universidade do vale do itajaí centro de educação de ciências da

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UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ
CENTRO DE EDUCAÇÃO DE CIÊNCIAS DA SAÚDE
CURSO DE PSICOLOGIA
ENTRE ESPONJAS, COMPUTADORES E CANIVETES SUÍÇOS: a
evolução da mente em Mithen e uma nova concepção da linguagem em
Pinker.
GERMANA KOROLL CAMACHO
Itajaí, (SC) 2007
GERMANA KOROL CAMACHO
ENTRE ESPONJAS, COMPUTADORES E CANIVETES SUÍÇOS: a
evolução da mente em Mithen e uma nova concepção da linguagem em
Pinker.
.
Monografia de Trabalho de Conclusão de
Curso apresentada como requisito parcial
para obtenção de créditos na disciplina
Supervisão de Trabalho de Conclusão de
Curso em Psicologia da Universidade do Vale
do Itajaí.
Orientador: Prof. Dr. Eduardo José Legal
Itajaí (SC), 2007
2
DEDICATÓRIA
Dedico este trabalho ao meu pai, que desde
criança me ensinou que estudar era uma
formas de obter a felicidade.
3
AGRADECIMENTOS
Primeiramente gostaria de agradecer ao Prof. MsC Sérgio Jacques Jablonski
Jr. por ter aberto uma porta direcionada a conhecimentos e assuntos dos quais eu
não tinha a menor familiaridade e que hoje me fascinam. Além disso, apresentou-me
conteúdos e materiais essenciais para a realização desta pesquisa. Obrigada!
Agradeço imensamente ao meu orientador Dr. Eduardo José Legal, não só
pela sua disposição em compartilhar seu conhecimento e pela grande contribuição
para meu aprendizado, mas também pela sua paciência, amizade, compreensão e
encorajamento perante as situações adversas ocorridas durante este período.
Agradeço também ao colega Luciano Bertol Teixeira pela disposição em ler
este trabalho e por aceitar participar da banca examinadora.
Sou agradecida também a minha amiga Yaskara M. de Oliveira por fingir
acreditar que minhas crises de mau humor e de falta de paciência derivavam da
realização deste.
Agradeço minha amiga Ana Carolina Lugão, pela grande ajuda destinada na
primeira parte desta pesquisa.
Agradeço ao meu padrasto Gerson Carlotti pela paciência, pela compreensão,
ajuda e apoio nos diversos momentos em que necessitei.
Agradeço também a minha mãe, que em todos os momentos da minha vida
se faz infinitamente presente.
4
SUMÁRIO
RESUMO................................................................................................................
06
1 INTRODUÇÃO....................................................................................................
07
2 A EVOLUÇÃO DA MENTE HUMANA E DA LINGUAGEM, DE ACORDO
09
COM MITHEN.......................................................................................................
2.1 Os modelos de mente....................................................................................
10
2.2 Desenvolvimento infantil e os quatro domínios do conhecimento
23
intuitivo..................................................................................................................
2.2.1 A psicologia intuitiva..................................................................................
23
2.2.2 A biologia intuitiva......................................................................................
24
2.2.3 A física intuitiva...........................................................................................
25
2.2.4 Mentes em desenvolvimento: ascensão e queda da mentalidade do
26
tipo canivete suíço...............................................................................................
2.2.5 A linguagem como “lâmina” do canivete suíço.......................................
27
3 PINKER E A LINGUAGEM COMO INSTINTO...................................................
29
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................
36
5 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...................................................................
42
5
ENTRE ESPONJAS, COMPUTADORES E CANIVETES SUÍÇOS: a evolução da
mente em Mithen e uma nova concepção da linguagem em Pinker.
Prof. Dr. Eduardo José Legal
Defesa: Junho de 2007.
Resumo:
A mente humana levou milhões de anos para evoluir. É o fruto de um processo longo e
gradual, sem objetivo ou direção predeterminada, a não ser, o de manter a sobrevivência da
espécie. Assim, para compreender a evolução da mente é necessário que nossa atenção
volte-se primeiramente para nossa pré-história, pois provavelmente, foi neste período que as
características singulares do intelecto humano surgiram, como a linguagem e a inteligência
avançada. No decorrer do texto deste trabalho, vamos apresentar uma breve discussão
sobre os modelos de mente e sobre a origem e a função da linguagem. No tocante aos
modelos de mente, a passagem de uma compreensão mente-esponja para mente canivetesuíço aponta novas possibilidades de investigação, aumenta a complexidade do tema,
geram hipóteses testáveis (e refutáveis) e recoloca a mente no mundo natural e não apenas
no mundo das elucubrações teóricas. No que diz respeito à linguagem em específico, qual
seria o grande problema em vê-la e estuda-la como uma parte constituinte e determinada do
sistema nervoso dos seres humanos? Se podemos aceitar outras partes e funções da
constituição humana como herdadas e adaptadas porque não seria lógico aplicar esta linha
de raciocínio com a linguagem? Este estudo não pretendeu ser uma extensiva discussão
sobre o tema, mas uma abertura para uma compreensão mais dinâmica dos processos
psicológicos humanos, levando em conta os fatores filogenéticos dos mesmos. Neste
sentido, exploramos as idéias de dois pensadores contemporâneos, ligados a recente e
crescente Psicologia Evolucionária: Mithen e Pinker, sobre a evolução da mente humana e
de uma de suas características mais notáveis e distintas desta espécie: a linguagem oral.
Palavras-chave: Mente, linguagem, evolução, seleção natural.
6
1 INTRODUÇÃO
A mente humana levou milhões de anos para evoluir. É o fruto de um
processo longo e gradual, sem objetivo ou direção predeterminada, a não ser, o de
manter a sobrevivência da espécie. E mesmo esta tendência de sobrevivência não
pode ser denominada de “intencional”.
Assim, para compreender a evolução da mente é necessário que nossa
atenção volte-se primeiramente para nossa pré-história, pois foi neste período que
as características singulares do intelecto humano surgiram, como a linguagem e a
inteligência avançada.
A importância de entendermos essa história evolutiva é uma das razões de os
psicólogos estudarem os chimpanzés, e inúmeros trabalhos têm comparado a mente
desses primatas à humana, especialmente no que diz respeito às capacidades
lingüísticas.
Entretanto, os estudos resultaram insatisfatórios, porque embora, na escala
evolutiva os chimpanzés sejam nossos parentes mais próximos, esta proximidade
não é muito grande. Sete milhões de anos de evolução (aproximadamente) nos
separam, e a habilidade da linguagem, ao que parece, não foi tão importante na
história de adaptação dos chimpanzés como o foi para os seres humanos, já que os
chimpanzés não desenvolveram nenhuma linguagem com sintaxe e semântica
combinatória.
O que interessa neste momento é ressaltar que existe uma grande
probabilidade que seja exatamente neste período evolutivo que encontremos a
chave para compreender a mente moderna.
7
Quando foi que a linguagem e a consciência surgiram pela primeira vez?
Quando emergiu uma forma moderna de inteligência que permitiu a linguagem como
a conhecemos? Teriam ambas surgido em tempos distintos, ou ao mesmo tempo? A
linguagem surgiu como uma adaptação adquirida por seleção natural (evoluída a
partir de) ou ela é uma função viabilizada pelas outras capacidades da menteente
humana, ou seja, um spandrel?
Estas são questões que tem promovido calorosos debates acadêmicos e, por
sua vez, também servem de temas para a investigação científica entre lingüistas,
psicólogos do desenvolvimento e aprendizagem, antropólogos e neurocientistas, de
um modo geral. Respostas a estas questões podem ter impactos profundos sobre o
modo como compreendemos a linguagem, seu desenvolvimento, suas patologias e
como planejamos intervenções mais eficazes. Além disso, a compreensão de seus
mecanismos pode nos levar a entender o modo como a mente humana evoluiu, suas
funções e disfunções.
Neste trabalho nos propomos a apresentar a versão dos evolucionistas sobre
como a linguagem se tornou um atributo humano. Para tanto, duas obras
contemporâneas foram utilizadas como base desta compreensão, por serem ao
mesmo tempo, as mais citadas e as mais criticadas: (1) “A pré-história da mente”, de
Steven Mithen, escrita em 1996 (traduzida para o português em 2002); e, (2) “O
instinto da linguagem” de Steven Pinker, escrito em 1994 (traduzido para o
português em 2002).
No decorrer do texto deste trabalho, vamos apresentar as propostas de
ambos os autores e discutir, com base nos seus argumentos e de outros autores, a
viabilidade e evidências pró e contra a evolução da linguagem por meio da seleção
natural.
8
2 A EVOLUÇÃO DA MENTE HUMANA E DA LINGUAGEM, DE ACORDO COM
MITHEN
Nas duas últimas décadas presenciou-se um notável avanço no estudo do
comportamento e das relações evolutivas com os antepassados do homem
moderno. As questões sobre a aparência e comportamento deixaram de ser o único
interesse dos arqueólogos. Apoiados pela Psicologia Evolucionária, arqueólogos e
psicólogos juntaram esforços e conhecimentos para investigar o que se passava nas
mentes de nossos ancestrais. Este é o campo da recém batizada ”Arqueologia
Cognitiva”.
Mithen (2002) indica que essas duas novas subdisciplinas (Psicologia
Evolucionária e Arqueologia Cognitiva) precisam muito uma da outra. A arqueologia
cognitiva não pode avançar a não ser que os arqueólogos ouçam as opiniões atuais
da psicologia; os psicólogos evolutivos não terão sucesso a não ser que prestem
atenção à reconstrução arqueológica do comportamento dos ancestrais humanos1.
Realizar esta união, cujo fruto será uma compreensão da mente mais
profunda que a alcançada individualmente pela arqueologia ou psicologia, é a tarefa
que Mithen (2002) se propõe em seu livro: “A pré-história da mente”, trabalho este
que norteia, entre outros, esta pesquisa.
Steven Mithen é arqueólogo, professor de Arqueologia Pré-Histórica da
Universidade de Reading (Inglaterra). Seus trabalhos em campo se concentram
sobre as comunidades de caçadores-coletores das eras glaciais. Suas escavações
se concentram, hoje, na Jordânia, investigando populações de Neandertais. “A pré1
Existe muita crítica sobre esta reconstrução, pois os detalhes deixados a milhares ou milhões de
anos, mesmo dentro de contextos mais conhecidos, não contam com observações diretas do
comportamento e nem o podem fazê-lo. Logo a probabilidade de erro de interpretação é alta. Ver a
resposta dada por Howard Gardner à Merlin Donald e Steven Mithen (1998).
9
história da mente”, escrito em 1996, foi seu primeiro livro divulgando suas idéias
sobre a evolução da mente e se baseia em princípios da teoria da recapitulação (de
Ernest Haekel), do desenvolvimento cognitivo como interpretado pelos psicólogos
etólogos, e dos argumentos da Psicologia Evolucionária inclusos nos trabalhos de
Leda Cosmides e John Tooby.
2.1 Os modelos de mente
Mithen inicia sua argumentação afirmando que a mente humana é um produto
da evolução que segue os padrões estabelecidos por Darwin, ou seja, foi adquirida a
partir da seleção natural. Assim, busca argumentos em várias áreas do
conhecimento para fundamentar suas hipóteses: desde a etologia, passando pela
psicologia do desenvolvimento até a arqueologia e a psicologia cognitiva.
Nos últimos 100 anos, a mente foi comparada a vários objetos/aparelhos que
serviram de modelos para a compreensão de seu desenvolvimento: esponja,
computador, canivete suíço e suas múltiplas funções.
De acordo com Mithen (2002) a visão da mente como esponja vazia pronta
para ser embebida permeia tanto o pensamento comum quanto o de grande parte
do mundo acadêmico. Neste conceito o processo de adquirir conhecimento diz
respeito a embeber a esponja, e espremê-la tem a ver com lembrar-se de uma
informação; desta forma a evolução da mente humana parece ser resumida a não
mais que um aumento gradativo da esponja dentro das nossas cabeças.
Contudo, esta analogia não responde as questões referentes à capacidade
que a espécie humana possui de resolver problemas inéditos e formular novas
questões. Afinal, problemas novos não poderiam ser absorvidos anteriormente, já
10
que eles não existiam antes. Um novo modelo se fez necessário.
O segundo modelo, fruto do advento das ciências computacionais, foi a
metáfora do computador. Este foi o modelo de mente proposto pela psicologia
cognitiva até a década de 80. Nesta concepção, a mente funciona como um
computador que roda um único e poderoso programa de aprendizado geral. Este
programa se desenvolve com o tempo (maturação) e depende também das
estimulações do ambiente. A teoria do desenvolvimento cognitivo de Piaget, parece
se adequar perfeitamente a este modelo de mente. O aumento da eficiência e da
complexidade deste sistema denota o desenvolvimento cognitivo. Este modelo
preconiza a inteligência como uma capacidade adaptativa do organismo, contudo,
ela seria um mecanismo adaptativo evolutivo de propósito-geral, em outras palavras,
um mecanismo único que permite buscar soluções adaptadas para todos os demais
desafios impostos pelo meio ambiente. Segundo Piaget, a mente roda um pequeno
conjunto de programas de utilidade geral que controlam a entrada de novas
informações e também reestruturam a mente de modo que ela passe por uma série
de fases de desenvolvimento.
Evidências arqueológicas da construção de instrumentos de pedra lascada,
porém, demonstram que o estágio mais avançado de inteligência, de acordo com
Piaget (o das operações formais), já teria sido alcançado por nossos ancestrais
Homo erectus (WYNN, 2002). A questão é: teria o desenvolvimento cognitivo se
estabilizado há mais de 300 mil anos atrás? Nada de novo ocorreu, mesmo com um
aumento significativo do córtex cerebral entre o Homo erectus e o Homo sapiens? O
aparecimento da arte, dos utensílios de osso e da colonização global não teria
exigido novas bases cognitivas? Provavelmente sim, dado que estas características
ainda não estavam presentes nos H. erectus, e que mesmo entre os humanos, elas
11
aparecem há quase 40.000 anos atrás (LIMA, 1994).
Segundo os psicólogos evolutivos, essa noção de mente computador deveria
ser substituída por outra que a define como uma série de “domínios cognitivos”, ou
“inteligências”, ou “módulos” especializados, cada qual dedicado a algum tipo
específico de comportamento – como são os módulos para a aquisição da
linguagem.
Os psicólogos, então, introduziram um novo tipo de analogia: a mente é como
um canivete suíço, já que o canivete, assim como a mente, foi projetado com vários
elementos e dispositivos que possibilitam solucionar problemas específicos. Eles
adotaram termos como "módulos” (como em Fodor ou Pinker), “domínios cognitivos"
(como em Spelke) e "inteligências" (como em Gardner) para descrever cada um dos
dispositivos especializados. Há muita discordância sobre o número e a natureza
desses dispositivos.
O ponto de partida para a analogia mente-canivete-suíço são dois grandes
livros publicados. Um em 1983 que contém algumas idéias sobre a arquitetura da
mente, apresentando algumas indicações sobre seu passado: trata-se de “The
Modularity of Mind” (A modularidade da mente) de Jerry Fodor (1983 apud MITHEN,
2002). O outro é um livro organizado por Leda Cosmides, Jerome Barkow e John
Tooby chamado: “Adapted Mind: Evolutionary Psychology and the Generation of
Culture” (A mente adaptada: Psicologia Evolucionista e a geração de cultura),
publicado em 1992.
Fodor, psicolingüista, propõe que a mente deveria ser dividida em duas
grandes partes: percepção (ou sistemas de entrada) e cognição (ou sistemas
centrais). As respectivas arquiteturas são muito diferentes; sistemas de entrada
parecem os dispositivos de um canivete suíço, e Fodor (1983 apud MITHEN, 2002)
12
os descreve como uma série de "módulos" discretos e independentes, tal qual a
visão, a audição, o toque.
O autor inclui a linguagem entre os sistemas de entrada. Em contrapartida, os
sistemas centrais não possuem uma arquitetura modular, ou talvez ela sempre
permaneça fora do nosso alcance. É ali que os “misteriosos processos” conhecidos
como "pensamento", “resolução de problemas" e "imaginação" acontecem. É ali que
reside a "inteligência". Fodor (1983 apud MITHEN, 2002) argumenta que cada
sistema de entrada (percepção) se baseia em processos cerebrais independentes.
Por exemplo, os usados para a audição são totalmente diferentes dos usados para a
visão ou a linguagem; são como dispositivos diferentes do canivete suíço, que
simplesmente se encontram contidos num mesmo estojo. Essa modularidade dos
sistemas de entrada é atestada por numerosas evidências, que incluem uma aparente associação com partes específicas do cérebro, os típicos padrões de
desenvolvimento na criança. O autor também enfatiza o fato de os sistemas de
entrada operarem muito rapidamente e serem obrigatórios: não se pode deixar de
ouvir, ou ver, em face de estímulos apropriados.
Embora poucos viessem a contestar essas características dos sistemas de
entrada, outras, também propostas por Fodor (1983 apud MITHEN, 2002), dão mais
margem a controvérsias.
A primeira é a noção de que um dado sistema de entrada não tem acesso
direto à informação que está sendo adquirida por outros sistemas semelhantes.
Então, de acordo com o autor “... o que estou vendo neste momento não é
influenciado pelo que ouço”. O termo "encapsulado" é utilizado pelo autor para
denotar essa característica particular. Este princípio de encapsulamento será
mantido por Mithen quando ele fala em sistemas cognitivos centrais.
13
Outra característica é que os sistemas de entrada recebem apenas
informações limitadas dos sistemas centrais. Esse é um componente da arquitetura
da mente crucial, porque significa que o conhecimento de qualquer indivíduo tem
uma influência limitada, e talvez marginal, na maneira como ele percebe o mundo.
Um exemplo claro que Fodor (1983 apud MITHEN, 2002) usa para ilustrar isso são
as ilusões ópticas: elas persistem mesmo quando sabemos que o que estamos
vendo não é real.
A idéia de que a cognição influencia apenas marginalmente a percepção
(teorias empiristas da percepção) vai contra as idéias relativistas das ciências
sociais. Se considerarmos e pensarmos na mente como uma esponja, supõe-se que
a criança absorve o conhecimento da sua cultura. Para a alguns cientistas sociais
esse conhecimento também inclui a maneira de perceber o mundo. Logo, dentro
desta perspectiva seria impossível a cognição não afetar o sistema perceptivo
(percepção descendente). Fodor (1983 apud MITHEN, 2002), no entanto, diz que
isso é incorreto: a natureza da percepção já está embutida na mente ao nascermos.
Segundo o autor, sistemas de entrada são encapsulados, obrigatórios,
operam com rapidez e já vêm embutidos. Nesse sentido eles contrastam com a
cognição, o sistema central “esperto". Fodor (1983 apud MITHEN, 2002) argumenta
que não conhecemos praticamente nada sobre o funcionamento dos sistemas
centrais, exceto que eles possuem uma série de características opostas à dos
sistemas de entrada: operam devagar, não são encapsulados e são neutros quanto
ao domínio; em outras palavras, os processos de pensamento e resolução de
problemas ativam a integração da informação proveniente de todos os sistemas de
entrada, além daquela que já está sendo gerada internamente. Em outras palavras,
enquanto sinto que estou com fome, penso igualmente no que comer, onde, quanto
14
tenho de dinheiro, o sabor da comida, etc. Diferentemente dos sistemas de entrada,
os processos dos sistemas centrais não podem ser relacionados com partes
específicas do cérebro (pelo menos no que se refere a seu resultado final). Para ele,
“pensamento”, “resolução de problemas”, “imaginação” e "inteligência" são
irresolúveis. Mithen (2002) acredita, resumindo, que Fodor hipotetiza a mente como
possuidora de uma arquitetura de dois níveis; o inferior que é como um canivete
suíço e o superior, como algo que, não se pode descrever, porque não existe nada
igual a ele no mundo.
Fodor (1983 apud MITHEN, 2002) argumenta que a arquitetura da mente
moderna – fruto do processo da evolução humana – (embora Fodor também tenha
uma série de ressalvas quanto ao modelo evolutivo como única possibilidade de se
formar uma mente) de fato concebeu um projeto bem engenhoso, que permitiu á
espécie humana adaptar-se ao mundo que a rodeia. Fodor, então, proporcionou
uma arquitetura de dois níveis, e o papel de cada um parece ter uma relevância
evolutiva: pode-se imaginar a mente funcionando somente com os sistemas de
entrada, mas não com apenas um sistema central. Insetos e amebas precisam de
sistemas de entrada, mas não exigem os processos dos sistemas centrais. Portanto,
esse último talvez tenha sido adicionado em algum momento da evolução.
Entra em cena, então, a Psicologia Evolucionista que tem exatamente esta
meta: entender como a mente humana evoluiu. De acordo com Mithen (2002), os
líderes desta área são a psicóloga Leda Cosmides e o sociólogo John Tooby.
Durante o fim dos anos 1980 e começo dos 1990, eles publicaram uma série de
artigos que culminou em um trabalho extenso, intitulado "The psicological
foundations of culture" (As bases psicológicas da cultura), incluído no “The Adapted
15
Mind” (A mente adaptada). Ao adotar uma abordagem explicitamente evolucionária,
o trabalho deles tem desafiado muitas noções convencionais sobre a mente.
A argumentação de Cosmides e Tooby se baseia na idéia de que a
compreensão da mente só será possível se a considerarmos um produto da
evolução humana, já que esta estrutura funcional complexa não poderia ter surgido
pelo acaso.
Nesse respeito, Cosmides e Tooby tratam à mente como qualquer outro
órgão do corpo - é um mecanismo evoluído, construído e ajustado em resposta às
pressões seletivas enfrentadas pela nossa espécie durante sua evolução.
Apesar de logicamente provável (diante do acúmulo de evidências levantadas
no último século) a explicação neo-darwinista da evolução tem encontrado
resistências tanto fora quanto dentro do mundo acadêmico. Por que tanta dificuldade
para absorver Darwin? Gould (1992) aponta que em apenas uma década, ele
convenceu a intelectualidade da existência do evolucionismo. Entretanto, enquanto
estava vivo sua própria teoria da seleção natural nunca chegou a obter
popularidade; e mesmo nos dias atuais, embora constitua o núcleo da teoria
evolutiva, é mal interpretada, mal aplicada e citada erroneamente. Essa dificuldade
não pode residir na complexidade de sua estrutura lógica, já que a base da seleção
natural é a expressão da simplicidade: dois fatos inegáveis e uma conclusão
inevitável:
Fato 1: Os organismos variam, e essas variações são herdadas (pelo menos em
parte) por seus descendentes.
16
Fato 2: Os organismos produzem mais descendentes do que aqueles que podem
sobreviver. Na média, a descendência que varia com mais intensidade em direções
favorecidas pelo meio ambiente, sobreviverá e se propagará.
Conclusão: Variações favoráveis, portanto, crescerão na população através da
seleção natural.
Essas três afirmações asseguram que a seleção natural se efetuará, mas não
garantem, elas próprias, o papel fundamental que Darwin lhes atribuiu. A teoria de
Darwin repousa na afirmação de que a seleção natural é a força criativa da evolução
– e não o carrasco dos não aptos. A seleção natural também precisa criar os aptos;
precisa construir a adaptação em estágios, preservando, geração após geração, a
parte favorável de um espectro casual de variações. Se a seleção natural é criativa,
então nossa primeira afirmação precisa ser ampliada por outras restrições.
Em primeiro lugar, a variação deverá ser casual, ou pelo menos não poderá
inclinar-se preferencialmente para a adaptação. Isso porque, se a variação já vem
dirigida no rumo certo, então a seleção não desempenha papel criativo algum,
simplesmente elimina os desafortunados indivíduos que não variam da maneira
adequada. A evolução é um misto de acaso e necessidade – acaso em nível da
variação, necessidade no trabalho de seleção.
Em segundo lugar, a variação deve ser pequena em relação à extensão da
mudança evolutiva na formação de novas espécies, pois, se as novas espécies
surgissem todas de uma só vez, a seleção teria apenas de remover os antigos
ocupantes para dar lugar a uma melhoria que ela ainda não fabricou. Uma vez mais,
nossa compreensão da genética encoraja o ponto de vista darwiniano, de que as
17
pequenas mutações são a base da mudança evolutiva. Assim, a teoria
aparentemente simples de Darwin não deixa de ter complexidades sutis e exigências
adicionais.
O sucesso da explicação evolucionista para a especiação demonstrou que
sob a ação de mecanismos de seleção natural, os processos adaptativos de cada
espécie podem desenvolver “novidades” biológicas sejam elas visíveis e anatômicas
como o pescoço das girafas ou pouco visíveis e funcionais como o senso numérico
encontrada em vários animais além do homem (ALMEIDA, s/d; DEHAENE et al.,
2004).
A mente humana, como um conjunto de capacidades surgidas a partir das
mudanças anátomo-funcionais do sistema nervoso, possui as características típicas
de um produto de processo adaptativo biológico: é universal, tem características
herdáveis (genéticas) e não varia muito entre as culturas (DENNETT, 1996;
MEYERS, 1999).
Cosmides & Tooby (1987, 1992, 1994 apud MITHEN, 2002) argumentam que
a mente humana evoluiu sob a força das pressões seletivas enfrentadas pelos
nossos ancestrais caçadores e coletores durante o Pleistoceno. Apesar deste modo
de vida ter sido, aos poucos, substituído pelo modo de vida sedentário, há cerca de
10 mil anos, nossas mentes permaneceram adaptadas à caça e à coleta. Este tempo
pode parecer longo em termos de vida humana, porém, enquanto espécie, 10 mil
anos equivale a apenas 6,7% de nossa história. Em outras palavras, nosso cérebro
e nossa mente são fundamentalmente adaptados ao estilo de vida caçador-coletor.
Não houve tempo suficiente para mudanças de efeito sobre a composição cerebral
humana.
Como conseqüência disso, Cosmides e Tooby (1987, 1992, 1994 apud
18
MITHEN, 2002) apóiam a hipótese de que a mente é um canivete suíço com um
grande número de lâminas altamente especializadas; em outras palavras, é
composta de módulos mentais múltiplos. Cada uma dessas lâminas/módulos foi
projetada pela seleção natural para lidar com um determinado problema adaptativo
enfrentado pelos caçadores-coletores durante nosso passado.
Antes de analisar os tipos de módulos que Cosmides e Tooby acreditam que
existam nas mentes, Mithen (2002) considera importante compreender por que eles
interpretam a mente como um canivete suíço2, em vez de uma mente – esponja; ou
mente – computador, ou outra coisa. Eles têm três grandes argumentos.
Primeiro Cosmides & Tooby (1987, 1992, 1994 apud MITHEN, 2002) sugerem
que, como cada tipo de problema enfrentado pelos nossos ancestrais caçadorescoletores era singular, tentar resolver todos utilizando um único esquema de
raciocínio teria levado a muitos erros. Conseqüentemente, qualquer humano que
tivesse módulos mentais especializados e dedicados a tipos específicos de
problemas teria evitado erros e encontrado soluções com sucesso. Essa pessoa
teria possuído uma vantagem seletiva e seus genes teriam se espalhado na
população, codificando a feitura de canivetes suíços nas mentes dos seus
descendentes.
Os critérios para escolha de parceiros sexuais podem ilustrar o valor dos
módulos mentais. Se um homem está escolhendo com quem fazer sexo, deveria
evitar parceiras a quem está ligado biologicamente. Mas se ele está escolhendo
alguém com quem compartilhar comida, então não deveria evitar parentes. Alguém
que utilizasse uma regra de pensamento que dissesse "sempre ser amigável com
parentes" ou então "sempre ignorar parentes" não teria tanto sucesso reprodutivo
2
Ainda que nos textos de Cosmides e Tooby (1988, 1989) e Cosmides, Tooby e Barrett (2005) os
mesmos afirmam que a mente se assemelha a um computador.
19
quanto alguém com um conjunto de regras, cada uma dedicada a um problema
particular (MITHEN, 2002).
O segundo argumento utilizado por Cosmides e Tooby (1987, 1992, 1994
apud MITHEN, 2002) para fundamentar a noção de módulos ricos em conteúdo vem
da aprendizagem infantil. Crianças aprendem tantas coisas a respeito de tantos
assuntos complexos, em um espaço relativamente curto de tempo, que é provável
que suas mentes tenham sido pré-programadas para fazê-lo. Noam Chomsky
também utiliza este argumento para explicar a aprendizagem da linguagem quando
se refere a sua hipótese da "pobreza do estímulo".
Como é possível - perguntou-se Chomsky - que crianças adquiram as muitas
e complexas regras da gramática a partir de uma série limitada de elocuções
produzidas por seus pais? Como poderia um programa geral de aprendizado da
mente possivelmente deduzir essas regras, memorizá-Ias e então permitir que uma
criança de quatro anos as usasse de maneira quase perfeita? Mithen (2002)
responde: “[...] simplesmente não poderia”. Chomsky (1971 apud MITHEN, 2002)
discute que a mente contém um "dispositivo para aquisição da linguagem"
geneticamente fixo e dedicado ao aprendizado da língua, que já vem equipado com
um plano geral para regras gramaticais.
Cosmides e Tooby (1987, 1992, 1994 apud MITHEN, 2002) generalizam o
argumento da "pobreza do estímulo" para todos os domínios da vida. Como pode
uma criança aprender o significado de expressões faciais ou o comportamento de
objetos físicos, ou mesmo atribuir crenças e intenções a outras pessoas, a não ser
que ela seja ajudada por módulos mentais ricos em conteúdo e dedicados a essas
tarefas? Mesmo que pudéssemos atribuir à capacidade de aprendizagem um feito
tão magnífico teríamos que explicar, não a seu conteúdo (pois é do seu meio social),
20
mas qual a sua origem e “como” foi realizado pelo sistema nervoso. Neste sentido,
os estudos na área de neurociência e da psicologia cognitiva demonstram que
determinados conteúdos são rapidamente aprendidos e processados em termos
cerebrais; enquanto outros são de difícil compreensão e envolvem áreas cerebrais
difusas (KANDEL, SHWARTZ e JESSEL, 1997; PINEL, 2005).
O terceiro argumento é conhecido como o problema do contexto, e lida com a
dificuldade de tomar decisões. É o mesmo que Fodor utilizou ao explicar por que
existem os sistemas de entrada “estúpidos”. Mithen (2002, p. 70, 71) cita um
exemplo:
Imaginem um caçador pré-histórico que de repente depara com um leão.
O que ele deveria fazer? Se tivesse apenas um programa geral de
aprendizado, o tempo necessário para avaliar as intenções do leão e
pesar os prós e contras de correr ou não se mexer poderia muito bem ser
excessivamente longo. Conforme notou Fodor, o caçador provavelmente
teria sido devorado.
O problema com regras gerais de aprendizado, segundo Cosmides & Tooby
(1987, 1992, 1994 apud MITHEN, 2002), é que não existem limites quanto a qual
informação excluir durante uma tomada de decisão, e quais ações alternativas
ignorar. Toda e qualquer possibilidade deveria ser examinada. Nossos ancestrais
pré-históricos teriam tranqüilamente morrido de fome enquanto tentavam decidir
onde e o que caçar. Mas se um deles possuísse um módulo mental especializado
para tomar decisões sobre caçar, que indicasse os tipos de informação a
considerar e como processá-Ios, ele teria prosperado. Isso sem dúvida teria
aumentado seu sucesso reprodutivo, e a comunidade logo estaria povoada de seus
descendentes, cada qual com um módulo mental especializado para tomar
decisões sobre a caça.
21
Então, que tipos de lâminas encontraríamos? Isso nos leva talvez ao
aspecto mais significativo dos argumentos de Cosmides e Tooby: eles sugerem
que somos realmente capazes de prever quais dispositivos deveriam existir no
canivete. Pelo menos, pode-se prever as lâminas se soubermos os tipos de
problemas que os caçadores-coletores pré-históricos normalmente tinham que
enfrentar e resolver. Cosmides e Tooby (1987, 1992, 1994 apud MITHEN, 2002)
pensam que eles sabem e sugerem que a mente está cheia de um grande número
de módulos. Eles incluem:
Um para o reconhecimento do rosto, um para as relações espaciais, um
para a mecânica de objetos rígidos, um para o uso de ferramentas, um
para o medo, um para as trocas sociais, um para a emoção-percepção,
um para a motivação associada ao parentesco, um para a distribuição do
esforço e recalibração, um para o cuidado das crianças, um para as
inferências sociais, um para a amizade, um para a aquisição da gramática, um para a comunicação e pragmática, um para a teoria da mente, e
assim por diante! (COSMIDES & TOOBY, 1992 apud MITHEN,
2002, p. 71).
Cosmides & Tooby (1987, 1992, 1994 apud MITHEN, 2002) chamaram esses
grupos de "faculdades", que são imunes ao mundo externo e foram selecionadas
naturalmente.
A questão que se levanta é, por que tantos módulos? Podemos realmente
ter tantos processos psicológicos independentes nas nossas mentes? O que
Cosmides e Tooby colocam como módulos não seriam apenas junções de
funções? Essa “corrida” atrás de novos módulos são o que Fodor (1983 apud
MITHEN, 2002) temia ao advertir sobre a "teoria da modularidade enlouquecida”?
Leda Cosmides e John Tooby acham que não. Os módulos devem ser limitados,
mas precisaríamos conhecer primeiro as capacidades e as adaptações surgidas a
partir deles.
22
Mithen, por sua vez, apresenta sua própria versão de modularidade (ou de
“canivete”) da mente, sendo bem mais econômico que Cosmides e Tooby em termos
de quantas lâminas são necessárias. Para explicá-los ele retoma os estudos na área
de desenvolvimento humano.
2.2 Desenvolvimento infantil e os quatro domínios do conhecimento
intuitivo
As crianças de fato nascem com módulos mentais ricos em contextos que
refletem a estrutura do mundo real (do Pleistoceno), segundo gostariam Cosmides e
Tooby (1987, 1992, 1994 apud MITHEN, 2002) que pensássemos? A resposta dos
psicólogos do desenvolvimento é esmagadoramente favorável. Crianças pequenas
parecem ter um conhecimento intuitivo do mundo em pelo menos quatro domínios
do comportamento: a linguagem, a psicologia, a física e a biologia. E esse saber
intuitivo dentro de cada domínio parece estar diretamente relacionado com o estilo
de vida da caça e da coleta na pré-história.
2.2.1 A psicologia intuitiva
Quando as crianças chegam aos três anos de idade, passam a atribuir estados
mentais a outras pessoas ao tentar explicar suas ações. Em particular, elas entendem
que outras pessoas possuem crenças e desejos e que estes têm um papel causal no
comportamento. Conforme Andrew Whiten menciona na introdução do livro que editou,
Natural Theories of Mind (1991 apud MITHEN, 2002), isso foi várias vezes descrito
como "psicologia intuitiva", "psicologia da crença-desejo", "psicologia popular" (folk
23
psychology) e "teoria da mente". Os conceitos básicos de crença e desejo que as
crianças utilizam quaisquer que sejam suas origens culturais, não poderiam ser
elaborados a partir da evidência disponível durante os primeiros estágios dos seus
desenvolvimentos. Conseqüentemente, esses conceitos parecem emergir de uma
estrutura psicológica inata – um módulo mental rico em conteúdo que cria
interpretações obrigatórias do comportamento humano em termos mentalísticos.
2.2.2 A biologia intuitiva
Pesquisas na área do desenvolvimento infantil têm mostrado que as crianças
aparentemente já nascem compreendendo uma diferença entre os seres vivos e os
objetos inanimados. Crianças com apenas três anos parecem ter uma compulsão
para atribuir uma "essência" a tipos diferentes de seres vivos e de reconhecer que
uma mudança de aparência não reflete uma mudança de espécie (ATRAN, 1990,
1994 apud MITHEN, 2002).
Crianças são capazes de entender que vestir um pijama de listras num cavalo
não o transforma em zebra. Da mesma forma, se um cachorro nasce mudo e com
apenas três pernas, mesmo assim continua sendo um cachorro, que é um
quadrúpede que late (KEIL & ATRAN, 1994 apud MITHEN, 2002). Assim como a
experiência de crianças pequenas parece insuficiente para explicar como elas
adquirem a linguagem, também suas experiências do mundo não chegam a explicar
a compreensão que elas têm dos seres vivos.
Outra razão para acreditar em uma biologia intuitiva é o fato de todas as
culturas conhecidas compartilharem o mesmo conjunto de noções quanto à
24
classificação do mundo natural, assim como todas as línguas compartilham a
mesma estrutura gramatical.
2.2.3 A física intuitiva
A evidência proveniente da psicologia do desenvolvimento parece conclusiva:
a facilidade com que as crianças aprendem sobre linguagem, outras mentes e
biologia aparentemente deriva de uma base cognitiva de módulos mentais inatos e
ricos em conteúdo; estes parecem ser universalmente partilhados por todos os
humanos. Esse achado também se aplica a um quarto domínio cognitivo: a física
intuitiva. Desde pequenas, as crianças entendem que objetos físicos estão sujeitos a
um conjunto de regras diferentes das que regem os conceitos mentais e os seres
vivos. Parece impossível que elas adquiram esse conhecimento a partir das suas
limitadas experiências do mundo.
Isso foi demonstrado pela psicóloga Elizabeth Spelke (1991 apud MITHEN,
2002). Ela empreendeu uma série de experimentos com crianças pequenas para demonstrar um conhecimento intuitivo proveniente das propriedades de objetos físicos.
Conceitos sobre solidez, gravidade e inércia parecem estar embutidos na mente
infantil. Apesar das experiências de vida de uma criança ainda pequena serem
dominadas pelas demais pessoas, elas, mesmo assim, compreendem que objetos
possuem propriedades fundamentalmente diferentes. Objetos não podem, por
exemplo, causar "uma ação a distância", como um estranho pode fazê-Io ao entrar
numa sala.
De um ponto de vista evolucionista, o benefício de possuir módulos mentais
ricos em conteúdo para compreender objetos físicos fica logo evidente. Se os seres
25
humanos arriscassem a usar idéias adequadas aos seres vivos para pensar sobre
objetos inertes, a vida seria cheia de erros. Possuindo um conhecimento intuitivo da
física pode-se rapidamente recorrer ao conhecimento culturalmente transmitido
sobre os objetos necessários ao estilo de vida próprio.
2.2.4 Mentes em desenvolvimento
Nessa luta entre a experiência cotidiana do mundo e as idéias acadêmicas
dos psicólogos evolucionistas, estas últimas é que parecem ter vencido sem esforço.
Há um acúmulo sem fim de dados da psicologia do desenvolvimento indicando que
crianças realmente nascem com uma grande quantidade de informações sobre o
mundo já embutidas nas suas mentes. Esse conhecimento parece recair em quatro
domínios cognitivos: a linguagem, a psicologia, a biologia e a física, como já foi
apontado. Para cada um deles, é possível imaginar fortes pressões seletivas a favor
da evolução de módulos mentais ricos em conteúdo – a favor das lâminas
específicas do canivete suíço que parece ser a mente.
A apreciação da mente não pode, contudo, se resumir a isso. Vejamos o
exemplo da maneira como uma criança brinca com uma boneca inerte, conferindolhe atributos de um ser vivo; uma característica mental crucial dessa criança não é o
fato de ela simplesmente poder aplicar regras evolutivamente inadequadas as da
psicologia, da biologia e da linguagem, para brincar com seu objeto inerte, mas o
fato de ela ser absolutamente compelida a fazer isso. Essa compulsão, e a
desenvolta facilidade com que as regras são aplicadas, parece ser tão forte quanto a
de adquirir uma linguagem ou uma psicologia da crença-desejo. Essa compulsão
26
também deve refletir uma característica fundamental da arquitetura da sua mente,
resultante da evolução.
Agora, vamos nos ater mais especificamente à uma dessas capacidades
intuitivas, uma lâmina do canivete mental, crucial para o desenvolvimento da mente
moderna: a linguagem.
2.2.5 A linguagem como “lâmina” do canivete suíço
No tocante ao desenvolvimento da linguagem na espécie humana, seguindo o
pensamento de Mithen (2002), a capacidade lingüística na mente do humano
primitivo estava intimamente ligada ao domínio da inteligência social.
Uma possível explicação para a retomada da expansão cerebral no
pleistoceno tem a ver com a ampliação dos grupos sociais, nos quais os indivíduos
lingüisticamente mais capazes possuíam uma vantagem seletiva, pois possuíam
maior aprendizado social e melhor descrição e transmissão de conhecimento. Tão
logo a linguagem agiu como veículo para transmitir informação à mente, levando
consigo pedaços de informação não-social se iniciou uma mudança.
A função da linguagem passou do caráter social ao geral, e a consciência,
que até então era um meio de prever o que os outros indivíduos fariam, transformouse em gerenciadora de um banco de dados mental com informações de todos os
domínios do comportamento.
A linguagem, segundo Mithen (2002), teria sido responsável pela fluidez
cognitiva e também pelas atividades mentais superiores do homem moderno.
Quando a mudança na natureza da linguagem proporcionou a oportunidade
de aperfeiçoamento da troca de informações não-sociais e os indivíduos capazes de
27
tal fato obtiveram sua vantagem seletiva com um sucesso reprodutivo aumentado, a
linguagem social teria se transformado rapidamente em uma inteligência “geral,
multiuso”. “A seleção natural, o arquiteto mais importante da mente, simplesmente
não teria permitido ignorar essa oportunidade”. (MITHEN, 2002, p. 308). Apesar de
admitir a mente como produto de seleção natural, não fica claro no discurso de
Mithen (2002) se seus módulos também o foram, ou se seria um caso de spandrel3
biológico.
Em concordância com Mithen, Pinker não só acredita numa origem por
seleção natural da linguagem, como constrói um argumento sólido em relação a esta
hipótese. É isto que passamos a relatar no próximo capítulo.
3
Spandrel é um termo usado para descrever uma característica fenotípica que teria surgido como
efeito colateral de uma adaptação, ao longo da história evolucionária (GOULD e LEWONTIN, 1979).
28
3 PINKER E A LINGUAGEM COMO INSTINTO
O outro autor que examinamos neste trabalho é Steven Pinker, psicólogo,
psicolingüista, professor de Psicologia da Harvard. Seus trabalhos sobre a
linguagem e a cognição geraram centenas de artigos e seis livros que se tornaram
importantes referências na área de Psicologia Evolucionária: “O instinto da
linguagem”, de 1994 (alvo da análise desta monografia); “Language Learnability and
Language Development”, de 1996; “Como a mente funciona”, 1998; “Words and
Rules: the ingredients of language”, de 1999; “Tábula Rasa”, de 2002; e, “The Stuff
of Thought: Language as a Window into Human Nature”, de 2007.
Na década de 60, Noam Chomsky elaborou a tese de que a linguagem é como
um instinto. Chomsky (1971 apud PINKER, 2002) sustenta sua hipótese sobre dois
fatos fundamentais da linguagem. Em primeiro lugar, cada frase que uma pessoa
enuncia ou compreende é virtualmente uma nova combinação de palavras, que
aparece pela primeira vez na história do universo. Por isso, uma língua não pode ser
um repertório de respostas; o cérebro deve conter uma receita ou “programa” que
consegue construir um conjunto ilimitado de frases a partir de uma lista finita de
palavras. Esse “programa” pode ser denominado gramática mental (que não deve ser
confundida com gramáticas pedagógicas ou estilísticas). O segundo fato fundamental
é que as crianças desenvolvem essas gramáticas complexas rapidamente sem
qualquer instrução formal e, à medida que crescem, dão interpretações coerentes a
novas construções de frases que elas nunca escutaram antes.
Contudo, apesar de afirmar que a linguagem é um fenômeno biológico,
Chomsky não admite que esta função seja produto de seleção natural. Em suas
29
palavras:
Evolutionary theory is informative about many things, but is has little to say, as
of now, of questions of this nature [e.g., the evolution of language]. The
answers may well lie not so much in the theory of natural selection as in
molecular biology, in the study of what kinds of physical systems can develop
under the conditions of life on earth and why, ultimately because of physical
principles (CHOMSKY, 1988, p. 167 apud PINKER e BLOON,
1991, p. 452).4
Pinker (2002) também defende a idéia e a noção de linguagem como instinto,
como algo que faz parte de uma adaptação evolutiva, e embora se apóie em muitos
estudos de Chomsky, discorda deste ao examinar a linguagem como produto da
seleção natural. A linguagem seria um “algo” que a espécie humana já nasce “com”,
e independentemente do meio em que viva, independente do modo como for criada,
de alguma forma a linguagem “ocorrerá”. Não é preciso ensinar uma criança a andar
e nem mesmo ensiná-la a ficar em pé. Em determinado momento isso acontecerá.
Algo que também acontece com a linguagem. De acordo com Pinker a onipresença
de linguagem complexa entre os seres humanos é, para muitos observadores, uma
prova inegável de que a linguagem é inata.
A ciência cognitiva, ao reunir ferramentas da psicologia, da ciência da
computação, da lingüística, filosofia e neurobiologia para explicar o funcionamento
da inteligência humana tem promovido espetaculares avanços da ciência da
linguagem, em particular. A esta reunião chamada anteriormente de ciência
cognitiva, que segundo Pinker vem se fortalecendo ao longo de 35 anos, uniu-se a
chamada psicologia evolucionária, que a partir dos anos 90 desenvolve seus
estudos integrando saberes normalmente desconsiderados pelo modelo padrão das
4
Tradução adaptada: A teoria evolucionista informa sobre várias coisas, mas ela tem pouco a dizer,
até agora, sobre questões desta natureza [evolução da linguagem]. As melhores respostas podem
estar não na seleção natural, mas na biologia molecular, no estudo de quais os tipos de sistemas
físicos podem se desenvolver sob as condições de vida na terra e por quê, fundamentalmente por
causa dos princípios físicos.
30
ciências sociais, voltando-se aos mais diversos campos das ciências naturais, tais
como a biologia evolutiva, as neurociências e as próprias contribuições procedentes
da antropologia. Os seus pressupostos foram indicados anteriormente no capítulo
sobre Mithen.
“A
recente
elucidação
das
faculdades
lingüísticas
tem
implicações
revolucionárias para a compreensão da linguagem e seu papel nos assuntos
humanos, e para a própria concepção da humanidade” (PINKER, 2002, p. 8).
Muito se especula sobre a linguagem. Muitas opiniões, por vezes infundadas
são proferidas a ponto de quase se tornarem verdade. O estudo e a obra de Pinker
(2002) propõem que se possa ver a linguagem de uma forma diferente a estas
opiniões.
A linguagem [...] É claramente uma peça da constituição biológica de nosso
cérebro. [...] é uma habilidade complexa e especializada, que se desenvolve
espontaneamente na criança, sem qualquer esforço consciente ou instrução
formal, que se manifesta sem que se perceba sua lógica subjacente, que é
qualitativamente a mesma em todo indivíduo, e que difere de capacidades
mais gerais de processamento de informações ou de comportamento
inteligente (PINKER, 2002, p. 9).
Por esses motivos, alguns cognitivistas descreveram a linguagem como uma
faculdade psicológica, um órgão mental, um sistema neural ou um módulo
computacional (como explicitado no capítulo sobre a obra de Mithen).
A idéia de linguagem como um tipo de instinto foi concebido pela primeira vez
em 1871 pelo próprio Darwin; a habilidade da linguagem seria “uma tendência
instintiva a adquirir uma arte”, não peculiar aos humanos, mas também encontrado
em outras espécies como os pássaros, que aprendem a cantar.
De acordo com Chomsky (1959 apud PINKER, 2002), um fato curioso sobre a
história intelectual dos últimos séculos é que o desenvolvimento físico e mental foi
elaborado de várias maneiras diferentes.
31
Ninguém levaria a sério a afirmação de que o organismo humano aprende
pela experiência a ter braços em vez de asas, ou de que a estrutura básica de
determinados órgãos resulta da experiência acidental. Ao contrário, considera-se
indiscutível que a estrutura física do organismo é geneticamente determinada,
embora, é claro, variações como tamanho, velocidade de desenvolvimento etc.,
dependam em parte de fatores externos.
O desenvolvimento da personalidade, de padrões de comportamento e de
estruturas cognitivas em organismos mais desenvolvidos costuma ser abordado de
modo bem diferente. Nesses campos, costuma-se dizer que o meio social é o fator
predominante. As estruturas da mente que se desenvolvem com o passar do tempo
são consideradas arbitrárias e acidentais; não existe uma “natureza humana”
separada daquilo que se desenvolve como um produto histórico específico. Mas os
sistemas cognitivos humanos, quando seriamente investigados, não se mostram
menos surpreendentes e intricados que as estruturas físicas que se desenvolvem na
vida do organismo. Então, por que não estudar a aquisição de uma estrutura
cognitiva como a linguagem mais ou menos da mesma maneira como se estuda um
órgão físico complexo?
Talvez esta seja uma das principais críticas que orientem o trabalho de
Pinker, pois uma de suas características é a de desenvolver estudos longos e
extremamente documentados, com argumentação consistente, buscando e trazendo
possíveis evidências das novas concepções que defende. Neste caso específico,
trazer a concepção da linguagem como instinto significa revogar a linguagem do
campo do modelo padrão das ciências sociais e defender a biologia (e não só ela,
como citado anteriormente) na sua relevância para a compreensão e interpretação
dos processos mentais, incluindo-se a linguagem.
32
Para defender a tese de que a linguagem é um instinto específico, e não
apenas uma solução inteligente para um problema imaginado por uma “espécie
comumente brilhante”, é necessário avaliar algumas questões. Uma delas é que se a
linguagem é um instinto, deveria ter uma localização identificável no cérebro, e
talvez até mesmo um conjunto especial de genes que ajude a mantê-la no lugar. No
caso de dano desses genes ou neurônios, deveria haver prejuízo da linguagem sem
que outras partes da inteligência fossem afetadas; caso eles sejam poupados num
cérebro com outras lesões, deveria haver indivíduos com retardo mental, mas
linguagem intacta, um sábio idiota em termos lingüísticos. Se, por outro lado, a
linguagem for apenas o exercício da inteligência humana, seria de esperar que
lesões e deficiências tornassem as pessoas mais estúpidas em todos os sentidos,
inclusive na sua linguagem. O único padrão esperável é que quanto maior for à área
lesada do cérebro, mais estúpida e pouco articulada a pessoa será.
A afasia de Broca e o Distúrbio Específico da Linguagem (SLI – Specific
Language Impairment) são casos em que a linguagem é prejudicada e o resto da
inteligência parece mais ou menos intacto. Mas isso não prova que a linguagem
existe separada da inteligência. Talvez a linguagem imponha maiores exigências ao
cérebro do que outros problemas que a mente tem de resolver. Para os outros
problemas, o cérebro, consegue funcionar sem usar sua capacidade total; no caso
da linguagem, todos os sistemas têm de estar em pleno funcionamento. Para decidir
a questão é necessário encontrar a dissociação oposta, o sábio idiota em termos
lingüísticos – ou seja, pessoas com linguagem preservada e cognição prejudicada. É
exatamente neste sentido que entra em cena o caso de pessoas com Síndrome de
Williams. Trata-se de uma síndrome provocada por alterações genéticas e que
resulta em uma aparência facial não usual, problemas cognitivos, motores,
33
cardíacos, urológicos, odontológicos, além de hipercalcemia (SUGAYAMA, KIM,
GONZÁLEZ, 1995). O retardamento mental é uma e suas características, mas a
preservação das habilidades sociolingüísticas também (GONÇÁLVES et al., 2004).
Indivíduos com síndrome de Williams com quociente de inteligência (QI) 49 (retardo
mental moderado) são incapazes de realizar um desenho coerente de um objeto ou
animal, mas podem fazer descrições verbais com detalhes de ambos (LENHOFF et
al., 2006).
A idéia de que o pensamento seja a mesma coisa que a linguagem é um
exemplo do que se pode chamar de absurdo convencional. De acordo com Pinker,
esta é uma afirmação totalmente contrária ao senso comum, mas em que todos
acreditam porque tem uma vaga lembrança de tê-la escutado em algum lugar e
porque ela tem tantas explicações. Os debates que partem da idéia de que a
linguagem determina o pensamento só perduram devido a uma suspensão coletiva
da dúvida.
Devido ao instinto da linguagem, há algo mais fascinante no que se refere à
inovação lingüística; cada elo da cadeia de transmissão da linguagem é um cérebro
humano. Esse cérebro está equipado com uma gramática universal e está sempre à
procura de exemplos de vários tipos de regras no ambiente da fala. Pelo fato de a
fala poder ser imprecisa e as palavras e frases, ambíguas, vez por outra as pessoas
conseguem re-analisar a fala que escutam – interpretam-na como proveniente da
entrada ou regra de um dicionário diferente daquele que o falante costuma usar.
Seguindo este pensamento a linguagem nada mais é do que uma adaptação
biológica para transmitir informações; e a complexidade da linguagem é parte da
herança biológica inata. Populações que se comunicam entre si têm maior
probabilidade de sobrevivência. Podem desta forma, deixar mais descendentes. A
34
partir do momento que esta adaptação sucessivamente foi “gravada” na constituição
biológica cerebral da espécie humana, ela permaneceu.
Permaneceu porque resultou em fatores positivos, porque é útil e necessária
e também porque a seleção natural se encarregou do resto. A linguagem é o produto
de um instinto humano específico, produto de um instinto biológico bem planejado.
Pinker (2002) nem por isso deixa de reconhecer que os seres humanos
pertencem a uma espécie com uma capacidade notável: moldam-se a eventos nos
cérebros uns dos outros com primorosa precisão e que esta é uma habilidade
incontestavelmente presente no cotidiano da espécie humana. Por meio de simples
ruídos produzidos pela boca, pode-se fazer com que combinações de idéias novas e
precisas surjam na mente de outros.
Já a escrita, é claramente um acessório opcional, o verdadeiro motor da
comunicação verbal é a língua falada que se adquire quando criança. A linguagem
está tão intimamente entrelaçada com a experiência humana que é quase
impossível imaginar vida sem ela.
Segundo Pinker (2002) “(...) nas nossas relações sociais, o que ganha não é
a força física, mas o verbo – o orador eloqüente, o sedutor de língua de prata, a
criança persuasiva que impõe sua vontade contra um pai mais musculoso” (p. 7).
Diante de tal importância não é difícil imaginar o que a falta da capacidade de
linguagem pode acarretar nas nossas relações sociais. Por exemplo, a afasia, que é
a perda da linguagem em conseqüência de uma lesão cerebral, é devastadora, e,
em casos graves, os membros da família chegam a sentir que é a própria pessoa
que foi perdida para sempre.
35
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para Mithen a linguagem é uma característica singular do intelecto humano,
que foi responsável durante o período de evolução da mente moderna pela fluidez
cognitiva. A evolução da mente humana, segundo o próprio autor, teria passado por
três fases: 1) domínio geral; 2) domínio geral com módulos específicos
independentes;
3)
domínio
geral
com
módulos
específicos
independentes
interagindo uns com os outros. As capacidades, antes restritas cada uma ao seu
módulo, poderiam, com o aparecimento da linguagem, enfim, transitar pela mente
criando novos tipos de pensamento e desenvolvendo a imaginação. Os indivíduos
que podiam explorar estas invasões para aumentar seus conhecimentos sobre o
mundo teriam ficado numa posição de vantagem em termos de seleção natural.
Mithen credita à linguagem a ocorrência de uma mente cognitivamente fluida,
e que esta capacidade (linguagem) permitiu o desenvolvimento da mente como hoje
a temos. Contudo, o autor não confirma ou desaprova a idéia de que a linguagem
tenha sido um produto da seleção natural; afirma, sim, que a seleção natural se
encarregou de manter este padrão, mas não explica de que forma isto teria ocorrido.
Já para Pinker (2002), a universalidade da língua é a primeira razão para
suspeitar que a linguagem não é apenas uma invenção cultural, mas o produto de
um instinto humano específico. As invenções culturais variam muito de uma
sociedade para outra em termos de sofisticação, mas a linguagem existe em todas
elas. "Existem sociedades da Idade da Pedra, mas não existe uma língua da Idade
da Pedra" (p.21). Pinker se pergunta por que fome, sede e desejo sexual são
considerados biológicos enquanto raciocínio, aprendizado e linguagem sejam vistos
36
de outra forma. Porque não estudar todas estas questões de forma semelhante?
Estas mesmas questões também foram levantadas anteriormente por Chomsky.
Pinker defende a linguagem como uma peça fundamental da constituição
biológica do cérebro humano e que foi moldada pela adaptação através da seleção
natural porque constituiu uma vantagem adaptativa à espécie humana em algum
momento de sua história evolutiva. A esta adaptação específica (linguagem), Pinker
conferiu ainda um outro status: a linguagem seria um instinto.
Pinker ressalta que quando o termo “vantagem adaptativa” é proferido,
comumente é pensado como um grande feito, como algo absurdamente magnífico;
provavelmente a história não seja bem esta, pois se considerarmos o ambiente e as
condições a que eram expostos os ancestrais humanos, talvez a obtenção de uma
fruta a mais para o jantar já fosse considerado um grande feito.
O controlador imediato da percepção, aprendizagem e comportamento é o
cérebro humano. Então, a aprendizagem não é uma alternativa ao inato; sem um
mecanismo inato para aprender, ela simplesmente não ocorreria. Isto não significa
descartar influências recebidas pelo ser humano no processo de aprendizagem,
significa antes reconhecer que mecanismos inatos necessariamente precisam estar
presentes para que a aprendizagem ocorra.
Desta forma a hereditariedade
transmite mecanismos inatos (inseridos em algum momento da evolução e gravados
nos genes moldados pela seleção natural) para várias capacidades cognitivas
humanas, entre as quais se encontram os mecanismos da linguagem. O ambiente
fornece estímulos para que estas habilidades se desenvolvam. Então, tanto a
hereditariedade como o ambiente desempenham papéis importantes nesta
construção.
37
No que diz respeito à linguagem, alguns pontos convertem para a possível
constatação deste “instinto”, para que se possa estudar a linguagem como uma peça
da constituição biológica do cérebro humano; como uma especialização cognitiva da
espécie humana.
Estes pontos, segundo Pinker (2002), podem ser assim
resumidos:
♦ As pessoas falam, entendem e formulam um conjunto infinito de frases novas,
partindo de um conjunto gramatical finito; neste contexto faria mais sentido
estudar a gramática mental e os mecanismos que estão por trás desse
comportamento ao invés de avaliar o procedimento de aprendizado lingüístico
de cada uma delas.
♦ Apesar de a linguagem surgir de uma maneira natural nos seres humanos, os
mecanismos lingüísticos mentais têm de ter uma organização complexa, com
a interação de muitas partes; as línguas não variam de modo arbitrário e sem
limites, mas segundo um design comum denominado gramática universal. A
aprendizagem seria impossível se não existisse esse design por trás do
aprendizado de uma língua em particular.
♦ Língua do pensamento, um mentalês universal; essas línguas do pensamento
servem ao raciocínio de modo adequado, pois elas se parecem muito mais
umas com as outras e são mais simples do que seus equivalentes falados, e
tudo leva a crer que elas não sejam diferentes uma das outras.
♦ As crianças, rapidamente, generalizam da fala de seus pais, as regras
utilizadas em sua comunidade lingüística; esta generalização ocorre sem a
necessidade de uma instrução formal, e como citado no transcorrer desta
38
pesquisa, não é preciso que se ensine uma criança a falar. Crianças
pequenas e povos primitivos dominam gramáticas complexas.
♦ Por conta de um dano cerebral, pode-se perder a capacidade lingüística
enquanto, todas as outras permanecem inalteradas. O contrário também é
verdadeiro, pode-se perder capacidades cognitivas, como a inteligência, e
ocorrer a preservação da linguagem.
Muitas são as críticas aos trabalhos de Pinker e de Mithen, mas ao
analisarmos a capacidade argumentativa baseada na extensa fundamentação
teórica em que os autores se apóiam, não se pode desconsiderar suas
contribuições. A passagem de uma compreensão mente-esponja para mente
canivete-suíço
aponta
novas
possibilidades
de
investigação,
aumenta
a
complexidade do tema, geram hipóteses testáveis (e refutáveis) e recoloca a mente
no mundo natural e não apenas no mundo das elucubrações teóricas.
Estes fatos, considerados pelos autores como absurdos convencionais, a meu
ver só podem ainda resistir pela ignorância da complexidade das outras opções, já
que as críticas normalmente partem da falta deste. Conclusões sobre a mente só
serão convenientes se dados oriundos de muitas fontes convergirem para ela. Nesta
empreitada Pinker parece sair na frente. A grande discussão não deveria ser
direcionada para averiguar quem está certo, ou qual “opinião” é mais plausível, e
sim, partir do princípio de qual “explicação” pode conter maior evidência. Ignorar que
os indivíduos nascem com talentos ou temperamentos, e determinar que a mente
toda é produto de cultura e socialização representa evitar confrontos e discussões
sobre a natureza humana. O que haveria de tão grave em levantar estas
discussões? Bom, mas isto já outro assunto que não cabe ao escopo deste trabalho.
39
No que diz respeito à linguagem em específico, qual seria o grande problema
em vê-la e estuda-la como uma parte constituinte e determinada do sistema nervoso
dos seres humanos? Se podemos aceitar outras partes e funções da constituição
humana como herdadas e adaptadas porque não seria lógico aplicar esta linha de
raciocínio com a linguagem? Pinker aponta argumentação e documentação
consistente a este respeito, e simplesmente ignorar esta possibilidade, como se esta
idéia fosse algo fantasioso e impossível me parece um tanto de radicalismo e de
crença em verdades absolutas. Sabemos que a ciência não pode se basear em tais
fatos porque as verdades científicas são relativas a sua sustentação empírica ou
lógica. Sem estes respaldos, são facilmente desconstruídas.
Ver a linguagem como um efeito colateral de uma adaptação, ou seja, um
spandrel levanta algumas questões. Teria o organismo humano, em termos de
energia, despendido tantos gastos para manter algo que simplesmente foi um
produto criado pelas lacunas nos módulos já existentes? Se a linguagem, que de
acordo com Mithen foi a responsável pela fluidez cognitiva que levou a espécie
humana a aprimorar as capacidades cognitivas superiores, foi algo que surgiu por
acaso, qual seria o design da mente sem este “acaso”? Se a linguagem enquanto
instinto, como entende Pinker, demonstra que todos temos a mesma mente, parece
que tal acontecimento pode ter surgido por acaso, mas se manteve porque conferiu
ao seu portador, alguma forma de vantagem adaptativa.
Este estudo não pretendeu ser uma extensiva discussão sobre o tema, mas
uma abertura para uma compreensão mais dinâmica dos processos psicológicos
humanos, levando em conta os fatores filogenéticos dos mesmos. Neste sentido,
exploramos as idéias de dois pensadores contemporâneos, ligados a recente e
crescente Psicologia Evolucionária: Mithen e Pinker, sobre a evolução da mente
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humana e de uma de suas características mais notáveis e distintas desta espécie: a
linguagem oral.
Isto não marca, ou pontua um renascimento da Psicologia Inatista do começo
do século XX; nem mesmo se trata da defesa de falácias naturalísticas (se é
biologicamente determinado, é certo). Trata-se, sem dúvida de uma retomada das
questões psicobiológicas na compreensão do comportamento humano após muitos
anos de pré-conceitos pela associação errônea da biologia do comportamento com a
eugenia, com o nazismo, com a crença no livre arbítrio e na imutabilidade dos
fatores biológicos.
Trata-se também da derrubada de mitos e do avanço e da
necessidade de novas compreensões sobre as condutas humanas que englobem
não apenas o ser social que somos, mas a natureza deste ser.
Para tanto, outras pesquisas, outras comparações se fazem necessárias no
intuito de gerar novas discussões/debates sobre a mente humana e sua natureza.
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