas as questões arguidas
pelas partes, desde que uma delas tenha sido suficiente para o julgamento
do recurso (XXX Encontro – São Paulo/SP).
ENUNCIADO 160 – Nas hipóteses do artigo 515, § 3º, do CPC, e quando
reconhecida a prescrição na sentença, a turma recursal, dando provimento
ao recurso, poderá julgar de imediato o mérito, independentemente de
requerimento expresso do recorrente.
Enunciados Criminais
ENUNCIADO 1 – A ausência injustificada do autor do fato à audiência
preliminar implicará em vista dos autos ao Ministério Público para o
procedimento cabível.
ENUNCIADO 2 – O Ministério Público, oferecida a representação em Juízo,
poderá propor diretamente a transação penal, independentemente do
comparecimento da vítima à audiência preliminar (nova redação – XXI
Encontro – Vitória/ES).
ENUNCIADO 3 – Cancelado (XXI Encontro – Vitória/ES).
ENUNCIADO 4 – Substituído pelo Enunciado 38.
ENUNCIADO 5 – Substituído pelo Enunciado 46.
ENUNCIADO 6 – Substituído pelo Enunciado 86 (XXI Encontro –
Vitória/ES).
ENUNCIADO 7 – Cancelado.
ENUNCIADO 8 – A multa deve ser fixada em dias-multa, tendo em vista o
art. 92 da Lei 9.099/95, que determina a aplicação subsidiária dos Códigos
Penal e de Processo Penal.
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Enunciados aprovados no Fórum Nacional de Juizados Especiais – FONAJE
ENUNCIADO 9 – A intimação do autor do fato para a audiência preliminar
deve conter a advertência da necessidade de acompanhamento de
advogado e de que, na sua falta, ser-lhe-á nomeado Defensor Público.
ENUNCIADO 10 – Havendo conexão entre crimes da competência do
Juizado Especial e do Juízo Penal Comum, prevalece a competência deste.
ENUNCIADO 11 – Substituído pelo Enunciado 80 (XIX Encontro –
Aracaju/SE).
ENUNCIADO 12 – Substituído pelo Enunciado 64 (XXIV Encontro –
Florianópolis/SC).
ENUNCIADO 13 – É cabível o encaminhamento de proposta de transação
por carta precatória (nova redação – XXI Encontro – Vitória/ES).
ENUNCIADO 14 – Substituído pelo Enunciado 79 (XIX Encontro –
Aracaju/SE).
ENUNCIADO 15 – Substituído pelo Enunciado 87 (XXI Encontro –
Vitória/ES).
ENUNCIADO 16 – Nas hipóteses em que a condenação anterior não gera
reincidência, é cabível a suspensão condicional do processo.
ENUNCIADO 17 – É cabível, quando necessário, interrogatório por carta
precatória, por não ferir os princípios que regem a Lei 9.099/95 (nova
redação – XXI Encontro – Vitória/ES).
ENUNCIADO 18 – Na hipótese de fato complexo, as peças de informação
deverão ser encaminhadas à Delegacia Policial para as diligências
necessárias. Retornando ao Juizado e sendo o caso do artigo 77, § 2º, da
Lei 9.099/95, as peças serão encaminhadas ao Juízo Comum.
ENUNCIADO 19 – Substituído pelo Enunciado 48 (XII Encontro –
Maceió/AL).
ENUNCIADO 20 – A proposta de transação de pena restritiva de direitos é
cabível, mesmo quando o tipo em abstrato só comporta pena de multa.
ENUNCIADO 21 – Cancelado.
ENUNCIADO 22 – Na vigência do sursis, decorrente de condenação por
contravenção penal, não perderá o autor do fato o direito à suspensão
condicional do processo por prática de crime posterior.
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Enunciados Criminais
ENUNCIADO 23 – Cancelado.
ENUNCIADO 24 – Substituído pelo Enunciado 54.
ENUNCIADO 25 – O início do prazo para o exercício da representação
do ofendido começa a contar do dia do conhecimento da autoria do
fato, observado o disposto no Código de Processo Penal ou legislação
específica. Qualquer manifestação da vítima que denote intenção de
representar vale como tal para os fins do art. 88 da Lei 9.099/95.
ENUNCIADO 26 – Cancelado.
ENUNCIADO 27 – Em regra não devem ser expedidos ofícios para órgãos
públicos, objetivando a localização de partes e testemunhas nos Juizados
Criminais.
ENUNCIADO 28 – Cancelado (XVII Encontro – Curitiba/PR).
ENUNCIADO 29 – Substituído pelo Enunciado 88 (XXI Encontro –
Vitória/ES).
ENUNCIADO 30 – Cancelado.
ENUNCIADO 31 – O conciliador ou juiz leigo não está incompatibilizado
nem impedido de exercer a advocacia, exceto perante o próprio Juizado
Especial em que atue ou se pertencer aos quadros do Poder Judiciário.
ENUNCIADO 32 – O Juiz ordenará a intimação da vítima para a audiência
de suspensão do processo como forma de facilitar a reparação do dano,
nos termos do art. 89, § 1º, da Lei 9.099/95.
ENUNCIADO 33 – Aplica-se, por analogia, o artigo 49 do Código de
Processo Penal no caso da vítima não representar contra um dos autores
do fato.
ENUNCIADO 34 – Atendidas as peculiaridades locais, o termo
circunstanciado poderá ser lavrado pela Polícia Civil ou Militar.
ENUNCIADO 35 – Substituído pelo Enunciado 113 (XXVIII Encontro –
Salvador/BA).
ENUNCIADO 36 – Substituído pelo Enunciado 89 (XXI Encontro –
Vitória/ES).
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Enunciados aprovados no Fórum Nacional de Juizados Especiais – FONAJE
ENUNCIADO 37 – O acordo civil de que trata o art. 74 da Lei 9.099/1995
poderá versar sobre qualquer valor ou matéria (nova redação – XXI
Encontro – Vitória/ES).
ENUNCIADO 38 – Cancelado (XXXIII Encontro – Cuiabá/MT).
ENUNCIADO 39 – Cancelado (XXXIII Encontro – Cuiabá/MT).
ENUNCIADO 40 – Cancelado (XXXIII Encontro – Cuiabá/MT).
ENUNCIADO 41 – Cancelado.
ENUNCIADO 42 – A oitiva informal dos envolvidos e de testemunhas,
colhida no âmbito do Juizado Especial Criminal, poderá ser utilizada como
peça de informação para o procedimento.
ENUNCIADO 43 – O acordo em que o objeto for obrigação de fazer ou não
fazer deverá conter cláusula penal em valor certo, para facilitar a execução
cível.
ENUNCIADO 44 – No caso de transação penal homologada e não cumprida,
o decurso do prazo prescricional provoca a declaração de extinção de
punibilidade pela prescrição da pretensão punitiva (nova redação - XXXVII
- Florianópolis/SC).
ENUNCIADO 45 – Cancelado.
ENUNCIADO 46 – Cancelado.
ENUNCIADO 47 – Substituído pelo Enunciado 71 (XV Encontro –
Florianópolis/SC).
ENUNCIADO 48 – O recurso em sentido estrito é incabível em sede de
Juizados Especiais Criminais.
ENUNCIADO 49 – Substituído pelo Enunciado 90 (XXI Encontro –
Vitória/ES).
ENUNCIADO 50 – Cancelado (XI Encontro – Brasília-DF).
ENUNCIADO 51 – A remessa dos autos ao juízo comum, na hipótese do art.
66, parágrafo único, da Lei 9.099/95 (Enunciado 64), exaure a competência
do Juizado Especial Criminal, que não se restabelecerá com localização do
acusado (nova redação – XXI Encontro – Vitória/ES).
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Enunciados Criminais
ENUNCIADO 52 – A remessa dos autos ao juízo comum, na hipótese do
art. 77, § 2º, da Lei 9099/95 (Enunciado 18), exaure a competência do
Juizado Especial Criminal, que não se restabelecerá ainda que afastada a
complexidade.
ENUNCIADO 53 – No Juizado Especial Criminal, o recebimento da denúncia,
na hipótese de suspensão condicional do processo, deve ser precedido da
resposta prevista no art. 81 da Lei 9099/95.
ENUNCIADO 54 (Substitui o Enunciado 24) – O processamento de medidas
despenalizadoras, aplicáveis ao crime previsto no art. 306 da Lei 9503/97,
por força do parágrafo único do art. 291 da mesma Lei, não compete ao
Juizado Especial Criminal.
ENUNCIADO 55 – Cancelado (XI Encontro – Brasília-DF).
ENUNCIADO 56 – Cancelado (XXXVI Encontro - Belém/PA).
ENUNCIADO 57 – Substituído pelo Enunciado 79 (XIX Encontro –
Aracaju/SE).
ENUNCIADO 58 – A transação penal poderá conter cláusula de renúncia
à propriedade do objeto apreendido (XIII Encontro – Campo Grande/MS).
ENUNCIADO 59 – O juiz decidirá sobre a destinação dos objetos
apreendidos e não reclamados no prazo do art. 123 do CPP (XIII Encontro
– Campo Grande/MS).
ENUNCIADO 60 – Exceção da verdade e questões incidentais não afastam
a competência dos Juizados Especiais, se a hipótese não for complexa (XIII
Encontro – Campo Grande/MS).
ENUNCIADO 61 – Substituído pelo Enunciado 122 (XXXIII Encontro –
Cuiabá/MT).
ENUNCIADO 62 – O Conselho da Comunidade poderá ser beneficiário
da prestação pecuniária e deverá aplicá-la em prol da execução penal e
de programas sociais, em especial daqueles que visem à prevenção da
criminalidade (XIV Encontro – São Luis/MA).
ENUNCIADO 63 – As entidades beneficiárias de prestação pecuniária,
em contrapartida, deverão dar suporte à execução de penas e medidas
alternativas (XIV Encontro – São Luis/MA).
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Enunciados aprovados no Fórum Nacional de Juizados Especiais – FONAJE
ENUNCIADO 64 – Verificada a impossibilidade de citação pessoal, ainda
que a certidão do Oficial de Justiça seja anterior à denúncia, os autos serão
remetidos ao juízo comum após o oferecimento desta (nova redação – XXI
Encontro – Vitória/ES).
ENUNCIADO 65 – Substituído pelo Enunciado 109 (XXV Encontro – São
Luís).
ENUNCIADO 66 – É direito do réu assistir à inquirição das testemunhas
antes de seu interrogatório, ressalvado o disposto no artigo 217 do
Código de Processo Penal. No caso excepcional de o interrogatório ser
realizado por precatória, ela deverá ser instruída com cópia de todos os
depoimentos, de que terá ciência o réu (XV Encontro – Florianópolis/SC).
ENUNCIADO 67 – A possibilidade de aplicação de suspensão ou proibição
de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículos automotores
por até cinco anos (art. 293 da Lei 9.503/97), perda do cargo, inabilitação
para exercício de cargo, função pública ou mandato eletivo ou outra
sanção diversa da privação da liberdade, não afasta a competência do
Juizado Especial Criminal (XV Encontro – Florianópolis/SC).
ENUNCIADO 68 – É cabível a substituição de uma modalidade de pena
restritiva de direitos por outra, aplicada em sede de transação penal,
pelo juízo do conhecimento, a requerimento do interessado, ouvido o
Ministério Público (XV Encontro – Florianópolis/SC).
ENUNCIADO 69 – Substituído pelo Enunciado 74 (XVI Encontro – Rio de
Janeiro/RJ).
ENUNCIADO 70 – O conciliador ou o juiz leigo podem presidir audiências
preliminares nos Juizados Especiais Criminais, propondo conciliação e
encaminhamento da proposta de transação (XV Encontro – Florianópolis/
SC).
ENUNCIADO 71 (Substitui o Enunciado 47) – A expressão conciliação
prevista no artigo 73 da Lei 9099/95 abrange o acordo civil e a transação
penal, podendo a proposta do Ministério Público ser encaminhada pelo
conciliador ou pelo juiz leigo, nos termos do artigo 76, § 3º, da mesma Lei
(XV Encontro – Florianópolis/SC).
ENUNCIADO 72 – A proposta de transação penal e a sentença
homologatória devem conter obrigatoriamente o tipo infracional
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Revista do CEJ - n. 5, p. 273-299 - nov. 2015
Enunciados Criminais
imputado ao autor do fato, independentemente da capitulação ofertada
no termo circunstanciado (XVI Encontro – Rio de Janeiro/RJ).
ENUNCIADO 73 – O juiz pode deixar de homologar transação penal em
razão de atipicidade, ocorrência de prescrição ou falta de justa causa para
a ação penal, equivalendo tal decisão à rejeição da denúncia ou queixa
(XVI Encontro – Rio de Janeiro/RJ).
ENUNCIADO 74 (Substitui o Enunciado 69) – A prescrição e a decadência
não impedem a homologação da composição civil (XVI Encontro – Rio de
Janeiro/RJ).
ENUNCIADO 75 – É possível o reconhecimento da prescrição da pretensão
punitiva do Estado pela projeção da pena a ser aplicada ao caso concreto
(XVII Encontro – Curitiba/PR).
ENUNCIADO 76 – A ação penal relativa à contravenção de vias de fato
dependerá de representação (XVII Encontro – Curitiba/PR).
ENUNCIADO 77 – O juiz pode alterar a destinação das medidas penais
indicadas na proposta de transação penal (XVIII Encontro – Goiânia/GO).
ENUNCIADO 78 – Substituído pelo Enunciado 80 (XIX Encontro – Aracaju/
SE).
ENUNCIADO 79 – Cancelado (XXXVI Encontro - Belém/PA).
ENUNCIADO 80 – Cancelado (XXIV Encontro – Florianópolis/SC).
ENUNCIADO 81 – O relator, nas Turmas Recursais Criminais, em decisão
monocrática, poderá negar seguimento a recurso manifestamente
inadmissível, prejudicado, ou julgar extinta a punibilidade, cabendo
recurso interno para a Turma Recursal, no prazo de cinco dias (XIX Encontro
– Aracaju/SE).
ENUNCIADO 82 – O autor do fato previsto no art. 28 da Lei 11.343/06
deverá ser encaminhado à autoridade policial para as providências do art.
48, § 2º da mesma Lei (XX Encontro – São Paulo/SP).
ENUNCIADO 83 – Ao ser aplicada a pena de advertência, prevista no art. 28,
I, da Lei 11.343/06, sempre que possível deverá o juiz se fazer acompanhar
de profissional habilitado na questão sobre drogas (XX Encontro – São
Paulo/SP).
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Enunciados aprovados no Fórum Nacional de Juizados Especiais – FONAJE
ENUNCIADO 84 – Cancelado (XXXVII Encontro – Florianópolis/SC).
ENUNCIADO 85 – Aceita a transação penal, o autor do fato previsto no
art. 28 da Lei 11.343/06 deve ser advertido expressamente para os efeitos
previstos no parágrafo 6º do referido dispositivo legal (XX Encontro – São
Paulo/SP).
ENUNCIADO 86 (Substitui o Enunciado 6) – Em caso de não oferecimento
de proposta de transação penal ou de suspensão condicional do processo
pelo Ministério Público, aplica-se, por analogia, o disposto no art. 28 do
CPP (XXI Encontro – Vitória/ES).
ENUNCIADO 87 (Substitui o Enunciado 15) – O Juizado Especial Criminal
é competente para a execução das penas ou medidas aplicadas em
transação penal, salvo quando houver central ou vara de penas e medidas
alternativas com competência específica (XXI Encontro – Vitória/ES).
ENUNCIADO 88 – Cancelado (XXXIII Encontro – Cuiabá/MT).
ENUNCIADO 89 (Substitui o Enunciado 36) – Havendo possibilidade de
solução de litígio de qualquer valor ou matéria subjacente à questão
penal, o acordo poderá ser reduzido a termo no Juizado Especial Criminal
e encaminhado ao juízo competente (XXI Encontro – Vitória/ES).
ENUNCIADO 90 – Substituído pelo Enunciado 112 (XXVII Encontro –
Palmas/TO).
ENUNCIADO 91 – É possível a redução da medida proposta, autorizada
no art. 76, § 1º da Lei 9099/1995, pelo juiz deprecado (XXI Encontro –
Vitória/ES).
ENUNCIADO 92 – É possível a adequação da proposta de transação penal
ou das condições da suspensão do processo no juízo deprecado ou no
juízo da execução, observadas as circunstâncias pessoais do beneficiário
(nova redação – XXII Encontro – Manaus/AM).
ENUNCIADO 93 – É cabível a expedição de precatória para citação,
apresentação de defesa preliminar e proposta de suspensão do
processo no juízo deprecado. Aceitas as condições, o juízo deprecado
comunicará ao deprecante o qual, recebendo a denúncia, deferirá
a suspensão, a ser cumprida no juízo deprecado (XXI Encontro –
Vitória/ES).
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Enunciados Criminais
ENUNCIADO 94 – A Lei 11.343/2006 não descriminalizou a conduta de
posse ilegal de drogas para uso próprio (XXI Encontro – Vitória/ES).
ENUNCIADO 95 – A abordagem individualizada multidisciplinar deve
orientar a escolha da pena ou medida dentre as previstas no art. 28 da
Lei 11.343/2006, não havendo gradação no rol (XXI Encontro – Vitória/ES).
ENUNCIADO 96 – O prazo prescricional previsto no art. 30 da Lei
11.343/2006 aplica-se retroativamente aos crimes praticados na vigência
da lei anterior (XXI Encontro – Vitória/ES).
ENUNCIADO 97 – É possível a decretação, como efeito secundário da
sentença condenatória, da perda dos veículos utilizados na prática de
crime ambiental da competência dos Juizados Especiais Criminais (XXI
Encontro – Vitória/ES).
ENUNCIADO 98 – Os crimes previstos nos artigos 309 e 310 da Lei
9503/1997 são de perigo concreto (XXI Encontro – Vitória/ES).
ENUNCIADO 99 – Nas infrações penais em que haja vítima determinada,
em caso de desinteresse desta ou de composição civil, deixa de existir
justa causa para ação penal (nova redação – XXIII Encontro – Boa Vista/RR).
ENUNCIADO 100 – A procuração que instrui a ação penal privada, no
Juizado Especial Criminal, deve atender aos requisitos do art. 44 do CPP
(XXII Encontro – Manaus/AM).
ENUNCIADO 101 – É irrecorrível a decisão que defere o arquivamento de
termo circunstanciado a requerimento do Ministério Público, devendo o
relator proceder na forma do Enunciado 81 (XXII Encontro – Manaus/AM).
ENUNCIADO 102 – As penas restritivas de direito aplicadas em transação
penal são fungíveis entre si (XXIII Encontro – Boa Vista/RR).
ENUNCIADO 103 – A execução administrativa da pena de multa aplicada
na sentença condenatória poderá ser feita de ofício pela Secretaria do
Juizado ou Central de Penas (XXIV Encontro – Florianópolis/SC).
ENUNCIADO 104 – A intimação da vítima é dispensável quando a
sentença de extinção da punibilidade se embasar na declaração
prévia de desinteresse na persecução penal (XXIV Encontro –
Florianópolis/SC).
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Enunciados aprovados no Fórum Nacional de Juizados Especiais – FONAJE
ENUNCIADO 105 – É dispensável a intimação do autor do fato ou do
réu das sentenças que extinguem sua punibilidade (XXIV Encontro –
Florianópolis/SC).
ENUNCIADO 106 – A audiência preliminar será sempre individual (XXIV
Encontro – Florianópolis/SC).
ENUNCIADO 107 – A advertência de que trata o art. 28, I da Lei 11.343/06,
uma vez aceita em transação penal pode ser ministrada a mais de um
autor do fato ao mesmo tempo, por profissional habilitado, em ato
designado para data posterior à audiência preliminar (XXIV Encontro
– Florianópolis/SC).
ENUNCIADO 108 – O art. 396 do CPP não se aplica no Juizado Especial
Criminal regido por lei especial (Lei 9.099/95), que estabelece regra própria
(XXV Encontro – São Luís/MA).
ENUNCIADO 109 – Substitui o Enunciado 65 – Nas hipóteses do artigo
363, § 1º e § 4º do Código de Processo Penal, aplica-se o parágrafo único
do artigo 66 da Lei 9.099/95 (XXV Encontro – São Luís/MA).
ENUNCIADO 110 – No Juizado Especial Criminal é cabível a citação com
hora certa (XXV Encontro – São Luís/MA).
ENUNCIADO 111 – O princípio da ampla defesa deve ser assegurado
também na fase da transação penal (XXVII Encontro – Palmas/TO).
ENUNCIADO 112 (Substitui o Enunciado 90) – Na ação penal de iniciativa
privada, cabem transação penal e a suspensão condicional do processo,
mediante proposta do Ministério Público (XXVII Encontro – Palmas/TO).
ENUNCIADO 113 (Substitui o Enunciado 35) – Até a prolação da sentença é
possível declarar a extinção da punibilidade do autor do fato pela renúncia
expressa da vítima ao direito de representação ou pela conciliação (XXVIII
Encontro – Salvador/BA).
ENUNCIADO 114 – A transação penal poderá ser proposta até o final da
instrução processual (XXVIII Encontro – Salvador/BA).
ENUNCIADO 115 – A restrição de nova transação do art. 76, § 4º, da Lei
9.099/1995, não se aplica ao crime do art. 28 da Lei 11.343/2006 (XXVIII
Encontro – Salvador/BA).
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Enunciados Criminais
ENUNCIADO 116 – Na transação penal deverão ser observados os
princípios da justiça restaurativa, da proporcionalidade, da dignidade,
visando a efetividade e adequação (XXVIII Encontro – Salvador/BA).
ENUNCIADO 117 – A ausência da vítima na audiência, quando intimada ou
não localizada, importará renúncia tácita à representação (XXVIII Encontro
– Salvador/BA).
ENUNCIADO 118 – Somente a reincidência específica autoriza a
exasperação da pena de que trata o § 4º do artigo 28 da Lei 11.343/2006
(XXIX Encontro – Bonito/MS).
ENUNCIADO 119 – É possível a mediação no âmbito do Juizado Especial
Criminal (XXIX Encontro – Bonito/MS).
ENUNCIADO 120 – O concurso de infrações de menor potencial ofensivo
não afasta a competência do Juizado Especial Criminal, ainda que o
somatório das penas, em abstrato, ultrapasse dois anos (XXIX Encontro –
Bonito/MS).
ENUNCIADO 121 – As medidas cautelares previstas no art. 319 do CPP e
suas consequências, à exceção da fiança, são aplicáveis às infrações penais
de menor potencial ofensivo para as quais a lei cominar em tese pena
privativa da liberdade (XXX Encontro – São Paulo/SP).
ENUNCIADO 122 (Substitui o Enunciado 61) – O processamento de medidas
despenalizadoras previstas no artigo 94 da Lei 10.741/03, relativamente
aos crimes cuja pena máxima não supere 02 anos, compete ao Juizado
Especial Criminal (XXXIII Encontro – Cuiabá/MT).
ENUNCIADO 123 – O mero decurso do prazo da suspensão condicional do
processo sem o cumprimento integral das condições impostas em juízo
não redundará em extinção automática da punibilidade do agente (XXXIII
Encontro – Cuiabá/MT).
ENUNCIADO 124 – A reincidência decorrente de sentença condenatória
e a existência de transação penal anterior, ainda que por crime de outra
natureza ou contravenção, não impedem a aplicação das medidas
despenalizadoras do artigo 28 da Lei 11.343/06 em sede de transação
penal (XXXIII Encontro – Cuiabá/MT).
ENUNCIADO 125 – É cabível, no Juizado Especial Criminal, a intimação
por edital da sentença penal condenatória, quando não localizado o réu
(XXXVI Encontro - Belém/PA).
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Enunciados aprovados no Fórum Nacional de Juizados Especiais – FONAJE
ENUNCIADO 126 – A condenação por infração ao artigo 28 da Lei 11.343/06
não enseja registro para efeitos de antecedentes criminais e reincidência.
(XXXVII Encontro - Florianópolis/SC).
Enunciados da Fazenda Pública
ENUNCIADO 01 – Aplicam-se aos Juizados Especiais da Fazenda Pública,
no que couber, os Enunciados dos Juizados Especiais Cíveis (XXIX Encontro
– Bonito/MS).
ENUNCIADO 02 – É cabível, nos Juizados Especiais da Fazenda Pública, o
litisconsórcio ativo, ficando definido, para fins de fixação da competência,
o valor individualmente considerado de até 60 salários mínimos (XXIX
Encontro – Bonito/MS).
ENUNCIADO 03 – Não há prazo diferenciado para a Defensoria Pública
no âmbito dos Juizados Especiais da Fazenda Pública (XXIX Encontro –
Bonito/MS).
ENUNCIADO 04 – Cancelado (XXIX Encontro – Bonito/MS).
ENUNCIADO 05 – É de 10 dias o prazo de recurso contra decisão que
deferir tutela antecipada em face da Fazenda Pública (nova redação – XXX
Encontro – São Paulo/SP).
ENUNCIADO 06 – Vencida a Fazenda Pública, quando recorrente, a fixação
de honorários advocatícios deve ser estabelecida de acordo com o § 4º,
do art. 20, do Código de Processo Civil, de forma equitativa pelo juiz (XXIX
Encontro – Bonito/MS).
ENUNCIADO 07 – O sequestro previsto no § 1º do artigo 13 da Lei 12.153/09
também poderá ser feito por meio do BACENJUD, ressalvada a hipótese
de precatório (XXX Encontro – São Paulo/SP).
ENUNCIADO 08 – De acordo com a decisão proferida pela 3ª Seção do
Superior Tribunal de Justiça no Conflito de Competência 35.420, e
considerando que o inciso II do art. 5º da Lei 12.153/09 é taxativo e não
inclui ente da Administração Federal entre os legitimados passivos, não
cabe, no Juizado Especial da Fazenda Pública ou no Juizado Estadual Cível,
ação contra a União, suas empresas públicas e autarquias, nem contra o
INSS (XXXII Encontro – Armação de Búzios/RJ).
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Enunciados da Fazenda Pública
ENUNCIADO 09 – Nas comarcas onde não houver Juizado Especial da
Fazenda Pública ou juizados adjuntos instalados, as ações serão propostas
perante as varas comuns que detêm competência para processar os
feitos de interesse da Fazenda Pública ou perante aquelas designadas
pelo Tribunal de Justiça, observando-se o procedimento previsto na Lei
12.153/09 (XXXII Encontro – Armação de Búzios/RJ).
ENUNCIADO 10 – É admitido no Juizado da Fazenda Pública o julgamento
em lote/lista, quando a matéria for exclusivamente de direito e repetitivo
(XXXII Encontro – Armação de Búzios/RJ).
ENUNCIADO 11 – As causas de maior complexidade probatória, por
imporem dificuldades para assegurar o contraditório e a ampla defesa,
afastam a competência do Juizado da Fazenda Pública (XXXII Encontro –
Armação de Búzios/RJ).
Revista do CEJ - n. 5, p. 273-299 - nov. 2015
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