C-4 Porto & Mar A TRIBUNA Domingo 28 www.atribuna.com.br No próximo sábado, completa-se um século daquela que é considerada a maior tragédia náutica na história do Brasil, o naufrágio do navio espanhol Príncipe de Astúrias Domingo 28 fevereiro de 2016 11 “A gente tentava se agarrar, mas o navio já estava sendo engolido pelas águas. O telegrafista não teve tempo de transmitir o S.O.S.. Eu me salvei, mas jamais esquecerei os gritos daquelas pessoas morrendo afogadas” José Martins Vianna, o único brasileiro a bordo do Príncipe de Astúrias, em relato ao jornal carioca A Noite Os 100 anos do Titanic brasileiro A TRIBUNA fevereiro de 2016 toneladas de ouro eram transportadas pela embarcação. O valioso carregamento nunca foi encontrado www.atribuna.com.br [email protected] Porto & Mar C-5 Porto & Mar A última viagem do Príncipe de Astúrias No fundo do mar, desafios e surpresas Mais de 400 pessoas morreram no naufrágio do Príncipe de Astúrias BRASIL MERGULHO/DIVULGAÇÃO JOSÉ CLAUDIO PIMENTEL DA REDAÇÃO Há quase um século, em 5 de março de 1916, chegava à costa brasileira um dos maiores e mais importantes navios de passageiros do mundo na época, o Príncipe de Astúrias. Esta seria sua última viagem, encerrada em meio à maior tragédia náutica da história do País. Espanhol, o transatlântico transportava mais de mil pessoas, ricos e pobres, que não só tinham objetivos e sonhos a realizar nospaíses da América do Sul, como também queriam escapar dos perigosda1ªGuerraMundial,iniciada na Europa há então dois anos.No compartimento de carga, 11 toneladas de ouro e 20 caixas com estátuasde bronze. Era a sexta viagem do Príncipe, a terceira ao País. No Brasil, Santos era o único porto onde faria escala antes de seguir à Argentina, o destino final da rota Barcelona-Buenos Aires. A cada 30 dias, o paquete – nome dado aos potentes navios movidos a vapor – cruzava o oceano. Tinha capacidade para até 1.890 pessoas, quase a metade do britânico RMS Titanic, que naufragara 4 anos antes no Atlântico Norte eao qual eracomparado. O luxo e a modernidade chamavam a atenção. Cabines de primeira classe que lembravam apartamentos com três cômodos recebiam famílias e autoridades. Na segunda classe, os jovens também compartilhavam do requinte. Para eles, quase 140 metros de deck, biblioteca e sala de música, cuja pista possibilitava uma elegante dança todas as noites. O piano, não por acaso, havia sido feito especialmente para ser levado a bordo. Esse era um ambiente muito diferentedosalojamentosdaterceira classe, capaz de amontoar até 1.500 viajantes. As vastas opções para o café da manhã, além dos diversos pratos de almoçoe jantar,dosdeckssuperioreseram limitadasa esses passageiros. Para eles, a sobremesa, farta em todas as refeições no restante do navio, somente era oferecidaaos domingos. Apesar das diferentes mordomias, os sonhos eram os mesmos. Todos queriam atravessar o oceano. Na ponte, o experiente capitão José Lotina era o responsável por cumprir esse objetivo. Confortável no comando, ele tinha uma preocupação: os navios militares que insistiam em afundar transatlânticos por causa da Guerra. O jornalista José Carlos Silvares, autor de O Navio fazia sua 6a viagem entre Espanha e Argentina quando naufragou Príncipe de Astúrias - O mistério das profundezas, lembra que a Espanha era neutra no conflito. Mas o navio poderia não escapar do fogo cruzado. Mas quis o destino que o Príncipe não completasse, desta vez, a viagem, fazendo com que as primeiras horas daquele 5 de março de 1916, um domingo de Carnaval, entrassem para a história. Mais uma travessia havia sido completada com sucesso e o navio se aproximava do Litoral Norte de São Paulo. À época, ali se iniciava a rota de aproximação para chegar à Barra de Santos (veja o mapa). Além das bússolas, era preciso que a tripulação no passadiço se atentasse à fraca luz do farol da Ponta do Boi, em Ilhabela, para realizar o alinhamento do navio. Passava das 4 horas e o mar estavacalmo–às9horas,esperava-se a chegada ao Armazém 6 do cais santista. Mas a forte chuva, os raios e a densa cerração dificultavam o trabalho dos oficiais. O capitão, por segurança, reduziu a velocidade do navio e ordenouavisos sonoros. A TRAGÉDIA Cerca de 20 minutos depois, o clarão de um relâmpago iluminou o que os oficiais mais temiam: a Ilha de São Sebastião. JoséLotinaordenourapidamente a ré, mas não foi possível evitar o choque com a Laje de Pirabura, queabriu um buracode 20 a 40 metros no casco duplo – e mais seguro – do navio. A essa altura e diante da gravidade, não havia mais dúvida: o orgulho da marinha mercante espanholaestavaprestes a afundar. “Saí da cabine e consegui chegar ao convés principal. A gente tentava se agarrar, mas o navio já estava sendo engolido pelas águas. O telegrafista não teve tempo de transmitir o S.O.S.. Eu me salvei, mas jamais esquecerei os gritos daquelas pessoas morrendo afogadas”, relatou o único brasileiro a bordo, o estudante de engenharia José Martins Vianna, então com 20 anos. O manuscrito foi publicado no extinto jornal carioca A Noite. O documento está em exposição no Museu Náutico de Ilhabela. Cinco minutos. Esse foi o tempo para que o navio fosse à pique. A água gelada entrou nos compartimentos inferiores e fez com que as caldeiras explodissem, dividindo o navio em dois. Houve chance para que apenas um bote salva vidas fosse colocado na água. Dos 588 a bordo, conforme lista oficial, 445 morreram.Exatos143 pessoassesalvaram – 86 tripulantes que estavam em serviço. O número de mortos,porém, é muito maior. MAIS VÍTIMAS A escritora e jornalista Isabel Vieira, autora de O Príncipe de Astúrias - O Titanic Brasileiro, lembra que não era usual uma relação dos passageiros de terceira classe – sem contar os clandestinos. Dados imprecisos apontam para, pelo menos, outras 400 pessoas a bordo e que não tinham sido registradas, o que elevaria para mais de 700 os óbitos na tragédia, que foi amplamente noticiada por A Tribuna e demais jornais de todo o mundo. O paquete foi ao fundo do mar levando mais mistérios do que certezas. Dúvidas que tentaram ser respondidas por pesquisadores, historiadores, jornalistas e mergulhadores nos últimos 100 anos. MUSEU NÁUTICO DE ILHABELA/DIVULGAÇÃO Peças da embarcação recolhidas de suas ruínas, no fundo do mar, estão em exposição no Museu Náutico de Ilhabela Mistérios e teorias conspiratórias rondam a tragédia ❚❚❚ As hipóteses para a tragédia do Príncice de Astúrias são muitas, todas cercadas de misticismo e teorias de conspiração. A mais aceita é a que envolve erro humano, por influência direta das condições climáticas adversas no momento do choque do navio com o rochedo. Não havia chance de os oficiais se posicionarem, tampouco ter noção da proximidade da costa. Ao navegar entre a Ilha de Bú- zios e a de São Sebastião, a rota do Príncipe de Astúrias foi questionada. O jornalista José Carlos Silvares, que estudou as circunstâncias do naufrágio, não tem dúvidas de que o caminho era o correto. Para ele, a colisão ocorreuporforçasda natureza. Há quem acredite, porém, que onaufrágio do paquete estava planejado. Era de conhecimentoque os naviosque se aproximavam demais de Ilhabela, naquela época, possivelmente contrabandeariam cargas. Não por acaso, as 11 toneladas de ouro que estavam a bordo jamais foram encontradas durante os cem anos de buscas. O mergulhador profissional e arqueólogo submarino Jeannis Michail Platon, que também investigou o caso, colheu relatos de antigos moradores e descendentes da Ilha de Búzios e de Vitória. “Temos relatos que afir- maram que havia um barco menor navegando em paralelo ao navio naquela noite. O que ele fazia é a grande questão”, diz. Único brasileiro a bordo, José Martins Vianna, que voltava para Santana do Livramento, no Rio Grande do Sul, relatou que notou uma movimentação “estranha”no convés horas antesda festadeCarnaval. Foiinformado por oficiais que estavam reposicionando a carga que desceria em Santos pela manhã – inclusive, fardos de cortiça que ajudaramosnáufragosasobreviver. Jeannis foi autorizado pela Marinha a explorar o naufrágio a partir de 1970. Vinte anos antes, outros mergulhadorespuderam dinamitar o navio para retirar a carga e recolher eventuais pertences que naufragaram. Parte desse material está reunido no Museu Náutico de Ilhabela e na sede da Marinha, no Rio. ❚❚❚ O paquete espanhol Príncipe de Astúrias encontra-se, hoje, desmantelado no fundo do mar, entre 18 e 50 metros de profundidade, no entorno da Ponta do Pirabura, em Ilhabela. O local é ponto de encontro de mergulhadores, quese aventuram na água turva e fria de mar aberto para tentar montar o quebra cabeça submerso. Devidoaomisteriosonaufrágio,omergulho ali setorna um desafio. Ninguém fala abertamente ou faz questão de se identificar ao tratar do assunto, mas há relatos de estranhos barulhos – gritos e marteladas –eatéasensaçãodeteranadadeirapuxadaporalgoincerto. “Só posso afirmar que é um lugar diferente. Requer muita experiência, pois é difícil, tem baixa visibilidade e riscos por causa dos destroços”, explica o instrutor de mergulho Leonardo Taboa, do Leo Dive Center. Ele comanda a operadora de mergulho, especializada na modalidade, que há 20 anos realiza expedições rotineiras até o local. Ilhabela é conhecida pelos acidentes náufragos. Dados do Museu Náutico indicam 23 de grande porte, que ocorreram no entorno da ilha. A maioria, vítima do magnetismo atípico do local, que interfere nas bússolas de bordo, umaanormalidadereconhecida pela Marinha do Brasil. De acordo com Taboa, as dificuldades para explorá-lo fazem com que o Príncipe se torne, hoje, a principal referência do mergulho técnico no País. Há a questão da profundidade, uma vez que há partes que estão em pontos onde já não há influência da luz natural, e também a força da correnteza, que movimenta a areia sobre os destroços durante o ano. Não é sempre que é possível mergulhar no local. “Às vezes, não temos visibilidade. Em outras, os destroços estão assoreados. Mas quando conseguimos, é como se fosse montar um quebra cabeça”. Mesmo destroçado, ainda é possível encontrar partes representativas daquele que foi considerado o Titanic espanhol. Todos os anos, Leonardo leva quase uma centena de mergulhadores ao local – o número não é grande, em razão de todo o contexto desfavorável para quem tem pouca experiência em ambientes extremos. Um dos pontos de fácil percepção é o convés da proa (parte frontal), onde está caído o mastro que auxiliava no transporte de cargas.