Morte súbita em atletas Uma revisão dirigida aos médicos de medicina desportiva e medicina geral e familiar (parte II) » Rev Medic Desp in forma, 1 (3), pp.21-23, 2010 Dr. Manuel Veloso Gomes ; Dr. Filipe Veloso Gomes ; Dr. Rui Candeias (3) (1) Director do Departamento de Cardiologia do Hospital de Faro, EPE; Especialista em Medicina Desportiva pela Ordem dos Médicos. (2) Interno de Radiologia do Hospital de faro e Pós-graduado em Medicina Desportiva pela Faculdade de Medicina de Lisboa (3) Cardiologista do Serviço de Cardiologia do Hospital de Faro, EPE; Unidade de Electrofisiologia e Pacing cardíaco. abstract 4 (2) tema (1) Os autores na segunda parte (parte II) deste artigo abordam as causas cardiovasculares de morte súbita em atletas com idade inferior a 35 anos. Suportam a sua revisão nos dados epidemiológicos e clínicos publicados pelos autores mais reconhecidos na área, em artigos menos citados e na experiência pessoal na medicina e cardiologia desportiva. Tendo em conta os critérios editoriais, e dada a extensão do tema, o mesmo terá continuidade numa terceira parte do artigo. In the second section of this article, the authors intend to review the cardiovascular causes of sudden death in athletes under 35 years. The review is based on the epidemiological and clinical data of the most well-known authors on the field, and some less well known authors, and on our professional experience in sports medicine and sports cardiology. According the editorial criteria, and due to the extension of this theme, we have to continue it in a third section of the article. palavras-chave keywords Morte Súbita; Atletas; Epidemiologia; Causas Cardiovasculares (Sudden Death; Athletes; Epidemiology; Cardiovascular Causes) Causas cardiovasculares te súbita de causa cardiovascular associa- Introdução do à competição atlética ascende a 2.8.4 A O efeito benéfico do exercício físico regu- análise das circunstâncias da morte revela lar na prevenção primária e secundária de que esta ocorre em 82 a 89% dos casos du- eventos cardiovasculares é bem reconheci- rante ou imediatamente após o exercício do. A actividade física regular reduz o risco físico.3, 4 O treino intenso e a competição de mortalidade prematura em geral e hiper- expõem o atleta a um “stress” fisiológico tensão arterial, obesidade, diabetes mellitus, com hiperactividade simpática, elevação doença arterial coronária e cancro do cólon das catecolaminas circulantes, elevação da em particular. No entanto, o exercício físico frequência cardíaca, aumento da contrac- intenso está igualmente associado a eventos tilidade do músculo cardíaco, aumento do adversos, incluindo o mais adverso e temido volume telediastólico ventricular, aumen- de todos, a morte súbita. Na primeira parte to do consumo de oxigénio sistémico e do deste artigo foram expostas definições de miocárdico, alterações hidro-electrolíti- morte súbita e de atleta e procurámos per- cas, e aumento da agregação e adesão pla- ceber a dimensão real do problema. Nesta quetares.5 Qualquer um destes factores, segunda parte do artigo iremos abordar a na presença de um substracto patológico, principal causa de morte súbita em atletas: poderá aumentar o risco de morte súbita a existência de uma anomalia cardiovascular cardíaca. O risco pode ser aumentado pela subjacente. O conceito que iremos explorar presença de doenças concomitantes, pela é o de que o evento fatal que ocorre é um febre, pela presença de inflamação mio- evento arrítmico em atletas que tem uma cárdica e pelo uso de drogas e substâncias doença cardíaca estrutural ou “eléctrica” dopantes. A utilização destas poderá ser subjacente e em que a actividade física actua substimada entre os atletas. Muitas das como um “gatilho”. substâncias de abuso como esteroides 1 2 3 anabolizantes, hormona do crescimento, Risco da actividade física eritropoetina, darbopoioetia, ou outras Como foi referido, o risco relativo de mor- poietinas de nova geração como a CERA, Revista de Medicina Desportiva in forma * Maio 2010 21 têm o potencial de aumentar o risco car- me de Wolff-Parkinson-White (WPW) e a estas divergências tem de ser obrigatoria- diovascular em atletas induzindo arrit- doença do tecido de condução não podem mente considerada a influência de diferentes mias ventriculares potencialmente letais. ser esquecidas. Um mecanismo particular tipos de rastreio nos atletas americanos e ita- de morte por arritmia maligna na ausência lianos e na selecção de jovens para o serviço Causas cardiovasculares de substrato patológico pode ocorrer resul- militar. A população de desportistas italiana No maior registo de casos de morte súbita tante de traumatismo torácico (Commotio tem um rastreio pré-participação sistemá- em atletas da “Minneapolis Heart Institute cordis), sobretudo nalguns tipos de despor- tico, com utilização do electrocardiograma, Foundation”, Estados Unidos, coordenado to. Algumas outras causas de morte súbita que conduz à identificação de suspeitos de por B.J. Maron, as mortes foram atribuídas de origem cardiovascular não arritmica são cardiomiopatia, sua investigação e desqua- a causas cardiovasculares em 56% dos 1868 possíveis, nomeadamente a ruptura da aorta lificação para a prática desportiva. A iden- casos registados.3 No estudo prospectivo no contexto de Síndroma de Marfan, a em- tificação de indivíduos com CMH reduz controlado da região de Veneto, Itália, coor- bolia pulmonar e a lesão traumática de es- a probabilidade de morte súbita por esta denado por D. Corrado, em 51 dos 55 casos trutura cardíaca ou da aorta. A prevalência causa.12 Outras razões importantes para as registados (93%) a morte foi de causa cardio- combinada das anomalias cardiovasculares divergências são as diferentes metodologias vascular.4 No estudo de Eckart com recrutas que predispõem jovens atletas a morte súbi- dos estudos, de carácter retrospectivo ou americanos, dos 129 registados 51% foram ta cardíaca é estimada em 3/1000.9 prospectivo, tipo observacional ou outro, e tema 4 6 3, 4 de causa cardíaca. Todos estes registos re- com critérios de inclusão muito díspares. A 7 22 portam casos com idades inferiores a 35 Diferenças geográficas inclusão no estudo italiano de atletas com anos. Em atletas acima dos 35 anos a prin- A incidência relativa das diferentes causas um maior espectro de idades, maior idade cipal causa de morte, como na população cardiovasculares de morte súbita em atletas média e níveis de competição eventualmen- em geral, é a doença arterial coronária ate- tem variações geográficas significativas. Nas te mais elevados tem sido invocada. rosclerótica.8 Em atletas jovens, com menos séries de Maron, nos Estados Unidos, a cau- de 35 anos de idade, o espectro de anomalias sa mais frequente é a CMH, responsável por Diferenças em função do sexo cardiovasculares subjacentes responsável 36% dos casos (diagnóstico definitivo confir- A incidência da morte súbita cardíaca é por morte súbita é alargado, mas as causas mado em autópsia, não incluindo mais 8% maior em homens do que em mulheres. mais frequentes divergem entre as séries. As de casos de diagnóstico possível). Seguem- Corrado et al reportaram uma incidência de mais comuns são as cardiomiopatias, no- se as ACAC com 17%, miocardite com 6%, 2.62 em atletas masculinos e de 1.07 em atle- meadamente a cardiomiopatia hipertrófica CAVD com 4% e síndrome de QT longo e tas femininos por 100.000 atletas por ano.4 (CMH), a cardiomiopatia arritmogénica do síndrome de Brugada, em conjunto, com Esta diferente incidência pode estar relacio- ventriculo direito (CAVD) e a cardiomiopa- 4%. Em contraste, na Itália, a CAVD é bas- nada com menor prevalência de anomalias tia dilatada (CMD). As anomalias congéni- tante mais frequente, apresentando-se como cardíacas subjacentes nas mulheres, como tas das artérias coronárias (ACAC) apare- a principal causa, responsável por 22% dos é o caso da cardiomiopatia hipertrófica, e cem com alguma frequência. Com menor casos, seguida da DAC aterosclerótica com diferentes adaptações cardiovasculares ao expressão encontram-se a doença arterial 18% e das ACAC com 13%. A CMH repre- exercício físico.13 Globalmente as mulheres coronária (DAC) aterosclerótica precoce, as senta nesta região menos de 2% dos casos.4 participam em menor proporção em des- pontes coronárias intramiocardicas, e ou- Razões de ordem étnica ou genética têm portos competitivos de alto nível, o que pode tras doenças das coronárias não ateroscle- sido apontadas para justificar algumas destas explicar parcialmente esta diferença. róticas. As miocardites são referidas como diferenças. Mas a incidência de CMH como nalgumas séries, mas poderão ser uma das causa de morte súbita não relacionada com Diferenças em função da etnia causas substimadas. Entre as cardiopatias o desporto e a sua prevalência na população O registo de Maron, et al, apresenta dife- valvulares a estenose aórtica, muitas vezes geral nos dois países tornam essa justificação renças significativas nas incidências relati- associada a bicuspidia, e o prolapso da val- não plausível. De resto, na série de Eckart vas das causas cardiovasculares de morte vula mitral, são as mais frequentes. As ca- de morte súbita em recrutas americanos, súbita entre grupos étnicos. A percentagem nalopatias como as síndromes do QT longo cuja percentagem de autópsias foi muito de mortes atribuída a cardiomiopatia hiper- (SLQT) e do QT curto congénitos, a síndro- elevada (97%), as causas mais frequentes não trófica e a anomalias coronárias congénitas me de Brugada, e a taquicardia ventricular coincidiram com as de B. Maron, surgindo é maior nos “não brancos”, com predomí- polimórfica (TVPC) as ACAC e a DAC aterosclerótica precoce nio de afro-americanos. Contrariamente, são alvo de referência e interesse crescente. como causas mais frequentes, e a CMH ape- a taxa de mortes atribuída a canalopatias Outras anomalias eléctricas como a síndro- nas em terceiro lugar. Na explicação para iónicas (QT longo e Brugada) é maior entre catecolaminergica Maio 2010 * www.revdesportiva.pt 3 10, 11 7 substituição por tecido fibroso e adiposo, diferentes prevalências dos substratos pa- codificadores de proteínas do sarcómero predominantemente no ventrículo direito tológicos entre etnias, mas não podem ser miocárdico estão associadas à CMH, mais mas podendo atingir o ventrículo esquer- excluídas influências de natureza socio- frequentemente nos genes da cadeia pesada do.20 Esta alteração é o substrato para a económica, de acessibilidade a avaliação da beta-miosina e proteína C de ligação à ocorrência de arritmias com origem no médica, e da capacidade desta avaliação em miosina. A doença caracteriza-se morfo- ventrículo direito, incluindo taquicardia identificar indivíduos em risco.14 logicamente por hipertrofia assimétrica da e fibrilhação ventricular.21 Em indivíduos parede do ventrículo esquerdo, desorganiza- com CAVD, o RR de morte súbita asso- Diferenças em função do tipo ção da arquitectura das fibras miocárdicas, ciado ao desporto de competição é de 5.4, de desporto anomalias microvasculares, isquémia e fibro- como foi referido.4 Os mecanismos que Os tipos de desportos que mais frequente- se, substrato para arritmias ventriculares.17, podem fazer do exercício f ísico um “ga- mente associados a casos de morte súbita 18 Clinicamente pode apresentar-se com tilho” para a ocorrência de arritmias são são nos Estados Unidos o basquetebol e o sintomas de tonturas, sincope, palpitações, o aumento da pós-carga, da tensão exer- futebol americano e no resto do mundo o fu- dor torácica e morte súbita. A morte súbita é cida na parede do ventrículo doente e a tebol (“soccer”).8, 15 Este fato está relacionado mais frequente em crianças e adultos jovens hipersensibilidade às catecolaminas, por com a dimensão das populações de atletas (idade <30 anos) e geralmente em indivíduos substituição de terminações nervosas au- participantes nos diferentes desportos. Ex- previamente assintomáticos. O evento fatal tonóminas por tecido fibro-adiposo.22, 23 plicações adicionais podem prender-se com é geralmente uma taquicardia/fibrilhação o nível de esforço cardiovascular exigido em ventricular, habitualmente no contexto de cada desporto, sendo expectável que des- exercício físico, suportando o conceito de que portos com maior exigência correspondam a actividade física intensa possa constituir um a maior risco. O fato dos homens praticarem “gatilho” para a arritmia ventricular. 17 19 mais certos tipos de desporto pode igualmente contribuir para a diferença. Risco em função do substrato O risco relativo (RR) de morte súbita cardíaca associada à prática desportiva é diferente de acordo com a anomalia cardiovascular subjacente. Corrado, et al, avaliaram as diferenças de risco em função do substrato patológico. Verificaram que o risco relativo era muito mais elevado nas anomalias coronárias congénitas (RR=79), seguindo-se da cardiomiopatia arritmogénica do ventrículo direito (RR=5.4), e sendo mais baixo na doença arterial coronária com um RR de 2.6.4 Principais causas de morte cardiovascular Cardiomiopatia arritmogénica Cardiomiopatia Hipertrófica do ventrículo direito A CMH é a principal causa cardiovascular Segundo os investigadores italianos a isolada de morte súbita em jovens atletas CAVD é o principal substrato patológico nos Estados Unidos. É uma malformação responsável por morte súbita nos atletas cardíaca primária e familiar com uma ex- da região de Veneto.4 É uma doença here- pressão clínica e morfológica heterogénea. É ditária do músculo cardíaco. Patologica- a malformação cardiovascular genética mais mente caracteriza-se por morte progres- frequente com uma prevalência na popula- siva de células miocárdicas e subsequente 16 4 ção geral de 1:500.10 Mutações em 11 genes tema brancos.3 Estas diferenças podem traduzir Bibliografia 1. DeBacker G, Ambrosioni E, Borch-Johnsen K, et al. Third joint Task Force of European Guidelines on cardiovascular disease prevention in clinical practice. Eur Heart J 2003;24:1601-10. 2. Ljungqvist A, Jenoure P, Engebretsen L, et al. The International Olympic Committee (IOC) Consensus Statement on periodic health evaluation of elite athletes March 2009. Br J Med 2009;43:631-643. 3. Maron BJ, Doerer JJ, Haas TS, et al. Sudden deaths in young competitive athletes: analysis of 1866 deaths in the United States. 1980-2006. Circulation 2009;119:1085-92. 4. Corrado D, Basso C, Rizzoli G, et al. 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