Revista do CEJ 5 Centro de Estudos Judiciários Tribunal de Justiça de Pernambuco ISSN 1983-8662 Revista do CEJ 5 Centro de Estudos Judiciários Tribunal de Justiça de Pernambuco Novembro de 2015 Av. Dantas Barreto, 191 - Salas 112/114 - Santo Antônio Recife, PE - CEP 50.010-919. www.tjpe.jus.br/cej Ficha técnica Título: Revista do CEJ - Centro de Estudos Judiciários Editora: Tribunal de Justiça de Pernambuco Impressão: Imprima Soluções Gráficas N. de edição: 5 5ª edição: 600 exemplares ISSN: 1983-8662 Revista do CEJ - Centro de Estudos Judiciários. Tribunal de Justiça de Pernambuco. (Ano 1, n. 1, jun. 2008) – Recife: O Tribunal, 2015. N. 5. nov. 2015 299 p. Irregular ISSN 1983-8662 1. Direito - Periódico 2. Centro de Estudos Judiciários. I. Título. CDD 341.4197 Sumário Apresentação Jones Figueirêdo Alves 11 191º aniversário do TJPE – Ciclo de palestras Abertura do ciclo de palestras Jovaldo Nunes Gomes 15 Jurisprudência do STJ e o meio ambiente Antônio Herman Benjamin 19 Discurso de agradecimento aos palestrantes Jones Figueirêdo Alves 29 Novo Código de Processo Civil Luiz Fux 31 Doutrina Demandas de massa e o problema da admissibilidade do IRDR no CPC-2015 Alexandre Freire Pimentel e Bruna Liana Amorim de Andrade 49 Responsabilidade civil contratual e o dano moral no ordenamento jurídico brasileiro: sua aplicabilidade nos tribunais Artur de Lima Barretto Lins 71 Perda ou não do objeto do agravo de instrumento face à prolação da sentença no processo originário Carlos Rogério de Souza Silva 85 A União Europeia e o Brasil: recursos hídricos na política e legislação ambiental Christiano German e Alberto Nogueira Virgínio 95 As “histórias patrocinadas do facebook” – os limites da utilização de dados pessoais no marketing on-line Demócrito Reinaldo Filho 121 A força dos precedentes Frederico Ricardo de Almeida Neve 131 O ativismo judicial do Supremo Tribunal Federal do Brasil nas questões envolvendo segurança pública. Possibilidade de atuação judicial em função executiva Gleydson Lima 135 Negócios jurídicos existenciais. Os contratos gestacionais e as diretivas antecipadas de vontade Jones Figueirêdo Alves 165 Responsabilidade civil do provedor de conteúdo por lesão a direito da personalidade na Internet Rafael Cavalcanti Lemos 181 O jurista e filósofo Clóvis Beviláqua Rogério Medeiros Garcia de Lima 207 Direito da personalidade – natureza jurídica, delimitação do objeto e relações com o Direito Constitucional Silvio Romero Beltrão 225 O assistente técnico em psicologia nos processos judiciais - o que todos os operadores da lei precisam saber Tania Guerra Cardoso 247 De lege ferenda Projeto de Lei do Senado n. 658/2015, de 30.09.2015 Altera o Código Penal para dar novo tratamento a marcos temporais que causam a prescrição da pretensão executória e a interrupção da prescrição da 263 pretensão punitiva. Prescrição criminal e impunidade Luiz Edson Fachin 267 Juizados Especiais Enunciados aprovados no Fórum Nacional de Juizados Especiais – FONAJE Enunciados Cíveis Enunciados Criminais Enunciados da Fazenda Pública 273 287 298 Apresentação O Centro de Estudos Judiciários lança, agora, o quinto volume da Revista do CEJ, trazendo temas de alta relevância na atualidade para todos que lidam com o Direito. Em especial, nesta edição, foram incluídas as conferências proferidas no Ciclo de Palestras realizado nas festividades do 191º aniversário do Tribunal de Justiça de Pernambuco, que teve como convidados ilustres, entre outros, os Ministros Luiz Fux e Antônio Herman Benjamin. Mantendo o propósito de disseminar o conhecimento e a otimização da prestação jurisdicional visado nos volumes anteriores, além das palestras dos ministros, foram selecionados trabalhos de grande interesse para os estudiosos do Direito e para o público em geral, tratando de variados temas, como o Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas, trazido no Código de Processo Civil de 2015; o dano moral decorrente do descumprimento contratual; os recursos hídricos no Brasil e União Europeia; a utilização de dados pessoais no marketing online; o fortalecimento do Direito Jurisprudencial com vistas a garantir a previsibilidade e segurança das decisões judiciais; a problemática da decisão final no processo originário acarretar ou não a perda superveniente do objeto do agravo de instrumento; contratos gestacionais e reprodução assistida; traços biográficos do jurista e filósofo Clóvis Beviláqua; o Direito da personalidade; e, por fim, a questão do psicólogo como assistente técnico no judiciário, sobretudo no que trata da alienação parental. Também foram incluídos os capítulos De lege ferenda, que traz o Projeto de Lei do Senado n. 658/2015, de 30.09.2015 e artigo que trata do assunto, do Ministro Luiz Edson Fachin e “Juizados Especiais”, com enunciados cíveis, criminais e da fazenda pública aprovados no Fórum Nacional de Juizados Especiais – FONAJE. Agradecimentos especiais aos palestrantes e autores dos artigos, cujos trabalhos engrandecem a ciência do Direito e promovem Revista do CEJ - n. 5, p. 11-12 - nov. 2015 11 Apresentação o aprendizado de todos que se interessam pelos assuntos jurídicos; ao Desembargador Jovaldo Nunes Gomes, que ao realizar o ciclo de palestras, na sua gestão, nos brindou com conferências que enobrecem a edição desta revista; ao Presidente do Tribunal de Justiça de Pernambuco, Desembargador Frederico Ricardo de Almeida Neves, pelo apoio dispensado ao Centro de Estudos Judiciários e pela contribuição enriquecedora com o artigo de sua autoria, bem como à equipe do CEJ, pelo esmero no desempenho das tarefas para a publicação da presente obra. Des. Jones Figueirêdo Alves Diretor do CEJ 12 Revista do CEJ - n. 5, p. 11-12 - nov. 2015 191º aniversário do TJPE – Ciclo de palestras Abertura do ciclo de palestras1 Jovaldo Nunes Gomes2 Boa tarde a todos e a todas! Excelentíssimo Senhor Ministro Francisco Falcão do Superior Tribunal de Justiça e Corregedor Nacional do Conselho Nacional de Justiça. Excelentíssimos Senhores Ministros Herman Benjamin e Paulo de Tarso Sanseverino do Superior Tribunal de Justiça. Querida colega Fátima Bezerra, Presidente do Tribunal de Justiça do Estado da Paraíba. Querido amigo Ivanildo Andrade, Presidente do Tribunal Regional do Trabalho. Decano da Casa, Jones Figueirêdo. Meus Senhores e Minhas Senhoras. Há cerca de três ou quatro meses, em conversa com o Ministro Falcão, disse-lhe que 13 de agosto seria o aniversário do Tribunal de Justiça de Pernambuco, que amanhã completará 191 anos de existência. O Ministro, como sempre, prestigiou as solenidades do Tribunal de Justiça de Pernambuco, quer quando integrante do Tribunal Regional Federal, e agora, principalmente, como integrante do Superior Tribunal de Justiça e Corregedor Nacional de Justiça. Ele, na oportunidade, disse que queria participar destas solenidades, não apenas com a sua presença física, mas também trazendo alguns colegas dos tribunais superiores. Hoje, nós temos aqui a alegria de, na fase inicial das homenagens dos 191 anos do Tribunal de Justiça, contarmos com a presença de cinco Ministros do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça. Isso, Ministro Falcão, para nós é uma demonstração do seu prestígio e do apreço e admiração que Vossa Excelência tem pelo Tribunal de Pernambuco. Eu quero, em nome de Vossa Excelência, agradecer aos Ministros Herman Benjamin, Paulo de Tarso e Og Fernandes. E isso, repito, é uma demonstração não só de Pernambuco, mas do Nordeste, que parte dele está aqui representada pela nossa queridíssima Paraíba, na pessoa 1 Palestra proferida em 12.08.2013, na solenidade comemorativa do 191º aniversário do TJPE. 2 Desembargador do Tribunal de Justiça de Pernambuco. Integrante da 5ª Câmara Cível, do 1º Grupo de Câmaras Cíveis e da Corte Especial. Presidente do TJPE no biênio 2012/2014. Revista do CEJ - n. 5, p. 15-17 - nov. 2015 15 Abertura do ciclo de palestras da Desembargadora Presidenta Fátima Bezerra e do nosso querido amigo Herman. Eu quero, em nome da Mesa Diretora do Tribunal de Justiça, composta por mim, pelo Desembargador Fernando Eduardo Ferreira e pelo Desembargador Frederico Neves, agradecer a presença de todos. Sei que daqui a pouco seremos brindados com a palestra do Ministro Herman Benjamin, que também saiu dos seus afazeres, tem compromisso e daqui a instantes viajará para Brasília. Ministro, eu quero, de público, agradecer a presença de Vossa Excelência, o esforço que fez para estar aqui presente entre nós, assim como o Ministro Paulo de Tarso, e dizer que Pernambuco está agradecido a todos, com a presença dos queridos desembargadores de hoje e de ontem, como costuma dizer o Desembargador decano, Jones Figueirêdo. E dizer também que nós estamos de parabéns, o Tribunal de Pernambuco está de parabéns nesses 191 anos de existência. Como eu já afirmei no vídeo a que acabamos de assistir, acho que o sentimento de todos nós que fazemos o Poder Judiciário é a angústia de ver uma prestação jurisdicional tardia. Isso aflige, Ministro Falcão, a todos nós, a Vossa Excelência, às Cortes Superiores, porque, como costumo dizer, e vou repetir aqui, todos nós, no fim do mês, pouco ou muito, temos o privilégio de ir ao supermercado fazer a nossa feira, pagar a prestação do nosso carro, da nossa casa. Muitos não têm esse privilégio e, ainda, dependem de uma decisão do Poder Judiciário, quer na Justiça do Trabalho, Doutor Valdir Carvalho, quer na Justiça federal ou estadual. Eu não posso, Ministro Falcão, Ministro Herman, Ministro Paulo de Tarso, conceber que o Judiciário demore quatro, cinco, seis anos para ultimar uma prestação jurisdicional a quem tanto precisa. Eu tenho externado isso, angustia-me, acho que angustia a todos nós que fazemos parte do Poder Judiciário. Esses 191 anos de existência do Poder Judiciário de Pernambuco, que tem dado a sua contribuição, servem para despertar ainda mais esse sentimento de angústia, para que nós todos que, de forma direta ou indireta, fazemos o Poder Judiciário Nacional, possamos encurtar esse prazo da prestação jurisdicional. É com essa intenção que nós celebramos os 191 anos do Tribunal de Justiça de Pernambuco. Tenho contado com o apoio irrestrito da Casa, dos colegas magistrados e dos servidores. Todos nós estamos empenhados em 16 Revista do CEJ - n. 5, p. 15-17 - nov. 2015 Jovaldo Nunes Gomes encurtar esse espaço de tempo entre o início e o fim de uma demanda judicial, principalmente para aqueles que mais precisam. Essa celebração serve como uma reflexão para que possamos fazer alguma coisa, mas fazer alguma coisa a mais do que já fazemos. Tenho certeza que essa angústia, que não é só minha, mas de todos, irá nos fazer refletir. Mais uma vez, quero agradecer a presença dos eminentes ministros aqui presentes, dos colegas, Alderita, que veio também de Brasília, pois está convocada pelo Superior Tribunal de Justiça, mas compõe esta Casa; aos colegas que estão aqui presentes, agradecer a todos. Dando como aberto este ciclo de palestras que teremos hoje à tarde, aqui no Tribunal de Justiça, quero passar a presidência dos trabalhos ao Desembargador Jones Figueirêdo, que presidirá a Mesa, na qual palestrará o Ministro paraibano Herman Benjamin, de Catolé do Rocha. Obrigado a todos pela presença. Revista do CEJ - n. 5, p. 15-17 - nov. 2015 17 Jurisprudência do STJ e o meio ambiente Antônio Herman Benjamin3 Queria inicialmente dizer, meu caro Desembargador Jones Figueirêdo, que é sempre um prazer retornar a este Tribunal e é o oposto do que disse o nosso Presidente Jovaldo, de que este Tribunal estaria honrado com a nossa presença. Nós é que nos sentimos profundamente honrados de estar aqui, e eu, que sou paraibano, e já estive aqui outras tantas vezes antes de ingressar no Superior Tribunal de Justiça. Queria agradecer ao Presidente a iniciativa, e ao conspirador chefe, que já foi aqui identificado de público, que é meu colega Francisco Falcão, que nos pega de surpresa nas férias com uma intimação, que aceitei de muito gosto, e meu colega Paulo Sanseverino idem, para estarmos aqui comemorando este um ano a mais, é quase uma extensão, dos 190 anos de celebração desta Corte. Peço permissão a Sua Excelência, o Presidente, e aos meus colegas Francisco Falcão e Paulo Sanseverino, para saudar a todos, na figura dessa pessoa extraordinária, o Ministro Demócrito Reinaldo, e dizer, Ministro, que Vossa Excelência faz muita falta no nosso Tribunal, pela seriedade da sua vida pessoal e como juiz, sobretudo, pela qualidade dos seus votos, que são exemplares, de uma clareza extraordinária. Então, deixo aqui um registro de um aprendiz que continua aprendendo com seus votos e com isso tenho certeza que a vinculação entre nós todos está muito viva. Por último, nesta apresentação, meu caro Desembargador Jones, dizer que aqueles que são mais atentos às notas biográficas e à geografia, podem imaginar que há aqui nesta Mesa um complô da Paraíba, ou seja, no posicionamento das pessoas que integram esta Mesa, como se a Paraíba quisesse conquistar o Estado de Pernambuco ou o Judiciário do Estado de Pernambuco. Ele próprio, eu, a Desembargadora Fátima Bezerra, e um terreno disputado que é o Ministro Francisco Falcão que, para utilizar a expressão dos mais antigos, seria uma espécie de terra 3 Ministro do STJ desde 06.09.2006. Presidente da 1ª Seção e integrante da 2ª Turma, da Corte Especial e do Conselho de Administração. Diretor da Revista do STJ. Ministro do Tribunal Superior Eleitoral. Revista do CEJ - n. 5, p. 19-27 - nov. 2015 19 Jurisprudência do STJ e o meio ambiente incógnita, em que ora nós achamos que ele é paraibano e aí, logo em seguida, ele nos trai com declarações de amor vigorosas a Pernambuco e à Justiça pernambucana. A rigor, ele é de todos, mas quero dizer que está sentado à Mesa também, o Ministro Paulo Sanseverino, que é gaúcho, e de certa maneira quebra este paradigma paraibano, mas evidente que os mais estudiosos da história bem sabem da antiquíssima aliança entre a Paraíba e o Rio Grande do Sul. Então, nós paraibanos, estamos hoje aqui fazendo a festa dos 191 anos do Tribunal de Justiça de Pernambuco. Quero por último, e disse que era o último ponto da introdução, mas o faço agora, dizer que é muito bom festejar algo que nós entendemos velho com temas e com perspectivas que mostram a atualidade e o desafio da atualidade permanente daquilo que nós imaginávamos velho. Hoje, como disse o Presidente, nós estaremos debatendo três temas que não integram a modernidade, mas integram, a rigor, a pós-modernidade dos desafios que estão postos para a jurisdição brasileira. De um lado, vamos chamar assim, a nova responsabilidade civil e em terras de civilistas, está aqui entre tantos o Desembargador Jones Figueirêdo, mas, sobretudo, o maior especialista que nós temos no Superior Tribunal de Justiça nesta matéria da responsabilidade civil, que é o Ministro Paulo Sanseverino. Todos nós, e eu, em particular, não é que apreciamos os julgados do Ministro Paulo Sanseverino, nós bebemos nesta fonte permanente de ideias modernas, que trazem um compromisso muito sério com a justiça social. À tarde, ao final do expediente, o Ministro Luiz Fux vai aprofundar a questão do acesso à Justiça no plano da nova processualística. Mas eu, no tema específico do meio ambiente, que é o que me coube, gostaria de antecipar que sempre dizem: “você é um apaixonado pelo meio ambiente”, como se primeiro eu fosse o único, no Superior Tribunal de Justiça, e segundo, se eu fosse o maior, mas o maior apaixonado pelo tema ambiental é o Ministro Francisco Falcão. Aliás, algo que vem do pai dele, sobre quem eu já escrevi um artigo, comentando um dos seus acórdãos monumentais, que salvou a costa de João Pessoa. O mar pode ser o mesmo, mas a ocupação urbanística não é a mesma entre João Pessoa e Recife, e o que nos salvou dos espigões de Boa Viagem foi exatamente um acórdão magistral do ministro, do outro Falcão, que confirmou um dispositivo da Carta Constitucional da Paraíba, impedindo os espigões na primeira faixa da praia e fazendo escalonamento desses edifícios. Então, 20 Revista do CEJ - n. 5, p. 19-27 - nov. 2015 Antônio Herman Benjamin eu me sinto muito alegre, mas, tomando o espaço de alguém que deveria estar efetivamente falando sobre a questão ambiental aqui hoje. Já diretamente no meu tema, eu quero, e cumprindo os dispositivos, meu caro Ministro Paulo Sanseverino, antes que eu seja cobrado, do Código de Defesa do Consumidor, dizer e alertar sobre aquilo que eu não vou sequer mencionar na tarde de hoje. Eu não vou falar da matéria penal, porque teria aqui a minha querida Alderita Ramos e o meu adorado amigo Og Fernandes que podem perfeitamente dar uma aula em profundidade sobre essa matéria. Não vou cuidar de patrimônio cultural em que o Superior Tribunal de Justiça tem acórdãos magníficos sobre patrimônio histórico. Não vou tratar de ação civil pública, minha querida Margarida, que eu sei que é um tema que a atrai, mas apenas alguma palavra sobre a inversão do ônus da prova já que esta é uma matéria que interessa não apenas ao meio ambiente, mas também a todas as disciplinas jurídicas e, sobretudo, ao Direito do Consumidor. Seria interessante, também, ainda em termos de alerta, lembrar que essa expressão “diálogo das fontes”, que foi introduzida no Brasil pela Professora Cláudia Lima Marques, em homenagem ao seu mestre Erik Gein (que está perto dos seus noventa anos ou oitenta e alguma coisa), no Direito Ambiental tem maior importância do que no Direito do Consumidor porque nós não temos uma única lei, como é o Código de Defesa do Consumidor, que representa a Bíblia e todo o resto vem por agregação. Nós temos, no Direito Ambiental, uma série de normas, sem falar na Constituição Federal, a criar enormes dificuldades para o juiz. Daí o desafio do chamado “diálogo das fontes”, que é exatamente o juiz trabalhar, ao mesmo tempo, com a norma constitucional, a norma ambiental stricto sensu, a norma tributária, e às vezes, o novo Código Civil que, aliás, tem dispositivos que não vou tratar aqui, mais revolucionários do que o próprio texto da legislação ambiental, enfim, e até mesmo a Lei da Improbidade Administrativa, como os eminentes desembargadores bem o sabem. Eu começo uma rápida intervenção, que o programa chamou de palestra, estritamente descritiva, para trazer uma notícia acerca dos precedentes mais recentes do Superior Tribunal de Justiça, que são centenas em matéria ambiental, e isto não é mérito do Superior Tribunal de Justiça, é mérito da Justiça brasileira, porque esses processos não começam no Superior Tribunal de Justiça e sim nos Estados, nas Varas Revista do CEJ - n. 5, p. 19-27 - nov. 2015 21 Jurisprudência do STJ e o meio ambiente estaduais e federais e depois nos Tribunais de Justiça e Tribunais Regionais. Nesta brevíssima análise panorâmica da jurisprudência brasileira, eu começo pelo começo. Qual a natureza jurídica das obrigações ambientais? Esse é um tema fundamental, porque vai resolver uma série de problemas sobre a aplicação da lei. Como, por exemplo, a aplicação imediata da lei, ou “uma possível retroatividade da lei” que seria sim, retroatividade da lei, se não fosse uma resposta sobre esta pergunta que considerasse essas obrigações como de natureza propter rem. O Superior Tribunal de Justiça, em dezenas de precedentes, pacificou a matéria no sentido de que as obrigações ambientais de qualquer natureza, sejam aquelas no campo da poluição industrial, sejam aquelas oriundas do Código Florestal, têm natureza propter rem, ou seja, aderem ao título, aderem ao bem, e o fato de o desmatamento ter ocorrido há quinze anos, sob a orientação do proprietário anterior, é desinfluente no que tange à aplicação da legislação vigente, tal qual uma hipoteca que acompanha o bem. Passando agora diretamente ao dano ambiental, tema dos mais importantes, eu trago alguns precedentes, que dizem o óbvio, ou seja, repetem a lei, que a responsabilidade civil pelo dano ambiental é objetiva, nos termos do art. 14, da Lei da Política Nacional do Meio Ambiente. Por que eu trago os precedentes, se a lei já diz isso? Porque no Brasil, às vezes, a lei afirma categoricamente algo e nós juízes, ou alguns de nós, negamos o que está dito na lei, inventamos uma vírgula, inventamos uma interpretação cumulativa para um “ou” que é claramente alternativo, sem fazer uma análise mais aprofundada, e eu diria mais socialmente adequada dos objetivos daquela norma. Aqui, poderia perfeitamente o Superior Tribunal de Justiça ou os Tribunais de Justiça e Tribunais Regionais Federais terem dito: não, a lei usa essa nomenclatura independentemente da existência de culpa, mas não é bem assim e, no entanto, a Justiça brasileira já pacificou esse entendimento fazendo uma leitura estrita, literal, do art. 14, § 1º, da Lei 6.938 de 1981. Agora, no tema da causalidade, o Direito Ambiental, meu caro Desembargador e Professor Jones, em termos de nexo de causalidade, afasta-se do Código Civil, porque essa Lei da Política Nacional do Meio Ambiente, no seu art. 3º, quando define poluidor, e poluidor é qualquer degradador, inclusive o desmatador, faz referência à figura do poluidor 22 Revista do CEJ - n. 5, p. 19-27 - nov. 2015 Antônio Herman Benjamin indireto: “todo aquele que direta ou indiretamente degrada o meio ambiente”, e isto faz com que a aplicação dessa norma amplie o nexo de causalidade para além daquela sistemática tradicional do Código Civil. Quem sou eu, numa Mesa onde há civilistas, para tecer maiores comentários a esse respeito? E aí o Superior Tribunal de Justiça, eu cito precedente da minha relatoria, mas há outros, diz que, na apuração do nexo de causalidade, no dano ambiental, equiparam-se quem faz, quem não faz como deveria fazer, seriam as hipóteses típicas de omissão, quem deixa de fazer, quem não se importa que façam, quem financia para que façam e quem se beneficia enquanto outros fazem. Para cada uma dessas hipóteses, há precedentes concretos do Superior Tribunal de Justiça nesta matéria. A aplicação do princípio da precaução que, como a própria expressão está dizendo, é um princípio anterior ao dano, mas o Superior Tribunal de Justiça, numa série de precedentes, inclusive precedente do Ministro Francisco Falcão, vem adotando o princípio da precaução numa perspectiva mais ampla. Por exemplo, no que tange ao reconhecimento do chamado periculum in mora reverso, normalmente nas cautelares o pedido do empreendedor é a suspensão de segurança. Esta obra está parada e há um perigo patrimonial claríssimo para o meu empreendimento, para o meu bolso, e poucas vezes, mas cada vez mais, os juízes param para perguntar: mas não há um periculum in mora reverso? Este é um país em que o Poder Judiciário, nós juízes, temos dificuldades para mandar derrubar puxadinho em favela, em área com risco à saúde pública, quanto mais depois do trânsito em julgado de uma ação mandar derrubar um edifício que tem noventa andares. Alguém conhece algum precedente nesse sentido? Eu não conheço. Sem falar que, enquanto que o aspecto patrimonial é de máxima fungibilidade, o aspecto da saúde pública, urbanística e ambiental é de mínima fungibilidade. Eu não posso trocar o meio ambiente, a saúde das pessoas por uma prestação pecuniária. Então, aí está um precedente da relatoria do Ministro Ari Pagendler, quando era Presidente do Superior Tribunal de Justiça, que cuida exatamente desta questão: em matéria de meio ambiente vigora o princípio da precaução que, em situações como a dos autos, cujo efeito da decisão impugnada é de autorizar a continuidade de obras de empreendimento imobiliário em área de proteção ambiental, Revista do CEJ - n. 5, p. 19-27 - nov. 2015 23 Jurisprudência do STJ e o meio ambiente recomendo a paralisação das obras, porque os danos por elas causados podem ser irreversíveis, acaso a demanda seja ao final julgada procedente. Inversão e ônus dinâmico da prova: aqui, eu trago o leading case do Ministro Francisco Falcão, que é bem citado nos textos doutrinários. Como lembram os eminentes desembargadores e participantes deste colóquio, por vício redibitório dos redatores do Código de Defesa do Consumidor, entre os quais eu, a inversão do ônus da prova foi incluída no artigo 6º, que cuida dos direitos básicos do consumidor e não na parte processual. O resultado disso, dessa topografia insuficiente ou, se quiserem, equivocada, é que começou uma corrente doutrinária e jurisprudencial a dizer que, como esse dispositivo estava no campo do direito material, topograficamente falando, não se aplicava a todo o resto do universo, dos interesses difusos e coletivos, ou seja, a parte processual do Código de Defesa do Consumidor, que por conta de um dispositivo lá inserido, se aplica a todo universo da Lei n. 7.347 de 1985. Nesse precedente, o Relator Ministro Francisco Falcão diz exatamente o oposto, e a partir daí sucedem-se outros precedentes afirmando que: é irrelevante a topografia do dispositivo em questão. O que importa é sua natureza jurídica e, se a sua natureza jurídica é processual, ele está ligado por uma espécie de cordão umbilical ao título processual do Código de Defesa do Consumidor. Ainda sobre o ônus da prova, um precedente da Ministra Eliana Calmon, agora já não mais analisando apenas este conflito de topografia entre dispositivos no microssistema do Código de Defesa do Consumidor, mas já dizendo de forma peremptória que se aplica o que é possível à inversão do ônus da prova no campo ambiental. A prescrição: esse é um tema absolutamente fascinante e, aqui, eu deixo a provocação para que, no futuro, no Tribunal de Justiça de Pernambuco, em outro evento, possamos discutir as novas tendências da prescrição. Um dos microssistemas mais interessantes para a análise da prescrição é exatamente o direito ambiental. Eu disse que não faria nenhuma análise dogmática, mas aqui eu não consigo. O que é a prescrição? Não é só aquela ideia de esquecimento, porque tem coisas que não queremos esquecer e não devemos esquecer, mas deixemos esse aspecto ao lado, a prescrição é, antes de qualquer coisa, uma sanção 24 Revista do CEJ - n. 5, p. 19-27 - nov. 2015 Antônio Herman Benjamin indireta do ordenamento, aquele que se queda tranquilo quando teve os seus direitos ofendidos. Se a Constituição Federal de 1988 diz que o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é bem de uso comum do povo e que são tuteladas as presentes e futuras gerações, eu estou dizendo que é titular desse direito também as gerações futuras. Ora, como eu posso punir as gerações futuras por não terem exercitado seu direito a tempo ou dentro daquele período estabelecido pelo Código Civil e pela civilística tradicional? Muitas vezes o dano ambiental é continuado ou seus efeitos são continuados. Pensem num lixão. Significa dizer que o dano está a cada instante, a cada momento se renovando, e se está se renovando, é o leading case do Ministro João Otávio de Noronha, o caso do polo carbonífero de Santa Catarina, dano ambiental gigantesco, crateras abertas, lençol freático contaminado, população diretamente atingida, mas passaram quarenta anos, foram quarenta anos de exploração, e vem o Ministro João Otávio de Noronha e a nossa Segunda Turma diz: “não, aqui este dano se renova a cada instante e nós não podemos falar de prescrição”. No que se refere à flora, há vários precedentes nesse sentido, mas eu trago um dos mais recentes do Ministro Mauro Campos, deixando muito claro que, no Código Florestal anterior, como no Código Florestal atual, este microssistema se aplica tanto às propriedades rurais como às propriedades urbanas. Aliás, é claríssimo o Código Florestal atual quando diz, no que tange as áreas de preservação permanente, que estas normas se aplicam inclusive no território urbano. É um tema que certamente já deve ter frequentado aqui o Tribunal de Justiça e que voltará na perspectiva do novo Código Florestal. Só que o novo Código Florestal tem norma mais clara do que o Código Florestal anterior. Ainda na flora, a questão da reserva legal e da averbação. O Código Florestal atual deixa transparecer que a averbação da reserva legal foi extinta. A rigor, é um regime intermediário, isto certamente em breve, se é que já não está aqui no Tribunal de Justiça e na Corregedoria. E qual é esse regime misto? Mas, para entender esse regime misto, nós teremos de saber a sua razão. Uma das explicações para a falência do Código Florestal de 1965, no que se refere à averbação da reserva legal, é que não é barato averbar a reserva legal, e as pessoas tinham dificuldade Revista do CEJ - n. 5, p. 19-27 - nov. 2015 25 Jurisprudência do STJ e o meio ambiente em fazer essa averbação. E o que fez o novo Código? Não é necessária a averbação, na matrícula, da reserva legal, basta uma espécie de averbação administrativa no âmbito do chamado Cadastro Rural Ambiental. Mas, não dispensou a averbação no momento da prática de algum ato que afete o domínio, porque, aí sim, será necessária a averbação. Então, eu posso passar cinquenta anos sem averbar a reserva legal, mas no momento em que for alienar o meu imóvel, eu vou ter que averbá-la, ou então, no momento em que eu for averbar uma compensação ambiental, eu tenho que dar conhecimento a terceiros. Do contrário, terceiros não terão a possibilidade de conhecer, indo ao Cartório, quais são os ônus que incidem sobre aquela propriedade, sobre aquele imóvel. Por enquanto, considerando o tempo pouco que tenho, o máximo de aprofundamento que eu poderia exercitar neste momento, é lembrar que o Código flexibilizou a averbação da reserva legal; dispensou como obrigatoriedade imediata e, mais do que tudo, para esse argumento de que permanece o dispositivo que consta da Lei de Registros Públicos que cuida da averbação, não foi modificado. Nós sabemos da importância da Lei de Registros Públicos, mas nós temos que fazer o diálogo das fontes aqui e buscar uma compatibilização entre a Lei de Registros Públicos, que determina a averbação sempre, e esta filosofia do Código Florestal que diz que se deve averbar administrativamente, no momento de prática de algum ato que precise de alteração na matrícula, buscando o Cartório imobiliário, aí sim, proceda à necessária averbação. Sobre o nosso papel de Juiz, acho que o primeiro debate é se nós juízes somos, realmente, importantes no âmbito ambiental. Esta é uma questão que o Ministro Falcão e eu, muitas vezes, dividimos apreensões acerca desse tema. Não há no Direito nenhuma área que mais precise do juiz do que a ambiental. Vão dizer: é a proteção da saúde humana nos termos tradicionais do Código Civil ou do Código Penal. Eu pergunto: o que é mais importante? Ou, melhor dizendo, no plano lógico, qual é a precedência? E aí a importância se equipara, porque não dá para proteger um sem proteger o outro. É proteger apenas a vida humana ou é proteger a vida humana a partir dos fundamentos que a asseguram, numa perspectiva coletiva e numa perspectiva até planetária? Então, hoje, nós juízes somos chamados a proteger já não mais apenas a vida humana, mas a vida humana na perspectiva dos fundamentos que a permitem. Às vezes, a permitem de uma maneira 26 Revista do CEJ - n. 5, p. 19-27 - nov. 2015 Antônio Herman Benjamin direta, como a contaminação por mercúrio ou por metais pesados, de um manancial onde a população tira o seu abastecimento, inclusive nas cidades; às vezes de uma maneira indireta, ou seja, naquilo que tem a ver com a paisagem e com outros atributos daqueles povos que se têm por civilizados. Acredito que o Brasil hoje, a partir da Constituição de 1988, civilizado é. Eu acredito que o nosso país é civilizado. Agradeço muitíssimo o convite e atenção de todos. Muito obrigado. Revista do CEJ - n. 5, p. 19-27 - nov. 2015 27 Discurso de agradecimento aos palestrantes Jones Figueirêdo Alves4 Eminente Presidente, eminentes Desembargadores que integram esta Corte, Desembargadores eméritos, referindo-me aos Desembargadores que já integraram esta Corte, Meus Senhores, Minhas Senhoras. O nosso Ministro Herman Benjamin fez ao meio dia uma palestra em vídeoconferência participando de um evento na Alemanha e, por mais de meia hora, na sala de vídeoconferência deste Tribunal, interagiu com ambientalistas, juristas europeus. Eu posso dizer que essa palestra de Vossa Excelência foi melhor porque Vossa Excelência se supera a cada vez, sempre será a melhor a nova palestra. Para sintetizar a fala do nosso ministro, eu gostaria de destacar quando Sua Excelência se reportou, com precisão de estilete, que a jurisprudência deve sublinhar o ditado da lei. Essa jurisprudência que o Superior Tribunal de Justiça vem fazendo no arrimo da legislação do meio ambiente, termo da Declaração de Estocolmo ou a própria Lei de Política do Meio Ambiente, a Lei 6.938/81, em verdade está plasmando o Código Verde para além do Código Civil. Mas, o importante não fica somente nisso, é que se a jurisprudência é o ditado da lei, Vossa Excelência não quis tratar da matéria penal, mas aqui em homenagem a Ministra Alderita Ramos e ao Ministro Og, lembrar que, no último dia 6 deste mês, o Supremo Tribunal Federal, em uma decisão paradigmática no Recurso Extraordinário n. 554881, admitiu a abertura de processo criminal contra a pessoa jurídica independentemente de estar tramitando ação penal contra as pessoas físicas, dando uma construção nova, no voto da Ministra Rosa Weber, para a proteção de um desenvolvimento sustentável. Quero crer, eminentes colegas, seleto auditório, que a fala do nosso Ministro Herman traz consigo uma grande exortação, não apenas 4 Desembargador decano do Tribunal de Justiça de Pernambuco. Membro da 4ª Câmara Cível, Presidente da Comissão de Organização Judiciária e Regimento Interno do TJPE - COJURI e Diretor do Centro de Estudos Judiciários do TJPE. Revista do CEJ - n. 5, p. 29-30 - nov. 2015 29 Discurso de agradecimento aos palestrantes de um compromisso jurídico, mas de um compromisso social de toda comunidade, em prol de que nós possamos trabalhar com a jurisdição voltada à proteção do meio ambiente. De forma que, com esta sua fala, nós nos sentimos muito mais comprometidos porque a jurisdição vem dizendo com exatidão que a legislação ambiental ou a função socioambiental vem sendo trabalhada em desempenho de uma sociedade de forma ecologicamente mais equilibrada. Eu gostaria de, em nome no nosso Presidente do Tribunal de Justiça, Desembargador Jovaldo, em nome de todos os meus eminentes pares e deste público que nos honra prestigiando a sua palestra, agradecer, de forma muito expandida, a contribuição relevante que Vossa Excelência vem dando como doutrinador, como magistrado, como ministro do Superior Tribunal de Justiça, mas, sobretudo como o jurista comprometido com essa nova realidade brasileira para que estejamos sempre voltados a coibir os danos ambientais. Muito obrigado. 30 Revista do CEJ - n. 5, p. 29-30 - nov. 2015 Novo Código de Processo Civil Luiz Fux5 Gostaria, em primeiro lugar, de saudar todos os membros desta Mesa na pessoa do queridíssimo amigo Ministro Francisco Falcão, que me deu uma honra singular, levando-me a sua casa e pude, naquela oportunidade, conversar com o Ministro Djaci Falcão. E Seferis, quando recebeu o Prêmio Nobel de Literatura, disse que o tempo é sábio e sabe que não pode separar aquilo que é inseparável na vida, aqueles destinos e, hoje, eu ocupo a cadeira que foi a do Ministro Djaci Falcão, com muita honra, no Supremo Tribunal Federal. Além de saudar, aqui, a Mesa, na pessoa do Ministro Francisco Falcão, gostaria de saudar todos os meus colegas de sacerdócio, meus colegas de apostolado, porquanto eu sou juiz de carreira, desde o interior até a capital; na pessoa do meu querido amigo Ministro Demócrito Reinaldo, que não tive muito o prazer em convivermos, mas eu sou daqueles que ouvem com muita atenção o conselho dos anos e da experiência e me recordo que conversamos muitíssimo no limiar da sua saída e do meu ingresso, e sou grato até hoje por tudo quanto ouvi de Vossa Excelência. É em nome do Ministro Demócrito Reinaldo, que eu posso, então, cumprimentar todos os integrantes do Tribunal de Justiça. Recordo-me que, numa passagem de Shakespeare, ele afirmava, na peça sobre Júlio César, no discurso de Marco Antônio, que “o homem constrói o seu presente com o seu passado; constrói o seu futuro com o seu presente”. E esta imagem de hoje, aqui, deste Tribunal reunido, me faz exatamente empreender um mergulho no meu passado. Eu fui juiz de carreira e me recordo perfeitamente da vida dos meus companheiros, da luta da magistratura, que efetivamente é, sem dúvida alguma, o mais alto apostolado que um homem pode se dedicar nessa vida de Deus. De sorte que eu presto a todos a minha reverência exatamente pela função que exercem em prol da vida e da esperança dos cidadãos. 5 Ministro do STF. Integrante da 1ª Turma e da Comissão de Regimento. Presidente da Comissão de Juristas instituída pelo Senado Federal que elaborou o anteprojeto do novo Código de Processo Civil. Ex-Ministro do STJ. Revista do CEJ - n. 5, p. 31-45 - nov. 2015 31 Novo Código de Processo Civil Por outro lado, também, é essa a minha história de vida, fui do Ministério Público, não me identifiquei com a função e depois fiz concurso para a magistratura. E é exatamente pelo fato de ter vivido a magistratura desde muito cedo, que se torna extremamente honroso poder participar deste momento glorioso do Tribunal de Justiça de Pernambuco. São quase dois centenários de existência de uma escola que se projetou pelo Brasil e que está na gênese dos tribunais de justiça, a criação da escola jurídica de pilares extremamente profundos e inabaláveis. Eu sempre gostei de ouvir os antigos e acho que o valor da releitura é extraordinário, porque os currículos das faculdades – meus filhos fizeram faculdade muito jovens – deveriam ser invertidos. Os jovens deveriam aprender sociologia, antropologia, filosofia do Direito no final do curso para poder entender tudo aquilo que eles estudaram acerca do direito positivo. Tanto mais que hoje vivemos a era do pós-positivismo. Passamos do naturalismo, positivismo, agora, o pós-positivismo. E nessa releitura dos antigos, eu me recordo perfeitamente da obra de Carnelutti, Diritto e processo, onde ele afirma que nós juízes mantemos uma luta contra o tempo que é absolutamente invencível. A duração dos processos não depende exatamente de nós, magistrados, ela depende da matéria-prima que nós aplicamos, e a população não entende porque não sabe que nós, juízes, num sistema de tripartição de poderes, não podemos criar um processo que seja mais rápido que aquele que a lei estabelece. E também não desconhecemos que aqui e alhures de há muito se reclama em relação à morosidade judicial. O Professor Vincenzo Vigoriti, quando se iniciou na Itália o estudo sobre a efetividade do processo, se efetivamente o processo dava razão a quem tem, num prazo razoável, ele afirmava: “o binômio contemporâneo dos males do processo são o custo e a duração”. Com relação aos custos, o Brasil resolveu essa questão de maneira singular. A própria Constituição Federal estabelece que a justiça é gratuita de forma integral, inclusive em relação às custas extrajudiciais. O Superior Tribunal de Justiça tem jurisprudência no sentido de que se aplica inclusive àquelas despesas extrajudiciais e às pessoas jurídicas que passam por momentos difíceis, mas, realmente, a questão da duração é uma questão ainda tormentosa. 32 Revista do CEJ - n. 5, p. 31-45 - nov. 2015 Luiz Fux O Professor Mauro Cappelletti, que faleceu em 1999, na cidade de Verona, na Itália, lavrou um dos mais audaciosos projetos de acesso à Justiça, que foi o Projeto de Florença, juntamente com o Prêmio GLAAD, da Universidade de Stanford, ele detectou que havia uma série de barreiras de acesso à justiça e, dentre tantas barreiras, a de uma duração imoderada dos processos em todo o mundo. Nós temos, hoje, uma síntese disso, uma obra traduzida pela Professora Ellen Gracie, Ex-Ministra do Supremo Tribunal Federal. Na verdade, eu tive o prazer de ver ao vivo esse Projeto de Florença, na Universidade de Roma, onde o Professor Mauro Cappelletti sucedeu Calamandrei na cátedra, e são quatorze volumes de cinco mil páginas cada um, em papel de pergaminho, no qual constam todos os dados mais precisos que se podem imaginar sobre a demora da prestação jurisdicional em todo o mundo. Assim, por exemplo, pelo que eu me lembre, está lá no Projeto de Florença: na Itália, um processo demora quinhentos e sessenta e seis dias na primeira instância e setecentos e sessenta e nove dias na segunda instância; na Espanha, um processo não termina antes de cinco anos e tantos meses, muito embora ostente uma ley de enjuiciamiento civil, que é um ordenamento moderníssimo; na França e na Bélgica, antes de três anos, um processo não termina em primeiro grau. Então, não temos do que nos envergonhar, a menos que esse seja, digamos assim, um mal contemporâneo e universal, porque, mesmo nas famílias do sistema da common law, w quando não há conciliação, os processos também são muito demorados. A diferença é de que nós fazemos pesquisas em anos e eles fazem em semanas, mas, contando as semanas, vamos chegar exatamente ao mesmo quadro deletério que se retrata no sistema, digamos assim, romano-germânico, muito embora, hodiernamente, não se possa mais dizer que o Brasil ostenta um sistema genuinamente romano-germânico ou um sistema da civil law, w tamanha, hoje, a influência da common law, w através das class actions, através do precedente judicial e de uma realidade que hoje um jovem quando entra numa faculdade não pode deixar de reconhecer. Hoje, a jurisprudência dos tribunais é fonte formal do Direito, resolvem-se as questões à luz da jurisprudência, em caráter obrigatório. Os próprios juízes podem eventualmente julgar até improcedente uma Revista do CEJ - n. 5, p. 31-45 - nov. 2015 33 Novo Código de Processo Civil demanda, sem ouvir o réu, porque em nada vai prejudicá-lo, porque é improcedente o pedido, baseado na jurisprudência dos tribunais superiores. O juiz de primeiro grau pode negar seguimento ao recurso se ele for contrário à jurisprudência dos tribunais. Então, não há mais a menor dúvida sobre ser hoje a jurisprudência uma fonte formal do Direito. Mas essa questão da demora na prestação jurisdicional é uma questão universal. Sucede que, as constituições federais não podem se resumir em meras promessas e divagações acadêmicas, e a Emenda n. 45 trouxe como garantia do cidadão a duração razoável dos processos, através da inserção de um dispositivo no artigo 5º da Constituição Federal. Ora, nós somos juízes, nós não sabemos como conceituarmos duração razoável, mas, a contrario sensu, nós sabemos o que não é razoável. Recentemente, o Conselho Nacional de Justiça determinou que se procedesse a uma citação numa ação de usucapião, onde esse ato convocatório não se realizava há 30 anos. E mesmo hoje, se considerarmos que o término de uma demanda nos tribunais superiores leva um decênio, nós vamos concluir que isso efetivamente não é razoável. E foi exatamente sob essa exigência, esse reclamo da morosidade judicial, que gera um grau alarmante de insatisfação em relação a nós do Poder Judiciário, que não temos nada com isso, nós cumprimos as etapas estabelecidas na lei, é que o Governo brasileiro resolveu, em bom momento, promover a criação de um novo Código. O Código de 1973 é um ordenamento magnífico, mas não atende mais aos reclamos atuais da sociedade. Ninguém aguenta mais esperar a consumação de um século para que obtenha uma resposta judicial. Então, é preciso também que nós do Poder Judiciário não sejamos acusados de algo que não nos compete. Como é que os juízes podem prestar uma Justiça rápida diante de um quadro absolutamente inusitado, como, verbi gratia, ocorre hoje com um milhão de ações de poupadores em caderneta de poupança? Esse número se transmudará em um milhão de recursos. 34 Revista do CEJ - n. 5, p. 31-45 - nov. 2015 Luiz Fux Qual é o Tribunal do mundo que pode prestar uma Justiça num prazo razoável com esse número de demandas? Exatamente por isso que o governo brasileiro entendeu que nós tivemos um belíssimo Código de 39, praticamente o mesmo tempo decorrido até esse novo Código que se espera entrar em vigor no ano vindouro. 39 um Código, 73 outro Código, absorvendo inúmeros institutos jurídicos da Europa. Sempre costumo dizer que há coisas belíssimas na Itália, magníficas na Alemanha, mas que não servem no Brasil, porque o Brasil tem a sua cultura, tem as suas necessidades, tem a sua população, enfim, não é possível se aplicar cegamente uma lei que não atende à população. Há um estudo empírico de John Mill sobre Law and societyy – A lei e a sociedade, onde ele esclarece que o cidadão que não sabe os direitos que tem não pode exercer os seus direitos. É preciso aumentar o grau de conhecimento da população quanto ao instrumental jurídico colocado à sua disposição. Nós não podemos pensar em países diminutos, que têm uma cultura completamente diferente da nossa, aplicando institutos jurídicos que não têm a menor eficiência. Exatamente no afã de implementarmos essa promessa constitucional da duração razoável dos processos, o governo brasileiro criou uma comissão para elaborar um novo Código. E aqui, me permitam os Senhores, essa é a última palestra do dia, nós também precisamos nos desprender um pouco, e eu me recordo do Professor Barbosa Moreira, no auge da sua juventude acadêmica, onde ele dizia o seguinte: “Luís, quando você for fazer parte de uma comissão, você tenha muito cuidado, porque o camelo é um cavalo criado por uma comissão”. São tantas as opiniões, que o cavalo acabou saindo igual a um camelo. O camelo acabou saindo daquele jeito, sendo uma promessa de se fazer um cavalo. É claro que a comissão tinha que contar com a participação de toda a sociedade, de contar com a participação de especialistas de todas as gerações – da geração do Código de 39, da geração do Código de 73 e da geração futura desse novel Código que, se Deus ajudar, em 2014, ele entra em vigor. Eu falo se Deus ajudar, e olho para o meu companheiro de sacerdócio Frederico Neves, e verifico que a metodologia da Comissão foi a mais democrática possível. A sociedade brasileira falou e foi ouvida. Foram muitas contribuições, e Frederico é um dos autores dessas contribuições, Revista do CEJ - n. 5, p. 31-45 - nov. 2015 35 Novo Código de Processo Civil pela Associação dos Magistrados do Brasil. Nós recebemos, mais ou menos, duzentos e quarenta memoriais de vários segmentos jurídicos de Escolas Científicas do Direito, seiscentos mil e-mails e fizemos audiências públicas em todo o Brasil. Então, esse é um Código da nação brasileira, da sociedade brasileira, porque 80% das sugestões foram acolhidas. Evidentemente que, o projeto ingressando na Casa do Povo, na Câmara dos Deputados, para sair é muito difícil, mas está saindo agora, voltando para sua Casa de origem. Nós, da Comissão, tínhamos que ter uma maneira de trabalhar para podermos elaborar um código que representasse a expectativa do povo, porque a jurisdição é eminentemente uma função popular. Nós, juízes, temos que saber que o quanto possível as nossas decisões devem estar aproximadas do povo e que o Poder Judiciário, assim como todos os poderes, é exercido em nome do povo e para o povo. Então, nós, inclusive o Supremo Tribunal Federal, principalmente em julgamento de casos objetivos, devemos contas à sociedade. Nós não podemos, por exemplo, julgar uma união homoafetiva, uma Marcha da Maconha, sem aferirmos a voz das ruas. Nós temos que saber se a sociedade está preparada para receber uma determinada decisão que hoje a doutrina norte-americana cognomina de desacordo moral razoável. A nossa desvantagem para a Suprema Corte Americana é que nós, juízes, não podemos pronunciar o non liquet, temos que dar a última palavra. Essa é a grande diferença pela qual a Suprema Corte Americana tem 80 (oitenta) processos para julgar e o Supremo Tribunal Federal tem 88.000 (oitenta e oito mil). Uma diferença brutal, porque nós não podemos pronunciar o non liquet, t nós temos que dar a última palavra. Nós não podemos entender que a sociedade ainda não esteja preparada para receber, por exemplo, uma decisão sobre casamento de pessoas do mesmo sexo, sobre aborto, eutanásia, nós temos que decidir à luz da axiologia constitucional, dos princípios constitucionais da dignidade humana, os princípios constitucionais da isonomia e do devido processo legal. Enfim, à luz daqueles valores e daqueles fins públicos que são colimados pela Constituição Federal. O que a Comissão fez? A Comissão cometeu o bom plágio, ela se baseou exatamente nesse Projeto de Florença, no qual o Professor Mauro Cappelletti e o Professor Bryant Garth procuraram estudar as causas de 36 Revista do CEJ - n. 5, p. 31-45 - nov. 2015 Luiz Fux barreira de acesso à justiça, para depois, então, elaborarem os dispositivos legais. A mesma coisa fizemos nós, durante um mês, cada membro da Comissão pensou sobre o Código em relação aos institutos que estavam dando certo, que não estavam dando certo, o que é que impedia os juízes de promoverem uma justiça rápida. Baseados também no Congresso Panamericano de Direito Processual, realizado em Foz do Iguaçu, em 2009, e nas reformas recentíssimas do Código italiano, que são reformas que estão sendo levadas a efeito até agora, ela começou em 2010, e até hoje vem sendo reformada, recentemente o Código português, reforma do Código alemão, reforma do Código japonês, que paradoxalmente é do sistema romano-germânico, e não do sistema anglo-saxônico, baseados nesses modelos, então, nós procuramos, em primeiro lugar nos curvarmos à realidade de que não somos mais um país genuinamente do sistema da civil law, w somos também, por várias influências um país que hoje recebe institutos da common law, w que, aliás, era uma velha advertência do Professor Chiovenda, quando afirmava: “A grande evolução do processo civil será a sua lenta involução para o velho processo civil romano”. Que é o que hoje está acontecendo, e que nós vamos ver rapidamente dentro do nosso limite nessa homenagem aqui. Pois bem, baseado nesses estudos e nesse último congresso, verificamos basicamente três causas marcantes que impediam os juízes, nós, de prestarmos uma jurisdição em um prazo razoável. Em primeiro lugar, o processo civil brasileiro é muito prenhe de solenidades e liturgias. Exatamente para engessar os juízes, que são obrigados a cumprir aquelas etapas, na medida em que os princípios do Código foram erigidos na era do Iluminismo, onde havia uma profunda desconfiança em relação ao Poder Judiciário e sua vinculação com o ancien régime. Montesquieu, por exemplo, não admitia, os teóricos do Iluminismo não admitiam que o juiz pudesse dar a solução final. Para Rousseau, o juiz era um ditador do processo. Montesquieu pretendia que nós juízes fôssemos apenas la bouche de la loi – a boca da lei, pronunciar as palavras da lei, sem nula execution, sem a previa convinition. O juiz sem poder. O juiz que condena não é aquele que realiza a sua condenação, essa era a filosofia do Iluminismo. Então, com um grau de desconfiança desses, evidentemente, Revista do CEJ - n. 5, p. 31-45 - nov. 2015 37 Novo Código de Processo Civil não se poderia andar muito adiante. Esse era o perfil do Código. Então, o Código prenhe de liturgias. Inúmeras preliminares. Até os profissionais da advocacia sentem-se no dever de suscitar preliminares que às vezes até inexistem. Parece um vezo natural da advocacia, preliminarmente é matéria de mérito. Aqui, numa colocação sadia, advogados dizem que levam tudo mastigado para nós, não sabem como é difícil engolir. Mas para nós juízes eles levam realmente ali as preliminares e as questões formais. Então verificamos que é extremamente solene o processo. Pode ser mais rápido com a extirpação de algumas solenidades. Segundo lugar, o Direito brasileiro ostenta uma raríssima prodigalidade recursal. É talvez o sistema que contempla o maior número de recursos. Quem assistir a um julgamento na Suprema Corte vai ficar perplexo com o anúncio do julgamento do recurso, embargos de declaração nos embargos de declaração nos embargos de declaração no agravo regimental no agravo de instrumento no recurso extraordinário. Então são recursos infindáveis. Eu vou dar um exemplo para os senhores, para expungir qualquer responsabilidade dos juízes. Por amostragem, nós pensamos um caso em que havia uma impugnação ao valor da causa, uma impugnação à gratuidade, uma exceção de incompetência, uma impugnação à intervenção de terceiros, e um incidente de falsidade. Esses cinco incidentes foram decididos por cinco decisões interlocutórias, que desafiaram ao longo do curso do processo vinte e cinco recursos. Cinco decisões interlocutórias desafiaram vinte e cinco recursos. É fácil nós calcularmos agora os vinte e cinco recursos. Então, como é que se pode prestar uma justiça em prazo razoável com vinte e cinco recursos, com o processo tramitando ainda em primeiro grau de jurisdição? Verificamos essa prodigalidade recursal. E, finalmente, uma litigiosidade desenfreada, derivada de uma regra constitucional que nenhuma lesão ou ameaça ao direito pode escapar à apreciação do Judiciário. Com a criação então de Juizados Especiais, baratos, céleres, vigora aquela velha parêmia inglesa “better the road, more the traffic”, ” quer dizer, melhor a estrada, maior é o tráfego. Se é bom, é bonito, é barato, então, vamos lá. Os juizados hoje estão em uma situação completamente contraditória com a própria ratio que levou o legislador a criá-los. 38 Revista do CEJ - n. 5, p. 31-45 - nov. 2015 Luiz Fux Como é que a Comissão procurou enfrentar esses problemas? Em primeiro lugar, com relação ao excesso de solenidades e liturgias. E me permitam falar um pouco mais rápido assim, porque é apenas uma informação. Eu não posso falar sobre o Novo Código, Frederico sabe disso, porque o Código entrou uma coisa na Câmara dos Deputados e saiu outra. Quando se fala em “coisa” aqui em Recife, tem uma versão futebolística, mas a “coisa” que eu estou dizendo é o Código, do jeito que ele ficou. Com relação às liturgias, às formalidades, esse projeto procurou, por exemplo, transformar todas as ações em ações dúplices. Então, a parte que tem um contra direito a exercer em face do réu, para evitar duplicação de processo, pode fazer da ação que lhe é proposta uma ação dúplice. Se o vendedor cobra o preço, mas não entrega a coisa, o réu se defende e diz que não pagou porque a coisa não lhe foi entregue e automaticamente formula o pedido na própria contestação, sem necessidade da reconvenção, que veio importada do Direito italiano, com aquelas dificuldades procedimentais todas. Em segundo lugar, há uma regra de ouro que foi considerada a mais bela regra de Direito Processual do mundo, no Congresso Mundial de Processo Civil em Portugal, que é o artigo 249, § 2º, que dispõe: ”Quando o juiz puder decidir o mérito a favor da parte a quem favorece a decretação de nulidade, ele deve decidir o mérito”. Porque a jurisdição não cumpre o seu escopo pacificador quando nós resolvemos o processo sem análise do mérito, pois aquela questão de fundo, aquele litígio, fica em aberto. Pois bem, nós propusemos que a parte, por mais preliminares que suscite, por exemplo, se ela impugna o indeferimento de uma prova, tem que apostar na solução final, porque várias vezes ela pode perder o incidente e ganhar a causa e não vai ter interesse nenhum em promover o julgamento daquele agravo. Foi uma ilusão do Professor Buzaid – uma boa ilusão, porque é um código magnífico – imaginar que um agravo de instrumento com sua formação de instrumento não fosse paralisar o processo. Eu, então, com muita honra, que fui boy de escritório de advocacia, sei o quanto demora a formação de um instrumento de um agravo. Então, o que o projeto propõe? Que a parte alegue todas as preliminares que pretenda, mas que no final só tenha um recurso único, no qual ela vai apostar. Em primeiro lugar, em um resultado do processo, porque mesmo com aquelas preliminares, ela pode vencer. Então, ela vai Revista do CEJ - n. 5, p. 31-45 - nov. 2015 39 Novo Código de Processo Civil escolher no final se vai recorrer daquilo tudo ou não. A grande realidade é a seguinte, nós que somos juízes de carreira sabemos que não podemos sacrificar a questão de fundo em privilégio da questão da forma. A questão da forma, imaginem os Senhores, qual a vantagem de se declarar um juízo incompetente? Qual a finalidade? Nós juízes somos competentes para tudo. Eu fui juiz de interior, fazia tudo, absolutamente tudo. Hoje, na Itália, a incompetência absoluta e a relativa têm um tratamento igual, a única coisa que acontece é remeter o processo ao juízo competente. Por que é que vai anular aquilo tudo? São juízes da mesma forma. E mais, na Itália, eles aplicam o instituto denominado translation iudicii, no qual mesmo que o processo tramite no contencioso administrativo, quando deveria tramitar pelo Judiciário, eles aproveitam tudo em prol do princípio da efetividade. Ter competência absoluta ou relativa não tem a menor importância. Nós temos capacidade de resolver questão de família, questões criminais, porque o Direito é um só. A filosofia do Direito, a moral, a ética de que está impregnada a norma jurídica, isso é do conhecimento de todos, basta que nós nos detenhamos na apreciação do caso concreto. Então, eliminamos essa possibilidade de o juiz, a cada passo que dá no processo, ser interrompido com um agravo. Alguns se queixaram: “mas vamos terminar o agravo?” Porque nós sabemos como é importante, às vezes o agravo é importantíssimo. Então mantivemos o agravo com as tutelas de urgência. Nas tutelas de urgência até aprimoramos os agravos, eles têm até a sustentação oral, mas só nesses casos das liminares, de preferência, satisfativas e não cautelares. E com relação à duplicidade, é exatamente um dos instrumentos que vai agilizar sobremodo aquelas ações em que há uma pretensão contraposta do réu em face do autor. Com relação à prodigalidade recursal, uma grande preocupação da Comissão foi não arranhar a Constituição Federal, porque não adianta elaborarmos um belo ordenamento que, numa penada de um Ministro do Supremo Tribunal Federal, é suspenso e declarada a sua inconstitucionalidade. Além de termos essa preocupação, também, submetemos o Código ao Supremo Tribunal Federal antes. Não há controle prévio de constitucionalidade, mas só uma nota técnica. Com relação à prodigalidade recursal, nós vimos esse quadro alarmante. Vimos, ainda, outro quadro diverso, que só no Brasil temos o 40 Revista do CEJ - n. 5, p. 31-45 - nov. 2015 Luiz Fux recurso de embargos infringentes. Vejam o seguinte: a questão não é saber o grau de provimento dos embargos infringentes, mas qual é a quantidade de decisões não unânimes proferidas nos tribunais. Elas são tão menores do que as decisões unânimes, que o número de embargos infringentes é muito menor que o número de apelações. E é isso que interessa e não o grau de provimento. O que fizemos? Eliminamos os embargos infringentes, mas tornamos o voto vencido componente do acórdão passível de subir à apreciação superior, no efeito devolutivo. Agora, imaginem os Senhores, colegas de profissão, a vantagem que nós tivemos com isso, os embargos infringentes passam primeiro por um juízo de admissibilidade, que se for negativo, desafia milhões de recursos. Então encurtamos esse prazo. Segundo lugar, estabelecemos uma sucumbência recursal, porque no Brasil aventura judicial é barata, não custa nada, a parte recorre, paga o preparo do recurso e não acontece nada se ela perder. Há quase que uma volúpia recursal. Então estabeleçamos uma sucumbência recursal que nem gera o enriquecimento ilícito, mas também tem a sua capacidade persuasória. Recorrer no Brasil não será mais uma aventura judicial graciosa, o profissional vai ter que se explicar com a parte, se efetivamente tiver que pagar sucumbência recursal. Nós nos deparamos com algumas injustiças que hoje não se justificam mais, a parte ingressa com recurso especial, o Tribunal entende que a matéria é constitucional e não admite o recurso especial. E ela vai para o extraordinário, o Supremo diz que a matéria é infra e ela perde o extraordinário e perde os dois. Então, estabelecemos também, à luz do princípio da proporcionalidade, um termo médio criando a fungibilidade entre os recursos dos Tribunais Superiores. Se a matéria for constitucional, vai para o Supremo, admite-se aquele recurso só para mandar para o Supremo Tribunal Federal. Se for infraconstitucional, o Supremo Tribunal Federal determina a remessa para o Superior Tribunal de Justiça. Evidentemente, se o Supremo Tribunal Federal disser que a matéria é infraconstitucional, e não é constitucional, essa é efetivamente a última palavra, porque é o Tribunal de última instância que a Constituição impõe que dê a palavra final. Um aspecto importantíssimo na questão dos recursos, nós procuramos dar a necessária força à jurisprudência dos tribunais, porquanto a jurisprudência torna o resultado judicial previsível, dá segurança jurídica e permite que na prática se aplique com efetividade Revista do CEJ - n. 5, p. 31-45 - nov. 2015 41 Novo Código de Processo Civil o princípio da isonomia. Eu confesso aos Senhores que sempre que participei de eventos com juízes anglo-saxônicos imaginava-os sem muita criatividade, porquanto que o sistema da civil law é baseado na justiça e na razão, porque eles não acreditam que uma causa seja tão diferente assim uma da outra que não mereça a mesma solução, e nós sabemos que nem sempre é assim. Mas certa feita, lembrando a obra de Dennis Lloyd sobre a ideia de lei, verifiquei que a ratio essendi do precedente é a aplicação do princípio da isonomia, e isso é uma realidade que nós convivemos. Às vezes, as partes têm a mesma pretensão jurídica e a decisão é completamente diferente. Em nome de uma independência jurídica, que não constrói absolutamente nada no Poder Judiciário, muito ao contrário, essas decisões conflitantes levam ao descrédito do Poder Judiciário. Então, é importante que nós tenhamos uma linha de pensamento, daí a necessidade de a jurisprudência ter a sua força necessária, na medida em que ninguém hoje vive sem um mínimo de previsibilidade, sem um mínimo de segurança. O ser humano precisa prever para poder se organizar. O professor Canotilho afirma isso e o velho e justo filósofo Bertrand afirmava, o jurisdicionado como cidadão não pode só saber se uma coisa é proibida, como ocorre com os cães, quando um taco de beisebol toca-lhes o focinho. E, realmente, essa surpresa jurisprudencial, não é possível que seja mantida. Então, a força da jurisprudência vai se basear, em primeiro lugar, na obrigatoriedade de obediência à jurisprudência dos tribunais superiores, que vai permitir, inclusive, os juízes julgarem de plano, e, em segundo lugar, inviabiliza a admissibilidade do recurso. Vejam quanto tempo nós já ganhamos, porque não cabe recurso, porque a matéria já está pacificada no Tribunal Superior e os próprios juízes já podem julgar. Nós sabemos que hoje, qualquer operador do Direito – e nós juízes, que somos um pouquinho mais, somos operários do Direito – inicia o seu trabalho abrindo a rede mundial de computadores, onde nós sabemos o fim da linha, nós sabemos a jurisprudência que há de ser aplicada ao caso concreto. Aqui surge uma questão muito interessante: é que em razão da natural demora do processo, que é um pouco excessiva, a instantaneidade é uma utopia, porque não se poderia imaginar que o juiz sem o amadurecimento pudesse julgar. Nós sabemos que o processo, quando acode as instâncias superiores, já se passou um largo tempo. 42 Revista do CEJ - n. 5, p. 31-45 - nov. 2015 Luiz Fux O que é que pode acontecer na prática? Já aconteceu no nosso Tribunal, o Ministro Falcão trabalhava comigo lá na primeira sessão, nós modificamos por uma questão até de moralidade, uma pretensão que vinha veiculada – os profissionais do Direito fazem a sua parte, quem tem que cuidar disso somos nós juízes. Então, nós modificamos a jurisprudência em relação a um determinado crédito fiscal, só que aquela jurisprudência era vintenária. Imaginem os Senhores o seguinte: nem o Estado, quando é declarado inconstitucional um tributo, tem dinheiro para devolver o que já foi pago, e uma empresa pode cair em bancarrota se ela não se organiza contabilmente para pagar aquele tributo que venha a ser declarado devido. Pois bem, nesse particular, nós tivemos que importar do sistema anglo-saxônico dois institutos muito interessantes. O primeiro deles denomina-se distinguish e o segundo overruling. O distinguish é muito importante, e isso vai acabar modificando, inclusive, a cultura dos currículos da Faculdade de Direito, porque se trata de uma necessária adequação do caso concreto ao precedente judicial. E o bacharel em Direito vai precisar se acostumar com esse ajuste, porque todas as vezes que, atendendo de muito bom grado aos profissionais do Direito, lá no Supremo Tribunal Federal e assim também o era no Superior Tribunal de Justiça, nós invocávamos a existência do precedente, do repetitivo, da repercussão geral, e o advogado sempre dizia: não, mas o meu caso tem uma peculiaridade. Todos os casos têm uma peculiaridade! Isso é falta de cultura do ajuste do distinguish, da adaptação do precedente ao caso concreto. Isso vai interferir profundamente nos currículos das faculdades. O overruling, porque o Direito não é um museu de princípios, há coisas que mudam com essa jurisprudência. Nós chegamos à conclusão que, na época em que o Brasil estava com um balanço de pagamento descontrolado, valia a pena incentivar a exportação, mas chega um momento em que aquilo se estabilizou. Como é que o Brasil, que não tem dinheiro para absolutamente nada, poderia dar créditos tributários imensos? Então, nós modificamos essa jurisprudência através desse denominado overruling. Só que, se o Estado for pego de surpresa por modificação jurisprudencial, ele não pode pagar, porque já gastou com as necessidades públicas. O particular que não se organizou, quebra. Então, no sistema anglo-saxônico há no overruling a modulação. Nós sabemos que, uma vez proferida decisão pelo Tribunal Superior, aquela decisão é declaratória e Revista do CEJ - n. 5, p. 31-45 - nov. 2015 43 Novo Código de Processo Civil tem efeito ex tunc, só que esse efeito ex tuncc surpreende a todos. Então, se na data da propositura da ação, aquela era a jurisprudência vintenária, solidificada, é preciso modular o efeito da modificação de jurisprudência em nome do princípio da segurança jurídica e da proteção da confiança, que são hoje cláusulas pétreas constitucionais. Por fim, o último defeito que nós verificamos, que impede uma duração razoável dos processos, é essa litigiosidade desenfreada. Oitocentas mil ações. E não é só isso, inúmeras ações iguais, sem que se fale em caderneta de poupança, por exemplo. São Paulo foi precursor de um caso, de um leading case que é comum em todo o país, pois todos os estados da Federação têm shopping center. Lá começou a discussão sobre a possibilidade de um lojista de shopping centerr ter também uma loja de rua, próxima ao shopping center, r se ele estaria se aproveitando do investimento e carreando legiões de clientes para a sua loja fora do shopping, que tem um aluguel muito diferente, porque é um investimento bom, um investimento comum em prol de todos os comerciantes. Essa causa hoje, denominada “cláusula de raio”, discute a quantos quilômetros a loja deve se localizar. É uma causa do Brasil inteiro, isso é uma causa repetitiva, assim como uma causa de poupança é repetitiva. Nós temos oitocentas mil ações de caderneta de poupança, umas cinquenta mil ações destas de cláusula de raio, temos cinquenta mil ações sobre se lojas de posto de gasolina podem vender remédio. Então, não é justo que o Rio dê uma decisão, São Paulo dê outra, Recife outra e assim por diante. Por esta razão, para resolver esse problema da litigiosidade desenfreada, nós fomos ao Direito germânico e pensamos no instituto que foi criado para o mercado de capitais, denominado musterverfahren, ou seja, processo padrão, processo modelo, em que uma causa que é igual a tantas outras é submetida ao amplo grau de jurisdição. Então, se ela tiver matéria constitucional, vai ao Supremo, se tiver matéria infraconstitucional, vai para o Superior Tribunal de Justiça, e a primeira causa que for detectada com esse grau de repetitividade é comunicada ao CNJ, e o Tribunal que detecta essa repetição determina que todas as outras causas do seu território sejam suspensas. É claro que o Tribunal de Pernambuco não pode parar a causa de São Paulo, mas o Superior Tribunal de Justiça pode, por isso que é comunicado pro cadastro do CNJ. No projeto, há um prazo estabelecido de um ano e meio para que aquela causa seja resolvida e a decisão daquela tese jurídica seja internalizada 44 Revista do CEJ - n. 5, p. 31-45 - nov. 2015 Luiz Fux em todas as ações idênticas. Com isso, nós tratamos uma causa individual, não com litigiosidade de varejo comum, mas é um tratamento coletivo de uma causa individual. Nós não queríamos criar um processo coletivo, o que violaria essa regra constitucional de que legitimatio ad causam é individual e cada um tem o direito de pedir em juízo, sem prejuízo de criar um grave problema de mercado da advocacia. Então, todos podem litigar em juízo, todos podem formular suas causas petendi, mas a decisão daquela tese jurídica se projeta na causa, que vai ser decidida com base naquele precedente. O juiz pode negar seguimento ao recurso, julgar a ação imediatamente e em um ano e meio estarão resolvidas oitocentas mil ações em todo o território nacional. Com isso, nós pretendemos exatamente criar instrumento para que nós juízes possamos prestar justiça num prazo razoável. Eu me recordo perfeitamente que depois daquele prazo de reflexão para mudanças tão radicais do processo civil, num dado momento, um dos componentes da comissão disse: “Fux, mas para isso aí é preciso acabar o mundo para começar tudo de novo”. Eu disse: não, eu acredito na sensibilidade das pessoas que entendem que é possível realmente, até mesmo na vida pessoal, é possível renascer várias vezes na mesma vida. Quantas vezes fazemos força para isso? E é possível efetivamente, nós reconstituirmos algo. Cito Fernando Pessoa: “não se pode servir à sua época e a mesma época e a todas as épocas ao mesmo tempo”. E aí faço, como fiz no início, um mergulho um pouco mais profundo no meu passado, porque muito me encantava uma obra que, sem nenhuma maturidade, por isso tem que inverter essa pirâmide do curriculum do Direito, mas uma obra que me encantava que era a Introdução ao pensamento jurídico do professor Karl Engish, havia uma menção a Julius V. Kirchmann, que dizia que somente o sol, a lua e as estrelas continuavam a brilhar igual desde a criação do universo. O Direito deveria viver em constante modificação, porquanto instrumento da vida e instrumento da esperança. Muito obrigado! Revista do CEJ - n. 5, p. 31-45 - nov. 2015 45 Doutrina Demandas de massa e o problema da admissibilidade do IRDR no CPC-2015 Alexandre Freire Pimentel6 Bruna Liana Amorim de Andrade7 Sumário: Introdução. 1 Distinguindo: direitos coletivos, difusos e individuais-homogêneos. 2 Das ações individuais homogêneas (plúrimas e singulares). 3 Direito comparado: ações de classe, ações de grupo e o Musterverfahren alemão. 4 Direito processual social e a necessidade de instituição de técnicas processuais de extensão dos efeitos da coisa julgada em demandas individuais homogêneas. 5 O incidente de demandas repetitivas (IRDR) no CPC-2015. 6 Requisitos de admissibilidade. Conclusão. Referências. Introdução O atual Código de Processo Civil foi instituído pela Lei n. 5.869/1973, e entrou em vigor a partir do dia 1º de janeiro de 1974, porém foi estruturado com base numa sistemática de resolução de litígios individuais e tradicionalmente marcado pela rigidez formalista orientada pelo purismo da separação das tutelas.8 Em paralelo às quatro décadas de sua vigência, o código sofreu dezenas de emendas legais, bem como se submeteu a alterações derivadas da promulgação de emendas constitucionais. Dentre tais câmbios, devem ser destacados os relativos 6 Juiz de Direito Titular da 29ª Vara Cível do Recife – TJPE – Seção A. Diretor da Escola Judicial do TRE-PE. Pósdoutorado pela Universidade de Salamanca – USAL-Espanha, com bolsa da CAPES-FUNDAÇÃO CAROLINA. Doutor e Mestre (FDR-UFPE). Professor de Direito Processual Civil da Universidade Católica de Pernambuco e da Faculdade de Direito do Recife (UFPE). Consultor ad-hoc da CAPES (Comissão de Aperfeiçoamento de Pessoal do Nível Superior-MEC) e do CONPEDI (Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito). Membro da Associação Norte e Nordeste dos Professores de Processo (ANNEP). Membro do Conselho Editorial da Revista de Processo (IUDICIUM) da Universidade de Salamanca (España). Juiz colaborador da ENFAM (Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados). Ex-Promotor de Justiça. 7 Advogada. 8 Interessa registrar, porém, que o fato de o CPC ter sido subdividido em cinco livros não significa que tenha sistematizado cinco espécies distintas de tutela, pois o livro IV, na verdade, no pertinente à jurisdição contenciosa, cuida de processos de conhecimentos dotados de um rito diferenciado daqueles (ordinário e sumário) regulados no livro I. O livro V, por sua vez, não tratou de regulamentar uma tutela jurisdicional específica, cuidou, sobretudo, do sistema de direito processual intertemporal. Mas, nem por isso deixou de preservar a eficácia de distintos procedimentos instituídos pelo CPC de 1939, mantendo-os vigentes durante a presente ordem processual, como, por exemplo, ocorreu com a ação de dissolução de sociedade empresarial (CPC, art. 1.218). Revista do CEJ - n. 5, p. 49-70 - nov. 2015 49 Demandas de massa e o problema da admissibilidade do IRDR no CPC-2015 à tentativa de compatibilização do CPC à tutela jurisdicional de interesse coletivo, ainda quando exercitado através de demandas de massa individuais, como aconteceu com a adoção da técnica da expansão do julgamento dos recursos excepcionais repetitivos. Restou sedimentada a consciência acerca da necessidade de criação de técnicas processuais capazes de responder à desenfreada multiplicação do número de litígios no Brasil. Tal fenômeno consistiu numa decorrência de uma equivocada visão, a qual considera que tanto maior será o nível do exercício da cidadania quanto maior for o acesso ao judiciário. A tão festejada teoria do acesso à justiça, sem dúvida, contribuiu para o aumento de demandas no judiciário, o que, não necessariamente, quer significar aumento no índice de acesso à justiça.9 Porém, não parece razoável supor que o movimento do acesso à justiça, por si só, tenha sido responsável pelo aumento de procura do judiciário, já que os aspectos sociológicos e, sobretudo, o fator da distribuição de riquezas e esclarecimento da população sobre seus direitos, isto sim, tenham influído verdadeiramente na mitigação do fenômeno da litigiosidade contida. Fato é que a expansão do exercício do direito à tutela jurisdicional levou ao crescimento dos denominados litígios de massa, considerando que na sociedade de consumo cada vez mais um número maior de cidadãos passam a exercitar uma mesma classe ou tipo de direito, os quais são caracterizados pelas pretensões individuais que, entretanto, apresentam questões comuns. Pois bem, em 2004, ocorreu uma tentativa de se minimizar a morosidade da justiça brasileira, com o patrocínio dos Chefes dos Três Poderes, da qual resultou a Emenda Constitucional n. 45, firmando o “Pacto de Estado em favor de um Judiciário mais rápido e republicano”, com o intuito de obtenção de uma tramitação rápida e efetiva dos processos e, também, a uniformização das decisões proferidas, em prol da segurança jurídica. Depois, para reforçar tal desiderato, em 2009, foi firmado o “II Pacto Republicano de Estado por um sistema de justiça mais acessível, ágil e efetivo”. Em decorrência, foi instituída, pelo Ato n. 379 do então Presidente do Senado Federal, em 30 de setembro do mesmo ano, uma Comissão de Juristas com o escopo de elaborar Anteprojeto de um Novo 9 50 DANTAS, Bruno. Repercussão geral. Perspectivas histórica, dogmática e de direito comparado. Questões processuais. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2009, p. 86. Revista do CEJ - n. 5, p. 49-70 - nov. 2015 Alexandre Freire Pimentel | Bruna Liana Amorim de Andrade Código de Processo Civil, a qual foi presidida pelo atual Ministro do Supremo Tribunal Federal, Luiz Fux, e composta pelos juristas Adroaldo Furtado Fabrício, Bruno Dantas, Elpídio Donizete Nunes, Humberto Theodoro Junior, Jansen Fialho de Almeida, José Miguel Garcia Medina, José Roberto dos Santos Bedaque, Marcus Vinícius Furtado Coelho, Paulo Cezar Pinheiro Carneiro e Tereza Arruda Alvim Wambier, como relatorageral dos trabalhos. A Comissão designada apresentou o seu projeto para apreciação, no dia 8 de junho de 2010, que tramitou pelo Senado Federal sob o número PLS 166/2010. Durante sua elaboração, foram realizadas audiências públicas nas cinco regiões do país, a fim de que houvesse um contato direto, através de discussões de novas ideias e principais problemas do atual ordenamento processual civil brasileiro, com a população e, sobretudo, com os agentes do Direito, magistrados e advogados. Ainda em 2010, o Projeto chegou à Câmara dos Deputados, com numeração 8.046/2010, contendo diversas alterações no texto original. No referido PLS 166/2010, com a proposta de reduzir o número de processos em trâmite que tratem de questões similares, na onda renovatória em busca de uma justiça célere e efetiva, nos artigos 895 a 906, Seção II, Capítulo VII, foi disposto um novo instituto, inicialmente denominado de “Incidente de Coletivização”, com redação final de “Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas”, o qual constitui o objeto do presente trabalho. Uma breve análise histórica da evolução processual leva a uma melhor compreensão da aplicabilidade ao ordenamento jurídico pátrio do referido instituto. No período inicial do liberalismo, o sistema processual restou caracterizado pela tutela proteção indivíduo em face do poder de império do Estado, com a predominância da autonomia e liberdade das partes privadas. O princípio dispositivo soergueu-se como um verdadeiro corolário desse momento histórico.10 A propósito, Dierle Nunes acrescenta que: 10 DIAS JUNIOR, Cláudio Renato Pinho. A (in)adequação do incidente de resolução de demandas repetitivas ao processo jurisdicional democrático. Conteúdo Jurídico, Brasília-DF, 30 nov. 2011. Disponível em: <http:// www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=1055.34741&seo=1>. Acesso em: 14 jan. 2013. Revista do CEJ - n. 5, p. 49-70 - nov. 2015 51 Demandas de massa e o problema da admissibilidade do IRDR no CPC-2015 [...] o liberalismo processual acabava criando um sistema degenerado, que facilitava a esperteza da parte mais hábil que conduziu grandes processualistas à construção da visão do processo como um jogo ou uma guerra [...]11. Ao final, o Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas será destrinchado, de acordo com sua formulação no PLS n. 166/10, e posterior PL 8.046/2010, em tramitação na Câmara dos Deputados, à luz do artigo 65 da Constituição da República Federativa do Brasil. Portanto, na idade contemporânea, na primeira fase da evolução processual, tivemos o predomínio das perspectivas liberais econômicas que desaguaram no direito, instrumentalizadas nos princípios da igualdade formal, do dispositivo e da escritura, os quais obstavam de sobremaneira a figura do juiz, que era visto como mero expectador do desenrolar processual12. 1 Distinguindo: direitos coletivos, difusos e individuais-homogêneos A partir do parágrafo único do artigo 81 do CDC, a doutrina passou a construir uma taxonomia ternária dos direitos coletivos, pela qual são eles subdivididos em: coletivos (stricto sensu), difusos e individuais homogêneos. De fato, há três distintas classes de direitos coletivos, como passaremos a demonstrar. Os direitos difusos são aqueles representados por interesses transindividuais, de natureza indivisível, cujos titulares são pessoas indeterminadas, porém ligadas por circunstâncias fáticas comuns a todos, razão pela qual também são direitos coletivos. Encontram-se em estado fluido, disperso por toda a sociedade, e, além de se caracterizarem pela indeterminação dos titulares e pela indivisibilidade do objeto, diferenciamse, também, como percebeu Mancuso, pela tendência à transformação no tempo e no espaço.13 Distintamente, os direitos e interesses coletivos, em sentido estrito, apesar de também serem indivisíveis, são aqueles cujos titulares 11 NUNES, Dierle José Coelho. Comparticipação e policentrismo: horizontes para a democratização processual civil. 2008. 217 p. – Tese de Conclusão de Programa de Pós-Graduação em Direito. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2008, p. 45. 12 DIAS JUNIOR, Cláudio Renato Pinho. Op. cit., p. 14. 13 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Interesses difusos: conceito e legitimação para agir. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 137. 52 Revista do CEJ - n. 5, p. 49-70 - nov. 2015 Alexandre Freire Pimentel | Bruna Liana Amorim de Andrade são grupos, categorias ou classes determinadas de pessoas unidas entre si ou com a parte contrária por meio de uma relação jurídica-base. O espectro dos direitos coletivos stricto sensu,14 portanto, é restrito a uma categoria determinada de pessoas, ao passo que nos direitos difusos não é possível determinar-se os respectivos titulares de per si, pois que tais direitos pertencem à toda sociedade civil, indistintamente considerada. Por essa razão, a coisa julgada numa demanda relativa a direitos coletivos stricto sensu é ultra partes, porém não é erga omnes, ou seja, é ultra partes porque a ação é movida com lastro em legitimidade ad causam extraordinária, pela qual o ente representativo, como ocorre com os sindicatos, representam uma categoria de pessoas que não participam diretamente da relação processual, a sentença é ultra partes precisamente por atingir essas pessoas. Diferentemente, nas demandas relativas a direitos coletivos difusos, que também são exercitadas com base em legitimidade ad causam extraordinária, como acontece com a ação civil pública promovida pelo representante do Ministério Público, a coisa julgada, além de ser ultra partes, também é erga omnes, na medida em que atinge a todos os integrantes da sociedade civil. De pronto, percebe-se que em relação a essas duas categorias há um traço comum representado pela identificação do exercício da legitimidade extraordinária para a causa. Ao mesmo tempo, entretanto, diferenciam-se em razão da extensão dos efeitos da coisa julgada. Por sua vez, os direitos individuais homogêneos, estes, apesar de também possuírem uma origem comum, marcada pela homogeneidade de situações jurídicas dos titulares da pretensão, designam um tertium genus dos “direitos coletivos”, considerando que a sua defesa em juízo tanto pode ser perpetrada individualmente quanto coletivamente. Na primeira hipótese, cada um dos titulares exercita isoladamente a pretensão por meio de ação individual, caso em que, não ocorre o efeito expansivo da coisa julgada de um para outro demandante, porquanto, propriamente falando, teremos ações individuais com fundamentos idênticos, por isso mesmo denominadas ações individuais homogêneas, ou demandas repetitivas, de massa. Na segunda hipótese, porém, nada impede que os entes dotados pela Constituição Federal, ou pela lei, de legitimidade extraordinária possam agir em nome 14 A expressão “stricto sensu”” presta-se para diferenciar os direitos coletivos que nem se enquadram no conceito de direitos difusos, nem individuais homogêneos. Revista do CEJ - n. 5, p. 49-70 - nov. 2015 53 Demandas de massa e o problema da admissibilidade do IRDR no CPC-2015 próprio, mas na defesa de um direito ‘individual homogêneo’, como já consentiram tanto o Supremo Tribunal Federal quanto o Superior Tribunal de Justiça. Ora, se os direitos individuais homogêneos materiais podem ser processualmente demandados através da atuação do Ministério Público ou de um sindicato, não há como negar que integram a categoria dos direitos coletivos. A propósito, o Superior Tribunal de Justiça já decidiu que o artigo 3º, § 1º, I, da Lei n. 10.259/2001 (lei dos juizados especiais federais), que expressamente considera três distintas categorias de direitos coletivos, a saber: os direitos difusos, coletivos (stricto sensu) e individuais homogêneos, de fato, não se incluem na competência dos juizados especiais cíveis federais.15 No julgamento do conflito de competência n. CC 80398 MG 2007/0037165-0, o STJ admitiu expressamente que os direitos individuais homogêneos podem ser demandados tanto individualmente quanto coletivamente; e que eles somente se excluem da competência dos juizados nessa última hipótese.16 Aliás, o TST, escudado na construção pretoriana do STF, já decidiu que até mesmo os sindicatos possuem legitimidade ad causam para a promoção da defesa de direitos individuais homogêneos.17 Os direitos individuais homogêneos, portanto, enquadramse na categoria dos direitos coletivos porque sua defesa em juízo pode 15 Diz o artigo em questão: Art. 3º – “Compete ao Juizado Especial Federal Cível processar, conciliar e julgar causas de competência da Justiça Federal até o valor de sessenta salários mínimos, bem como executar as suas sentenças. § 1º Não se incluem na competência do Juizado Especial Cível as causas: I - referidas no art. 109, incisos II, III e XI, da Constituição Federal, as ações de mandado de segurança, de desapropriação, de divisão e demarcação, populares, execuções fiscais e por improbidade administrativa e as demandas sobre direitos ou interesses difusos, coletivos ou individuais homogêneos”. 16 Ementa: “CONFLITO DE COMPETÊNCIA. VARA FEDERAL E JUIZADOS ESPECIAIS FEDERAIS. DIREITOS INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS. AÇÕES INDIVIDUAIS PROPOSTAS PELO PRÓPRIO TITULAR DO DIREITO. COMPETÊNCIA DOS JUIZADOS. 1. A Primeira Seção desta Corte firmou o entendimento de que a exceção à competência dos Juizados Especiais Federais prevista no art. 3º, § 1º, I, da Lei 10.259/2001 se refere apenas às ações coletivas para tutelar direitos individuais homogêneos, e não às ações propostas individualmente pelo próprios titulares. 2. Conflito conhecido para declarar a competência do Juizado Especial Federal”. Processo: CC 80398 MG 2007/0037165-0. Relator(a): Ministro Castro Meira. Julgamento: 11/09/2007 - Órgão Julgador: S1 - Primeira Seção. Publicação: DJ 08.10.2007, p. 199. Sem saliência no original. 17 A Sexta Turma reformou acórdão do Tribunal Regional do Trabalho da Terceira Região (MG) que desqualificou o Sindicato para ajuizar ação que não fosse de interesse direto da categoria. O TRT entendeu que, quando se depara com pedidos de horas extras por motivos diversos e o não pagamento de parcela de adicional noturno, o “que se tem são direitos personalíssimos e ou pessoais do empregado, não como membro da categoria”. No entanto, o ministro Maurício Godinho Delgado, relator do processo na Sexta Turma, ressaltou que a “extensão da prerrogativa conferida ao sindicato foi objeto de discussão no STF, tendo sido pacificada a interpretação que a Constituição Federal (inciso III do art. 8º) confere ampla legitimidade às entidades sindicais, abrangendo subjetivamente, todos os integrantes da categoria a que pertencem e, objetivamente, seus direitos individuais homogêneos”. RR-99700-26.2001.5.03.0059. In: www.jusbrasil.com.br. 54 Revista do CEJ - n. 5, p. 49-70 - nov. 2015 Alexandre Freire Pimentel | Bruna Liana Amorim de Andrade ser efetivada por entes que gozam da representatividade processual consubstanciada em legitimidade extraordinária. O fato de também poderem ser exercitados isoladamente não os desqualifica como direitos coletivos, até porque também os direitos coletivos, em sentido estrito, por exemplo, também o podem, e, nem por isso, perdem sua qualidade de coletivo. 2 Das ações individuais homogêneas (plúrimas e singulares) Do ponto de vista processual, pode-se destacar que os direitos individuais homogêneos podem ser exercitados isoladamente, em demandas distintas, por cada um dos respectivos titulares, contudo tais demandas são baseadas em fundamentos jurídicos comuns. Nesse caso, teremos demandas de massa estritamente individuais, as quais, no entanto, não excluem as demandas individuais de massa plúrimas, isto é, quando promovidas em litisconsórcio ativo facultativo. Também nesta situação, elas não perdem sua característica individualizante. Observe-se que as demandas plúrimas litisconsorciadas, não se inserem no âmbito dos denominados direitos coletivos, porquanto estes pressupõem o exercício de direitos através da legitimidade extraordinária. Nessa questão, Leonardo Garcia esclarece que, enquanto o Brasil adota um sistema ope legis de outorga de legitimidade rigorosamente taxativo, diferentemente dos Estados Unidos, que preferiram um mecanismo ope iudicis para as class actions, pelo qual compete ao juiz, diante de cada caso concreto, decidir acerca da representatividade do requerente em relação ao objeto litigioso do processo.18 Mas, a recíproca não é necessariamente verdadeira. Noutras palavras, os direitos coletivos caracterizam-se, no plano processual, em especial, em razão do exercício da legitimidade extraordinária, isso é fato, sobretudo porque estamos a falar de um sistema jurídico que, até o presente momento, não regulamentou o incidente de demandas repetitivas. Todavia, nem todo exercício de direito em juízo, através de legitimidade extraordinária ad causam, estará a designar a presença de um direito coletivo. É que o artigo 6º do CPC admite a substituição processual (legitimação extraordinária) no âmbito da tutela dos direitos individuais. Logo, quando isto se der, o critério em questão não se apresentará eficaz 18 GARCIA, Leonardo Medeiros. Direito do consumidor. 5 ed. Niterói: Ímpetus, 2009, p. 375. Revista do CEJ - n. 5, p. 49-70 - nov. 2015 55 Demandas de massa e o problema da admissibilidade do IRDR no CPC-2015 para distinguir as espécies sob análise, porquanto não se cuida de um instituto que se aplique exclusivamente às demandas coletivas. Assim, melhor nos parece que a distinção entre direitos coletivos e individuais explica-se em razão das características do próprio direito material, pois será este que condicionará o direito processual, e não o contrário. Perceba-se que, também no plano processual, admite-se que entidades dotadas de legitimidade extraordinária possam agir em juízo na defesa de direitos estritamente individuais, como acontece com o Ministério Público quando age em nome próprio, mas na defesa de direitos da vítima ou de seus familiares, na execução da sentença penal no cível (CPC, art. 475-N, II c/c art. 566, II). Distintamente, as demandas de massa, que consistirão no objeto de nosso estudo, são exercitadas por meio de legitimação ordinária, ainda que se trate de exercício de direito litisconsorciado, já que nesse caso cada pretendente estará a agir na defesa de direito próprio. As demandas individuais de massa acarretaram uma indesejada inflação jurisdicional cada vez mais constante e crescente, que, por sua vez, denunciou o inegável despreparo do judiciário para resolver, eficaz e tempestivamente, essa classe de litígios, e isso decorre tanto de problemas estruturais quanto da ausência de meios processuais adequados, capazes de proporcionar um tratamento isonômico e célere, a todos os litigantes que estão na mesma situação jurídica. Logo, uma providência urgente a ser adotada, ainda na sistemática vigente, foi a adaptação dos institutos processuais do CPC de 1973 a essa realidade. A situação de crise a que foi submetido o judiciário, atingiu níveis dramáticos posto que passou a afetar a própria legitimação do poder frente à sociedade civil, como observou Baltazar José Vasconcelos Rodrigues.19 Ademais, como apropriadamente observou Zavascki, não se pode tratar direitos individuais considerados em sua coletividade da mesma maneira que se tratam os direitos coletivos transindividuais.20 Assim, era preciso encontrar um mecanismo de 19 RODRIGUES, Baltazar José Vasconcelos. Incidente de resolução de demandas repetitivas: especificação de fundamentos teóricos e práticos e análise comparativa entre as regras previstas no projeto do novo Código de Processo Civil e o Kapitanleger-Musterverfahrensgesetzz do Direito Alemão. Revista Eletrônica de Direito Processual – REDP, Rio de Janeiro, v. VIII, ano 5, jul./dez. 2011. p. 96. Disponível em <http://www.redp.com. br>. Acesso em: 8 ago. 2012. 20 ZAVASCKI, Teori Albino. Processo coletivo: tutela de direitos coletivos e tutela coletiva de direitos. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 32. 56 Revista do CEJ - n. 5, p. 49-70 - nov. 2015 Alexandre Freire Pimentel | Bruna Liana Amorim de Andrade tratamento processual coletivo para os direitos individuais homogêneos, já que as formas de tutela de direitos coletivos, difusos e em sentido estrito, não são apropriadas ao tratamento de direitos individuais homogêneos, quando estes são exercitados de maneira dispersa, individual e repetitiva. Para tanto, o legislador nacional volveu os olhos para o direito comparado, do qual extraiu elementos para conformar a decisão acerca da adoção de um modelo específico, ou se, a partir da análise das distintas possibilidades, poderia edificar um sistema híbrido ou até mesmo original. Vejamos, então, alguns desses modelos no direito alienígena. 3 Direito comparado: ações de classe, ações de grupo e o Musterverfahren alemão O sistema inglês constitui-se em fonte jurídica pioneira na regulamentação das ações de grupos de pessoas que se encontram em situação jurídica idêntica. Entretanto, isto não se deu desde os seus primórdios, também lá foi necessário que as situações de fato impusessem alterações substanciais no ordenamento processual inglês. Nesse sistema, os tribunais de direito (court of law) não permitiam o instituto do litisconsórcio facultativo, apenas era admitido o litisconsórcio necessário juntamente com a intervenção ‘compulsória’ de terceiros, quando, neste caso, houvesse ligação direta e imediata com o julgamento. Os tribunais de equidade (courts of equityy ou courts of Chancery), por seu turno, admitiam uma intervenção litisconsorcial dita ‘voluntária’, fundada, em especial, na existência de questões comuns, a qual, na prática, continuava a traduzir uma espécie de intervenção obrigatória, na medida em que todos os que se enquadravam na mesma situação deveriam forçosamente ser chamados a intervir no processo, sob pena de extinção do feito. Este instituto restou conhecido como compulsory joinder rule ou necessary parties rule, no qual todos os intervenientes se tornavam partes no processo.21 Pois bem, foi para proporcionar um aperfeiçoamento do necessary parties rule que foi instituído o bill of peace, o qual versava sobre o que na atualidade se denomina de ações representativas, em que um indivíduo seria responsável por litigar em nome de uma coletividade. No entanto, essa possibilidade estava condicionada às hipóteses de 21 GIDI, Antonio. A Class Action como instrumento de tutela coletiva dos direitos. As ações coletivas em uma perspectiva comparada. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 41. Revista do CEJ - n. 5, p. 49-70 - nov. 2015 57 Demandas de massa e o problema da admissibilidade do IRDR no CPC-2015 litisconsórcio multitudinário, isto é, aquele no qual o número de litigantes torna impraticável o normal desenvolvimento do procedimento, mas a sentença proferida na ação representativa fazia coisa julgada erga omnes.2223 Em seguida, logrou destaque, no pertinente à vinculação dos julgamentos e aos seus efeitos, o instituto do absent class members, pelo qual pessoas que não participavam efetivamente do contraditório passaram a ser atingidas pela sentença. Não obstante, essa inserção automática estava excepcionada caso um indivíduo manifestasse, de forma expressa, o desejo de não ser atingido pelos efeitos da coisa julgada ou, numa segunda hipótese, restringindo esta aos ausentes, sob o fundamento de buscar uma maior eficácia da tutela coletiva. Assim, novos institutos foram buscados, a fim de que pudesse equilibrar “o interesse dos ausentes com as exigências da tutela coletiva”.24 Foi daí que surgiram as denominadas ações de grupo as quais se constituem em institutos de resolução das demandas coletivas, porém sem adotar a ficção representativa das ações de classe. As ações de grupo nos Estados Unidos delinearam-se com base em um caso concreto com questões similares às demais demandas individuais e, a partir da análise teórica formulada em face da controvérsia, daí a tese vencedora passa servir para os demais casos idênticos, no entanto, resta preservada a individualidade de cada relação processual. Os membros da coletividade deixam de ser representados fictamente e passam a fazer parte da própria controvérsia, uma vez que a apreciação das questões coletivas se restringiria à fatia em comum das lides. De acordo com Scarpniella Bueno, “A class action do direito norte-americano pode ser definida como o procedimento em que uma pessoa, considerada individualmente, ou um pequeno grupo de pessoas, enquanto tal, passa a representar um grupo maior ou classe de pessoas, desde que compartilhem, entre si, um interesse comum”.25 22 GIDI, Antonio. A Class Action como instrumento de tutela coletiva dos direitos. As ações coletivas em uma perspectiva comparada. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 42. 23 Assim, como acrescenta Gidi, recorrendo a Calvert e Smit “[...] a criação das class actions deveu-se à necessidade e conveniência de ‘contornar’ a regra de litisconsórcio necessário de todos os interessados, para que fosse possível fazer justiça nas situações em que tal litisconsórcio não era possível [...]. Da mesma forma como a regra geral da presença compulsória de todos os interessados era ditada pela conveniência, o desvio dessa regra também foi ditado pela conveniência”. 24 CABRAL, Antônio do Passo. O novo procedimento-modelo (Musterverfahren) alemão: uma alternativa às ações coletivas. In: Revista de Processo – v. 147. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 128. 25 BUENO, Cassio Scarpinella. As class actions norte-americanas e as ações coletivas brasileiras: pontos para uma 58 Revista do CEJ - n. 5, p. 49-70 - nov. 2015 Alexandre Freire Pimentel | Bruna Liana Amorim de Andrade Pari passu, no direito inglês, as Rules of Civil Procedure de 1999, que correspondem a um verdadeiro código de processo civil, regulamentaram as ‘causas piloto’, ou group litigation order, pelas quais, elege-se uma ou algumas demandas paradigmáticas (pilotos) com o objetivo de serem decididas antecedentemente às demais, que guardem relação de semelhança litigiosa (de fato e de direito) com elas, estas causas, por sua vez, têm o seu curso procedimental suspenso até que se decidam as eleitas como ‘pilotos’; em seguida, o julgamento nelas proferido será estendido e aplicado às demais que se encontravam suspensas.26 Na Alemanha, há um mecanismo processual de demandas repetitivas assemelhado ao group litigation order, intitulado de procedimento-modelo ou padrão (Musterverfahren), previsto na Lei de Introdução do Procedimento-Modelo para os investidores em mercado de capitais, o qual foi instituído em agosto de 2005. No sistema alemão, o qual se limita à matéria relacionada com o mercado de capitais, a instauração do procedimento requer expressa provocação das partes, tanto pode ser suscitado pelo autor quanto pelo réu, através de requerimento dirigido ao juízo de origem no qual ficar clara a repercussão geral que o justifica. O juízo de primeiro grau labora quanto ao juízo de admissibilidade, porém o mérito do incidente é julgado pelo tribunal superior. A admissão do incidente pressupõe, no mínimo, a demonstração do envolvimento de pelo menos dez demandas repetitivas.27 Antes da admissão, deve haver a publicação de um cadastro eletrônico, sem ônus para as partes, no qual devem constar especificados os pontos relevantes da causa, tais como pedido, partes e o objetivo do procedimento. A divulgação do cadastro não deve ultrapassar o prazo de quatro meses, período no qual deve haver a habilitação de pelo menos dez demandas similares. Após, haverá a decisão de admissão, a qual não se sujeita a impugnação imediata. Depois, ocorrerá a reunião de processos que possuam similitude de objetos litigiosos (incluindo matéria fática e jurídica) desde que comuns, com remessa ao tribunal superior competente. No tribunal, ocorrerá a escolha de dois líderes de reflexão conjunta. Disponível em: <http://www.scarpinellabueno.com.br/Textos/Class%20actionbrasileiro. pdf>. Acesso em: 19 out. 2015. 26 MENDES, Aluísio Gonçalves de Castro. Ações coletivas no direito comparado e nacional: temas atuais de direito processual civil. 4. v. Coord. MARINONI, Luiz Guilherme. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, pp. 44-46. 27 CABRAL, Antônio do Passo. O novo procedimento-modelo (Musterverfahren) alemão: uma alternativa às ações coletivas, In: Revista de Processo – v. 147. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, pp. 127-133. Revista do CEJ - n. 5, p. 49-70 - nov. 2015 59 Demandas de massa e o problema da admissibilidade do IRDR no CPC-2015 cada um dos polos da demanda, com a atribuição de representar a todos conjuntamente, sem, no entanto, excluir totalmente a participação dos demais, os quais poderão aditar pontos não abordados pelos líderes. Os demais processos relacionados ao incidente ficarão suspensos até a decisão final.28 Esse sistema efetiva-se por meio de legitimação ordinária e seu principal objetivo, como esclarece Antônio Cabral, é delimitar o âmbito da decisão coletiva, que se limita às questões comuns existentes nas demandas individuais envolvidas. Aqui, ocorre o julgamento de uma única ação cuja decisão expande-se às demais. Enfim, o incidente não será admitido sempre já se encontrar madura para julgamento, bem como quando puder prolongar excessivamente da duração do processo, ou quando se considerar que as questões controvertidas não merecerem consideração de relevância capaz de ensejar a pretendida eficácia coletiva da decisão, ou seja, se restar comprovada a repercussão geral.29 Em relação à extensão dos efeitos da coisa julgada aos processos individuais, interessa acrescentar que ela somente incidirá quanto aos feitos que tiverem sido suspensos quando do momento da remessa dos autos à instância superior. Não se aplica às demandas futuras.30 4 Direito processual social e a necessidade de instituição de técnicas processuais de extensão dos efeitos da coisa julgada em demandas individuais homogêneas Um aspecto que bem denuncia a ultrapassagem da fase liberal do direito processual, a qual se caracterizou pelo exercício individual dos direitos (legitimidade ordinária), pelo uso da lógica formal silogística com a atividade jurisdicional subsuntiva;31 pela adoção da técnica de processo dual; pela taxonomia ternária das ações; e por um standard d de juiz mais assemelhado ao iudex do que ao praetorr romano, que atuava sem o mais mínimo ius imperium; para a etapa de direito processual social, consiste na instituição de novas técnicas de exercício da legitimação extraordinária, clamando pela instituição de um regime processual diferenciado a 28 Idem. 29 Idem. 30 CABRAL, Antônio do Passo. O novo procedimento-modelo (Musterverfahren) alemão: uma alternativa às ações coletivas, In: Revista de Processo – v. 147. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 142. 31 60 ADEODATO, João Maurício. Ética e retórica: para uma teoria da dogmática juridical. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 261. Revista do CEJ - n. 5, p. 49-70 - nov. 2015 Alexandre Freire Pimentel | Bruna Liana Amorim de Andrade fim de que os efeitos da coisa julgada pudessem atingir terceiros não participantes da relação processual. Diferentemente, o estado social de direito passou se preocupar com a vicissitude de regulamentar o exercício de uma tutela jurídica que não pertencesse apenas ao indivíduo, mas a toda a comunidade.32 Como prefere Flávio Mafra, foi necessário regulamentar meios processuais de representatividade de determinadas corporações por certos indivíduos e, em sucessivo, sobre a representatividade de determinadas classes de pessoas.33 Dessa forma, ao mesmo tempo em que se garantem direitos, evita-se o acúmulo desnecessário de demandas judiciais por pessoas que se encontram em situações idênticas ou similares, como acontece com a atuação do Ministério Público na ação civil pública, o qual, como vimos, tanto pode agir na defesa de direitos difusos quanto na dos individuais homogêneos. Foi nessa senda, que o instituto de direito processual iberoamericano (IBDP) desarrolhou estudos no sentido da criação de um código de direito processual coletivo para a Iberoamérica. A técnica da ampliação da legitimação extraordinária, portanto, presta-se para evitar o fluxo desnecessário de ações em juízo, e, para tanto, já possuímos instrumentos processuais destinados a tal desiderato, como a ação popular e a ação civil pública.3435 Porém, há situações nas quais há demandas judiciais já promovidas por requerentes que se encontram na mesma situação jurídica, contendo objetos litigiosos idênticos ou similares, e que se repetem num sem número de causas que exigem, de per si, uma sentença para cada processo, os quais são propostas, através do exercício da legitimidade ad causam ordinária, isto é, os demandantes agem em nome próprio na defesa de direito próprio, porém logram sentenças as mais distintas de procedência e de improcedência, e, dentro de cada classe 32 RODRIGUES, Marcelo Abelha. Ação civil pública. In: DIDIER JÚNIOR, Fredie. (Coord.). Ações constitucionais. 2. ed. Salvador: Podivm, 2007, pp. 253-254. 33 LEAL, Márcio Flávio Mafra. Ações coletivas: história, teoria e prática. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1998, pp. 21-33. 34 GRINOVER, Ada Pellegrini; WATANABE, Kazuo; MULLENIX, Linda. Os processos coletivos nos países de civil law e common law: uma análise de direito comparado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 27. 35 Para Ada Pelegrini Grinover, dentre os países adotantes do sistema da civil law, o Brasil foi pioneiro no pertinente à regulamentação legal de ações coletivas, sobretudo em relação à proteção do patrimônio ambiental, destacando as leis da ação popular e da ação civil pública como instrumentos legislativos precursores no assunto. Revista do CEJ - n. 5, p. 49-70 - nov. 2015 61 Demandas de massa e o problema da admissibilidade do IRDR no CPC-2015 (de procedência ou de improcedência) não divergem os conteúdos dos julgados. Isto denuncia que, além do gravame de um sem número de litigantes poderem obter tratamento diferenciado, conquanto estejam em situações idênticas ou similares, o tempo da resolução das demandas protrai-se indefinidamente no tempo. Tal fenômeno da repetição desenfreada de processos, que possuem o mesmo objeto litigioso, exigiu o desenvolvimento de novas técnicas de extensão dos efeitos da coisa julgada, mas não em relação a terceiros não participantes da demanda, como ocorre com a ação civil pública, e sim no tocante aos demandantes das causas repetidas, isto é, de demandantes de outros processos idênticos ou similares. A situação agora enfrentada opera-se de maneira diferente da que se verifica nas ações coletivas. Nestas, basta o julgamento da ação proposta no primeiro grau de jurisdição, julgamento de uma única ação, e os efeitos da sentença já atingirão os terceiros não participantes representados pelo exercício da legitimação extraordinária. Contudo, nas causas repetidas não é possível que os efeitos do julgamento de primeiro grau de uma única causa se espraie para atingir outras que tramitam por outros juízos, os quais poderão inclusive ter entendimento jurídico distinto do que julgou primeiramente, ainda que a tese jurídica seja idêntica. Assim, para evitar que pessoas que se encontrem na mesma situação jurídica logrem tratamento sentencial diferente, fato que fere tanto a isonomia quanto a garantia constitucional da duração razoável do processo, bem como a segurança jurídica, é que foram instituídos mecanismos processuais de extensão dos efeitos do julgamento de um recurso, no âmbito de uma demanda individual, por um tribunal aos demais recursos existentes nas causas repetidas, e que se encontram ainda em andamento. Perceba-se que não se trata de extensão dos efeitos da coisa julgada em ações coletivas, lastreadas em legitimação extraordinária, mas em causas individuais homogêneas ou simplesmente conexas exercitadas com fulcro na legitimação ordinária. No Brasil, premido pela crise do tempo na resolução das demandas, o legislador passou cada vez a aproximar-se do sistema da commom law à medida que adotou técnicas processuais de abreviação 62 Revista do CEJ - n. 5, p. 49-70 - nov. 2015 Alexandre Freire Pimentel | Bruna Liana Amorim de Andrade de litígios individuais em prestígio aos precedentes estabelecidos pelos tribunais de superposição nacionais, as quais representam um inequívoco prenúncio da instituição do incidente de demandas repetitivas, como, exemplificativamente, pode-se destacar: o julgamento superantecipado da lide (prima facie), introduzido pela Lei n. 11.277/2006, nas hipóteses nas quais a matéria de mérito for exclusivamente de direito e, no juízo, preexistirem sentenças de improcedência em casos idênticos (CPC, art. 285-A); a súmula impeditiva de recurso, estabelecida pela Lei n. 11.276/2006, pela qual se permitiu ao juiz de primeiro grau a denegação do recurso de apelação, tão somente em face de a sentença apresentar conformidade com os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal ou do Superior Tribunal de Justiça (CPC, art. 518, §1º); o julgamento de recursos repetitivos, pela técnica de amostragem, criada pela Lei n. 11.418/2006, aplicável nos recursos extraordinário e especial, sempre que houver multiplicidade de recursos e se verificar a identidade quanto ao fundamento sobre questões de direito, hipótese na qual haverá a análise de um ou mais recursos paradigmáticos, restando os demais sobrestados até a decisão final, a qual repercutirá sobre os feitos suspensos (CPC, artigos 543-B e 543-C); bem como a adoção da súmula vinculante. Vê-se que todos esses institutos quedam-se diretamente relacionados com o incidente de demandas repetitivas.3637 5 O incidente de demandas repetitivas (IRDR) no CPC-2015 O CPC-2015 tem por objetivo primordial a celeridade na resolução dos conflitos, sobretudo no pertinente às demandas de massa. Foi com esse escopo que houve a inserção no ordenamento brasileiro do instituto do “incidente de resolução de demandas repetitivas”. Tal procedimento encontrava-se abarcado nos arts. 930 a 941 do projeto do novo código e, uma vez transformado em lei, quedou-se positivado nos arts. 976 a 987. O incidente de resolução de demandas repetitivas (IRDR) constitui-se numa efetiva alternativa para a resolução e contenção das ações repetitivas, através da expansão dos efeitos da coisa julgada 36 CUNHA, Leonardo José Carneiro da. As causas repetitivas e a necessidade de um regime que lhe seja próprio. Revista da Faculdade de Direito do Sul de Minas. Pouso Alegre, v. 25, n. 2 - jul/dez 2009, p. 260. 37 A propósito da adoção da súmula vinculante, Leonardo Cunha reconhece que “[...] constitui importante mecanismo para a racionalização das causas repetitivas. Aliás, um dos requisitos para a edição da súmula vinculante é que haja reiteradas decisões do STF em matéria constitucional, o que demonstra que a súmula vinculante guarda pertinência com as demandas de massa”. Revista do CEJ - n. 5, p. 49-70 - nov. 2015 63 Demandas de massa e o problema da admissibilidade do IRDR no CPC-2015 produzida na demanda decidida, evitando-se, assim, decisões conflitantes e, ao mesmo tempo, produzindo-se decisão única para todas as causas atingidas em tempo real. Em síntese, o incidente acarreta o agrupamento de processos sob o fundamento de idêntica questão de direito, em similar método com o procedimento de julgamento por amostragem dos recursos repetitivos – arts. 543-B e 543-C do atual CPC. Mas, distingue-se dentre outros aspectos, em face da possibilidade de instauração em qualquer grau de jurisdição, incluindo demandas que adentraram na fase recursal. 6 Requisitos de admissibilidade Os requisitos para admissão do incidente previstos no art. 930 do Projeto n. 8.046/2010 apresentavam-se nos seguintes termos: Art. 930. É admissível o incidente de demandas repetitivas sempre que identificada controvérsia com potencial de gerar relevante multiplicação de processos fundados em idêntica questão de direito e de causar grave insegurança jurídica, decorrente do risco de coexistência de decisões conflitantes. Porém, após o retorno do Projeto ao Senado, o texto final aprovado do NCPC restou estampado no art. 976, dessa forma: Art. 976. É cabível a instauração do incidente de resolução de demandas repetitivas quando houver, simultaneamente: I - efetiva repetição de processos que contenham controvérsia sobre a mesma questão unicamente de direito; II - risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica. § 1º A desistência ou o abandono do processo não impede o exame de mérito do incidente. § 2º Se não for o requerente, o Ministério Público intervirá obrigatoriamente no incidente e deverá assumir sua titularidade em caso de desistência ou de abandono. § 3º A inadmissão do incidente de resolução de demandas repetitivas por ausência de qualquer de seus pressupostos de admissibilidade não impede que, uma vez satisfeito o requisito, seja o incidente novamente suscitado. 64 Revista do CEJ - n. 5, p. 49-70 - nov. 2015 Alexandre Freire Pimentel | Bruna Liana Amorim de Andrade § 4º É incabível o incidente de resolução de demandas repetitivas quando um dos tribunais superiores, no âmbito de sua respectiva competência, já tiver afetado recurso para definição de tese sobre questão de direito material ou processual repetitiva. § 5º Não serão exigidas custas processuais no incidente de resolução de demandas repetitivas. Percebe-se que o legislador restringiu o uso do instituto à “questão unicamente de direito” associada ao risco de ofensa à isonomia “e” à segurança jurídica. A sua incidência resume-se às causas cuja matéria fática possa ser confirmada unicamente por meio de prova documental. É comum, no dia-a-dia, essas causas versarem sobre questões previdenciárias, tributárias, seguros de saúde etc, apresentando a mesma tese, em situação fático-jurídica semelhante, diferenciando-se apenas os sujeitos processuais: o autor e réu. Podese afirmar, que, essas causas denotam a existência de um “interesse” que ultrapassa o interesse subjetivo dos litigantes, sendo conveniente, e justo, que todos os titulares do mesmo direito logrem tratamento isonômico. No que diz respeito ao “risco à segurança jurídica”, vê-se que a preocupação do NCPC foi a de proporcionar confiabilidade às decisões judiciais, superando-se o grande problema derivado do fato de o ordenamento jurídico admitir a possibilidade de mais de uma interpretação jurisdicional para a mesma causa, fato que além de malferir o princípio da isonomia também agride a segurança jurídica. Em que pese tal previsão, esse requisito mostra-se de cunho subjetivo, uma vez que competirá ao próprio tribunal presumir a potencialidade de insegurança que as eventuais decisões individuais possam causar. O art. 933 do Projeto rezava que “O juízo de admissibilidade e o julgamento do incidente competirão ao plenário do tribunal ou, onde houver, ao órgão especial”. Entretanto, o Senado Federal alterou a competência para o julgamento do IRDR, restando a questão disposta no art. 978 do NCPC, com a possibilidade de julgamento por órgão colegiado distinto do plenário ou do órgão especial, desde seja no âmbito interno do tribunal o responsável pela uniformização da jurisprudência, vejamos: Revista do CEJ - n. 5, p. 49-70 - nov. 2015 65 Demandas de massa e o problema da admissibilidade do IRDR no CPC-2015 O julgamento do incidente caberá ao órgão indicado pelo regimento interno dentre aqueles responsáveis pela uniformização de jurisprudência do tribunal. Parágrafo único. O órgão colegiado incumbido de julgar o incidente e de fixar a tese jurídica julgará igualmente o recurso, a remessa necessária ou o processo de competência originária de onde se originou o incidente. De melhor técnica a redação do Senado, considerando que de acordo com a Constituição Federal, compete aos tribunais dispor sobre sua organização endógena, inclusive sobre a competência de seus órgãos colegiados. Logo, o IRDR deve ser decidido pelo órgão colegiado indicado pelo regimento interno como sendo o competente para uniformizar a jurisprudência do tribunal, mas deve-se registrar que a decisão adotada no IRDR não vinculará os órgãos colegiados do tribunal eventualmente sobrepostos ao indicado no regimento interno como competente para decidir o incidente. Expliquemos a questão: é possível que um determinado tribunal eleja como competente para julgar o IRDR um órgão colegiado que seja sobreposto às turmas ou câmaras que julgam as apelações e os agravos de instrumento. Nesse caso, restará sobreposto a tal órgão a Corte Especial ou o Pleno, os quais não se submetem, regimentalmente falando, ao caráter vinculativo das decisões dos seus órgãos subpostos. Essa nuance é importante, porque o art. 985 do CPC-2015 prescreve que uma vez julgado o incidente, a tese jurídica adotada será aplicada a todos os processos individuais ou coletivos que versem sobre idêntica questão de direito e que tramitem na área de jurisdição do respectivo tribunal, inclusive àqueles que tramitem nos juizados especiais do respectivo Estado ou região. Mas é curial que tal dispositivo somente se aplica aos órgãos inferiores àquele que julgou o incidente. Uma vez admitido o IRDR, competirá ao relator adotar as providências previstas no art. 982 do CPC-2015, dentre as quais destacamos o dever de suspender todos os processos pendentes que tramitem pelo território abrangido pela jurisdição do seu tribunal, incluídos os processos coletivos. O efeito da suspensão dos processos pendentes é de índole 66 Revista do CEJ - n. 5, p. 49-70 - nov. 2015 Alexandre Freire Pimentel | Bruna Liana Amorim de Andrade cogente, eis que o art. 982 usa o verbo “suspender” no modo imperativo, sem qualquer outra opção ao relator, o qual, aliás, deverá comunicar a decisão de suspensão a todos os órgãos jurisdicionais competentes. Entretanto, a suspensão processual acarretada pelo IRDR não impede a concessão de medidas de urgência, cuja apreciação não será procedida pelo relator, mas pelo juiz perante o qual tramitar o processo em que tenha se verificado a situação de perigo de dano. Conclusão As considerações aqui colocadas, em nenhum momento, procuraram pôr a termo a discussão sobre o assunto, uma vez que, em razão de ser um novo instituto, não há um posicionamento doutrinário solidificado, nem, tampouco, existem precedentes jurisprudenciais pertinentes. Inserido no PLS 166/2010, o incidente de resolução de demandas repetitivas apresenta peculiaridades que o afasta do procedimento que lhe serviu de inspiração, o Musterverfahren tedesco. Seu consiste em promover o célere julgamento de questões isomórficas, com a redução de número de causas que tramitam nos tribunais, e com a uniformização de jurisprudência de caráter vinculante, fatores que traduzem um grande passo adiante na efetividade eficiente da tutela dos direitos no Brasil, visto que prevê a participação da sociedade civil em geral no seu julgamento e a possibilidade de reclamação, em caso da autoridade judiciária inobservar o precedente firmado. O problema da multiplicação de processos é observado em caráter mundial, atingindo países de diferentes níveis de desenvolvimento, decorrente não só da estrutura econômica atualmente presenciada, mas também da proliferação rápida de informações. Consequentemente, desperta-se a necessidade de evitar que decisões, proferidas por um mesmo órgão, ou órgãos adstritos a um mesmo tribunal, acerca de uma mesma situação, conflitem entre si, colocando em perigo a própria confiança e legitimidade institucional do Poder Judiciário. Assim, o legislador brasileiro, desde a vigência do atual Código de Processo Civil, vem demonstrando essa preocupação e uma tendência, por meio de diversas alterações já efetuadas, em adotar institutos que visem uma maior celeridade, efetividade e segurança jurídica do sistema Revista do CEJ - n. 5, p. 49-70 - nov. 2015 67 Demandas de massa e o problema da admissibilidade do IRDR no CPC-2015 processual, como, por exemplo, o julgamento por amostragem de recurso especial e extraordinário e a súmula vinculante. Assim, reputamos o IRDR como o melhor mecanismo processual apresentado pelo NCPC, com vistas à solução das demandas de massa no Brasil com relevo para a preservação da igualdade e coerência da ordem jurídica, através do julgamento em bloco e construção de uma tese única a ser observada, obrigatoriamente, pelos demais juízos, apesar de considerarmos improvável a diminuição do trabalho jurisdicional. Isto é, a simplificação na resolução desses casos não implicará a diminuição do ajuizamento de demandas no Judiciário. Para tanto, seria válido observar com bons olhos o modelo americano das class actions, cujo resultado mostrou-se satisfatório, historicamente, na perseguição desse objetivo. 68 Revista do CEJ - n. 5, p. 49-70 - nov. 2015 Alexandre Freire Pimentel | Bruna Liana Amorim de Andrade Referências CABRAL, Antônio do Passo. O novo procedimento-modelo (Musterverfahren) alemão: uma alternativa às ações coletivas. In: Revista de Processo – v. 147. 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Revista do CEJ - n. 5, p. 49-70 - nov. 2015 69 Demandas de massa e o problema da admissibilidade do IRDR no CPC-2015 LIMA, Paulo Roberto de Oliveira. Contribuição à teoria da coisa julgada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. MARINONI, Luiz Guilherme. Ações repetitivas e julgamento liminar. Revista Jurídica. Porto Alegre: Editora Notadez, v. 55, n. 354, abr. 2007. MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Repercussão geral no recurso extraordinário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. ______. O Projeto do CPC: crítica e propostas. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. MENDES, Aluisio Gonçalvez de Castro. Ações coletivas no direito comparado nacional. Coleção temas atuais de direito processual civil. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012, v. 4. NUNES, Dierle José Coelho. Comparticipação e policentrismo: horizontes para a democratização processual civil. 2008. 217 f. Tese de conclusão de Programa de Pós-Graduação em Direito. 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Cultura e processo. Rivista trimestrale di diritto e procedura civile, Milano, v. 61, n. 1, mar. 2009. 70 Revista do CEJ - n. 5, p. 49-70 - nov. 2015 Responsabilidade civil contratual e o dano moral no ordenamento jurídico brasileiro: sua aplicabilidade nos tribunais Artur de Lima Barretto Lins Sumário: Introdução. 1 Fundamentação, caracterização e conceito. 2 Responsabilidade civil contratual e indenização por dano moral. Considerações finais. Referências. Introdução Ante o novo paradigma jurídico pós Constituição da República de 1988, a pergunta feita pelo professor Sergio Cavalieri Filho (2010, p. 81) ainda ressoa na doutrina e na jurisprudência: o que é o dano moral? Isso porque já é amplamente pacificada a existência cumulada de um dano moral e de um dano material decorrentes de um mesmo fato, de acordo com a Súmula 37 do Superior Tribunal de Justiça (STJ)38. A previsão concreta em nossa legislação, sem a necessidade de se buscar uma interpretação extensiva decorrente dos clamores doutrinário e jurisprudencial para o reconhecimento desse tipo de lesão (CAVALIERI FILHO, 2010, pp. 84 a 86), veio com a expressa previsão nos incisos X e V do art. 5º da Constituição da República, desdobrada infraconstitucionalmente em diplomas específicos39. Importa, para esse estudo, sabermos quais os seus fundamentos, o que caracteriza ou configura o dano moral, quem pode sofrê-lo, quem pode pleitear sua reparação, como essa reparação é feita e, por fim, mas perpassando toda a discussão, sua aplicabilidade nos tribunais pátrios. Uma análise superficial à produção de decisões finais de mérito desses tribunais – em primeiro e segundo grau de recurso, além 38 STJ, Súmula 37: São cumuláveis as indenizações por dano moral e material oriundos do mesmo fato. 39 Apenas a título de exemplo: inciso III do art. 6º do Código de Defesa do Consumidor (CDC) e art. 186 do Código Civil (CC). Revista do CEJ - n. 5, p. 71-94 - nov. 2015 71 Responsabilidade civil contratual e o dano moral no ordenamento jurídico brasileiro: sua aplicabilidade nos tribunais de revisões pelos tribunais superiores – é suficiente para demonstrar o reconhecimento de indenização por danos morais em virtude do não cumprimento do contrato40. É dever, tanto do doutrinador quanto do aplicador do caso concreto, verificar se essa possibilidade é uma decorrência de um descumprimento direto de cláusulas contratuais41 ou se são causas supervenientes relativamente independentes (CAVALIERI FILHO, 2010, p. 512), além de verificar se o dano moral advém do simples inadimplemento ou se são necessários outros fatores para sua ocorrência. Esses são os exames aos quais procederemos. 1 Fundamentação, caracterização e conceito O art. 5º da Constituição da República, ao tratar do dano moral, resguarda a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas42. A origem dessa proteção é a dignidade da pessoa humana, princípio fundamental da República Federativa, nos termos do artigo primeiro da Carta Magna. De acordo com lição de Immanuel Kant (in CAVALIERI FILHO, 2010, p. 83), a dignidade é um conceito objetivo, uma qualidade inerente ao ser humano, insubstituível, não comercializável, devendo ser autonomamente exercida pelo sujeito. Além desses direitos, reconhecidos na Constituição, há outros direitos da personalidade “que não estão diretamente vinculados à dignidade” (CAVALIERI FILHO, 2010, p. 84) tais como o direito ao nome, direitos autorais, convicções religiosas, sócio-políticas etc., mas que são, também, englobados pelos direitos da personalidade. Modernamente, tem-se entendido que o “tempo perdido”, especialmente nas relações de consumo, acarreta lesão de ordem 40 Ao longo do texto, traremos desses exemplos, tanto de decisões em casos concretos como de alguns entendimentos sumulados. A título de curiosidade, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios possui uma página institucional na internet com pouco mais de duas dezenas de Acórdãos sob a rubrica “Inadimplemento contratual – dano moral”. Disponível em: <http://www.tjdft.jus.br/institucional/ jurisprudencia/temas-em-debate/jurisprudencia-reiterada-1/direito-civil/inadimplemento-contratual2013-dano-moral>. Acesso em 19 ago. 2013. 41 CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de responsabilidade civil. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2010, pp. 292-298. 42 Inciso X do art. 5º da Constituição da República: “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”. 72 Revista do CEJ - n. 5, p. 71-94 - nov. 2015 Artur de Lima Barretto Lins moral (DESSAUNE, 2012, passim)43. Para esse autor, o dano moral, em uma relação consumerista, caracteriza-se pela “violação do recurso cognitivo abstrativo do consumidor (sua consciência)44, quanto (pel) o abalo dos seus recursos vitais vulneráveis (seu equilíbrio psíquico e físico)” (DESSAUNE, 2012, p. 87). Para a caracterização do dano moral, não se leva em consideração meramente a dor sentida, a humilhação sofrida, o sofrimento, pois estes são consequências do dano. Para que haja dano, essa dor, sofrimento, humilhação devem “fugir à normalidade”, interferindo “intensamente no comportamento psicológico do indivíduo” (CAVALIERI FILHO, 2010, pp. 83 e 87). Esse é o entendimento atual do STJ, segundo o qual: Na verdade, a vida em sociedade traduz, infelizmente, em certas ocasiões, dissabores que, embora lamentáveis, não podem justificar a reparação civil, por dano moral. Assim, não é possível se considerar meros incômodos como ensejadores de danos morais, sendo certo que só se deve reputar como dano moral a dor, o vexame, o sofrimento ou mesmo a humilhação que, fugindo à normalidade, interfira intensamente no comportamento psicológico do indivíduo, chegando a causarlhe aflição, angústia e desequilíbrio em seu bem estar. (STJ REsp 1234549 SP, Rel. Min. Massami Uyeda, 3ª Turma. DJe 10.2.2012). No caso concreto, a configuração dessas condições não têm sido amplamente analisadas no STJ nem no Supremo Tribunal Federal (STF), diante dos enunciados de Súmulas que impedem o reexame de matérias fáticas nesses tribunais superiores, o que apenas ocorreria em grau de Recurso Ordinário ou Ação Originária45 E como se dá essa interferência, já que, para essa caracterização, levar-se-ia em consideração apenas o fato, pois o dano seria presumido pela existência da conduta e do seu nexo causal? 43 Chancelando esse posicionamento, ver os seguintes acórdãos: TJRS, Apelação Cível n. 70034739904, 10ª Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Paulo Antônio Kretzmann, julgado em 22.07.2010 e o TJPE, Apelação Cível 230521-7. Voto/Vista do Des. Jones Figueirêdo. Relator do acórdão: Des. Eurico de Barros Correia Filho, 4ª Câmara Cível. Julgado em 07.04.2011. 44 “Entendendo que consciência é o processo cognitivo responsável por criar a realidade de cada um e a ela (realidade) atribuir significados e importância pessoais” (DESSAUNE, 2012, p. 87). 45 STJ, Súmula 7: A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial; STF, Súmula 279: Para simples reexame de prova não cabe recurso extraordinário. Revista do CEJ - n. 5, p. 71-94 - nov. 2015 73 Responsabilidade civil contratual e o dano moral no ordenamento jurídico brasileiro: sua aplicabilidade nos tribunais Tanto os tribunais quanto a doutrina utilizam a conhecida condição do bonus pater familias da tradição romano-germânica ou do ordinary person do direito anglo-saxão (SCHREIBER, 2013, p. 39). Essas figuras tomam “como paradigma o cidadão que se coloca a igual distância do homem frio, insensível, e o homem de extrema sensibilidade”46, critério objetivo que evita distorções, mas desde que utilizado sem subjetivismos pelo julgador, isto é, desde que não “construído sobre a formação socioeconômica do magistrado”, e sim de acordo com dados obtidos do caso concreto e cotejados com o contexto socioeconômico, segundo a lição de Anderson Schreiber (2013, p. 40). A existência do dano moral, sua prova, de acordo com o professor Cavalieri (2010, p. 90), “decorre da gravidade do ilícito em si”, estando o dano moral in re ipsa. A jurisprudência do STJ, no entanto, “não tem mais considerado este um caráter absoluto”, conforme artigo institucional produzido pela Coordenadoria de Editoria e Imprensa do próprio tribunal47. Nesse texto são citados exemplos de julgados (REsp 969.097 e REsp 494.867) nos quais se exigiu dos autores prova de que os atos se deram de forma injusta, despropositada, com reflexos na vida pessoal do autor, com a ocorrência de danos concretos48. Tais são, porém, repercussões do ato danoso, reflexos decorrentes do ilícito, que devem ser levados em conta no momento do arbitramento do dano (CAVALIERI FILHO, 2010, pp. 88 e 96). A indenização por dano moral não tem a natureza de restituir integralmente o bem lesado, pois os direitos da personalidade não podem ser quantificados (CAVALIERI FILHO, 2010, pp. 96 e 97), mas serve para compensar o sofrimento causado pelo agente. De acordo com o Código Civil (CC), em seu art. 944, “a indenização mede-se pela extensão do dano”, devendo essa compensação tomar esse critério como pontapé inicial para o arbitramento do dano moral. 46 Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Apelação Cível 8.218/1995, 2ª Câmara, Rel. Des. Sérgio Cavalieri Filho. 47 No artigo institucional do próprio tribunal: STJ define em quais situações o dano moral pode ser presumido, 1 jul 2012. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=398&tmp. texto=106255>. Acesso em: 12 jun. 2013. 48 Em contraste com antigo posicionamento dessa corte, v.: “os prejuízos extrapatrimoniais suportados pela vítima independem de prova material para que surja o direito à reparação por dano moral, bastando a comprovação da ação voluntária e do seu nexo causal: Estando comprovado o fato não é preciso a prova do dano moral” (STJ, AGA 250722/SP, j. 19/11/1999, 3ª Turma, r. Carlos Alberto Menezes Direito, DJ 07.02.2000). 74 Revista do CEJ - n. 5, p. 71-94 - nov. 2015 Artur de Lima Barretto Lins A Constituição da República não recepcionou as regras que previam indenização tarifada (STF, RE 172.720-RJ, RTJ 162/1.093, apud CAVALIERI FILHO, ibidem), mas os tribunais superiores, além de critérios relativos à capacidade econômica do ofensor e da vítima, do comportamento do ofendido e do grau de culpa do ofensor, sempre com razoabilidade e proporcionalidade, têm admitido os danos punitivos, como medida pedagógica49, modelo que, segundo Schreiber (2013, pp 211-214), tem sofrido inúmeras críticas, seja por não respeitar o critério previsto no art. 944 do CC, seja porque não há previsão legal, seja porque gera enriquecimento sem causa à parte beneficiada e mesmo porque traz ao direito civil sanção que tem caráter eminentemente penal. Além da pessoa física, a pessoa jurídica também pode sofrer dano moral. Esse entendimento é pacificado em nossos tribunais e está sumulado pelo STJ50. De acordo com o professor Cavalieri (2010, p. 101), esse dano existirá apenas quando houver dano à honra objetiva desses entes, ou seja, quando houver ofensa à reputação, ao bom nome, à imagem da pessoa jurídica perante a sociedade, pois a honra subjetiva diz respeito à autoestima do ser, sentimento inexistente na pessoa jurídica. Quem pode pleitear a indenização por danos morais? De maneira cristalina, a pessoa que alega ter sofrido o dano (CAVALIERI FILHO, 2010, p. 91), mas, no caso do falecimento da vítima, três teorias cercam o direito sucessório: a da intransmissibilidade, a da transmissibilidade condicionada e a da transmissibilidade incondicionada (CAVALIERI FILHO, 2010, pp. 93 e 94)51. A teoria da intransmissibilidade define que não há direito ação transmitido como herança de pessoa falecida, pois apenas esta seria legítima para propor ação de reparação de dano sofrido apenas por ela própria. Na transmissibilidade condicionada e na transmissibilidade incondicionada busca-se verificar se há transmissão do direito de 49 “O valor do dano moral tem sido enfrentado no STJ com o escopo de atender a sua dupla função: reparar o dano buscando minimizar a dor da vítima e punir o ofensor, para que não volte a reincidir. Fixação de valor que não observa regra fixa, oscilando de acordo com os contornos fáticos e circunstanciais [...]”. (REsp 604801/RS. Rel. Min. Eliana Calmon, 2ª Turma. DJ 07.03.2005, p. 214). 50 STJ, Súmula 227: A pessoa jurídica pode sofrer dano moral. 51 Nota-se que, em todos os casos, não é o dano moral em si, que é personalíssimo, e sim sua reparação econômica. Revista do CEJ - n. 5, p. 71-94 - nov. 2015 75 Responsabilidade civil contratual e o dano moral no ordenamento jurídico brasileiro: sua aplicabilidade nos tribunais reparação dos danos apenas quando a vítima já tenha ajuizado ação (com posterior habilitação dos herdeiros) ou se os herdeiros podem ajuizar ação própria para buscar a compensação material por dano moral sofrido pelo de cujus. A jurisprudência recente, tanto do STF quanto do STJ apontam na coexistência pacífica das teorias que aceitam a transmissibilidade52, pois, segundo o professor Cavalieri: 52 76 Nesse sentido, segue decisão monocrática do Min. Dias Toffoli: “Da análise dos artigos 12 e 943 do Código Civil deduz-se que o direito à indenização, tanto de ordem material como moral, são assegurados aos sucessores do lesado, transmitindo-se com a herança, uma vez que o direito que se sucede é o de ação, que possui natureza patrimonial, e não o direito moral em si, que é personalíssimo e, portanto, intransmissível” (STF, AI 832751 SP, decisão monocrática. Relator: Min. Dias Toffoli. DJe 28.09.2012); e, em valoroso voto: [...] A questão controvertida consiste em saber se os pais possuem legitimidade ativa ad causam para propor ação, postulando indenização por dano moral sofrido, em vida, pelo filho falecido. 3. É certo que esta Corte de Justiça possui orientação consolidada acerca do direito dos herdeiros em prosseguir em ação de reparação de danos morais ajuizada pelo próprio lesado, o qual, no curso do processo, vem a óbito. Todavia, em se tratando de ação proposta diretamente pelos herdeiros do ofendido, após seu falecimento, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça possui orientações divergentes. De um lado, há entendimento no sentido de que “na ação de indenização de danos morais, os herdeiros da vítima carecem de legitimidade ativa ad causam” (REsp 302.029/RJ, 3ª Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, DJ de 1º.10.2001); de outro, no sentido de que “os pais - na condição de herdeiros da vítima já falecida - estão legitimados, por terem interesse jurídico, para acionarem o Estado na busca de indenização por danos morais, sofridos por seu filho, em razão de atos administrativos praticados por agentes públicos [...]”. Isso, porque “o direito de ação por dano moral é de natureza patrimonial e, como tal, transmite-se aos sucessores da vítima (RSTJ, vol. 71/183)”. (REsp 324.886/ PR, 1ª Turma, Rel. Min. José Delgado, DJ de 03.09.2001). 4. Interpretando-se sistematicamente os arts. 12, parágrafo p g único,, e 943 do Código g Civil (antigo art. 1.526 do Código Civil de 1916), infere-se que o direito à indenização, ou seja, o direito de se exigir a reparação de dano, tanto de ordem material como moral, foi assegurado pelo Código g Civil aos sucessores do lesado, transmitindo-se com a herança. Isso, porque o direito que se sucede é o de ação, que possui natureza patrimonial, e não o direito moral em si, que é personalíssimo e, portanto, intransmissível. 5. José de Aguiar Dias leciona que não há princípio algum que se oponha à transmissibilidade da ação de reparação de danos, porquanto “a ação de indenização se transmite como qualquer outra ação ou direito aos sucessores da vítima. Não se distingue, tampouco, se a ação se funda em dano moral ou patrimonial. A ação que se transmite aos sucessores supõe o prejuízo causado em vida da vítima” (Da Responsabilidade Civil, Vol. II, 4ª ed., Forense: Rio de Janeiro, 1960, p. 854). 6. Como bem salientou o Ministro Antônio de Pádua Ribeiro, no julgamento do REsp 11.735/PR, “o direito de ação por dano moral é de natureza patrimonial e, como tal (2ª Turma, DJ de 13.12.1993), transmite-se aos sucessores da vítima”. 7. “O sofrimento, em si, é intransmissível. A dor não é ‘bem’ que componha o patrimônio transmissível do de cujus. Mas me parece de todo em todo transmissível, por direito hereditário, o direito de ação que a vítima, ainda viva, tinha contra o seu ofensor. Tal direito é de natureza patrimonial. Leon Mazeaud, em magistério publicado no Recueil Critique Dalloz, 1943, pág. 46, esclarece: ‘O herdeiro não sucede no sofrimento da vítima. Não seria razoável admitir-se que o sofrimento do ofendido se prolongasse ou se entendesse (deve ser estendesse) ao herdeiro e este, fazendo sua a dor do morto, demandasse o responsável, a fim de ser indenizado da dor alheia. Mas é irrecusável que o herdeiro sucede no direito de ação que o morto, quando ainda vivo, tinha contra o autor do dano. Se o sofrimento é algo entranhadamente pessoal, o direito de ação de indenização do dano moral é de natureza patrimonial e, como tal, transmite-se aos sucessores’.” (PORTO, Mário Moacyr, in Revista dos Tribunais, Volume 661, pp. 7/10). 8. “O dano moral, que sempre decorre de uma agressão a bens integrantes da personalidade (honra, imagem, bom nome, dignidade etc.), só a vítima pode sofrer, e enquanto viva, porque a personalidade, não há dúvida, extingue-se com a morte. Mas o que se extingue - repita-se - é a personalidade, e não o dano consumado, nem o direito à indenização. Perpetrado o dano (moral ou material, não importa) contra a vítima quando ainda viva, o direito à indenização correspondente não se extingue com sua morte. E assim é porque a obrigação de indenizar o dano moral nasce no mesmo momento em que nasce a obrigação de indenizar o dano patrimonial - no momento em que o agente inicia a prática do ato ilícito e o bem juridicamente tutelado sofre a lesão. Neste aspecto não há distinção alguma entre o dano moral e patrimonial. Nesse mesmo momento, também, o correlativo direito à indenização, que tem natureza patrimonial, passa a integrar o patrimônio da vítima e, assim, se transmite aos herdeiros dos titulares da indenização” (CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil, 7ª ed., São Paulo: Atlas, 2007, pp. 85/88). 9. Ressalte-se, por oportuno, que, conforme explicitado na r. sentença e no v. acórdão Revista do CEJ - n. 5, p. 71-94 - nov. 2015 Artur de Lima Barretto Lins [...] cuida-se da incorporação ao patrimônio dos herdeiros daquele direito que nasceu e foi reconhecido pela própria vítima, a qual, contudo, não teve oportunidade de iniciar a ação. Pensamos que esse é o critério que deve prevalecer (2010, p. 95). 2 Responsabilidade civil contratual e indenização por dano moral De acordo com a lição de Sérgio Cavalieri Filho (2010, pp. 290 a 295), para que haja responsabilidade civil contratual, é necessária a existência de uma relação jurídica prévia, um contrato, diferentemente da responsabilidade extracontratual, na qual não existe qualquer “liame jurídico anterior” entre as partes envolvidas em uma obrigação dessa natureza, mas sim um dever geral de não fazer mal a ninguém (STOCCO, 2007, p. 114), quando surge a responsabilidade e o dever de indenizar a posteriorii ao ato ilícito. O dever jurídico violado, na responsabilidade contratual, tem por fonte a vontade das partes, e a deturpação desse ato volitivo é que faz surgir o ilícito contratual, seja por meio do inadimplemento, seja por meio da mora (CAVALIERI FILHO, 2010, pp. 292 e 295). Em regra, o descumprimento contratual não gera obrigação de indenizar danos morais (ou extrapatrimoniais). Seu descumprimento, como já ventilado, resolve-se na reparação com juros moratórios, cláusula penal e perdas e danos.53 E quando há uma frustração à não perfeição do motivo da realização de um contrato, essa frustração pode causar sofrimento tal que descambe em dano moral? De acordo com o Enunciado n. 14 do Fórum dos Juizados recorrido, “o finado era solteiro e não deixou filhos, fato incontroverso comprovado pelo documento de fl. 14 (certidão de óbito), sendo os autores seus únicos herdeiros, legitimados, pois, a propor a demanda” (fl. 154). Ademais, foi salientado nos autos que a vítima sentiu-se lesada moral e fisicamente com o ato praticado pelos policiais militares e que a ação somente foi proposta após sua morte porque aguardava-se o trânsito em julgado da ação penal. 10. Com essas considerações doutrinárias e jurisprudenciais, pode-se concluir que, embora o dano moral seja intransmissível, o direito à indenização correspondente transmite-se causa mortis, na medida em que integra o patrimônio da vítima. Não se olvida que os herdeiros não sucedem na dor, no sofrimento, na angústia e no aborrecimento suportados pelo ofendido, tendo em vista que os sentimentos não constituem um “bem” capaz de integrar o patrimônio do de cujus. Contudo, é devida a transmissão do direito patrimonial de exigir a reparação daí decorrente. Entende-se, assim, pela legitimidade ativa ad causam dos pais do ofendido, já falecido, para propor ação de indenização por danos morais, em virtude de ofensa moral por ele suportada (STJ. REsp 978651 SP, 1ª Turma. Relatora: Min. Denise Arruda, DJe 26.03.2009. Disponível em: <http://stj.jusbrasil.com/jurisprudencia/3994552/recurso-especial-resp-978651sp-2007-0159666-6>. Acesso em: 13 jun. 2013). 53 Art. 475 do Código Civil: A parte lesada pelo inadimplemento pode pedir a resolução do contrato, se não preferir exigir-lhe o cumprimento, cabendo, em qualquer dos casos, indenização por perdas e danos. Revista do CEJ - n. 5, p. 71-94 - nov. 2015 77 Responsabilidade civil contratual e o dano moral no ordenamento jurídico brasileiro: sua aplicabilidade nos tribunais Especiais de Pernambuco54: ENUNCIADO 14: O inadimplemento contratual, por si só, não enseja o dano moral, salvo se da infração advém circunstância que atente contra a dignidade ou frustre, de modo intenso, uma expectativa ansiosamente desejada. (à unanimidade). “Circunstância que atente contra a dignidade” não é difícil de ser revelada, especialmente por causa dos comandos constitucionais55, porém o que poderia “frustrar, de modo intenso, uma expectativa ansiosamente desejada”? Poderia tal epígrafe ser albergada sob um “conceito jurídico indeterminado”?56 De acordo com as decisões judiciais que traremos à baila, essas perguntas serão respondidas. O dano moral, de acordo com Dessaune (2012, p. 87), não é apenas a violação da consciência57 da vítima, como também “abalo dos seus recursos vitais vulneráveis (seu equilíbrio psíquico e físico)”. Na seara do caso concreto, a jurisprudência dominante entende que há de serem superados os meros aborrecimentos do cotidiano, como assim expomos: RECURSO INOMINADO. CONSUMIDOR. PROVEDOR DE INTERNET. UOL. CONTRATAÇÃO COMPROVADA MEDIANTE O FORNECIMENTO DE DADOS. DISPONIBILIZAÇÃO NÃO COMPROVADA, AUSENTE DISPONIBILIZAÇÃO DE TECNOLOGIA PELA OPERADORA DE TELECOMUNICAÇÕES. REPETIÇÃO DO INDÉBITO. DANO MORAL INOCORRENTE. SENTENÇA REFORMADA. 1. Conforme ressai do contraditório efetivado nos autos, não é verossímil que a parte autora tenha contratado serviço de provedor de internet sem 54 PERNAMBUCO. Tribunal de Justiça de Pernambuco. Enunciado 14 do Fórum dos Juizados Especiais de Pernambuco: O inadimplemento contratual, por si só, não enseja o dano moral, salvo se da infração advém circunstância que atente contra a dignidade ou frustre, de modo intenso, uma expectativa ansiosamente desejada. Art. 475 do Código Civil: A parte lesada pelo inadimplemento pode pedir a resolução do contrato, se não preferir exigir-lhe o cumprimento, cabendo, em qualquer dos casos, indenização por perdas e danos. Disponível em: <http://www.tjpe.jus.br/juizadosesp/EnunciadosCiveis.pdf>. Acesso em: 19 ago. 2013. 55 Para um estudo sobre o tema, v. LINS, Artur. O dano moral no ordenamento jurídico brasileiro e sua aplicabilidade nos tribunais. 2013. 10 f. Trabalho entregue como requisito para a disciplina Elementos da Responsabilidade Civil Objetiva da Pós-Graduação em Responsabilidade Civil e Direito do Consumidor, Universidade Estácio de Sá, 2013. 56 Sobre esse assunto, v. MENDONÇA, Kylce Anne Pereira Collier de. Argumentação, termos jurídicos indeterminados e discricionariedade na administração pública brasileira. Mestrado em Direito. Programa de Pós-Graduação em Direito – PPGD, UFPE, Recife, 2004. 57 “Entendendo que consciência é o processo cognitivo responsável por criar a realidade de cada um e a ela (realidade) atribuir significados e importância pessoais” (DESSAUNE, 2012, p. 87). 78 Revista do CEJ - n. 5, p. 71-94 - nov. 2015 Artur de Lima Barretto Lins ter acesso à banda larga, senão se induzida em erro pela prestadora de serviços. Nesse sentido, é de se manter a sentença no tangente à repetição do indébito, pelos próprios fundamentos. 2. Circunstância de inadimplemento contratual que, via de regra, não constitui suporte fático bastante a fundamentar obrigação reparatória, na medida em que o respectivo descumprimento é incapaz de transbordar os limites do mero dissabor, deixando de incorrer em lesão a direitos de personalidade. 3. Sentença reformada para afastar a condenação a título de danos morais. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO.58. Por outro lado, corroborando a lição de Dessaune, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), além de possuir súmulas a respeito de inadimplemento contratual e dano moral59, já pacificou seu entendimento nesse sentido: Nos casos de negativa de cobertura por parte do plano de saúde, em regra não se trata de mero inadimplemento contratual. A recusa indevida de tratamento médico - nos casos de urgência - agrava a situação psicológica e gera aflição, que ultrapassam os meros dissabores, caracterizando o dano moral indenizável. (STJ AgRg no AREsp 213169 RS, 4ª Turma. Relator: Min. Luis Felipe Salomão. DJe 11 out. 2012). Deve ser verificado, porém, que não apenas o inadimplemento direto pode ser capaz de gerar danos dessa natureza, mas comportamentos paralelos, supervenientes, também possuem esse condão. Além do art. 475 do Código Civil (CC), inúmeros outros artigos, especialmente do Código de Defesa do Consumidor (CDC) asseguram, caso não haja respeito à garantia contratual e/ou legal, a possibilidade de restituição imediata da quantia paga, com resolução do contrato, “sem prejuízo de eventuais perdas e danos”60. É o que o professor Cavalieri Filho 58 BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Contratação comprovada mediante o fornecimento de dados. Disponibilização não comprovada, ausente disponibilização de tecnologia pela operadora de telecomunicações. Repetição do indébito. Dano moral inocorrente. Sentença reformada. Recurso cível n. 71004185641. Recorrente: Universo Online S/A. Recorrido: Marlon Leandro Andrade Rodrigues. Relatora: Ketlin Carla Pasa Casagrande. Julgado em 16.08.2013. Disponível em: <http://www1.tjrs.jus.br/ busca/?q=inadimplemento+e+contratual+e+dano+e+moral&tb=jurisnova&pesq=ementario&partialfields =tribunal%3ATurmas%2520Recursais.%28TipoDecisao%3Aac%25C3%25B3rd%25C3%25A3o%7CTipoDecisao %3Amonocr%25C3%25A1tica%7CTipoDecisao%3Anull%29&requiredfields=&as_q=>. Acesso em: 20 ago. 2013. 59 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Súmula n. 370: Caracteriza dano moral a apresentação antecipada de cheque pré-datado. Súmula n. 388: A simples devolução indevida de cheque caracteriza dano moral. 60 Inciso II do § 1º do art. 18; inciso IV do art. 19; inciso II do art. 20; inciso III do art. 35; § 1º do art. 84. Revista do CEJ - n. 5, p. 71-94 - nov. 2015 79 Responsabilidade civil contratual e o dano moral no ordenamento jurídico brasileiro: sua aplicabilidade nos tribunais (2010, p. 512) se refere como dano extra rem, diferenciando-o do dano circa rem, senão vejamos: A expressão latina circa rem significa próximo, ao redor, ligado diretamente à coisa, de modo que não pode dela desgarrarse. Assim, dano circa rem é aquele que é inerente ao vício do produto ou do serviço, que está diretamente ligado a ele, não podendo dele desgarrar-se. A expressão latina extra rem indica vínculo indireto, distante, remoto; tem sentido de fora de, além de, à exceção de. Consequentemente, o dano extra rem é aquele que apenas indiretamente está ligado ao vício do produto ou do serviço porque, na realidade, decorre de causa superveniente, relativamente independente, e que por si só produz o resultado. A rigor, não é o vício do produto que causa o dano extra rem – dano material ou moral –, mas sim a conduta do fornecedor, posterior ao vício, por não dar ao caso a atenção e a atenção devidas. O dano moral, o desgosto íntimo, está dissociado do defeito, a ele jungido apenas pela origem. Na realidade, decorre de causa superveniente (o não atendimento pronto e eficiente ao consumidor, a demora injustificável na reparação do vício). Tem caráter autônomo. No nosso entender, esse é o principal fundamento61 do dano moral no caso de inadimplemento contratual62. 61 A título de exemplo: VÍCIO DO PRODUTO. GELADEIRA DEFEITUOSA. DESCASO COM O CONSUMIDOR PARA REALIZAR A TROCA DO PRODUTO. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DAS RÉS. DANOS MATERAIS CARACTERIZADOS. DANOS MORAIS EXCEPCIONALMENTE CONFIGURADOS. O consumidor pode optar pelo recebimento do valor pago, de acordo com o artigo 18, §3º, do CDC. Nessa linha, considerando que o prazo de 30 (trinta) dias estabelecido no artigo 18, §1º, do CDC é usado em situações excepcionais, as quais permitem a substituição de partes do produto, no caso posto a julgamento, é possível o desfazimento do negócio com a devolução do valor pago pela geladeira e, em contrapartida, a devolução daquela. Justificase a devolução do produto ao fornecedor, com a restituição do preço, em razão do elevado valor do bem e por se tratar de produto essencial à vida moderna, frisando que mesmo sendo possível o conserto, esta circunstância acarreta a diminuição do preço do bem. Por fim, a situação narrada autoriza a fixação de danos morais no valor de R$ 1.000,00 (mil reais), como decidido na origem, pois presente o descaso com o consumidor e o lapso temporal que o autor encontra-se sem usufruir o bem, o que autoriza, de forma excepcional, a configuração de danos morais. Danos morais arbitrados em sintonia com a Proposição n. 05, aprovada no Encontro de Juizados Especiais Cíveis e Criminais de Gramado (maio de 2005), e de acordo com os critérios da razoabilidade e da proporcionalidade. A condenação das rés é solidária por força do artigo 18 do CDC. Sentença mantida. Recurso desprovido. (Recurso Cível n. 71003979218, 1ª Turma Recursal Cível, Turmas Recursais, Relator: Lucas Maltez Kachny, julgado em 28.05.2013). 62 Excetuando-se os casos onde há causa não relativa, mas totalmente independente para esse tipo de lesão. 80 Revista do CEJ - n. 5, p. 71-94 - nov. 2015 Artur de Lima Barretto Lins Considerações finais O dano moral não pode ser visto apenas como os constitucionais danos à vida, à honra, à privacidade e à imagem das pessoas.63 O conceito de dignidade da pessoa humana, trazido como valor fundamental por nossa constituição, abriga “aspectos diversos da pessoa humana”, especialmente “sua integridade psicofísica” (SCHREIBER, 2013, p. 92). Creio que a dignidade da pessoa humana é o vértice axiológico de todo o sistema jurídico pátrio, e a legislação infraconstitucional64 tem e deve respeitar esse fundamento. Ofender a dignidade é ofender o que faz do ser humano único, mas não indivíduo, pois a dignidade é um sentimento de partilha social (especialmente quanto à honra objetiva, presente nas pessoas jurídicas)65, e o dano moral sofrido por uma pessoa é aquele sentido por outra, ainda que incapaz, deficiente mental, recém-nascida (SARLET, 2012, pp. 251 e ss). Um deslize quanto ao respeito à dignidade é um dano moral provocado. Critérios subjetivistas existem e devem ser mantidos quanto ao arbitramento do dano moral, levando-se em consideração os esquemas já propostos e analisados pela jurisprudência e doutrina pátrias, porém com especial atenção aos danos morais punitivos, por serem uma forma, pela rápida análise feita nesse artigo, que demonstra ir de encontro à nossa legislação pátria. Cabe ao Poder Legislativo se posicionar quanto a isso, quem sabe nos termos do direito norte-americano, “que distingue claramente os compensatory damages e punitive damages” (SCHREIBER, 2013, p. 213). Esse tipo de indenização prevê um duplo proveito econômico ao ofendido, não utilizando os “efeitos pedagógicos de punição” para fixar os danos morais compensatórios, como feito aqui no Brasil. Vimos ainda que o dano moral é personalíssimo, mas, em eventual caso de falecimento do ofendido, nossos tribunais superiores têm aceitado que os herdeiros busquem na justiça a reparação econômica pela ofensa moral, ainda que a vítima não tenha ingressado previamente com uma ação nesse sentido. Recomendamos, quanto a isso, a lição contida no voto da Ministra do STJ Denise Arruda, disponibilizado na nota 63 Inciso X do art. 5º da Constituição da República. 64 Dentre outros diplomas, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o Estatuto do Idoso, o Estatuto do Torcedor, o CDC, as leis que regulam as atividades empresariais e a livre concorrência, o CC e a Lei de Introdução às Normas Brasileiras (quando trazem como regra o princípio da boa fé objetiva, a função social do contrato e os fins sociais das normas). 65 Ver Súmula n. 227 do STJ. Revista do CEJ - n. 5, p. 71-94 - nov. 2015 81 Responsabilidade civil contratual e o dano moral no ordenamento jurídico brasileiro: sua aplicabilidade nos tribunais 13 desse trabalho. Por fim, os tribunais e a doutrina têm considerado, ultimamente, não apenas a dor psíquica, a lesão proveniente de um ato injurioso como possibilidade de dano moral no caso de inadimplemento contratual. De acordo com Dessaune (2012, p. 134-136), o dano moral também tem causa no “desvio produtivo” capaz de acarretar, especialmente nas relações de consumo, “prejuízo do tempo desperdiçado”. As lições do professor Cavalieri Filho acerca de danos circa rem e extra rem demonstram que causas supervenientes, relativamente independentes ao inadimplemento contratual, mas desde que evidente o nexo de causalidade, podem gerar danos extrapatrimoniais. O tempo perdido tem razão no descaso (GUGLINSKIN, 2012)66 do inadimplente e acarreta à vítima “escassez, inacumulabilidade e irrecuperabilidade” (DESSAUNE, 2012, p. 136). Nesse sentido, recomendase a busca por outras decisões judiciais que vinculem o dano moral decorrente de inadimplemento contratual ao descaso por parte do agente, como a que aqui segue transcrita, do Desembargador Jones Figueirêdo do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE): A questão é de extrema gravidade e não se pode admiti-la, por retóricas de tolerância ou de condescendência, que sejam os transtornos do cotidiano que nos submetam a esse vilipêndio de tempo subtraído de vida, em face de uma sociedade tecnológica e massificada, impessoal e disforme, onde nela as pessoas possam perder a sua própria individualidade, consideradas que se tornem apenas em usuários numerados em bancos informatizados de dados (TJPE. AC 230521-7. Voto/ Vista do Des. Jones Figueiredo. Relator do Acórdão Des. Eurico de Barros Correia Filho, 4ª Câmara Cível. Julgado em 7.4.2011). 66 82 GUGLINSKIN, Vitor. Perda de tempo provocada por descaso gera dano moral. Consultor Jurídico. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2012-mai-11/vitor-guglinskin-danos-morais-descaso-perda-tempo-util>. Acesso em: 20 ago. 2013. Revista do CEJ - n. 5, p. 71-94 - nov. 2015 Artur de Lima Barretto Lins Referências BACHUR, Ana Beatriz Taveira; FERREIRA, Fábio Augusto; ANGELÍCIO, Guilherme Dias. Danos morais decorrentes da quebra contratual. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XV, n. 106, nov. 2012. Disponível em: <http://www.ambito- juridico.com. br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=12425>. Acesso em: 19 ago. 2013. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 2 fev. 2013. BRASIL. Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov. br/ccivil_03/leis/L8078compilado.htm>. Acesso em: 10 jun. 2013. BRASIL. 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STJ define em quais situações o dano moral pode ser presumido, 1 jul. 2012. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/portal_ stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=398&tmp.texto=106255>. Acesso em: 12 jun. 2013. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Súmula n. 7. Pleno, 28 jun. 1990. DJ 3 jul. 1990. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Súmula n. 37. Pleno, 12 mar. 1992. DJ 17 mar. 1992. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Súmula n. 227. Pleno, 8 set. 1999. DJ 20 out. 1999. Revista do CEJ - n. 5, p. 71-94 - nov. 2015 83 Responsabilidade civil contratual e o dano moral no ordenamento jurídico brasileiro: sua aplicabilidade nos tribunais BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Súmula n. 370. Pleno, 16 fev. 2009. DJe 25 fev. 2009. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Súmula n. 388. Pleno, 26 ago. 2009. DJe 01 set. 2009. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo de Instrumento 832751 SP, Decisão monocrática. Relator: Min. Dias Toffoli. DJe 28 set. 2012. 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Conforme será explanado neste estudo, é mister analisar cada caso concreto com bastante atenção e percuciência para verificar se, de fato, o agravo de instrumento perdeu supervenientemente o seu objeto ante a prolação da sentença pelo juízo a quo. Muitos operadores do Direito (em especial, os julgadores) acreditam que a prolação de sentença no processo originário do qual emanou a decisão combatida por intermédio do agravo de instrumento acarreta, consequentemente, a perda de objeto do recurso instrumental, na medida em que esta decisão de mérito absorve os efeitos da decisão agravada por se tratar de juízo de cognição exauriente. Nesse sentido: AGRAVO EM AGRAVO DE INSTRUMENTO. NEGATIVA DE SEGUIMENTO. SUPERVENIÊNCIA DE SENTENÇA EXTINTIVA SEM RESOLUÇÃO DO MÉRITO. PERDA DO OBJETO. 1. A prolação de sentença após o julgamento do Agravo de Instrumento que manteve a decisão a quo no sentido de negar os benefícios da justiça gratuita acarreta a perda do objeto do Agravo de 67 Analista Judiciário do TJPE – APJ/Assessor Técnico-Judiciário – com lotação no Gabinete do Desembargador José Fernandes de Lemos. Revista do CEJ - n. 5, p. 85-94 - nov. 2015 85 Perda ou não do objeto do agravo de instrumento face à prolação da sentença no processo originário Instrumento e, consequentemente, do Agravo Legal interposto contra a decisão ad quem. 2. Recurso não provido. (TJPE; Recurso de Agravo n. 341232-4, Relator: Des. Stênio José de Sousa Neiva Coêlho, 1ª Câmara Cível, Julgamento: 09.09.2014, publicação no DJE: 16.09.2014). Com efeito, poder-se-ia até afirmar que o entendimento supra mencionado seria a regra. Entretanto, há de se ter em mente que esta regra possui exceções: há situações em que é necessário haver uma mitigação a este entendimento a fim de verificar que, conquanto tenha sido proferida a sentença no processo do primeiro grau, é imperiosa a apreciação do agravo de instrumento, mormente porquanto seu objeto ainda não se esvaiu. É que a superveniência de sentença no processo principal não conduz necessariamente à perda de objeto do agravo de instrumento. Tudo vai depender tanto do teor da decisão impugnada, ou seja, da matéria que será examinada pelo tribunal ao analisar o agravo, quanto do conteúdo da sentença. Nesse sentido, já se manifestou o Colendo Superior Tribunal de Justiça amparado pelo entendimento de doutrina abalizada sobre o ponto controvertido: PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AGRAVO DE INSTRUMENTO EM PROCESSO [...] JULGADO POSTERIORMENTE À SENTENÇA. DÚVIDA QUANTO À PERDA DE OBJETO. [...] 1. A superveniência da sentença no processo principal não conduz, necessariamente, à perda do objeto do agravo de instrumento. A conclusão depende tanto “do teor da decisão impugnada, ou seja, da matéria que será examinada pelo tribunal ao examinar o agravo, quanto do conteúdo da sentença” (O destino do agravo depois de proferida a sentença. Aspectos Polêmicos e Atuais dos Recursos Cíveis e de Outros Meios de Impugnação às Decisões Judiciais. Série 7. Nelson Nery Jr. e Teresa Arruda Alvim Wambier - coordenadores. São Paulo: RT, 2003). 2. A questão soluciona-se pela aplicação de dois critérios: a) o da hierarquia, segundo o qual a sentença não tem força para revogar a decisão do tribunal, razão por 86 Revista do CEJ - n. 5, p. 85-94 - nov. 2015 Carlos Rogério de Souza Silva que o agravo não perde o objeto, devendo ser julgado; b) o da cognição, pelo qual a cognição exauriente da sentença absorve a cognição sumária da interlocutória. Neste caso, o agravo perderia o objeto e não poderia ser julgado. [...]. (REsp 742.512/DF, Rel. Ministro Castro Meira, Segunda Turma. Julgado em: 11.10.2005, DJ 21.11.2005, p. 206). (destaques inexistentes no original). Ainda a fim de corroborar a tese de que a superveniência de sentença no processo principal não conduz obrigatoriamente à perda de objeto do recurso instrumental, é imprescindível trazer à tona o seguinte precedente do Egrégio Tribunal Regional Federal da 5ª Região que, também respaldado pelo entendimento doutrinário, sustenta a mesma tese: AGRAVO DE INSTRUMENTO. SUPERVENIÊNCIA DA SENTENÇA NO PROCESO PRINCIPAL. PERDA DO OBJETO. INOCORRÊNCIA. [...] - A superveniência da sentença no processo principal não conduz necessariamente à perda de objeto do agravo de instrumento. Nada obsta que o tribunal decida tornar insubsistentes os atos subsequentes à interposição do recurso que sejam incompatíveis com o resultado do julgamento proferido (Nelson Nery Junior e Rosa Maria Andrade Nery, in Código de Processo Civil Comentado e Legislação Processual Civil Extravagante em Vigor, Editora Revista dos Tribunais, 4ª edição, p. 103). - Precedentes da turma. - Agravo de instrumento provido (TRF 5ª Região -1ª Turma, Processo n. 20.050.5347-0, DJ de 17.09.2011). (Destaques nossos). Como saber, portanto, de acordo com o caso concreto em análise, se o mérito do agravo de instrumento deve ou não ser apreciado considerando já ter havido no processo do 1º grau - do qual surgiu a decisão agravada – sentença meritória? Antes de responder à indagação, deve-se destacar que, além da instigação que o tema suscita face sua importância teórica e principalmente prática – o que por si só já seria suficiente para prender a atenção do leitor – é fundamental relembrar que o agravo de instrumento não tem, via de regra, efeito suspensivo, ou seja, sua interposição em nada afetará o curso do procedimento regular do processo principal, de modo Revista do CEJ - n. 5, p. 85-94 - nov. 2015 87 Perda ou não do objeto do agravo de instrumento face à prolação da sentença no processo originário que, exceto se o relator do recurso a ele atribuir efeito suspensivo (CPC, artigo 527, III), a ação principal não será suspensa pelo fato de haver um agravo de instrumento pendente de julgamento no Tribunal. Pois bem. Voltando ao cerne da discussão, passa-se a responder à pergunta formulada acima. Para se verificar, portanto, a perda ou não do objeto do agravo de instrumento, deve-se analisar, de acordo com a situação concreta, qual dos seguintes critérios se aplica: o da hierarquia q , segundo o qual a sentença não tem força para revogar a decisão do tribunal; ou o da cognição, g ç , em que a cognição exauriente da sentença absorve a cognição sumária da decisão interlocutória. Nesse aspecto a doutrina pátria assim se manifesta: [...] Há quem diga que, admitido o agravo de instrumento, a decisão do tribunal, seja a que o acolhe ou a que o rejeita, substitui a decisão interlocutória, de modo que a sentença, por ter sido proferida por juízo singular, não poderia ser incompatível com a decisão tomada pelo órgão colegiado nos autos do agravo de instrumento. Este é o chamado critério da hierarquia e com base nele se entende que, justamente porque há a possibilidade de as decisões serem incompatíveis (acórdão do agravo e sentença), o agravo de instrumento não fica prejudicado por conta da superveniência da sentença. Os efeitos desta decisão final, portanto, ficariam condicionados ao desprovimento do agravo – isto é, a confirmação da decisão interlocutória. Há, por outro lado, quem diga que, por ter sido proferida com base num juízo de cognição exauriente, a sentença englobaria a decisão interlocutória impugnada – que fora proferida com base em juízo de cognição sumária -, de modo que o agravo de instrumento perderia seu objeto [...].68 (grifos nossos). Nesse aspecto, com bastante percuciência manifestouse o ilustre Ministro Castro Meira, do Superior Tribunal de Justiça, ao fundamentar o seu voto lançado no Recurso Especial n. 742.512/DF, do qual foi relator: 68 88 DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Curso de direito processual civil. 9 ed. Editora Jus Podivm, 2011. V. 3. P. 174. Revista do CEJ - n. 5, p. 85-94 - nov. 2015 Carlos Rogério de Souza Silva [...] Imagine-se, por exemplo, que a liminar tenha sido concedida pelo tribunal em razão do que consta do documento X. Suponha-se que, na instrução, resta comprovada a falsidade desse documento ou surgem outros elementos de convicção que reduzem o seu valor probante, tendo sido, em razão disso, julgado improcedente o pedido do autor. Neste caso, a sentença deve sobrepor-se à decisão do agravo, o qual perderia o seu objeto, pois o critério da cognição prevalece sobre o da hierarquia. Se, entretanto, não há modificação do quadro fático e probatório, nem sobrevém qualquer elemento que afaste a premissa da decisão proferida pelo tribunal no agravo, então prevalece a hierarquia, não perdendo o agravo o seu objeto. Conclui-se: se não houve alteração do quadro, mantendo-se os mesmos elementos de fato e de prova existentes quando da concessão da liminar pelo tribunal, a sentença não atinge o agravo, mantendo-se a liminar. Nesse caso, prevalece o critério da hierarquia. Se, entretanto, a sentença está fundada em elementos que não existiam ou em situação que afasta o quadro inicial levado em consideração pelo tribunal, então a sentença atinge o agravo, desfazendo-se a liminar [...]. (REsp 742.512/DF, Rel. Ministro Castro Meira, Segunda Turma, julgado em 11/10/2005, DJ 21/11/2005, p. 206). Logo, caso entenda-se pela incidência do critério da cognição, o agravo de instrumento perderá o seu objeto face à prolação de sentença no processo principal. Todavia, a aplicação da hierarquia fará com que o mérito do recurso instrumental deva ser analisado pelo Tribunal, pois restará vivo o interesse recursal do recorrente. Dessa forma, caso a sentença lhe tenha sido desfavorável, poderá reverter a situação quando do julgamento do mérito do recurso instrumental. É o que novamente diz a doutrina pátria: [...] A premissa que se deve estabelecer para o correto enfrentamento do ponto é a de que a perda, ou não, do objeto do agravo pendente de julgamento não é questão que deva ser analisada em abstrato. A sorte do agravo de instrumento pendente de julgamento dependerá sempre da análise do caso concreto, não se podendo dizer abstratamente que a só Revista do CEJ - n. 5, p. 85-94 - nov. 2015 89 Perda ou não do objeto do agravo de instrumento face à prolação da sentença no processo originário superveniência da sentença vai gerar, ipso facto, a perda de objeto do referido recurso. [...] Em suma, a questão q deve ser analisada sob a ótica do interesse recursal do agravante; g ; se,, a despeito p da sentença ç superveniente, p , ainda lhe for útil,, de algum g modo,, o julgamento j g do agravo g – é dizer,, se a sua p posição ç no processo p puder p ser,, de alguma g forma,, melhorada com aquele q julgamento j g – não se pode p ter por p prejudicado p j aquele q recurso; se, ao contrário, a partir da prolação da sentença, o provimento ou desprovimento do agravo não tiver o condão de influenciar em sua situação processual, outro caminho não restará senão o de tê-lo por prejudicado [...].69 (com destaques). Com a aplicação do critério da hierarquia e havendo o interesse recursal, naturalmente a parte recorrente terá o direito de ter seu recurso analisado pelo Tribunal competente para o julgamento, independentemente do resultado final meritório (provimento ou não), vez que a todos os litigantes é assegurado o princípio constitucional do duplo grau de jurisdição. A partir da análise de um caso concreto do Tribunal de Justiça de Pernambuco70, utilizando os argumentos aqui expostos, é que se chega à conclusão sobre a perda ou não do objeto do agravo de instrumento. O autor propôs uma ação de cobrança em face do réu, tendo requerido a concessão dos benefícios da gratuidade da justiça por entender que era hipossuficiente na forma da Lei n. 1.060/1950, não podendo arcar com as despesas processuais sem prejuízo do sustento próprio e dos seus familiares. Ao despachar a petição inicial, o juiz, analisando as provas colacionadas aos autos, decidiu indeferir o pedido de justiça gratuita, determinando à parte, em consequência, que, no prazo improrrogável de 10 (dez) dias, efetuasse o preparo com o recolhimento das devidas custas processuais, sob pena de extinção do feito sem resolução do mérito. 69 DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Curso de direito processual civil. 9 ed. Editora Jus Podivm, 2011. V. 3. PP. 176-177. 70 Recurso de Agravo no Agravo de Instrumento n. 353218-5, Relator: Des. Jovaldo Nunes Gomes, 5ª Câmara Cível, Decisão proferida no dia 05.11.2014, publicação no DJE: 13.11.2014. 90 Revista do CEJ - n. 5, p. 85-94 - nov. 2015 Carlos Rogério de Souza Silva Contra esta decisão interlocutória, o autor interpôs agravo de instrumento, sem, no entanto, ter cumprido a determinação judicial no sentido de efetuar o preparo. Ocorre que, decorrendo in albis o prazo sem o devido preparo, o juiz de piso, posteriormente ao manejo recursal, extinguiu o processo originário sem julgamento do mérito. O relator do agravo de instrumento, por sua vez, ao apreciar o recurso, verificou que o processo do qual emanou a decisão agravada já havia sido sentenciado, razão pela qual o magistrado não conheceu do recurso instrumental ante a perda superveniente do seu objeto. Em suma, o relator aplicou a este caso concreto o critério da cognição. Agiu ele acertadamente? Conquanto inexista consenso a este respeito, tampouco posicionamento consolidado sobre esta matéria, já há quem entenda que o Relator equivocou-se porquanto deveria ter sido utilizado o critério da hierarquia. Sem sombra de dúvidas, o caso comportava aplicação do princípio da hierarquia em detrimento do critério da cognição. In casu¸ é indubitável haver um nexo lógico de subordinação entre a sentença do feito e o objeto do agravo de instrumento, de maneira que o eventual provimento do recurso, naturalmente, causaria a perda de eficácia da sentença, nada obstando que o Tribunal tornasse insubsistentes os atos subsequentes à interposição do recurso que fossem ou pudessem ser incompatíveis e/ou conflitantes com o julgamento do mérito recursal. Ora, apesar de o juízo singular não ter a obrigatoriedade de aguardar o julgamento do agravo de instrumento para poder sentenciar o processo originário, neste caso concreto, por uma prudência/cautela, deveria ter esperado o resultado do recurso antes de sentenciar o feito extinguindo a ação, na medida em que os objetos (do recurso e da ação principal) se confundem e se complementam, possuindo uma relação de interdependência, vez que o eventual provimento do agravo de instrumento concederia a benesse da gratuidade da justiça à parte e acarretaria, consequentemente, a desnecessidade do recolhimento do preparo. Revista do CEJ - n. 5, p. 85-94 - nov. 2015 91 Perda ou não do objeto do agravo de instrumento face à prolação da sentença no processo originário A decisão proferida no agravo de instrumento, portanto, repercutiu sobremaneira no processo originário, principalmente na sentença nele proferida, havendo com isso a ocorrência dos efeitos expansivos objetivos externos do agravo de instrumento perante a sentença: [...] Em regra, a prolação de sentença no processo do qual emanou a decisão combatida por intermédio do agravo de instrumento acarreta a perda de objeto do recurso instrumental na medida em que esta decisão de mérito absorve os efeitos da decisão agravada por se tratar de juízo de cognição exauriente. [...] Ocorre que há exceção a esta regra. É que a superveniência de sentença no processo principal não conduz necessariamente à perda de objeto do agravo de instrumento. Tudo vai depender tanto do teor da decisão impugnada, ou seja, da matéria que será examinada pelo tribunal ao analisar o agravo quanto do conteúdo da sentença. [...] Portanto, a fim de verificar a perda ou não do objeto do agravo de instrumento deve-se analisar a situação concreta para que se saiba qual dos dois critérios deverá ser utilizado: o da hierarquia q (segundo o qual a sentença não tem força para revogar a decisão do tribunal) ou o da cognição g ç (pelo qual a cognição exauriente da sentença absorve a cognição sumária da interlocutória). Caso incida o critério da cognição haverá a perda de objeto do agravo de instrumento. Por outro lado, a aplicação da hierarquia fará com que o recurso instrumental deva ser analisado. Na hipótese dos autos, entendo que deve ser aplicado o critério da hierarquia, razão pela qual o agravo de instrumento não perdeu o seu objeto mesmo com a prolação da sentença no processo originário. [...] Por derradeiro, em respeito e obediência ao princípio constitucional do duplo grau de jurisdição, há de se destacar que os agravantes têm o direito de ver seu recurso ser apreciado por este Tribunal de Justiça seja lá qual for o resultado (provimento ou não) a que chegue esta Corte de Justiça. Ante o exposto, DOU PROVIMENTO ao recurso de agravo para tornar sem efeito/revogar a decisão terminativa de fl., 77, determinando a intimação dos agravados para, querendo, apresentar suas contrarrazões no prazo legal, após o que (com ou sem manifestação) devem os autos retornar conclusos para apreciação do mérito do agravo de instrumento. [...] Cumpra-se. - Des. Jovaldo Nunes Gomes 92 Revista do CEJ - n. 5, p. 85-94 - nov. 2015 Carlos Rogério de Souza Silva Para ilustrar todo o exposto, importante o julgado a seguir transcrito: PROCESSUAL CIVIL. NEXO LÓGICO DE SUBORDINAÇÃO ENTRE ANTERIOR DECISÃO INTERLOCUTÓRIA E POSTERIOR SENTENÇA. AGRAVO DE INSTRUMENTO. PERDA DE OBJETO. NÃO-OCORRÊNCIA. EFEITOS EXPANSIVOS OBJETIVOS EXTERNOS SOBRE A SENTENÇA. I. Quando há um nexo lógico de subordinação entre a anterior decisão interlocutória e a posterior sentença, a prolação desta não acarreta a perda de objeto do agravo de instrumento, cujos efeitos expansivos objetivos externos (ou retrooperantes), no caso de procedência, podem se traduzir em natural perda de eficácia dos ulteriores atos decisórios incompatíveis, inclusive a própria sentença [...]. (TRF-2 - AG: 200902010088348, 8ª Turma Especializada, Relatora: Desembargadora Federal Fátima Maria Novelino Sequeira. Julgado em: 08/06/2011. D.P.: 16.06.2011) (Com destaques). Assim, como conclusão, deve-se entender que nem sempre a decisão final no processo originário acarretará a perda superveniente do objeto do agravo de instrumento. É imprescindível verificar, com extrema atenção e profundidade, as peculiaridades do caso concreto, mormente o teor da decisão agravada, isto é, a matéria que será examinada pelo Tribunal em sede de agravo de instrumento, bem como o conteúdo da sentença proferida pelo juiz visando perquirir se será aplicado o critério da hierarquia ou da cognição, a depender do caso analisado. Revista do CEJ - n. 5, p. 85-94 - nov. 2015 93 Perda ou não do objeto do agravo de instrumento face à prolação da sentença no processo originário Referências BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. 2ª Turma. STJ - Resp 742512 DF (2005/0062075-9). Recorrente: Murilo Celso de Campos Pinheiro. Recorrido: José Eduardo de Paula Alonso. Relator: Ministro Castro Meira. Data de julgamento: 11.10.2005. DJ 21 nov. 2005. p. 206. BRASIL. Tribunal Regional Federal (2ª Região). 8ª Turma Especializada. AG 200902010088348. Agravante: União Federal. Agravado: Hilda de Oliveira e Silva. Relatora: Desembargadora Fátima Maria Novelino Sequeira. Data de julgamento: 8.6.2011. DJ: 16.6.2011. JUNIOR, Fredie Didier; CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Curso de direito processual civil. v. 3. 9 ed. Salvador: Editora Jus Podium, 2011. PERNAMBUCO. Tribunal de Justiça de Pernambuco. 1ª Câmara Cível. Agravo n. 344350-9. Apelante: Sul America Companhia Nacional De Seguros. Apelado: José Euclides de Mesquita e outros. Relator: Desembargador Stênio José de Sousa Neiva Coêlho. Data de julgamento: 9.9.2014. DJPE 16.9.2014, p. 177. PERNAMBUCO. Tribunal de Justiça de Pernambuco. 5ª Câmara Cível. Recurso de Agravo no Agravo de Instrumento n. 0010678-41.2014.8.17.0000 (0353218-5). Agravantes: Azril Gandelsman e Ana Longman Gandelsman. Agravados: Sérgio Longman e Liliane Viera Longman. Relator: Desembargador Jovaldo Nunes Gomes. Data de julgamento: 5.11.2014. DJPE, 13.11.2014, p. 1015. 94 Revista do CEJ - n. 5, p. 85-94 - nov. 2015 A União Europeia e o Brasil: recursos hídricos na política e legislação ambiental Christiano German71 Alberto Nogueira Virgínio72 Agradecimentos: Agradecemos à Fundação KonradAdenauer, no Rio de Janeiro, pelo apoio oferecido ao Congresso Internacional sobre o Meio Ambiente da AMB, em Manaus. Os nossos agradecimentos incluem, em especial, o senhor Michael Wittemann, engenheiro diplomado para técnicas de abastecimento na Alemanha (Diplom-Ingenieur der Versorgungstechnik - FU), da companhia pública de águas (Wasserverband) da cidade de Peine na Baixa-Saxonia, Alemanha, pela revisão deste artigo e detalhes importantes sobre os procedimentos de saneamento das águas na Alemanha. Sumário: Introdução. 1 A importância dos recursos hídricos no século XXI. 1.1 O mistério da água nas culturas e ciências. 1.2 A situação atual no mundo. 2 O problema da preservação da água. 2.1 Proteção e gestão das águas na Europa. 2.2 A cooperação com a União Europeia e a legislação no Brasil. Conclusões. Referências. Nas lendas sobre a origem do rio Amazonas, os mitos e a ciência se misturam. Um dos mitos de criação indígena reza que o rio é originário do amor irrealizável entre o sol e a lua. Como a lua não conseguia dividir o céu simultaneamente com o sol amado, a lua pôs-se a chorar. As lágrimas da lua escavaram um profundo vale entre as serras, criando um imenso rio, posteriormente denominado de Amazonas73. 71 Professor de Ciência Política e Relações Internacionais na Universidade Católica de Eichstaett e de Política Europeia na Universidade Técnica de Braunschweig – RFA. Email: [email protected]. 72 Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco, Vice-Presidente do TRE-PE e Diretor Adjunto da Secretaria de Planejamento Estratégico da Associação dos Magistrados Brasileiros – AMB. Email: [email protected]. 73 Fiennes, Sir Ranulph et al.: Extreme der Erde, Editora National Geographic, Hamburgo, 2ª edição 2005, p. 264. Revista do CEJ - n. 5, p. 95-119 - nov. 2015 95 A União Europeia e o Brasil: recursos hídricos na política e legislação ambiental Ao analisar a questão da origem da água em nosso planeta, esse mito de criação não está tão longe das teorias científicas atuais. Por isso, nessa primeira parte, pretendemos detalhar somente os conceitos teóricos sobre a origem da água nas culturas e na ciência, assim como o seu significado único para a natureza e todos os seres vivos. Nesse cenário, apresentamos em uma visão geral um levantamento atual sobre a problemática da água, questão essa cada vez mais urgente no mundo inteiro. Na segunda parte, tratamos dos desafios concretos enfrentados para garantir os recursos hídricos à humanidade. Aqui, apresentamos primeiramente a política de proteção hídrica da União Europeia – UE e os problemas de sua realização prática nos estados membros. Depois, queremos detalhar como o Brasil lida atualmente com esses desafios e quais são as possibilidades que existem para uma cooperação com a UE sobre a proteção dos recursos hídricos. 1 A importância dos recursos hídricos no século XXI 1.1 O mistério da água nas culturas e ciências Os antigos mitos sobre a origem da água do Amazonas falam sobre o pranto da lua. Na questão da origem da água, até hoje não resolvida conclusivamente, muitos cientistas partem do princípio de que a água, em algum momento, veio de fora através dos oceanos da terra – possivelmente de asteroides ou cometas. No ano de 2008, houve uma descoberta que apoia essa teoria: duas equipes de astrônomos descobriram, independentemente, que o asteróide “24 Themis”, que circula como um dos maiores objetos entre Marte e Júpiter, está envolto de uma fina camada de gelo74. E também na lua já foi constatada a existência de água em forma de gelo75. Como nos mitos sobre a criação do rio mais longo do mundo, com 6.850 quilômetros de extensão desde sua nascente, as lendas sobre a água têm um papel central nas diferentes culturas e suas religiões76. Todas 74 Campins, Humberto et al.: Water ice and organics on the surface of the asteroid 24 Themis, Nature, 2010, Vol. 464, pp. 1320-1321. 75 Astronomie. Der Mond enthält hundert Mal mehr Wasser als gedacht, in: Zeit Online 27.05.2011. Disponível em: <http://www.zeit.de/wissen/2011-05/mond-wasser-wissenschaft>. Acesso em: 13 jun. 2012. 76 INPE. Estudo do INPE indica que o rio Amazonas é 140 km mais extenso do que o Nilo. Disponível em: <http:// www.inpe.br/noticias/noticia.php?Cod_Noticia=1501>. Acesso em: 13 jun. 2012. 96 Revista do CEJ - n. 5, p. 95-119 - nov. 2015 Christiano German | Alberto Nogueira Virgínio elas têm em comum o fato de destacarem um uso consciente da água como fonte e símbolo da vida77. “No início era a água”, consta no mito da criação da Bíblia78. No antigo testamento e no Judaísmo, a água é considerada o elemento originário da vida. No Cristianismo, a água representa a fertilidade, a cura e a origem de toda a vida. Além disso, a água é o símbolo para a vida eterna e para a cura (águas com poder de cura, por exemplo, de Lourdes). Jesus compara a palavra de Deus com uma fonte de água viva. Confúcio (551 479) afirma “Os sábios encontram alegria na água” e o sábio grego Tales de Mileto (624 - 546) escreve “Tudo começa na água, pois a água é tudo e para a água tudo retorna”. Também no Islamismo, a água tem um papel importante, é considerada como condição prévia para a vida humana. No Islamismo sunita, o direito de matar a sede é um dos direitos mais santos escriturados. Para esse fim, é necessário proporcionar acesso a toda água localizada em propriedade privada. No Budismo e Hinduísmo, em feriados importantes as estátuas são lavadas com água de cheiro, esborrifar água mutuamente é símbolo de pureza e alegria de viver. Um ditado indiano diz: “Água, você é a fonte de todas as coisas e de toda existência”. Ao contrário desse respeito cultural e religioso pela água como fonte de vida, o manejo atual, muitas vezes pouco sensato do ser humano com esse maior bem, fez com que a água não seja mais símbolo da vida, mas que pode ser compreendida cada vez mais também como símbolo da morte79. Especialmente no hemisfério sul do planeta, os efeitos da escassez da água manifestam-se de forma trágica: mais de um bilhão de pessoas não têm acesso seguro à água potável, sofrem de doenças causadas por água contaminada, vivem em constante fome e sede. Essa escassez, muitas vezes geográfica, geralmente ainda aumenta com a distribuição extremamente desigual dos recursos entre as populações pobres e ricas. Enfim, não se trata de um destino natural, mas de uma questão de justiça. A exigência de uma distribuição justa terá uma posição decisiva 77 Sobre as religiões: Vogt, Markus: Wasser – Ursprung allen Lebens. Thesen aus der Sicht Christlicher Sozialethik, Thesen zum Element Wasser, 8 de junho de 2011, Munique Disponível em: <http:www.kaththeol. uni-muenchen.de/lehrstuehle/christl_sozialethik/personen/1vogt/texte_vogt/vogt_wasser.pdf>. Acesso em 13 jun. 2012. 78 Gênesis, 1.1-2, 4ª. 79 A tese fundamental é a de que “água é ao mesmo tempo o símbolo da vida como da morte”. Veja na bibliografia Prof. Dr. Markus Vogt, Lehrstuhl für Christliche Sozialethik (Cátedra de Ética Social Cristã), Ludwig-Maximilians-Universität München, in: Wasser – Ursprung allen Lebens (2011). Revista do CEJ - n. 5, p. 95-119 - nov. 2015 97 A União Europeia e o Brasil: recursos hídricos na política e legislação ambiental em relação à problemática da água em todos os países em questão, destacando o papel central do Poder Judiciário face aos interesses políticos, econômicos e sociais divergentes e em boa parte agressivos. A Associação dos Magistrados do Brasil – AMB tem, portanto, um papel de vanguarda mundial com o manifesto in dubio pro natura nesse I Encontro Internacional de Direito Ambiental, na cidade de Manaus, que é dotada de significado simbólico. 1.2 A situação atual no mundo Mesmo na ciência, a água continua sendo pesquisada como elemento natural único. A Terra é o único planeta de nosso sistema solar, em que há água líquida disponível na superfície. De fato, a terra é em 70% (setenta por cento) coberta de água. Por esse motivo, ela é também denominada de Planeta Azul. A água é considerada uma condição central para que a vida, como nós a conhecemos, possa ser gerada. O corpo humano consiste em aproximadamente 60% (sessenta por cento) de água. - Inventário da Água na Superfície da Terra (2006) A quantidade total de água do planeta é estimada em 1,4 bilhões de quilômetros cúbicos. Pelo menos na prática, nada da quantidade de água existente há mais de quatro bilhões de anos se perde no sistema da Terra. Essa é a boa nova, pois não existe tecnologia para produzir água nova. A maior parte, 97% (noventa e sete por cento), é água salgada. Somente aproximadamente 2,75% (dois vírgula setenta e cinco por cento), 38,5 milhões de quilômetros cúbicos, são água doce.80. E apenas aproximadamente 0,3% (zero vírgula três por cento) dessas reservas de água doce – aproximadamente 100.000 km³ (cem mil quilômetros cúbicos) ou 0,008% (zero vírgula zero zero oito por cento) de toda a água – é facilmente acessível para o ser humano, especialmente em lagos e rios81. A notícia ruim é que outras reservas importantes, como a água do r dependendo de sua localização, (Shallow/ lençol freático (Groundwater), Deep) precisa de 100 (cem) a 10.000 (dez mil) anos para se regenerar. Mas há também reservas hídricas que se regeneram em poucos anos. Isso depende basicamente do tipo do solo, por exemplo, arenoso, e também 80 PhysicalGeography.net: Chapter 8: Introduction to the Hydrosphere (2006). Disponível em: <www. physicalgeography.net/fundamentals/8b.html>. Acesso em: 11 jun. 2012. 81 Zahlen und Fakten: Globalisierung, Wasserverbrauch, em: Bundeszentrale für politische Bildung, Bonn, Situação: 14.09.2010. Acesso em: 12 jun. 2012. 98 Revista do CEJ - n. 5, p. 95-119 - nov. 2015 Christiano German | Alberto Nogueira Virgínio da precipitação. Na Alemanha, as reservas hídricas subterrâneas, por lei, precisam ser manejadas de tal forma que não seja retirado mais do que a natureza recupera em média. Assim, a água se tornará um bem finito para a humanidade se não houver um consumo consciente e uma advertência também articulada enfaticamente pelos representantes responsáveis das autoridades no Brasil82. - Permanência típica da água encontrada em vários reservatórios (2006) Fato é que a relação entre a demanda e a disponibilidade de água já alcançou um nível crítico em muitas partes do mundo. A escassez e a seca já se tornaram um grande desafio – e a mudança climática provavelmente ainda tende a agravar o problema. Em meados deste século, na pior das hipóteses, sete bilhões de pessoas em 60 (sessenta) países do mundo, na melhor das hipóteses, dois bilhões de pessoas em 48 países, sofrerão os efeitos da escassez da água. Assim, a questão hoje é especialmente a quantidade de água tecnicamente renovável por pessoa/ano, ou seja, em princípio uma reciclagem sustentável da quantidade de água disponível. O critério é frequentemente usado para mensurar a quantidade de água disponível. Na Suíça, a quantidade de água renovável por pessoa e ano é de, por exemplo, 6.520 m3 (seis mil, quinhentos e vinte metros cúbicos), na Argélia, 770 m3(setecentos e setenta metros cúbicos), na Arábia Saudita, 160 m3(cento e sessenta metros cúbicos). Nos países com reservas de água sustentáveis abaixo de 1.700 m3 (mil e setecentos metros cúbicos), já existe escassez de água; abaixo de 1.000 m3 (mil metros cúbicos), já falamos em falta de água83. Reservas de água no mundo inteiro Apesar da crescente falta de disponibilidade, ainda há muitas possibilidades para economizar – melhora da técnica de irrigação, cultivo de produtos adaptados, uma atitude de consumo consciente e o refreamento do uso de água potável no setor agrário – as quais ainda não 82 SERPA, Flávio de Carvalho: Águas no Brasil, em: National Geographic Brasil (Edição Especial Água), abr. 2011, ano 11, n. 133, pp. 46-67, p. 52. 83 Märki-Koepp, Martina: Wasser für den blauen Planeten, em: Bulletin. Magazin der Eidgenössischen Technischen Hochschule Zürich (EZH), N. 289, Maio de 2003, p. 5 Revista do CEJ - n. 5, p. 95-119 - nov. 2015 99 A União Europeia e o Brasil: recursos hídricos na política e legislação ambiental foram plenamente exploradas84. Especialmente na África, mas também em muitas partes da Ásia, podemos prever catástrofes de fome e maiores conflitos por água, com o aumento da população, a queda do nível do lençol freático, a secagem dos rios, que provoca a morte de gado e a perda de colheitas85. Esse fato também foi registrado pela Organização das Nações Unidas (ONU), que iniciou um programa para a década internacional de água de 2005 a 2015. Além disso, a Conferência das Nações Unidas pelo desenvolvimento sustentável no Rio de Janeiro, a Rio+20, também se ocupou com a questão da água86. A UE empenhou-se em acelerar consideravelmente a transição das economias mundiais para as denominadas “Economias Verdes Inclusivas” (Inclusive Green Economies). Além disso, a UE exigiu metas com prazos concretos nas áreas de energia, água, eficiência de recursos, uso sustentável das terras, biodiversidade, assim como para os oceanos87. A precursora da Rio+20 foi a conferência líder para o meio ambiente e desenvolvimento das Nações Unidas, no Rio de Janeiro, duas décadas antes. Nesta, 172 (cento e setenta e dois) países deliberaram a “Agenda 21”, um programa sustentável de ações políticas, de desenvolvimento e de meio ambiente para o século 2188. Finalmente, queremos ainda destacar que a Assembleia Geral das Nações Unidas declarou, mediante a solicitação da Bolívia, em 28 de julho de 2010, com 122 (cento e vinte e dois) países votando a favor e sem votos contrários, o acesso à água potável limpa e ao saneamento básico como direitos humanos. Entre os países apoiadores estão também o Brasil e a Alemanha. Abstiveram-se do voto 41 países, dentre eles EUA, Austrália 84 Zahlen und Fakten: Globalisierung, Wasserverbrauch, em: Bundeszentrale für politische Bildung, Bonn, Situação: 14/09/2010. Acesso em 12 jun. 2012. 85 Para um panorama amplo dos conflitos sobre recursos hídricos. Pacific Institute, The World’s Water. Disponível em: <http://www.worldwater.org/conflict.html>. Acesso em 25 jun. 2012. 86 RESOLUTION 58/217: Internationale Aktionsdekade “Wasser – Quelle des Lebens” 2005-2015. Disponível em: <http://www.un.org/Depts/german/gv-58/band1/ar58217.pdf>. <http://www.un.org/waterforlifedecade/ water_at_rio.shtmlund www.un.org/waterforlifedecade/>. Acesso em: 15 jun. 2012. 87 Rio+20, United Nations Conference on Sustainable Development. Disponível em: <http://www.bmu.de/rio_ plus_20/doc/47266.php und http://www.uncsd2012.org/>. Em português: <http://www.rio20.info/2012/>. Acesso em: 21 jun. 2012. 88 Um dos primeiros grandes projetos modelo para realizar a Agenda 21 na Alemanha foi o projeto nacional, “Altmühltal-Agenda-21-Projekt (1995–1998)” no vale do rio Altmühl na Baviera, realizado pela Universidade Católica de Eichstätt-Ingolstadt e premiado pelo então Presidente da República Federal da Alemanha Roman Herzog. Foram 25 áreas de projetos com mais de 100 medidas. 100 Revista do CEJ - n. 5, p. 95-119 - nov. 2015 Christiano German | Alberto Nogueira Virgínio e Quênia, além de 18 países da UE89. Países como, por exemplo, a África do Sul e o Equador incluíram o direito à água em suas constituições90. 2 O problema da preservação da água 2.1 Proteção e gestão das águas na Europa A relação entre a demanda e a disponibilidade de água já alcançou uma situação crítica também em muitas regiões da Europa. Em alguns estados membros, já há uma escassez de água em todo o território. E o problema não se limita apenas aos países vizinhos do Mar Mediterrâneo, mas também países como a República Checa, já relatam sobre regiões com frequente escassez d’água91. Há alguns anos, a Comissão Europeia exige rigorosamente dos estados membros impulsos políticos, por exemplo, em relação à política das tarifas de água, melhoria dos instrumentos para a gestão das águas e medidas para incentivar o uso consciente e a economia da água. A grande importância que os estados membros da União Europeia conferem aos padrões de qualidade da água, baseia-se na Legislação da UE92. A diretiva 98/83/CE, do Conselho Europeu, de 03 de novembro de 1998, sobre a qualidade de água de consumo, estabeleceu parâmetros rígidos e obrigatórios de salubridade e higiene. O termo “Água destinada ao consumo humano” é definido obrigatoriamente para todos os estados membros no “Artigo 2º: Definições”, da diretiva93. Além disso, os estados membros da UE são obrigados a entregar a cada três anos um relatório sobre a qualidade da água potável. Assim, pode89 RESOLUTION 64/292: Das Menschenrecht auf Wasser und Sanitärversorgung, Deliberada na 108ª sessão plenária em 28 de julho de 2010. Disponível em: <http://www.un.org/Depts/german/gv-64/band3/ar64292. pdf>. Acesso em: 15 jun. 2012. 90 Krennerich, Michael: Forum. Das Menschenrecht auf Wasser – weit mehr als ein unverbindliches Ziel, em: NJW-aktuell, Edição 39/2010, p. 18. 91 Ambiente: escassez de água e secas – uma grande preocupação para muitas regiões da Europa, IP/10/577 Bruxelas, 18 de Maio de 2010. Disponível em: <http://europa.eu/rapid/pressReleasesAction. do?reference=IP/10/577&format=HTML&aged=0&language=DE&guiLanguage=de> 92 Acesso em 08 jun. 2012. Sínteses da legislação da UE. Disponível em <http://europa.eu/legislation_summaries/index_pt.htm> e Proteção e gestão das águas. Disponível em: <http://europa.eu/legislation_summaries/environment/water_ protection_management/index_pt.htm>. Acesso em: 15 jun. 2012. 93 RICHTLINIE 98/83/EG DES RATES vom 3. November 1998 über die Qualität von Wasser für den menschlichen Gebrauch. Disponível em: <http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ. do?uri=CELEX:31998L0083:DE:NOT>. Em português: <http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=OJ:L:1998:330:0032:0054:PT:PDF>. Acesso em 18 jun. 2012. Revista do CEJ - n. 5, p. 95-119 - nov. 2015 101 A União Europeia e o Brasil: recursos hídricos na política e legislação ambiental se ao menos garantir que em toda a UE a água encanada possa ser usada para cozinhar94. Nos países como a Alemanha, onde as diretivas foram imprescindivelmente colocadas em prática, aplicam-se, para água de consumo, diretivas mais rígidas do que para a água mineral engarrafada. A norma alemã para água de consumo é um exemplo positivo da conversão da diretiva do CE 83/98 em direito nacional e ainda foi melhorada no ano de 201195. Para tal, a norma nacional de água para consumo do ano de 2001 foi adaptada em alguns pontos nos desenvolvimentos mais recentes. Além da consideração dos mais atuais conhecimentos científicos, buscavase ainda uma adesão maior às diretivas do direito europeu, assim como uma desburocratização. Também o direito de proteção ao consumidor foi fortalecido. Um complemento importante foi o exame da legionella em instalações de aquecimento de água de consumo96. Desde então, existe a obrigatoriedade de se realizar anualmente o exame para instalações de água quente em prédios públicos ou comerciais, nos quais houve uma vaporização da água de consumo (por exemplo, em chuveiros). Aqui também podemos citar, além dos prédios públicos, como creches e piscinas públicas, prédios para locação residencial. Se forem constatadas concentrações muito altas, a vigilância sanitária competente, assim como os locatários, deverão ser informados. Além disso, a Alemanha foi o primeiro estado membro da União Europeia a definir um valor limite para o urânio em água para consumo. Com 0,010 (zero vírgula zero dez) miligramas (=10 microgramas) por litro, o valor limite para urânio na Alemanha é o mais rígido do mundo, oferecendo a todos os segmentos da população – incluindo bebês – a proteção da saúde contra possíveis danos causados pelo urânio na água de consumo. 94 Qualität von Trinkwasser, em: Europa. Zusammenfassungen der EU-Gesetzgebung (Situação: 28/10/2011). Disponível em: <http://europa.eu/legislation_summaries/environment/water_protection_management/ l28079_de.htm>. Em português: <http://europa.eu/legislation_summaries/environment/water_protection_ management/l28079_pt.htm>. Acesso em: 18 jun. 2012. 95 Erste Verordnung zur Änderung der Trinkwasserverordnung (1. TrinkwVÄndV) vom 03.05.2011. Disponível em: <http://www.umweltbundesamt.de/wasser/themen/downloads/trinkwasser/BGBl_IS_748.pdf>. Acesso em: 20 jun. 2012. 96 Bactérias do tipo Legionella podem causar pneumonias graves (Doença do legionário) e produzir a Febre de Pontiac. Trinkwasserverordnung und Legionellen (Situação: 19/10/2011), em: Bundesministerium für Gesundheit). Disponível em: <http://www.bmg.bund.de/ministerium/presse/pressemitteilungen/2011-02/ aenderung-der-trinkwasserverordnung/trinkwasserverordnung-und-legionellen.html>. Acesso em 03 jul. 2012. 102 Revista do CEJ - n. 5, p. 95-119 - nov. 2015 Christiano German | Alberto Nogueira Virgínio Outra norma legal da UE, após 1998, a Diretiva-Quadro da Água 2000/60/CE, entrou em vigor em 22 de dezembro de 2000. Nos fundamentos dessa diretiva ampliada podemos ler: (1) A água não é um produto comercial, como outro qualquer, mas um patrimônio que deve ser protegido, defendido e tratado como tal. (9) É necessário desenvolver uma política comunitária integrada no domínio das águas”97 Com essa diretiva complementar foram dados novos impulsos, especialmente para uma proteção hídrica integrada de maior viés ecológico. Como em outros países da UE, a transposição dessa DiretivaQuadro para a ordem jurídica nacional acarreta problemas jurídicos, especialmente devido ao federalismo que divide as competências legislativas entre a União e os Estados Federados. Por isso, houve necessidade de uma reforma do federalismo na Alemanha para colocar em prática as deliberações da UE da Diretiva-Quadro da Água. Além disso, há muitos conflitos adicionais da UE com os diferentes países membros em relação ao pleno cumprimento da Diretiva-Quadro da Água. O conflito atual no âmbito do cumprimento pleno da DiretivaQuadro da Água de 2000 versa, por exemplo, sobre uma definição distinta do conceito “serviços hídricos” da UE e da Alemanha98. Conforme as normas da UE, os custos ambientais e dos recursos também precisam ser computados nos serviços hídricos. Portanto, os “serviços hídricos” para a UE também abrangem o uso de água na refrigeração de instalações industriais e de irrigação na agricultura. Sob esse ponto de vista, por exemplo, a indústria e a agricultura na Alemanha não praticam o uso consciente e 97 Bundesministerium für Umwelt, Naturschutz und Reaktorsicherheit (BMU): Die Europäische Wasserrahmenrichtlinie und ihre Umsetzung in Deutschland. Disponível em: <http://www.bmu.de/ binnengewaesser/gewaesserschutzpolitik/europa/doc/3063.php>. Acesso em 20.06.2012. Em português: Directiva 2000/60/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de outubro de 2000, que estabelece um quadro de ação comunitária no domínio da política da água. Disponível em: <http://eur-lex.europa.eu/ LexUriServ/LexUriServ.do?uri=CELEX:32000L0060:pt:HTML>. 98 Artigo 2º, Definições 38. “Serviços hídricos”: todos os serviços que forneçam a casas de habitação, a entidades públicas ou a qualquer atividade econômica: a) A captação, represamento, armazenagem, tratamento e distribuição de águas de superfície ou subterrâneas; b) A recolha e tratamento de águas residuais por instalações que subsequentemente descarregam os seus efluentes em águas de superfície. Revista do CEJ - n. 5, p. 95-119 - nov. 2015 103 A União Europeia e o Brasil: recursos hídricos na política e legislação ambiental econômico de água. A Alemanha aplica as normas da UE para “serviços hídricos” somente para o abastecimento de água de consumo e o esgoto, assim como o tratamento de esgotos. A comissão solicitou diversas vezes que a Alemanha alterasse a sua interpretação sobre os serviços hídricos, pela última vez em setembro de 2011. Como última etapa em um processo de violação contratual, a Comissão Europeia deu entrada, em 2012 num processo no Tribunal de Justiça da União Europeia contra a República Federal da Alemanha. Casos semelhantes são analisados também em países como a Áustria, Dinamarca, Finlândia, Hungria, os Países Baixos, Suécia e a região Bélgica de Flandres pela Comissão. Os países indiciados estão sujeitos a multas99. Uma consulta ao site do Comissário do Meio Ambiente da União Europeia, Janez Potočnik, revela que foram iniciados ou estão iminentes uma série de outros processos e ações, que visam impor o cumprimento das disposições da UE, contra os países membros100. E o Comissário do Meio Ambiente ainda considera valores limites mais rígidos para a qualidade da água. A cada quatro anos, a lista das substâncias mais perigosas é avaliada no âmbito da higiene da água conforme o estado da ciência. Até o momento, foram encontradas 33 (trinta e três) dessas “substâncias prioritárias” como fósforo, benzeno, atrazina e metais pesados como chumbo e mercúrio. Segundo os planos da comissão da UE deverão ser acrescidas outras 15 (quinze) substâncias. Pela primeira vez, serão incluídos resíduos de medicamentos como o analgésico diclofenaco, de medicamentos anti-hipertensivos, de meios de contraste que contém iodo, usados no raio-x, assim como a pílula anticoncepcional. Neste primeiro momento, questiona-se se não haveria uma super-regulamentação, possivelmente fora da realidade por parte da UE. Como já descrito até o momento, nem a Diretiva-Quadro da Água da União Europeia do ano 2000 pode ser cumprida em todos os países, e em segundo lugar, a realização técnica de padrões ainda maiores na qualidade de água seria difícil de se financiar, mesmo pelos países com maiores recursos na UE. Somente para a região do lago Bodensee na Alemanha, o terceiro maior lago da Europa Central, 99 Europäische Kommission: Umweltpolitik. Kommission verklagt Deutschland wegen Wasserdienstleistungen, 31.05.2012. Disponível em: <http://ec.europa.eu/deutschland/press/pr_releases/10684_de.htm>. Acesso em: 20 jun. 2012. 100 Comissário do Meio Ambiente da União Europeia, Janez Potočnik. Disponível em: <http://ec.europa.eu/ commission_2010-2014/potocnik/index_en.htm>. Acesso em: 21 jun. 2012. 104 Revista do CEJ - n. 5, p. 95-119 - nov. 2015 Christiano German | Alberto Nogueira Virgínio após o Plattensee e o Genebra, a complementação do equipamento técnico necessário às instalações de tratamento deverá custar aproximadamente um bilhão de euros. Outro problema, em muitos lagos e rios na Europa, consiste ainda no fato de eles ultrapassarem as fronteiras e a qualidade de água variar nos determinados países – como é de se esperar – com frequência. Em terceiro lugar, os valores sugeridos para novas micro contaminações indesejadas são tão baixos, na faixa de nanogramas por litro, e para a sua comprovação analítica e o monitoramento das águas são necessários processos sensíveis e de altos custos. Todavia, há atualmente novos conhecimentos científicos que apontam para possíveis situações de insalubridade, mesmo com a ingestão de resíduos mínimos de medicamentos. Assim, por exemplo, existe a suspeita de que resíduos de pílulas anticoncepcionais podem comprometer a fertilidade da população masculina. A consequência é que os novos valores limite e valores máximos discutidos não poderão ser cumpridos em muitas reservas hídricas que até o momento tenham apresentado uma qualidade de água excelente101. Para complementar, é importante instituir uma melhor política de informação e incentivo à população para aumentar a cautela no uso de medicamentos, deixando de descartá-los pelo esgoto, por exemplo. 2.2 A cooperação com a União Europeia e a legislação no Brasil Face às diretivas europeias apresentadas com suas exigências, em partes rigorosas, em relação à qualidade da água, a legislação no Brasil ainda deixa muito a desejar. Além disso, precisam ser consideradas as condições gerais muito distintas em comparação com a Europa. Primeiramente, o Brasil é um dos países com a maior quantidade de água do mundo, respondendo por um quinto de todos os recursos hídricos102. A provável maior reserva de água do mundo encontra-se no norte do Brasil, entre os territórios dos Estados do Amazonas, Pará e Amapá. O aquífero Alter do Chão foi descoberto em 2010. As primeiras estimativas partem de um volume de água superior a 86.000 km³ (oitenta 101 Rieger, Arnold: “Der Bodensee ist der EU nicht sauber genug” (Manchete) e “Wie gefährlich ist die Apotheke im See?” (p. 6), em: Stuttgarter Nachrichten, 4 de maio de 2012. 102 Sacher, Danuta: Es geht nicht nur um die Dienstleistung. Wasserprivatisierung in Lateinamerika, em: ila 281 dezembro/janeiro de 2004/05. Disponível em: <www.ila-web.de/artikel/ila281/wasser.htm>. Acesso em: 08 jun. 2012. Revista do CEJ - n. 5, p. 95-119 - nov. 2015 105 A União Europeia e o Brasil: recursos hídricos na política e legislação ambiental e seis mil quilômetros cúbicos)103, quantidade suficiente para suprir cem vezes as necessidades de água de toda a população mundial. Aquíferos no Brasil E no sul do Brasil, há ainda uma segunda reserva de água subterrânea, o Aquífero Guarani, que recebeu esse nome em homenagem ao povo indígena guarani que habitava a região até a chegada dos europeus. Com uma extensão de quase 1,1 milhão de km² (corresponde a mais que o dobro do território da França) esse aquífero tem uma área enorme. Com um volume total estimado de até 45.000 km³ (quarenta e cinco mil quilômetros cúbicos), esse aquífero representa, todavia, somente a metade dos recursos hídricos subterrâneos do aquífero Alter do Chão no norte do país. O principal problema desse outro tesouro global consiste no fato de atravessar as fronteiras dos países Brasil, Uruguai, Argentina e Paraguai, tendo, portanto, um significado geopolítico específico. Conforme estimativas, 70% (setenta por cento) deste aquífero encontram-se sob território brasileiro. O segundo maior percentual de aproximadamente 19% (dezenove por cento) está sob território da Argentina. Em face dessa riqueza em reservas hídricas cada vez mais importantes, não somente estados terceiros como os EUA, mas especialmente empresas internacionais demonstram um interesse ativo e estratégico na região. Além disso, a região já é considerada foco de conflitos em potencial no futuro. Durante um exercício militar em 2007, a Argentina já simulou uma guerra pela reserva hídrica. No mais, ambos aquíferos correm grande risco devido à poluição, à exploração excessiva, assim como aos efeitos da mudança climática. Especialistas temem que algum dia a retirada de água seja maior do que a regeneração natural. Ficou evidente, que o Brasil tem uma responsabilidade global, não somente pela floresta amazônica, mas também pelos seus recursos hídricos únicos. Essa crescente importância do Brasil no mundo 103 Sobre este assunto veja Pößneck, Janine: Das blaue Gold des Guarani-Aquifer, em: Focus Brasilien, Analysen & Kommentare, Konrad-Adenauer-Stiftung, janeiro de 2012. Disponível em: <http://www.kas.de/wf/doc/61401442-1-30.pdf>. Acesso em: 25 jun. 2012 e Aquífero na Amazônia pode ser o maior do mundo, dizem geólogos, (artigo e mapa 19.04.2010). Disponível em: <http://www.vnews.com.br/noticia.php?id=70222>. Acesso em: 28 jun. 2012. 106 Revista do CEJ - n. 5, p. 95-119 - nov. 2015 Christiano German | Alberto Nogueira Virgínio foi reconhecida pela UE e foi firmado um acordo sobre uma parceria estratégica, na qual as questões ambientais também têm um papel importante. Essa nova forma de colaboração teve início em 04 de julho de 2007, em Lisboa, com um encontro de cúpula entre a UE e o Brasil. Além de muitos outros aspectos, foi acordado que o diálogo já existente nas áreas de ambiente e desenvolvimento sustentável será ampliado104. A questão dos recursos hídricos foi citada especificamente: A gestão dos recursos hídricos, a proteção do meio marinho, a luta contra a poluição pelo mercúrio ou os modelos de consumo e de produção sustentáveis constituem também desafios enfrentados pelas duas partes105. E também no documento de estratégia, por país, de 2007-2013, entre a UE e o Brasil, o problema foi detalhado: “o país deve lutar contra a degradação da qualidade dos recursos hídricos [...]”106. Além disso, foi acordada ainda uma parceria estratégica com a Alemanha, em 14 de maio de 2008. Nesta, as partes contratantes concordam em “focar a cooperação em áreas do manejo de recursos naturais [...]”. Foram realizadas cúpulas anuais entre a UE e o Brasil, sendo que a 5ª Cúpula entre a UE e o Brasil, em 4 de outubro de 2011, em Bruxelas, também deveria oferecer um caminho para um crescimento ecológico em relação à Rio+20107. Na polêmica declaração de aproximadamente 50 páginas da Rio+20 de 2012, com o título “O futuro que desejamos”, 104 Strategische Partnerschaft EU/Brasilien: P6_TA(2009)0140. Recomendação do Parlamento Europeu de 12 de março de 2009 à Comissão para a parceria estratégica entre a União Europeia e o Brasil (2008/2288(INI)-(2010/C 87 E/34). Disponível em: <http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ. do?uri=OJ:C:2010:087E:0168:0172:DE:PDF>. Acesso em: 27 jun. 2012. 105 Auf dem Weg zu einer strategischen Partnerschaft zwischen der EU und Brasilien, in: Europa. Zusammenfassungen der EU-Gesetzgebung. Disponível em: <http://europa.eu/legislation_summaries/external_relations/ relations_with_third_countries/latin_america/r14021_de.htm>. Em português: <http://europa.eu/ legislation_summaries/external_relations/relations_with_third_countries/latin_america/r14021_pt.htm>. Acesso em: 27 jun. 2012. 106 Europäische Kommission - Länderstrategiepapier 2007-2013 für Brasilien, in: Europa. Zusammenfassungen der EU-Gesetzgebung (12.06.2008). Disponível em: <http://europa.eu/legislation_summaries/external_ relations/relations_with_third_countries/latin_america/r15014_de.htm>. Em português: <http://europa.eu/ legislation_summaries/external_relations/relations_with_third_countries/latin_america/r15014_pt.htm>. Acesso em: 28 jun. 2012. 107 Gipfeltreffen EU-Brasilien: Neue Bande knüpfen: Europäischer Rat (04.10.2011). Disponível em: <http://www. Em european-council.europa.eu/home-page/highlights/eu-brazil-summit-creating-new-ties?lang=de>. português: <http://www.european-council.europa.eu/home-page/highlights/eu-brazil-summit-creatingnew-ties?lang=pt>. Acesso em 29 jun. 2012. Veja também Fischer-Bollin, Peter: Der 3. EU-Brasilien-Gipfel am 6. Oktober in Stockholm. Erwartungen und Perspektiven, em: Focus Brasilien, Analysen & Kommentare, Konrad-Adenauer-Stiftung, setembro de 2009. Disponível em: <http://www.kas.de/wf/doc/kas_17670-544-130.pdf>. Acesso em: 27 jun. 2012. Revista do CEJ - n. 5, p. 95-119 - nov. 2015 107 A União Europeia e o Brasil: recursos hídricos na política e legislação ambiental a comunidade dos estados pela primeira vez aderiu ao conceito da “Economia Verde”, um modelo econômico que enfoca mais fortemente a proteção dos recursos naturais. O relatório global Fifth Global Environmental Outlook Report, t que também lida com a problemática da água, havia sido apresentado previamente aos tomadores de decisão (policy makers) 108. A UE considera a declaração da Rio+20 pouco comprometedora, mas um primeiro passo na direção certa. Também as Nações Unidas elogiam os esforços, mas ninguém ficou verdadeiramente satisfeito, especialmente as associações de meio-ambiente. Segundo entendimento do Comissário de Meio Ambiente da EU, Janez Potočnik, deve-se ao empenho da UE que a declaração final, imposta unilateralmente pelo Brasil, tenha sido melhorada em pontos decisivos. Potočnik considera um sucesso da UE, entre outros, a defesa do direito à água potável e a um saneamento básico digno, assim como a valorização do programa ambiental das Nações Unidas, no qual futuramente todos os estados das Nações Unidas serão filiados109. Assim, por exemplo, a versão espanhola da declaração, no capítulo Agua y saneamiento, no item 121, destaca, com observação sobre a “Década da água”. Reafirmamos nuestros compromisos relativos al derecho humano al agua potable y el saneamiento, que ha de hacerse efectivo gradualmente en beneficio de nuestra población, respetando plenamente nuestra soberanía nacional. Resaltamos también nuestro compromiso con el Decenio Internacional para la Acción “El agua, fuente de vida”, 2005-2015110. Aqui também ficou claro que deliberações internacionais mais concretas, como também a consolidação da parceria entre a UE e o Brasil, podem ser esperadas com mais facilidade quando se trata de assuntos econômicos. O Brasil está em décimo lugar entre os parceiros comerciais da UE com 2,2% (dois vírgula dois por cento) de todo o volume comercial 108 UNEP 2012: GEO5. The Fifth Global Environmental Outlook Report. Summary for Policy Makers. Disponível em: <http://www.unep.org/geo/pdfs/GEO5_SPM_English.pdf> e <http://www.unep.org/portuguese/geo/>. Acesso em 06 jul. 2012. 109 Abschluss des Gipfel Rio+20. Wenig Konkretes über “die Zukunft, die wir wollen” von Jule Reimer, Deutschlandfunk, em: Tagesschau.de (03.07.2012). Disponível em: <http://www.tagesschau.de/ausland/rio206.html>. Acesso em: 03 jul. 2012. 110 El futuro que queremos. Documento final de la Conferencia, 19 de junio de 2012. Disponível em: <http://www. uncsd2012.org/content/documents/778futurewewant_spanish.pdf>. Um pouco estranho parece o fato de que a declaração chave The Future We Want (O futuro que queremos) no site oficial da Rio+20 (www. uncsd2012.org) foi somente publicado em árabe, chinês, inglês, francês, russo e espanhol. Disponível em: <http://sustainabledevelopment.un.org/index.php?menu=1481>. 108 Revista do CEJ - n. 5, p. 95-119 - nov. 2015 Christiano German | Alberto Nogueira Virgínio da União. E a UE é o principal parceiro comercial do Brasil, com um total de 22,2% (vinte e dois vírgula dois por cento). O governo brasileiro tem ciência de sua responsabilidade pelos recursos hídricos. A base da legislação no Brasil é a Lei n. 9.433, de 8 de janeiro de 1997, que institui a Política Nacional de Recursos Hídricos e cria o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos111. Antecedeu essa lei a definição das reservas hídricas como “bem de domínio público”, no capítulo II - Da União, artigo. 20, da Constituição de 1988. Uma disposição igual ou semelhante não existe no contrato de Lisboa ou na Lei Fundamental da República Federal da Alemanha. Na lei de água brasileira de 1997 consta, portanto, logo no início no título I - Da Política Nacional de Recursos Hídricos - capítulo I, dos Fundamentos nos artigos: Art. 1º - A Política Nacional de Recursos Hídricos baseia-se nos seguintes fundamentos: I - a água é um bem de domínio público; II - a água é um recurso natural limitado, dotado de valor econômico; III - em situações de escassez, o uso prioritário dos recursos hídricos é o consumo humano e a dessedentação de animais, Art. 2º - I - assegurar à atual e às futuras gerações a necessária disponibilidade de água, em padrões de qualidade adequados aos respectivos usos [...]. A norma da UE acima já citada (Diretiva-Quadro Água 2000/60/ CE) tem metas semelhantes: A água não é um produto comercial como outro qualquer, mas um patrimônio que deve ser protegido, defendido e tratado como tal. Na Alemanha, a legislação sobre a gestão da água de 2009 trata desse item em outra redação considerando as definições da UE. Por isso, consta no capítulo 1, no § 4º, sobre “Propriedade de água, Restrições da propriedade de terras” no item (2): “Águas correntes na superfície assim 111 Lei n. 9.433, de 8 de janeiro de 1997. Institui a Política Nacional de Recursos Hídricos, cria o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos, regulamenta o inciso XIX do art. 21 da Constituição Federal, e altera o art. 1º da Lei n. 8.001, de 13 de março de 1990, que modificou a Lei n. 7.990, de 28 de dezembro de 1989. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9433.htm>. Acesso em: 05 jul. 2012. Revista do CEJ - n. 5, p. 95-119 - nov. 2015 109 A União Europeia e o Brasil: recursos hídricos na política e legislação ambiental como águas subterrâneas não estão sujeitas a propriedade privada”. Além disso, consta no capítulo 2, na seção 1, § 6º, sobre os princípios gerais da gestão de águas: 1. As águas deverão ser manejadas de forma sustentável especialmente com o objetivo de [...], 3. Usá-las para o bem de todos e conforme os interesses de cada um. Assim, a água como bem de todos tem um papel de destaque na Constituição e na legislação no Brasil, na UE e na Alemanha. Somente a colocação em prática dessas prioridades foi realizada com maior consequência na UE112. Todavia, há também no Brasil sinais positivos que partem do governo federal. Isso ficou patente em um levantamento atual sobre a qualidade dos recursos hídricos no Brasil de 2012, publicado no âmbito de um amplo estudo da Agência Nacional de Águas criada no âmbito de uma nova legislação em 2000113. Na introdução, ficou claro que os dois grandes desafios do Brasil mencionados no setor do abastecimento de água estão sendo endereçados114. O estudo pragmático propriamente dito já impressiona pela grande quantidade de detalhes em um país de dimensões continentais com mais do dobro do tamanho da UE e aproximadamente 25 vezes o tamanho da Alemanha. Num extenso resumo, é citado em primeiro lugar o problema, até o momento não resolvido, do saneamento básico e do tratamento de esgotos: Atualmente, os esgotos domésticos representam a principal pressão sobre os recursos hídricos do País, em função da falta de rede de coleta e tratamento ou do tratamento ineficiente dos esgotos coletados. O resultado disso é o lançamento de cargas orgânicas domésticas remanescentes nos corpos hídricos, principalmente nas proximidades dos aglomerados 112 Gesetz zur Ordnung des Wasserhaushalts (Wasserhaushaltsgesetz - WHG). Data de edição: 31/07/2009, última alteração artigo 5º, inciso 9, da Lei de 24 de fevereiro de 2012. Disponível em: <http://www.gesetze-iminternet.de/bundesrecht/whg_2009/gesamt.pdf>. Acesso em: 03 jul. 2012. 113 Agência Nacional de Águas (Brasil): Panorama da Qualidade das Águas Superficiais do Brasil 2012. Disponível em: <http://arquivos.ana.gov.br/imprensa/publicacoes/Panorama_Qualidade_Aguas_Superficiais_ BR_2012.pdf>. Acesso em 02 jul. 2012. 114 Todas as áreas problemáticas da ecologia no Brasil já são conhecidas durante décadas. Veja German, Christiano: ‘Meio Ambiente’ als Problembereich der brasilianischen Innenpolitik”, in: Kohlhepp, G./ Schrader, A. (Hrsg.), Ökologische Probleme in Lateinamerika, Tübingen 1987, pp. 279-292. 110 Revista do CEJ - n. 5, p. 95-119 - nov. 2015 Christiano German | Alberto Nogueira Virgínio urbanos, incorrendo na deterioração da qualidade da água com consequências econômicas e sociais115. No Brasil, há quatro etapas do tratamento de água: preliminar, primário, secundário e terciário. Do volume total de esgotos tratados por dia no Brasil, 8,5 milhões de m3, apenas 10% (dez por cento) passam por tratamento terciário. Carga orgânica remanescente – 2008 Um estudo comparável e também muito detalhado sobre a gestão de águas na Alemanha Wasserwirtschaft in Deutschland, com as respectivas referências ao direito conjunto da UE, foi publicado em 2010 pelo Ministério Alemão de Meio-Ambiente. O motivo para tal foi a já mencionada nova lei alemã para a gestão dos recursos hídricos, que pôde entrar em vigor no plano federal após a reforma do federalismo, em 1º de março de 2010. Na primeira parte do estudo, é constatado que as exigências mínimas descritas no capítulo 18, da Agenda 21, para um abastecimento de água seguro (40 litros de água de consumo salubre por habitante e por dia, abastecimento de 75% da população urbana com instalações sanitárias, estabelecimento de padrões para as descargas de esgotos municipais e industriais, nível mínimo da eliminação de resíduos) já foram colocados em prática na Alemanha. Há 99% (noventa e nove por cento) da população ligada à rede de abastecimento pública de água de consumo e o percentual da população que tem acesso a sistemas de esgoto é semelhante116. Conclusões Diante desse cenário, queremos focar especialmente na água de consumo como bem necessário para a sobrevivência do ser humano em nossa conclusão. Na Alemanha, por exemplo, as concessionárias públicas só garantem a qualidade até o medidor na entrada da residência. Pelas instalações domésticas e sua aplicabilidade em relação à salubridade e a qualidade técnica adequada para o 115 Agência Nacional de Águas (Brasil): Panorama da Qualidade das Águas Superficiais do BRASIL 2012, pp. 206208. 116 Umweltbundesamt: “Wasserwirtschaft in Deutschland”, 1ª parte: “Grundlagen” e 2ª parte: “Gewässergüte”, Situação: julho de 2010. Disponível em: <http://www.bmu.de/binnengewaesser/downloads/doc/46635. php>. Acesso em: 04 jul. 2012. Revista do CEJ - n. 5, p. 95-119 - nov. 2015 111 A União Europeia e o Brasil: recursos hídricos na política e legislação ambiental transporte de água de consumo respondem os proprietários da casa e dos apartamentos. Em apartamentos locados, para garantir a saúde pública, não são mais permitidas, por exemplo, tubulações de chumbo. Os antigos tubos precisam ser substituídos por novas tubulações de materiais certificados117. Para os proprietários, essas modernizações são muito caras. No caso do Brasil, isso significaria que, em uma data remota, quando a água de consumo de qualidade potável passar pelas tubulações, também as respectivas medidas construtivas precisarão ser cumpridas para que os enormes gastos no tratamento da água façam sentido. Outra área problemática não solucionada é, no Brasil, o uso tradicional da água como mercadoria para fins comerciais ou também políticos. Assim consta na legislação brasileira que “a água é um recurso natural limitado, dotado de valor econômico”, mas não consta explicitamente como nas leis da UE “a água não é um produto comercial como outro qualquer, mas um patrimônio que deve ser protegido, defendido e tratado como tal”. Por este motivo, as mídias brasileiras e os ambientalistas criticam, há décadas, o afastamento desse valioso recurso de sua finalidade, deixando de ser um bem comum. Assim, segundo a Defensoria da Água, grupos multinacionais já buscaram informações sobre locais adequados para a retirada de água no aquífero transfronteiriço do Guarani e adquiriram terrenos nessas áreas. Foi criada uma ONG pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, no ano de 2004, no âmbito da Campanha da Fraternidade de 2004, que tinha como tema principal “Fraternidade e Água”. A defensoria advertiu sobre a possibilidade de que empresas multinacionais possam adquirir conhecimentos sobre o aquífero do Guarani para usá-lo no comércio privado. Uma privatização da água poderia acarretar o aumento do preço. O “ouro azul”, de fato, não seria mais um bem público118. Em um estudo de 2008, a defensoria ainda alertou para o fato de que 70% (setenta por cento) da água no Brasil é imprópria para o consumo humano. As principais causas da contaminação seriam atribuídas principalmente ao agronegócio e à 117 Umweltbundesamt: Ratgeber Gesundheitliche Aspekte der Trinkwasser-Installation (Situação: junho de 2007). Disponível em: <http://www.umweltdaten.de/publikationen/fpdf-l/3058.pdf>. Acesso em: 05 jul. 2012. 118 Pößneck, Janine: Das blaue Gold des Guarani-Aquifer, em: Focus Brasilien, Analysen & Kommentare, KonradAdenauer-Stiftung, janeiro de 2012, p. 2, a.a.O. 112 Revista do CEJ - n. 5, p. 95-119 - nov. 2015 Christiano German | Alberto Nogueira Virgínio atividade industrial. Além disso, existiria uma falta generalizada de controle e de fiscalização119. O uso da água como mercadoria comercial política para a compra de votos também tem uma longa tradição, por exemplo, no Nordeste do Brasil, onde a população sofre recorrentes períodos de seca. Em um ano de eleições como 2012, especialmente quando se trata de eleições municipais, onde estes casos ocorrem com maior frequência, a organização não governamental Articulação para o Semiárido (ASA) exige que os ministérios criem um disque denúncia para apontar essas práticas e que o Supremo Tribunal Eleitoral estabeleça uma campanha: “Não troque seu voto por água. Água é direito seu”120. A declaração ainda afirma: O Brasil tem o dever ético de não consentir que as medidas de emergência e socorro às pessoas se transformem em instrumentos de manipulação e desvirtuação das eleições. A preocupação se dirige ao uso político do carro-pipa, entre outras, uma prática comum durante as ações de mitigação dos efeitos da estiagem121. Outro agente que tem pouco interesse em ampliar o abastecimento da água de consumo para a sociedade é provavelmente o lobbyy da água mineral, que tem bastante poder e que há décadas registra altos lucros. Afinal, o ser humano deve consumir em média 2,5 (dois e meio) a 3 (três) litros de água limpa diariamente. Conforme um estudo do Departamento Nacional de Produção Mineral – DNPM, existiam 987 (novecentos e oitenta e sete) concessões de lavra de água mineral ao fim de 2010 em todo o país. A produção brasileira de água mineral engarrafada pode ter chegado até 11,6 (onze vírgula seis) bilhões de litros em 2011, segundo informações do setor privado de águas minerais122. 119 Jornal do Brasil-JB Online: Estudo mostra que poluição tomou 70% das águas de rios do Brasil, 24.10.2011 e 06.07.2012. Disponível em: <http://www.jb.com.br/ciencia-e-tecnologia/noticias/2008/03/22/estudomostra-que-poluicao-tomou-70-das-aguas-de-rios-do-brasil/>. Acesso em: 06 jul. 2012. 120 Nas eleições semi-competitivas durante o governo militar, a troca “voto por água” teria sido classificado como “voto comprado”. Veja German, Christiano: Brasilien. Autoritarismus und Wahlen, München/Köln/ London, 1983, p. 227. 121 Ações para barrar o uso eleitoral da água, in: Jornal do Commercio (Recife)-JC Online, 23.05.2012. Disponível em: <http://jconline.ne10.uol.com.br/canal/cidades/regional/noticia/2012/05/23/acoes-para-barrar-o-usoeleitoral-da-agua-42998.php>. 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Foram consideradas a necessidade de constante aperfeiçoamento das ações de controle sanitário na área de alimentos e a necessidade de atualização da legislação sanitária de alimentos, com base no enfoque da avaliação de risco e da prevenção do dano à saúde da população123. Nesta, são estabelecidas maiores exigências de qualidade para a água mineral. Como já mencionado, por motivos de salubridade, deve-se dar preferência à água mineral e não à água encanada no Brasil. Na Alemanha, a situação é diferente. A renomada Fundação Stiftung Warentest testou em junho de 2012 a qualidade de 29 marcas de água mineral, que oferecem água mineral sem gás. No resultado, todos os produtos apresentaram problemas. Quase dois terços dos produtos continham poucos minerais, além disso, mais de uma em três garrafas apresentavam contaminações microbiológicas, problemas na identificação ou pequenos defeitos no gosto. Os pesquisadores chegaram à conclusão de que a água potável da torneira na Alemanha é mais acessível, muitas vezes de melhor qualidade, bem mais barata e com todas as etapas do tratamento da água incluídas no preço (0,30 centavos de um Euro por litro, em Colônia)124 (correspondendo à aprox. 0,70 centavos de um Real por litro). Na conclusão, já não há mais motivo para beber água mineral, uma vez que, com a alimentação, a quantidade de minerais ingerida já é suficiente. Esse sucesso, quase considerado pela população como coisa normal em um estado de direito democrático e social, no qual o recurso da água potável tornou-se um bem comum, corresponde à inicialmente mencionada e hoje em dia muitas vezes negligenciada valorização da água nos mitos e nas convicções das culturas antigas. Revista Água & Vida ABINAM – ano 12, n. 67, fev/mar 2011, São Paulo. 123 Brasil. Ministério da Saúde. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Resolução RDC n. 54/2000. Diário Oficial, 15 de junho de 2000 e Brasil. Ministério da Saúde. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Resolução RDC n. 275 de 22 de setembro de 2005. Disponível em: <http://www.cetesb.sp.gov.br/solo/agua_sub/arquivos/ RDC_275_2005.pdf>. Acesso em: 06 jul. 2012. 124 Stiftung Warentest: Mineralwasser. Disponível em: <http://www.test.de/thema/mineralwasser/>. Acesso em: 06 jul. 2012. Im Supermarkt oder beim Discounter in Deutschland zahlt man für Mineralwasser ab ca. 13 Cent pro Liter, für klassische Marken sogar meist mehr als 50 Cent. 114 Revista do CEJ - n. 5, p. 95-119 - nov. 2015 Christiano German | Alberto Nogueira Virgínio Referências FIENNES, Sir Ranulph et al.: Extreme der Erde, Editora National Geographic, Hamburgo, 2ª edição, 2005. GERMAN, Christiano. Brasilien, Autoritarismus und Wahlen, München/Köln/ London, 1983. ____ Meio Ambiente als Problembereich der brasilianischen Innenpolitik, em: Kohlhepp, G./ Schrader, A. 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Em julho deste ano, alcançou a marca de 76 de milhões de cadastrados(4), o que coloca o Brasil como o segundo maior mercado em número de usuários da rede social, só perdendo para os Estados Unidos. Com números impressionantes como esses, que demonstram o crescimento acentuado através da adesão constante de novos usuários, não seria difícil perceber que o facebookk tornou-se também um grande negócio para quem quer anunciar produtos e marcas. Aliás, o facebook é um serviço “gratuito” e gera receita somente através da venda de publicidade, o que inclui banners no site, anúncios e, mais recentemente, as controvertidas “histórias patrocinadas” (ou, em inglês, sponsored stories). As “histórias patrocinadas” são um modelo de publicidade diferente criado no interior do site do facebook. Ao contrário dos anúncios, elas são divulgadas em forma de “destaques”(5) no feed d de notícias(6) e mostram as interações das pessoas. Quando um usuário interage com uma página, aplicativo ou evento, uma “história” é criada para que seus amigos vejam no feed d de notícias. Os anunciantes pagam para exibir a atividade dos usuários do site na forma de histórias patrocinadas, em razão da maior probabilidade de influenciar os demais a adquirir o serviço ou comprar o produto patrocinado. Como reconhece o próprio facebook, k “as pessoas são influenciadas pelos gostos e conexões de seus amigos”, 125 Juiz de Direito da 32ª Vara do Recife-PE. Revista do CEJ - n. 5, p. 121-129 - nov. 2015 121 As “histórias patrocinadas do facebook” – os limites da utilização de dados pessoais no marketing on-line daí que incentiva potenciais anunciantes em seu site com o seguinte exemplo: “quando alguém curte sua página, significa que a pessoa está interessada em se conectar com você e isso pode ser interpretado como um endosso de sua marca ou serviço”(7). Esse novo arquétipo publicitário, possibilitado a partir do modo como as interações ocorrem na rede social, tem no entanto gerado bastante polêmica. Na verdade, a própria arquitetura dos anúncios do facebookk em si já é bastante polêmica. A publicidade on-line emprega métodos e softwares especializados em mineração de dados (data mining), que permitem aos anunciantes definir o público-alvo de seus anúncios e quais informações ele visualiza. O facebookk coleta e organiza informações sensíveis de seus usuários, como, por exemplo, informações demográficas, geográficas e comportamentais. Além dos dados cadastrais de cada um dos seus usuários (o que inclui nome, endereço de e-mail, data de nascimento, gênero e, em alguns casos, até mesmo o número de telefone), o facebookk também dispõe de informações que eles compartilham no site, quando executam qualquer ação, tais como publicar uma atualização de status, carregar uma foto, marcar alguém em uma foto, comentar uma atividade de um amigo, curtir uma determinada página, adicionar local à publicação ou iniciar um relacionamento. Todas as informações compartilhadas, incluindo os comentários, curtidas, fotos, vídeos, nomes dos usuários e conteúdos dos posts ficam armazenados no banco de dados do facebook. Além disso, outras informações adicionais são coletadas a partir do computador, telefone celular ou outros dispositivos que os usuários utilizam para se conectar ao site, como, por exemplo, endereço de IP, provedor de Internet, localização, o tipo de navegador e páginas visitadas. Assim, o facebook dispõe de tecnologia informacional para possibilitar a oferta de anúncios personalizados, em razão da imensa quantidade de dados pessoais que coleta de seus usuários. Ao contratar um anúncio, o anunciante pode, por exemplo, escolher um público formado apenas por mulheres, de determinada idade, que moram em um local específico e que tenham predileção por algum tipo de comida ou vestimenta. Se os usuários do facebookk indicam algum tópico específico de interesse, ao curtirem uma página ou comentarem alguma atividade, incluindo temas ligados à religião, saúde ou preferência política, o anunciante também pode escolher alcançar aqueles que se relacionam com o assunto específico. 122 Revista do CEJ - n. 5, p. 121-129 - nov. 2015 Demócrito Reinaldo Filho Os anúncios publicitários no facebookk são por vezes, vinculados a ações sociais dos usuários. Por exemplo, um anúncio de um restaurante pode ser vinculado à notícia de que um determinado usuário curtiu a página desse restaurante no facebook. Mas esse tipo de histórico de notícias (de curtidas) não é exibido no feed d de notícias, e sim vinculado ao anúncio (na parte superior direita do site)(8). Muito mais complicada é a modalidade de publicidade na forma de “histórias patrocinadas”, pois parece utilizar a imagem das pessoas (usuários do site) de forma indevida. A história patrocinada aparece como publicação no feed d de notícias de uma forma que não é possível distinguila de uma publicidade comercial. Utiliza a foto do perfil do usuário, seu nome e uma declaração de que curtiu uma determinada página, associada a uma determinada marca comercial ou produto(9). Esse tipo de publicidade é bem mais vantajoso para o facebook e seus anunciantes, pois sua veiculação através do feed d de notícias permite uma maior probabilidade de que a rede de contatos (amigos) do usuário que fez a interação com a página a vejam. Anúncios fixos postados do lado direito da página do site quase nunca são lidos pelos usuários. Ademais, uma declaração de que um amigo gosta de uma determinada marca ou produto é capaz de significar para a pessoa alvo desse tipo de publicidade uma declaração de confiança, uma espécie de chancela ou endosso sobre tal produto ou serviço. O problema é que utilizar o nome e a imagem das pessoas com fins comerciais sem remunerá-las por isso parece não se coadunar com normas e princípios que dão proteção a atributos da personalidade humana. Além disso, é preciso que se obtenha consentimento expresso antes de tal utilização. No caso do facebook, k é bem verdade que sua nova política de uso de dados pessoais informa que são utilizados em anúncios (incluindo fotos do perfil)(10), mas quando a forma de publicidade intitulada de “história patrocinada” tornou-se funcional, não se renovou aos usuários antigos um pedido expresso de consentimento para tal finalidade. Assim, se um usuário aderiu ao facebookk antes da implantação da função da “história patrocinada”, ele não deu permissão para que seus dados sejam usados em publicidade da forma que hoje é feita. A empresa que opera o facebook, k para poder utilizar a foto do perfil e o nome da pessoa, indicando para toda a sua rede de amigos que ela “curtiu” determinada Revista do CEJ - n. 5, p. 121-129 - nov. 2015 123 As “histórias patrocinadas do facebook” – os limites da utilização de dados pessoais no marketing on-line marca, produto ou fabricante, teria que buscar novo consentimento aos usuários, informando-lhes adequadamente sobre as modificações na sua publicidade. Nada disso parece ter sido feito. Para piorar, as configurações de privacidade do site só se aplicam aos anúncios sociais, mas não às histórias patrocinadas. Em outras palavras, se um determinado usuário não quiser que seu histórico de notícias (curtidas e outras ações) seja vinculado a anúncios publicitários, pode desativar essa função(11). Já em relação às “histórias patrocinadas” não é possível fazer o mesmo(12).. Ainda levanta preocupações adicionais o fato de que o facebook tem uma grande quantidade de usuários que são crianças e adolescentes. Como se sabe, o site permite que qualquer pessoa que declare ter pelo menos 13 anos de idade possa se tornar usuário (13). Mas na verdade, o universo de usuários do facebookk parece incorporar crianças até mesmo abaixo desse limite etário. Com base em dados de maio de 2011 do ConsumersReports.org, existiam 7,5 milhões de crianças menores de 13 anos com contas no facebook, k violando os termos de serviço do próprio site(14). Ou seja, um considerável percentual de usuários do fabebookk é formado de crianças e adolescentes, que não podem por si próprios dar autorizações válidas para o uso de seus dados pessoais. Seria necessário que o facebookk tivesse como dar conhecimento aos pais e representantes legais dessa categoria de usuários a respeito de como seus dados são utilizados no site, bem como requisitar diretamente deles (pais) autorização para o uso do nome e imagem de seus filhos em campanhas publicitárias. Por conta disso tudo, o facebookk foi acionado na Califórnia, numa corte distrital(15). Cinco pessoas ingressaram com a ação em 2011(16), contestando a legalidade da publicidade do site na forma de “histórias patrocinadas”. Antes que o processo tivesse algum pronunciamento judicial sobre o mérito da demanda, as partes resolveram extinguilo, mediante acordo em que o facebookk se comprometeu a pagar a quantia de 20 milhões de dólares(17). O facebookk também aceitou alterar a sua “Declaração de Direitos e Responsabilidades” (também chamada de termos de uso)(18), para dar aos usuários um panorama mais claro de como seus nomes, fotos e gostos (expressados pela função “curtir”) são utilizados em conexão com as “histórias patrocinadas”. A despeito da 124 Revista do CEJ - n. 5, p. 121-129 - nov. 2015 Demócrito Reinaldo Filho contrariedade manifestada por alguns grupos de defesa de direitos de menores, o acordo foi homologado judicialmente. No dia 29 de setembro de 2013, a chefe de assuntos ligados à privacidade do facebook, Erin Egan, publicou uma mensagem no site, comunicando que havia sido feita uma revisão em dois importantes documentos, a “Declaração de Direitos e Responsabilidades” e a “Política de Uso de Dados”. Segundo ela, a revisão foi necessária para dar melhor explicação sobre como o nome do usuário, sua foto do perfil e outros dados pessoais podem ser usados em conexão com anúncios ou conteúdo comercial, para ficar claro que “está dando permissão ao facebookk para esse uso”(19). De logo, surgiram pressões para que o facebookk desista das alterações propostas. Várias entidades de proteção da privacidade, lideradas pela EPIC- Eletronic PrivacyInformation Center, enviaram uma carta(20) à FTC-Federal Trade Comission - que vem a ser uma espécie de agência reguladora do governo dos EUA encarregada da proteção de direitos dos consumidores. Na carta, os grupos de defesa da privacidade digital argumentam que as alterações irão possibilitar que o facebookk utilize as fotos e nomes de seus usuários para fins comerciais, sem que eles, quando se registraram no site, tivessem dado consentimento para tal. Argumenta-se também que as alterações são especialmente perniciosas para os menores de idade, pois a nova redação do documento propõe a seguinte representação fictícia: Se você tiver menos de 18 (dezoito) anos, ou tiver menos de qualquer idade aplicável à maioridade, você declara que pelo menos um de seus pais ou responsáveis legais também concordou com os termos desta seção (e com o uso do seu nome, imagem do perfil, conteúdo e informações) em seu nome.(21). Através dessa enunciação, o facebookk considera ter obtido uma autorização parental com o simples ingresso do menor no site, mas se trata de representação meramente fictícia (e despida de valor), pois não se exige um consentimento expresso dos pais. Para utilizar dados de menores, o facebookk teria que ter se utilizado de uma ferramenta para que os pedidos de registro ficassem pendentes, até que os pais manifestassem sua concordância com a política de uso. O envolvimento de crianças e adolescentes é realmente um elemento fundamental quanto se trata de examinar a legalidade da Revista do CEJ - n. 5, p. 121-129 - nov. 2015 125 As “histórias patrocinadas do facebook” – os limites da utilização de dados pessoais no marketing on-line publicidade na forma de “histórias patrocinadas” do facebook. Existem muitas páginas e comunidades fazendo publicidade ou apologia do consumo de cigarros e bebidas, e outras com orientação política, ideológica e sexual. Permitir que menores de idade possam não só ter acesso a esse tipo de material informacional, mas também vincular sua imagem a determinados conteúdos inadequados viola as leis e princípios de proteção a esse grupo de pessoas mais vulnerável. Nos EUA, a FTC C já anunciou que vai abrir investigação contra o facebook . No Canadá, também foi proposta uma ação coletiva contra o facebook, k por uma mulher que se sentiu lesada ao ver sua imagem e nome sendo utilizados para fins comerciais sem seu consentimento específico(23) .Não é difícil imaginar que essa questão da legalidade das “histórias patrocinadas” do facebookk em breve assome aos tribunais brasileiros. (22) 126 Revista do CEJ - n. 5, p. 121-129 - nov. 2015 Demócrito Reinaldo Filho Referências (1) Facebook mostra o raio-x de 1 bilhão de usuários. Folha de São Paulo, São Paulo, 04 out. 2012. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/ tec/2012/10/1163808-facebook-mostra-o-raio-x-de-1-bilhao-de-usuarios. shtml>. Acesso em: 4 out. 2012. (2) Facebook divulga número de usuários diários dos EUA e Reino Unido. Terra, 13 ago. 2013. Disponível em: <http://m.terra.com.br/ noticia?n=625c7a5568870410VgnCLD2000000dc6eb0aRCRD>. Acesso em: 4 out. 2013. (3) Facebook passa Orkut e vira maior rede social do Brasil, diz pesquisa. Globo.com, 17 jan. 2012. Disponível em: <http://g1.globo.com/tecnologia/ noticia/2012/01/facebook-passa-orkut-e-vira-maior-rede-social-do-brasil-dizpesquisa.html>. Acesso em: 4 out. 2013. (4) SBARAI, Rafael. Veja Vida Digital, 30 jul. 2013. Facebook alcança marca de 76 milhões de usuários no Brasil. Disponível em: <http://veja.abril.com.br/noticia/ vida-digital/facebook-alcanca-marca-de-76-milhoes-de-usuarios-no-brasil>. Acesso em: 4 out. 2013. (5) Facebook libera publicidade nos feeds e chama de “destaques”. Terra, 12 jan. 2012. Disponível em: <http://tecnologia.terra.com.br/negocios-e-ti/ facebook-libera-publicidade-nos-feeds-e-chama-de-quotdestaquesquot,2 668fe32cdbda310VgnCLD200000bbcceb0aRCRD.html>. Acesso em: 19 abr. 2012. (6) O Feed de notícias é a coluna central da página inicial do usuário do Facebook. É uma lista em constante atualização de publicações das outras pessoas e páginas que um determinado usuário segue no Facebook. As publicações no Feed de notícias incluem atualizações de status, fotos, vídeos, links, atividade de aplicativos e opções Curtir. (7) Informações contidas na “Central de Ajuda” do site do Facebook, k Disponível em: <https://www.facebook.com/help/294671953976994>. (8) Ver foto com anúncio em destaque, indicando onde é posicionado no site do Facebook. Disponível em: <http://fotos.sapo.pt/sitiocomvista/ fotos/?uid=Hn8g45hYy4EfGdoTdRUo>. (9) Veja aqui foto que realça a diferença de concepção entre o anúncio e a “história patrocinada”, destacando que esta aparece no centro (Feed d de notícias) do site, enquanto aquele se situa no lado direito. Disponível em: <http://www. nuvemlab.com.br/blog/historias-patrocinadas-no-facebook/>. Revista do CEJ - n. 5, p. 121-129 - nov. 2015 127 As “histórias patrocinadas do facebook” – os limites da utilização de dados pessoais no marketing on-line (10) Na parte que presta esclarecimentos sobre “Como funcionam os anúncios e as histórias patrocinadas”. Disponível em: <https://www.facebook.com/about/ privacy/advertising>. (11) Para tanto, basta utilizar a configuração de Editar anúncios sociais. (12) Isso está expressamente dito, na política de uso de dados pessoais do k na parte que informa sobre “Como funcionam os anúncios e as Histórias Facebook, patrocinadas”, da seguinte maneira: “Sua configuração Mostrar minhas ações ç sociais em Anúncios do Facebookk controla somente os anúncios com contexto social. Ela não controla Histórias patrocinadas p , anúncios nem informações sobre os serviços e recursos do Facebookk ou outros conteúdos do Facebook”. (13) “Ferramentas para Pais e Educadores”. Disponível em: <https://www. facebook.com/help/parents>. (14) Five million Facebook users are 10 or younger. Disponível em: <http://www. consumerreports.org/cro/news/2011/05/five-million-facebook-users-are-10-oryounger/index.htm>. Acesso em 10 mai. 2011. (15) U.S. District Court, Northern District of California. (16) Fraley, et al. v. Facebook, Inc., et al., Case No. CV-11-01726 RS. (17) MINERS, Zach. Judge approves $20 million Facebook fund to settle advertising suit. PCWorld, 26 ago. 2013. Disponível em: <http://www.pcworld. com/article/2047520/judge-approves-20-million-facebook-fund-to-settleadvertising-suit.html>. Acesso em: 4 out. 2013. (18) Ver cópia da Declaração de Direitos e Responsabilidade do Facebook. Disponível em: <https://www.facebook.com/legal/terms>. (19) Ver o inteiro teor do texto divulgado a respeito da revisão das políticas de uso de dados pessoais e declaração de direitos e responsabilidade. Disponível em: <https://www.facebook.com/notes/facebook-site-governance/ atualiza%C3%A7%C3%B5es-propostas-para-os-documentos-de-governan%C3 %A7a/10153197317185301>. (20) Ver o texto da carta. Disponível em: <http://epic.org/privacy/ftc/PrivacyGrps-FTC-tr-9-13.pdf>. (21) No original, em inglês: “If you are under the age of eighteen (18), or under any other applicable age of majority, you represent that at least one of your parents or legal guardians has also agreed to the terms of this section (and the use of your name, profile picture, content, and information) on your behalf.” 128 Revista do CEJ - n. 5, p. 121-129 - nov. 2015 Demócrito Reinaldo Filho (22) GOEL, Vindu; WYATT, Edward. Facebook Privacy Change Is Subject of F.T.C. Inquiry, The New York Times, 11 set. 2013. Disponível em: <http://www.nytimes. com/2013/09/12/technology/personaltech/ftc-looking-into-facebook-privacypolicy.html?_r=1&>. Acesso em: 4 out. 2013. (23) B.C. woman sues Facebook for using her photo. CBC News, 12 abr. 2012. Disponível em: <http://www.cbc.ca/news/canada/british-columbia/b-c-womansues-facebook-for-using-her-photo-1.1192457>. Acesso em: 4 out. 2013. Revista do CEJ - n. 5, p. 121-129 - nov. 2015 129 A força dos precedentes126 Frederico Ricardo de Almeida Neves127 As lacunas e o envelhecimento das normas, as contradições entre princípios e os conceitos jurídicos indeterminados, ao tempo em que tornam exangue o positivismo clássico, justificam, em larga medida, a atividade criativa do direito, pelo intérprete-aplicador da norma, no ato de julgar. Tal realidade, se por um lado fortalece a atividade jurisdicional, pode, por outro ângulo de visada, mutilar a previsibilidade e conduzir a uma debilitação do grau de segurança do direito. Importa reter, para além disso, que a tendência hodierna de se valorizar a celeridade processual não deve levar a subalternizar, como por vezes entre nós se verifica, a imprescindível maturação da decisão judicial. Assentes essas premissas, há que se formular a pergunta essencial: Nesse cenário, qual o instrumento capaz de assegurar uma solução judicial que seja, a um só tempo, rápida e segura? Estou certo de que o único caminho suscetível de garantir níveis aceitáveis de previsibilidade e segurança das decisões judiciais é o do fortalecimento do Direito Jurisprudencial. A edição de enunciados vai ao encontro desse anseio, porque eles refletem o pensamento do tribunal sobre determinadas questões já reiteradas vezes dilucidadas, permitindo que se imprima, bem se percebe, maior rapidez às decisões judiciais, sem descurar a garantia da previsibilidade inerente à segurança dos julgados. O projeto de novo código de processo civil em tramitação no Congresso Nacional, atento à importância do binômio rapidez/segurança, empresta especial relevo à força dos precedentes, ao estabelecer que os tribunais devam uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, editando os enunciados correspondentes à súmula da jurisprudência dominante, na forma e segundo as condições fixadas no regimento interno (artigo 508). 126 Resumo do pronunciamento feito pelo autor por ocasião do VI Encontro de Saúde Suplementar, realizado na Cidade de Gravatá – PE, no dia 05.10.2013. 127 Desembargador Presidente do Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco no biênio 2014/2016. Revista do CEJ - n. 5, p. 131-133 - nov. 2015 131 A força dos precedentes Mas mais: também está expresso no texto proposto que, para dar efetividade à aludida regra, e aos princípios da legalidade, da segurança jurídica, da duração razoável do processo, da proteção da confiança e da isonomia, os juízes e tribunais deverão seguir: (i) as súmulas vinculantes, as decisões proferidas em assunção de competência, em incidente de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos; (ii) os enunciados das súmulas do STF em matéria constitucional, do STJ em matéria infraconstitucional e dos tribunais aos quais estiverem vinculados. Acresce notar que o projeto ainda deixa explicitado que, não havendo enunciado de súmula da jurisprudência dominante, os juízes e tribunais seguirão os precedentes do plenário do tribunal ou do órgão especial respectivo, onde houver, e os dos órgãos fracionários superiores, nesta ordem, sendo ainda interessante sublinhar a possibilidade de o órgão jurisdicional distinguir o caso sob julgamento, mediante argumentação racional e justificativa convincente, de situação fática distinta ou questão jurídica não examinada, caso em que imporá outra solução jurídica. Os enunciados, se bem se vir, com a novel redação, deixarão de ser instrumentos meramente persuasivos - que servem de base apenas para estimular novos julgamentos idênticos sobre a mesma matéria. A proposta de novo código de processo civil, ao contrário, chamando a intervir princípios de magnitude constitucional (tais como os da legalidade, da segurança jurídica, da duração razoável do processo, da proteção da confiança e da isonomia), empresta força imperativa aos preceitos que versam sobre a uniformização e estabilização da jurisprudência, ao dispor que os juízes e tribunais estarão compelidos a seguir, para além das súmulas vinculantes, as decisões proferidas em assunção de competência, em incidente de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinários e especiais repetitivos, bem assim os enunciados das súmulas do STF em matéria constitucional, do STJ em matéria infraconstitucional, e dos tribunais aos quais estiverem vinculados, na falta daquel’outros. Particularidade digna de registro é, outrossim, a que impõe aos juízes e tribunais, na ausência do enunciado de súmula da jurisprudência dominante, o respeito aos precedentes do plenário do tribunal ou do 132 Revista do CEJ - n. 5, p. 131-133 - nov. 2015 Frederico Ricardo de Almeida Neves órgão especial respectivo, onde houver, e aos dos órgãos fracionários superiores, nesta ordem. Tudo isso permite aclarar um fator a ter presente no exercício da função jurisdicional. A sociedade moderna não mais admite um Judiciário moroso, atravancado, ineficiente, que não esteja devidamente apetrechado para resolver os problemas levados a julgamento, de forma tempestiva e segura. Urge que haja uma mudança de mentalidades, com a simplificação dos meios, com vistas ao atendimento eficiente dos anseios do cidadão, destinatário do serviço judicial. Revista do CEJ - n. 5, p. 131-133 - nov. 2015 133 O ativismo judicial do Supremo Tribunal Federal do Brasil nas questões envolvendo segurança pública. Possibilidade de atuação judicial em função executiva Gleydson Lima128 Sumário: Introdução. 1 Direito à segurança pública. 1.1 Estado social e constitucionalismo no Brasil. 1.2 O direito à segurança pública. 1.2.1 A segurança pública enquanto direito fundamental inscrito na Constituição. 1.3 Política de segurança pública: formulação e execução. 1.4 Serviço de segurança pública: efetividade versus ineficiência. 2 O dever fundamental de prestar segurança pública. 2.1 Os direitos prestacionais em Alexy. 2.2 O dever fundamental de prestar segurança pública. 3 Atuação do poder judiciário no caso de lesão aos direitos fundamentais por ineficiência. O ativismo judicial. 3.1 A legitimidade democrática dos juízes para efetivação dos direitos fundamentais. 3.2 Revisão do dogma da separação de poderes. O controle judicial da inatividade administrativa enquanto garantia do cumprimento dos deveres positivos da administração. 3.3 Princípio da reserva do possível versus princípio da proibição da proteção deficiente: limite e parâmetro para atuação jurisdicional. 4 Controle judicial da política e do serviço de segurança pública realizado pela Corte Constitucional do Brasil. 4.1 Controle da omissão ou ineficiência executiva pelo Supremo Tribunal Federal do Brasil. 4.2 Comentários sobre decisões do Supremo Tribunal Federal do Brasil. Conclusões. Referências. Introdução Com o presente trabalho, buscamos estudar a concretização do direito fundamental à segurança pública, e assim evidenciar que, através da preservação da ordem pública, podemos diminuir as desigualdades sociais. Outrossim, trabalhamos a possibilidade de o Judiciário controlar a 128 Juiz de Direito na Comarca de Recife-PE, Mestre em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e Professor licenciado de Processo Penal da Faculdade ASCES. Revista do CEJ - n. 5, p. 135-164 - nov. 2015 135 O ativismo judicial do Supremo Tribunal Federal do Brasil nas questões envolvendo segurança pública. Possibilidade de atuação judicial em função executiva omissão ou ineficiência do Executivo (e aqui nos referimos à ação executiva apenas, não havendo estudo sobre a omissão legislativa) na política e no serviço de segurança. A força normativa da Constituição associada ao princípio-valor da dignidade da pessoa humana, vinculando os direitos fundamentais, constituem o novo modelo de constitucionalismo, e, com ele, o tema concretização da Constituição ganha força, tendo as funções estatais o dever de promoverem os direitos fundamentais constitucionalmente inscritos. A segurança pública, enquanto direito fundamental, traz em si tanto o significado de segurança jurídica, com a conjugação de ações preventivas e repressivas para se preservar a liberdade dos cidadãos, quanto a noção de segurança material, explicitada na efetiva proteção do Estado contra toda e qualquer agressão praticada por particular contra particular, coibindo-se a submissão de um cidadão por outro. Nesta órbita de ideias, busca este breve ensaio, em seu capítulo primeiro, expor a importância da segurança pública no texto constitucional, presente tanto no preâmbulo constitucional quanto no capítulo de direitos e garantias fundamentais, quando transparece seu aspecto direito individual oponível contra o Estado. Trata também o estudo do tema segurança pública enquanto direito social, com inscrição em capítulo próprio e demonstração de que, mesmo sendo dever do Estado, deve contar com a participação de todos que compõem o corpo social. Mas o enfoque será dado no caráter prestacional do direito à segurança, demonstrando que, mesmo podendo gerar um direito público subjetivo em casos esparsos, é o dever de prestar segurança que traz ao Estado a responsabilidade de proteger os direitos, liberdades e garantias. Trazemos no segundo capítulo tanto o enfoque dos deveres de proteção no aspecto subjetivo exposto por Robert Alexy quanto a perspectiva objetiva dos deveres de proteção, bem falada por Reis Novais. A partir das considerações acima evidenciadas, seguimos para a análise central do estudo, que é a legitimidade do Poder Judiciário para concretizar o direito fundamental à segurança pública, com estudo do princípio da separação dos poderes na ótica da democracia constitucional 136 Revista do CEJ - n. 5, p. 135-164- nov. 2015 Gleydson Lima e divagação sobre o princípio da reserva do possível, enquanto limitador da atuação jurisdicional, e o princípio da proibição da insuficiência, enquanto parâmetro para esta atuação. Em capítulo final, há análise da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal quando de sua atuação na proteção do direito à segurança pública, analisando-se quando tal direito fora tratado no seu aspecto de direito prestacional e quando fora analisado no aspecto de direito social, demonstrando as incoerências na análise do princípio da proibição do défice para a concessão do dever de proteção e, mais raramente, do direito subjetivo público à segurança pública, mas observando que a atuação da Corte Constitucional é proativa e garante, por vezes, o que o Estado na sua função administrativa não exerce por omissão deliberada. A tônica da exposição é um estudo da Justiça Constitucional com enfoque no tema segurança pública e, no âmbito desse movimento de ideias, a presente proposta de estudo se individualiza por trazer particularmente a possibilidade de controle das políticas de segurança enquanto dever do Estado, demonstrando também que a segurança pública, em casos mais raros, poderá gerar direito público subjetivo. 1 Direito à segurança pública 1.1 Estado social e constitucionalismo no Brasil Robert Alexy129 expõe a figura dos direitos de proteção e, dentre estes, chama direitos fundamentais sociais os direitos de proteção stricto sensu, expondo que o Estado não deve apenas se abster em relação aos particulares, mas ter posição ativa. Nessa seara, os particulares podem pleitear ao Estado uma prestação positiva. No Brasil, assim como na Constituição portuguesa e em geral nas Constituições da América Latina, a opção constituinte foi por encartá-los no texto constitucional, vinculando, assim, os poderes públicos (Executivo, Legislativo e Judiciário) e emprestando a justiciabilidade a tais direitos. Formalmente, enquanto direitos fundamentais sociais, temos os previstos no Capítulo II do Título II, que são intitulados “Direitos Sociais”, não se podendo conceber nem os Direitos previstos no Título VIII (Ordem 129 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. 2 ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 499. Revista do CEJ - n. 5, p. 135-164 - nov. 2015 137 O ativismo judicial do Supremo Tribunal Federal do Brasil nas questões envolvendo segurança pública. Possibilidade de atuação judicial em função executiva Social) enquanto direitos sociais fundamentais. Já ao se travar o critério material do que seja direito fundamental social buscamos seu conceito quando do parágrafo 2º do art. 5º, que assevera que “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”, conjugado com o art. 7º, caput, t da Constituição, expressando tais direitos “além de outros que visem a melhoria de sua condição social”. Concretizar os direitos sociais é tema bastante discutido tanto na doutrina quanto na jurisprudência, principalmente diante do impacto financeiro que o caráter positivo dos direitos fundamentais traz em si. Jorge Reis Novais é estudioso do tema e discorre que concebidos, como todos os direitos fundamentais, enquanto direitos dirigidos primariamente contra o Estado ou face ao Estado, o reconhecimento de direitos sociais convoca, desde logo, a questão de saber se cabe nas funções constitucionais de um Estado de Direito dos nossos dias a de se obrigar juridicamente ao fornecimento aos cidadãos ou, pelo menos, aos mais carecidos, de prestações fácticas destinadas a promover, possibilitar ou garantir o acesso individual a bens econômicos, sociais e culturais130. Essa dimensão prestacional dos direitos fundamentais é atualmente muito debatida no Supremo Tribunal Federal131, com atuação bastante ativa ao consagrar tais direitos. Miguel Nogueira de Brito, referindo-se à teoria de Dworkin, diz que uma democracia deliberativa é bastante mais complexa do que a constituição de uma concepção da democracia que perspectiva o voto como simples expressão de interesses individuais e prévios ao processo político. A complexidade da constituição da democracia deliberativa levar-nos-ia a considerar como consentâneas com o princípio democrático, 130 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos sociais: Teoria Jurídica dos Direitos Sociais enquanto Direitos Fundamentais. Coimbra: Coimbra Editora, 2010, p. 65. 131 No decorrer do trabalho, visualizaremos algumas das decisões do Supremo Tribunal Federal brasileiro, albergando a proteção aos direitos fundamentais, em especial quando há inércia do Poder Executivo em cumprir o chamado “mínimo existencial”, incorrendo na proteção insuficiente. Haverá discussão se nos direitos prestacionais deve buscar o Estado apenas o mínimo ou a excelência da prestação. 138 Revista do CEJ - n. 5, p. 135-164- nov. 2015 Gleydson Lima assim entendido, diversas restrições constitucionais às decisões das maiorias, como as normas sobre direitos fundamentais e a respectiva justiciabilidade em face das decisões dos corpos legislativos 132, entendendo, mais adiante, em uma concepção dualista, que os direitos fundamentais se afirmam contra o poder133. É no caráter positivo ou prestacional dos direitos fundamentais, discutido e difundido pelo Supremo Tribunal Federal ao estabelecer e proteger os chamados direitos de segunda geração que vivemos esse estágio constitucional em que os direitos sociais “poderão se apresentar como direitos subjetivos (individuais ou metaindividuais), permitindo, assim, sua judicialização, ainda que com certas dificuldades práticas, pois são, isso sim, situações jurídicas complexas”134, cabendo ao Estado a proteção e promoção de tais direitos135. 1.2 O direito à segurança pública 1.2.1 A segurança pública enquanto direito fundamental inscrito na Constituição A segurança pública vem a conjugar ações preventivas e repressivas, visando tanto a segurança jurídica quanto a segurança material. Entende-se segurança jurídica aquela destinada a coibir os abusos estatais contra o cidadão e segurança material a proteção pelo Estado contra as agressões praticadas entre particulares, permitindo-se a vida com liberdade, sem a subjunção de um indivíduo por outro136. Vê-se, pois, que a segurança pública tem conotação não só de direito de defesa como de direito de prestação, o que é plenamente viável também a nível constitucional, pois a opção do constituinte 132 BRITO, Miguel Nogueira. A Constituição Constituinte. Ensaio sobre o Poder de Revisão da Constituição. Coimbra: Editora Coimbra, 2000, p. 370. 133 Idem, p. 371. 134 LAGE, Lívia Regina Savergnini Bissoli. Políticas Públicas como programas e ações para o atingimento dos objetivos fundamentais do Estado. In: PELLEGRINI, Ada Pellegrini Grinover; WATANABE, Kasuo (Coord.). O controle jurisdicional das políticas públicas. Rio de Janeiro: Forense Editora, p. 156. 135 SARLET, Ingo Wolgang. Constituição, proporcionalidade e direitos fundamentais: o Direito Penal entre a proibição de excesso e de insuficiência. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. v. 81. Coimbra: 2005, p. 331. 136 FILOCRE, Lincoln D’Aquino. Direito de segurança pública: limites jurídicos para políticas de segurança pública. Coimbra: Almedina, 2010, p. 13 Revista do CEJ - n. 5, p. 135-164 - nov. 2015 139 O ativismo judicial do Supremo Tribunal Federal do Brasil nas questões envolvendo segurança pública. Possibilidade de atuação judicial em função executiva brasileiro permite essa visão, inclusive classificando-a enquanto direito social. A palavra segurança tem posição de destaque na Constituição e habita desde o preâmbulo, caminhando pelos direitos e deveres individuais e coletivos, findando com capítulo específico no Título da Defesa do Estado e das Instituições Democráticas. Já no preâmbulo, a Constituição expressa que no Estado Democrático é assegurado “o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos”. Sabendo não ser consenso o valor jurídico do preâmbulo de uma Constituição137, temos que mesmo os mais céticos indicam que o preâmbulo tem a característica de dar unidade ao corpo constitucional. O capítulo dos direitos e garantias individuais e coletivas traz, logo no art. 5o da Constituição Federal, a segurança enquanto direito individual, oponível contra o Estado, preservando a segurança jurídica do cidadão contra qualquer abuso estatal e exigindo deste uma posição negativa. É, pois, a segurança atribuída no art. 6o que nos interessa no presente trabalho acadêmico, expressando o dever do Estado de fazer a intervenção de polícia de maneira eficiente, satisfatória e adequada, garantindo a vida em sociedade de maneira harmônica. Tratando do aspecto organizacional do direito social à segurança, o constituinte traz capítulo próprio na Constituição para tratar da segurança pública, estruturando e dando funcionalidade para se preservar a ordem pública. Para Lincoln D’Aquino Filocre138 a ordem pública é o estado de estabilidade dinâmica, ou seja, não é a completa ausência de crimes, mas criminalidade suportável dentro da estabilidade social, até porque não é crível existir sociedade sem qualquer espécie de crime ante a imprevisibilidade dos riscos nem querer atribuir ao Estado a responsabilização por qualquer ato criminoso de um particular. A opção 137 O professor Jorge Miranda, no segundo tomo do seu Manual de Direito Constitucional, 4a edição, Coimbra, 2000, pp. 239-240, faz referência a três correntes, quais sejam: a tese da irrelevância jurídica, a tese da eficácia idêntica a qualquer dispositivo constitucional e, entre as duas, a tese da relevância específica ou indirecta, não confundindo preâmbulo e preceito constitucional. 138 FILOCRE, Lincoln D’Aquino. Direito de segurança pública: limites jurídicos para políticas de segurança pública. Coimbra: Almedina, 2010, p. 24. 140 Revista do CEJ - n. 5, p. 135-164- nov. 2015 Gleydson Lima de colocar a segurança pública enquanto dever do Estado visa buscar o equilíbrio, com os indivíduos sentindo tranquilidade social. 1.2.2 A segurança pública enquanto função essencial do Estado O artigo 144 da CRFB139 traz a segurança enquanto dever do Estado, mas também direito e responsabilidade de todos, visualizando, pois, a segurança enquanto um direito de defesa, prestacional e oponível contra terceiros. Como visto, temos o que os administrativistas chamam de interesse público primário, podendo o cidadão invocar o direito à segurança pública contra o Estado, e no nosso entendimento sempre que o Estado for omisso ou preste ineficientemente não o serviço de combate ao crime, mas de preservação da ordem pública e isso venha a gerar direito público subjetivo. Se o Estado chama para si a responsabilidade pelo controle social, deve manter a tranquilidade social. Daí, temos que os particulares podem invocar o direito público subjetivo de segurança pública, quando comprovada que a omissão estatal gerou dano a particular. Apesar de debates apaixonados, é cediço que cabe ao Poder Executivo o exercício da manutenção de ordem pública, exercendo-o dentro do chamado poder discricionário. O grande problema é que houve total desvirtuamento do que seja poder discricionário no direito brasileiro, não se entendendo poder discricionário enquanto melhor escolha quando a lei transpassar para o administrador a função, mas sim poder sem limites e sem qualquer controle. Para Celso Antonio Bandeira de Mello140, a atuação discricionária nos termos da legalidade é mais dever do que poder, devendo a atuação administrativa conformar-se à legalidade ao que aliamos a necessidade de maior fundamentação, para mostrar o administrador que está a tomar a decisão mais acertada. 139 Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, [...]. 140 MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Discricionariedade e controle jurisdicional. 2 ed. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 13. Revista do CEJ - n. 5, p. 135-164 - nov. 2015 141 O ativismo judicial do Supremo Tribunal Federal do Brasil nas questões envolvendo segurança pública. Possibilidade de atuação judicial em função executiva Para cumprir sua função essencial, o Estado (Poder Executivo) atuará tanto diretamente, através da função policial, quanto indiretamente, autorizando e fiscalizando empresas de segurança, promovendo políticas públicas diretamente para a segurança ou com reflexos na segurança, através de políticas de cunho assistencial, socioeconômico ou socioeducativo, além de mobilizar a sociedade em política social participativa141. 1.3 Política de segurança pública: formulação e execução Como visto anteriormente, o art. 144 da Constituição Brasileira estabelece que a segurança pública deve ser realizada para preservar a ordem pública e a incolumidade das pessoas e do patrimônio e só assim a política pública de segurança irá sistematizar o preceito constitucional. A formulação da política de segurança deve ser atribuição tanto do Legislativo quanto do Executivo. É possível ao Legislativo aprovar lei tal qual fez com outros direitos, a exemplo do direito do ambiente e do direito do consumidor. Já o Executivo, na ausência ou para fazer valer a política de segurança engendrada pelo legislativo, deve ter plano certo e transparente sobre a matéria. O parágrafo sétimo do mesmo artigo prevê que o serviço de segurança seja prestado de maneira eficiente, e à vista disso a política de segurança deve buscar a manutenção de padrões aceitáveis de criminalidade, atuando tanto preventiva quanto repressivamente, cabendo ao Poder Executivo a execução da política pública. Entendida a segurança pública enquanto direito fundamental e o dever Estatal em manter a ordem pública e a incolumidade das pessoas e patrimônio, temos que a aplicabilidade direta do preceito constitucional traz a concretização exigida pelo constituinte, apesar de o contido no parágrafo sétimo ensejar norma de caráter aparentemente programático. 1.4 Serviço de segurança pública: efetividade versus ineficiência Diz Valter Foleto Santin142 que o fornecimento de segurança pública é um serviço primário, essencial, de relevância pública, de uso comum (uti universi), 141 FILOCRE, Lincoln D’Aquino. Direito de segurança pública: limites jurídicos para políticas de segurança pública. Coimbra: Almedina, 2010, p. 135. 142 SANTIN, Valter Foleto. Controle judicial da segurança pública: eficiência do serviço na prevenção e repressão ao crime. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p. 119. 142 Revista do CEJ - n. 5, p. 135-164- nov. 2015 Gleydson Lima em caráter geral, beneficiando todos os cidadãos e a população fixa e flutuante. [...] O bem jurídico imediato tutelado é a segurança pública; o mediato, é a ordem pública, o cidadão e o patrimônio. Em sendo direito fundamental, temos a sua aplicabilidade imediata (CF, art. 5o, § 1º), restando ao aplicador sua plena realização (efetividade). Assim, efetivar o direito à segurança pública é realizar a eficácia contida na Constituição. A busca pela realização dos direitos fundamentais traz ao Estado o dever de proteger tais direitos. É através da eficiência no serviço de segurança que o prestaremos de maneira efetiva, real. A prestação de um serviço eficiente na segurança tanto atende ao interesse do cidadão na sua individualidade quanto materializa o difuso direito da paz social143. Assim, não só a prestação do serviço de segurança pública, mas o eficiente serviço de segurança é dever prestacional do Estado a ser cobrado pelo particular e entidades com legitimidade para tanto. Em sendo responsabilidade de todos, deve o Estado prestar o serviço com a participação da sociedade na formulação da política. A ineficiência na prestação da segurança pode e deve gerar responsabilização estatal, não se descurando que o Estado tem o dever de manter a ordem pública e não de extirpar completamente o crime, fenômeno social que nasce com as civilizações e as acompanha. Deve o Estado manter a estabilidade social, no conceito dinâmico de ordem pública. O controle extrajudicial da segurança pública na visão de Valter Foleto144, dá-se através do próprio Executivo, com as ouvidorias e nomeações e substituições de agentes públicos; pelo legislativo, com as comissões parlamentares de inquérito e impeachment de agentes públicos; pelo Ministério Público, com atividades administrativas de controle externo e através de ação civil ou penal pública e também pelo controle popular, com participação em audiências públicas sobre o tema, reclamações, representações e pedidos de informação, além do habeas data. 143 Idem, p. 152. 144 SANTIN, Valter Foleto. Controle judicial da segurança pública: eficiência do serviço na prevenção e repressão ao crime. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p. 190-192. Revista do CEJ - n. 5, p. 135-164 - nov. 2015 143 O ativismo judicial do Supremo Tribunal Federal do Brasil nas questões envolvendo segurança pública. Possibilidade de atuação judicial em função executiva 2 O dever fundamental de prestar segurança pública 2.1 Os direitos prestacionais em Alexy Robert Alexy145 traz à baila a discussão sobre os “direitos a ações estatais positivas”, chamando-os também “direitos a prestações em sentido amplo”, estabelecendo que os direitos fundamentais podem trazer em si tanto o direito a uma abstenção estatal quanto o direito a uma ação afirmativa por parte do Estado. O Tribunal Constitucional Alemão traz decisões demonstrando tanto o caráter de defesa quanto o caráter prestacional dos direitos fundamentais, decisões estas discutidas por Alexy146. O estudo demonstra que não há divisão estanque e que um direito não é apenas de defesa ou apenas prestacional. A distinção entre direitos de defesa e direitos prestacionais perde sentido quando se demonstra que um mesmo direito pode conter os dois aspectos, a exigir tanto um respeito e não interferência por parte do Estado quanto uma prestação estatal para promovê-lo. Tal diferença sempre foi reverberada pelos Tribunais, para com isso explicitar ser mais fácil e prático reconhecer direitos de liberdade que os chamados direitos sociais, posto que estes necessitam de previsão e dotação orçamentárias147, retirando por vezes das mãos do Judiciário a possibilidade de intervir nas finanças do ente administrativo. A divisão pode até se manter, mas devemos observar que a Constituição deve ser cumprida e assim quando houver omissão ou alocação irregular de recursos por parte do administrador, pode e deve o Judiciário intervir na questão orçamentária para fazer valer o dever constitucional de salvaguarda dos direitos fundamentais e da dignidade da pessoa humana. 2.2 O dever fundamental de prestar segurança pública O direito é fator histórico influenciado pela ideologia prevalente no momento de sua realização. Assim, em um primeiro momento, os direitos fundamentais assumiram posição eminentemente de defesa; eis que a concepção burguesa em França objetivava, com a Revolução, por termo ao poder do monarca. Mas, já nesta fase, observamos uma 145 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. 2 ed. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 431. 146 Idem, p. 436-440. 147 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. 2 ed. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 61. 144 Revista do CEJ - n. 5, p. 135-164- nov. 2015 Gleydson Lima preocupação do legislador com os direitos de igualdade e com os deveres que o Estado tem para com os indivíduos quando consagrou na Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, no seu art. 2o, que toda organização política tem por propósito preservar os direitos naturais e inalienáveis do homem, compreendendo estes o direito à liberdade, à propriedade, à segurança e o de resistência contra a opressão148. Assim, a segurança aparece não apenas enquanto direito de liberdade expressa na segurança individual contra atos do Estado mas também enquanto dever do Estado de prover segurança dos cidadãos até para que os demais direitos fossem exercidos de maneira plena. Todavia, como é cediço, a concepção de Estado Liberal com contraposição entre indivíduos e Estado fora perdendo força e, estabelecido o Estado Social149, cresce em perspectiva a teoria dos deveres de proteção, sendo o Estado protetor dos seus cidadãos. A teoria da eficácia horizontal indireta dos direitos fundamentais150 entre particulares explica o dever de proteção do Estado para os seus cidadãos em relação à segurança pública, cabendo ao Estado, através de seus agentes, prover a paz social e a garantia dos direitos e liberdades, até porque o inimigo dos direitos individuais por vezes não é o Estado, como disciplinado na concepção liberal, mas outros indivíduos, cabendo ao Estado a proteção do indivíduo contra o indivíduo. Alexy trata dos deveres de proteção sob o aspecto de direitos subjetivos à proteção estatal, chamando-os “direitos de proteção” quando explicita que “por direitos de proteção devem ser entendidos os direitos do titular de direitos fundamentais em face do Estado a que este o proteja contra intervenções de terceiros”, expondo ainda que “somente a subjetivação dos deveres de proteção faz justiça ao sentido original e permanente dos direitos fundamentais como direitos individuais”151. 148 Art. 2o da Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789: A finalidade de toda associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem. Esses direitos são a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão. 149 NOVAIS, Jorge Reis. Os princípios constitucionais estruturantes. Coimbra: Coimbra Editora, 2011, p. 30. Sobre o tema e do mesmo autor: Contributo para uma Teoria do Estado de Direito, Coimbra, 2006, em que se visualiza a digressão histórica e uma profunda discussão sobre o Estado de Direito em suas multifacetadas dimensões. 150 CANARIS, Claus-Wilheim. Direitos Fundamentais e Direito Privado. Tradução de Ingo Wolfgang Sarlet e Paulo Mota Pinto. Coimbra: Almedina, 2003, p. 54. 151 ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. 2 ed. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros Editores, 2011, p. 450. Revista do CEJ - n. 5, p. 135-164 - nov. 2015 145 O ativismo judicial do Supremo Tribunal Federal do Brasil nas questões envolvendo segurança pública. Possibilidade de atuação judicial em função executiva Assim, é a partir dos direitos subjetivos que os indivíduos podem reclamar do Estado a devida proteção, e, em casos excepcionais, justicializar a questão. Na perspectiva dos deveres de proteção na vertente objetiva, temos em Reis Novais152 a objetivação dos direitos fundamentais, desvinculando-os de titulares individuais, cabendo aos poderes a promoção e proteção dos direitos fundamentais independentemente de um titular vir a reclamá-lo. No Estado Social, cabe às funções estatais o papel de universalizar os direitos fundamentais. A perspectiva objetiva difere da perspectiva subjetiva, pois nesta é exigível apenas o mínimo social porquanto que naquela o Estado deve prover o “ótimo alcançável”153. Os deveres fundamentais são divididos em “deveres fundamentais autônomos”, que são normas que expõem explicitamente deveres, tal qual o dever de serviço militar aos homens, e os “deveres fundamentais associados a direitos”, colocando-se o dever à segurança pública nesta última categoria154. O artigo 144 da Constituição Brasileira155 demonstra a segurança enquanto dever do Estado mas também direito e responsabilidade de todos, abarcando um modelo em que todos, seja o Poder Público, seja o particular, têm deveres na proteção dos direitos, liberdades e garantias, calcados na solidariedade que deve embasar a convivência. Apesar de alguns entenderem não ser o direito à segurança pública um direito fundamental e de não se encontrar formalmente no rol dos direitos e garantias individuais e coletivos, tem natureza de fundamental, ex vi art. 5o, parágrafo primeiro da Constituição da República. A doutrina atualmente empresta grande relevância ao estudo da promoção e concretização dos direitos de igualdade, buscando com isso obrigar o Estado a prover os mais necessitados do acesso aos bens econômicos, sociais e culturais. Assim, aliar tal estudo ao das políticas 152 NOVAIS, Jorge Reis. As restrições aos direitos fundamentais não expressamente autorizadas pela Constituição. Coimbra: Coimbra Editora, 2003, p. 58. 153 SAMPAIO, Jorge Silva. O dever de proteção policial de direitos, liberdades e garantias. Coimbra: Coimbra Editora, 2012, p. 94. 154 ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. Coimbra: Almedina, 1998, p. 109. 155 Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos: 146 Revista do CEJ - n. 5, p. 135-164- nov. 2015 Gleydson Lima públicas para consecução dos direitos é o grande desafio que se impõe aos administradores. É nessa dimensão prestacional dos direitos fundamentais, inclusive estimulada pelo Supremo Tribunal Federal, que vivenciamos esta fase do constitucionalismo, que não mais se contenta em apenas respeitar direitos como consagra e protege ativamente os direitos fundamentais. Travando a dicotomia entre deveres de proteção de cunho subjetivo e deveres de proteção de cunho objetivo, o dever de segurança exposto na Constituição tem caráter objetivo, proveniente do efeito irradiante dos direitos fundamentais, até em respeito ao direito de liberdade, pois é a segurança que emprestará a necessária liberdade aos cidadãos. Promovendo a segurança, o Estado estará por via transversa assegurando os direitos fundamentais156. Na visão de Casalta Nabais157, temos os deveres de direitos fundamentais, ou seja, são os deveres de proteção derivados de direitos fundamentais, e assim a segurança pública é dever do Estado para coibir qualquer agressão aos direitos dos que integram a sociedade158. O estudo dos deveres fundamentais é realizado em paralelo com o estudo dos direitos fundamentais, calcado na premissa de que direitos e deveres são institutos correlatos e que, no Estado Constitucional, ao se garantir direitos fundamentais está se difundindo a necessidade do exercício dos deveres, conjugando-se plena democracia com respeito à dignidade da pessoa humana. Se o Estado trouxe para si o direito de resolução de querelas entre seus súditos, tem o dever de promover o bem comum e coibir a vingança privada, cabendo ao Estado, em especial em relação à segurança pública, não somente proteger tais direitos fundamentais, como também efetivá-los, esbarrando-se, como se bem sabe, na chamada reserva do possível, pois a disponibilidade financeira para a efetivação deve ser considerada, sendo esta matéria tratada em capítulo próprio. Está, pois, em débito o Estado que não protege de maneira 156 SAMPAIO, Jorge Silva. O dever de proteção policial de direitos, liberdades e garantias. Coimbra: Coimbra Editora, 2012, p. 98. 157 NABAIS, José Casalta. O dever fundamental de pagar impostos: contributo para a compreensão constitucional do estado fiscal contemporâneo. Coimbra: Almedina, 1998, p. 78. 158 SAMPAIO, Jorge Silva. Op cit, p. 99. Revista do CEJ - n. 5, p. 135-164 - nov. 2015 147 O ativismo judicial do Supremo Tribunal Federal do Brasil nas questões envolvendo segurança pública. Possibilidade de atuação judicial em função executiva suficiente os direitos fundamentais, não efetivando seu dever de proteger os cidadãos contra agressões injustas de outrem, pois a efetividade dos direitos e deveres fundamentais é a tônica do moderno constitucionalismo, pautado na dignidade da pessoa humana e na efetivação pelo menos do mínimo social. 3 Atuação do poder judiciário no caso de lesão aos direitos fundamentais por ineficiência. O ativismo judicial 3.1 A legitimidade democrática dos juízes para efetivação dos direitos fundamentais Para alguns críticos do chamado “ativismo judicial”, uma jurisdição constitucional ativa é uma restrição ilegítima da soberania popular, pois emanando o poder do povo não podem representantes de poder, não-eleitos pelo povo, direcionar e decidir por vezes contra a vontade geral. Tal assertiva, todavia, não encontra assento nas chamadas repúblicas constitucionais substancialistas – e o Brasil neste conceito se enquadra – em que o juiz constitucional tem a função de guardar os princípios e regras constitucionais159. Adotando-se, pois, essa teoria da self restraint, t não haveria a legitimação do juiz constitucional, o que não se coaduna com o modelo brasileiro, em que o juiz constitucional tem atuação proativa, à luz dos institutos do mandado de injunção e da ação direta de inconstitucionalidade por omissão160. Não há discussão quanto a existência e efetividade da jurisdição constitucional, mas não encontramos consenso em relação à sua legitimidade. Ao se falar em ativismo judicial temos que observar até onde deve o Tribunal Constitucional intervir e em se admitindo a legitimidade, a discussão recai sobre o limite para o Tribunal substituir o critério adotado pela maioria, posto que o Executivo e o Legislativo representam o anseio popular expressado através do voto. Ao exprimir a Constituição que “compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição”161, quis o constituinte originário dar aos juízes constitucionais representação da soberania 159 MELLO, Claudio Ari. Democracia constitucional e direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 186 e ss., em que o autor traz contraponto com a chamada Democracia democráticodeliberativa. 160 TAVARES, André Ramos. Paradigmas do judicialismo constitucional. São Paulo: Saraiva Editora, 2012, p. 68. 161 Art. 102, caput, t da Constituição da República Federativa do Brasil. 148 Revista do CEJ - n. 5, p. 135-164- nov. 2015 Gleydson Lima popular, na defesa dos princípios e regras constitucionalmente expressos. Eis, pois, a legitimidade da Justiça Constitucional expressa de maneira clara na Constituição. Muitos são os fundamentos para a defesa da jurisdição constitucional, mas o presente estudo vai dar ênfase à virtude que tem o Poder Judiciário de tutelar os direitos fundamentais. Existe democracia deliberativa quando os órgãos representativos cumprem e protegem os direitos e tudo está conforme e tranquilo, mas é a democracia constitucional que tem a resposta para quando tais órgãos descumprem a proteção constitucional, fundamentando assim o caráter democrático da jurisdição constitucional162 163. A independência e a imparcialidade dos órgãos do Poder Judiciário são garantias ainda maiores da democracia constitucional, pois fazem valer a Constituição prestigiando a igualdade material, por vezes contramajoritária, sem se subordinar a ingerências políticas. De se ver, também, que no sistema constitucional, os próprios juízes estão limitados pelo sistema democrático, não podendo tomar decisões políticas, mas apenas materializar os direitos sociais e prestacionais. Assim, temos que, teoricamente, pode e deve o Tribunal Constitucional intervir, à vista de preceito constitucional, e deve fazêlo sempre para preservar a Constituição. A substituição do que quer e pensa a maioria só se faz para preservar a Constituição, não se permitindo ao Tribunal agir de maneira não jurídica, ou seja, agir de maneira eminentemente política, haja vista ser este preceito entregue aos órgãos democraticamente eleitos, só cabendo ao juiz a interpretação constitucional. O grande problema do chamado ativismo judicial é a busca de um conceito unívoco para o instituto. Ora, cada país carrega sua realidade local, e se tem que buscar a resposta para o ativismo nestas peculiaridades da sociedade, observando-se que cumpre ao juiz interpretar a lei e a Constituição, observando-se os casos concretos na busca da melhor resolução do litígio. No Brasil, a inércia dos Poderes Executivo e Legislativo em 162 MELLO, Claudio Ari. Democracia constitucional e direitos fundamentais. Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2004, p. 189. 163 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Tradução de Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2011. Revista do CEJ - n. 5, p. 135-164 - nov. 2015 149 O ativismo judicial do Supremo Tribunal Federal do Brasil nas questões envolvendo segurança pública. Possibilidade de atuação judicial em função executiva cumprirem suas funções constitucionais, por vezes com omissão deliberada, provoca uma reação do Judiciário que amparado pelo preceito constitucional de “guardião da Constituição” por vezes substitui o legislador e o administrador. Entendemos que não pode haver substituição deliberada aos Poderes democraticamente eleitos mas deve haver controle da omissão quando esta fulminar direitos fundamentais e em especial a dignidade da pessoa humana, agindo o Judiciário enquanto “concretizador de direitos fundamentais declarados pela Constituição”164. 3.2 Revisão do dogma da separação de poderes. O controle judicial da inatividade administrativa enquanto garantia do cumprimento dos deveres positivos da administração Para uma Constituição estabelecer apenas parâmetros mínimos, deve consagrar os direitos fundamentais e a separação dos poderes. Distribuem-se funções para se evitar o despotismo de um Poder, dando respaldo e agigantamento à democracia, resvalando-se qualquer tentativa de absolutismo. Muitos são os exemplos constantes da Constituição tanto da separação das funções quanto da interpenetração de uma função em outra. Na atualidade, a grande discussão é se a separação é estanque ou mitigada, e se esta mitigação importa em rompimento do sistema democrático e desrespeito às funções primárias. É o estudo bastante atual da possibilidade de a jurisdição constitucional exercer o controle de constitucionalidade dos atos legislativos e administrativos, quando a omissão ou a deficiência nos deveres de proteção for observada nos Poderes Executivo e Legislativo. É a jurisdição constitucional um dos principais instrumentos da democracia. A Justiça Constitucional deverá exercitar sua competência, na visão de Mônica Mattedi165, quando o legislador não cumprir ou cumprir insuficientemente os deveres de proteção, e ainda quando houver supressão ou restrição às prestações já concretizadas por lei anterior. Some-se a esse fundamento que também o Judiciário deve controlar a constitucionalidade quando há omissão ou insuficiência pelo Executivo 164 TAVARES, André Ramos. Paradigmas do judicialismo constitucional. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 69. 165 MATTEDI, Mônica. A atuação do Poder Judiciário na efetivação dos direitos sociais: a dignidade da pessoa humana como parâmetro e a separação dos poderes como limite. Relatório de Mestrado em Ciências Jurídico-Políticas. Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. 2009, p. 56. 150 Revista do CEJ - n. 5, p. 135-164- nov. 2015 Gleydson Lima na proteção dos direitos fundamentais, até contra a prática de abuso por particulares, na chamada eficácia externa dos direitos fundamentais. Muitos radicalizam ao dizer que o adentramento na esfera administrativa provocaria a ocorrência do fenômeno da judicialização da política, com nítida interferência do juiz em seara não evidenciada na Constituição e quebra do princípio da separação dos poderes. Tal argumento é calcado em premissa falsa, pois se a separação dos poderes fosse o óbice para a concretização dos direitos sociais expressos na Constituição, não poderia também o juiz intervir nos direitos políticos e civis. É interessante que os críticos do chamado ativismo judicial só expressam óbice quando o juiz o faz em relação aos direitos de cunho prestacional, não se apercebendo que ao analisar e exercer a jurisdição constitucional nada mais faz o magistrado que sopesar valores e interpretar o texto constitucional. Diz Konrad Hesse166 que “na atualidade é decisiva para uma ampla garantia e efetividade dos direitos fundamentais a proteção pelos tribunais” e, em especial, o dever de proteção dos direitos fundamentais para afastar omissão ou ineficiência estatal. O Poder Judiciário deve agir para dar validade ao sistema constitucional, com atuação direta e protetiva, por vezes restringindo direitos individuais, quando os órgãos democraticamente eleitos descumprirem sua função em relação aos direitos sociais e prestacionais. De salientar que os direitos sociais por vezes são ademocráticos, o que leva os órgãos eleitos pelo povo a não contrariarem a maioria, servindo o Poder Judiciário justamente para reconhecer os direitos das minorias dentro do contexto democrático. Sendo a jurisdição constitucional delegatária do Poder Constituinte, cabe a ela proteger os direitos fundamentais sociais, mormente por ser um poder imune às influências políticas (pelo menos no campo teórico) e com a característica da imparcialidade, preservandose assim a democracia em sua essência. 166 HESSE, Konrad. Temas fundamentais do Direito Constitucional, textos selecionados e traduzidos por Carlos dos Santos Almeida, Gilmar Ferreira Mendes e Inocêncio Mártires Coelho. São Paulo, Editora Saraiva, p. 64. Revista do CEJ - n. 5, p. 135-164 - nov. 2015 151 O ativismo judicial do Supremo Tribunal Federal do Brasil nas questões envolvendo segurança pública. Possibilidade de atuação judicial em função executiva 3.3 Princípio da reserva do possível versus princípio da proibição da proteção deficiente: limite e parâmetro para atuação jurisdicional Grande estudo sobre o princípio da reserva do possível fora realizado pela doutrina que dele se socorre para caracterizar a impossibilidade financeira de o Estado prover os direitos sociais e de caráter prestacional. Em contraponto a este argumento de muitos defensores da proteção isonômica dos direitos sociais em relação aos demais direitos constantes da Constituição, temos a figura do mínimo existencial que traz a noção de que nos direitos sociais basta o Estado prover o mínimo para a sobrevivência digna dos cidadãos, e neste parâmetro a figura da reserva do possível perde conotação, pois, para suprir o mínimo social, sempre haverá possibilidade financeira, bastando ao Estado bem realizar a alocação do recurso. Saliente-se, neste estudo, que mesmo se satisfazendo com o mínimo, devemos sempre que possível buscar a excelência na satisfação do direito. O grande problema travado são os conceitos extrajurídicos insertos no princípio da reserva do possível, conceitos estes que são levados a uma análise jurídica. Assim, quando da análise deste princípio, em contraponto à figura do mínimo existencial, temos que observar se realmente tem-se escassez material do recurso e não alocação de recurso ao bel prazer do administrador, sem observar e suplantando direitos sociais em benefício de interesses menores, que nem sempre estão em consonância com a moral que se espera de quem ocupa cargos públicos. O princípio da proibição da proteção deficiente também é chamado na doutrina como proibição da insuficiência, proibição do defeito ou princípio da infraproteção167, consagrando a proporcionalidade em sua integralidade. O professor Reis Novais, ao estudar o princípio, empresta-lhe o vocábulo “proibição do défice”168. Tal princípio não permite uma atuação estatal omissa ou insuficiente, que não se coaduna com os direitos fundamentais, dever estatal destinado para todas as funções estatais. Analisa-se o princípio da proibição da proteção insuficiente dentro do estudo dos deveres de proteção do Estado e, sendo a segurança 167 NOVAIS, Jorge Reis. As restrições aos direitos fundamentais não expressamente autorizadas pela Constituição. Coimbra: Coimbra Editora, 2003. 168 NOVAIS, Jorge Reis. As restrições aos direitos fundamentais não expressamente autorizadas pela Constituição. Coimbra: Coimbra Editora, 2003, p. 77. 152 Revista do CEJ - n. 5, p. 135-164- nov. 2015 Gleydson Lima pública um dever acometido ao Estado, quando este o presta de maneira insuficiente ou é omisso neste dever é acionado o princípio, pois há violação de direito fundamental169. O princípio do défice de proteção coloca como exigência uma proteção eficiente dos direitos fundamentais, ou seja, que a proteção seja efetiva e não fictícia, não havendo a exigência de uma proteção em grau elevado, mas não permitindo também que se desça abaixo de um mínimo exigível pelo princípio, que se entende tenha a dignidade da pessoa humana enquanto parâmetro balizador. Não se retira o poder discricionário do administrador, mas deve este balizar sua conduta para conformá-la com o mínimo de proteção exigido constitucionalmente, pois, não estar conforme a proteção exigida importa em violação do princípio. A constitucionalidade pode e deve ser controlada pela Justiça Constitucional para se aferir se o dever de proteção é eficaz e apropriado, satisfazendo as mínimas exigências na sua prática. Pode o administrador graduar a proteção dentro dos parâmetros que impuser enquanto corretos, mas não pode descer do patamar exigível, indo aquém do mínimo, quando, assim, deverá ser desenvolvido ou ampliado. Do mesmo modo, se encontra o administrador vinculado à proibição do excesso, sendo esta a baliza para o máximo da discricionariedade, pois, quando exerce a proteção perante terceiros, estará por via transversa interferindo na liberdade de alguém. A proibição do excesso está ligada ao fator interferência, limitando-o, ao passo que a proteção da insuficiência está ligado ao fator proteção, balizando a atuação estatal170. Deve o executor do dever de proteção encontrar-se atento para a razoabilidade da intervenção, pois mesmo a proteção de interesse relevante não deve restringir liberdades além do razoável. A reserva do financeiramente possível vem com o escopo de restringir direitos fundamentais e a proibição da proteção insuficiente pondera tal princípio e traz a dignidade da pessoa humana como fundamento para ordenação orçamentária. 169 SCHWABE, Jungen. Cinquenta anos de jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal Alemão. Montevideo: Konrad-Adenauer-Stiftung, 2005, p. 171. 170 Sobre o tema ver PASCUAL, Gabriel. Doménech. Derechos fundamentales y riesgos tecnológicos. Centro de Estudios Políticos y Constitucionales. Madrid, 2006 e PULIDO, Carlos Bernal. El principio de proporcionalidad y los derechos fundamentals. Centro de Estudios Políticos y Constitucionales. 3a edición. Madrid, 2007. Revista do CEJ - n. 5, p. 135-164 - nov. 2015 153 O ativismo judicial do Supremo Tribunal Federal do Brasil nas questões envolvendo segurança pública. Possibilidade de atuação judicial em função executiva 4 Controle judicial da política e do serviço de segurança pública realizado pela Corte Constitucional do Brasil 4.1 Controle da omissão ou ineficiência executiva pelo Supremo Tribunal Federal do Brasil A Constituição de 1988 traz a visão da efetividade constitucional171, intensificando-se jurisprudencialmente com um maior controle de constitucionalidade da atividade administrativa. Interessante acórdão sobre o tema foi o RE 436996/SP, concedido contra o Município Paulista de Santo André, que teve como relator o Ministro Celso de Mello.172 No caso, a Suprema Corte entendeu que a criança de até seis anos de idade tem direito a atendimento em creche e em pré-escola, considerando tratar-se de “dever jurídico cuja execução se impõe ao poder público, notadamente ao município”. Após essa decisão, o Supremo Tribunal Federal inaugurou uma série de decisões sobre a matéria “proteção de direitos fundamentais”. O princípio da proporcionalidade, é bem verdade, vem sendo utilizado pelo Tribunal Constitucional brasileiro há mais de uma década, sempre no aspecto proibição do excesso, impossibilitando que o Estado intervenha nos direitos de defesa. Em uma chamada “segunda fase da proporcionalidade”, o Supremo Tribunal Federal passou a também utilizar o princípio da proibição da proteção deficiente para concretizar os direitos prestacionais e sociais. O Professor Jorge Reis Novais173 estabelece a suficiência dogmática do princípio, e a esta tese somos filiados, expondo que, ao se analisar a insuficiência, não se precisará estabelecer os critérios utilizados para a proibição do excesso (aptidão, proporcionalidade em sentido estrito, indispensabilidade, razoabilidade e indeterminabilidade), registrando-se apenas a razoabilidade e a dignidade da pessoa humana, aplicando-se o 171 Em sua obra O direito constitucional e a efetividade de suas normas, Luis Roberto Barroso parte dos seguintes pressupostos de um Direito Constitucional timbrado pela efetividade: “1) a Constituição, sem prejuízo de sua vocação prospectiva e transformadora, deve conter-se em limites de razoabilidade no regramento das relações de que cuida, para não comprometer o seu caráter de instrumento normativo da realidade social; 2) as normas constitucionais têm sempre eficácia jurídica, são imperativas e sua inobservância espontânea enseja aplicação coativa; 3) as normas constitucionais devem estrutura-se e ordenar-se de tal forma que possibilitem a pronta identificação da posição jurídica em que investem os jurisdicionados; 4) tais posições devem ser resguardadas por instrumento de tutela adequados, aptos à sua realização prática”. p. 86. 172 O Acórdão foi publicado no Diário da União no dia 07 de novembro de 2005. 173 NOVAIS, Jorge Reis. As restrições aos direitos fundamentais não expressamente autorizadas pela Constituição. Coimbra: Coimbra Editora, 2003, p. 73. 154 Revista do CEJ - n. 5, p. 135-164- nov. 2015 Gleydson Lima princípio nos deveres de proteção e efetivação dos direitos fundamentais que recaiam sobre a administração, com a omissão atuando enquanto causa autônoma de restrição do direito fundamental em comento. Analisaremos, pois, como vem utilizando o Tribunal Constitucional brasileiro o retromencionado princípio na jurisprudência em geral e na segurança pública, demonstrando a incoerência em alguns julgados. Desde o ano de 2006, quando inaugurou o uso do princípio, o Tribunal já o utilizou por mais de 20 (vinte) vezes, em decisões que abarcam os direitos sociais e os deveres de proteção, havendo também tanto decisões plenárias quanto decisões de turmas e monocráticas174. Nos julgados, sempre observamos o recurso aos temas dever de proteção, omissão estatal e proibição da proteção deficiente. Interessante explicitar que a pesquisa não encontrou nenhum julgado relacionado a mandado de injunção ou ação direta de inconstitucionalidade por omissão, campos nos quais deveria ser bem empregada, posto que é sede de discussão sobre a matéria. Aspecto interessante nas decisões do Supremo Tribunal Federal é não enxergarmos quando da utilização do princípio a necessária colisão nos direitos prestacionais, como ocorreu na decisão paradigmática do aborto na Alemanha, em que o direito do nascituro colidiu com o direito da disposição do corpo pela mãe. Já nos direitos sociais, os acórdãos e monocráticas estão mais atentos à colisão, até porque sempre haverá necessária colisão entre aquele direito social atendido e os demais que ficarão sobrestados por recursos financeiros, devido ao atendimento daquela demanda em especial. 4.2 Comentários sobre decisões do Supremo Tribunal Federal do Brasil No aspecto proibição da proteção deficiente na segurança pública, temos o tema tratado pelo Supremo Tribunal Federal nos Agravos Regimentais em Recursos Extraordinários de números 367.432 (relator Ministro Eros Grau) e 559.646 (relatora Ministra Ellen Gracie). Em ambos os recursos, o Tribunal, por unanimidade, acatou a tese de ser função institucional do Poder Judiciário determinar a implantação de políticas 174 Houve pesquisa nos acórdãos SL/AgR 47-PE, ADI/MC 1.407-DF, PSV 30, RE 418.376-5-MS, SS/AgR 2.944-PB, ADC 5, ADI 1.800, ADI 3.112, ADI 3.510, SS/AgR 3.345-RN, AgR 3.355-RN, STA/AgR 175-CE e nas decisões monocráticas AgR/RE 559.646-PR, Agr/RE 367.432-PR, SS 3.690-CE, SS 3.724-CE, SS 3.751-SP, STA 244-CE, STA175-CE, STA 245-RS, STA 408-BA e STA 419-RN. Revista do CEJ - n. 5, p. 135-164 - nov. 2015 155 O ativismo judicial do Supremo Tribunal Federal do Brasil nas questões envolvendo segurança pública. Possibilidade de atuação judicial em função executiva públicas quando os órgãos competentes não o fizerem, comprometendo a integridade dos direitos individuais e coletivos, mesmo que tais direitos tenham um conteúdo programático na visão doutrinária, visualizando a aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais e, de maneira transversa, visualizando o aspecto dos deveres de proteção do Estado. Quanto ao Agravo em Recurso Extraordinário n. 367.432/PR, o Tribunal de Justiça do Estado do Paraná havia negado provimento aos recursos para preenchimento de cargos no quadro de servidores da Secretaria de Segurança Pública, construção de cadeias, delegacias de polícia e compra de veículos, armamentos e munições, sob o argumento de não caber ao Judiciário ordenar tais obras e serviços sem interferir no planejamento administrativo e orçamentário, expondo o princípio da separação dos poderes para negar provimento ao apelo. Para fundamentar o voto, o relator, Ministro Eros Grau, traz à baila fundamentação exposta na ADPF 45, publicada no DJ de 4.5.2004, relatoria do Ministro Celso de Mello175, elucidando a dimensão política da jurisdição constitucional atribuída ao Supremo Tribunal Federal ante a abusividade governamental, neste caso por omissão, além de lembrar a necessidade de efetivação das liberdades positivas diante do desrespeito do Poder Público, gerando a inconstitucionalidade por omissão. Apesar do acórdão expor que se preservara direito social, temos nítido direito prestacional preservado, pois, com a efetivação da medida de segurança pública, não teremos destinatário certo, mas toda população será beneficiada pela melhoria no setor. Há, ainda, na decisão vergastada, contraponto com a reserva do possível, mas a se dizer que o Estado não pode colocar tal princípio para se eximir de cumprir os fundamentos constitucionais, promovendo o bem-estar dos indivíduos, que nada mais é que a tão falada dignidade da pessoa humana, que baliza e norteia os gastos prioritários que deve ter o Estado na sua visão orçamentária. Traz o acórdão, de maneira clara, a já falada visão de que o conceito de ativismo judicial não é unívoco, ao 175 Em acórdão publicado no dia 17.11.05, com Relatoria do Ministro Carlos Velloso, temos de maneira explícita a posição do Supremo Tribunal Federal sobre o conflito Separação de Poderes e exercício da Jurisdição Constitucional para efetivação da Constituição, quando diz o Ministro que “cabe ao Judiciário fazer valer, no conflito de interesses, a vontade concreta da lei e da Constituição. Se assim procede, estando num dos polos da ação o Estado, o fato de o Judiciário decidir contra a pretensão deste não implica, evidentemente, ofensa ao princípio da separação dos poderes, convindo esclarecer que, conforme lição de Balladore Palieri, constitui característica do Estado de Direito sujeitar-se o Estado à Jurisdição”. 156 Revista do CEJ - n. 5, p. 135-164- nov. 2015 Gleydson Lima salientar que “os Poderes Legislativo e Executivo no Brasil se mostraram incapazes de garantir um cumprimento racional dos respectivos preceitos constitucionais”176, referindo-se aos gastos públicos e à separação de poderes. Já no Agravo Regimental no Recurso Extraordinário n. 559.646-PR177, de relatoria da Ministra Ellen Gracie, tivemos idêntico pensamento, com deslinde tal qual a decisão anterior. Versa a decisão que não há ingerência do Poder Judiciário quando o Executivo se encontra inadimplente na implementação de políticas públicas constitucionalmente previstas. É, mesmo sem explicitar o princípio da proibição da proteção deficiente, a aplicação deste aos deveres de proteção. Por via transversa, o tema segurança pública é trabalhado no Supremo Tribunal Federal na Proposta de Súmula Vinculante 30, tornandose depois a Súmula Vinculante 26178, em que o Tribunal reconheceu o excesso da Lei n. 8.072/90, que proibia a progressão de regime nos crimes denominados hediondos, mas também enxerga que, para a progressão em tais crimes, pode o juiz das execuções determinar a realização de exame criminológico para aferição de requisito subjetivo, evidenciando que a liberdade de indivíduo que pratica crime hediondo sem a necessária cautela pode implicar em proteção insuficiente da vida e segurança dos demais membros da sociedade. Denota-se neste julgado, em especial no voto do Ministro Gilmar Mendes, a omissão do Estado ao facultar o exame criminológico na Lei de Execuções Penais (Lei n. 7.210/84)179, e a Súmula explicita que, mesmo sendo uma faculdade do juiz, pode este determinar para os casos de crimes hediondos, promovendo quase um aconselhamento para os magistrados de primeiro grau. 176 AgR em RE n. 367.432/PR, publicado no Diário da Justiça no dia 14.5.2010. 177 Publicado no Diário da Justiça no dia 24.6.2011. 178 Súmula Vinculante n. 26 - PSV 30 - DJe n. 35/2010 - Tribunal Pleno de 16.12.2009 - DJe n. 238, p. 1, em 23.12.2009 - DOU de 23.12.2009, p. 1. Progressão de Regime no Cumprimento de Pena por Crime Hediondo - Inconstitucionalidade - Requisitos do Benefício - Exame Criminológico. Para efeito de progressão de regime no cumprimento de pena por crime hediondo, ou equiparado, o juízo da execução observará a inconstitucionalidade do art. 2º da Lei n. 8.072, de 25 de julho de 1990, sem prejuízo de avaliar se o condenado preenche, ou não, os requisitos objetivos e subjetivos do benefício, podendo determinar, para tal fim, de modo fundamentado, a realização de exame criminológico. 179 Art. 112, Lei n. 7.210/84. A pena privativa de liberdade será executada em forma progressiva com a transferência para regime menos rigoroso, a ser determinada pelo juiz, quando o preso tiver cumprido ao menos um sexto da pena no regime anterior e ostentar bom comportamento carcerário, comprovado pelo diretor do estabelecimento, respeitadas as normas que vedam a progressão. (Redação dada pela Lei n. 10.792, de 2003). Revista do CEJ - n. 5, p. 135-164 - nov. 2015 157 O ativismo judicial do Supremo Tribunal Federal do Brasil nas questões envolvendo segurança pública. Possibilidade de atuação judicial em função executiva Interessante julgamento monocrático tem em Pedido de Suspensão de Tutela Antecipada de n. 419180, proveniente do Estado do Rio Grande do Norte, decisão em que o então Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Gilmar Mendes, baseando-se no direito à segurança, garante a transferência de presos mantidos de maneira precária em delegacias de polícia até a construção de unidades prisionais. Neste caso, há tutela da proteção policial de direitos dos presos, constatando-se verdadeiro direito social, eis que a prestação a ser cumprida tem cunho individual e determinado. Também evidenciado o direito subjetivo público quando do julgamento da Suspensão de Tutela Antecipada no Agravo Regimental/ PE n. 223, em que o Supremo Tribunal Federal determinou que o Estado de Pernambuco pagasse todas as despesas necessárias à realização de cirurgia para implante de marcapasso diafragmático muscular em cidadão vítima de assalto em que o disparo dado pelo assaltante resultou em tetraplegia da vítima, entendendo o Tribunal que o Estado não prestou a devida segurança, no aspecto policiamento ostensivo, o que levou ao crime e à consequente incapacidade do autor do pedido. Claro restou que houve reconhecimento de direito subjetivo público à indenização por ineficiência do Estado na prestação do serviço de segurança. O Supremo Tribunal Federal reconhece não mais haver uma separação estanque de poderes e que as normas de conteúdo programático não podem se converter em promessas constitucionais, relegandose a Constituição a um texto sem valor normativo. Expõem também os acórdãos que não pode o Poder Público manipular sua atividade financeira, criando obstáculo artificial para a consecução do direito prestacional, estabelecendo assim os conceitos de reserva do possível natural (quando realmente não há recursos) e artificial (quando há destinação errônea dos recursos). A liberdade de conformação do administrador não é absoluta, devendo se pautar pela garantia do mínimo existencial e pela dignidade da pessoa humana. Para a Corte Constitucional, havendo violação clarividente e sem legitimidade pelo legislador, pode e deve o Judiciário se imiscuir na conveniência e oportunidade, podendo tanto na política quanto no serviço realizar interferência constitucional. 180 STA 419-RN, publicada no Diário da Justiça no dia 22.4.2010. 158 Revista do CEJ - n. 5, p. 135-164- nov. 2015 Gleydson Lima Além de evidenciar a proibição da proteção deficiente, o Supremo Tribunal alertou ser função do Judiciário “fazer valer, no conflito de interesses, a vontade concreta da lei e da Constituição”181, não havendo ofensa à separação de poderes, eis que o preceito decorre da própria Constituição. Em contraponto, como lado negativo dos acórdãos e decisões monocráticas, temos que, por vezes, o ativismo do Supremo Tribunal Federal, baseado no princípio da proibição da proteção deficiente, fora utilizado em diversas matérias, sem manter um necessário vínculo com os deveres de proteção e, por vezes, sem explicitar a colisão de princípios, além de, até o presente momento, não ter a Corte Constitucional reconhecido leading case, o que impossibilita, de certo modo, a utilização do princípio como fundamento para decisões posteriores, sendo sua utilização uma exceção na Corte. Com a aplicação do princípio da proibição da proteção deficiente, o Supremo Tribunal Federal amplia muito sua margem decisória, praticando verdadeiro “ativismo judicial”, mas, em contrapartida, exerce sua função constitucional de guardião da Constituição, fazendo valer os direitos prestacionais e os direitos sociais quando o administrador, por mera conveniência, não consagra aos cidadãos o mínimo, protegendo-os deficientemente. Conclusão A segurança pública é direito fundamental com características de defesa, prestacional e, mais raramente, direito social, devendo o Poder Executivo prestar o mínimo de segurança aos brasileiros e estrangeiros residentes ou temporariamente no País, não se permitindo mais a visão retrógrada da discricionariedade sem controle, em detrimento do direito à vida, em última análise, pois a insegurança está a levar vidas e fazer imperar o medo. A Constituição empresta grande valor ao tema segurança pública, perfilhando suas linhas desde o preâmbulo, todavia tendo destaque enquanto direito de defesa e direito prestacional, podendo, em casos raros, gerar direito subjetivo. É no contexto de “direitos a ações estatais positivas” que enfocamos nosso estudo, mostrando também que 181 STA 223-PE, publicada no Diário da Justiça no dia 18.3.2008. Revista do CEJ - n. 5, p. 135-164 - nov. 2015 159 O ativismo judicial do Supremo Tribunal Federal do Brasil nas questões envolvendo segurança pública. Possibilidade de atuação judicial em função executiva a segurança pública é um serviço estatal primário e essencial, que deve ser servido para toda população de maneira eficiente, atendendo assim tanto o interesse do cidadão, considerado enquanto indivíduo, quanto o interesse de preservar a paz social. Deve o Governo estabelecer uma política de segurança para os que se encontram sob sua tutela. O direito à segurança pública correlaciona os direitos à vida, à dignidade da pessoa humana e à plena liberdade. O antropocentrismo da Constituição Federal faz com que o direito à segurança pública, como uma extensão do direito à vida e à dignidade humana, sirva de critério para controle, através do processo de interpretação e aplicação do Direito pelo Poder Judiciário, da atuação administrativa – área tradicionalmente reservada à discricionariedade dos titulares de órgãos eletivos. De evidenciar que, na visão objetiva que encaramos os deveres de proteção, há desvinculação de titulares diretos de direitos para que haja a proteção e promoção do direito fundamental à segurança pública, cabendo ao Estado conceder aos seus súditos pelo menos o mínimo existencial, mas sem descurar que sempre deve buscar o resultado ótimo dos seus serviços. Na esteira do pensamento dos deveres de proteção, temos que cabe a todas as funções estatais promoverem e protegerem os direitos fundamentais, concretizando-os de maneira a tornar efetiva a Constituição. Assim, quando o Legislativo ou o Executivo não cumprem os papéis constitucionais a eles atribuídos, cabe ao Poder Judiciário, enquanto guardião da Constituição, fazer valer os ditames nela inscritos. Demonstramos que, de acordo com o que prescreve a “democracia constitucional”, o poder constituinte originário concedeu aos juízes o poder de representação da soberania popular para defesa dos princípios e regras constantes da Constituição. O estudo assevera que, na independência e imparcialidade dos juízes, buscamos a resposta para a verdadeira igualdade material e se o juiz não se afasta de sua função interpretativa, com base no que dita a Constituição, não há que se encarar o que atualmente se chama de “ativismo judicial” como algo pejorativo, mas enquanto dever constitucional expresso. Não pode, pois, a Justiça Constitucional substituir o legislador e o administrador nas suas funções típicas por mero capricho 160 Revista do CEJ - n. 5, p. 135-164- nov. 2015 Gleydson Lima ou superposição, devendo agir somente quando autorizada pela Constituição, balizada pelo princípio da reserva do possível e pelo princípio da proibição da proteção deficiente. Entendemos, entretanto, que a reserva do possível não pode servir ao administrador enquanto escudo ilegítimo para que este escolha, sem critério constitucional ou legal, onde empregará o dinheiro público, devendo assim balizar sua atividade pela dignidade da pessoa humana prestando, no mínimo, o essencial a uma vida digna. É o princípio da proibição da insuficiência que será o contraponto ao princípio da reserva do possível para mostrar ao Estado que não se pode descer aquém do mínimo, sob pena de inconstitucionalidade. Aliando o princípio mencionado ao tema segurança pública, entendemos que não pode o Estado jamais coibir o crime, fator humano e social, mas deve manter a criminalidade em níveis suportáveis, prestando o dever de preservar as liberdades, direitos e garantias, sob pena de atuação do Poder Judiciário para garantir a Constituição. Em análise última, colacionamos julgados da Suprema Corte brasileira em que houve exame mesmo perfunctório dos temas abordados durante o trabalho e demonstramos que, mesmo de maneira incipiente, o Supremo Tribunal Federal já utiliza as balizas constitucionais existentes para garantir a segurança pública à população, demonstrando até que pode haver ingerência na conveniência e na oportunidade, quando os demais poderes não cumprirem o mínimo social, gerando instabilidade social e insegurança. Através dos elementos trazidos, concluímos que, amparada no parâmetro da dignidade da pessoa humana e consubstanciada no mínimo social, pode e deve a Suprema Corte pautar sua atividade jurisdicional para efetivar o direito à segurança pública, sem substituir diretamente o administrador, mas indicando que este está prestando o serviço aquém do mínimo esperado pela Constituição. Revista do CEJ - n. 5, p. 135-164 - nov. 2015 161 O ativismo judicial do Supremo Tribunal Federal do Brasil nas questões envolvendo segurança pública. Possibilidade de atuação judicial em função executiva Referências ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. 2 ed. São Paulo: Malheiros, 2011. ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. Coimbra: Almedina, 1998. BARROSO. Luis Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas. 9 ed. São Paulo: Editora Renovar, 2009. BRITO, Miguel Nogueira de. A Constituição Constituinte. Ensaio sobre o Poder de Revisão da Constituição. Coimbra: Coimbra Editora, 2000. CANARIS, Claus-Wilheim. Tradução de Ingo Wolfgang Sarlet e Paulo Mota Pinto. Direitos fundamentais e direito privado. Coimbra: Almedina, 2003. DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Tradução de Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2011. FILOCRE, Lincoln D’Aquino. 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No ponto, a expressão “negócios jurídicos existenciais” colocase em modernidade do direito, quando suportes fáticos orientam novas relações jurídicas em matéria de presunção de filiação, diante de contratos gestacionais, ou quando se prioriza a ortotanásia (ROSKAM, 1950) em âmbito da autonomia privada, em sua natureza objetivista, como mera aceitação da morte. Em ambas as hipóteses, a essência existencial é o elemento determinante, de modo que, na tramitação do tema, procriação assistida e diretivas antecipadas de vontade podem ser reunidas sob o enfoque contratual. 182 Texto orientador da palestra proferida em 12.09.2014 no VI Congresso Paulista de Direito de Família e I Congresso de Direito de Família do Sudeste, promovidos pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família, secção São Paulo – IBDFAM-SP; em São Paulo (SP), no auditório da Universidade Paulista – UNIP. 183 Desembargador decano do Tribunal de Justiça de Pernambuco. Revista do CEJ - n. 5, p. 165-180 - nov. 2015 165 Negócios jurídicos existenciais. Os contratos gestacionais e as diretivas antecipadas de vontade Antes de mais, para uma análise acerca das relações jurídicas em sede de reprodução assistida, impende observar como haverão de situar-se tais relações, em esfera concomitante com as limitações éticas, e em confronto com um inegável direito à procriação, os denominados direitos reprodutivos. Mais precisamente, as técnicas de PMA devem ser havidas e tratadas, do ponto de vista jurídico, como um direito fundamental, nomeadamente para aqueles onde a reprodução com intervenção médica seja a única fórmula eficiente ao casal que não pode gerar um filho por meios naturais. Assim, o reclamo de um modelo de Direito Reprodutivo, como categoria jurídica de direitos de nova geração, conciliador entre ciência e bioética, está a indicar a necessidade de diretivas legais de inusitada relevância. Ou seja, de os sistemas jurídicos identificarem, de forma homogênea e indiscrepante, a dimensão do direito de reprodução assistida, nos seus limites adequados, em satisfação e proteção da dignidade dos projetos parentais. Aqui se colocam, de logo, as primeiras problematizações, para ingresso na primeira parte temática do que se pretende expor. A ciência tem apresentado ao biodireito uma multifacetada filiação octogenética, a demonstrar a existência possível de diversos contratos gestacionais, ao tempo em que, por essencial, implica o direito reprodutivo uma legitimidade de acesso aos recursos das novas técnicas de reprodução medicamente assistida. A busca do filho, por meios não naturais, encontra o caminho dos avanços da tecnologia, mediante referidas técnicas, que faz também encontrar “novas famílias” ou famílias exsurgentes. Tal sucede nos casos da mulher solteira, em produção 184 “Segundo dados do IBGE, a população brasileira vem crescendo na proporção de 2,3 filhos por mulher, o que representa um índice muito próximo da chamada ‘taxa de reposição’, que é de 2,1 filhos por mulher. Tendo em vista que nossa população já atingiu o limite do aceitável, a notícia seria reconfortante não fosse a constatação de que ainda há, no país, regiões muito pobres em que as mulheres têm um filho por ano e podem ultrapassar o total de vinte gestações até a menopausa. As chamadas ‘políticas de planejamento familiar’, em geral boicotadas por setores conservadores da sociedade, precisam ser ampliadas e adaptadas à realidade da emancipação feminina e dos direitos sexuais. Não resolve instituir programas partindo da premissa de que apenas a mulher casada irá procriar. Ao contrário, a mulher casada de hoje é, proporcionalmente, a que menos engravida involuntariamente. Por isso, o planejamento não deve ser encarado como familiar, mas como reprodutivo, abrangendo pessoas casadas ou solteiras”. (Luiza Nagib Eluf/2004). 166 Revista do CEJ - n. 5, p. 165-180 - nov. 2015 Jones Figueirêdo Alves independente, que obtém o sêmen de doador desconhecido (famílias monoparentais), de casais homoafetivos, obtendo gametas em doação, traduzindo-se em famílias de dois pais ou de duas mães, e nas famílias por design, nova entidade familiar com uma co-parentalidade singularizada apenas pelas relações do filho com os seus co-pais, estes sem a moldura clássica do casal da família, como adiante se tratará. O princípio da maternidade sempre certa (“mater sempre certa est”), no fato do nascimento do filho por quem o gestou, traduzido no n. 1 do artigo 1.796 do Código Civil português, coloca-se relativizado, a partir da maternidade substitutiva, maternidade por outrem ou maternidade sub-rogada, com a cessão de útero. De fato, as técnicas de reprodução estão a permitir a construção de uma criança com a contribuição de seis pessoas diferentes, quando, a esse respeito, Stela de Almeida Neves Barbas aponta uma tridimensionalidade procriativa. Essa apresentada nas dimensões orgânica (pai/mãe genética - dadores de esperma/óvulo), física (mãe gestante/pai, ou seja, a mãe portadora e seu companheiro) e simbólica (pai/mãe adotivos).185 Enquanto isso, o clássico Guilherme Oliveira (Coimbra, 1992) apenas afirmava: “Mãe só há duas”: (i) a mulher que gerou o embrião formado a partir de ovócito dela mesma (maternidade gestacional e genética); (ii) a mulher que gera em seu útero embrião que tem origem em ovócito de outra mulher. Mas se dirá que mãe só há três, sendo a terceira a do projeto parental, que recepciona, socioafetiva, o filho encomendado com o sêmen do marido. Ou também se dirá: mãe só há quatro, sendo esta última a adotiva, em circunstância de quando a mãe genética, doadora do óvulo, altruisticamente faz a doação para a terceira, a que destinou a gestação de encomenda pela segunda, e essa terceira, então separada do marido, não aceita mais o filho, colocando-o, afinal, para adoção. 185 BARBAS, Stela Marcos de Almeida Neves et al. Estabelecimento da maternidade: A Gestação por outrem à luz do Direito Civil português. In: Bioética e direitos da pessoa humana; Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2012, pp. 271-282. Revista do CEJ - n. 5, p. 165-180 - nov. 2015 167 Negócios jurídicos existenciais. Os contratos gestacionais e as diretivas antecipadas de vontade Pois bem. A primeira problematização, a suscitar intenso debate quanto ao direito à procriação, como “direito ao filho”, diz respeito ao elemento temporal. Embora parte da doutrina sustente que o direito reprodutivo deva ser exercido a todo momento e seja em que circunstância for” (Ana Paula Guimarães, Coimbra/PT, 1999), certo é que este é limitado, por alguns países, às chamadas “famílias biparentais” (casais casados ou que vivam em condições análogas às dos cônjuges), então excluídas as pessoas separadas ou solteiras; e também a gravidez, com reprodução assistida, apresenta-se apenas admitida às mulheres de até cinquenta anos, devido aos riscos à saúde da mãe geratriz e ao bebê, como agora sucede com a Resolução n. 2.013, do CFM, de 16.04.2013 (I, n. 06). Mas não é só. Pais de idade avançada, sem filhos, devem utilizar as novas tecnologias de reprodução assistida, quando os filhos daí advindos, por certo, serão órfãos precoces e eles, os pais, não poderão projetar o futuro dos mesmos? As paternidades tardias, notadamente as maternidades, constituem projetos parentais egoísticos, em ordem de os filhos, surgidos de uma medicina de ponta, inevitavelmente, tornarem-se, quando jovens, cuidadores dos velhos pais? Isto quando estes, designadamente, é que deveriam prestar aos filhos os maiores cuidados, na idade em que os jovens mais precisam do apoio dos pais? Em ser assim, a paternidade deve se submeter a limites temporais de idade dos pais, ou mais precisamente, os direitos reprodutivos devem observar exercício em tempo adequado, a evitar situações extravagantes na relação parental? A justiça italiana disse que sim, em decisão com tais fundamentos, que repercutiu no direito biomédico e suscitou novas discussões de bioética. Cinco juízes da corte de Turim afirmaram (setembro/2011), em relatório de quinze páginas, no rumoroso “Caso De Ambrosis”, que os pais Gabriella (57 anos) e Luigi De Ambrosis (70 anos), casados há vinte e um (21) anos e sem filhos nesse período, não poderiam ter mais a guarda da filha nascida de reprodução assistida, em razão da idade avançada de ambos e, de consequência, de lhes faltar condições de criá-la. 168 Revista do CEJ - n. 5, p. 165-180 - nov. 2015 Jones Figueirêdo Alves Viola, agora com um ano e sete meses, foi arrebatada dos pais e colocada em adoção. A decisão judicial unânime acusou os pais de “egoístas e nascisistas”, por terem a criança em idade avançada, expressando que “essa criança é fruto de uma aplicação distorcida das enormes possibilidades oferecidas pelas novas tecnologias”. O processo começou quando vizinhos indicaram que a criança estaria negligenciada pelos pais, com prejuízo ao seu bem-estar, tendo os exames psicológicopsiquiátricos indicado que a mãe não estabelecera “vínculos emocionais com a filha”. Impõe-se dizer que as técnicas de RMA (reprodução medicamente assistida) foram realizadas fora da Itália, onde não se permite a doação de óvulos, como ocorreu no “Caso De Ambrosis” - e mais recentemente (09/2011), em outros dois casos de casais idosos (pai-mãe de 65/57 anos e 70/58 anos), que geraram filhos gêmeos. Pois bem. A principal questão trazida pelo projeto parental controvertido na decisão italiana é a de saber se a idade dos pais é determinante à afirmação adequada da paternidade pretendida. De saída, cuidamos que não. Aliás, os casos de gravidez tardia, com técnicas de RMA, têm sido muito frequentes, figurando a espanhola Maria del Carmen Lara, em 2006, quando teve gêmeos, a romena Adriana Iliescu, e Elizabeth Adeney, do Condado de Suffolk (DW), todas aos 66 anos, como as mães mais velhas. E por gravidez natural, a britânica Dawn Brooke, em 1997, aos 59 anos. 1 Contratos de gestação Assentadas essas primeiras premissas, cuidemos dos contratos gestacionais. O jurista português Fernando Araújo refere ao “contrato de gestação”, submetendo-o a dois modelos, um envolvendo os próprios pais genéticos; o outro, como “gestação de substituição”, onde a mãehospedeira não é a mãe genética. Nesse sentido, considera: Na sua forma tecnicamente mais simples, corresponde à inseminação artificial de uma “mãe hospedeira” por um Revista do CEJ - n. 5, p. 165-180 - nov. 2015 169 Negócios jurídicos existenciais. Os contratos gestacionais e as diretivas antecipadas de vontade dador conhecido, para que, por efeito de um contrato entre ambos, o “contrato de gestação”, a criança gerada seja entregue ao dador, que é o pai biológico. Numa forma mais complexa, envolve a fertilização in vitro de ovócitos de uma mãe biológica e a posterior implantação de alguns dos embriões resultantes na “mãe portadora”, que neste caso deixa de ser a mãe genética, para que a criança gerada seja entregue aos progenitores biológicos 186 Como se observa, o autor cogita do “contrato de gestação”, sem implicar, todavia, no seu objeto, “gestação de substituição”, isto porque, na primeira forma enunciada, a mãe portadora confunde-se com a mãe genética, simplesmente gestando filho para entrega futura ao pai também genético, sem que, entre ambos, exista relação de ordem familiar, conjugal, convivencial ou afetiva, senão e tão somente uma relação jurídico-contratual. A hipótese tem lugar no conhecido caso “Nancy B”, mãe portadora e genética, que pretendeu anular o contrato “mediante o qual se obrigava a entregar a criança gerada ao pai biológico e a consentir na adoção pela mulher do pai biológico”. A Corte de Apelações da Califórnia, ao confirmar (julho, 1991) a decisão do tribunal de primeira instância, ponderou pela prioridade dos interesses da criança, que, na hipótese, admitiu-os protegidos pela ligação afetiva revelada ao pai e à sua mulher, não cuidando de avaliar os fundamentos éticos e psicológicos da mãe genética para incumprir o contrato. De fato, as diversas modalidades da maternidade de substituição têm provocado controvérsias maiores.187 186 ARAÚJO, Fernando. A procriação assistida e o problema da santidade da vida. Coimbra: Livraria Almedina, 1999, p. 26-27. 187 Proclama o n. 3. do artigo 8º da LPMA portuguesa (Lei n. 32/2006, de 26 de julho), que “a mulher que suportar uma gravidez de substituição de outrem, é havida, para todos os efeitos legais, como a mãe da criança que vier a nascer”. Isto implica dizer que toda a mãe portadora, seja ou não com seu material genético, será mãe nos exatos termos da lei portuguesa, embora admita Stela Barbas que tal imposição legal signifique, em ultima palavra, o estabelecimento da filiação como uma sanção civil. Lado outro, admite-se a paternidade como ficção jurídica, nos casos de inseminação artificial heteróloga, onde o filho é havido como do marido da mulher inseminada, a tanto prestando o seu consentimento (art. 1.826, CCpt. e art. 1.597, inc. V, CCbr). E ao fim e ao cabo de tal presunção de filiação, exclui-se a paternidade do dador do sêmen, a saber do art. 21 da LPMA. Entretanto, embora a maternidade de substituição represente, às expressas, uma variante eloquente da inseminação artificial heteróloga, não se exclui a maternidade da cedente do útero, que em maioria dos casos, não oferece também seu material genético. A nosso sentir, por identidade de razões, a lei incorpora uma contradição substancial, ao afastar a paternidade do dador do sêmen, o pai genético, e não adotar a mesma diretiva, quando se trate da mãe substitutiva, biológica ou biológica e genética. Muito ao revés, cuida de constituir um novo vínculo de filiação, o da 170 Revista do CEJ - n. 5, p. 165-180 - nov. 2015 Jones Figueirêdo Alves O modelo da esposa infértil, que admite o sêmen do marido artificialmente inseminado na mãe substituta, doadora do óvulo, alude o Gênesis (30,3) “onde Sara, mulher de Abraão, pede a este que tenha um filho com Hagar, sua criada, para que através dela também se tornasse mãe”. Aqui se tem o tipo de gestação de substituição como contrato de maternidade sub-rogada, quando além de ser gestadora do embrião, a mulher também é doadora do óvulo, ou seja, do material genético. Em bom rigor, haverá de se reconhecer que a doadora do óvulo, tendo gestado também o embrião, perfaz a idéia de quem gera um filho para destiná-lo à adoção, em última análise. Também ocorrem modelos mais dilemáticos, onde (i) o embrião resultante da fertilização in vitro dos gametas do casal é transferido para o útero da mãe substituta, resultando maternidade de substituição biológica pela mãe hospedeira, verificando-se em relação ao filho gestado a existência de pais estritamente genéticos e (ii) o embrião fertilizado in vitro, tendo ambos os gametas doados, ocorrendo a mãe substituta gestado filho para pais sociais, ou pais socioafetivos, em programação parental daqueles. Em ambos os casos, a substituição será apenas gestacional. Exemplo outro mais se acentua quando se trata de gestações de substituição, em contratos de barriga de aluguel destinados à família constituída em relação homoafetiva, quando ambos os parceiros serão os pais da criança, sem qualquer maternidade definida senão aquela da mulher geratriz, unicamente hospedeira. Nessa hipótese, a mulher cede seu útero para gerar um filho, após inseminação com o embrião, paternidade por parte do marido da mãe portadora, que anuiu a essa gestação por outrem, e como tal assume o equivalente da paternidade consagrada ao marido que assentiu a inseminação artificial heteróloga, ficando nessas hipóteses de assentimentos ambos havidos como pai. Essa perplexidade ocorre, a desnaturar a idéia do projeto parental, em direito ao filho, e a inevitável realidade da maternidade substitutiva. Ora bem. Diante do problema posto, Stela Barbas indica, de lege ferenda, uma regulação à gestação por outrem, em princípio de respeito à mãe genética, quando o estabelecimento da maternidade deverá, ser fixado a quem, recorrendo à mãe portadora, ofereceu os ovócitos; tal não sucedendo, porém, quando estes forem da própria mãe substitutiva ou de terceira mulher. Como bem colocado, a seu entender, razões suportam a solução indicada ao sistema jurídico, em primazia da origem genética da maternidade. Para além disso, cuide-se, refletir com maior largueza, em casos de monoparentalidade programada, onde proceda-se a maternidade de substituição em reprodução colaborativa a uma pessoa solteira, seja homem ou mulher. Revista do CEJ - n. 5, p. 165-180 - nov. 2015 171 Negócios jurídicos existenciais. Os contratos gestacionais e as diretivas antecipadas de vontade gerado por um deles, em fertilização in vitro, com os óvulos doados por terceira mulher. Situações outras não estão inteiramente reguladas, ou não disciplinadas pelo legislador, no amplo espectro que envolve acordos de maternidade de substituição, a exemplo de ocorrências atípicas, já registradas em casuística ou em doutrina, que cogitam de: (i) recusa da mãe substitutiva, mais das vezes unicamente hospedeira (sem doação de seu material genético) à entrega da criança gestada; (ii) recusa dos pais comitentes a recepcionar a criança, nascida com alguma deficiência; (iii) situação de morte da mãe substitutiva, em causa do parto, no trato da responsabilidade contratual ínsita da relação subjacente. (iv) situação de separação dos pais encomendantes, ou de morte de um deles ou de ambos. Em suma, nada obstante a presunção básica de o parto indicar a mãe, ou seja, a parturiente ser, em regra, a mãe biológica e geratriz, como tornam assentes alguns ordenamentos jurídicos dominantes, a exemplo do direito português, o pressuposto é desafiado por relevâncias de uma nova realidade cientifíca, a exigir, daí, cuidadosa análise jurídica. 2 Contratos de gestação em espécie Posta essa visão, cuide-se, agora, da tipologia dos contratos gestacionais, onde o primeiro deles é o mais convencional, o da cessão temporária de útero para os fins de gestação por outrem. A relação intersubjetiva contratual envolve, na maioria, o casal interessado, titulares do projeto parental, e uma mulher disponível e prestativa que vai gerar a criança. Em um dos polos da relação, o dos contratantes, o casal ou apenas um dos pares (homem e mulher), que tem interesse no resultado da gravidez substituta, para obter um filho, e no outro polo, a mulher, mãe geratriz, que vai gerar um filho para outrem. Como antes referido, ela pode não ser apenas geratriz, mas fornecedora do óvulo. Nesse caso, a maternidade de substituição representa, às expressas, uma variante eloquente da inseminação artificial 172 Revista do CEJ - n. 5, p. 165-180 - nov. 2015 Jones Figueirêdo Alves heteróloga, importando considerar que a cedente do útero, mesmo com seu material genético, faz a cessão para um projeto parental de terceiros. Mais das vezes, a gestação de substituição, atendido que as cedentes devem pertencer à família de um dos parceiros, em parentesco consanguíneo até o quarto grau, respeitada também a idade limite de até cinquenta anos, tem sido exercitada por mulheres avós que gestam os seus netos. Essa circunstância envolve uma notável discussão da possibilidade de a filiação comportar ou não compartilhamento entre mais de um pai ou mais de uma mãe. A maternidade substitutiva avoenga, que teve sua ocorrência pioneira, em 1987, na África do Sul, e no Brasil, em Nova Lima, MG, em 2008, tem sugerido que essa relação constitua uma maternidade dúplice, inegável que a avó se torna, pelo vínculo nutriente, na prática, uma eficiente genitora socioafetiva do neto gestado. Situação às avessas surge com o famoso caso Bouvin, quando Melanie Boivin (35) teve seus óvulos congelados para sua filha Flavie (7) usá-los no futuro. Ela sofre da condição genética chamada Síndrome de Turner e, na hipótese, terá um filho que virá a ser filho genético da própria avó. Pois bem. Não há negar, nesse cenário, o surgimento de figurações múltiplas de filiação. Tem-se, com efeito, (i) a maternidade binária ou dual, nas hipóteses de mãe de gestação (biológica) e mãe genética (doadora de óvulo), com a diretiva de presunção jurídica de filiação, a tanto que a Áustria e outros países proíbem doação de óvulos. Essa maternidade dúplice tem sido corrente, nos casos de casais homoafetivos, a tanto se admitindo conferir maternidade socioafetiva para a companheira da mãe biológica em parceria. A maternidade trinária ou tríplice tem seu registro mais eloquente, no caso inglês das irmãs Alex, Charlote e Helen. Alex (1), mulher estéril, recebeu a doação de óvulo da irmã Charlotte (2), enquanto outra irmã, Helen (3), cedeu o útero, tendo sido o óvulo fecundado com o sêmen do marido da primeira, apresentando-se definido o projeto parental para eles. Bem de ver que, nessa hipótese, foi estabelecida uma filiação trinária, por encomenda de filho, configurando, afinal, uma Revista do CEJ - n. 5, p. 165-180 - nov. 2015 173 Negócios jurídicos existenciais. Os contratos gestacionais e as diretivas antecipadas de vontade maternidade socioafetiva programada, a que planejou Alex, com seu marido, este pai genético ao fornecer o material seminal. Fossem, em conjunto, pais encomendantes, ter-se-ia a hipótese de uma verdadeira adoção programada, com intervenção de pais genéticos e de uma mãe biológica. Os projetos parentais estão a edificar novas realidades contratuais gestacionais, uma delas, antes referida de passagem, é a das famílias por design. Nela, o projeto parental do filho desejado ganha relevo não apenas na esfera da afetividade, mas no da co-parentalidade, quando ambos os pais idealizam o filho, como sujeito jurídico do estado de filiação que os unifica como pais, independente das relações subjacentes que os aproximam ou não enquanto parceiros do mesmo projeto. No caso, a questão agora assume proporções inusitadas, quando redes sociais e sites americanos na Internet estão aproximando pessoas apenas para a procriação pretendida; pessoas desconhecidas e não propriamente interessadas em um relacionamento amoroso entre si e que as coloquem, noutro passo, como pais consequentes da união afetiva constituída. Aqueles que em determinada faixa etária não tiveram ainda filhos, por razões várias (exemplo: o da maior prioridade dada à profissão), e que não desistiram do projeto parental, estão agora na corrida cibernética da procura do pai ou da mãe do filho, unicamente pelo filho, servindo a Web de bússola de encontro, nos fins da procriação, sem casamento, sem união estável ou qualquer outro tipo de envolvimento. Uma nova entidade familiar aparece, a da co-parentalidade, formada por um filho e os co-pais. Esses pais identificados por aproximação formam uma família apenas destinada ao filho internético, plasmado da rede social e que não conhecerá uma família convencional, senão apenas um pai e uma mãe, como pais concebidos por seus interesses individuais próprios, os de terem um filho com a assistência genética do outro genitor, nada mais havendo entre eles. É a família por parceria dos pais, tipicamente formada somente para a co-parentalidade e não para uma relação convivencial-afetiva. 174 Revista do CEJ - n. 5, p. 165-180 - nov. 2015 Jones Figueirêdo Alves O principal site é o Family by Design - www.familybydesign. com - fundado por Darren Speedale, que promove arranjos familiares com intentos procriativos, aproximando pessoas para atender os seus objetivos parentais. A diferença é que não se tratarão de doadores anônimos para uma reprodução assistida, mediante inseminações artificiais ou concepções de laboratório. Bem é certo que poderão preferir essas técnicas, sem necessariamente o uso do método natural. Todavia, serão sempre pessoas identificadas, parceiros escolhidos, inclusive, por determinados perfis. A gestação programada virtualmente, mediante decisão conjunta de terem um filho juntos, envolve os pares na Internet, mesmo que desconhecidos, a partir de questionários rigorosamente respondidos, onde são elencados dados pessoais a partir de preferências, gostos e demais informações, que poderão ser de interesse comum. A funcionalidade da pesquisa, para o fim de escolha do casal, situa-se, com mais precisão, nas definições acerca da guarda e educação do filho projetado, quando um e outro já evidenciam como gostariam de cuidar do filho, como dividir as tarefas inerentes ao exercício do poder familiar de cada um, e como poderão trabalhar uma cooperação deles pais, entre si, para proteger os interesses maiores do filho. Essas tratativas prévias servem de contratualidade preliminar, valendo admitir que contratos dessa espécie regularão novos arranjos familiares para uma parceria do inusitado projeto parental. Em outra vertente, evoca-se, a exemplo, o projeto parental frustrado, no célebre “Caso Jaycee”, órfã de ninguém, quando seu nascimento foi contratado pelo casal Luanne-John Biuzzanca, que se separou antes de a criança nascer. Um drama que o direito não resolve, à míngua de uma disciplina jurídica que albergue toda a dignidade da vida. Aliás, expressou a ministra Carmen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal brasileiro, a dignidade da vida fez-se direito. É diante de um tempo de tecnicalidades avançadas de reprodução, onde avós gestam seus próprios netos, que se teme entender que o emprego de um tecido ovariano fetal possa dizer e significar também que a mãe genética de alguém seja um feto. Revista do CEJ - n. 5, p. 165-180 - nov. 2015 175 Negócios jurídicos existenciais. Os contratos gestacionais e as diretivas antecipadas de vontade Fiquemos por enquanto, nas implicações apontadas em situações bem postas por Maria Helena Diniz, quanto à filiação octogenética. São sete situações paradigmáticas, que podem ser elencadas: (i) fecundação de um óvulo da mulher com o sêmen do marido, transferindo-se o embrião para o útero de outra mulher; (ii) fertilização in vitro com sêmen e óvulo de estranhos, por encomenda de um casal estéril, implantando-se o embrião no útero da mulher ou no de outra; (iii) fecundação, com sêmen do marido, de um óvulo não pertencente à mulher, mas implantado no seu útero; (iv) fertilização, com esperma de terceiro, de um óvulo não pertencente à mulher, porém com imissão do embrião no útero dela; (v) fecundação na proveta de óvulo da mulher com material fertilizante do marido, colocando-se o embrião no útero dela própria; (vi) fertilização, com esperma de terceiro, de óvulo da mulher, implantando-se em útero de outra mulher; (vii) fecundação in vitro de óvulo da mulher com sêmen do marido, congelando-se o embrião, para que, depois do falecimento daquela, seja inserido no útero de outra, ou para que, após a morte do marido, seja implantado no útero da mulher ou no de outra. Esse desenho no trato de filiações não convencionais, que configuram, seguramente, novos conceitos de maternidade e de paternidade, evidencia a importância do tema. 3 Testamento vital Sobre o tema do testamento vital, diga-se, antes de mais, que algo pode ser certo, na incerteza de quando a morte chega. No plano material, ela não terá significado maior, porque “enquanto somos, ela não terá chegado e ao chegar não somos mais”. No entanto, a sua proximidade quando decadente o corpo por doenças incuráveis, bastante indicativa nos estágios terminais de vida, tem provocado a consciência de necessidade de uma morte digna. Nesse novo plano, o da morte digna, enquanto o legislador sequer conceitua a morte, senão admitindo, por óbvio, que deixa o ser humano de existir com ela (artigo 6º do Código Civil), pelo evento que 176 Revista do CEJ - n. 5, p. 165-180 - nov. 2015 Jones Figueirêdo Alves somente a ciência médica possa defini-lo; exulta, na atualidade, a exata compreensão tanatológica de que a pessoa deve vivenciar, com maior dignidade, o seu próprio processo de morte. Em outras palavras, zelar pela qualidade da vida cessante, onde a morte tenha seu tempo correto, certo e indeclinável, sem as abreviações de vida favorecidas pela eutanásia ou sem o adiamento impositivo da distanásia, por cuidados paliativos, afigura-se como um novo direito personalíssimo. Mais precisamente, quando o período vital se achar em manifesto esgotamento, impossível a cura, sem reversões do quadro clínico terminal, a vontade prévia do paciente, a respeito, ou na sua impossibilidade, do seu representante legal, coloca-se fundamental ao desfecho, por diretivas antecipadas e instrumentalizadas pelo denominado testamento vital. Não apenas nesse contexto de terminalidades. Com maior extensão, a declaração antecipada de vontade, e não a vontade propriamente dita, se constitui em elemento essencial desse especial negócio jurídico testamentário, ao nível da autonomia privada do paciente em dispor da tomada de suas decisões sobre os limites da atuação médica em face de si mesmo. Cuida-se do seu direito de decidir, por si ou por mandatário, sobre os procedimentos médicos, mormente se submetidos a risco de morte ou em estado vegetativo, de longa duração, este diverso do estágio terminal. Ou seja, as declarações prévias servirão para configurar a autodeterminação do paciente, enquanto no pleno uso de sua capacidade, em gestão adequada da dor e do sofrimento que possam permear uma situação futura de doença ou de riscos por tratamentos médicos ou intervenção cirúrgica, como, aliás, refere o artigo 15 do Código Civil. Pois bem. Certo que a validade do negócio jurídico consiste, por fundamento legal, na autonomia da vontade do declarante, sob a égide de sua dignidade como pessoa, é possível verificar que, malgrado ainda não introduzidos em nosso sistema jurídico, o testamento vital tem amparo na Resolução n. 1.995/2012 do Conselho Federal de Medicina e a ortotanásia, no Código de Ética Médica. Assinala-se que, particularmente, no Estado de São Paulo, a Lei n. 10.241/1999 (Lei Mário Covas) permite ao usuário dos serviços públicos Revista do CEJ - n. 5, p. 165-180 - nov. 2015 177 Negócios jurídicos existenciais. Os contratos gestacionais e as diretivas antecipadas de vontade de saúde “consentir ou recusar de forma livre, voluntária e esclarecida, com adequada informação, procedimentos diagnósticos ou terapêuticos a serem nele realizados” (art. 2º, VII), ou, ainda, a recusa de tratamentos dolorosos ou extraordinários para o prolongamento da vida (art. 2º, VIII). Não há confundir a ortotanásia ali autorizada com a eutanásia passiva, revestida de um non facere, quando tratamentos admissíveis ao paciente são suspensos, com a antecipação gradual do evento morte (Caso Terry Schiavo, 1990/2005). No mais, o direito do paciente à ortotanásia já foi reconhecido em sede de jurisprudência, em decisão pioneira do TJRS, na Apelação 70054988266, quando um ancião obteve decisão judicial “para negar-se a ver sua perna amputada como meio hábil ao tratamento para livrá-lo da morte”. Nesse conduto, o direito à vida (art. 5º, caput, t CF) há de ser combinado com o princípio da dignidade da pessoa (art. 2º, III, CF), significando dizer vida com dignidade ou razoável qualidade, não se confundindo, ademais, o direito à vida com o dever à vida. Inegavelmente, a incidência da ortotanásia, por via autorizada, reclama uma declaração válida e eficaz, por agente capaz, pelo que o paciente incapaz não mais terá condições de manifestar a sua vontade. De efeito, a exteriorização antecipada dessa vontade, em tempo hábil, a ser cumprida, segundo as diretivas por ela estabelecidas, resultou, pela primeira vez, prevista na “Lei da Morte Natural” (“Natural Death Act”), na Califórnia, EUA, instituindo-se, para esse fim, o testamento vital. A seu turno, as Resoluções editadas pelo CFM, números 1.805/2006 e 1.995/2012, em respectivo, efetiva a prevalência da vontade declarada do paciente, importando a suspensão de tratamentos paliativos de prolongamento inútil da vida (art. 1º, Res. 1805/06) e, afinal, regulamenta as diretivas antecipadas de vontade, apenas suscetíveis de incumprimento quando em desacordo com os preceitos ditados pelo Código de Ética Médica (art. 2º, § 2º; Res. 1.995/12). Em idêntica latitude, a Lei portuguesa n. 25, de 16.07.2012, Lei do Testamento Vital, regulamenta as disposições antecipadas de vontade, com prazo de validade para a declaração, renovável mediante confirmação, e estabelece três exceções para seu descumprimento, dentre elas o risco iminente de morte e a escusa de consciência do médico. 178 Revista do CEJ - n. 5, p. 165-180 - nov. 2015 Jones Figueirêdo Alves Ainda que no prazo de validade, a terceira exceção guarda conformidade com a assertiva de ser possível a desatualização da vontade do paciente, decorrente do avanço científico das terapias disponíveis. A doutrina sustenta que “a ineficácia do testamento por caducidade aumenta a insegurança do declarante, deixando-o vulnerável quanto ao momento da necessidade de sua utilização” (CARLA NERY, 2013). Todavia, anota-se, com relevância, que o testamento vital deva ser desconsiderado, ante ulterior evolução dos meios terapêuticos, no enfrentamento de doenças havidas por irreversíveis, certo que então alterados os desígnios existenciais da patologia então invencível. No ponto, aqui se defende a relativização do Enunciado n. 528 das “Jornadas de Direito Civil”, ao dispor válida a declaração de vontade expressa em documento autêntico, também chamado “testamento vital”, em que a pessoa estabelece disposições sobre o tipo de tratamento de saúde, ou não tratamento, que deseja no caso de se encontrar sem condições de manifestar a sua vontade. Em hipóteses que tais, uma situação existencial superveniente deve merecer devida pertinência de excepcionalidade, a tanto que se apresenta razoavelmente adequada uma previsão de prazo do testamento. Em outro giro, coloca-se em discussão situação determinante de não validade da declaração de vontade do paciente. É que, “no âmbito do direito médico, a autonomia do paciente tem sido designada como direito ao consentimento informado, por ser este, segundo MARTINEZ (2005), o único instrumento suscetível de garantir o pleno respeito à autonomia da vontade do enfermo”. Em corolário lógico-jurídico, “o consentimento informado é o fundamento da autodeterminação e o instrumento que torna legítima a recusa de tratamento” (RODOTÁ, 2007), assim entendendose, por definitivo, que “para análise das diretivas antecipadas, é de suma importância as noções acerca do consentimento informado”. Em outras palavras, na relação contratual médico-paciente, o paciente, para assumir sua autonomia de vontade, como sujeito ativo da Revista do CEJ - n. 5, p. 165-180 - nov. 2015 179 Negócios jurídicos existenciais. Os contratos gestacionais e as diretivas antecipadas de vontade decisão, deverá ser inteiramente ciente de sua situação, com informações adequadas para as diretivas antecipadas que venha a constituir em testamento. O direito à autodeterminação do paciente foi consagrado no célebre Case Nancy Cruzan, com a decisão da Suprema Corte americana, em novembro de 1990, a provocar, inclusive, edição de lei federal, positivando o direito de preparo pelo paciente de uma diretiva antecipada. Como se observa, a atuação médica haverá, por certo, de se coadunar, sempre com dignidade do paciente, significando, nesse alcance, que as diretivas antecipadas de vontade devem ser encaradas não apenas como extensão das dinâmicas do consentimento informadas. Para além disso, implica que a ortotanásia é o significado de uma prática terapêutica, sempre que o testamento assim estabeleça. Diretiva permanente é a de a dignidade do paciente dever ser sempre saudável, como eficientes deverão ser os resultados da reprodução assistida. De tal ordem, sabe-se, de há muito, que o homem se tornou o primeiro produto da evolução capaz de dominar a própria evolução. 180 Revista do CEJ - n. 5, p. 165-180 - nov. 2015 Responsabilidade civil do provedor de conteúdo por lesão a direito da personalidade na Internet188 Rafael Cavalcanti Lemos189 Miranda (1981, p. 354) critica os países de língua e cultura latinas (ou – melhor – “de língua não alemã”) pela resistência à criação e emprego de termos novos a (1) novos fatos ou (2) relações recém-descobertas em fatos velhos. O encontro entre o mundo jurídico e o (mundo) da informática revela-se altamente problemático por falta de cultura jurídica dos técnicos e (de cultura) técnica dos juristas (PAESANI, 1999, p. 14). A Internet em pouco tempo saiu do ambiente acadêmico para se tornar um espaço em que se podem realizar quase todas as atividades do cotidiano (REINALDO FILHO, 2000, p. 105-106). O termo tradicional português “provedor” adquiriu com ela (Internet) vários significados. Como explica o ministro Luís Felipe Salomão em seu voto no REsp 997.993/MG (4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, julgado em 21 de junho de 2012, DJe de 6 de agosto de 2012), os provedores backbone – “espinha dorsal” – configuram as estruturas físicas primárias pelas quais transitam a quase totalidade dos dados transmitidos pela internet. No caso brasileiro, a Embratel realiza os serviços de provedor backbone. Os provedores de conteúdo formam a intermediação entre o editor da informação de um site [também dito “provedor de informação” – SANTOS, 2011, p. 80] e o internauta que a acessa. Os provedores de acesso são o meio pelo qual o usuário se conecta à rede, mediante a aquisição de um “endereço IP”, funcionando como um intermediário entre o equipamento 188 Texto escrito anteriormente à entrada em vigor (em 23 de junho de 2014) da Lei n. 12.965, de 23 de abril de 2014, a qual, de todo modo – conquanto “inaplicável [...] a fatos pretéritos” –, ao “prev[er], em seu art. 15, a obrigação de manter ‘registros de acesso a aplicações de internet’, pelo prazo de seis meses”, “só reforça o entendimento” “consolidado no sentido de que os provedores de hospedagem [rectius: (provedores) de conteúdo ou, em termos da lei (12.965/2014) mesma, (provedores) ‘de aplicações de internet’]’ [...], embora dispensados de fiscalizar o conteúdo das postagens realizadas pelos usuários, têm a obrigação de identificar o autor de alguma ofensa, por meio do IP do usuário” (cf. voto do relator, Min. Paulo de Tarso Sanseverino, no AgRg no REsp 1384340/DF, 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, unânime, j. 5.5.2015, DJe 12.5.2015). 189 Juiz de direito do Tribunal de Justiça de Pernambuco, especialista em Direito Processual Civil pela Universidade Federal de Pernambuco e mestre em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Revista do CEJ - n. 5, p. 181-206 - nov. 2015 181 Responsabilidade civil do provedor de conteúdo por lesão a direito da personalidade na Internet do usuário e a internet, tal como o serviço de telefonia, sendo responsável pela qualidade da conexão, disponibilidade, velocidade e segurança. Os provedores de hospedagem, por sua vez, dão suporte ou alojamento às páginas de terceiros, vale dizer, oferecem a interessados espaço virtual próprio para a alocação de um site. Como regra, os servidores de hospedagem não interferem no conteúdo do site, mas somente o proprietário deste. E, finalmente, o provedor de correio eletrônico é aquele vocacionado ao fornecimento de uma caixa postal virtual, mediante a qual se trocam mensagens e na qual elas podem ser armazenadas. Como já explicava há mais de uma década o professor da universidade Harvard Lawrence Lessig (1999, p. 222), quando era maior a crença na impossibilidade de controle sobre a Internet (LESSIG, 2006, p. IX), a qual seria um campo liberto do Estado (LESSIG, 2006, p. 2), às vezes uma certa hesitação antes de resolver questões de ordem constitucional no ciberespaço definitivamente, ou com firmeza, ou com qualquer pretensão de permanência, é totalmente apropriada, mas, noutros casos, magistrados, especialmente os de instâncias inferiores, devem ser mais enérgicos (LESSIG, 1999, p. 222). (Magistrados) de instâncias inferiores sim, porque há muitos deles e vários são extraordinariamente talentosos e criativos (LESSIG, 1999, p. 222). Suas vozes ensinariam algo, mesmo provisórias ou de alcance limitado suas decisões (LESSIG, 1999, p. 222). Nos casos de aplicação duma norma tradicional (por força de interpretação tradicional conferida à lei) a situações fáticas novas (simple translation), quando inexistem ambiguidades latentes e a tradição parece falar claramente, os magistrados deveriam promover com firmeza argumentos que visassem preservar, num novo contexto, os valores originais de liberdade (LESSIG, 1999, p. 222). Nesses casos, há um espaço relevante para o ativismo, e os magistrados devem identificar os valores de determinada cultura jurídica e defendê-los, não necessariamente porque esses valores estejam certos, mas porque, se devem ser ignorados, devese fazê-lo (ignorar esses valores) só porque foram rejeitados (não por um juízo, mas) pelo povo (LESSIG, 1999, p. 222). Porém, nos casos em que a aplicação duma norma tradicional a situações fáticas novas não seja tão simples (where translation is not so simple), diz Lessig (1999, p. 223), os magistrados, especialmente os de instâncias inferiores, têm um papel diferente. Nesses casos, os magistrados (especialmente os de instâncias 182 Revista do CEJ - n. 5, p. 181-206 - nov. 2015 Rafael Cavalcanti Lemos inferiores, insiste) deveriam resistir a essa aplicação (duma norma tradicional às novas situações) – “should kvetch190” (LESSIG, 1999, p. 223). Eles deveriam falar sobre as questões que essas mudanças suscitam e (deveriam) identificar os valores concorrentes em jogo (LESSIG, 1999, p. 223). Mesmo se a decisão a adotar em determinado caso é deferente ou passiva, deve sê-lo (deferente ou passiva) sob protesto (LESSIG, 1999, p. 223). A prudência pode ser adequada a esses casos, mas, para justificar sua (dos magistrados) passividade e compensar por permitirem que as pretensões fracassem, os magistrados devem ao menos suscitar aos olhos do mundo jurídico o conflito que aqueles (casos) trouxeram à tona (LESSIG, 1999, p. 223). Casos difíceis não precisam resultar em mau direito, mas também não deveriam ser tratados como se fossem fáceis (LESSIG, 1999, p. 223). Esta (tratar como fáceis casos difíceis) é a resposta mais simples ao problema da ambiguidade latente, mas é incompleta (LESSIG, 1999, p. 223). A ambiguidade latente nos força a confrontar questões de valor constitucionall e escolher (LESSIG, 1999, p. 223). Uma solução melhor ajudaria a resolver essas questões: assim como nunca será tarefa dos juízos fazer escolhas definitivas em matéria de valor, r suscitando essas questões os juízos podem inspirar outros a decidi-las (LESSIG, 1999, p. 223). Podese negar essa ambiguidade (LESSIG, 1999, p. 223). Pode-se argumentar que os constituintes tinham em mente que o juízo nada faria quanto a ambiguidades latentes; que em tais contextos o processo democrático (Lessig – 1999, p. 223 – faz expressa referência ao artigo V da Constituição dos EEUU, o qual trata das emendas a esta) entraria em cena para corrigir uma má aplicação do direito ou para responder a uma nova circunstância (LESSIG, 1999, p. 223). Esse bem pode ter sido seu (dos constituintes) modo de ver (LESSIG, 1999, p. 223). Não pensa, contudo, Lessig (1999, p. 223) que essa intenção seja clara o suficiente para rebater sua (de Lessig) consideração de como se pode melhor enfrentar a série de questões por vir sobre a aplicação dum valor constitucional ao ciberespaço, preferindo errar tomando o partido dum ativismo inofensivo a (errar tomando o partido) duma passividade debilitante. É um pequeno papel para os juízos desempenharem na conversa bem maior que é preciso ter – mas então, segundo ele (LESSIG, 190 “Kvetch” em inglês significa “reclamar, especialmente de modo inveterado” e vem do iídiche “kvetschn”, que quer dizer “apertar” (WEBSTER, 1996, p. 1.069). Revista do CEJ - n. 5, p. 181-206 - nov. 2015 183 Responsabilidade civil do provedor de conteúdo por lesão a direito da personalidade na Internet 1999, p. 223), ainda não iniciada. Chegar-se-ia, em muitos domínios da vida social, a ver a Internet como o produto de alguma coisa alienígena – alguma coisa que não se poderia controlar porque não se pode controlar nada (LESSIG, 1999, p. 233). Alguma coisa, pelo contrário, que se deveria simplesmente aceitar, enquanto ela invade e transforma a vida das pessoas (LESSIG, 1999, p. 233). Para o professor de Harvard, vivia-se, no fim dos anos 1990, a era do avestruz (LESSIG, 1999, p. 234). As pessoas estavam animadas com o que não conseguiam entender e orgulhosas por deixar as coisas à mão invisível (LESSIG, 1999, p. 234). Elas (pessoas), no entanto, é que faziam invisível a mão, olhando para o outro lado (LESSIG, 1999, p. 234). Na chamada “web 2.0”, proliferam serviços tendencialmente gratuitos que permitem aos usuários a colocação e transmissão de conteúdos gerados por eles (usuários) mesmos; nela (web 2.0), pois, o usuário deixa de ser mero consumidor dos serviços on-line para se tornar outrossim ativo participante em sua (dos serviços) criação e desenvolvimento (FACHANA, 2012, p. 17). A Internet, permitindo a todos que sejam provedores de informação (LESSIG, 2006, p. 2), em confronto com os meios tradicionais de comunicação, cuja (dos meios) arquitetura de publicação é da espécie “um para vários” (LESSIG, 2006, p. 2), apresenta potencial consideravelmente maior de causar dano, o qual por ela é velozmente multiplicado e mais dificilmente reparado (SANTOS, 2011, p. 80). Como ensinam Bartelembs e Timm (2008, p. 198), deve-se romper com a tradição de abordar questões de direito com os olhos fechados ao que decidem os juízos: jurisprudência é direito vivo (law in action, em oposição ao law on the books) (BARTELEMBS, TIMM, 2008, p. 198). A maioria das alterações legais promovidas pelo Código Civil brasileiro de 2002 não é senão a cristalização, pelo legislador, da jurisprudência consolidada ou tendenciall (FACCHINI, 2007, p. 32). Bibliotecas não são o espaço mais adequado para estudar o ciberespaço (LESSIG, 2006, p. XVII). As normas emergentes dos julgados sobre responsabilidade civil na Internet regulam, justo como arrolou Lessig em 2006, p. 155, a propriedade intelectual, a privacidade e a liberdade de expressão. Em 1991, no caso Cubby, Inc. versus CompuServe, Inc., a Corte Distrital de Nova Iorque decidiu que, não havendo sido possível ao provedor de conteúdo revisar texto ofensivo que terceiro publicara por meio dele (provedor), não poderia aquele (provedor) ser por ele (texto) responsabilizado (REINALDO 184 Revista do CEJ - n. 5, p. 181-206 - nov. 2015 Rafael Cavalcanti Lemos FILHO, 2011). Esse julgado serviu de inspiração à regra, adotada nos EEUU e no continente europeu, de que a responsabilidade do provedor de conteúdo existe tão só quando não remova o (conteúdo) que seja ilícito: o Communications Decency Act, t promulgado nos EEUU em 1996 para coibir em favor das crianças a divulgação de material obsceno por meio da Internet, confere, em sua seção 230, imunidade ao provedor que seja mero instrumento de terceiro que a (divulgação) promova; o Digital Millennium Copyright Actt (doravante DMCA), por sua vez, versa sobre o uso da produção intelectual em meio eletrônico, isentando de responsabilidade o provedor para com o conteúdo que seja disponibilizado na Internet por terceiro (REINALDO FILHO, 2011). Na Europa, a seção 4 do capítulo II da Diretiva 2000/31/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 8 de junho de 2000, outrossim aborda a responsabilidade dos prestadores intermediários de serviços e, nos artigos 12 a 15, constrói um regime de responsabilidade semelhante ao do DMCA, sem limitar-se contudo à violação de direito autoral: o prestador de (na tradução oficial portuguesa) “serviço da sociedade da informação” (termo mais amplo do que “de conteúdo”) não é responsável, em princípio (id est, t caso não tenha estado na origem da transmissão, não haja selecionado o destinatário desta, nem tenha selecionado ou modificado a informação objeto da transmissão – art. 12, n. 1, alíneas a a c, da diretiva), por dados (mensagem de correio eletrônico v.g.) transmitidos por terceiro, mas o (responsável) será caso, em se tratando de armazenagem daqueles (dados), não remova – ou impeça o acesso a – os (dados) ilícitos (RENALDO FILHO, 2011), como decidido, a propósito, nos EEUU em A&M Records, Inc. versus Napster, Inc., (2001), em que debatida a violação de direitos autorais (SANTOS, 2011, p. 81). No Brasil, entretanto, entendia-se diversamente: o provedor de conteúdo teria o dever de vigilância sobre o conteúdo que publicasse por haver assumido o risco de que o serviço prestado fosse eventualmente utilizado para a lesão de direito, como se verifica do julgado no processo 196.01.2006.028424-6, que tramitou na 2ª vara cível da comarca de Franca, em São Paulo, o qual cita decisão, no mesmo sentido, na apelação cível 431.247-4/0-00, julgada em 22 de março de 2007 pela 8ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo (REINALDO FILHO, 2011). Essas decisões, de qualquer modo, faziam referência à culpa do provedor de conteúdo (REINALDO FILHO, 2011). Outros julgados brasileiros, com base no risco decorrente da natureza da atividade desenvolvida pelo provedor de conteúdo, desenvolveram tese de sua Revista do CEJ - n. 5, p. 181-206 - nov. 2015 185 Responsabilidade civil do provedor de conteúdo por lesão a direito da personalidade na Internet (do provedor) responsabilidade objetiva por ato ilícito de terceiro que se servisse daquela (atividade) (REINALDO FILHO, 2011). Assim o acórdão da 13ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Minas Gerais no julgamento da apelação cível 1.0439.08.085208-0/001 em 12 de fevereiro de 2009, o qual (acórdão) manteve a sentença no processo 1.0439.08.085208-0/001, que correu na 3ª vara cível de Muriaé, pela qual (sentença) condenada empresa hospedeira de blog a compensar o autor da ação por dano moral provocado por terceiro nele (blog) redator (REINALDO FILHO, 2011). Da mesma maneira decidiu o mencionado tribunal (de Justiça de Minas Gerais) em 5 de agosto de 2009 quando da análise da apelação cível 1.0701.08.221685-7/001 (REINALDO FILHO, 2011). Ao mesmo tempo, juízos brasileiros, rejeitando a teoria do risco (cf. apelação cível 70045012994, 5ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, julgada em 19 de outubro de 2011, DJ de 24 de outubro de 2011), perfilhavam orientação contrária e defendiam a responsabilidade no molde ianque-europeu (dito “notice and take down” – cf. FACHANA, 2012, p. 138): apenas quando se recusasse a identificar o ofensor ou a fazer cessar a agressão (v.g. removendo os dados ilícitos quando deles comunicado, ainda que extrajudicialmente – cf. apelação cível 0638758-41.2010.8.13.0024, 17ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, julgada em 1º de setembro de 2011, decisão publicada em 20 de setembro de 2011; cf. tb. recurso cível 71002760601, 3ª Turma Recursal Cível dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais do Rio Grande do Sul, julgado em 14 de abril de 2011, DJ de 20 de abril de 2011) é que se poderia (sem, entretanto, lhe – do provedor de conteúdo – desconsiderar a personalidade jurídica, salvo alegação e prova de “conduta pessoal ilegal praticada pelo administrador ou sócio” – cf. apelação 002211829.2007.8.26.0000, 5ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, julgada em 10 de agosto de 2011, DJe de 30 de agosto de 2011) responsabilizar o provedor de conteúdo (REINALDO FILHO, 2011 – cf. tb. processo 2009.01.1.154740-8, 2ª Turma Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, DJe de 27 de maio de 2011), a não ser que este (provedor de conteúdo) houvesse anunciado a impossibilidade de alguém divulgar informação difamatória em seu (do provedor de conteúdo) site (REINALDO FILHO, 2000, p. 109-110). Sua (do provedor de conteúdo) responsabilidade, portanto, não seria nem solidária com o terceiro nem objetiva (REINALDO FILHO, 2011). Nesse sentido: apelação cível 130075-8, 5ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Paraná, julgado 186 Revista do CEJ - n. 5, p. 181-206 - nov. 2015 Rafael Cavalcanti Lemos em 19 de novembro de 2002; apelação cível 2004.001.03955, 3ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, julgado em 4 de novembro de 2004; apelação cível 0147550-7, 5ª. Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Paraná, julgado em 30 de julho de 2007 (afastando a aplicação do artigo 896 do Código Civil brasileiro de 1916, que diz a solidariedade não poder ser presumida, resultando de lei ou vontade das partes, dispositivo reproduzido pelo artigo 265 do Código Civil brasileiro de 2002) (REINALDO FILHO, 2011). A responsabilidade objetiva, quando não é da natureza do negócio – e mesmo inviável por limitação razoável de pessoal ou (por limitação) da técnica presente (cf. apelação cível 2010.026544-9, 2ª Câmara de Direito Civil do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, decisão publicada em 29 de agosto de 2011 – contra, cf. processo 201000801912, Turma Recursal dos Juizados Especiais Cíveis da Comarca de Aracaju em Sergipe, DJ de 9 de dezembro de 2010; cf. tb. acórdão no REsp 1.117.633/ RO, 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, cujo julgamento deu-se em 9 de março de 2010, decisão mantenedora da do Tribunal de Justiça de Rondônia, que tomava como exemplo de controle possível da Internet o exercido na China - REINALDO FILHO, 2011) – o controle editorial, inviabiliza-o (negócio) – SANTOS, 2011, p. 81. Em verdade, pelo próprio caráter transnacional191 da Internet é difícil identificar que seja ilícito para determinado ordenamento jurídico no qual difundida por provedor de conteúdo uma informação (FACHANA, 2012, p. 173 – no mesmo sentido, cf. MARTINS; MARTINS, 2007, p. 155; cf. tb. GANDELMAN, 1997, p. 161-162). No julgamento do AgRg no REsp 1.309.891/MG, em 26 de junho de 2012 (DJe de 29 de junho de 2012), a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, chegou a afirmar que, “[n]a linha dos precedentes desta Corte, o provedor de conteúdo de internet não responde objetivamente pelo conteúdo inserido pelo usuário em sítio eletrônico, por não se tratar de risco inerente à sua atividade”, não se lhe (ao provedor de conteúdo) aplicando pois o 191 A transnacionalidade da Internet, que anula limites de espaço e tempo, fazendo nascer uma sociedade global de comunicação (PAESANI, 1999, p. 14), gera ainda dificuldade de ordem processual: “Como eu vou, por exemplo, proibir uma homepage no Paraguai, que fale mal de mim, já que eu estou aqui no Brasil e tenho de aplicar nossa legislação, e que daqui do Brasil eu tenho acesso a essa homepage? Nós temos de seguir as regras dos artigos 88 a 90 do Código de Processo Civil [brasileiro de 1973], ou seja, o juiz brasileiro só será competente nos casos de responsabilidade civil quando a obrigação deva ser cumprida no Brasil, o domicílio do réu for aqui no Brasil, o fato ter ocorrido no Brasil ou o ato deva ser praticado no Brasil. Nos demais casos, não há como você tornar competente, a não ser por tratados internacionais, o juiz brasileiro para julgar um caso desses.” (PIMENTEL, 2000a, p. 102; no mesmo sentido, cf. BRASIL, 2000, p. 113). Por esse motivo, o direito informático deve “ser concebido como um direito internacional, capaz de poder ver aplicadas suas normas a todos os países do mundo” (PIMENTEL, 2000b, p. 160). Como diz Corrêa (2000, p. 72), “[u]suários de computadores, sistemas provedores, conexões em rede e centrais de dados podem estar todos no mesmo país, portanto, dentro de uma mesma jurisdição”, estando a questão em que a Internet se estende por vasto número de distintas jurisdições. Revista do CEJ - n. 5, p. 181-206 - nov. 2015 187 Responsabilidade civil do provedor de conteúdo por lesão a direito da personalidade na Internet artigo 927, parágrafo único, do Código Civil brasileiro de 2002; quanto à solidariedade, (o provedor de conteúdo) “[e]stá obrigado, no entanto, a retirar imediatamente o conteúdo moralmente ofensivo, sob pena de responder solidariamente com o autor direto do dano” (leading case o REsp 1.193.764/SP, 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, julgado em 14 de dezembro de 2010 – cf. REINALDO FILHO, 2011 –, são ainda precedentes os acórdãos em: REsp 1193764/SP, 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, julgado em 14 de dezembro de 2010, DJe de 8 de agosto de 2011; REsp 1186616/MG, 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, julgado em 23 de agosto de 2011, DJe de 31 de agosto de 2011; REsp 1306066/MT, 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, julgado em 17 de abril de 2012, DJe de 2 de maio de 2012; REsp 1308830/RS, 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, julgado em 8 de maio de 2012, DJe de 19 de junho de 2012; REsp 1192208/MG, 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, julgado em 12 de junho de 2012, DJe de 2 de agosto de 2012; REsp 1300161/RS, 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, julgado em 19 de junho de 2012, DJe de 26 de junho de 2012). Sendo mero veículo da informação o provedor de conteúdo, id est, t (sendo um) terceiro o provedor dessa (informação) sem que se possa exigir controle editorial a efetuar por aquele (provedor de conteúdo), caso dos sites de relacionamento (Orkut192 e Facebook v.g.) e dos blogs (Twitter e.g.), sua (do provedor de conteúdo) responsabilidade (subjetiva) surge com a inércia após avisado do ilícito (SANTOS, 2011, p. 81), independentemente de indicação precisa, pelo ofendido, da página em que contida a ofensa (REsp 1175675/RS, 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, julgado em 9 de agosto de 2011, DJe de 20 de setembro de 2011). Como definido pelo Superior Tribunal de Justiça no julgamento do REsp 1323754/RJ (3ª Turma, julgado em 19 de junho de 2012, DJe de 28 de agosto de 2012), o provedor de conteúdo tem 24 (vinte e quatro) horas, a contar da ciência que lhe seja dada do ilícito, para o (ilícito) fazer cessar. Ausente a ilicitude da informação, deve ser ela, sendo o caso (id est, t se se destinava a permanência), novamente publicada e (deve) o provedor de conteúdo tomar “as providências legais cabíveis contra os que abusarem da prerrogativa de denunciar”193 (REsp 1323754/RJ, 3ª Turma do Superior 192 “[Q]uanto ao encerramento da comunidade Orkut”, cf. voto do relator (Min. Paulo de Tarso Sanseverino) do AgRg no REsp 1384340/DF (3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, unânime, j. 5.5.2015, DJe 12.5.2015): “trata-se de impossibilidade superveniente, causada pelo próprio devedor, não havendo liberação da obrigação” (“de identificar o autor de alguma ofensa, por meio do IP do usuário”), “conforme disposto no art. 399 do Código Civil”. 193 Na Alemanha, diferentemente, precisa dar-se a retirada imediata tão somente quando, como decidido pelo Supremo Tribunal Federall alemão (VI ZR 93/10) em 25 de outubro de 2011, “a referência é tão concretamente 188 Revista do CEJ - n. 5, p. 181-206 - nov. 2015 Rafael Cavalcanti Lemos Tribunal de Justiça, julgado em 19 de junho de 2012, DJe de 28 de agosto de 2012). O Superior Tribunal de Justiça não ignora que, “[p]or mais que se intitule um site de seguro, a Internet sempre estará sujeita à ação de hackers, que invariavelmente conseguem contornar as barreiras que gerenciam o acesso a dados e informações” (REsp 1300161/RS, 3ª Turma, julgado em 19 de junho de 2012, DJe de 26 de junho de 2012). É, porém, razoável exigirr dos provedores de conteúdo sem controle editorial (cf. artigo 15, número 2, in fine, da Diretiva 2000/31/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 8 de junho de 2000, e artigo 13, alínea b, do português Regime Jurídico do Comércio Eletrônico) que mantenham cadastro de usuários que os (usuários) permita identificar a fim de que estes (usuários) respondam pelos ilícitos que cometam (SANTOS, 2011, p. 81), não sendo suficiente (que mantenham) canal para denúncia de ilícito (REsp 1308830/ RS, 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, julgado em 8 de maio de 2012, DJe de 19 de junho de 2012). Não procedendo o provedor de conteúdo ao cadastro dos usuários, deve, visando coibir o anonimato (artigo 5º, inciso IV, da Constituição da República do Brasil de 1988), ao menos registrar o protocolo na Internet (IP) dos computadores daqueles (usuários), “meio razoavelmente eficiente de rastreamento dos seus usuários, medida de segurança que corresponde à diligência média esperada dessa modalidade de provedor de serviço de internet” (ainda que, pelo chamado IP spoofing, o autor de ilícito possa usurpar IP alheio – FACHANA, 2012, p. 159); não o fazendo, aquele (provedor de conteúdo) pode (como sugerido em REINALDO FILHO, 2011) ser civilmente responsabilizado no lugar destes (usuários), por negligência (culpa in omittendo) – REsp 1193764/SP, 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, julgado em 14 de dezembro de 2010, DJe de 8 de agosto de 2011 (no mesmo sentido, cf. SANTOS, 2011, p. 81; apelação cível 0638758-41.2010.8.13.0024, 17ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, julgada em 1º de setembro de 2011, decisão publicada em 20 de setembro de 2011; apelação cível 200.2008.0316058/001, 2ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça da Paraíba, DJ de 9 de março de 2010; REsp 1186616/MG, 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, julgado em 23 de agosto de 2011, DJe de 31 de agosto de 2011; REsp formulada que a violação de direito possa ser constatada sem dificuldade (i.e. sem necessidade de exame jurídico ou fático mais aprofundado) com base nas alegações do ofendido” (no original: “wenn der Hinweis so konkret gefasst ist, dass der Rechtsverstoß auf der Grundlage der Behauptungen des Betroffenen unschwer - das heißt ohne eingehende rechtliche und tatsächliche Überprüfung - bejaht werden kann” – VERANTWORTLICHKEIT, 2011). Revista do CEJ - n. 5, p. 181-206 - nov. 2015 189 Responsabilidade civil do provedor de conteúdo por lesão a direito da personalidade na Internet 1306066/MT, 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, julgado em 17 de abril de 2012, DJe de 2 de maio de 2012; REsp 1300161/RS, 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, julgado em 19 de junho de 2012, DJe de 26 de junho de 2012, em que discutida a responsabilidade de provedor de correio eletrônico, considerado, no acórdão, “espécie do gênero ‘provedor de conteúdo’, pois propicia o envio de mensagens aos destinatários indicados pelos usuários, incluindo a possibilidade de anexar arquivos de texto, som e imagem”). Quanto a sites em que se anunciem propostas eróticas, remuneradas ou não, convém ainda maior rigorr no cadastro dos usuários, sendo preciso que o provedor de conteúdo adote medidas que permitam confirmar a veracidade das informações pessoais a ele (provedor de conteúdo) fornecidas (REsp 997.993/MG, 4ª Turma, julgado em 21 de junho de 2012, DJe de 6 de agosto de 2012). Em face de provedor de mera pesquisa, contudo, o qual indica (e basta que o faça, pela natureza do serviço que presta) a URL da página que contém a informação ilícita, é mesmo reputado ausente o interesse de agirr do ofendido (cf. REsp 1316921/ RJ, 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, julgado em 26 de junho de 2012, DJe de 29 de junho de 2012). O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, ao apreciar, por sua 13ª Câmara Cível, a apelação cível 2007.001.523346 em 16 de janeiro de 2008, sustentou que o provedor de conteúdo, por não ser remunerado por quem lhe (do provedor) acesse as páginas na Internet, t não trava relação de consumo com este (quem lhe acesse as páginas na Internet) (REINALDO FILHO, 2011). A web 2.0, contudo, gera, por meio da publicidade em suas páginas, proveitos econômicos substanciais aos provedores de conteúdo (FACHANA, 2012, p. 137). Mesmo que se verifique haverr remuneração, ainda que indireta, com a consequente incidência do Código de Defesa do Consumidor (artigo 3º, parágrafo 2º), não se pode reputar defeituoso (artigo 14) o serviço prestado pelo provedor de conteúdo caso este (serviço) não exija, por sua (do serviço) natureza, controle editorial194 (cf. REsp 1316921/ RJ, 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, julgado em 26 de junho de 2012, DJe de 29 de junho de 2012, em que discutida a responsabilidade de provedor de pesquisa, considerado espécie do gênero “de conteúdo”; cf. 194 No julgamento, em 23 de novembro de 2011 (decisão publicada no DJ de 25 de novembro de 2011), da apelação cível 70044213767, entendeu todavia a 9ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul que o defeito estava em que o provedor de conteúdo não removera anúncio de prestação de serviço sexual após comunicado da falsidade de seu (do anúncio) conteúdo. Na decisão (publicada no DJe de 24 de junho de 2011) da 3ª Turma Recursal dos Juizados Especiais do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios no processo 2010.01.1.189972-5, por sua vez, foi considerado defeito o provedor de conteúdo não ter sido capaz de impedir clonagem de perfil dum usuário. 190 Revista do CEJ - n. 5, p. 181-206 - nov. 2015 Rafael Cavalcanti Lemos tb. REsp 566.468/RJ, 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, julgado em 23 de novembro de 2004, DJ de 17 de dezembro de 2004, p. 561, em que o fato consistia na inclusão ilícita de dados pessoais em site de encontros; apelação cível 70043955822, 9ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, julgada em 9 de novembro de 2011, DJ de 2 de dezembro de 2011; REsp 1300161/RS, 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, julgado em 19 de junho de 2012, DJe de 26 de junho de 2012; REsp 1192208/MG, 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, julgado em 12 de junho de 2012, DJe de 2 de agosto de 2012; REsp 1.308.830/RS, 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, julgado em 8 de maio de 2012, DJe de 19 de junho de 2012; REsp 1.186.616/MG, 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, julgado em 23 de agosto de 2011, DJe de 31 de agosto de 2011; REsp 1.193.764/ SP, 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, julgado em 14 de dezembro de 2010, DJe de 8 de agosto de 2011). Na ausência de obrigação, legal ou contratual, de editoria pelo provedor de conteúdo, o ilícito, para a 1ª Turma Recursal dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (apelação cível 2006.01.1.006826-5, julgado em 31 de outubro de 2006), deve ser considerado fato de terceiro. Não pode, no entanto, aquele (provedor de conteúdo) alegar, contra a retirada imediata da informação, que a responsabilidade é de sociedade controladora (o artigo 28, parágrafo 2º, do brasileiro Código de Defesa do Consumidor dispõe ser subsidiária a responsabilidade de sociedade controlada), pois, apresentando-se semelhante àquela (sociedade controladora estrangeira) ao mercado, com isso auferindo benefícios, assume o risco gerado com tal conduta (apresentar-se como se da própria controladora se tratasse) – REsp 1.021.987/RN, 4ª Turma, julgado em 7 de outubro de 2008, DJe de 9 de fevereiro de 2009. Incidindo as normas do Código de Defesa do Consumidor, há solidariedade entre todos os que contratualmente participem da cadeia de prestação de serviços (um site hospedeiro não se confunde, pois, com o mero provedor de hospedagem, sendo dito que o primeiro provê conteúdo em cadeia), seja por uma “imputação legall de responsabilidade que é servil ao propósito protetivo do sistema” (cf. especialmente os artigos 7º, parágrafo único, 18, caput, t e 25, parágrafo 1º, do Código de Defesa do Consumidor), seja por culpa in eligendo – REsp 997.993/MG, 4ª Turma, julgado em 21 de junho de 2012, DJe de 6 de agosto de 2012, em que discutida a hospedagem dum site noutro site, veiculado, no primeiro (site), anúncio ofensivo à honra objetiva de quem o (anúncio) não promovera. Enfim, sempre que atingido por Revista do CEJ - n. 5, p. 181-206 - nov. 2015 191 Responsabilidade civil do provedor de conteúdo por lesão a direito da personalidade na Internet relação considerada de consumo entre provedor de conteúdo e usuário, atribui-se por equiparação, ex vii do artigo 17 do Código de Defesa do Consumidor, essa condição (consumidor) r ao ofendido (REsp 997.993/MG, 4ª Turma, julgado em 21.6.2012, DJe 6.8.2012). As receitas publicitárias adquiridas pelos provedores de conteúdo são proporcionais ao número de visualizações de – e colocação de informação em – suas páginas; deste modo, haveria não apenas interesse daqueles (provedores de conteúdo) em que se coloque ela (informação) nestas (páginas), senão verdadeiro incentivo a que assim se proceda (colocar informação nas páginas) (FACHANA, 2012, p. 137-138). Os provedores de conteúdo na web 2.0 seriam, portanto, em regra (sendo destarte necessária uma análise casuística), mais do que simples intermediários de serviços, equiparando-se, neste caso (provedores de conteúdo mais do que simples intermediários de serviços), a editores, como decidiu (embora minoritária a corrente jurisprudencial seguida, talvez porque atualmente a maiorr parte dos litígios termine em transação) o Tribunal de Grande Instance de Paris no caso Jean Yves L. ditt Lafesse versus Myspace (2007), não se lhes (aos provedores de conteúdo) aplicando, consequentemente, regime (como o da Diretiva 2000/31/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 8 de junho de 2000) que os (provedores de conteúdo) isente de responsabilidade para com a informação inserta por usuário em página sua (do provedor de conteúdo) (FACHANA, 2012, p. 138, 140 e 141). De qualquer modo i.e. mesmo quando se entenda o provedor de conteúdo não ser mero intermediário de serviço, é preciso que o benefício por ele (provedor de conteúdo) auferido seja diretamente atribuível ao conteúdo ilícito e (que ele, provedor de conteúdo), direta ou indiretamente, para este (conteúdo ilícito) haja contribuído (FACHANA, 2012, p. 142). Os direitos fundamentais vinculam não apenas o legislador senão também os órgãos jurisdicionais (cf. CANARIS, 2009, p. 39, em que é feita referência ao artigo 1º, número 3, da Lei Fundamental alemã, correspondente ao artigo 5º, parágrafo 1º, da Constituição da República do Brasil de 1988 e ao artigo 18, número 1, da Constituição da República Portuguesa de 1976). A vinculação destes (órgãos jurisdicionais), por seu turno, não se restringe ao âmbito jurídico-processual, alcançando outrossim o (âmbito) jurídico-material; caso contrário, a efetividade daqueles (fundamentais) direitos ficaria severamente prejudicada (CANARIS, 2009, p. 40 e 130). Serem ricas de eficácia adaptativa sem que 192 Revista do CEJ - n. 5, p. 181-206 - nov. 2015 Rafael Cavalcanti Lemos deixem de ser do seu tempo (i.e. oportunas) é o que, para Miranda (1981, p. 357), deve-se exigir de todas as leis. O advento da Internet tornou obsoleta boa parte dos sistemas jurídicos nacionais (REINALDO FILHO, 2000, p. 106). Do ponto de vista fático, é, em grande medida, tão somente a jurisprudência que confere pleno conteúdo às leis, influenciando decisivamente as consequências práticas da legislação para as posições jurídicas fundamentais dos cidadãos (CANARIS, 2009, p. 40-41 e 130). O Código de Processo Civil brasileiro de 1973, em seu artigo 126, claramente diz que, mesmo que se enxergue lacuna em – ou obscura – a lei, não pode o juiz abster-se de decidir, mas, antes, (pode) socorrer-se dos princípios gerais do direito (cf. REINALDO FILHO, 2000, p. 108). Fosse doutro modo, a proteção dos direitos fundamentais dependeria dos acasos da técnica legislativa e seria bem mais intensa no caso duma norma precisa em sua (da norma) hipótese do que no (caso) duma cláusula geral (CANARIS, 2009, p. 41), a qual (cláusula geral), aliás, é a mais adequada técnica legislativa à informática195, em virtude da dinâmica deste fenômeno (PIMENTEL, 2000b, p. 159). A aplicação e o desenvolvimento das leis constituem o necessário complemento de sua (das leis) aprovação pelo legislador, sujeitando, assim como a este (legislador), imediatamente o juízo, mesmo no âmbito direito privado, à observância dos direitos fundamentais (CANARIS, 2009, p. 41). Por seu turno, o cabimento de recurso extraordinário (no Brasill – na Alemanha, Verfassungsbeschwerde ou, em português, “queixa constitucional”) por aplicação inconstitucional, pelo Poder Judiciário, do direito material privado, corrobora que haja sujeição direta, no plano jurídico-material, dos juízos cíveis aos direitos fundamentais, devendo ser aferidas, imediatamente segundo estes (direitos fundamentais), as proposições em que aqueles (juízos cíveis), interpretando e desenvolvendo o direito, embasem suas (dos juízos cíveis) decisões (CANARIS, 2009, p. 41-42 e 131). Essas proposições necessitam ser formuladas como normas e pensadas como parte do direito material para que se lhes (das proposições) verifique em seguida o respeito aos direitos fundamentais (CANARIS, 2009, p. 42 e 131). Noutras (de Canaris – 2009, p. 43) palavras: deve conceber-se a ratio decidendi de uma decisão judicial como norma, e comprovar se esta violaria um direito 195 Não só a esta (informática), mas, para Silva (2006, p. 740), (técnica legislativa mais adequada) à responsabilidade civil como um todo: “Já que a responsabilidade civil avança conforme progride a civilização, há necessidade de constante adaptação deste instituto às novas necessidades sociais. Bem por isso, as leis sobre essa matéria devem ter caráter genérico [...] e aos tribunais cabe delas extrair os preceitos para aplicá-los ao caso concreto.”. Revista do CEJ - n. 5, p. 181-206 - nov. 2015 193 Responsabilidade civil do provedor de conteúdo por lesão a direito da personalidade na Internet fundamental, sendo que há-de partir-se, aqui, da aplicação imediata deste – de forma não diferente do que se passa perante o legislador privado. O Código Civil brasileiro de 2002 inova com um capítulo (o II do título I do livro I da parte geral) sobre os direitos da personalidade (os quais já eram abordados nos artigos 5º a 12 do Código Civil italiano de 1942 e nos 70 a 81 do português de 1966). Esse capítulo é uma atenuação do patrimonialismo do direito civil clássico e um impulso em direção à repersonalização do direito privado, (impulso em direção a) um (direito) no qual a pessoa e sua dignidade existencial sejam postos no centro do sistema jurídico, em lugar do patrimônio (FACCHINI NETO, 2007, p. 30, n. 2). Para Silva (2006, p. 742), é na defesa da personalidade que encontra respaldo o princípio da reparação do dano, sendo a responsabilidade civil “verdadeira tutela privada à dignidade da pessoa humana”. O nome da pessoa não pode ser empregado por outrem em publicações ou representações que a exponham ao desprezo público, mesmo não havendo intenção difamatória (artigo 17 do Código Civil brasileiro de 2002). São proibidas a divulgação de escritos, a transmissão da palavra e a publicação, exposição ou utilização da imagem de uma pessoa, se lhe atingirem a honra, boa fama ou respeitabilidade, salvo se autorizadas ou necessárias aquelas (a divulgação de escritos, a transmissão da palavra e a publicação, exposição ou utilização da imagem de uma pessoa) à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública (artigo 20, caput, t do Código Civil brasileiro de 2002). No campo da responsabilidade civil, a tutela reparatória pode ser insuficiente, razão pela qual o legislador lança às vezes mão da chamada pena privada (instrumento sancionatório punitivo), quando inexistente ou ineficaz uma tutela preventiva (FACCHINI NETO, 2007, p. 30, n. 2). No direito brasileiro contemporâneo, pode-se exigir que cesse a ameaça ou lesão a direito da personalidade e (pode-se) reclamar perdas e danos, devendo o magistrado, a requerimento do interessado, impedir ou fazer cessar qualquer ato contrário à inviolabilidade da vida privada da pessoa naturall (artigos 12 e 21 do Código Civil brasileiro de 2002). Para a Constituição da República do Brasil de 1988 (artigo 5º, inciso X), é inviolável o direito à intimidade, vida privada, honra ou imagem das pessoas, assegurada uma indenização ou compensação pelo dano respectivamente material ou moral que decorra de sua (do direito à 194 Revista do CEJ - n. 5, p. 181-206 - nov. 2015 Rafael Cavalcanti Lemos intimidade, vida privada, honra ou imagem) transgressão. Privacidade é um conceito indeterminado sem extensão constitucionalmente delimitada, a preencher caso a caso pelo magistrado (REINALDO FILHO, 2002, p. 36). A partir de decisões do Tribunal Constitucional da Alemanha aparentemente divergentes construiu-se uma teoria dita “das esferas” (estas – esferas – de proteção, com diferentes intensidades, do direito à privacidade): a (esfera) mais interior, a (esfera) privada ampliada e a (esfera) social (ALEXY, 2012, p. 360-361). A (esfera) mais interior não estaria sujeita a uma ponderação de princípios, consoante a jurisprudência do Tribunal Constitucional da Alemanha – cf. especialmente BVerfGE 34, 238 (245: “âmbito nuclear, r protegido de maneira absoluta, da organização privada da vida” – no original, “den absolut geschützten Kernbereich privater Lebensgestaltung” – cf. http://www.servat.unibe.ch/dfr/bv034238.html#Rn030) –, mas, como explica Alexy (2012, p. 361-362), essa ideia mesma (de que a esfera mais interior não estaria sujeita a uma ponderação de princípios) é o resultado duma ponderação: aquela (ponderação) concludente de que, para com determinados comportamentos e situações vividas pelo indivíduo, haveria uma prevalência absoluta (de modo que se possa, em vez de princípio, falar de verdadeira regra) do princípio da liberdade negativa em sentido estrito196, associado ao (princípio) da dignidade humana, sobre todos os demais. A (esfera) privada ampliada seria aquela (esfera) com exclusão da (esfera) mais interior – cf. BVerfGE 27, 1 (7-8); 27, 344 (351); 32, 373 (379); 33, 367 (376); 34, 238 (246); 35, 202 (220) –, na qual (esfera privada ampliada) restrições seriam possíveis, conquanto estas (restrições) exigissem razões relevantes (ALEXY, 2012, p. 361-362). A (esfera) social, enfim, abarcaria tudo que não estivesse inserto ao menos na (esfera) privada ampliada (ALEXY, 2012, p. 361). Frequentemente, todavia, é difícil classificar um caso como de esfera privada ampliada ou de (esfera) social, porquanto entre aquela (esfera privada ampliada) e esta (esfera social) há, naturalmente, uma gradação (ALEXY, 2012, p. 363). Como ensina, pois, Alexy (2012, p. 363-364): A teoria das esferas demonstra ser, portanto, uma descrição extremamente rudimentarr dos diferentes graus de intensidade aos quais, sob diferentes condições, a proteção de direitos fundamentais está submetida. Na parte em que é correta essa 196 O princípio da liberdade negativa em sentido estrito, também chamado (princípio) “da liberdade liberal”, de acordo com Alexy (2012, p. 351-352), visa assegurar a um titular de direito fundamental a maior liberdade de ação, situação e posição jurídicas possível por meio da proibição de condutas que lhe (do titular de direito fundamental) oponham obstáculo à ação, afetem situação ou suprimam posição. Revista do CEJ - n. 5, p. 181-206 - nov. 2015 195 Responsabilidade civil do provedor de conteúdo por lesão a direito da personalidade na Internet teoria sustenta que a proteção da liberdade é tão mais intensa quanto mais peso tiver o princípio da liberdade negativa em conjunto com outros princípios, sobretudo o da dignidade humana. Na Constituição da República do Brasil de 1988 ainda, lê-se que é livre a expressão intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença (inciso IX do artigo 5º), e a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo, não devem sofrer qualquer restrição (salvo a de ordem também constitucional), vedada toda censura de natureza política, ideológica ou artística (artigo 220, caputt e parágrafo 2º) – cf. apelação cível 70045012994, 5ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, julgada em 19 de outubro de 2011, DJ de 24 de outubro de 2011. Sob pretexto de dificultar a difusão de informação ilícita, por conseguinte, não se pode reprimir o direito da coletividade à informação: “Sopesados os direitos envolvidos e o risco potenciall de violação de cada um deles, o fiel da balança deve pender para a garantia da liberdade de informação assegurada pelo art. 220, § 1º, da CF/88, sobretudo considerando que a Internet representa, hoje, importante veículo de comunicação social de massa.” (REsp 1316921/RJ, 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, julgado em 26 de junho de 2012, DJe de 29 de junho de 2012). É certo, porém, que “o princípio da liberdade de expressão não é absoluto e, bem por isto, deve ser exercido de forma harmônica com os demais preceitos também resguardados pela Constituição Federal (§ 2º do art. 5º), por exemplo, o princípio da dignidade da pessoa humana” (apelação cível 2010.026544-9, 2ª Câmara de Direito Civil do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, decisão publicada em 29 de agosto de 2011). Nos Estados Unidos, o professor de Direito Constitucional na Universidade Harvard Laurence Tribe chegou a sugerir que se emendasse a Constituição dos Estados Unidos para uma expressa garantia, no ciberespaço, tanto da liberdade de expressão quanto do direito à privacidade (GOUVÊA, 1997, p. 50). Os provedores de conteúdo na Internet, imensa sua força difusora de idéias, são essenciais à participação na vida democrática (FACHANA, 2012, p. 157), havendo-se recentemente mostrado instrumentos capazes até de eficazmente combater governos autoritários (SANTOS, 2011, p. 81). Eles, como os veículos de comunicação em geral, são “instância natural de formação da opinião pública” e “alternativa à versão oficial dos fatos”, nos termos com que se referiu à imprensa o Supremo Tribunal Federal – ainda 196 Revista do CEJ - n. 5, p. 181-206 - nov. 2015 Rafael Cavalcanti Lemos que para este desfrute ela (imprensa) “uma liberdade de atuação ainda maiorr que a liberdade de pensamento, de informação e de expressão dos indivíduos em si mesmos considerados” – em acórdão na ADPF 130/DF (julgada em 30 de abril de 2009, Tribunal Pleno, DJe de 6 de novembro de 2009). No julgamento da apelação cível 1.0105.02.069961-4/001, em 18 de novembro de 2008, a 18ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Minas Gerais recusou que se pudesse equiparar o provedor de conteúdo à “agência noticiosa” da Lei de Imprensa (5.250/1967), porquanto a Internet conecta computadores dispersos por todo o mundo, permitindo trocas de dados, por meio dum protocolo comum, diretamente inseridos por seus (da Internet) usuários, sem que haja dever de controle imposto por lei àquele (provedor), cuja atividade seria regida em verdade pelo Código Civil; além disso, a Constituição da República do Brasil de 1988, em seu artigo 5º, inciso XII, garante o sigilo das comunicações de dados197 (REINALDO FILHO, 2011 – cf. tb. apelação cível 70043955822, 9ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, julgada em 9 de novembro de 2011, DJ de 2 de dezembro de 2011), o qual (sigilo) apenas com uma nova constituição pode vir a ser violado (BRASIL, 2000, p. 116). É preciso verificar se, como se dá para com os portais de notícias, o provedor de conteúdo também o (provedor) é de informação (SANTOS, 2011, p. 80-81). Nessa hipótese, sua (do provedor de conteúdo) responsabilidade seria, para Santos (2011, p. 81), como a (responsabilidade) da mídia impressa, do rádio e da televisão: objetiva. Pois todos (provedor de conteúdo outrossim de informação; mídia impressa, rádio e televisão) são editores do que por meio deles é publicado (SANTOS, 2011, p. 81). A responsabilidade solidária da mídia impressa, do rádio e da televisão, contudo, sedimentada na súmula 221 do Superior Tribunal de Justiça, tinha por base o artigo 49, parágrafo 2º (que também estabelecia responsabilidade objetiva à mídia impressa, ao rádio e à televisão), da Lei de Imprensa, a qual (lei) não foi recepcionada pela Constituição da República do Brasil de 1988 (cf. julgamento pelo Supremo Tribunal Federal brasileiro, em 30 de abril de 2009, na ADPF 130/DF), a despeito de que aquela (súmula) continue a ser invocada (cf. apelação cível 06.003012-7, 3ª Câmara Especializada Cível do Tribunal de Justiça do Piauí, julgada em 3 de março de 2011, DJe de 4 de março de 2011; apelação cível 6.044/2009 [89.160/2010], 1ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Maranhão, julgada em 25 de fevereiro de 2010, DJe de 8 de 197 Esse sigilo (das comunicações de dados), na Alemanha, gera mesmo uma tolerância, legalmente assegurada, à utilização da correspondência eletrônica corporativa para o trato de assuntos particulares (OLIVO, 1997, p. 32). Revista do CEJ - n. 5, p. 181-206 - nov. 2015 197 Responsabilidade civil do provedor de conteúdo por lesão a direito da personalidade na Internet março de 2010; apelação cível 2007.035605-6, 5ª Câmara de Direito Civil do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, julgada em 2 de junho de 2011, acórdão publicado em 14 de julho de 2011). Concebe-se que alguém responda pelos prejuízos de outrem por causa do risco que o primeiro haja criado, embora proceda sem culpa ou até licitamente e mesmo não provindo o dano de ato seu mas de acontecimento natural ou de ato de terceiro ou (ato) do próprio lesado, bastando que esse alguém tenha criado determinado risco, (tenha) tomado uma iniciativa que lhe seja proveitosa conquanto envolvendo risco a terceiros (TELLES, 2010, p. 216). Prescinde-se assim da culpa, quer como elemento individualizador da pessoa que ficará obrigada a indenizar, quer como fator significativo-ideológico justificante da própria situação de responsabilidade (CORDEIRO, 2010, p. 591), bastando constatar relação de causalidade entre a conduta arriscada e o dano (SILVA, 2006, p. 739; COSTA, 2009, p. 613-614)198. Uma esfera de riscos pode ser estabelecida por diversas concepções que às vezes se cumulam (LEITÃO, 2010, p. 381): De acordo com a concepção do risco criado, cada pessoa que cria uma situação de perigo deve responder pelos riscos que resultem dessa situação. Por sua vez, segundo a concepção do risco-proveito, a pessoa deve responder pelos danos resultantes das actividades que tira proveito. Na concepção do risco de autoridade, deve responder pelos danos resultantes das actividades que tem sob o seu contrôle. (LEITÃO, 2010, p. 381). Sendo objetiva a responsabilidade pelo risco, demanda previsão legal expressa – MARTINEZ, 2010/2011, p. 139. Estende-se ao Brasil (cf. SILVA, 2006, p. 740) a afirmação de Cordeiro (2010, p. 600), originalmente voltada ao direito europeu, de que aparentemente estamos em face de uma tendência para generalizar a responsabilidade pelo risco, fazendo-a surgir perante qualquer elemento de perigosidade que escape ao controlo do seu autor ou beneficiário. O artigo 927, parágrafo único, do Código Civil brasileiro de 2002 – como o (artigo) 483, número 2, do (Código Civil) português de 1966 – 198 A culpa não pode ser esquecida, no entanto, quando da fixação do quantum indenizatório ou compensatório (COSTA, 2009, p. 613). 198 Revista do CEJ - n. 5, p. 181-206 - nov. 2015 Rafael Cavalcanti Lemos dispõe haver obrigação de reparar o dano independentemente de culpa nos casos especificados em lei, sendo um deles (casos) logo indicado no próprio dispositivo: quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco ao direito de outrem. Essa responsabilidade civil objetiva, cuja redação original (i.e. no projeto do Código Civil) era quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, grande risco para os direitos de outrem, salvo se comprovado o emprego de medidas preventivas tecnicamente adequadas199 (cf. SILVA, 2006, p. 738), funda-se na teoria do risco criado pelo exercício de atividade lícita mas perigosa (DINIZ, 2006, p. 716 – cf. tb. SILVA, 2006, p. 738). Não é, pois, que não haja risco de lesão a direito da personalidade na atividade desenvolvida pelo provedor de conteúdo (contra, cf. REINALDO FILHO, 2011). O risco com que se preocupa o direito não pode ser apenas o (risco) de dano material. A atividade daquele (provedor de conteúdo) permite uma multiplicação fácill e velozz do dano inédita. Governos, por seu turno, ficam tentados a impor aos provedores de conteúdo a obrigação de filtrar a informação disponibilizada em suas (dos provedores de conteúdo) páginas, sob a alegação de combate ao terrorismo ou (combate) à divulgação de segredos de Estado (cf. FACHANA, 2012, p. 145, em que, na nota 300, faz-se menção exemplificativa ao notório incômodo causado aos EEUU em razão da divulgação, pelo Wikileaks, de centenas de milhares de telegramas oriundos de embaixadas ianques). Em virtude dos benefícios à liberdade de expressão produzidos por essa mesma atividade (desenvolvida pelo provedor de conteúdo) é que ele (provedor de conteúdo) não deve ser objetivamente responsabilizado. O modelo de negócio, essencial à manutenção dos serviços na web 2.0, em que um provedor de conteúdo ganha consoante o número de visualizações de determinada informação pode mesmo ser dito consequência da democratização da Internet (FACHANA, 2012, p. 143-144). Para que um provedor de conteúdo seja excluído (o que seria contrário à evolução da Internet e lhe – ao provedor de conteúdo – representaria pesada sanção) dum regime de isenção de responsabilidade, é necessário demonstrarr que a publicidade veiculada 199 A emenda sofrida pelo dispositivo na Câmara dos Deputados deveu-se a que “o texto, ao mesmo tempo em que acolhia a responsabilidade sem culpa, inseria o critério de culpa como motivo de exclusão de responsabilidade, pelo emprego de medidas tecnicamente adequadas” (SILVA, 2006, p. 738). Revista do CEJ - n. 5, p. 181-206 - nov. 2015 199 Responsabilidade civil do provedor de conteúdo por lesão a direito da personalidade na Internet em página que contenha informação ilícita, por causa desta (informação ilícita) e não pela popularidade gerall do próprio site, àquela (página) seja por ele (provedor de conteúdo) direcionada, visando a maior ganho (com publicidade), sob pena de que se atinjam gravemente os direitos fundamentais à liberdade de expressão e à informação (FACHANA, 2012, p. 143). Noutras palavras e visto doutro ângulo, é preciso verificar se há tratamento efetivamente neutro, pelo provedor de conteúdo, das informações insertas em suas páginas, para que (o provedor de conteúdo) se valha dum regime de isenção de responsabilidade (FACHANA, 2012, p. 143). Ainda neste caso (tratamento efetivamente neutro, pelo provedor de conteúdo, das informações insertas em suas páginas), porém, se (o provedor de conteúdo) obtiver vantagem publicitária excepcionall com a informação ilícita, está obrigado o provedor de conteúdo a compensar o lesado por seu (do provedor de conteúdo) enriquecimento sem causa (cf. FACHANA, 2012, p. 144, em que, no entanto, não é feita expressa referência ao instituto do enriquecimento sem causa). O avanço tecnológico atual possibilita maiorr controle, pelo provedor de conteúdo, da informação por meio dele (provedor de conteúdo) divulgada na Internet (FACHANA, 2012, p. 145 e 152). Ferramentas de deep packet inspection (DPI) permitem-lhe (ao provedor de conteúdo) classificar o conteúdo que passar por seus (do provedor de conteúdo) servidores e até visualizá-lo (conteúdo), o que é evidentemente mais eficazz que o “notice and take down” normalmente reputado bastante para afastar a responsabilidade do provedor de conteúdo pelo ilícito divulgado por terceiro em suas (do provedor de conteúdo) páginas (FACHANA, 2012, p. 145). No entanto, especialmente em se tratando de mensagens de correio eletrônico, a leitura da informação representa verdadeira violação de correspondência (FACHANA, 2012, p. 145 e 147). A propósito, decidiu o Tribunal de Justiça da União Européia, em 24 de novembro de 2011, no processo C-70/10, não ser possível, ainda que por via judicial, impor ao provedor de conteúdo a instalação dum sistema gerall e preventivo de filtragem, que seria desproporcionall ante a restrição dos direitos fundamentais à privacidade e à informação que implicaria, em confronto com o fim in casu de proteção ao direito autoral, entendimento reiterado pela mesma corte em 16 de fevereiro de 2012 no processo C-360/10 (FACHANA, 2012, p. 151-152). Em verdade, como explica Fachana (2012, p. 152-153 – cf. tb. p. 160), mesmo nos dias correntes, não é ainda possível impedir com eficiência, sem prévia avaliação humana, 200 Revista do CEJ - n. 5, p. 181-206 - nov. 2015 Rafael Cavalcanti Lemos mormente quando criptografada a informação200, a ofensa ao bom nome ou a violação do direito à imagem. Na França, visando a uma maior proteção do direito autoral, foi editada, em 12 de junho de 2009, a Lei 2009-699 (loi favorisant la diffusion et la protection de la création sur Internett – em português, “lei para o favorecimento da difusão e proteção da criação na Internet”), conhecida por (Lei) HADOPI, sigla da Haute Autorité pour la Diffusion des Oeuvres et la Protection des Droits sur Internett (Alta Autoridade para a Difusão de Obras e Proteção de Direitos na Internet) – FACHANA, 2012, p. 154-155. Essa lei adota o procedimento chamado “three strikes and you’re out”: a HADOPI, após queixa de violação de direito autoral, notifica o provedor de conteúdo a que preste informações acerca do titular da conta de acesso à Internet utilizada para o ilícito; obtidas as informações, aquela (HADOPI) notifica este (titular da conta), por correio eletrônico, relatando a detecção do ilícito (em FACHANA, 2012, p. 155, n. 318, afirma-se a ocorrência já de mais ou menos quatrocentas mil notificações a titulares de conta); havendo, em seis meses da notificação por e-mail, novo ilícito praticado por meio da mesma conta de acesso, aquela (notificação) é repetida, mas por carta registrada ao domicílio do titular da conta, com aviso de recebimento; se, em um ano da segunda notificação, der-se outro ilícito, é instaurado pela HADOPI processo em face do titular da conta, podendo este (titular da conta) ser sancionado à suspensão de acesso à Internet por um período de três meses a um ano, durante o qual (período) aquele (titular da conta) estará obrigado a pagar ao provedor de conteúdo por este (acesso à Internet) – FACHANA, 2012, p. 155 e 156, n. 321. O titular da conta possui, com presunção de culpa afastável tão somente por meio do uso de filtros antipirataria de modelo aprovado pela HADOPI, um dever de vigilância sobre o acesso à Internet, sendo (o titular da conta) normalmente também o proprietário do computador com que ele (acesso) se dá, o que leva Fachana (2012, p. 156 e 159) a afirmar que “a Lei HADOPI vem dar um ‘novo fôlego’ à responsabilidade do dono da coisa no âmbito da Internet”. O processo que conduza à aplicação de sanção suspensiva de acesso à Internet deve ser judicial, consoante a décision 2009-580 DC du Conseil Constitutionnel, prolatada em 10 de junho de 2009, não podendo uma autoridade administrativa restringir 200 Pensada como a solução para a segurança na transmissão de dados pela Internet (REIS, 1996, p. 54), criptografia é o processo que torna ilegível a informação a quem não possua o bloco de dados que a (informação) permita decifrar (CRUMLISH, 1997, p. 67 e 83), sem a qual (criptografia) “o que as pessoas enviam por computador é algo equivalente a um cartão postal” (CORRÊA, 2000, p. 81). Revista do CEJ - n. 5, p. 181-206 - nov. 2015 201 Responsabilidade civil do provedor de conteúdo por lesão a direito da personalidade na Internet direito (de acesso à Internet) corolário da liberdade constitucionalmente assegurada de expressão e pensamento (FACHANA, 2012, p. 156 e 161). Como previa Gouvêa (1997, p. 105), as mudanças tecnológicas têm levado as sociedades da era digital a conferir relevância ao acesso à Internet. Os que dela (Internet) não participam findam atualmente por sofrer mesmo exclusão no mundo real (CARVALHO et al., 2007, p. 137). A despeito de que a Lei HADOPI tenha, de fato, reduzido o número de downloads ilegais, consoante estudo promovido pelo Môle Armoricain de Recherche sur la Société de l’Information et les Usages d’Internett (http:// www.marsouin.org/), há evidente desproporcionalidade entre fim – proteção dos direitos autoral e conexos – e meios – imposição, ao titular da conta de acesso à Internet, de dever de vigilância sobre ela (conta) e sanção suspensiva deste (acesso)201 – FACHANA, 2012, p. 157-159. Além disso, a presunção de culpa do titular da conta de acesso, mormente em caso de IP spoofing, é quase inafastável por quem, como a maioria da gente, possua conhecimentos mínimos de informática (FACHANA, 2012, p. 159-160). Apesar de que, em Portugal, a Lei 32/2008, de 17 de julho, que transpôs para a ordem jurídica lusitana a Diretiva 2006/24/ CE do Parlamento Europeu e do Conselho, obrigue os provedores de conteúdo tão só a que armazenem os dados pessoais dos usuários por ao menos um ano, a fim de que as competentes autoridades judiciárias deles (dados) se possam utilizar na investigação de crime grave (artigos 6º e 9º da referida lei), é autorizado ao Poder Judiciário, pelo artigo 227 do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos, a imposição de medidas que, “segundo as circunstâncias, se mostrem necessárias para garantir a protecção urgente do direito”, as quais (medidas), por analogia, poderiam ser, consoante Fachana (2012, p. 158-159, n. 328), aplicadas ao mundo digital. Debate-se ainda, de jure Lusitano constituendo, o uso dum software de nome honeypot, o qual simula um arquivo ilícito a carregar em rede P2P, de modo a identificar quem o descarregue (FACHANA, 2012, p. 158-159). Melhor é que os provedores de conteúdo todos, como proposto na Diretiva 2000/31/CE em seu artigo 16, criem claros, específicos aos serviços que prestem e de amplo conhecimento códigos de conduta (ditos softlaw) aos usuários a fim de que estes (usuários) sejam com eficiência advertidos de que sua (dos códigos de conduta) violação acarretará sanções que eventualmente culminem em que não 201 Para Fachana (2012, p. 175), isso (desproporcionalidade entre meios e fim) não impedirá que o modelo da Lei HADOPI se estenda aos demais países integrantes da União Europeia, em virtude do lobby das associações de direito autoral e (do lobby) y das empresas de comercialização de obras por este (direito autoral) protegidas. 202 Revista do CEJ - n. 5, p. 181-206 - nov. 2015 Rafael Cavalcanti Lemos mais possam utilizar os serviços daqueles (provedores de conteúdo) cujo softlaw w foi transgredido – FACHANA, 2012, p. 169. Enfim, sendo exorbitante o quantum compensatório por dano moral na Internet fixado em processo judicial, cabe sua (do quantum) revisão pelo Superior Tribunal de Justiça (REsp 1192208/MG, Rel. Ministra Nancy Andrighi, 3ª Turma, julgado em 12/06/2012, DJe 02/08/2012). Como ficou, aliás, decidido pelo Supremo Tribunal Federal na ADPF 130/DF, a excessividade indenizatória é, em si mesma, poderoso fator de inibição da liberdade de imprensa, em violação ao princípio constitucional da proporcionalidade. A relação de proporcionalidade entre o dano moral ou material sofrido por alguém e a indenização que lhe caiba receber (quanto maior o dano maior a indenização) opera é no âmbito interno da potencialidade da ofensa e da concreta situação do ofendido. Nada tendo a ver com essa equação a circunstância em si da veiculação do agravo por órgão de imprensa, porque, senão, a liberdade de informação jornalística deixaria de ser um elemento de expansão e de robustez da liberdade de pensamento e de expressão lato sensu para se tornar um fator de contração e de esqualidezz dessa liberdade. Revista do CEJ - n. 5, p. 181-206 - nov. 2015 203 Responsabilidade civil do provedor de conteúdo por lesão a direito da personalidade na Internet Referências ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2012. BARTELEMBS, Daniela; TIMM, Luciano Benetti. Agência e representação comercial frente ao novo Código Civil de 2002, à luz da jurisprudência do TJRS. Revista da Ajuris, Porto Alegre, ano 35, n. 109, p. 197-216, mar. 2008. BRASIL, Angela Bittencourt. Informática jurídica: o ciberdireito. Rio de Janeiro: A. Bittencourt Brasil, 2000. CANARIS, Claus-Wilhelm. Direitos fundamentais e direito privado. 2. reimpr. 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New York: Gramercy, 1996. 206 Revista do CEJ - n. 5, p. 181-206 - nov. 2015 O jurista e filósofo Clóvis Beviláqua Rogério Medeiros Garcia de Lima202 Resumo: Este trabalho aborda a vida e obra do grande jurista e filósofo brasileiro Clóvis Beviláqua. Seu pensamento filosófico deve ser compreendido no contexto da Escola do Recife. Não foi um filósofo criador e original, mas era dotado de inexcedível habilidade para assimilar o que havia de bom em novas ideias. Após receber forte influência do positivismo, estudou posteriormente outros sistemas e concepções filosóficos. Seu pensamento influenciou intensamente a Filosofia do Direito no Brasil. Abstract: This article approachs life and work of the brazilian jurist and philosopher Clóvis Beviláqua. His idea must be comprehended in philosophical context of the Escola do Recife. He was not a creative and original philosopher, but he was equipped to insuperable capacity to assimilate the good news ideas. After accept great influence of the positivism, then examined others philosophical systems. His opinion inspired intensely the philosophy of law in Brasil. Palavras-chave: Clóvis – Beviláqua - Pensamento – Filosófico. Keywords: Clovis - Beviláqua - Thinking – Philosophical. Introdução Este trabalho aborda a vida e obra do grande jurista e filósofo brasileiro Clóvis Beviláqua. Nascido em Viçosa, Estado do Ceará, trazia nas veias a mistura de sangue italiano, português, indígena e brasileiro. 202 Doutor em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Brasil. Professor do Centro Universitário Newton Paiva e da Escola Judicial Desembargador Edésio Fernandes. Desembargador do Tribunal de Justiça de Minas Gerais. . Palestra apresentada durante o X Colóquio Tobias Barreto, “A Filosofia Jurídica Luso-Brasileira do século XIX”, promovido pelo Instituto de Filosofia LusoBrasileira, em parceria com o Centro de História da Cultura, da Universidade Nova de Lisboa, e a Universidade Federal de São João del-Rei, Lisboa, 20 de novembro de 2014. Revista do CEJ - n. 5, p. 207-223 - nov. 2015 207 O jurista e filósofo Clóvis Beviláqua Ao iniciar o curso de Direito, interessava-se por política e literatura. Depois de formado, revelou-se a vocação pelos assuntos jurídicos e filosóficos. Foi professor da Faculdade de Direito do Recife. Casado com Amélia, levava vida familiar afetuosa e pacata. A família instalou-se definitivamente no Rio de Janeiro, quando Clóvis elaborou o projeto de Código Civil Brasileiro. Estudioso e disciplinado, trabalhou diuturnamente até morrer. O pensamento filosófico de Clóvis Beviláqua deve ser compreendido no contexto da Escola do Recife. Esse movimento, que teve como figura central o professor sergipano Tobias Barreto de Menezes, buscou a renovação do pensamento brasileiro, notadamente no campo jurídico, a partir de novas ideias filosóficas. O denominado culturalismo estava no cerne do movimento recifense. Para Tobias Barreto, cultura é “a antítese da natureza, no sentido de que ela importa uma mudança do natural, no sentido de fazê-lo belo e bom”. Clóvis Beviláqua não foi um filósofo criador e original, mas era dotado de inexcedível habilidade para assimilar o que havia de bom em novas ideias. Na mocidade, recebeu forte influência do positivismo. Mais tarde, estudou a fundo todos os sistemas e concepções filosóficos. Leu monistas e dualistas, cepticistas e moralistas, enciclopedistas e ideologistas, pessimistas e otimistas, ecletistas e sensualistas, teologistas e misticistas, quietistas e dogmatistas, positivistas e evolucionistas. O momento áureo da Escola do Recife não está na filosofia, mas na Filosofia do Direito. Pela primeira vez em nossa cultura, o Direito é transformado em fenômeno histórico, sujeito a desenvolver-se no tempo, ligado à vida. Beviláqua, autor do Projeto do Código Civil Brasileiro de 1916, ainda influencia intensamente o pensamento jurídico brasileiro. O Superior Tribunal de Justiça, mais alta Corte brasileira para interpretação da lei federal, proclama, ainda hoje, que o jurista há de aplicar as leis com o espírito ao nível do seu tempo, mergulhado na viva realidade ambiente, e não acorrentado a algo do passado, nem perdido em alguma paragem, 208 Revista do CEJ - n. 5, p. 207-223 - nov. 2015 Rogério Medeiros Garcia de Lima mesmo provável, do distante futuro. Deve levar em conta o estado de coisas existentes no momento em que ela deve ser aplicada, pois somente assim assegura o progresso do Direito, um progresso razoável para uma evolução lenta. 1 Perfil biográfico de Clóvis Beviláqua 1.1 Nascimento e infância Clóvis Beviláqua foi um notável jurista, filósofo, literato e historiador brasileiro. Nasceu em 4 de outubro de 1859, na cidade de Viçosa do Ceará, a cerca de 350 quilômetros de Fortaleza. A família Beviláqua tem origem italiana (SCHUBSKY, 2006, p. 201). Seu avô paterno, Ângelo Beviláqua, chegou ao Brasil entre o final do século XVIII e o início do seguinte. Instalou-se no Nordeste e se casou com Luiza Gaspar de Oliveira, de ascendência indígena. O avô materno de Clóvis, José Aires da Rocha, era português, enquanto a avó materna, Maria da Costa Ferreira, nasceu no Piauí. O pai do jurisconsulto, o padre e político cearense José Beviláqua, foi vigário de sua cidade natal, Viçosa do Ceará, na serra de Ibiapaba, onde manteve união estável com Martiniana Maria de Jesus. Em seu testamento, José afirmou ter vivido “de portas adentro” com Martiniana, natural do Piauí. Da união, entre outros filhos, nasceu Clóvis. Observe-se que, durante o século XIX, não eram raros elos matrimoniais envolvendo clérigos. O jurista – verifica-se - trazia nas veias a mistura de sangue italiano, português, indígena e brasileiro. É um exemplo da miscigenação referida por Gilberto Freyre: Todo brasileiro, mesmo o alvo, de cabelo louro, traz na alma, quando não na alma e no corpo – há muita gente de jenipapo ou mancha mongólica pelo Brasil – a sombra, ou pelo menos a pinta, do indígena ou do negro (FREYRE, 1983, p. 283). Clóvis era um menino meigo e, desde a infância, mostrouse amigo dos animais, notadamente os pássaros. Antes de completar dez anos, aprendeu as primeiras letras com o pai, padre José. Inclusive rudimentos de francês e latim (SCHUBSKY, 2006, p. 24). Revista do CEJ - n. 5, p. 207-223 - nov. 2015 209 O jurista e filósofo Clóvis Beviláqua 1.2 Formação em Direito Clóvis iniciou os estudos na Faculdade de Direito de Recife, em 1878. Graduou-se em 1882. Nos anos iniciais da faculdade, seu interesse era totalmente voltado para a política e a literatura, mais especificamente a crítica literária. No final do curso, Clóvis passaria a manifestar gosto e vocação pelos assuntos jurídicos e filosóficos. Ao longo da vida, depois de formado, sua produção intelectual multifária desabrocharia em diversos sentidos. Em seus estudos políticos e literários, emergiu o vigoroso defensor dos ideais republicanos e abolicionistas. Ainda em 1882, participou do Clube Republicano Acadêmico e colaborou com o jornal desse agrupamento estudantil, A República. Sob a influência de vultos da inteligência brasileira, especialmente dos pensadores, juristas e escritores sergipanos Tobias Barreto e Sílvio Romero, Clóvis vinculou-se à Escola do Recife, grupo filosófico que representou importante renovação de ideias no país. Na realidade, até o advento da Escola do Recife, não havia qualquer originalidade no pensamento filosófico nacional, profundamente marcado por visão conservadora e arisca às inovações (SCHUBSKY, 2006, p. 28-30). 1.3 Recato e vida familiar Clóvis Beviláqua casou no Recife, em 1884, com Amélia de Freitas. Depois de Clóvis ser convidado para elaborar o Projeto do Código Civil, a família fixou residência definitivamente na cidade do Rio de Janeiro. Segundo a neta Maria Cecília, o avô Clóvis “era um espírito manso, dedicado à esposa, às filhas e à leitura”. Abrigava mais de vinte mil livros em sua casa, no bairro Tijuca. Maria Teresa, outra neta, afirma que, à exceção da cozinha e do banheiro, em todos os outros cômodos da residência havia livros: “nas estantes que iam do chão ao teto, quase três metros de altura, e empilhados pelos cantos”. 210 Revista do CEJ - n. 5, p. 207-223 - nov. 2015 Rogério Medeiros Garcia de Lima O jurista adorava bichos. Seu insólito mundo incluía animais de estimação, às dezenas: gato, cachorro, tartaruga, aves etc. A neta Maria Cecília revela episódio pitoresco. Alguém se dirigira à casa do avô para pegar um parecer por ele concluído. No entanto, Clóvis fez o cliente esperar, porque um gato estava dormindo sobre o volume de papéis. Tranquilamente, avisou: “Vamos esperar o gatinho acordar” (SCHUBSKY, 2006, p. 36-7). A casa dos Beviláqua era uma espécie de “epicentro do saber jurídico do Rio de Janeiro”. Clóvis recebia diariamente a visita de especialistas e, principalmente, estudantes de Direito. Nos fins de semana, promovia “almocinhos”. Eram “eventos jurídico-gastronômicos que combinavam a boa mesa e apaixonados debates sobre Filosofia, Sociologia, Literatura e, claro, Direito” (SCHUBSKY, 2006, p. 37-8). O jurista era apaixonado por Amélia, vivia sempre ao lado da esposa. Ela era escritora e Clóvis rompeu com a Academia Brasileira de Letras, que ajudara a fundar, em função da recusa, pela entidade, em aceitar a inscrição de Amélia para disputar a cadeira de Alfredo Pujol (SCHUBSKY, 2006, p. 40). Inobstante o talento e fama do jurista, Clóvis auferia modesta renda. Disciplinado, acordava todos os dias, por volta das quatro horas. Tomava o café que ele mesmo preparava e voltava ao quarto para trabalhar. Ali, passava praticamente o dia todo, parando apenas para as refeições ou atender os visitantes. 1.4 Morte Embora debilitado fisicamente, no dia em que morreu, 26 de julho de 1944, Clóvis repetiu o ritual cotidiano. Só não preparou o café, porque estava adoentado. Ainda pela manhã, a filha Floriza entrou no quarto e encontrou o pai caído, morto. Sobre a mesa, estava o último texto que Clóvis havia produzido (SCHUBSKY, 2006, p. 38-42). 2 Breve passagem pela política Clóvis Beviláqua, após a Proclamação da República (1889), foi eleito deputado à Assembleia Constituinte do seu Estado natal. Mudou-se Revista do CEJ - n. 5, p. 207-223 - nov. 2015 211 O jurista e filósofo Clóvis Beviláqua para Fortaleza e colaborou ativamente na elaboração da Constituição do Ceará. Todavia, foi a única vez que exerceu mandato político: Convidado, mais tarde, para a Câmara dos Deputados e para o Senado, recusou. Francisco Sá quis indicá-lo para Governador do Ceará, mas Clóvis declinou, cedendo a vez a Justiniano de Serpa, e volta para o magistério no Recife, o seu meio intelectual (ROMÉRO, 1956, p. 55). 3 Literatura Clóvis Beviláqua foi notável escritor e crítico literário. Publicou vários ensaios e se tornou conhecido e respeitado nacionalmente. Foi sócio fundador da Academia Brasileira de Letras. Ocupou a cadeira catorze, cujo patrono era Franklin Távora. 4 Carreira jurídica Escreveu Hermes Lima: Toda a atuação de Clóvis Beviláqua verificou-se no campo intelectual. A política não o seduziu. Não o seduziu a advocacia. Desde muito moço ocupa-se de questões gerais de filosofia, de sociologia, de direito e de literatura (ROMÉRO, 1956, p. 55). Com dificuldade, conseguiu ser nomeado Promotor de Justiça em Alcântara, Maranhão. Não primou pela assiduidade e era pouco produtivo (SCHUBSKY, 2006, p. 30). Em 1889, prestou concurso público e se tornou professor de Filosofia no Curso Anexo da Faculdade de Direito do Recife. A seguir, assumiu a cátedra de Legislação Comparada naquela instituição. Docente dos mais respeitados, escrevera excelentes livros sobre Direito Civil e Legislação Comparada. Em 1899, Epitácio Pessoa, então Ministro da Justiça, convidou-o a escrever o projeto do Código Civil Brasileiro. José Carlos Moreira Alves, Ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal, assinalou a rapidez impressionante com que Clóvis 212 Revista do CEJ - n. 5, p. 207-223 - nov. 2015 Rogério Medeiros Garcia de Lima redigiu o projeto. Desde a sua mudança para a cidade do Rio de Janeiro, vindo de Recife, até a elaboração do texto, decorreram aproximadamente sete meses. Teixeira de Freitas, responsável pela primeira tentativa de elaboração de nossa codificação civil, demorou alguns anos, e não chegou a concluir seu projeto, que já tinha mais de quatro mil artigos. Coelho Rodrigues gastou quase três anos, na Suíça, para a feitura do seu projeto. Concluiu Moreira Alves: Um Código Civil, como bem dizia o professor Miguel Reale, é em verdade a Constituição do homem comum, porque nele se faz o detalhamento dos aspectos de vida que a todos interessa. Daí, sua importância capital. (SCHUBSKY, 2006, p. 177). Clóvis Beviláqua foi assessor jurídico do Ministério das Relações Exteriores, onde, ao longo de muitos anos, produziu excelentes pareceres. Sua casa tornou-se uma espécie de sucursal do Ministério. Tia Dorinha (a primogênita) contava que, em 1934, o governo instalou aqui uma linha telefônica exclusiva para que vovô e o jurisconsulto que assumiu o seu lugar, como consultor do Itamaraty, pudessem conversar’, revela Maria Cecília. A linha só teria sido desligada quando Clóvis morreu. (SCHUBSKY, 2006, p. 28-30). O jurista também elaborava pareceres privados. Eram um alívio financeiro para a família, especialmente depois da sua aposentadoria. Apesar do prestígio alcançado nacional e internacionalmente, Clóvis vivia em situação de penúria. Mesmo sendo uma fonte de renda essencial, [...] dava pareceres a quem batesse à sua porta, sem pensar nos honorários. ‘Dinheiro não tinha a menor importância. Não era raro aparecer alguém aqui para pagar por um parecer que ele sequer lembrava que tinha feito’, acentua Maria Teresa (SCHUBSKY, 2006, p. 38). Em suma, o jurista, professor e político San Tiago Dantas cunhou a expressão “oráculo” para se referir a Clóvis Beviláqua, quando discursou durante sessão da Câmara dos Deputados, de 5 de outubro de 1959, em homenagem ao centenário de nascimento do jurista cearense (SCHUBSKY, 2006, p. 142-143). Revista do CEJ - n. 5, p. 207-223 - nov. 2015 213 O jurista e filósofo Clóvis Beviláqua 5 O pensamento filosófico de Clóvis Beviláqua Não se compreende o pensamento filosófico de Clóvis Beviláqua fora do contexto da Escola do Recife, tantas vezes mencionada neste colóquio. Esse período de efervescência intelectual, na capital pernambucana, coincide com a chamada “Questão Coimbrã”. Foi um movimento, na Universidade de Coimbra, em Portugal, de renovação literária e ideológica, que tinha entre os protagonistas Antero de Quental (SARAIVA e LOPES, s. d., p. 824, 829 e 851; MÓNICA, M. F., 2001, p. 23-24; COUTINHO, Folha de S. Paulo, São Paulo, 2 nov., 2014). A figura nuclear da Escola do Recife era o professor sergipano Tobias Barreto de Menezes, que ingressou em 1882, por concurso, como professor daquela faculdade: Encarnou a luta entre o escolasticismo formalista de uma tradição jurídica imóvel e as últimas correntes laicizantes e revolucionárias que Tobias desejava encarnar. Foi o maior animador intelectual da época, [...] segundo seus discípulos Sílvio Romero e Graça Aranha. (PAES e MASSAUD, 1967, 51-52). Para Fernando de Azevedo, Tobias Barreto, sem ser filósofo ou pensador original, mas antes agitador de ideias e destruidor de rotinas, prestou à cultura nacional serviços assinalados. Atraiu a atenção para os estudos filosóficos, vulgarizou os autores alemães e contribuiu, como nenhum outro, para a renovação das concepções jurídicas no Brasil: A sua coragem indômita e o gosto pela luta que o arrastavam a polêmicas, quase sempre violentas e bravias, como as de Sílvio Romero, outro admirável debatedor de ideias, se lhe tiraram a serenidade para as obras de criação, formaram em torno de seu nome uma atmosfera de batalha e lhe permitiram fazer uma pequena revolução intelectual, de libertação do espírito, numa atmosfera carregada de preconceitos. (AZEVEDO, 1964, p. 340). As primeiras faculdades de Direito surgiram para preparação dos quadros políticos e administrativos do Império brasileiro, logo após a Independência. Com elas, era superada a desvantagem de continuar a tê-los formados, com mentalidade reinol, pela Universidade de Coimbra. 214 Revista do CEJ - n. 5, p. 207-223 - nov. 2015 Rogério Medeiros Garcia de Lima Essa mentalidade ainda estava presente nas sebentas didáticas coimbrãs, associadas às exegeses conservadoras da legislação das Ordenações Afonsinas, Manuelinas e Filipinas do Reino de Portugal. (CHACON, 2008, p. 11-12). André Rebouças escandalizava-se, em 15 de maio de 1864, diante do atraso da Instrução Pública em Pernambuco: Os lentes da Escola de Direito são quase pela mor parte ultramontanos. O direito natural é aí ensinado por Pe. Ventura Caparelli. [...] Os alunos são irmãos de Nossa Senhora do Bom Conselho. Acompanham as numerosas procissões do Recife, vestidos de casaca preta, com opa e trazendo pendentes do pescoço uma medalha com as armas da Escola presas a uma fita vermelha. (CHACON, 2008, p. 89). A Escola do Recife reagiu principalmente com Jhering e Kant: A reação foi iniciada pelos próprios estudantes em ruidosos e frequentes protestos, e aprofundou a movimentação com ‘um bando de ideias novas’ na sua definição por Sílvio Romero, rumo à elaboração do Código Civil de Clóvis Beviláqua e Código Penal de Virgílio de Sá Pereira, aquele aceito nos começos da Primeira República, este recusado ao seu término. (CHACON, 2008, p. 11-12). Para Antonio Paim, a preferência pela vida espiritual, no que ela tem de mais nobre e elevado, caracteriza o projeto da Escola do Recife. Reformar o país é alterar e redirecionar essa camada mais alta de sua tradição cultural, inclusive a meditação de caráter ético. No plano filosófico, a Escola do Recife soube se situar no momento de interseção em que viveu, quando a filosofia se defrontava com a onda positiva contestadora de sua validade. A Escola do Recife desenvolveu interesse pela produção intelectual brasileira, herdada dos primeiros românticos. Despe-a, contudo, da feição ingênua de que se revestira. Esse trabalho assume a forma de inventário. Pretende-se científico e duradouro. À Escola do Recife pode ainda ser atribuído o mérito de ter lançado as bases da sociologia brasileira. Revista do CEJ - n. 5, p. 207-223 - nov. 2015 215 O jurista e filósofo Clóvis Beviláqua No entanto, fracassaram as incursões da Escola do Recife na arena política. A única reforma institucional importante que lhe pode ser atribuída é a elaboração do Código Civil de 1916, devida a Clóvis Beviláqua. (PAIM, 1997, p. 94-96). Miguel Reale denominou de “culturalismo” o movimento, característico da Escola do Recife, que elegeu a filosofia como elemento unificador da variada incursão promovida nos diversos componentes da vida social. Para Tobias Barreto, a cultura é “a antítese da natureza, no sentido de que ela importa uma mudança do natural, no sentido de fazêlo belo e bom”. Designa pelo nome geral de natureza o estado originário das coisas, o estado em que elas se acham depois do seu nascimento, enquanto uma força estranha, a força espiritual do homem, com sua inteligência e vontade, não influi sobre elas e não as modifica (PAIM, 1979, p. 62 e 65). Tobias Barreto acompanhou a mudança processada na ideia de cultura elaborada na Alemanha. Kant e Hegel permitiram-lhe, cada um a seu modo, compreender a cultura como objeto filosófico. Incluía a capacidade humana de estruturar projetos racionais, base da meditação filosófica. Tobias observou as consequências negativas de se reduzir cultura a uma categoria restrita da ciência sociológica, conforme entendiam os positivistas. Compreendeu-a como expressão de valores e, assim, chegou a um conceito de cultura abrangente da ideia de que se trata de uma forma de controle e aperfeiçoamento do homem e de um resultado da ação: A sociedade enquanto conjunto de pessoas em movimento decide pelos valores que ele, formula-os como expressão histórica. Devemos compreender a cultura como um elemento capaz de impor ao sujeito o autoaperfeiçoamento. A cultura passa a ser entendida como um sistema de forças que tem objetivos éticos. A prática cultural provoca a eliminação das anomalias da vida social, e o conceito de seleção natural empregado por Darwin ganha o sentido de uma seleção ética, jurídica, religiosa, intelectual, estética, cuja orientação contraria a noção de evolução biológica. (CARVALHO, 2011, p. 82-83). 216 Revista do CEJ - n. 5, p. 207-223 - nov. 2015 Rogério Medeiros Garcia de Lima Clóvis Beviláqua sintetizava: Assim como o lago, cristalino ou turvo, reflete o firmamento, cada um de nós reflete, fraca ou fortemente, o espírito dominante na época em que vive, porque o homem é parte componente do meio social, cuja influência necessariamente recebe. (ROMÉRO, 1956, p. 17). O pensador cearense era cético ao afirmar: É bem verdade que não podemos apresentar no Brasil um filósofo que incontestavelmente tenha dado contribuição original e indispensável ao pensamento filosófico e científico da humanidade, a ponto de provocar em Tobias Barreto a afirmação de que: ‘não há domínio algum da atividade intelectual em que o espírito brasileiro se mostre tão acanhado, tão frívolo e infecundo como no domínio filosófico’ (Tobias Barreto – ‘Questões Vigentes’ – pág. 245). E o pensador sergipano tinha razão na época em que escreveu, porque pode-se afirmar, em face de indagação histórica, que a Filosofia, nos três primeiros séculos de nossa existência, foi totalmente estranha na literatura nacional, devido ao abandono da colônia, e, ainda mais, ao atraso da metrópole, em relação ao pensamento filosófico da época. Foi preciso avançar quase um século mais, para que se deparasse com algum produto desta ordem, e, assim mesmo, como uma pequena realidade. Entretanto, se nada criamos de original no domínio filosófico, refletiu sempre a nossa mentalidade, mais ou menos intensamente, com firmeza de convicção variável, as tentativas de interpretação do mundo que a ciência universal engendra. Ao tempo em que escrevia Tobias aquelas palavras, estávamos assistindo ao mais brilhante surto, que, no campo filosófico, até então, havíamos conhecido; e, porque Portugal não tinha filósofos, era natural que as nossas vistas se voltassem para outros países, principalmente a França, que, desde longos anos, tem sido a nossa metrópole intelectual, apesar das concessões mais francamente feitas, agora, à literatura alemã, à inglesa, à italiana e à russa (ROMÉRO, 1956, p. 169). Revista do CEJ - n. 5, p. 207-223 - nov. 2015 217 O jurista e filósofo Clóvis Beviláqua Clóvis não foi um filósofo criador e original, mas era dotado de inexcedível habilidade para assimilar o que havia de bom em novas ideias. (ROMÉRO, 1956, p. 170). Foi um livre pensador e definiu filosofia como “a mais alta generalização dos conhecimentos humanos fornecidos pelas ciências particulares”. Para ele, o “caráter essencial da filosofia, o que a distingue de todos os outros conhecimentos, é a universalidade” (ROMÉRO, 1956, p. 171 e 198). Ainda moço, foi influenciado pelo grande movimento filosófico nascido e propagado na França, sob a influência de Auguste Comte. Esse movimento repercutiu no Brasil através dos grandes vultos de Miguel Lemos e Teixeira Mendes. Atraiu figuras das mais representativas da cultura brasileira, como Benjamin Constant, Martins Júnior, Clodoaldo de Freitas, Pereira Barreto e tantos outros, quase todos adeptos do regime republicano. (ROMÉRO, 1956, p. 172). A Proclamação da República no Brasil, em 1889, decorreu de um movimento militar inspirado pelo ideário positivista. A bandeira nacional, desde então, ostenta o dístico “Ordem e Progresso”: Os oficiais que se reuniam (à volta do Marechal Floriano Peixoto) possuíam outras características. Eram jovens que haviam frequentado a Escola Militar e recebido a influência do positivismo. Concebiam sua inserção na sociedade como soldados-cidadãos, com a missão de dar um sentido aos rumos do país. A República deveria ter ordem e também progresso. Progresso significava [...] a modernização da sociedade através da ampliação dos conhecimentos técnicos, do crescimento da indústria, da expansão das comunicações. (FAUSTO, 1994, p. 246). No Rio, onde fez estudos preparatórios, recebeu Clóvis Beviláqua os primeiros ensinamentos do positivismo, por intermédio dos trabalhos de Miguel Lemos, mas se firmou na doutrina no Recife, lendo o próprio Comte. Aprimorou seus conhecimentos com o estudo dos trabalhos de Littré e S. Mill, os dois maiores comentaristas do positivismo. Mais tarde, estudou a fundo todos os sistemas e concepções filosóficos, lendo monistas e dualistas, cepticistas e moralistas, 218 Revista do CEJ - n. 5, p. 207-223 - nov. 2015 Rogério Medeiros Garcia de Lima enciclopedistas e ideologistas, pessimistas e otimistas, ecletistas e sensualistas, teologistas e misticistas, quietistas e dogmatistas, positivistas e evolucionistas. Decorrido algum tempo, Clóvis Beviláqua notou algumas falhas na doutrina do positivismo e passou a se dedicar ao transformismo darwínico, depois ao monismo haeckeliano, para terminar firmando-se no evolucionismo spenceriano, talvez devido à influência de Tobias Barreto e Sílvio Romero, que a princípio foram também comtistas. Entretanto, Clóvis não se submeteu incondicionalmente ao grande pensador inglês, naqueles pontos em que o evolucionismo ainda não conseguiu convencer plenamente, nem calar as rebeldias da crítica, como na classificação dos conhecimentos humanos, na teoria sobre o desenvolvimento das ideias religiosas e na tentativa de conciliação entre a religião e a ciência (ROMÉRO, 1956, p. 172). Considerava o agnosticismo, sem dúvida, uma das notas fundamentais da filosofia deste século: Porém o sábio que afasta em todos os domínios da natureza a intervenção do sobrenatural não poderá, sem notável inconsequência, fazer do que ele ainda não conhece uma redoma onde vá colocar um princípio que ele ainda conhece menos. ‘Prefiro considerar a religião como uma criação fundamental do espírito humano sim, porém que emudece quando o verdadeiro sábio a interroga sobre as dúvidas que lhe atormentam o espírito indagador’ (Clóvis Beviláqua – ‘Sílvio Romero’ – Lisboa, 1905 – pág. 41). (ROMÉRO, 1956, p. 197-198). Em síntese: Clóvis Beviláqua foi um espírito aberto à compreensão e à tolerância ideológica, mesmo quando seu pensamento era divergente. Não fez da Filosofia o maior motivo de suas preocupações mentais; mas durante vários anos teve nela um objetivo consciente de realização, estruturado e definido através de páginas que evidenciam uma inteligência superior. Foi o direito que atraiu, em definitivo, o seu espírito; jamais, porém, abandonou a visão filosófica dos problemas humanos na pesquisa jurídica. A sua obra de jurista tem sangue de pensador da Filosofia: é uma das raízes mais penetrantes de sua grandeza. (NOGUEIRA, 1959, p. 45-46). Revista do CEJ - n. 5, p. 207-223 - nov. 2015 219 O jurista e filósofo Clóvis Beviláqua 6 A Filosofia do Direito em Clóvis Beviláqua Para Antonio Paim, o momento áureo da Escola do Recife não está na filosofia, mas na Filosofia do Direito. Pela primeira vez em nossa cultura, o Direito é transformado em fenômeno histórico, sujeito a se desenvolver no tempo e ligado à vida. Tobias Barreto, seguindo Jhering, mas igualmente contribuindo com ideias próprias, proclamou que, no imenso mecanismo humano, o Direito figura também como uma das peças de torcer e ajeitar, em proveito da sociedade, o homem da natureza. Não mais o direito natural abstrato e divinizado, mas o fenômeno histórico, produto cultural da humanidade, ligado à violência e à luta. Numa expressão magistral Tobias Barreto diria que “a força que não vence a força não se faz direito; o direito é a força que matou a própria força” (PAIM, 1997, p. 96). Prossegue Barreto: Dizer que o direito é um produto da cultura humana importa negar que ele seja, como ensinava a finada escola racionalista e ainda hoje sustentam os seus póstumos sectários, uma entidade metafísica, anterior e superior ao homem. A proposição do programa é menos uma tese do que uma antítese; ela opõe à velha teoria, fantástica e palavrosa, do chamado direito natural, a moderna doutrina positiva do direito oriundo da fonte comum de todas as conquistas e progressos da humanidade em seu desenvolvimento. [...] Quando, pois, dizemos que o direito é um produto da cultura humana, é no sentido de ser ele um efeito, entre muitos outros, desse processo enorme de constante melhoramento e nobilitação da humanidade; processo que começou com o homem, que há de acabar somente com ele, e que aliás não se distingue do processo mesmo da história (BARRETO, 2001, p. 31-33). Clóvis Beviláqua também assinalou suas concepções jurídicas: Não é preciso discutir agora as diferentes definições dadas ao direito por filósofos e juristas. Seria ocioso. Como resultado de indagações anteriores, estabeleçamos que, sociologicamente, 220 Revista do CEJ - n. 5, p. 207-223 - nov. 2015 Rogério Medeiros Garcia de Lima o direito é uma regra social obrigatória, quer sob a forma de lei, quer sob a de costume. É desse ponto de vista que Jhering o define: ‘complexo das condições existenciais da sociedade, coativamente asseguradas pelo poder público’. Olhando-o por esse mesmo aspecto, disse Stammler que o direito não é mais do que ‘o modo pelo qual os homens realizam, em comum, a sua luta pela existência’[...]. Era preciso dar ao direito maior elasticidade, para que ele não fosse um entrave à evolução social, que, afinal, depois de alguma resistência, passaria por cima da lei assaz rígida, desorganizando a função normal das fontes jurídicas dos tempos modernos. Percebeu-o, inteligentemente, um dos mais ilustres mestres da Faculdade de Paris, Bufnoir. Compreendendo que o direito oferece uma extensão maior do que a dos textos, e que não é a lógica o único instrumento de que se deve servir o intérprete, ensina que ‘a ciência do direito deve dobrar-se às exigências da vida real, e a solução que preconiza é a mais em harmonia com as necessidades e as tendências da sociedade, no meio da qual desenvolve as suas doutrinas’. Esta orientação é seguida por Saleilles, que desenvolve o ponto de vista do Bufnoir; por Geny, que dá um passo adiante e quer estabelecer o prestígio da livre indagação científica, ‘inspirando-se nos resultados fornecidos por todas as disciplinas, que, analisando o mundo social, revelam, na sua estrutura íntima e nas suas exigências profundas, o que se pode chamar de natureza positiva das coisas; por Lambert, o profundo e erudito escritor do Droit civil comparé, e por muitos outros. Esta feição nova da doutrina em França e as audácias crescentes de jurisprudência, mostram, de um lado, que as ideias sobre interpretação já não satisfazem mais hoje as exigências do momento; que a lei não é a fonte única do direito; e que a vida social reagem incessantemente sobre o direito. (BEVILAQUA, 1976, p. 17, 18, 47 e 48; grifos no original). A grande contribuição do jurista Clóvis Beviláqua – um dos maiores, senão o maior que o Brasil conheceu – ainda se faz presente na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, a mais alta Corte nacional para interpretação da lei federal: O jurista, salientava Pontes de Miranda em escólio ao Código de 1939 XII/23, ‘há de interpretar as leis com o espírito ao nível Revista do CEJ - n. 5, p. 207-223 - nov. 2015 221 O jurista e filósofo Clóvis Beviláqua do seu tempo, isto é, mergulhado na viva realidade ambiente, e não acorrentado a algo do passado, nem perdido em alguma paragem, mesmo provável, do distante futuro’. ‘Para cada causa nova o juiz deve aplicar a lei, ensina Ripert (Les Forces Créatives du Droit, p. 392), considerando que ela é uma norma atual, muito embora saiba que ela muita vez tem longo passado’; ‘deve levar em conta o estado de coisas existentes no momento em que ela deve ser aplicada’, pois somente assim assegura o progresso do Direito, um progresso razoável para uma evolução lenta. (trecho do voto do ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, relator do Recurso Especial n. 196-RS, in Revista dos Tribunais, vol. 651, janeiro de 1990, pp. 170-173). 222 Revista do CEJ - n. 5, p. 207-223 - nov. 2015 Rogério Medeiros Garcia de Lima Referências AZEVEDO, F. de. A cultura brasileira – introdução ao estudo da cultura no Brasil. 4 ed. São Paulo: Melhoramentos, Obras Completas, vol. XIII, 1964. BARRETO, T. Introdução ao estudo do Direito – política brasileira. São Paulo: Landy, 2001. BEVILAQUA, C. Teoria geral do Direito Civil. 2 ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, revista e atualizada por Caio Mário da Silva Pereira, 1976. CARVALHO, J. M. de. Miguel Reale: ética e filosofia do Direito. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2011. CHACON, V. Formação das ciências sociais no Brasil (Da Escola do Recife ao Código Civil). 2 ed. São Paulo: Fundação Editora da Unesp, 2008. COUTINHO, João Pereira. Eça agora! Folha de S. Paulo, São Paulo, 2 nov., 2014, Caderno Ilustríssima, p. 4-5. FAUSTO, B. 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Portanto, a ideia da presente monografia é apontar a definição dos direitos da personalidade e sua diferença em relação aos direitos fundamentais, principalmente em razão dos referidos institutos terem a mesma fonte ética da dignidade da pessoa humana como forma de proteção da pessoa. Palavras-chave: Direitos da Personalidade. Características. Natureza. Direitos Fundamentais. Conceito. Resumen: La presente monografía pretende analizar los derechos de la personalidad, su concepto, naturaleza jurídica y relación con los derechos fundamentales. La persona es el fin del derecho, representa un valor a tutelar en protección del su interés moral y material y en el desenvolvimiento de su personalidad. Asi, los derechos de la personalidad son biens essenciales de la persona. Su naturaleza jurídica es construida por determinados atributos, cualidad física o moral de la persona, individualizadas por lo ordenamiento jurídico que no si confunde con los derechos fundamentales. Por tanto, la idea de la presente monografía es 203 BELTRÃO, Silvio Romero. Direito da Personalidade: Natureza Jurídica, Delimitação do Objeto, Relações com o Direito Constitucional. In: Joyceane Bezerra de Menezes. (Org.). Dimensões Jurídicas da Personalidade na Ordem Constitucional Brasileira. 1 ed. Florianópolis: Conceito, 2010, v. 1, p. 471-489. ISBN: 978-85-78-740917. 204 Juiz de Direito, Mestre e Doutor em Direito Civil pela UFPE, professor de Direito Civil da UFPE. Revista do CEJ - n. 5, p. 225-246 - nov. 2015 225 Direito da personalidade – natureza jurídica, delimitação do objeto e relações com o Direito Constitucional apuntar la definición de los derechos de la personalidad y su distinción con los derechos fundamentales, principalmente en razón de los referidos institutos tienen la misma fuente de la dignidad de la persona como forma de protección de la persona. Palabra-ll ave: Derecho de la personalidad. Concepto. Caracteres. Naturaleza. Derechos fundamentales. 1 A pessoa humana no ordenamento jurídico civil Segundo a atual tendência jurídica, o termo pessoa natural individualiza em nosso ordenamento jurídico o ser humano enquanto expressão conclusiva do processo biológico que se inicia com a concepção e vai até o nascimento. A pessoa natural, em sua realidade e experiência, representa um valor a tutelar em suas inúmeras formas de expressão, em seu interesse moral e material e no desenvolvimento de sua personalidade. Representa, de acordo com um reconhecimento unânime, o fim último da norma jurídica. Do ponto de vista do direito positivo, a individualização do fundamento real do conceito jurídico de pessoa natural reporta-se às experiências da vida que constituem a base de qualquer valor da realidade humana; contudo, põe-se imediatamente o problema da identificação da norma ou do princípio normativo, no qual atua a formalização do valor da pessoa, ou seja, a transformação do conceito do valor da pessoa natural na realidade da vida para um valor jurídico. (CENDON, 2000, p. 5). Há na doutrina, porém, a controvérsia quanto ao surgimento da tutela jurídica da personalidade, para doutrinadores como Menezes Cordeiro (2007, p. 47), a proteção da pessoa tem importante antecedente na actio iniuriarum do Direito Romano205, apesar de ainda não existir a figura do Direito Subjetivo, naquela época.206 Por sua vez, Maria Celina Bodin de Moraes (TEPEDINO et al, 2004, p. 31) esclarece que somente a partir do século XIX, com a elaboração das 205 “Todavia, a tutela da personalidade estava já consignada, no Direito romano. O Direito – particularmente o civil – existe para defender as pessoas, sendo sintomático que, desde cedo, os hoje ditos bens de personalidade tivessem obtido proteção. A idéia de que a dignidade das pessoas data do liberalismo não é historicamente exacta.” (CORDEIRO, 2007, p. 47). 206 Nesse mesmo sentido Elimar Szaniawski (SZANIAWSKI, 2005, p.25). 226 Revista do CEJ - n. 5, p. 225-246 - nov. 2015 Silvio Romero Beltrão doutrinas francesa e alemã, que se iniciou a construção dos direitos da personalidade.207 A transposição histórica do valor real da pessoa natural para o seu valor jurídico tem percorrido um caminho complexo e longo, que se pode sinteticamente reconstruir. O termo “pessoa” foi utilizado pela primeira vez em seu sentido técnico pelos juristas do século XVI, unido sempre ao conceito de capacidade jurídica. (CENDON, 2000, p. 6). No século seguinte, a liberdade pessoal aparece como objeto de estudo de Grozius, enquanto que a expressão “direito da personalidade” se pode atribuir a Gierke, o qual, no fim do século XIX, individualizava os aspectos pertinentes ao indivíduo, como a vida, a honra, a liberdade física e o nome. (CENDON, 2000, p. 6). Na contradição de uma sociedade que lutava contra o privilégio de classe e que, todavia, teorizava o privilégio do Rei, não se visualizava espaço para colocar a tutela da personalidade em termos completos, como valor absoluto. Somente mais tarde começa a prosperar a possibilidade de estruturar a sociedade sobre a base da reciprocidade entre indivíduo e soberano (com obrigações e direitos recíprocos), a qual é concebida com a teorização da divisão dos poderes. (PERLINGIERI apud CENDON, 2000, p. 6). O reconhecimento da existência de um direito natural do homem une-se à Declaração solene com a qual se proclamava na França revolucionária o Direito do Cidadão e a liberdade e igualdade de todos os “homens”. Com a Revolução Francesa, portanto, obtém-se a afirmação da existência de um direito inato ao homem, inserido no contexto histórico de contraposição ao Estado. (CENDON, 2000, p. 6). Ainda sob o ponto de vista histórico, os conceitos de pessoa e de homem nem sempre tiveram correspondência. No período da escravidão, despia-se o homem da condição de sujeito de direito para considerá-lo coisa, desprovido da faculdade de ser titular de direitos, ocupando na relação jurídica a situação de objeto. (PEREIRA, 1999, p. 142). 207 “Foi contudo, somente no século XIX, a partir da elaboração das doutrinas francesa e alemã , que se começou a edificar a construção dos direitos atinentes à tutela da pessoa humana, considerados essenciais à esfera de proteção de sua dignidade e integridade, denominando-se-lhes direitos da personalidade.”(TEPEDINO et al, , 2004, p.31.). Revista do CEJ - n. 5, p. 225-246 - nov. 2015 227 Direito da personalidade – natureza jurídica, delimitação do objeto e relações com o Direito Constitucional No sentido jurídico, é para a pessoa que o direito foi feito, conceituando-se pessoa todo ser humano capaz de direitos e obrigações. O direito atribui à pessoa, a qualidade de sujeito de direitos como conteúdo fundamental e finalístico da ordem jurídica, conforme a expressão de Hermogeniano: “omme ius causa hominum constitutum est”. ” (ASCENSÃO, 1997, p. 38; PUERCHE, 1997, p. 17; PEREIRA, 1999, 142). Assim, o Código Civil de 2002 atribui à pessoa a capacidade de direitos e deveres na ordem civil, tal como fazia o Código Civil de 1916, que utilizava a expressão “todo homem” para representar o ser humano. Como a pessoa é o sujeito das relações jurídicas e a personalidade a faculdade a ele reconhecida, pode-se dizer que toda pessoa é dotada de personalidade. (PEREIRA, 1999, p. 142). Uma das principais inovações do Código Civil de 2002 é a inclusão em seu texto dos direitos da personalidade, seguindo uma fórmula antes apresentada pelo Código Civil Italiano e Português, com a valorização da pessoa e suas conquistas. Assim, o nosso estudo irá concentrar-se na pessoa natural, o ser humano, em face dos Direitos da Personalidade e seu regime jurídico, descrevendo, principalmente, a distinção com os Direitos Fundamentais. 2 O conceito de direito da personalidade A Constituição da República Federativa do Brasil tem como um dos seus princípios fundamentais a dignidade da pessoa humana, a qual revela o mais primário de todos os direitos, na garantia e proteção da própria pessoa como um último recurso, quando a garantia de todos os outros direitos fundamentais se revele excepcionalmente ineficaz, proclamando a pessoa como fim e fundamento do direito. (MIRANDA, 1993, p. 166). Os direitos e garantias fundamentais instituídos no art. 5º da Constituição Federal têm como fonte ética, a dignidade da pessoa humana como forma de proteção e desenvolvimento da pessoa. Em face do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, pode-se dizer que a pessoa é o bem supremo da ordem jurídica, o seu fundamento e seu fim. Sendo possível concluir que o Estado existe 228 Revista do CEJ - n. 5, p. 225-246 - nov. 2015 Silvio Romero Beltrão em função das pessoas e não o contrário, a pessoa é o sujeito do direito e nunca o seu objeto. (ASCENSÃO, 1997, p. 64). Não há valor que supere o valor da pessoa humana (SANTOS, 1999, p. 93). É nesse sentimento de valor que se fundamenta o direito da personalidade como projeção da personalidade humana. Com os direitos da personalidade, quer-se fazer referência a um conjunto de bens que são tão próprios do indivíduo, que chegam a se confundir com ele mesmo e constituem as manifestações da personalidade do próprio sujeito. (MOTES, 1993, p. 29). Francesco Messineo apresenta os direitos da personalidade como limites impostos contra o poder público e contra os particulares, atribuindo à pessoa um espaço próprio para o seu desenvolvimento, que não pode ser invadido, recebendo uma proteção específica do direito. Os direitos da personalidade designam direitos privados fundamentais, os quais devem ser respeitados como o conteúdo mínimo para a existência da pessoa humana, impondo limites à atuação do Estado e dos demais particulares, contudo, tal conceituação não é suficiente para determinar especificamente quais direitos são ou não da personalidade, sem que exista uma tipificação, vez que a posição de Messineo é a de que os direitos da personalidade só se operam por força de lei. (1950, p. 04). Por outro lado, defendendo uma posição naturalista, Carlos Alberto Bittar (2000, p. 07) entende que os direitos da personalidade constituem direitos inatos, cabendo ao Estado apenas reconhecê-los e sancioná-los em um ou outro plano do direito positivo, dotando-o de proteção própria contra o arbítrio do poder público ou contra as incursões de particulares. Ora, a posição naturalista defende a ideia de que existem e merecem respeito direitos da personalidade, mesmo não tipificados pelo ordenamento jurídico, valendo-se do princípio geral da proteção da dignidade da pessoa humana. (PONTES DE MIRANDA, 2000, p. 39). Os direitos da personalidade vêm tradicionalmente definidos como direitos essenciais do ser humano, os quais funcionam como o conteúdo mínimo necessário e imprescindível da personalidade humana (CHAVES, 1982, p. 39). A justificativa teórica para atribuir o caráter de direitos inatos aos direitos da personalidade volta-se à circunstância de se Revista do CEJ - n. 5, p. 225-246 - nov. 2015 229 Direito da personalidade – natureza jurídica, delimitação do objeto e relações com o Direito Constitucional tratarem de direitos essenciais, naturais à pessoa humana que remetem a sua existência ao mesmo momento e ao mesmo fato da existência da própria pessoa. A teoria do direito inato é consequência da reação contra o extrapolamento de poderes do Estado que acompanhou a Revolução Francesa em sua fase principal. Naquele período, pretendia-se reconhecer um direito preexistente ao Estado, reconhecido e não criado por ele. Assim, pode-se definir os direitos da personalidade como categoria especial de direitos subjetivos que, fundados na dignidade da pessoa humana, garantem o gozo e o respeito ao seu próprio ser, em todas as suas manifestações espirituais ou físicas. (PUERCHE, 1997, p. 43). 3 Características dos direitos da personalidade O Código Civil de 2002208 define algumas das características dos direitos da personalidade quando destaca o seu aspecto intransmissível e irrenunciável, como elementos resultantes da infungibilidade própria da pessoa, que não permite que eles sejam adquiridos por outras pessoas, em face da ligação íntima do direito com a personalidade. (PONTES DE MIRANDA, 2000, p. 31). O caráter intransmissível do direito da personalidade determina que ele não pode ser objeto de cessão e até mesmo de sucessão, por ser um direito que expressa a personalidade da própria pessoa do seu titular e que impede a sua aquisição por um terceiro por via da transmissão. Nesse sentido, são irrenunciáveis, pois a pessoa não pode abdicar de seus direitos da personalidade, mesmo que não os exercite por longo tempo, uma vez que ele é inseparável da personalidade humana. Contudo, apesar do direito da personalidade não ser renunciável, o seu exercício pode ser restringido em alguns casos, sem que haja a perda do direito, e restabelecido a qualquer tempo. (BITTAR, 2000, p. 11). Os direitos da personalidade são pessoais em face de seu caráter não patrimonial, o que não impede que eles fundamentem ações de responsabilidade civil (ASCENSÃO, 1997, p. 83). E não menos interessante é a experiência da relação com o direito patrimonial, em 208 Código Civil/02, art. 11: “Com exceção dos casos previstos em lei, os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária”. 230 Revista do CEJ - n. 5, p. 225-246 - nov. 2015 Silvio Romero Beltrão face do nexo instrumental existente entre os bens inerentes à pessoa e os bens patrimoniais. Ao contrário do que perdurou por bastante tempo em nossa ordem jurídica, os bens da personalidade possuem uma correlação imediata com o interesse econômico, onde diante da evolução social e correspondente disposição constitucional e civil, há um reflexo patrimonial nos direitos da personalidade. É certo que, o remédio contra lesões aos direitos da personalidade são, de fato, as aplicações de medidas próprias que visem à cessação da ofensa e a reintegração específica do bem violado, acrescido do ressarcimento patrimonial. Os direitos da personalidade são absolutos em face do seu caráter erga omnes, em que a sua atuação se faz em toda e qualquer direção, sem a necessidade de uma relação jurídica direta para se respeitar este direito. Indiretamente, há uma obrigação negativa, em que todas as pessoas devem respeitar a personalidade do titular do direito.209 Contudo, Menezes Cordeiro entende que apesar dos direitos da personalidade serem apresentados como direitos absolutos, tal expressão não é unívoca, devendo ser precisada. O direito à confidencialidade de uma carta missiva confidencial é, antes de mais, uma pretensão dirigida ao destinatário da carta. Se o próprio autor da carta a lançar na comunidade, não lhe caberá, depois, queixar-se de quebras de confidencialidade. Do mesmo modo, o direito à confidencialidade das relações que se estabeleçam entre o médico e o seu paciente ou entre o advogado e o seu constituinte é, pelo menos, em primeira linha, invocável inter partes. (CORDEIRO, 2007, p. 103). Por sua vez, apesar do caráter absoluto dos direitos da personalidade, eles não são ilimitados, sendo susceptíveis de limitações impostas pelo próprio direito objetivo e em razão da necessidade de conjugação com outras situações protegidas. (ASCENSÃO, 1997, p. 83). Em face de seu caráter essencial, a maior parte dos direitos da personalidade são direitos inatos, como direitos originários que nascem com a própria pessoa, sendo também imprescritíveis, onde a omissão no seu exercício não provoca a extinção do direito. Alguns direitos da personalidade podem ser, em certas situações, 209 “Qualquer pessoa os pode violar, incorrendo no dever de não o fazer” (Cordeiro, 2007, p. 103). Revista do CEJ - n. 5, p. 225-246 - nov. 2015 231 Direito da personalidade – natureza jurídica, delimitação do objeto e relações com o Direito Constitucional restringíveis através de negócios jurídicos. Esses limites negociais são relativos às convenções estabelecidas pelas partes, além dos limites legais, pois, apesar de seu caráter essencial, não implica dizer que eles são totalmente excluídos das atividades negociais. (ASCENSÃO, 1997, p. 85). Assim, alguém que abre mão voluntariamente de seu direito à intimidade ou à privacidade em programa de televisão, não está ferindo princípio inerente à dignidade da pessoa humana. No direito civil português, há disposição expressa possibilitando a limitação voluntária ao exercício do direito da personalidade, desde que não seja contrária aos princípios de ordem pública. Pode-se então verificar que a exposição voluntária da privacidade de uma determinada pessoa não fere princípio de ordem pública. Ou seja, o acto lesivo dos direitos da personalidade é lícito quando o lesado tenha consentido na lesão, desde que o respectivo consentimento não seja contrário a uma proibição legal ou aos bons costumes. O consentimento do lesado é aqui um acto jurídico unilateral, meramente integrativo da exclusão da ilicitude, ou seja, não constitutivo, na medida em que não cria qualquer direito para o agente lesado. (SOUZA, 1995, p. 411). O Código Civil de 2002210 preferiu redação mais complicada, determinando que somente nos casos previstos em lei poderá haver limitação voluntária do exercício dos direitos da personalidade, onde é bastante difícil normatizar quais atos podem sofrer ou não limitação voluntária no seu exercício. Contudo, deve-se levar em consideração se na restrição do exercício de certos direitos da personalidade, há violação ao princípio geral da preservação da dignidade humana e o respeito ético da pessoa humana como atributo de uma cláusula geral.211 Sendo assim, mesmo havendo limitação voluntária ao exercício do direito da personalidade, não haverá a perda desse direito pelo seu titular, sendo sempre revogável a autorização concedida no negócio jurídico. Mas, apesar de lícita a revogação da autorização, o titular do 210 Art. 11. CC: “Com exceção dos casos previstos em lei, os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária”. 211 “No mesmo sentido, na Jornada de Direito Civil, promovida pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal (CEJ), foi aprovado o enunciado n. 4, segundo o qual ‘o exercício dos direitos da personalidade pode sofrer limitação voluntária, desde que não seja permanente nem geral’ (Ruy Rosado, Jornada de Direito Civil, p. 51 in TEPEDINO et al, 2004, p. 34). 232 Revista do CEJ - n. 5, p. 225-246 - nov. 2015 Silvio Romero Beltrão direito ficará obrigado a indenizar as legítimas expectativas criadas na outra parte. É um exemplo típico de responsabilidade civil por ato lícito. (ASCENSÃO, 1997, p. 85). Dessa forma, a disponibilidade do exercício de certos bens da personalidade, tais como o direito à imagem, tem como fundamento principal a autorização expressa do titular, prevendo os modos de divulgação e exercício do direito (BITTAR, 200, p. 45). Nesse sentido, permite-se ao titular do direito, a correspondente remuneração pelo direito exercido. Contudo, mesmo havendo autorização do titular para o exercício do direito da personalidade, tal autorização é sempre revogável, ficando, porém, o titular do direito obrigado a indenizar o dano causado às legítimas expectativas da outra parte.212 Por sua vez, Menezes Cordeiro analisando o caráter não patrimonial dos Direitos da Personalidade, impõe algumas distinções: Direitos de personalidade não-patrimoniais em sentido forte: o Direito não admite que os correspondentes bens sejam permutados por dinheiro: o direito à vida, o direito à saúde e à integridade corporal; Direitos de personalidade não-patrimoniais em sentido fraco: eles não podem ser abdicados por dinheiro embora, dentro de certas regras, se admita que surjam como objecto de negócios patrimoniais ou com algum alcance patrimonial; assim sucede com o direito à saúde ou à integridade física, desde que não sejam irreversivelmente atingidos, nos termos que regem a experimentação humana. Direitos de personalidade patrimoniais: representam um valor econômico, são avaliáveis em dinheiro e podem ser negociados no mercado: nome, imagem e fruto da actividade intelectual. (CORDEIRO, 2007, p. 106). Os direitos da personalidade, apesar de serem considerados absolutos, sofrem limitações em seu exercício. É certo que a unidade normativa do direito da personalidade integra-se em nosso ordenamento 212 “A que vem então o dever de indemnizar? A revogação é acto lícito ou ilícito? Supomos que é lícito. Mas a tutela da personalidade leva a que sejam causados danos a quem nenhuma responsabilidade teve. Nesse conflito, a lei intervém, impondo como contrapartida ao titular o dever de indemnizar esses danos. É um caso de responsabilidade civil por actos lícitos”. (ASCENSÃO, 1997, p. 86). Revista do CEJ - n. 5, p. 225-246 - nov. 2015 233 Direito da personalidade – natureza jurídica, delimitação do objeto e relações com o Direito Constitucional jurídico com outros direitos e poderes de conteúdo jurídico diverso, com suas próprias valorações. (SOUZA, 1995, p. 515). Esses limites podem ser intrínsecos ou extrínsecos. Será intrínseco, quando demarcado pela própria lei que estabelece o seu conteúdo, como uma pré-delimitação do domínio de aplicação do respectivo direito. Será extrínseco, quando resultar da conjugação com outras situações protegidas (ASCENSÃO, 1997, p. 84), tendo em vista que os interesses protegidos pelo direito da personalidade podem conflitar com outros direitos e poderes protegidos na ordem jurídica. A imposição de limites aos direitos da personalidade, diante do complexo normativo do sistema jurídico, em face da dinâmica do próprio direito, demonstra que o seu exercício deve corresponder aos interesses e fins sociais. Assim, o caráter absoluto dos direitos da personalidade não pode significar uma liberdade arbitrária atribuída ao seu titular, devendo, pois, sofrer limitações do direito na própria lei que o instituiu e diante da dinâmica do direito em face da conjugação com outras situações protegidas; deve sofrer limitações valoradas, objetivamente segundo os interesses e fins sociais da ordem jurídica213. É que, correspondendo também os direitos de personalidade a interesses ou fins jurídicos, não só o seu titular no respectivo exercício não poderá, como vimos, exceder manifestamente os limites impostos pelo fim social ou econômico desses direitos, como também o próprio valor relativo de um concreto modo de exercício de um direito de personalidade subjectivado conflitual depende, em certa medida, das conseqüências objectivas dele decorrentes, da natureza e da intensidade dos interesses ou fins efectivamente prosseguidos pelo respectivo titular e do posicionamento de tais conseqüências objectivas e interesses ou fins subjectivos na hierarquia dos interesses ou fins juridicamente tutelados por tal direito. (SOUZA, 1997, p. 535). 213 O Código Civil Português em seu artigo 335 dispõe de norma específica para a solução dos conflitos diante do exercício de direitos. Art. 335 do Código Civil Português:“1- Havendo colisão de direitos iguais ou da mesma espécie, devem os titulares ceder na medida do necessário para que todos produzam o seu efeito, sem maior detrimento para qualquer das partes. 2- Se os direitos forem desiguais ou de espécie diferente, prevalece o que deva considerar-se superior”. 234 Revista do CEJ - n. 5, p. 225-246 - nov. 2015 Silvio Romero Beltrão 4 Natureza jurídica dos direitos da personalidade A determinação dos direitos da personalidade decorre da sua própria função, consistente na satisfação das necessidades próprias das pessoas, que estão a elas ligadas num nexo muito estreito, que poderia dizer orgânico, e identificam-se com os mais elevados, entre todos os bens susceptíveis de senhorio jurídico. Assim, os bens da vida, da integridade física, da liberdade, apresentam-se de imediato como bens máximos, sem os quais os demais perdem todo o valor. (CUPIS, 1959, p. 29). A natureza jurídica dos direitos da personalidade foi bastante discutida, argumentando vários autores que não poderia existir o direito da pessoa sobre si mesmo, pois estaria se justificando o suicídio. (BITTAR, 2000, p. 04). O objeto dos direitos da personalidade não é, portanto, exterior ao sujeito, diferentemente dos demais bens. Porém, esta não exterioridade não significa dizer que a pessoa e os bens da personalidade são idênticos, pois o modo de ser da pessoa não é a mesma coisa da pessoa, do contrário, entenderíamos que a pessoa seria ao mesmo tempo sujeito e objeto de si própria, representando um ius in se ipsum.214 Adriano de Cupis, em sua obra I Diritto della Personalità é da opinião de que a inadmissibilidade da teoria ius in se ipsum é um defeito de construção jurídica e não uma apriorística impossibilidade lógica. Vez que é difícil compreender como alguém possa ter como próprios, animais que tenha adquirido, como direito da propriedade, e não possa ter direitos sobre a sua mão, os seus pés e sua cabeça. (1959, p. 30). A objeção aos direitos da personalidade destaca que seria impossível distinguir o sujeito do objeto, vez que a mesma pessoa seria tanto o seu sujeito, quanto o seu objeto. (PUERCHE, 1997, p. 42). Nesse sentido, a pessoa não poderia ser titular de direitos sobre suas qualidades ou partes do corpo, por integrarem um único ser indivisível. É certo que a pessoa é uma realidade física e moral inseparável, onde suas qualidades essenciais integram um único ser indivisível, contudo: 214 “direito sobre a própria pessoa”. Revista do CEJ - n. 5, p. 225-246 - nov. 2015 235 Direito da personalidade – natureza jurídica, delimitação do objeto e relações com o Direito Constitucional A vida, a integridade física, a honra ou a intimidade são partes ou qualidades da pessoa que podem ser intelectualmente objeto de consideração separada e independente, como manifestações diferentes da personalidade. (PUERCHE, 1997, p. 42). Se a inadmissibilidade lógica não pode ser aduzida contra o ius in se ipsum, tampouco a mesma pode ser aduzida contra os direitos da personalidade entendidos como direitos que tem por objeto os modos de ser físicos e morais da pessoa. A vida, a integridade física, a liberdade, e assim por diante constituem aquilo que nós somos. Portanto, não se vê por qual motivo o legislador deveria limitar-se a proteger a categoria do ter, excluindo da própria esfera de consideração a categoria do ser. (CUPIS, 1959, p. 30). A oposição à existência dos direitos da personalidade foi sustentada por Carnelutti que, assinalava que o simples modo de ser de uma pessoa não poderia ser considerado bem jurídico, enquanto que Aurélio Candiam, nesse mesmo sentido, afirmava a necessidade de relações externas da pessoa com seus direitos, para justificar a impossibilidade da existência de bens interiores à pessoa. (CUPIS, 1959, p. 30; BITTAR, 2000, p. 05; PONTES DE MIRANDA, p. 05). Defendendo a existência dos direitos da personalidade, Pontes de Miranda ensina que: O direito à personalidade como tal é direito inato, no sentido de direito que nasce com o indivíduo; é aquele poder in se ipsum, a que juristas do fim do século XV e do século XVI aludiam, sem ser, propriamente, o direito sobre o corpo, in corpus suum potestas. Não se diga que o objeto é o próprio sujeito; nem se pode dizer que, nele, o eu se dirige ao próprio eu. (PONTES DE MIRANDA, 2000, p. 38). Verifica-se que a maioria dos autores que contestam os direitos da personalidade utiliza-se de elementos idênticos aos dos direitos patrimoniais, onde a necessidade de relação jurídica externa com o bem demonstra característica própria do direito da propriedade, o que não acontece com os direitos da personalidade.215 215 “São direitos ínsitos na pessoa, em função de sua própria estruturação física, mental e moral. Daí, são dotados de certas particularidades, que lhes conferem posição singular no cenário dos direitos privados”. (BITTAR, 2000, p. 05). 236 Revista do CEJ - n. 5, p. 225-246 - nov. 2015 Silvio Romero Beltrão Assim, a dificuldade em separar a pessoa de suas qualidades essenciais não pode ser óbice à aceitação dos direitos da personalidade, diante da necessidade de individualização e proteção desses direitos, impedindo que terceiros interfiram na esfera da personalidade humana, garantindo à pessoa o exercício de todas as suas qualidades essenciais. Conclui Adriano de Cupis que: A exigência de um poder, de uma defesa subjetiva aos bens da personalidade decorre do fato de que a sua interioridade não implica automaticamente na sua plena permanência ou conservação. Na verdade, a vida, a integridade física ou a moral podem apesar da sua interioridade em relação ao sujeito escapar ao mesmo, sofrendo diminuição por ação de terceiros, sendo, portanto, necessário um poder jurídico voltado justamente para garantir a plena conservação de tais bens. Uma óbvia exigência de defesa postula que os bens interiores sejam objeto de direito. (CUPIS, 1959, p. 34). A identificação dos direitos da personalidade como direitos subjetivos não aparecia, de fato, pacífica na doutrina. Perlingeri (apud CENDON, 2000, p. 33) assinala que a personalidade não pode ser exaurida na categoria de direito subjetivo, pois, compreende que a subjetividade do direito está ligada à presença própria de um valor, o qual não é encontrado nos direitos da personalidade, que detém a mera disponibilidade de um interesse. Diz o mesmo que, quando se qualifica a situação subjetiva da personalidade como direito subjetivo, não se apresentam em relação à personalidade as categorias dogmáticas do poder, interesse legítimo e dever, elaboradas para classificar situações subjetivas, frustrando-se o problema dos direitos da personalidade, pois, tais categorias não se apresentam em relação à personalidade. A razão de fundo para a oposição a uma identificação dos direitos da personalidade como direito subjetivo está montada no esquema em que foi construído o direito subjetivo, que permanece protegida pelos elementos da propriedade, e na lógica do seu instituto patrimonial é moldada à concepção da estrutura dos direitos individuais. (CENDON, 2000, p. 33). Revista do CEJ - n. 5, p. 225-246 - nov. 2015 237 Direito da personalidade – natureza jurídica, delimitação do objeto e relações com o Direito Constitucional No Brasil, o próprio Teixeira de Freitas (TEIXEIRA DE FREITAS, 1915, p. 77) declarou explicitamente que “se no sentido mais filosófico os direitos da personalidade forem considerados de propriedade, seguirse-á fazê-los entrar na órbita da legislação civil”. Contudo, no direito da personalidade o bem jurídico a tutelar aparece na verdade disfarçado de maneira diversa da qual acontece no direito da propriedade. No direito da personalidade, o bem que o sujeito pretende defender ou adquirir não se acha fora do ser, ou situado na realidade do mundo estranho à natureza da pessoa. O direito da personalidade, pelo contrário, é inerente à própria pessoa, a sua individualidade física, a sua experiência de vida moral e social. (CENDON, 2000, p. 33). Em outras palavras, se por tantos aspectos a teoria jurídica sobre a existência de direitos subjetivos da personalidade acusa incerteza e ambiguidade e uma linha conceitual não definida, isto é devido, em princípio, a uma consideração substancial dos interesses confluentes nos valores jurídicos da pessoa sobre o modelo de uma garantia jurídica inserida na lógica da propriedade. A validade teórica de uma tendência similar faz com que o modelo propriedade atravesse o conceito de direito subjetivo e determina que o esquema fundamental e unificante de todas as possíveis manifestações de direito privado, seja legada a razão metodológica e histórica, que reduz toda categoria privatística à categoria do ter. (CENDON, 2000, p. 34). Com os direitos da personalidade, uma nova categoria se modela, através da evidência do ser e não do ter216, que impõe a conclusão que estes direitos tutelam tudo que lhe é peculiar, caracterizando-os como direito subjetivo. Citando Ferrara, Adriano de Cupis expõe que “no direito subjetivo, a alavanca que movimenta o mecanismo de proteção é colocado nas mãos do titular: que pode puxá-la quando quiser, no seu interesse”.217 Da mesma forma, os conceitos expostos bem jurídico e direito subjetivo são duas entidades distintas e não se pode deixar de reagir à teoria, pela qual o direito subjetivo seria pura e simplesmente a posição 216 Ter no sentido patrimonial. 217 “Nel diritto soggetivo, la leva di movimento del mecanismo di protezione è posta in mano al titolare: egli può tirarla quando vuole, nel suo interesse”. ” (CUPIS, 1959, p. 68). 238 Revista do CEJ - n. 5, p. 225-246 - nov. 2015 Silvio Romero Beltrão daquele a favor do qual a norma jurídica prescreve alguma coisa e portanto assegura um bem, vez que a posição em que se concretiza a titularidade de um direito subjetivo não pode ser reduzida à simples expectativa do bem jurídico. (CUPIS, 1959, p. 68). Pode-se assim concluir que não há nenhuma incompatibilidade lógica para a existência e positivação dos direitos da personalidade como direitos subjetivos, visto que a pessoa tem o poder de desenvolver livremente a sua vida, utilizando-se das garantias jurídicas conferidas pelos direitos da personalidade, para assegurar o exercício dos elementos que compõem os valores essenciais da pessoa humana. Decorrendo tais direitos da defesa dos interesses privados inerentes à proteção da dignidade da pessoa humana.218 5 Distinção entre direitos da personalidade e direitos fundamentais Apesar da maioria dos preceitos relativos ao direito da personalidade serem tratados como direitos e garantias fundamentais, há entre eles distinções, pois, os direitos da personalidade exprimem aspectos que não podem deixar de ser conhecidos sem afetar a própria personalidade humana, enquanto que os direitos fundamentais demarcam em particular a situação do cidadão perante o Estado, com a preocupação básica da estruturação constitucional. Os princípios do Direito Civil são em regra princípios constitucionais, pois, por serem comuns, podem ou não ter assento na Constituição. Por isso é que se diz que muitos dos direitos fundamentais são direitos de personalidade, mas nem todos os direitos fundamentais são direitos de personalidade. J.J. Gomes Canotilho, nesse sentido, comenta que: As expressões ‘direitos do homem’ e ‘direitos fundamentais’ são freqüentemente utilizadas como sinônimas. Segundo a sua origem e significado poderíamos distingui-las da seguinte maneira: direitos do homem são direitos válidos para todos os povos e em todos os tempos (dimensão jusnaturalistauniversalista); direitos fundamentais são direitos do homem, 218 “Se o direito subjetivo consiste num poder ideal de vontade reconhecido pela ordem jurídica ao respectivo titular, torna-se perfeitamente concebível que tal direito possa versar sobre a própria pessoa do mesmo titular, uma vez que o próprio poder material da vontade humana não se estende apenas ao mundo exterior, mas abrange a própria pessoa do homem que é o sujeito dessa vontade”. (ANDRADE, 1974, p. 193). Revista do CEJ - n. 5, p. 225-246 - nov. 2015 239 Direito da personalidade – natureza jurídica, delimitação do objeto e relações com o Direito Constitucional jurídico-institucionalmente garantidos e limitados espaciotemporalmente. Os direitos do homem arrancariam da própria natureza humana e daí o seu caráter inviolável, intemporal e universal; os direitos fundamentais seriam os direitos objectivamente vigentes numa ordem jurídica concreta. (CANOTILHO, 1998, p. 359). Os direitos de personalidade, como primeiro conceito afim dos direitos fundamentais, são posições jurídicas do homem que ele tem pelo simples fato de nascer e viver; são aspectos imediatos da exigência de integração do homem, e ainda condições essenciais ao ser e dever ser. Revelam o conteúdo necessário da personalidade, são direitos de exigir de outrem o respeito da própria personalidade e têm por objeto os bens da personalidade física, moral e jurídica. Em síntese, apesar de largas zonas de coincidência, a projeção da perspectiva dos direitos de personalidade e dos direitos fundamentais são distintas, vez que: Direitos fundamentais pressupõem relações de poder, os direitos de personalidade relações de igualdade. Os direitos fundamentais têm uma incidência publicística imediata, quando ocorram efeitos nas relações entre os particulares; os direitos de personalidade uma incidência privatística, ainda quando sobreposta ou subposta a dos direitos fundamentais. Os direitos fundamentais pertencem ao domínio do Direito Constitucional, os direitos de personalidade ao do Direito Civil. (MIRANDA, 1993, p. 55). Nesse mesmo sentido, Rabindranath Capelo de Sousa demonstra que a afinidade entre os direitos da personalidade e os direitos fundamentais emerge da sobreposição ao nível da pessoa humana de dois planos jurídicos do conhecimento: os do direito civil, onde se fundam os direitos da personalidade e os do direito constitucional, onde se fundam os direitos fundamentais. (1995, p. 584). Esta larga coincidência entre os direitos de personalidade e os direitos fundamentais não significa assimilação ou perda de autonomia conceitual recíproca, pois tais categorias jurídicas, mesmo quando tenham por objeto idênticos bens da personalidade, revestem um sentido, uma função e um âmbito distintos, em cada um dos planos em que se inserem. 240 Revista do CEJ - n. 5, p. 225-246 - nov. 2015 Silvio Romero Beltrão Assim, as previsões dos arts. 70º e segs. do Código Civil, referentes aos direitos da personalidade, valem apenas nas relações paritárias entre particulares ou entre os particulares e o Estado destituído do seu ius imperii e são tutelados através de mecanismos coercivos juscivilísticos, v.g., em matéria de responsabilidade civil e de providências especiais preventivas ou reparadoras (arts. 70º, n. 2, e 483º do Código Civil e 1474º e seg. do Código de Processo Civil). Diferentemente, as previsões constitucionais (v.g. dos arts. 24º e segs. da Constituição) relativas aos direitos fundamentais pressupõem, em primeira linha, relações juspublicísticas, de poder, são oponíveis ao próprio Estado, no exercício do seu ius imperii, embora também produzam efeitos nas relações entre os particulares (art. 18º, n. 1, da Constituição) e têm mecanismos próprios de tutela constitucional, v.g., em matéria de conformação legislativa e administrativa (arts. 3º, n. 3, 18º, n. 2 e 3, e 19º da Constituição), de declaração de inconstitucionalidade por ação ou omissão (arts. 277º e segs. da Constituição), de reserva relativa de competência legislativa (art. 168º, n. 1, al. B, da Constituição) e de delimitação de revisão constitucional (art. 288º, al. d, da Constituição). (SOUZA, 1995, p. 584). Apesar da individualização das diferenças entre direitos fundamentais e direitos da personalidade, pode-se verificar uma tendência de constitucionalização dos direitos da personalidade, em face do princípio da dignidade da pessoa humana fundamentar as relações de direitos da personalidade e a tutela jurídica dos direitos fundamentais. Paulo Luiz Netto Lôbo, enfatizando a figura do direito civil constitucional, aborda a pluridisciplinaridade do direito da personalidade, onde na esfera constitucional são espécies do gênero direitos fundamentais e na perspectiva civil, constituem direitos inatos à pessoa, que prevalecem sobre todos os demais direitos subjetivos privados. (LÔBO, 2001, p. 79). A tendência em se atribuir aos direitos da personalidade o caráter de direitos fundamentais privados ocorre em razão de constar na Constituição Federal como direitos fundamentais os mais importantes direitos da personalidade, além do caráter residual que o Código Civil impôs aos direitos da personalidade em face de sua enorme diversidade e categorias preferindo não tipificá-los por completo. Revista do CEJ - n. 5, p. 225-246 - nov. 2015 241 Direito da personalidade – natureza jurídica, delimitação do objeto e relações com o Direito Constitucional Assim, tendo em vista as explicações acima expostas, apesar da Constituição Federal em seu art. 5º determinar que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, tais direitos e deveres estão postos segundo a estruturação constitucional, com a demarcação da posição do cidadão perante o Estado e não da pessoa natural. Carlos Rogel Videl (2002, p. 127) esclarece que as diferenças entre os direitos da personalidade e os direitos fundamentais são diversas, pois, o primeiro encontra-se demarcado em um âmbito estritamente privado de relações entre os particulares, enquanto que o segundo se afirma no âmbito do Direito Público, a favor do cidadão e diante dos poderes do Estado. Daí acrescentar que, o âmbito dos direitos da personalidade são pessoais, enquanto que os direitos fundamentais têm um âmbito político e socioeconômico. (PUERCHE, 1997, p. 43). Conclusão O Código Civil, atribuindo aos direitos da personalidade um caráter residual, preferiu disciplinar aquelas figuras que não se destacam em uma carta política, como o direito ao nome e o direito à imagem, não retomando algumas figuras significativas, como o direito à vida, ao desenvolvimento da personalidade e à liberdade, que já se encontram disciplinadas na Constituição Federal. Mas, em face da falta de tipificação no Código Civil de vários direitos da personalidade, como é possível demarcar e estabelecer quais sejam estes direitos? Ora, partindo da ideia de que a pessoa é o fundamento e o fim do direito, pode-se destacar que não são todos os direitos que disciplinam aspectos pessoais que podem ser tratados como direitos da personalidade. O ponto fundamental de destaque para a compreensão dos direitos da personalidade é a proteção da dignidade da pessoa humana. 242 Revista do CEJ - n. 5, p. 225-246 - nov. 2015 Silvio Romero Beltrão A esse respeito, José de Oliveira Ascensão escreve que: A dignidade da pessoa humana implica que a cada homem sejam atribuídos direitos, por ela justificados e impostos, que assegurem esta dignidade na vida social. Esses direitos devem representar um mínimo, que crie o espaço no qual cada homem poderá desenvolver a sua personalidade. Mas devem representar também um máximo, pela intensidade da tutela que recebem. (ASCENSÃO, 1997, p. 64). Nesse sentido, os direitos da personalidade distinguemse dos direitos pessoais, pois, a base dos direitos da personalidade é o fundamento ético da dignidade da pessoa humana, enquanto que os direitos pessoais são desprovidos deste fundamento, e acabam por significar um direito não patrimonial, em relação aos direitos susceptíveis de avaliação em dinheiro, com um campo muito mais vasto de incidência do que os direitos da personalidade. Assim, o direito da personalidade está sempre diante da necessidade de uma valoração ética do princípio da dignidade da pessoa humana, onde “só pode ser considerado direito da personalidade o que manifeste essa exigência da personalidade humana.” (ASCENSÃO, 1997, p. 71). Qualquer outra manifestação favorável ao indivíduo que não tenha por base o princípio da dignidade da pessoa humana não pode ser considerado direito da personalidade. Assim, em certas ocasiões, o direito à imagem pode representar ou não um direito da personalidade, em primeiro lugar, quando é publicada uma fotografia não autorizada de uma pessoa em situação que lhe cause constrangimento, e em segundo lugar, quando as fotos produzidas representam a divulgação da imagem de uma modelo famosa em uma capa de revista. É necessário verificar em cada uma das situações a existência do fundamento ético da dignidade da pessoa humana. Desta forma, pode-se concluir que os direitos da personalidade são uma categoria especial de direitos subjetivos que, fundados na dignidade da pessoa humana, garantem o gozo e o respeito ao seu próprio ser, em todas as suas manifestações espirituais Revista do CEJ - n. 5, p. 225-246 - nov. 2015 243 Direito da personalidade – natureza jurídica, delimitação do objeto e relações com o Direito Constitucional ou físicas (PUERCHE, 1997, p. 43) e não devem ser confundidos com os Direitos Fundamentais, pois, estes últimos dizem respeito à qualidade de cidadão da pessoa perante o Estado. 244 Revista do CEJ - n. 5, p. 225-246 - nov. 2015 Silvio Romero Beltrão Referências ANDRADE, Domingues A. Manuel. Teoria geral da relação jurídica. v. 1. Coimbra: Almedina, 1974, p. 193. ASCENSÃO, José Oliveira. Teoria geral do civil. Coimbra: Editora Coimbra, 1997. BEVILAQUA, Clóvis. Teoria geral do direito civil. 2. ed. São Paulo: Livraria Francisco Alves, 1929. BITTAR, Carlos Alberto. 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Frequentemente, todos nós lidamos com desafios emocionais que, quando enfrentados sozinhos, são difíceis de ser manejados. E é justamente no consultório psicológico que aliviamos a nossa carga e encontramos os caminhos mais assertivos para lidarmos com os nossos desconfortos afetivos. A cada dia, porém, cresce o número de pessoas que recorre à justiça para a solução dos seus conflitos pessoais. E o fazem através de um advogado que as represente em suas questões legais. O que muitos ainda desconhecem é que, tanto quanto a assistência jurídica, o suporte psicológico se faz imprescindível, não apenas para uma resolução mais satisfatória desses impasses, mas, sobretudo contribui para o esclarecimento do magistrado acerca da influência das variáveis emocionais e subjetivas do comportamento em determinado litígio. 219 Psicóloga assistente técnica em processos judiciais, presta assessoria aos escritórios: Cavalcanti Advocacia s/c, Lima Advocacia e Martorelli Advocacia de Família e Sucessões, entre outros. Analista Judiciária aposentada do TJPE (2012). Chefe do Núcleo de Psicologia do TJPE (2004-2006). Pós-graduada em Intervenção Psicossocial à Família no Judiciário UFPE. Professora de Psicologia Jurídica. Email: [email protected]. Revista do CEJ - n. 5, p. 247-260 - nov. 2015 247 O assistente técnico em psicologia nos processos judiciais - o que todos os operadores da lei precisam saber 1 Interseção da esfera jurídica com o universo da psicologia 1.1 Incursões da psicologia no âmbito da lei No que tange à interseção da esfera jurídica com o universo da psicologia, porém, é sempre bom lembrar que a reflexão de Freud foi de vanguarda quando em uma palestra para estudantes de Direito da Universidade de Viena teria preconizado: A tarefa do terapeuta, entretanto, é a mesma do juiz de instrução. Temos de descobrir o material psíquico oculto, e para isso inventamos vários estratagemas detetivescos, alguns dos quais parece que os senhores, homens da lei, estão prestes a copiar de nós. (FREUD, 1906). Talvez tenha sido essa uma das primeiras incursões da psicologia no âmbito da lei e da justiça. O mesmo Freud profetizou em O mal estar na civilização: A primeira exigência da civilização, portanto, é a da justiça, ou seja, a garantia de que uma lei, uma vez criada, não será violada em favor de um indivíduo. (FREUD, 1997). Ainda, em O mal estar na civilização, ele descarta que a liberdade individual seja um dom da civilização, pragmatizando: “O desenvolvimento da civilização impõe restrições a ela, e a justiça exige que ninguém fuja a essas restrições”. (apud GUERRA, 2002). 1.2 O assistente técnico Mas o que vem a ser a atuação do psicólogo como assistente técnico nos processos judiciais em nossa contemporaneidade? Da mesma forma que o juiz nomeia o perito psicólogo para dirimir as questões trazidas às Varas da Infância e Juventude ou Varas de Família e Sucessões dos Foros Regionais e dos Tribunais estaduais, as partes podem indicar seu psicólogo assistente técnico, profissional igualmente habilitado, de sua confiança, para exercer funções idênticas às do perito, e para auxiliá-las no esclarecimento e defesa dos seus interesses no litígio. O assistente técnico também pode servir de consultor da parte, esclarecendo ou interpretando os fatos da causa, para 248 Revista do CEJ - n. 5, p. 247-260 - nov. 2015 Tania Guerra Cardoso corroborar as alegações da parte ou para melhor elucidar o juiz acerca de tais fatos. (AMARAL SANTOS, 1993 in SILVA, 1968) O artigo 421, § 1º do CPC dispõe sobre a fundamentação legal para a atuação do assistente técnico. Art. 421. O juiz nomeará o perito, fixando de imediato o prazo para a entrega do laudo. § 1º Incumbe às partes, dentro de 5 (cinco) dias, contados da intimação do despacho de nomeação do perito: I – indicar o assistente técnico; [...]. Segundo Silva e Costa: [...] a partir da avaliação de mais de um técnico é possível avaliar e esclarecer as várias facetas que um só incidente pode ter no caso em questão, e orientar a decisão do juiz. (SILVA e COSTA, III Congresso Ibero-Americano de Psicologia Jurídica, 1999). 1.3 A experiência na área jurídica É importante que o profissional de psicologia que aspira ser assistente técnico disponha de determinada experiência de militância nos fóruns e tribunais. O conhecimento dos ritos, uma compreensão básica da legislação, e, sobretudo das características de personalidade da instituição jurídica é fundamental para o êxito da sua atuação enquanto assistente técnico nas questões judiciais. Todavia, pelo fato de a psicologia jurídica se tratar de uma área de conhecimento bastante recente e específica, os profissionais existentes, que normalmente estão alocados em instituições judiciárias prestando os seus serviços, encontram-se por outro lado, impedidos de atuar em caráter particular. Por esses e pensamento isso ocorra, especializada que desejem Revista do CEJ - n. 5, p. 247-260 - nov. 2015 outros motivos, deveríamos aproximar o da saúde mental do jurídico. Para que deveríamos proporcionar uma formação aos profissionais da área de saúde mental atuar na justiça, pois serão eles que darão 249 O assistente técnico em psicologia nos processos judiciais - o que todos os operadores da lei precisam saber um melhor entendimento do que a justiça espera desse profissional e do que esse profissional pode fornecer à justiça. Consequentemente, haverá uma maior confiança para as duas áreas. (COHEN, 1999). 2 O que os advogados precisam saber 2.1 A fundamentação legal que instaura a atuação do assistente técnico Sobre o artigo 421, § 1º, I, do CPC, que dispõe sobre a indicação do assistente técnico, em seu trabalho intitulado O papel dos assistentes técnicos nos processos judiciais, Silva e Costa elencam: 1. É contratado pela parte, para auxiliá-la e ao seu advogado naquilo que ela acredita estar certa. 2. A defesa do advogado estará pautada no parecer que o assistente técnico fizer do laudo do perito. 3. Poderá fazer interpretações e sugestões ao seu cliente, não correndo riscos de ter seu trabalho mal interpretado ou manipulado pelas partes ou por seus advogados. 4. É importante que o Assistente Técnico conheça bem a função do perito, para saber o que deve esperar do trabalho desse profissional e como seu trabalho deverá encaminhar-se. (SILVA e COSTA, 1999). 2.2 A nomeação do assistente técnico O assistente técnico pode ser nomeado por apenas uma das partes, através de uma petição proposta por seu advogado, requerendo ao juiz a nomeação e indicando: - o nome completo do psicólogo; - número de inscrição no Conselho Regional de Psicologia; - endereço (com CEP); - justificativa plausível e fundamentada para a nomeação. Já o texto O assistente técnico no Código de Processo Civill nos assegura que 250 Revista do CEJ - n. 5, p. 247-260 - nov. 2015 Tania Guerra Cardoso o assistente técnico é o auxiliar da parte que tem por obrigação acatar, criticar ou complementar o laudo do perito oficial, através de seu parecer, cabendo ao juiz, pelo princípio do livre convencimento, analisar seus argumentos, podendo fundamentar sua decisão também nesse parecer. (MAIA NETO, 1998). A participação do assistente técnico poderá até vir a ser contestada pelo advogado da parte contrária. Pode acontecer também (o que é raro), de o juiz indeferir o pedido de indicação de assistente técnico sob várias alegações. Se isso acontecer, o advogado da parte que entende e acredita na vantagem da participação do assistente técnico na causa deverá apresentar recurso alegando cerceamento de defesa e violação aos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa, o que poderá suspender temporariamente o andamento do processo para discussão em instância superior (Tribunal de Justiça do Estado), até que a questão seja sanada. (SILVA, 2009). Mesmo sendo o assistente técnico um perito parcial dentro da arena jurídica, o psicólogo forense paulista pontua: “O psicólogo pode e deve agir com isenção, conduzindo seu trabalho segundo os referenciais técnicos e éticos de sua área”. (SHINE, 2005). Maia Neto (1998) elabora uma lista de sugestões endereçadas especificamente aos advogados, para balizar sua atuação no processo em consonância com o assistente técnico: a) Procurar contactar o assistente técnico antes mesmo do início da ação, pois este poderá tornar-se seu consultor técnico em todas as fases do processo. b) Antecipar-se à nomeação do perito oficial, permitindo ao assistente técnico tomar conhecimento do processo, realizar um levantamento dos dados e propor sugestões de quesitos. c) Avisar ao assistente técnico da nomeação do perito oficial, fornecendo seu nome, endereço e telefone, para que ele possa contactá-lo com facilidade, a fim de fornecer-lhe as informações necessárias e fazer as eventuais solicitações. Revista do CEJ - n. 5, p. 247-260 - nov. 2015 251 O assistente técnico em psicologia nos processos judiciais - o que todos os operadores da lei precisam saber d) Inteirar-se com o assistente técnico dos honorários que usualmente são cobrados pelos peritos oficiais naquele tipo de ação, que poderá ser guiado pelas tabelas profissionais ou costumes locais. e) Não se manifestar com relação aos atos praticados pelo perito oficial sem discutir o assunto com o assistente técnico, pois muitas vezes envolvem temas de caráter restrito à categoria profissional em que se inserem estes profissionais. f ) Dar ciência ao assistente técnico do depósito de honorários do perito oficial, a partir do qual a perícia pode ter início a qualquer momento. g) Comunicar ao assistente técnico sobre a determinação para o início da perícia, fornecendo-lhe o completo teor do despacho, pois muitos juízes costumam fixar dia e hora para a realização da vistoria que, preferencialmente, deve contar com a presença do assistente técnico. h) Informar ao assistente técnico sobre qualquer publicação e despacho relacionados à prova pericial, direta ou indiretamente. i) Fornecer ao assistente técnico, imediatamente, informações sobre publicação relativa à entrega do laudo pericial por parte do perito oficial. j) Discutir com o assistente técnico o teor da manifestação do assistente técnico da parte contrária sobre o laudo pericial entregue pelo perito oficial. k) Discutir com o assistente técnico o conteúdo de seu parecer sobre o laudo pericial entregue pelo perito oficial, pois seu trabalho deve obedecer a uma linha de raciocínio e estratégia elaborada pelo advogado na construção da lide. l) Trocar informações com o assistente técnico relativamente ao teor da petição sobre a vista ao laudo pericial do perito oficial e parecer do assistente técnico da parte contrária. (MAIA NETO, 1998). 2.3 O psicólogo especialista O universo forense já percebeu e vem absorvendo gradativamente a contribuição da psicologia em suas demandas. Muitos 252 Revista do CEJ - n. 5, p. 247-260 - nov. 2015 Tania Guerra Cardoso escritórios de advocacia já solicitam a intervenção do profissional de psicologia para assisti-los nos processos judiciais, sobretudo aquele que possui reconhecida experiência na área jurídica. A aplicação dos conhecimentos desses profissionais e de suas técnicas psicológicas está se tornando indispensável ao melhor resultado das ações da justiça. Os psicólogos especializados são chamados a atuar nos casos que envolvem separação, divórcio, guarda de filhos, mudança de guarda, regulamentação de visitas dos filhos, guarda compartilhada, abandono afetivo, adoção, crimes de abusos, sejam eles de natureza psicológica ou física, entre outros, com o propósito de avaliar as condições psíquicas dos envolvidos para a tomada de decisões do juiz. Além dessas atribuições, o assistente técnico pode também se encarregar de preparar psicologicamente todos os envolvidos da parte que o contratou para que eles venham a assumir o controle emocional necessário durante todo o processo. 2.4 O advento da síndrome de alienação parental – SAP A síndrome de alienação parental tem se tornado bastante presente nas relações familiares em disputa judicial. Gardner, psiquiatra norte-americano, assim conceituou a síndrome de alienação parental – SAP: A síndrome de alienação parental (SAP) é uma disfunção que surge primeiro no contexto das disputas de guarda. Sua primeira manifestação é a campanha que se faz para denegrir um dos pais, uma campanha sem nenhuma justificativa. É resultante da combinação de doutrinações programadas de um dos pais (lavagem cerebral) e as próprias contribuições da criança para a vilificação do pai alvo. (GARDNER,1998). A síndrome de alienação parental é uma patologia psíquica muito grave promovida pelo genitor que detém a guarda do(s) filho(s) impelindo-o a tentar destruir os elos da criança com o genitor não guardião. Ela ocorre com bastante frequência, sendo utilizada pelas figuras parentais que tentam, através de várias manobras, sutis ou explícitas, desqualificar ou depreciar a imagem do outro aos olhos dos filhos, visando o distanciamento e até o rompimento dos laços entre eles. Revista do CEJ - n. 5, p. 247-260 - nov. 2015 253 O assistente técnico em psicologia nos processos judiciais - o que todos os operadores da lei precisam saber É importante se sublinhar aqui que, geralmente, as queixas de abuso fazem referência a episódios anteriores à separação. Contudo, é imprescindível que o assistente técnico venha a investigar exaustivamente as razões pelas quais a ‘campanha de desmoralização’ contra o genitor alienado só surge após o início do processo da separação. Como bem adverte Gardner, na denúncia que o genitor alienador concebe em relação aos possíveis danos causados ao(s) filho(s), certamente está implícito o desejo de reparação à sua própria perda sofrida com a separação. O processo de alienação pode se manifestar, entre outras, através de duas práticas frequentes segundo Silva: Obstrução a todo contato: o argumento mais utilizado é o de que o outro genitor não é capaz de ocupar-se dos filhos e que estes não se sentem bem quando voltam das visitas; outro argumento é o de que ver o outro genitor não é conveniente para os filhos e que estes necessitam de tempo para se adaptarem. A mensagem dirigida aos filhos é que é desagradável ir conviver com o outro genitor. Denúncias falsas de abuso: Dos abusos normalmente invocados o mais grave é o “abuso sexual” que ocorre em cerca de metade dos casos de separação problemática, especialmente quando os filhos são pequenos e mais manipuláveis. Porém o mais frequente é o “abuso emocional” que ocorre quando um genitor acusa o outro, por exemplo, de mandar os filhos dormirem demasiado tarde. (SILVA, 2009). Ainda, como tais práticas têm sido, via de regra, mais observadas no comportamento da figura materna, essas duas posturas podem criar mecanismos para manter uma simbiose avassaladora entre mãe e filho gerando superproteção, dominação, dependência e opressão sobre a criança. A mãe então lança mão de manipulações emocionais, sintomas físicos, isolamento da criança com o objetivo de incutir-lhe insegurança, ansiedade, angústia e culpa. Em casos mais extremos, porém não menos importantes ou graves, a figura materna pode até lograr influência e indução sobre a criança, estimulando-a a relatar supostos eventos de agressões físicas/sexuais, atribuindo a autoria ao outro genitor, tramando assim o afastamento entre pai e filho(s). A SAP atua em duas vertentes: 254 Revista do CEJ - n. 5, p. 247-260 - nov. 2015 Tania Guerra Cardoso a) Evidenciando a psicopatologia do genitor alienador para atingir o intento de afastar os filhos do genitor alienado, para tanto se utilizando de todos os recursos disponíveis. b) Contribuindo, mais grave ainda, para que os filhos passem a construir uma imago negativa do genitor alienado. A afeição até então dedicada a este último, em contraponto às maledicências impostas pelo genitor alienador, acaba por produzir um sentimento ambivalente nos filhos, que transita entre amor e rancor. Este estado de espírito, de uma maneira ou de outra, consegue confundir o próprio juízo daqueles, produzindo oscilações entre ódio e culpa em relação ao genitor alienado. A sua convivência com este vai então rareando e definhando, podendo chegar ao estágio de absoluto afastamento. Está instalado o conflito que, mais cedo ou mais tarde, acabará por levar as desavenças familiares a uma ação judicial. Tal comportamento alcançou níveis tão preocupantes que terminou por ser enquadrado em lei. A Lei n. 12.318, de 26 de agosto de 2010, foi criada para conter os excessos que as famílias vinham cometendo neste sentido, seja por revanches afetivas, seja por competição ou outros interesses quaisquer. Há, inclusive, a previsão de multa e a perda da guarda para quem manipular os filhos. Além dessa síndrome, são comuns nos litígios familiares alegações de falsos abusos sexuais contra os filhos, supostamente perpetrados pelo genitor. Por ser um evento de difícil comprovação, visto que muitas vezes sequer deixam vestígios, infelizmente, mesmo sendo um argumento sem nenhum fundamento, tem sido frequentemente utilizado pelas partes, visando o ganho da causa, o que impõe um aprofundamento da investigação psicológica. Convém salientarmos o quanto é estarrecedor que, em suas contendas, as figuras parentais que recorrem a esse expediente escuso, demonstrem pouca ou nenhuma preocupação com as repercussões de suas manipulações no psiquismo dos filhos. Nem sempre a relação conjugal poderá se recompor, mas o essencial agora é reparar, ou pelo menos minimizar, todo e qualquer dano possível, sobretudo para as crianças, tentando-se preservar as relações entre pais e filhos. Revista do CEJ - n. 5, p. 247-260 - nov. 2015 255 O assistente técnico em psicologia nos processos judiciais - o que todos os operadores da lei precisam saber Além disto, o assistente técnico em psicologia nos processos judiciais pode prestar ainda relevante trabalho como mediadorr entre as partes litigantes, tentando facilitar um diálogo entre as mesmas para que as animosidades sejam contidas e as questões controversas possam ser dirimidas dentro do clima mais pacífico possível. Uma das funções desse profissional é contribuir para que os danos emocionais sejam reduzidos para todos os envolvidos no processo. 2.5 O ‘efetivo do afetivo’ Em brilhante artigo publicado na 9ª edição de 2013 da Revista Advocatus, o Desembargador decano do Tribunal de Justiça de Pernambuco, Excelentíssimo Senhor Doutor Jones Figueirêdo Alves, faz uma exortação à socioafetividade na família moderna. Em suas palavras: A afetividade tem conduzido o direito de família à sua maior dimensão existencial, axiologicamente hierarquizada como valor jurídico, e cuja concretude tem se prestado a demonstrá-la como função essencial da nova família, a família contemporânea. (ALVES, 2013, p. 21). Bastante feliz em suas considerações acerca do valor do afeto enquanto valor jurídico é precisamente neste contexto em que o trabalho do psicólogo se insere e deveria ser estimulado nos fóruns da justiça. Compartilhamos do ponto de vista do Desembargador que conceitua a afetividade como um pilar indispensável às relações familiares e, por consequência, a toda e qualquer forma de relações sociais. Em seu artigo, Doutor Jones Figueirêdo Alves cita, entre outros, o jurista João Batista Villela: “o amor está para o Direito das Famílias, assim como a vontade está para o Direito das Obrigações”. E arremata: “Nele, a família está inteira”. (ALVES, 2013). Realçada aqui a importância fundamental da afetividade sobre o comportamento humano, enfaticamente nas relações familiares, o fenômeno nos remete a imperiosidade de se considerar, no ato de julgar: a personalidade, o caráter, os sentimentos, a história de vida, as dinâmicas familiares e todo o subjetivismo inerente a todos os atores presentes nos processos judiciais dos tribunais. Sem o que, restará uma solução parcial e, por que não dizer, até mesmo injusta aos confrontos. 256 Revista do CEJ - n. 5, p. 247-260 - nov. 2015 Tania Guerra Cardoso As questões afetivas são a matéria fundante da ciência do comportamento humano. E a psicologia pode ser considerada a sua intérprete fiel. O próprio presidente nacional do IBDFAM comentando decisão que condenou um pai a indenizar a filha por abandono afetivo adverte com muita propriedade: “o Direito não trata propriamente dos sentimentos, mas das consequências decorrentes.” (PEREIRA, 2013 in Revista AdvocatusPE – 9ª edição – p. 29). No estudo sobre a influência das emoções na decisão judicial, Prado salienta o papel do juiz na elaboração jurídica, os reflexos sobre a sentença dos atributos internos do magistrado, em especial, da sensibilidade, da emoção e da criatividade. (PRADO, 2008). 3 O homem da arte O médico, psicanalista e coordenador do curso de Saúde Mental e Justiça da FMUSP assim descreve o profissional de Psicologia em interface com o Direito: A complexidade da vida moderna é tão grande que se tornou necessário uma maior intervenção de especialistas nas lides forenses. A lei dá a esses especialistas o majestoso nome de homem da arte [...]. (COHEN, 1996). Acreditamos que esse título refere-se ao minucioso e delicado trabalho de investigação do profissional de psicologia no desvendar da tessitura do comportamento humano, como uma complexa tapeçaria de sentimentos, mistérios, incoerências, ideologias e especialmente, de subjetividades. Seria ainda oportuno transcrever a preocupação contida no questionamento de Silva acerca da atuação do psicólogo no âmbito jurídico. Caberia, aqui, apenas uma observação: embora se trate da Psicologia no interior do sistema judiciário, os procedimentos para sua atuação são definidos por provimentos de órgãos da Justiça, sem qualquer participação do Conselho Federal ou Conselhos Regionais de Psicologia. Por que isso aconteceu? Diante das dificuldades enfrentadas, ainda nos dias atuais, Revista do CEJ - n. 5, p. 247-260 - nov. 2015 257 O assistente técnico em psicologia nos processos judiciais - o que todos os operadores da lei precisam saber pelos psicólogos que atuam no Judiciário, deveria haver uma ação mais contundente dos órgãos fiscalizadores da Psicologia, para que ela pudesse delimitar o seu espaço na interface com o Direito. (SILVA, 2009). Referendamos o questionamento de Silva, acrescentando ainda o nosso: Por que será que o assistente técnico ainda não tem sido regularmente requisitado, visto o comprovado valor que ele representa nas demandas judiciais? Talvez esse anonimato ainda passe por uma ausência ou postura silente dos setores dos órgãos de classe, no sentido de divulgar apropriadamente a sua expertise. O que vem a contrariar a interpretação do famoso jurista Carnelutti de que tal profissional “senta-se ao lado do juiz para examinar”. Ou, nas palavras do Professor Enrico Altavilla, da Universidade de Nápoles: Mas nós diremos que é ainda mais necessário que todo perito seja um psicólogo, porque até nos imóveis vestígios materiais deixados pela acção humana ele poderá encontrar os mais inesperados auxílios para o conhecimento do espírito criminoso. (ALTAVILLA,1982). Discorrendo sobre a justaposição entre a Psicologia e o Direito, ressalva a autora: Diante de certas dificuldades que surgem no trabalho da Psicologia Jurídica, é importante valorizar toda e qualquer iniciativa no sentido de se buscar, cada vez mais, a comunicação entre essas duas Ciências, a fim de que se desenvolvam as atividades dos operadores do Direito em nome de um maior entendimento do comportamento humano e da cidadania. (SILVA, 2009). Tais crenças são reafirmadas no dizer do Doutor Frederico Guilherme Rodrigues de Lima, presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-PE: Como cediço, a sociedade impõe ao indivíduo a prática de hábitos e costumes universalmente aceitos e, desse modo, o conjunto de indivíduos coexistindo em torno desses valores há de construir um grupo social capaz de perseguir a realização 258 Revista do CEJ - n. 5, p. 247-260 - nov. 2015 Tania Guerra Cardoso plena de ações voltadas para o bem comum. (Revista Negócios PE, Sociedade dos Advogados – 5ª edição, fl. 26). Conclusão É imprescindível que se reconheça que a função do assistente técnico foi criada ex lege. Assim sendo, a divulgação do trabalho desse profissional deveria ser intensificada e apreciada, através dos canais de comunicações específicos ao público interessado. Em última análise, o assistente técnico em psicologia representa um reforço diferencial e qualitativo, nas providências legais, prestando assessoria especializada à classe advocatícia, beneficiando ad futurum a família, a sociedade e a justiça. Revista do CEJ - n. 5, p. 247-260 - nov. 2015 259 O assistente técnico em psicologia nos processos judiciais - o que todos os operadores da lei precisam saber Referências ALTAVILLA, Enrico. Psicologia judiciária – personagens do processo penal. 3. ed. Coimbra: Armênio Amado Editor e Sucessor, 1982. 2 v. ALVES, Jones Figueirêdo. A família no contexto da globalização e a socioafetividade como seu valor jurídico fundamental. 9. ed. Recife: Revista Advocatus, 2013. CARNELUTTI, Francesco. Lezioni sul processo penale. In: ALTAVILLA, Enrico. Psicologia judiciária. Coimbra: Armênio Amado Editor e Sucessor, 1982. 2 v. COHEN, Cláudio. O profissional de saúde mental no Tribunal. In: Saúde mental, crime e justiça. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1996. FREUD, Sigmund. A psicanálise e a determinação dos fatos nos processos jurídicos. In: Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1976, 9 v. _____.O mal estar na civilização. Rio de Janeiro: Imago, 1997. GARDNER, R. A. (1998). The parental alienation syndrome (A síndrome de alienação parental), 2. ed. Cresskill, NJ: Creative Therapeutics, Inc. Disponível em: <http://www.rgardner.com>. GUERRA, Tania. Psicologia jurídica: em busca de um bem-estar na civilização. In: Interlocuções: Revista de psicologia da UNICAP. Recife, Fundação Antônio dos Santos Abranches – FASA, 2002, ano 2, n. 1, 2, p. 20-35, jan./dez.2002. LIMA, Frederico G. R. de. O Tribunal do Advogado. Revista Negócios PE – sociedade dos advogados. 5. ed. PRADO, Ligia R. de Almeida. O juiz e a emoção. 4 ed. Campinas: Millennium Editora, 2008. SHINE, Sidney. Avaliação psicológica e lei: adoção, vitimização, separação conjugal, dano psíquico e outros temas. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2005. SILVA, Denise Maria Perissini. Psicologia jurídica no processo penal brasileiro – a interface da psicologia com o direito nas questões de família e infância. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009. 260 Revista do CEJ - n. 5, p. 247-260 - nov. 2015 De lege ferenda Projeto de Lei do Senado n. 658/2015, de 30.09.2015 Altera o Código Penal para dar novo tratamento a marcos temporais que causam a prescrição da pretensão executória e a interrupção da prescrição da pretensão punitiva.220 O Congresso Nacional decreta: Art. 1º Os arts. 112 e 117 do Decreto-Lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, passam a viger com as seguintes alterações: “Art. 112 .................................................................. I – do dia em que transita em julgado a sentença condenatória ou a que revoga a suspensão condicional da pena ou o livramento condicional; ...................................................................................” (NR) “Art. 117.................................................................... I – pelo oferecimento da denúncia ou queixa; ................................................................................... IV – pela publicação de sentença ou acórdão condenatórios recorríveis, ou de qualquer decisão que, julgando recurso interposto, confirme condenação anteriormente imposta, ainda que reduza a pena aplicada; .................................................................................... § 3º No caso do inciso I, resta sem efeito a interrupção da prescrição se a denúncia ou queixa é rejeitada por decisão definitiva.” (NR) Art. 2º O Decreto-Lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, passa a viger acrescido do seguinte artigo: “Art. 117-A. Anulado o processo, o tempo transcorrido entre o dia do ato declarado nulo e o dia da publicação da decisão que reconheceu a nulidade deve ser desconsiderado para fins de contagem do prazo prescricional. 220 Explicação da Ementa: Altera o Código Penal, para estabelecer que, anulado o processo, o tempo transcorrido entre o ato declarado nulo e a publicação da decisão que reconheceu a nulidade deve ser desconsiderado para fins de contagem do prazo prescricional, salvo se a nulidade foi declarada a pedido e no interesse da acusação. Modifica as causas interruptivas da prescrição e o termo inicial da prescrição após a sentença condenatória irrecorrível. Revista do CEJ - n. 5, p. 263-265 - nov. 2015 263 Projeto de Lei do Senado n. 658/2015, de 30.09.2015 Parágrafo único. O disposto no caputt não se aplica às hipóteses em que a nulidade foi declarada a pedido e no interesse da acusação.” Art. 3º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação. JUSTIFICAÇÃO O presente projeto propõe algumas alterações na prescrição penal. O art. 112 do Código Penal (CP) trata da prescrição da pretensão executória. Ou seja, aquela que flui em desfavor do Estado para o início de uma execução criminal respaldada em decisão condenatória definitiva. Nesse viés, não se confunde com a prescrição da pretensão punitiva, de que tratam os arts. 109 a 111, que atinge o Estado pela demora no julgamento da causa. O inciso I do art. 112 cria uma anomalia no sistema penal. Nos moldes da lei em vigor, se um juiz de primeiro grau condena o acusado a uma determinada pena e o Ministério Público (MP) concorda com a pena, não recorrendo, ocorre o trânsito em julgado para a acusação. Mas, se o réu recorre, o trânsito em julgado não alcança a defesa. A partir daí, só haverá o trânsito em julgado definitivo quando sobrevier decisão acerca do último recurso da defesa. Pelo teor do art. 112, I, ora vigente, nessa situação, o Estado não pode executar a pena. É um incentivo para a defesa continuar a recorrer, ainda mais considerando o posicionamento firmado pelo Supremo Tribunal Federal no sentido de entender inviável a antecipação da execução da pena ainda não transitada em julgado em razão da aplicação do princípio da presunção de inocência. O Estado, enquanto titular do poder-dever de punir, fica nas mãos do indivíduo que já tem contra si ao menos uma condenação. Com a presente alteração, a prescrição passa a correr somente quando do trânsito em julgado para todas as partes, extirpando do sistema essa incongruência sistemática. Propomos ainda alterar o art. 117 do CP, que trata das hipóteses de interrupção da prescrição da pretensão punitiva. O inciso I do art. 117 faz com que o titular da ação penal, isto é, o MP, espere pela decisão do Poder Judiciário acerca do recebimento ou não da denúncia oferecida, para só então a prescrição ser interrompida. Se o Poder Judiciário não promove o andamento processual, todo o trabalho desenvolvido previamente 264 Revista do CEJ - n. 5, p. 263-265 - nov. 2015 Projeto de Lei do Senado n. 658/2015, de 30.09.2015 pelo MP e pela Polícia na colheita de provas e formação da opinio delicti poderá ser inócuo tendo em vista a incidência da prescrição. Eis o motivo pelo qual se mostra adequada a substituição do termo “recebimento” por “oferecimento” da ação penal. É o marco de conclusão do trabalho investigativo, e o seu efeito direto deve ser a interrupção da prescrição. De todo modo, há que se ressaltar que a propositura da ação penal deve, desde a exordial acusatória, atender aos ditames legais de correlação entre descrição da conduta penalmente típica e embasamento probatório mínimo, a fim de respaldar a persecução penal. Eis a razão do novo § 3º. Se o Estado-juiz rejeitar a inicial acusatória, restará sem efeito a interrupção prescricional. A mudança proposta no inciso IV do art. 117, por sua vez, visa desestimular recursos meramente protelatórios por parte da defesa. Por fim, como cediço, a nulidade absoluta pode ser arguida a qualquer tempo ou grau de jurisdição. Destarte, a inclusão do art. 117-A no CP busca evitar que a defesa postergue intencionalmente a alegação de uma nulidade absoluta previamente por ela identificada para fazê-la em momento processual que entenda conveniente, no qual a retomada do processo a partir do ato declarado nulo fulminaria a pretensão punitiva do Estado em razão da ocorrência da prescrição. Isso gera custos desnecessários para o erário e alimenta a sensação de impunidade. Julgamos que tais alterações em muito contribuem para o aperfeiçoamento de nossa legislação penal. Sala das Sessões, Senador Alvaro Dias Revista do CEJ - n. 5, p. 263-265 - nov. 2015 265 Prescrição criminal e impunidade221 Luiz Edson Fachin222 Neste ano, foi apresentado ao Senado o Projeto de Lei 658, que propõe alterar o Código Penal para dar novo tratamento às regras de prescrição procurando eliminar algumas incongruências. A iniciativa do senador Álvaro Dias (PSDB-PR) é da maior validade para o debate sobre as garantias constitucionais, especialmente da não culpabilidade, e sobre a percepção de impunidade. Considerando que a inspiração socrática para uma atuação como juiz sugere sempre diálogo, debate e problematização, colho esse viés para tentar contribuir, dentro do quadro da Constituição republicana, no cultivo de boas respostas aos graves quebra-cabeças que estamos enfrentando nesta matéria. Na proposta, a prescrição da pena já estabelecida na sentença passa a fluir apenas quando já não caibam mais recursos tanto do acusado como da acusação. Hoje, quando o Ministério Público não recorre da sentença condenatória, por entendê-la correta, mas o acusado recorre, inicia-se a contagem do prazo, o que pode gerar uma situação de incoerência: o Estado ainda não pode executar a pena, que é provisória, todavia já tem contra si fluindo um prazo prescricional. Situações concretas têm demonstrado que, não raras vezes, quando o Estado obtém uma sentença condenatória definitiva, após todos os recursos do acusado, não se pode mais executar a pena, porque a prescrição já se consumou. Se prevalecer a proposta de mudança, esse prazo terá início somente quando os recursos de todas as partes forem definitivamente julgados. 221 222 FACHIN, Luiz Edson. Prescrição criminal e impunidade. Folha de São Paulo, São Paulo, 11 out. 2015. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2015/10/1692550-prescricao-criminal-e-impunidade.shtml. Acesso em: 19 out. 2015. Ministro do Supremo Tribunal Federal. Revista do CEJ - n. 5, p. 267-269 - nov. 2015 267 Prescrição criminal e impunidade Propõe-se também alterar o Código Penal quando cuida das hipóteses de interrupção do prazo de prescrição. Atualmente, quando o Ministério Público se convence de que as suspeitas contra um acusado são plausíveis e formula contra ele uma acusação, pela lei, o prazo prescricional deve recomeçar a ser contado do zero. Entretanto, isso só ocorre depois que o Poder Judiciário decide receber a denúncia e dar início a um processo contra o acusado. O marco de hoje é o “recebimento” da denúncia. No projeto, indica-se a substituição desse momento pelo do “oferecimento” da ação penal para evitar que, caso o Judiciário não promova o andamento processual a tempo, o trabalho prévio de coleta de provas e formulação da denúncia deixe de ser eventualmente inútil, dado que a prescrição pode incidir depois do oferecimento da acusação, mas antes da decisão de recebê-lo. Na concepção apresentada há ainda outros aspectos. Cito um deles: evitar que se postergue intencionalmente a alegação de uma nulidade previamente identificada, para fazê-la em momento processual que se entenda conveniente, no qual a retomada do processo a partir do ato declarado nulo fulminaria a pretensão punitiva do Estado por causa da prescrição. Isso gera custos desnecessários para o erário e alimenta a sensação de impunidade. E não é realmente um elemento racional dentro do sistema jurídico-criminal. Parece-nos que o espírito da proposta em andamento no Legislativo é mesmo prestar um serviço à efetividade da prestação jurisdicional sem afrontar garantias constitucionais. A justificativa do projeto apresenta uma contribuição técnica à tarefa hercúlea de traduzir limites racionais determinados, tentando equilibrar direitos e deveres, enfim, liberdade e responsabilidade. O tema parece do interesse da sociedade brasileira, e evidentemente do Supremo Tribunal Federal, inclusive porque é responsável, não só pelo julgamento de determinadas causas criminais, mas por conduzir o respectivo processo penal. A procura pelo verdadeiro e fundamental ordenamento ético 268 Revista do CEJ - n. 5, p. 267-269 - nov. 2015 Luiz Edson Fachin e jurídico para a sociedade brasileira não pode prescindir de ideias, propostas e debates transparentes, e assim de diálogos republicanos entre Judiciário e Legislativo, bem como de abertura permanente à sociedade. O andamento dos processos, especialmente os criminais, é tema que transcende a mera técnica formal e, na compreensão das “raízes do Brasil”, como escreveu Sérgio Buarque de Holanda, o desafio, também nesse campo, é fazer que o interesse público esteja acima dos interesses pessoais. O sentimento de impunidade traduz a importância de esquadrinhar soluções para essa crise de valores. Estou certo de que a proposta em pauta tem algo a oferecer. O princípio da presunção de inocência é, quando menos, garantia constitucional que não pode nem deve ser relegada. Não significa, contudo, que há óbice ao legítimo aprimoramento de nossa legislação penal. Revista do CEJ - n. 5, p. 267-269 - nov. 2015 269 Juizados Especiais Enunciados aprovados no Fórum Nacional de Juizados Especiais – FONAJE223 Enunciados Cíveis ENUNCIADO 1 – O exercício do direito de ação no Juizado Especial Cível é facultativo para o autor. ENUNCIADO 2 – Substituído pelo Enunciado 58. ENUNCIADO 3 – Lei local não poderá ampliar a competência do Juizado Especial. ENUNCIADO 4 – Nos Juizados Especiais só se admite a ação de despejo prevista no art. 47, inciso III, da Lei 8.245/1991. ENUNCIADO 5 – A correspondência ou contrafé recebida no endereço da parte é eficaz para efeito de citação, desde que identificado o seu recebedor. ENUNCIADO 6 – Não é necessária a presença do juiz togado ou leigo na Sessão de Conciliação, nem a do juiz togado na audiência de instrução conduzida por juiz leigo. (nova redação - XXXVII - Florianópolis/SC). ENUNCIADO 7 – A sentença que homologa o laudo arbitral é irrecorrível. ENUNCIADO 8 – As ações cíveis sujeitas aos procedimentos especiais não são admissíveis nos Juizados Especiais. ENUNCIADO 9 – O condomínio residencial poderá propor ação no Juizado Especial, nas hipóteses do art. 275, inciso II, item b, do Código de Processo Civil. ENUNCIADO 10 – A contestação poderá ser apresentada até a audiência de Instrução e Julgamento. 223 Enunciados atualizados até o XXXVII FONAJE. Revista do CEJ - n. 5, p. 273-299 - nov. 2015 273 Enunciados aprovados no Fórum Nacional de Juizados Especiais – FONAJE ENUNCIADO 11 – Nas causas de valor superior a vinte salários mínimos, a ausência de contestação, escrita ou oral, ainda que presente o réu, implica revelia. ENUNCIADO 12 – A perícia informal é admissível na hipótese do art. 35 da Lei 9.099/1995. ENUNCIADO 13 – Os prazos processuais nos Juizados Especiais Cíveis contam-se da data da intimação ou ciência do ato respectivo, e não da juntada do comprovante da intimação, observando-se as regras de contagem do CPC ou do Código Civil, conforme o caso (nova redação – XXI Encontro – Vitória/ES). ENUNCIADO 14 – Os bens que guarnecem a residência do devedor, desde que não essenciais à habitabilidade, são penhoráveis. ENUNCIADO 15 – Nos Juizados Especiais não é cabível o recurso de agravo, exceto nas hipóteses dos artigos 544 e 557 do CPC. (nova redação – XXI Encontro – Vitória/ ES). ENUNCIADO 16 – Cancelado. ENUNCIADO 17 – Substituído pelo Enunciado 98 (XIX Encontro – Aracaju/ SE). ENUNCIADO 18 – Cancelado. ENUNCIADO 19 – Cancelado (XXI Encontro – Vitória/ES). ENUNCIADO 20 – O comparecimento pessoal da parte às audiências é obrigatório. A pessoa jurídica poderá ser representada por preposto. ENUNCIADO 21 – Cancelado (XXI Encontro – Vitória/ES). ENUNCIADO 22 – A multa cominatória é cabível desde o descumprimento da tutela antecipada, nos casos dos incisos V e VI, do art. 52, da Lei 9.099/1995. ENUNCIADO 23 – Cancelado (XXI Encontro – Vitória/ ES). ENUNCIADO 24 – Cancelado (XXI Encontro – Vitória/ ES). ENUNCIADO 25 – Substituído pelo Enunciado 144 (XXVIII FONAJE – Salvador/BA). 274 Revista do CEJ - n. 5, p. 273-299 - nov. 2015 Enunciados Cíveis ENUNCIADO 26 – São cabíveis a tutela acautelatória e a antecipatória nos Juizados Especiais Cíveis (nova redação – XXIV Encontro – Florianópolis/SC). ENUNCIADO 27 – Na hipótese de pedido de valor até 20 salários mínimos, é admitido pedido contraposto no valor superior ao da inicial, até o limite de 40 salários mínimos, sendo obrigatória a assistência de advogados às partes. ENUNCIADO 28 – Havendo extinção do processo com base no inciso I, do art. 51, da Lei 9.099/1995, é necessária a condenação em custas. ENUNCIADO 29 – Cancelado. ENUNCIADO 30 – É taxativo o elenco das causas previstas no art. 3º da Lei 9.099/1995. ENUNCIADO 31 – É admissível pedido contraposto no caso de ser a parte ré pessoa jurídica. ENUNCIADO 32 – Substituído pelo Enunciado 139 (XXVIII FONAJE – Salvador/BA). ENUNCIADO 33 – É dispensável a expedição de carta precatória nos Juizados Especiais Cíveis, cumprindo-se os atos nas demais comarcas, mediante via postal, por ofício do Juiz, fax, telefone ou qualquer outro meio idôneo de comunicação. ENUNCIADO 34 – Cancelado. ENUNCIADO 35 – Finda a instrução, não são obrigatórios os debates orais. ENUNCIADO 36 – A assistência obrigatória prevista no art. 9º da Lei 9.099/1995 tem lugar a partir da fase instrutória, não se aplicando para a formulação do pedido e a sessão de conciliação. ENUNCIADO 37 – Em exegese ao art. 53, § 4º, da Lei 9.099/1995, não se aplica ao processo de execução o disposto no art. 18, § 2º, da referida lei, sendo autorizados o arresto e a citação editalícia quando não encontrado o devedor, observados, no que couber, os arts. 653 e 654 do Código de Processo Civil (nova redação – XXI Encontro – Vitória/ES). ENUNCIADO 38 – A análise do art. 52, IV, da Lei 9.099/1995, determina que, desde logo, expeça-se o mandado de penhora, depósito, avaliação Revista do CEJ - n. 5, p. 273-299 - nov. 2015 275 Enunciados aprovados no Fórum Nacional de Juizados Especiais – FONAJE e intimação, inclusive da eventual audiência de conciliação designada, considerando-se o executado intimado com a simples entrega de cópia do referido mandado em seu endereço, devendo, nesse caso, ser certificado circunstanciadamente. ENUNCIADO 39 – Em observância ao art. 2º da Lei 9.099/1995, o valor da causa corresponderá à pretensão econômica objeto do pedido. ENUNCIADO 40 – O conciliador ou juiz leigo não está incompatibilizado nem impedido de exercer a advocacia, exceto perante o próprio Juizado Especial em que atue ou se pertencer aos quadros do Poder Judiciário. ENUNCIADO 41 – A correspondência ou contrafé recebida no endereço do advogado é eficaz para efeito de intimação, desde que identificado o seu recebedor (nova redação – XXI Encontro – Vitória/ES). ENUNCIADO 42 – Substituído pelo Enunciado 99 (XIX Encontro – Aracaju/SE). ENUNCIADO 43 – Na execução do título judicial definitivo, ainda que não localizado o executado, admite-se a penhora de seus bens, dispensado o arresto. A intimação de penhora observará ao disposto no artigo 19, § 2º, da Lei 9.099/1995. ENUNCIADO 44 – No âmbito dos Juizados Especiais, não são devidas despesas para efeito do cumprimento de diligências, inclusive, quando da expedição de cartas precatórias. ENUNCIADO 45 – Substituído pelo Enunciado 75. ENUNCIADO 46 – A fundamentação da sentença ou do acórdão poderá ser feita oralmente, com gravação por qualquer meio, eletrônico ou digital, consignando-se apenas o dispositivo na ata (nova redação – XIV Encontro – São Luis/MA). ENUNCIADO 47 – Substituído pelo Enunciado 135 (XXVII FONAJE – Palmas/TO). ENUNCIADO 48 – O disposto no parágrafo 1º do art. 9º da Lei 9.099/1995 é aplicável às microempresas e às empresas de pequeno porte (nova redação – XXI Encontro – Vitória/ES). ENUNCIADO 49 – Cancelado (XXI Encontro – Vitória/ES). 276 Revista do CEJ - n. 5, p. 273-299 - nov. 2015 Enunciados Cíveis ENUNCIADO 50 – Para efeito de alçada, em sede de Juizados Especiais, tomar-se-á como base o salário mínimo nacional. ENUNCIADO 51 – Os processos de conhecimento contra empresas sob liquidação extrajudicial, concordata ou recuperação judicial devem prosseguir até a sentença de mérito, para constituição do título executivo judicial, possibilitando a parte habilitar o seu crédito, no momento oportuno, pela via própria (nova redação – XXI Encontro – Vitória/ES). ENUNCIADO 52 – Os embargos à execução poderão ser decididos pelo juiz leigo, observado o art. 40 da Lei 9.099/1995. ENUNCIADO 53 – Deverá constar da citação a advertência, em termos claros, da possibilidade de inversão do ônus da prova. ENUNCIADO 54 – A menor complexidade da causa para a fixação da competência é aferida pelo objeto da prova e não em face do direito material. ENUNCIADO 55 – Substituído pelo Enunciado 76. ENUNCIADO 56 – Cancelado. ENUNCIADO 57 – Cancelado. ENUNCIADO 58 (Substitui o Enunciado 2) – As causas cíveis enumeradas no art. 275 II, do CPC admitem condenação superior a 40 salários mínimos e sua respectiva execução, no próprio Juizado. ENUNCIADO 59 – Admite-se o pagamento do débito por meio de desconto em folha de pagamento, após anuência expressa do devedor e em percentual que reconheça não afetar sua subsistência e a de sua família, atendendo sua comodidade e conveniência pessoal. ENUNCIADO 60 – É cabível a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica, inclusive na fase de execução. (nova redação – XIII Encontro – Campo Grande/MS). ENUNCIADO 61 – Cancelado (XIII Encontro – Campo Grande/MS). ENUNCIADO 62 – Cabe exclusivamente às Turmas Recursais conhecer e julgar o mandado de segurança e o habeas corpus impetrados em face de atos judiciais oriundos dos Juizados Especiais. Revista do CEJ - n. 5, p. 273-299 - nov. 2015 277 Enunciados aprovados no Fórum Nacional de Juizados Especiais – FONAJE ENUNCIADO 63 – Contra decisões das Turmas Recursais são cabíveis somente os embargos declaratórios e o Recurso Extraordinário. ENUNCIADO 64 – Cancelado (XVI Encontro – Rio de Janeiro/RJ). ENUNCIADO 65 – Cancelado (XVI Encontro – Rio de Janeiro/RJ). ENUNCIADO 66 – Cancelado (XXI Encontro – Vitória/ES). ENUNCIADO 67 – Substituído pelo Enunciado 91. ENUNCIADO 68 – Somente se admite conexão em Juizado Especial Cível quando as ações puderem submeter-se à sistemática da Lei 9099/1995. ENUNCIADO 69 – As ações envolvendo danos morais não constituem, por si só, matéria complexa. ENUNCIADO 70 – As ações nas quais se discute a ilegalidade de juros não são complexas para o fim de fixação da competência dos Juizados Especiais, exceto quando exigirem perícia contábil (nova redação – XXX Encontro – São Paulo/SP). ENUNCIADO 71 – É cabível a designação de audiência de conciliação em execução de título judicial. ENUNCIADO 72 – Substituído pelo Enunciado 148 (XXIX Encontro – Bonito/MS). ENUNCIADO 73 – As causas de competência dos Juizados Especiais em que forem comuns o objeto ou a causa de pedir poderão ser reunidas para efeito de instrução, se necessária, e julgamento. ENUNCIADO 74 – A prerrogativa de foro na esfera penal não afasta a competência dos Juizados Especiais Cíveis. ENUNCIADO 75 (Substitui o Enunciado 45) – A hipótese do § 4º, do art. 53, da Lei 9.099/1995, também se aplica às execuções de título judicial, entregando-se ao exequente, no caso, certidão do seu crédito, como título para futura execução, sem prejuízo da manutenção do nome do executado no Cartório Distribuidor (nova redação – XXI Encontro – Vitória/ES). ENUNCIADO 76 (Substitui o Enunciado 55) – No processo de execução, esgotados os meios de defesa e inexistindo bens para a garantia do débito, expede-se a pedido do exequente certidão de dívida para fins de 278 Revista do CEJ - n. 5, p. 273-299 - nov. 2015 Enunciados Cíveis inscrição no Serviço de Proteção ao Crédito – SPC e SERASA, sob pena de responsabilidade. ENUNCIADO 77 – O advogado cujo nome constar do termo de audiência estará habilitado para todos os atos do processo, inclusive para o recurso (XI Encontro – Brasília-DF). ENUNCIADO 78 – O oferecimento de resposta, oral ou escrita, não dispensa o comparecimento pessoal da parte, ensejando, pois, os efeitos da revelia (XI Encontro – Brasília-DF). ENUNCIADO 79 – Designar-se-á hasta pública única, se o bem penhorado não atingir valor superior a sessenta salários mínimos (nova redação – XXI Encontro- Vitória/ES). ENUNCIADO 80 – O recurso inominado será julgado deserto quando não houver o recolhimento integral do preparo e sua respectiva comprovação pela parte, no prazo de 48 horas, não admitida a complementação intempestiva (art. 42, § 1º, da Lei 9.099/1995) (nova redação – XII Encontro Maceió-AL). ENUNCIADO 81 – A arrematação e a adjudicação podem ser impugnadas, no prazo de cinco dias do ato, por simples pedido (nova redação – XXI Encontro- Vitória/ES). ENUNCIADO 82 – Nas ações derivadas de acidentes de trânsito a demanda poderá ser ajuizada contra a seguradora, isolada ou conjuntamente com os demais coobrigados (XIII Encontro – Campo Grande/MS). ENUNCIADO 83 – Cancelado (XIX Encontro – Aracaju/SE). ENUNCIADO 84 – Compete ao Presidente da Turma Recursal o juízo de admissibilidade do Recurso Extraordinário, salvo disposição em contrário (nova redação – XXII Encontro – Manaus/AM). ENUNCIADO 85 – O prazo para recorrer da decisão de Turma Recursal fluirá da data do julgamento (XIV Encontro – São Luis/MA). ENUNCIADO 86 – Os prazos processuais nos procedimentos sujeitos ao rito especial dos Juizados Especiais não se suspendem e nem se interrompem (nova redação – XXI Encontro – Vitória/ES). Revista do CEJ - n. 5, p. 273-299 - nov. 2015 279 Enunciados aprovados no Fórum Nacional de Juizados Especiais – FONAJE ENUNCIADO 87 – A Lei 10.259/2001 não altera o limite da alçada previsto no artigo 3°, inciso I, da Lei 9099/1995 (XV Encontro – Florianópolis/SC). ENUNCIADO 88 – Não cabe recurso adesivo em sede de Juizado Especial, por falta de expressa previsão legal (XV Encontro – Florianópolis/SC). ENUNCIADO 89 – A incompetência territorial pode ser reconhecida de ofício no sistema de juizados especiais cíveis (XVI Encontro – Rio de Janeiro/RJ). ENUNCIADO 90 – A desistência do autor, mesmo sem a anuência do réu já citado, implicará na extinção do processo sem julgamento do mérito, ainda que tal ato se dê em audiência de instrução e julgamento (XVI Encontro – Rio de Janeiro/RJ). ENUNCIADO 91 (Substitui o Enunciado 67) – O conflito de competência entre juízes de Juizados Especiais vinculados à mesma Turma Recursal será decidido por esta. Inexistindo tal vinculação, será decidido pela Turma Recursal para a qual for distribuído (nova redação – XXII Encontro – Manaus/AM). ENUNCIADO 92 – Nos termos do art. 46 da Lei 9099/1995, é dispensável o relatório nos julgamentos proferidos pelas Turmas Recursais (XVI Encontro – Rio de Janeiro/RJ). ENUNCIADO 93 – Substituído pelo Enunciado 140 (XXVIII FONAJE – Salvador/BA). ENUNCIADO 94 – É cabível, em Juizados Especiais Cíveis, a propositura de ação de revisão de contrato, inclusive quando o autor pretenda o parcelamento de dívida, observado o valor de alçada, exceto quando exigir perícia contábil (nova redação – XXX FONAJE – São Paulo/SP). ENUNCIADO 95 – Finda a audiência de instrução, conduzida por Juiz Leigo, deverá ser apresentada a proposta de sentença ao Juiz Togado em até dez dias, intimadas as partes no próprio termo da audiência para a data da leitura da sentença (XVIII Encontro – Goiânia/GO). ENUNCIADO 96 – A condenação do recorrente vencido, em honorários advocatícios, independe da apresentação de contrarrazões (XVIII Encontro – Goiânia/GO). ENUNCIADO 97 – O artigo 475, “j”, do CPC – Lei 11.323/2005 – aplica-se aos Juizados Especiais, ainda que o valor da multa somado ao da execução 280 Revista do CEJ - n. 5, p. 273-299 - nov. 2015 Enunciados Cíveis ultrapasse o valor de 40 salários mínimos (XIX Encontro – Aracaju/SE). ENUNCIADO 98 (Substitui o Enunciado 17) – É vedada a acumulação simultânea das condições de preposto e advogado na mesma pessoa (art. 35, I e 36, II da Lei 8906/1994 combinado com o art. 23 do Código de Ética e Disciplina da OAB) (XIX Encontro – Aracaju/SE). ENUNCIADO 99 (Substitui o Enunciado 42) – O preposto que comparece sem carta de preposição obriga-se a apresentá-la no prazo que for assinado, para validade de eventual acordo, sob as penas dos artigos 20 e 51, I, da Lei 9099/1995, conforme o caso (XIX Encontro – Aracaju/SE). ENUNCIADO 100 – A penhora de valores depositados em banco poderá ser feita independentemente de a agência situar-se no Juízo da execução (XIX Encontro – Aracaju/SE). ENUNCIADO 101 – Aplica-se ao Juizado Especial o disposto no art. 285, a, do CPC (XIX Encontro – Aracaju/SE). ENUNCIADO 102 – O relator, nas Turmas Recursais Cíveis, em decisão monocrática, poderá negar seguimento a recurso manifestamente inadmissível, improcedente, prejudicado ou em desacordo com Súmula ou jurisprudência dominante das Turmas Recursais ou da Turma de Uniformização ou ainda de Tribunal Superior, cabendo recurso interno para a Turma Recursal, no prazo de cinco dias (Alterado no XXXVI Encontro – Belém/PA). ENUNCIADO 103 – O relator, nas Turmas Recursais Cíveis, em decisão monocrática, poderá dar provimento a recurso se a decisão estiver em manifesto confronto com Súmula do Tribunal Superior ou Jurisprudência dominante do próprio juizado, cabendo recurso interno para a Turma Recursal, no prazo de 5 dias (alterado no XXXVI Encontro – Belém/PA). ENUNCIADO 104 – Substituído pelo Enunciado 142 (XXVIII Encontro – Salvador/BA). ENUNCIADO 105 – Cancelado (XXXIII Encontro – Cuiabá/MT). ENUNCIADO 106 – Havendo dificuldade de pagamento direto ao credor, ou resistência deste, o devedor, a fim de evitar a multa de 10%, deverá efetuar depósito perante o juízo singular de origem, ainda que os autos estejam na instância recursal (XIX Encontro – Aracaju/SE). Revista do CEJ - n. 5, p. 273-299 - nov. 2015 281 Enunciados aprovados no Fórum Nacional de Juizados Especiais – FONAJE ENUNCIADO 107 – Nos acidentes ocorridos antes da MP 340/06, convertida na Lei 11.482/07, o valor devido do seguro obrigatório é de 40 (quarenta) salários mínimos, não sendo possível modificá-lo por Resolução do CNSP e/ou Susep (nova redação – XXVI Encontro – Fortaleza/CE). ENUNCIADO 108 – A mera recusa ao pagamento de indenização decorrente de seguro obrigatório não configura dano moral (XIX Encontro – Aracaju/SE). ENUNCIADO 109 – Cancelado (XXIX Encontro – Bonito/MS). ENUNCIADO 110 – Substituído pelo Enunciado 141 (XXVIII Encontro – Salvador/BA). ENUNCIADO 111 – O condomínio, se admitido como autor, deve ser representado em audiência pelo síndico, ressalvado o disposto no § 2° do art. 1.348 do Código Civil (nova redação – XXI Encontro – Vitória/ES). ENUNCIADO 112 – A intimação da penhora e avaliação realizada na pessoa do executado dispensa a intimação do advogado. Sempre que possível o Oficial de Justiça deve proceder a intimação do executado no mesmo momento da constrição judicial (art. 475, § 1º CPC) (XX Encontro – São Paulo/SP). ENUNCIADO 113 – As turmas recursais reunidas poderão, mediante decisão de dois terços dos seus membros, salvo disposição regimental em contrário, aprovar súmulas (XIX Encontro – São Paulo/SP). ENUNCIADO 114 – A gratuidade da justiça não abrange o valor devido em condenação por litigância de má-fé (XX Encontro – São Paulo/SP). ENUNCIADO 115 – Indeferida a concessão do benefício da gratuidade da justiça requerido em sede de recurso, conceder-se-á o prazo de 48 horas para o preparo (XX Encontro – São Paulo/SP). ENUNCIADO 116 – O Juiz poderá, de ofício, exigir que a parte comprove a insuficiência de recursos para obter a concessão do benefício da gratuidade da justiça (art. 5º, LXXIV, da CF), uma vez que a afirmação da pobreza goza apenas de presunção relativa de veracidade (XX Encontro – São Paulo/SP). 282 Revista do CEJ - n. 5, p. 273-299 - nov. 2015 Enunciados Cíveis ENUNCIADO 117 – É obrigatória a segurança do Juízo pela penhora para apresentação de embargos à execução de título judicial ou extrajudicial perante o Juizado Especial (XXI Encontro – Vitória/ES). ENUNCIADO 118 – Quando manifestamente inadmissível ou infundado o recurso interposto, a turma recursal ou o relator em decisão monocrática condenará o recorrente a pagar multa de 1% e indenizar o recorrido no percentual de até 20% do valor da causa, ficando a interposição de qualquer outro recurso condicionada ao depósito do respectivo valor (XXI Encontro – Vitória/ES). ENUNCIADO 119 – Substituído pelo Enunciado 147 (XXIX Encontro – Bonito/MS). ENUNCIADO 120 – A multa derivada de descumprimento de antecipação de tutela é passível de execução mesmo antes do trânsito em julgado da sentença (XXI Encontro – Vitória/ES). ENUNCIADO 121 – Os fundamentos admitidos para embargar a execução da sentença estão disciplinados no art. 52, inciso IX, da Lei 9.099/95 e não no artigo 475-L do CPC, introduzido pela Lei 11.232/05 (XXI Encontro – Vitória/ES). ENUNCIADO 122 – É cabível a condenação em custas e honorários advocatícios na hipótese de não conhecimento do recurso inominado (XXI Encontro – Vitória/ES). ENUNCIADO 123 – O art. 191 do CPC não se aplica aos processos cíveis que tramitam perante o Juizado Especial (XXI Encontro – Vitória/ES). ENUNCIADO 124 – Das decisões proferidas pelas Turmas Recursais em mandado de segurança não cabe recurso ordinário (XXI Encontro – Vitória/ES). ENUNCIADO 125 – Nos juizados especiais, não são cabíveis embargos declaratórios contra acórdão ou súmula na hipótese do art. 46 da Lei 9.099/1995, com finalidade exclusiva de prequestionamento, para fins de interposição de recurso extraordinário (XXI Encontro – Vitória/ES). ENUNCIADO 126 – Em execução eletrônica de título extrajudicial, o título de crédito será digitalizado e o original apresentado até a sessão de conciliação ou prazo assinado, a fim de ser carimbado ou retido pela secretaria (XXIV Encontro – Florianópolis/SC). Revista do CEJ - n. 5, p. 273-299 - nov. 2015 283 Enunciados aprovados no Fórum Nacional de Juizados Especiais – FONAJE ENUNCIADO 127 – O cadastro de que trata o art. 1º, § 2º, III, “b”, da Lei 11.419/2006 deverá ser presencial e não poderá se dar mediante procuração, ainda que por instrumento público e com poderes especiais (XXIV Encontro – Florianópolis/SC). ENUNCIADO 128 – Além dos casos de segredo de justiça e sigilo judicial, os documentos digitalizados em processo eletrônico somente serão disponibilizados aos sujeitos processuais, vedado o acesso a consulta pública fora da secretaria do Juizado (XXIV Encontro – Florianópolis/SC). ENUNCIADO 129 – Nos Juizados Especiais que atuem com processo eletrônico, ultimado o processo de conhecimento em meio físico, a execução dar-se-á de forma eletrônica, digitalizando as peças necessárias (XXIV Encontro – Florianópolis/SC). ENUNCIADO 130 – Os documentos digitais que impliquem efeitos no meio não digital, uma vez materializados, terão a autenticidade certificada pelo Diretor de Secretaria ou Escrivão (XXIV Encontro – Florianópolis/SC). ENUNCIADO 131 – As empresas públicas e sociedades de economia mista dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios podem ser demandadas nos Juizados Especiais (XXV Encontro – São Luís/MA). ENUNCIADO 132 – Substituído pelo Enunciado 144 (XXVIII Encontro – Salvador/BA). ENUNCIADO 133 – O valor de alçada de 60 salários mínimos previsto no artigo 2º da Lei 12.153/09, não se aplica aos Juizados Especiais Cíveis, cujo limite permanece em 40 salários mínimos (XXVII Encontro – Palmas/TO). ENUNCIADO 134 – As inovações introduzidas pelo artigo 5º da Lei 12.153/09 não são aplicáveis aos Juizados Especiais Cíveis (Lei 9.099/95) (XXVII Encontro – Palmas/TO). ENUNCIADO 135 (substitui o Enunciado 47) – O acesso da microempresa ou empresa de pequeno porte no sistema dos Juizados Especiais depende da comprovação de sua qualificação tributária atualizada e documento fiscal referente ao negócio jurídico objeto da demanda (XXVII Encontro – Palmas/TO). ENUNCIADO 136 – O reconhecimento da litigância de má-fé poderá implicar em condenação ao pagamento de custas, honorários de 284 Revista do CEJ - n. 5, p. 273-299 - nov. 2015 Enunciados Cíveis advogado, multa e indenização nos termos dos artigos 55, caput, da Lei 9.099/95 e 18 do Código de Processo Civil (XXVII Encontro – Palmas/TO). ENUNCIADO 137 – Enunciado renumerado como n. 8 da Fazenda Pública (XXXII Encontro – Armação de Búzios/RJ). ENUNCIADO 138 – Enunciado renumerado como n. 9 da Fazenda Pública (XXXII Encontro – Armação de Búzios/RJ). ENUNCIADO 139 (substitui o Enunciado 32) – A exclusão da competência do sistema dos Juizados Especiais quanto às demandas sobre direitos ou interesses difusos ou coletivos, dentre eles os individuais homogêneos, aplica-se tanto para as demandas individuais de natureza multitudinária quanto para as ações coletivas. Se, no exercício de suas funções, os juízes e tribunais tiverem conhecimento de fatos que possam ensejar a propositura da ação civil coletiva, remeterão peças ao Ministério Público e/ou à Defensoria Pública para as providências cabíveis (Alterado no XXXVI Encontro – Belém/PA). ENUNCIADO 140 (Substitui o Enunciado 93) – O bloqueio on-line de numerário será considerado para todos os efeitos como penhora, dispensando-se a lavratura do termo e intimando-se o devedor da constrição (XXVIII Encontro – Salvador/BA). ENUNCIADO 141 (Substitui o Enunciado 110) – A microempresa e a empresa de pequeno porte, quando autoras, devem ser representadas, inclusive em audiência, pelo empresário individual ou pelo sócio dirigente (XXVIII Encontro – Salvador/BA). ENUNCIADO 142 (Substitui o Enunciado 104) – Na execução por título judicial, o prazo para oferecimento de embargos será de quinze dias e fluirá da intimação da penhora (XXVIII Encontro – Salvador/BA). ENUNCIADO 143 – A decisão que põe fim aos embargos à execução de título judicial ou extrajudicial é sentença, contra a qual cabe apenas recurso inominado (XXVIII Encontro – Salvador/BA). ENUNCIADO 144 (Substitui o Enunciado 132) – A multa cominatória não fica limitada ao valor de 40 salários mínimos, embora deva ser razoavelmente fixada pelo Juiz, obedecendo ao valor da obrigação principal, mais perdas e danos, atendidas as condições econômicas do devedor (XXVIII Encontro – Salvador/BA). Revista do CEJ - n. 5, p. 273-299 - nov. 2015 285 Enunciados aprovados no Fórum Nacional de Juizados Especiais – FONAJE ENUNCIADO 145 – A penhora não é requisito para a designação de audiência de conciliação na execução fundada em título extrajudicial (XXIX Encontro – Bonito/MS). ENUNCIADO 146 – A pessoa jurídica que exerça atividade de factoring e de gestão de créditos e ativos financeiros, excetuando as entidades descritas no art. 8º, § 1º, inciso IV, da Lei 9.099/95, não será admitida a propor ação perante o sistema dos Juizados Especiais (art. 3º, § 4º, VIII, da Lei Complementar n. 123, de 14 de dezembro de 2006) (XXIX Encontro – Bonito/MS). ENUNCIADO 147 (Substitui o Enunciado 119) – A constrição eletrônica de bens e valores poderá ser determinada de ofício pelo juiz (XXIX Encontro – Bonito/MS). ENUNCIADO 148 (Substitui o Enunciado 72) – Inexistindo interesse de incapazes, o espólio pode ser parte nos Juizados Especiais Cíveis (XXIX Encontro – Bonito/MS). ENUNCIADO 149 – Enunciado renumerado como n. 2 da Fazenda Pública (XXIX Encontro – Bonito/MS). ENUNCIADO 150 – Enunciado renumerado como n. 3 da Fazenda Pública (XXIX Encontro – Bonito/MS). ENUNCIADO 151 – Cancelado (XXIX FONAJE – Bonito/MS). ENUNCIADO 152 – Enunciado renumerado como n. 5 da Fazenda Pública (XXIX Encontro – Bonito/MS). ENUNCIADO 153 – Enunciado renumerado como n. 6 da Fazenda Pública (XXIX Encontro – Bonito/MS). ENUNCIADO 154 – Enunciado renumerado como n. 1 da Fazenda Pública (XXIX Encontro – Bonito/MS). ENUNCIADO 155 – Admitem-se embargos de terceiro, no sistema dos Juizados, mesmo pelas pessoas excluídas pelo parágrafo primeiro do art. 8º da Lei 9.099/95 (XXIX Encontro – Bonito/MS). ENUNCIADO 156 – Na execução de título judicial, o prazo para oposição de embargos flui da data do depósito espontâneo, valendo este como termo inicial, ficando dispensada a lavratura de termo de penhora (XXX Encontro – São Paulo/SP). 286 Revista do CEJ - n. 5, p. 273-299 - nov. 2015 Enunciados Criminais ENUNCIADO 157 – O disposto no artigo 294 do CPC não possui aplicabilidade nos Juizados Especiais Cíveis, o que confere ao autor a possibilidade de aditar seu pedido até o momento da AIJ (ou fase instrutória), sendo resguardado ao réu o respectivo direito de defesa (XXX Encontro – São Paulo/SP). ENUNCIADO 158 – Cancelado (XXXIII Encontro – Cuiabá/MT). ENUNCIADO 159 – Não existe omissão a sanar por meio de embargos de declaração quando o acórdão não enfrenta todas as questões arguidas pelas partes, desde que uma delas tenha sido suficiente para o julgamento do recurso (XXX Encontro – São Paulo/SP). ENUNCIADO 160 – Nas hipóteses do artigo 515, § 3º, do CPC, e quando reconhecida a prescrição na sentença, a turma recursal, dando provimento ao recurso, poderá julgar de imediato o mérito, independentemente de requerimento expresso do recorrente. Enunciados Criminais ENUNCIADO 1 – A ausência injustificada do autor do fato à audiência preliminar implicará em vista dos autos ao Ministério Público para o procedimento cabível. ENUNCIADO 2 – O Ministério Público, oferecida a representação em Juízo, poderá propor diretamente a transação penal, independentemente do comparecimento da vítima à audiência preliminar (nova redação – XXI Encontro – Vitória/ES). ENUNCIADO 3 – Cancelado (XXI Encontro – Vitória/ES). ENUNCIADO 4 – Substituído pelo Enunciado 38. ENUNCIADO 5 – Substituído pelo Enunciado 46. ENUNCIADO 6 – Substituído pelo Enunciado 86 (XXI Encontro – Vitória/ES). ENUNCIADO 7 – Cancelado. ENUNCIADO 8 – A multa deve ser fixada em dias-multa, tendo em vista o art. 92 da Lei 9.099/95, que determina a aplicação subsidiária dos Códigos Penal e de Processo Penal. Revista do CEJ - n. 5, p. 273-299 - nov. 2015 287 Enunciados aprovados no Fórum Nacional de Juizados Especiais – FONAJE ENUNCIADO 9 – A intimação do autor do fato para a audiência preliminar deve conter a advertência da necessidade de acompanhamento de advogado e de que, na sua falta, ser-lhe-á nomeado Defensor Público. ENUNCIADO 10 – Havendo conexão entre crimes da competência do Juizado Especial e do Juízo Penal Comum, prevalece a competência deste. ENUNCIADO 11 – Substituído pelo Enunciado 80 (XIX Encontro – Aracaju/SE). ENUNCIADO 12 – Substituído pelo Enunciado 64 (XXIV Encontro – Florianópolis/SC). ENUNCIADO 13 – É cabível o encaminhamento de proposta de transação por carta precatória (nova redação – XXI Encontro – Vitória/ES). ENUNCIADO 14 – Substituído pelo Enunciado 79 (XIX Encontro – Aracaju/SE). ENUNCIADO 15 – Substituído pelo Enunciado 87 (XXI Encontro – Vitória/ES). ENUNCIADO 16 – Nas hipóteses em que a condenação anterior não gera reincidência, é cabível a suspensão condicional do processo. ENUNCIADO 17 – É cabível, quando necessário, interrogatório por carta precatória, por não ferir os princípios que regem a Lei 9.099/95 (nova redação – XXI Encontro – Vitória/ES). ENUNCIADO 18 – Na hipótese de fato complexo, as peças de informação deverão ser encaminhadas à Delegacia Policial para as diligências necessárias. Retornando ao Juizado e sendo o caso do artigo 77, § 2º, da Lei 9.099/95, as peças serão encaminhadas ao Juízo Comum. ENUNCIADO 19 – Substituído pelo Enunciado 48 (XII Encontro – Maceió/AL). ENUNCIADO 20 – A proposta de transação de pena restritiva de direitos é cabível, mesmo quando o tipo em abstrato só comporta pena de multa. ENUNCIADO 21 – Cancelado. ENUNCIADO 22 – Na vigência do sursis, decorrente de condenação por contravenção penal, não perderá o autor do fato o direito à suspensão condicional do processo por prática de crime posterior. 288 Revista do CEJ - n. 5, p. 273-299 - nov. 2015 Enunciados Criminais ENUNCIADO 23 – Cancelado. ENUNCIADO 24 – Substituído pelo Enunciado 54. ENUNCIADO 25 – O início do prazo para o exercício da representação do ofendido começa a contar do dia do conhecimento da autoria do fato, observado o disposto no Código de Processo Penal ou legislação específica. Qualquer manifestação da vítima que denote intenção de representar vale como tal para os fins do art. 88 da Lei 9.099/95. ENUNCIADO 26 – Cancelado. ENUNCIADO 27 – Em regra não devem ser expedidos ofícios para órgãos públicos, objetivando a localização de partes e testemunhas nos Juizados Criminais. ENUNCIADO 28 – Cancelado (XVII Encontro – Curitiba/PR). ENUNCIADO 29 – Substituído pelo Enunciado 88 (XXI Encontro – Vitória/ES). ENUNCIADO 30 – Cancelado. ENUNCIADO 31 – O conciliador ou juiz leigo não está incompatibilizado nem impedido de exercer a advocacia, exceto perante o próprio Juizado Especial em que atue ou se pertencer aos quadros do Poder Judiciário. ENUNCIADO 32 – O Juiz ordenará a intimação da vítima para a audiência de suspensão do processo como forma de facilitar a reparação do dano, nos termos do art. 89, § 1º, da Lei 9.099/95. ENUNCIADO 33 – Aplica-se, por analogia, o artigo 49 do Código de Processo Penal no caso da vítima não representar contra um dos autores do fato. ENUNCIADO 34 – Atendidas as peculiaridades locais, o termo circunstanciado poderá ser lavrado pela Polícia Civil ou Militar. ENUNCIADO 35 – Substituído pelo Enunciado 113 (XXVIII Encontro – Salvador/BA). ENUNCIADO 36 – Substituído pelo Enunciado 89 (XXI Encontro – Vitória/ES). Revista do CEJ - n. 5, p. 273-299 - nov. 2015 289 Enunciados aprovados no Fórum Nacional de Juizados Especiais – FONAJE ENUNCIADO 37 – O acordo civil de que trata o art. 74 da Lei 9.099/1995 poderá versar sobre qualquer valor ou matéria (nova redação – XXI Encontro – Vitória/ES). ENUNCIADO 38 – Cancelado (XXXIII Encontro – Cuiabá/MT). ENUNCIADO 39 – Cancelado (XXXIII Encontro – Cuiabá/MT). ENUNCIADO 40 – Cancelado (XXXIII Encontro – Cuiabá/MT). ENUNCIADO 41 – Cancelado. ENUNCIADO 42 – A oitiva informal dos envolvidos e de testemunhas, colhida no âmbito do Juizado Especial Criminal, poderá ser utilizada como peça de informação para o procedimento. ENUNCIADO 43 – O acordo em que o objeto for obrigação de fazer ou não fazer deverá conter cláusula penal em valor certo, para facilitar a execução cível. ENUNCIADO 44 – No caso de transação penal homologada e não cumprida, o decurso do prazo prescricional provoca a declaração de extinção de punibilidade pela prescrição da pretensão punitiva (nova redação - XXXVII - Florianópolis/SC). ENUNCIADO 45 – Cancelado. ENUNCIADO 46 – Cancelado. ENUNCIADO 47 – Substituído pelo Enunciado 71 (XV Encontro – Florianópolis/SC). ENUNCIADO 48 – O recurso em sentido estrito é incabível em sede de Juizados Especiais Criminais. ENUNCIADO 49 – Substituído pelo Enunciado 90 (XXI Encontro – Vitória/ES). ENUNCIADO 50 – Cancelado (XI Encontro – Brasília-DF). ENUNCIADO 51 – A remessa dos autos ao juízo comum, na hipótese do art. 66, parágrafo único, da Lei 9.099/95 (Enunciado 64), exaure a competência do Juizado Especial Criminal, que não se restabelecerá com localização do acusado (nova redação – XXI Encontro – Vitória/ES). 290 Revista do CEJ - n. 5, p. 273-299 - nov. 2015 Enunciados Criminais ENUNCIADO 52 – A remessa dos autos ao juízo comum, na hipótese do art. 77, § 2º, da Lei 9099/95 (Enunciado 18), exaure a competência do Juizado Especial Criminal, que não se restabelecerá ainda que afastada a complexidade. ENUNCIADO 53 – No Juizado Especial Criminal, o recebimento da denúncia, na hipótese de suspensão condicional do processo, deve ser precedido da resposta prevista no art. 81 da Lei 9099/95. ENUNCIADO 54 (Substitui o Enunciado 24) – O processamento de medidas despenalizadoras, aplicáveis ao crime previsto no art. 306 da Lei 9503/97, por força do parágrafo único do art. 291 da mesma Lei, não compete ao Juizado Especial Criminal. ENUNCIADO 55 – Cancelado (XI Encontro – Brasília-DF). ENUNCIADO 56 – Cancelado (XXXVI Encontro - Belém/PA). ENUNCIADO 57 – Substituído pelo Enunciado 79 (XIX Encontro – Aracaju/SE). ENUNCIADO 58 – A transação penal poderá conter cláusula de renúncia à propriedade do objeto apreendido (XIII Encontro – Campo Grande/MS). ENUNCIADO 59 – O juiz decidirá sobre a destinação dos objetos apreendidos e não reclamados no prazo do art. 123 do CPP (XIII Encontro – Campo Grande/MS). ENUNCIADO 60 – Exceção da verdade e questões incidentais não afastam a competência dos Juizados Especiais, se a hipótese não for complexa (XIII Encontro – Campo Grande/MS). ENUNCIADO 61 – Substituído pelo Enunciado 122 (XXXIII Encontro – Cuiabá/MT). ENUNCIADO 62 – O Conselho da Comunidade poderá ser beneficiário da prestação pecuniária e deverá aplicá-la em prol da execução penal e de programas sociais, em especial daqueles que visem à prevenção da criminalidade (XIV Encontro – São Luis/MA). ENUNCIADO 63 – As entidades beneficiárias de prestação pecuniária, em contrapartida, deverão dar suporte à execução de penas e medidas alternativas (XIV Encontro – São Luis/MA). Revista do CEJ - n. 5, p. 273-299 - nov. 2015 291 Enunciados aprovados no Fórum Nacional de Juizados Especiais – FONAJE ENUNCIADO 64 – Verificada a impossibilidade de citação pessoal, ainda que a certidão do Oficial de Justiça seja anterior à denúncia, os autos serão remetidos ao juízo comum após o oferecimento desta (nova redação – XXI Encontro – Vitória/ES). ENUNCIADO 65 – Substituído pelo Enunciado 109 (XXV Encontro – São Luís). ENUNCIADO 66 – É direito do réu assistir à inquirição das testemunhas antes de seu interrogatório, ressalvado o disposto no artigo 217 do Código de Processo Penal. No caso excepcional de o interrogatório ser realizado por precatória, ela deverá ser instruída com cópia de todos os depoimentos, de que terá ciência o réu (XV Encontro – Florianópolis/SC). ENUNCIADO 67 – A possibilidade de aplicação de suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículos automotores por até cinco anos (art. 293 da Lei 9.503/97), perda do cargo, inabilitação para exercício de cargo, função pública ou mandato eletivo ou outra sanção diversa da privação da liberdade, não afasta a competência do Juizado Especial Criminal (XV Encontro – Florianópolis/SC). ENUNCIADO 68 – É cabível a substituição de uma modalidade de pena restritiva de direitos por outra, aplicada em sede de transação penal, pelo juízo do conhecimento, a requerimento do interessado, ouvido o Ministério Público (XV Encontro – Florianópolis/SC). ENUNCIADO 69 – Substituído pelo Enunciado 74 (XVI Encontro – Rio de Janeiro/RJ). ENUNCIADO 70 – O conciliador ou o juiz leigo podem presidir audiências preliminares nos Juizados Especiais Criminais, propondo conciliação e encaminhamento da proposta de transação (XV Encontro – Florianópolis/ SC). ENUNCIADO 71 (Substitui o Enunciado 47) – A expressão conciliação prevista no artigo 73 da Lei 9099/95 abrange o acordo civil e a transação penal, podendo a proposta do Ministério Público ser encaminhada pelo conciliador ou pelo juiz leigo, nos termos do artigo 76, § 3º, da mesma Lei (XV Encontro – Florianópolis/SC). ENUNCIADO 72 – A proposta de transação penal e a sentença homologatória devem conter obrigatoriamente o tipo infracional 292 Revista do CEJ - n. 5, p. 273-299 - nov. 2015 Enunciados Criminais imputado ao autor do fato, independentemente da capitulação ofertada no termo circunstanciado (XVI Encontro – Rio de Janeiro/RJ). ENUNCIADO 73 – O juiz pode deixar de homologar transação penal em razão de atipicidade, ocorrência de prescrição ou falta de justa causa para a ação penal, equivalendo tal decisão à rejeição da denúncia ou queixa (XVI Encontro – Rio de Janeiro/RJ). ENUNCIADO 74 (Substitui o Enunciado 69) – A prescrição e a decadência não impedem a homologação da composição civil (XVI Encontro – Rio de Janeiro/RJ). ENUNCIADO 75 – É possível o reconhecimento da prescrição da pretensão punitiva do Estado pela projeção da pena a ser aplicada ao caso concreto (XVII Encontro – Curitiba/PR). ENUNCIADO 76 – A ação penal relativa à contravenção de vias de fato dependerá de representação (XVII Encontro – Curitiba/PR). ENUNCIADO 77 – O juiz pode alterar a destinação das medidas penais indicadas na proposta de transação penal (XVIII Encontro – Goiânia/GO). ENUNCIADO 78 – Substituído pelo Enunciado 80 (XIX Encontro – Aracaju/ SE). ENUNCIADO 79 – Cancelado (XXXVI Encontro - Belém/PA). ENUNCIADO 80 – Cancelado (XXIV Encontro – Florianópolis/SC). ENUNCIADO 81 – O relator, nas Turmas Recursais Criminais, em decisão monocrática, poderá negar seguimento a recurso manifestamente inadmissível, prejudicado, ou julgar extinta a punibilidade, cabendo recurso interno para a Turma Recursal, no prazo de cinco dias (XIX Encontro – Aracaju/SE). ENUNCIADO 82 – O autor do fato previsto no art. 28 da Lei 11.343/06 deverá ser encaminhado à autoridade policial para as providências do art. 48, § 2º da mesma Lei (XX Encontro – São Paulo/SP). ENUNCIADO 83 – Ao ser aplicada a pena de advertência, prevista no art. 28, I, da Lei 11.343/06, sempre que possível deverá o juiz se fazer acompanhar de profissional habilitado na questão sobre drogas (XX Encontro – São Paulo/SP). Revista do CEJ - n. 5, p. 273-299 - nov. 2015 293 Enunciados aprovados no Fórum Nacional de Juizados Especiais – FONAJE ENUNCIADO 84 – Cancelado (XXXVII Encontro – Florianópolis/SC). ENUNCIADO 85 – Aceita a transação penal, o autor do fato previsto no art. 28 da Lei 11.343/06 deve ser advertido expressamente para os efeitos previstos no parágrafo 6º do referido dispositivo legal (XX Encontro – São Paulo/SP). ENUNCIADO 86 (Substitui o Enunciado 6) – Em caso de não oferecimento de proposta de transação penal ou de suspensão condicional do processo pelo Ministério Público, aplica-se, por analogia, o disposto no art. 28 do CPP (XXI Encontro – Vitória/ES). ENUNCIADO 87 (Substitui o Enunciado 15) – O Juizado Especial Criminal é competente para a execução das penas ou medidas aplicadas em transação penal, salvo quando houver central ou vara de penas e medidas alternativas com competência específica (XXI Encontro – Vitória/ES). ENUNCIADO 88 – Cancelado (XXXIII Encontro – Cuiabá/MT). ENUNCIADO 89 (Substitui o Enunciado 36) – Havendo possibilidade de solução de litígio de qualquer valor ou matéria subjacente à questão penal, o acordo poderá ser reduzido a termo no Juizado Especial Criminal e encaminhado ao juízo competente (XXI Encontro – Vitória/ES). ENUNCIADO 90 – Substituído pelo Enunciado 112 (XXVII Encontro – Palmas/TO). ENUNCIADO 91 – É possível a redução da medida proposta, autorizada no art. 76, § 1º da Lei 9099/1995, pelo juiz deprecado (XXI Encontro – Vitória/ES). ENUNCIADO 92 – É possível a adequação da proposta de transação penal ou das condições da suspensão do processo no juízo deprecado ou no juízo da execução, observadas as circunstâncias pessoais do beneficiário (nova redação – XXII Encontro – Manaus/AM). ENUNCIADO 93 – É cabível a expedição de precatória para citação, apresentação de defesa preliminar e proposta de suspensão do processo no juízo deprecado. Aceitas as condições, o juízo deprecado comunicará ao deprecante o qual, recebendo a denúncia, deferirá a suspensão, a ser cumprida no juízo deprecado (XXI Encontro – Vitória/ES). 294 Revista do CEJ - n. 5, p. 273-299 - nov. 2015 Enunciados Criminais ENUNCIADO 94 – A Lei 11.343/2006 não descriminalizou a conduta de posse ilegal de drogas para uso próprio (XXI Encontro – Vitória/ES). ENUNCIADO 95 – A abordagem individualizada multidisciplinar deve orientar a escolha da pena ou medida dentre as previstas no art. 28 da Lei 11.343/2006, não havendo gradação no rol (XXI Encontro – Vitória/ES). ENUNCIADO 96 – O prazo prescricional previsto no art. 30 da Lei 11.343/2006 aplica-se retroativamente aos crimes praticados na vigência da lei anterior (XXI Encontro – Vitória/ES). ENUNCIADO 97 – É possível a decretação, como efeito secundário da sentença condenatória, da perda dos veículos utilizados na prática de crime ambiental da competência dos Juizados Especiais Criminais (XXI Encontro – Vitória/ES). ENUNCIADO 98 – Os crimes previstos nos artigos 309 e 310 da Lei 9503/1997 são de perigo concreto (XXI Encontro – Vitória/ES). ENUNCIADO 99 – Nas infrações penais em que haja vítima determinada, em caso de desinteresse desta ou de composição civil, deixa de existir justa causa para ação penal (nova redação – XXIII Encontro – Boa Vista/RR). ENUNCIADO 100 – A procuração que instrui a ação penal privada, no Juizado Especial Criminal, deve atender aos requisitos do art. 44 do CPP (XXII Encontro – Manaus/AM). ENUNCIADO 101 – É irrecorrível a decisão que defere o arquivamento de termo circunstanciado a requerimento do Ministério Público, devendo o relator proceder na forma do Enunciado 81 (XXII Encontro – Manaus/AM). ENUNCIADO 102 – As penas restritivas de direito aplicadas em transação penal são fungíveis entre si (XXIII Encontro – Boa Vista/RR). ENUNCIADO 103 – A execução administrativa da pena de multa aplicada na sentença condenatória poderá ser feita de ofício pela Secretaria do Juizado ou Central de Penas (XXIV Encontro – Florianópolis/SC). ENUNCIADO 104 – A intimação da vítima é dispensável quando a sentença de extinção da punibilidade se embasar na declaração prévia de desinteresse na persecução penal (XXIV Encontro – Florianópolis/SC). Revista do CEJ - n. 5, p. 273-299 - nov. 2015 295 Enunciados aprovados no Fórum Nacional de Juizados Especiais – FONAJE ENUNCIADO 105 – É dispensável a intimação do autor do fato ou do réu das sentenças que extinguem sua punibilidade (XXIV Encontro – Florianópolis/SC). ENUNCIADO 106 – A audiência preliminar será sempre individual (XXIV Encontro – Florianópolis/SC). ENUNCIADO 107 – A advertência de que trata o art. 28, I da Lei 11.343/06, uma vez aceita em transação penal pode ser ministrada a mais de um autor do fato ao mesmo tempo, por profissional habilitado, em ato designado para data posterior à audiência preliminar (XXIV Encontro – Florianópolis/SC). ENUNCIADO 108 – O art. 396 do CPP não se aplica no Juizado Especial Criminal regido por lei especial (Lei 9.099/95), que estabelece regra própria (XXV Encontro – São Luís/MA). ENUNCIADO 109 – Substitui o Enunciado 65 – Nas hipóteses do artigo 363, § 1º e § 4º do Código de Processo Penal, aplica-se o parágrafo único do artigo 66 da Lei 9.099/95 (XXV Encontro – São Luís/MA). ENUNCIADO 110 – No Juizado Especial Criminal é cabível a citação com hora certa (XXV Encontro – São Luís/MA). ENUNCIADO 111 – O princípio da ampla defesa deve ser assegurado também na fase da transação penal (XXVII Encontro – Palmas/TO). ENUNCIADO 112 (Substitui o Enunciado 90) – Na ação penal de iniciativa privada, cabem transação penal e a suspensão condicional do processo, mediante proposta do Ministério Público (XXVII Encontro – Palmas/TO). ENUNCIADO 113 (Substitui o Enunciado 35) – Até a prolação da sentença é possível declarar a extinção da punibilidade do autor do fato pela renúncia expressa da vítima ao direito de representação ou pela conciliação (XXVIII Encontro – Salvador/BA). ENUNCIADO 114 – A transação penal poderá ser proposta até o final da instrução processual (XXVIII Encontro – Salvador/BA). ENUNCIADO 115 – A restrição de nova transação do art. 76, § 4º, da Lei 9.099/1995, não se aplica ao crime do art. 28 da Lei 11.343/2006 (XXVIII Encontro – Salvador/BA). 296 Revista do CEJ - n. 5, p. 273-299 - nov. 2015 Enunciados Criminais ENUNCIADO 116 – Na transação penal deverão ser observados os princípios da justiça restaurativa, da proporcionalidade, da dignidade, visando a efetividade e adequação (XXVIII Encontro – Salvador/BA). ENUNCIADO 117 – A ausência da vítima na audiência, quando intimada ou não localizada, importará renúncia tácita à representação (XXVIII Encontro – Salvador/BA). ENUNCIADO 118 – Somente a reincidência específica autoriza a exasperação da pena de que trata o § 4º do artigo 28 da Lei 11.343/2006 (XXIX Encontro – Bonito/MS). ENUNCIADO 119 – É possível a mediação no âmbito do Juizado Especial Criminal (XXIX Encontro – Bonito/MS). ENUNCIADO 120 – O concurso de infrações de menor potencial ofensivo não afasta a competência do Juizado Especial Criminal, ainda que o somatório das penas, em abstrato, ultrapasse dois anos (XXIX Encontro – Bonito/MS). ENUNCIADO 121 – As medidas cautelares previstas no art. 319 do CPP e suas consequências, à exceção da fiança, são aplicáveis às infrações penais de menor potencial ofensivo para as quais a lei cominar em tese pena privativa da liberdade (XXX Encontro – São Paulo/SP). ENUNCIADO 122 (Substitui o Enunciado 61) – O processamento de medidas despenalizadoras previstas no artigo 94 da Lei 10.741/03, relativamente aos crimes cuja pena máxima não supere 02 anos, compete ao Juizado Especial Criminal (XXXIII Encontro – Cuiabá/MT). ENUNCIADO 123 – O mero decurso do prazo da suspensão condicional do processo sem o cumprimento integral das condições impostas em juízo não redundará em extinção automática da punibilidade do agente (XXXIII Encontro – Cuiabá/MT). ENUNCIADO 124 – A reincidência decorrente de sentença condenatória e a existência de transação penal anterior, ainda que por crime de outra natureza ou contravenção, não impedem a aplicação das medidas despenalizadoras do artigo 28 da Lei 11.343/06 em sede de transação penal (XXXIII Encontro – Cuiabá/MT). ENUNCIADO 125 – É cabível, no Juizado Especial Criminal, a intimação por edital da sentença penal condenatória, quando não localizado o réu (XXXVI Encontro - Belém/PA). Revista do CEJ - n. 5, p. 273-299 - nov. 2015 297 Enunciados aprovados no Fórum Nacional de Juizados Especiais – FONAJE ENUNCIADO 126 – A condenação por infração ao artigo 28 da Lei 11.343/06 não enseja registro para efeitos de antecedentes criminais e reincidência. (XXXVII Encontro - Florianópolis/SC). Enunciados da Fazenda Pública ENUNCIADO 01 – Aplicam-se aos Juizados Especiais da Fazenda Pública, no que couber, os Enunciados dos Juizados Especiais Cíveis (XXIX Encontro – Bonito/MS). ENUNCIADO 02 – É cabível, nos Juizados Especiais da Fazenda Pública, o litisconsórcio ativo, ficando definido, para fins de fixação da competência, o valor individualmente considerado de até 60 salários mínimos (XXIX Encontro – Bonito/MS). ENUNCIADO 03 – Não há prazo diferenciado para a Defensoria Pública no âmbito dos Juizados Especiais da Fazenda Pública (XXIX Encontro – Bonito/MS). ENUNCIADO 04 – Cancelado (XXIX Encontro – Bonito/MS). ENUNCIADO 05 – É de 10 dias o prazo de recurso contra decisão que deferir tutela antecipada em face da Fazenda Pública (nova redação – XXX Encontro – São Paulo/SP). ENUNCIADO 06 – Vencida a Fazenda Pública, quando recorrente, a fixação de honorários advocatícios deve ser estabelecida de acordo com o § 4º, do art. 20, do Código de Processo Civil, de forma equitativa pelo juiz (XXIX Encontro – Bonito/MS). ENUNCIADO 07 – O sequestro previsto no § 1º do artigo 13 da Lei 12.153/09 também poderá ser feito por meio do BACENJUD, ressalvada a hipótese de precatório (XXX Encontro – São Paulo/SP). ENUNCIADO 08 – De acordo com a decisão proferida pela 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça no Conflito de Competência 35.420, e considerando que o inciso II do art. 5º da Lei 12.153/09 é taxativo e não inclui ente da Administração Federal entre os legitimados passivos, não cabe, no Juizado Especial da Fazenda Pública ou no Juizado Estadual Cível, ação contra a União, suas empresas públicas e autarquias, nem contra o INSS (XXXII Encontro – Armação de Búzios/RJ). 298 Revista do CEJ - n. 5, p. 273-299 - nov. 2015 Enunciados da Fazenda Pública ENUNCIADO 09 – Nas comarcas onde não houver Juizado Especial da Fazenda Pública ou juizados adjuntos instalados, as ações serão propostas perante as varas comuns que detêm competência para processar os feitos de interesse da Fazenda Pública ou perante aquelas designadas pelo Tribunal de Justiça, observando-se o procedimento previsto na Lei 12.153/09 (XXXII Encontro – Armação de Búzios/RJ). ENUNCIADO 10 – É admitido no Juizado da Fazenda Pública o julgamento em lote/lista, quando a matéria for exclusivamente de direito e repetitivo (XXXII Encontro – Armação de Búzios/RJ). ENUNCIADO 11 – As causas de maior complexidade probatória, por imporem dificuldades para assegurar o contraditório e a ampla defesa, afastam a competência do Juizado da Fazenda Pública (XXXII Encontro – Armação de Búzios/RJ). Revista do CEJ - n. 5, p. 273-299 - nov. 2015 299